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Os parágrafos anteriores mostraram que nada pode ser movido por si
mesmo. Qualquer ente em movimento tem que ser movido por um agente
externo em ato que é a causa eficiente deste movimento. A
demonstração dada para tanto é necessária e universal. Trata-se,
portanto, de uma lei da natureza que deve ser obedecida tanto no cosmos
que conhecemos como em quaisquer outros que existirem. Se as leis da
Mecânica e do Eletromagnetismo não existissem ou fossem inteiramente
diversas das que atualmemte conhecemos, ainda assim a natureza teria
que admitir necessariamente a causalidade eficiente, supondo que nela
houvesse movimento. Colocada neste plano de abstração, não há
exceção possível a esta lei.
Dificuldades de outra ordem surgem quando surge a questão de se
identificar qual seria a causa eficiente de cada tipo de movimento em
particular. Reconhecer especificamente quais são as causas eficientes
dos diversos tipos de movimento é algo que não depende mais apenas da
postulação da existência do movimento em geral, mas do estudo
experimental de cada espécie de movimento.
Se considerarmos o aquecimento como um movimento, não será difícil
identificar qual é a causa eficiente envolvida. O mesmo já não se
pode dizer, porém, de outros movimentos aparentemente simples e
comuns, como é o caso do movimento dos corpos segundo o lugar. Esta
dificuldade já havia sido levantada por Aristóteles no final do
Livro Oitavo da Física, onde o filósofo escreve:
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"Sobre a questão dos corpos
que são transladados,
seria interessante
discutir uma dificuldade.
Se, de fato, todo ser que é movido
é movido por alguma coisa,
como é possível que,
entre as coisas que não se movem a si mesmas,
haja algumas que continuam seu movimento
sem estar em contato com o seu motor,
como é o caso do arremesso
de um projétil?"
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No decorrer desta mesma passagem do Oitavo da Física Aristóteles
responde a esta questão de um modo que hoje nos parece manifestamente
absurdo, e efetivamente o é. Esta resposta, porém, só desmerece
a Física de Aristóteles quando se considera esta ciência como uma
versão primitiva, mas essencialmente idêntica, à Física
Moderna, o que não é correto. A Física Moderna é o estudo dos
movimentos particulares considerados em suas espécies; a Física
aristotélica é o estudo do movimento universalmente considerado,
qualquer que seja a estrutura do cosmos onde ele ocorre. Se, algumas
vezes, ela insere em suas considerações exemplos retirados dos
movimentos efetivamente observados no cosmos que conhecemos e desce à
consideração da individualidade destes movimentos, suas
considerações podem, com o tempo e com o acúmulo de uma base
experimental maior e mais refinada, serem superadas. Embora esta seja
apenas a periferia da Física de Aristóteles, é precisamente desta
periferia que se ocupa a Física Moderna.
A Mecânica Newtoniana daria uma resposta bem mais plausível que a
apontada por Aristóteles no que diz respeito à identificação da
causa eficiente do movimento dos projéteis arremessados. A pergunta
é a seguinte: se tudo o que se move não pode mover- se a si mesmo,
mas deve ser movido por um outro, como é possível que, ao
dispararmos uma flexa ela continue se movendo sem que nada aparentemente
a esteja movendo? A resposta dada por Newton a esta questão é que,
neste caso, não haveria causa eficiente envolvida, porque o movimento
retilíneo uniforme, que é o movimento descrito pela flexa, é
fisicamente indistinguível do repouso. Traduzido na linguagem de
Aristóteles, isto significaria que o movimento retilíneo uniforme
não seria uma passagem da potência ao ato. Se o Filósofo aceitasse
a explicação de Newton, ele teria que dizer que o movimento da flexa
não seria um verdadeiro movimento. O movimento da flexa poderia ser
chamado de movimento apenas no sentido vulgar em que se emprega o
termo, mas não no sentido estrito e rigoroso em que é tomado na
física aristotélica. Se a velocidade retilínea e uniforme é dada
como essencialmente idêntica ao repouso, só poderiam ser
verdadeiramente considerados movimentos no sentido aristotélico aqueles
em que houvesse uma aceleração, isto é, uma variação de
velocidade. Estes movimentos assim acelerados, segundo Newton,
exigem a presença de uma força externa, ou causa eficiente, para
provocá-los. Tão logo esta força cesse de agir, tão
imediatamente a velocidade deixará de variar. Segundo os princípios
da mecânica newtoniana, o repouso e o movimento retilíneo uniforme,
isto é, o movimento em linha reta dotado de uma velocidade constante e
invariável, não necessitam de uma causa externa para serem
conservados; o repouso e o movimento retilíneo uniforme continuam
indefinidamente ao longo do tempo enquanto um agente externo não
modificar esta situação. Do ponto de vista da Mecânica
Newtoniana, portanto, ambas estas situações são fisicamente
idênticas. Se não é necessária uma causa externa para manter o
repouso, não o é necessária também para manter um movimento
retilíneo uniforme.
