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Mas, havendo sido este grande patriarca da Igreja tão honrado,
estimado e reverenciado no mundo, não lhe faltaram trabalhos e
perseguições, com os quais o Senhor o quis provar para que deles
saísse puro e resplandecente como o ouro do crisol.
Fez-se em seu tempo uma jornada muito famosa para a conquista e a
defesa da Terra Santa, infestada por infiéis e sarracenos. Ordenou
o Sumo Pontífice Eugênio III, que havia sido discípulo e monge
de São Bernardo, ao seu pai e mestre, que pregasse a cruzada e as
suas indulgências a todos os que fossem àquela jornada, seja para
libertarem seus irmãos, seja para darem suas vidas por eles.
Pregou o santo e, como prova de que Deus o mandava pregar, fêz
inumeráveis e manifestos milagres. Tanto mobilizou províncias e
reinos para que tomassem em armas, que o próprio Imperador Conrado e
o rei Luís de França em pessoa foram a ela com grandes exércitos.
Mas, por justo e secreto juízo do Senhor foi mal sucedida, teve
insucesso, ficando nossa gente dispersa e perdida e os infiéis
triunfando com nossos despojos e insolentes com a vitória. Houve
grande tristeza e pranto em toda a cristandade e, havendo sido São
Bernardo o principal pregador e solicitador daquele empreendimento e o
que mais havia animado e inflamado os povos para o mesmo, levantou-se
contra ele forte tempestade. Chamavam-no de charlatão, embusteiro,
falso profeta, ruína e calamidade de toda a cristandade. Viu-se
muito afligido o fiel e bem-aventurado servo de Deus. Conheceu que
era tentação e provação sua e que Deus lhe fazia grande mercê em
servir-se dele e tomá-lo como escudo para que todos os golpes das
murmurações e queixas e todas as setas das línguas atingissem a ele e
não ao Senhor, como ele mesmo o escreve ao Papa Eugênio no
princípio do segundo livro De consideratione. E para que se visse
que Deus havia mandado que pregasse o que pregou sobre esta jornada,
além dos outros e grandes milagres que antes dela havia feito como
testemunho desta verdade, depois dela fêz outros e curou um cego. E
o Senhor, que humilha os seus santos para mais levantá- los,
fê-lo com São Bernardo e nos deu a entender que temos que
obedecê-lo no que nos manda e reverenciar seus julgamentos sem
esquadrinhá-los, e que muitas derrotas temporais são vitórias
espirituais e ajuda para o céu.
XIV
Estando, pois, o santo abade já velho, cansado, exausto e
consumido pelos trabalhos, penitências, enfermidades, viagens e
assuntos gravíssimos de toda a sua vida e com grandes ânsias de ser
promovido à eterna e contemplar face a face o Sumo Bem,
sobreveio-lhe uma dolorosa e perigosa enfermidade de estômago, o qual
não podia reter a comida, juntamente com grande fraqueza e inchaço
nas pernas. Suportava, porém, a doença com tanta suavidade e
doçura de espírito como quem, depois de um longa navegação,
entende ter chegado ao porto desejado.
Ele mesmo escreveu uma carta ao abade Arnaldo, seu amigo, na qual
relata sua enfermidade com estas palavras:
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"Temos recebido vossa caridade
com caridade e não com alegria.
Porque que alegria pode haver
onde tudo está cheio de amargura?
Só o não comer me traz algum deleite.
O sono já fugiu de mim,
para que a dor não se modere
nem sequer pelo adormecimento dos sentidos.
Quase tudo o que padeço
são problemas de estômago.
Os pés e as pernas incharam,
como costuma acontecer com os hidrópicos.
E em todas estas coisas,
para que eu não esconda ao amigo solícito
a situação de seu amigo,
falo como menos sábio e digo que,
segundo o homem interior,
o espírito está pronto,
embora a carne seja fraca.
Rogai ao Salvador que não queira
a morte do pecador
e que não dilate mais o meu fim,
mas que o defenda e ampare".
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Tudo isso é de São Bernardo, ao narrar sobre sua última
enfermidade e o ânimo que Deus lhe concedia.
Estando já para morrer, vieram os bispos dos povoados vizinhos,
muitos abades e monges. Choravam todos com grande ternura a perda de
tão santo padre, mas ele os animava e consolava, e por sua humildade
dizia-lhes que já era hora que o servo inútil e sem valor não mais
ocupasse em vão aquele posto sem motivo e que a árvore estéril fosse
arrancada. Finalmente, entre as lágrimas e as mãos de seus filhos,
entregou sua puríssima alma ao Criador em 20 de agosto do ano do
Senhor de 1153, na idade de sessenta e quatro anos quase
cumpridos. Para enterrá-lo colocaram-lhe sobre o peito, como o
próprio padre o havia mandado, uma caixinha com relíquias de São
Tadeu, de quem era muito devoto, que haviam-lhe trazido aquele ano
de Jerusalém. Costumava dizer que teria por singular benefício do
Senhor no dia da ressurreição geral sair do sepulcro em companhia
deste santo apóstolo.
Apareceu algumas vezes depois de morto a alguns religiosos,
resplandecente e revestido de uma imensa glória, e fêz muitos e
grandes milagres, como os havia feito em vida.
Canonizou-o o papa Alexandre II no ano de nossa salvação de
1165.
Foi devotíssimo, conforme dissemos, da bem aventurada Virgem Maria
nossa Senhora, à qual teve sempre como farol para sua navegação, e
a teve tão favorável e propícia, como se vê no desenrolar de sua
vida que aqui expusemos e nos inumeráveis milagres e obras com que
edificou, iluminou e assombrou o mundo que, sem dúvida, desta sua
devoção para com a Virgem Santíssima jorrarem dele como que riachos
de sua fonte. Tinha em seu rosto uma graça maravilhosa e aprazível,
mais de espírito que de carne; em seus olhos resplandecia uma pureza
angélica e uma simplicidade de pomba; o corpo era tão fraco e
consumido que parecia não ter carne; sua face, corada; o cabelo e a
barba, ruivos e, na velhice, brancos; a estatura mediana, mais para
o alto do que para o baixo.
Deixou fundados 160 mosteiros de sua Ordem, tão povoados e cheios
de tantos religiosos que só no convento de Claraval viviam 770. O
que toda a Igreja deve a este santo e glorioso Patriarca pela vida
celestial que viveu, pelos exemplos admiráveis de todas as virtudes
que deixou, pelas obras e livros dulcíssimos e doutíssimos com que a
ilustrou, pelos benefícios singulares e universais que lhe fêz,
pelos milagres estupendos que realizou e pela sagrada religião que
instituíu, ampliou e estendeu para todas as províncias da cristandade
e pelo que seus santos filhos e verdadeiros imitadores de seu grande
Pai têm feito e fazem é tanto, que é melhor reverenciá-lo com o
silêncio do que diminuí-lo com nosso baixo estilo.
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