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Compreender a natureza do que se denomina sacrifício é, atualmente,
uma empresa difícil, conseqüência, em grande parte, do ritmo
intensamente artificial que se tenta imprimir à vida humana. Não
fosse isto, seria mais facilmente evidente que a atitude sacrificial,
da qual a missa é um exemplo, é algo do que há de mais natural e
fundamental no homem; algo que expressa perfeitamente em um só todo
muito do que pertence à essência de qualquer ensino religioso, seja
da religião natural, seja da revelação mosaica, seja da cristã.
Onde quer que a atitude sacrificial floresça espontaneamente e de uma
forma sadia, é indício certo de que o homem vive de um modo que lhe
permite uma compreensão espontânea de sua própria natureza, de sua
posição dentro da criação, da existência de um Criador e de sua
transcendência, e de sua relação, enquanto criatura, para com o
Criador.
Com razão Santo Tomás de Aquino observou na Summa Theologiae que
em qualquer idade, entre todos os homens e entre todas as nações,
sempre houve oferta de sacrifícios (III Q.85 a.1). Os
relatos históricos sobre quase todos os assuntos, escritos na idade
antiga, qualquer que seja a sua proveniência, citam abundantemente a
existência desta prática em todo lugar. Ponderando que o que existe
sempre e entre todos deve ser algo natural, daí conclui Santo Tomás
que a existência de sacrifícios pertence ao direito natural.
É muito significativa esta afirmação que a oferta de sacrifícios
pertence ao direito natural. Com ela quer-se dizer que não se trata
de fruto de leis ou convenções humanas; quer-se dizer também que
trata-se de algo que não necessita de promulgação por parte da lei
divina para sua legítima existência, e nem mesmo sequer exige
necessariamente o auxílio da graça para que possa ser compreendida.
O sacrifício é, ademais, um símbolo, e nisto é
caracteristicamente algo humano, pois sendo o homem um composto de
natureza espiritual e material, é seu modo natural de expressão a
utilização de sinais sensíveis para significar o que é apreendido
pela inteligência; é, também, o seu modo natural de intelegir
fazê-lo por meio de sinais sensíveis.
Externamente considerado, o sacrifício é uma oferta feita a Deus de
alguma coisa material, acompanhada de alguma alteração desta coisa,
em reconhecimento da majestade divina e da submissão humana à mesma.
Mas o ato material do sacrifício por si só nada tem que possua esta
valor que acabamos de lhe atribuir; ao contrário, por ser um
símbolo, o ato material do sacrifício só adquire todo aquele valor
se for uma significação externa de um "sacrifício interior
espiritual, pelo qual a alma própria se oferece a Deus" (ST.
III Q.85 a.2). Visto desta maneira, o sacrifício é uma
atitude natural no homem, no mesmo sentido em que é natural o beijo,
o abraço e todas as diversas demonstrações de afeto e de respeito com
que através de sinais sensíveis significamos nossa atitude interior
para com nossos semelhantes. O sacrifício, porém, difere destes
exemplos pelo fato de que um beijo ou um abraço se dão entre iguais
e, pelo menos do ponto de vista estritamente natural, a relação que
existe entre o homem e Deus não é comparável à que existe entre
iguais mas à que existe entre um servo e seu senhor. De onde que o
sacrifício pode ser comparado aos sinais de submissão e honra que os
súditos oferecem aos senhores em reconhecimento de sua soberania.
Entendido desta maneira, o sacrifício é também um ato de justiça.
Em concórdia com o que foi dito, as Sagradas Escrituras também
descrevem a oferta de sacrifícios como uma prática universal por parte
dos homens desde o início da história. E sem citar, - é
importante notar isto - , nenhum mandamento prévio dado por Deus
para que se procedesse assim. Caim e Abel (Gen. 4) apresentaram
ambos uma oferta a Deus dos produtos de seus trabalhos: Caim, dos
frutos da terra; Abel, dos primogênitos de seu rebanho. Quando,
acabado o dilúvio, Noé saíu da arca (Gen. 8), erigiu um altar
e ofereceu a Deus um holocausto de animais e aves. Também Abraão
em várias ocasiões erigiu altares para oferecer sacrifícios a Deus
(Gen. 12, 8; 13, 18). Quando ele voltou vitorioso de uma
expedição militar contra Codorlaomer, dizem as Escrituras ter vindo
ao seu encontro Melquisedec, rei de Salém, com
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"pão e vinho,
pois era sacerdote
do Deus altíssimo".
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Temos também a história do sacrifício de Isaac, que Deus pediu a
Abraão para prová-lo, dizendo-lhe:
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"Abraão!
Toma teu filho único,
que tanto amas,
Isaac,
e vai à terra de Moriá,
e oferece-mo ali em sacrifício
sobre um dos montes
que Eu te indicarei".
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O qual sacrifício foi interrompido no último momento, pela voz de um
anjo que disse a Abraão:
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"Não estendas a mão contra o menino,
porque agora sei que temes a Deus,
pois por amor de mim
não poupaste o teu filho unigênito".
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Dissemos que do ponto de vista do direito natural o sacrifício é um
ato de justiça, e que exprime uma reverência e submissão que o homem
deve a Deus, comparável à de um servo para com seu senhor. A esta
relação deve-se acrescentar que, em virtude da redenção merecida
por Cristo, estabeleceu-se no Cristianismo uma nova aliança entre
Deus e o homem pela qual foi dito aos Apóstolos:
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"Já não vos chamo
mais de servos,
mas de amigos".
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E também:
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"Nossos pais nos educaram
segundo sua própria conveniência,
mas Deus o faz para o nosso bem,
para nos comunicar a sua santidade".
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Isto ocorre pela graça, pela qual o homem é elevado à
participação da natureza divina e é chamado a participar de sua
própria felicidade, de onde que nasce aquela mútua amizade entre
Deus e o homem a que chamamos de caridade. A vida cristã é a
própria vida desta amizade, e isto tem como conseqüência uma
elevação de todos os preceitos do direito natural ao plano
sobrenatural. O sacrifício, com isto, não deixará de ser um ato
de justiça, mas passará a ser motivado por esta amizade e será,
neste sentido, também um ato desta amizade. Continuará sendo um
símbolo pelo qual se expressa o sacrifício interior com que a alma se
oferece a Deus; mas este oferecimento passará a ser também um sinal
da total entrega de si mesmo, por parte do homem, por amor, ao
Criador. E, em nosso parecer, não podemos deixar de ver na
imolação da vítima um sinal da imolação interior que o homem
também tem que realizar para poder amar a Deus mais intensamente,
pois Jesus ensinou que ninguém poderia ser seu discípulo se primeiro
não renunciasse a si próprio e, consoante a isto, uma experiência
milenar tem demonstrado o quanto é verdadeira a sentença segundo a
qual quanto mais nos afastamos do amor das coisas terrenas e de nós
mesmos, tanto mais nos formamos no amor de Deus, e que a própria
diminuição da cobiça do que é terreno já é alimento para a
caridade. Este é o motivo, pois, pelo qual Cristo haver
estabelecido que não poderia segui-lo quem primeiramente não
renunciasse a si mesmo, e disto, na imolação da vítima do
sacrifício, temos um símbolo do que o próprio oferente deve fazer se
quiser oferecer-se a Deus com aquele amor que já nada mais retém
para si próprio a não ser o próprio Deus.
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