Esta é a explicação que daria Newton à questão do movente do
projétil. Considerada mais atentamente, porém, esta explicação
possui apenas utilidade prática para cálculos; filosoficamente ela é
tão insustentável quanto a de Aristóteles. Seu problema reside em
que ao ter postulado que o movimento da flexa ou do projétil lançado
fosse um movimento retilíneo dotado de velocidade constante, Newton
teria admitido uma hipótese impossível. A existência de um
movimento retilíneo uniforme pressupõe a hipótese de existir um
espaço vazio infinito que subsista por si mesmo, no qual esteja se
movimentando apenas um único corpo. Porém a hipótese de um espaço
vazio subsistente por si mesmo é falsa, tanto segundo a cosmologia
grega, conforme veremos mais adiante, como também segundo a
Mecânica Relativística que sucedeu a Newtoniana. Segundo os
gregos, não é possível a existência de um espaço vazio que
subsista por si mesmo como uma substância. Mais ainda, segundo
eles, ainda que o espaço vazio pudesse subsistir, não poderia de
modo algum ser infinito. Nestas condições, se um corpo se move em
um movimento supostamente retilíneo uniforme, ele deverá
necessariamente estar sob a influência da presença de outros corpos,
o que tornaria fisicamente impossível que este movimento pudesse ser
retilíneo uniforme. De fato , quando se lança uma flecha ou uma
pedra para a frente, este corpo não produz um movimento retilíneo
uniforme, mas um movimento parabólico de queda gradual para o chão.
O movimento tende, potencialmente, como a um término, a outro
determinado lugar, o local onde já está outro corpo em ato, que é a
terra. O suposto movimento retilíneo uniforme não passou de uma
abstração inexistente na realidade.
Poderia modificar-se o exemplo para o caso de uma bola rolando sobre
uma mesa muito grande. Neste caso o movimento seria retilíneo, mas
não uniforme. A velocidade decresceria gradualmente devido ao atrito
da bola sobre a mesa, tendendo em potência ao repouso, devido a um
corpo, que é a mesa, que já está em ato naquela forma. O
movimento retilíneo uniforme, portanto, torna-se novamente uma
abstração impossível porque suporia sempre, ainda que
implicitamente, a existência de um espaço vazio absoluto destituído
de outros corpos e livre de qualquer interferência externa.
O movimento retilíneo uniforme, um movimento em linha perfeitamente
reta e em velocidade constante, pode existir de fato apenas sob
circunstâncias excepcionais. Um automóvel pode mover-se em linha
perfeitamente reta e sob velocidade constante, mas para isso é preciso
um motor que vença o atrito da estrada; um satélite ou nave espacial
pode mover-se em movimento retilíneo uniforme se um foguete acoplado a
ele contrabalançasse constantemente, passo a passo, todas as
influências gravitacionais do Universo à sua volta. Neste caso,
porém, ao contrário do exemplo da flexa, estaria identificada a
causa eficiente. Um movimento retilíneo uniforme sem causalidade
eficiente, portanto, é cosmologicamente impossível.
Vamos concluir esta explicação sobre o movimento dos projéteis, a
qual, apesar de sua aparente simplicidade, é em sua essência
altamente polêmica, dizendo que tanto a explicação de Aristóteles
como a de Newton, como outras que possam ser dadas dependem, neste
caso, para ser sustentadas, de uma evidência experimental que pode
aperfeiçoar-se com o decorrer do tempo. Qualquer que venha a ser a
explicação de um movimento em particular, porém, esta continuará
deixando inalterado o cerne da Física Aristotélica que, ao estudar
o movimento na sua mais ampla generalidade, não depende essencialmente
da evidência experimental senão o tanto quanto for necessário para
poder-se estabelecer somente a existência geral da realidade chamada
movimento.
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