78. Como o salmista afirma que as palavras do Senhor são doces para as suas faces. Se ele as come e se, portanto, são alimento. De que alimento se trata.

"Quão doces são para a minha garganta as tuas palavras; são mais doces do que o mel para a minha boca".

Salmo 118, 103

Não consideras, irmão, que este homem costumava comer as palavras de Deus, para que dissesse:

"Quão doces são para a minha garganta as tuas palavras"?

E quem é que comeria as palavras de Deus? Se, portanto, as palavras de Deus podem ser comidas, é porque na realidade elas são alimento. E que alimento? Não são alimento para o ventre, mas para a mente. Podem ser para a mesma pessoa jejum para o ventre e alimento para a mente. De fato, diz a Escritura,

"Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus".

Mat. 4, 4

E, todavia, há alguma semelhança entre o alimento do ventre e o alimento da mente. Por este motivo a palavra de Deus é dita alimento, porque assim como o alimento corporal é refeição para a carne, assim também a sabedoria é pasto para a mente.

O alimento corporal contém em si três coisas: sabor, nutrição e massa. O sabor deleita, a nutrição sustenta, a massa onera. O sabor pertence ao paladar, a nutrição à natureza, a massa à miséria. A gula percebe o sabor, o estômago recebe a nutrição e a massa. O estômago recebe a nutrição para a refeição e recebe a massa para o peso. A nutrição é recebida para que se transforme em corpo, a massa é recebida para que seja expulsa. O sabor, de certo modo, é espiritual, e por isso somente deleita, sem onerar.

A fome, por este motivo, nunca pode ser saciada na garganta, porque ali o apetite não tem medida, nem a deleitação tem fim.

Já no estômago a fome recebe a saciedade, pois ali o apetite de comer possui uma certa medida e a deleitação possui fim. Ali a nutrição que sustenta não é recebida sem a massa que onera. No estômago, para que não se apeteça além do modo em que aproveita, a própria massa simultaneamente recebida, onerando-o, refreia o apetite. Quando o seu peso começa a agravar o estômago e de certo modo, a sufocá-lo, algo que é tolerado contra a vontade, a nutrição pela qual nos refazíamos já deixa de nos apetecer.

Portanto, irmão, quando comeres, não queiras consultar se a tua garganta está satisfeita; se seguires o seu julgamento, antes que satisfaças a sua deleitação, terás sufocado o teu estômago pelo peso. Prefere consultar o ventre quanto à medida do comer; antes que ele comece a te doer, modera a avidez da garganta.

Tudo isto, porém, deve ser entendido do alimento corporal. No que diz respeito à refeição espiritual, ao contrário, deve-se consultar antes a garganta do que o ventre. Digo a garganta, não a da carne, mas a espiritual; e digo o ventre, não porém o ventre da carne, mas o espiritual.

Assim como reconhecemos o alimento espiritual, assim também devemos entender espiritualmente a garganta e o ventre. O alimento espiritual, isto é, a palavra de Deus, tal como o alimento corporal, tem à semelhança deste o seu sabor, pelo qual se deleita a garganta espiritual; tem a sua nutrição, que é pasto e que dá vida à substância espiritual. Possui também a sua massa que, de certo modo, pressiona e onera a enfermidade.

Chamamos de garganta espiritual ao paladar do coração. O sabor da palavra de Deus é o gosto da doçura interior.

A alma é ela própria a substância espiritual. A nutrição da palavra de Deus é o exercício da virtude; a sua massa é o peso do trabalho.

Quando o sabor da doçura interior é recebido sem fastio, a garganta do coração recebe sua deleitação como de um certo gosto de alimento espiritual, mas não pode saciar-se. O exercício da virtude, pelo qual a alma se alimenta, não é recebido sem o peso do trabalho, pelo qual a carne é onerada, como se esta fosse um certo estômago de nossa sensualidade.

Quando alguém recebe o alimento pelo exercício da boa obra, o próprio trabalho da obra castiga aquele que é onerado para que não se apeteça além da medida a virtude através da qual se faz a refeição.

Já entendes suficientemente, conforme penso, o que significavam para o salmista estes versos:

"Quão doces são para a minha garganta as tuas palavras; são mais doces do que o mel para a minha boca".

O salmista, de fato, não diz que as palavras de Deus eram doces para o seu ventre, mas para a "sua garganta". Não que fossem doces para o seu estômago, mas para a "sua boca". Ele se expressa como se quisesse dizer:

"Pela tua palavra, Senhor, o ventre da carnalidade é onerado, mas o paladar do coração se deleita".

O paladar do coração deleita-se interiormente pelo sabor da doçura porque, se exteriormente o labor da obra onera a enfermidade, interiormente, porém, o desejo encontra o pasto pela doçura e pelo gosto da suavidade.

Daqui procede o modo com que aquele amado e querido João, que tão freqüentemente e de tão boa vontade costumava comer a palavra de Deus, se mostra a si mesmo, dizendo:

"Recebi o livro da mão do anjo e o devorei. Na minha boca era tão doce quanto o mel; tendo-o, porém, devorado, amargou o meu ventre".

Apoc. 10, 10

Assim também tu, irmão, devora o livro da vida. Come a palavra de Deus. Mas não apenas come; come também avidamente, e não queiras, se sentires no ventre algo do seu amargor, afastar-te da doçura de seu sabor.