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Teve muitos adversários e perseguidores, pelos quais fazia fervorosa
oração, e procurava com humildade e submissão abrandá-los e
devolver-lhes o bem pelo mal, benefícios por injúrias e honra e
reverência por desprezos e afrontas. Mas que há de tão admirável
em ser tão paciente quem era tão humilde? Porque o verdadeiro
humilde nunca pensa que lhe fazem injúrias; e, como o santo dizia,
não queria parecer humilde, senão vil. Foi tão admirável a
humildade deste glorioso santo e estava tão enraizado nesta virtude e
tão dentro e submerso no abismo de seu nada, que nada o podia
envaidecer ou elevar. Ofereceram-lhe muitas vezes grandes dignidades
e bispados, dos quais não quis aceitar nenhum, julgando-se indigno
de todos. E era tanta sua autoridade e o respeito em que os seus
próprios superiores o tinham, que não se atreviam forçá-lo,
porque sabiam o quanto era contrário à sua vontade. Mas não há por
que gastar muitas palavras para enumerar o catálogo de suas virtudes,
pois a todas abraçou, e foi tão excelente em cada uma como se não
tivesse mais do que aquela. Era sereno em seu rosto, modesto no
hábito, circunspecto nas palavras, temeroso em suas obras, assíduo
na meditação, contínuo na oração, na qual confiava mais do que no
próprio engenho ou no seu trabalho. Era magnânimo na fé,
longânime na esperança, perfeito na caridade, providente e lúcido
em seus conselhos; eficiente nos negócios e nunca menos ocioso que
quando estava ocioso; alegre nas injurias, envergonhado nos louvores,
suavíssimo em seus costumes, santo em seus merecimentos, glorioso em
seus milagres; e ele próprio foi o primeiro e maior de todos os seus
milagres. Em seus sermões teve uma virtude mais divina do que humana
para quebrantar os corações mais duros que as pedras a inflamar os
tíbios e débeis no amor do Senhor. E vendo isto o demônio,
procurava distraí-lo e atrapalhá-lo para que não repartisse com os
ouvintes os dons de Deus ou se reputasse em alguma vanglória por
havê-los bem repartidos. Uma vez, pregando, apresentou-se-lhe um
lindo pensamento, mas achou melhor guarda-lo para outro sermão; o
Senhor, porém, interiormente lhe disse:
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"Enquanto guardares isto,
não te darão outra coisa para que digas".
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E assim a disse logo.
Outra vez, ouvindo-o muita gente com grandes aplausos e admiração,
veio-lhe uma tentação de vanglória, parecendo-lhe que lhe diziam:
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"Admira quanta gente te ouve,
e com quanta atenção".
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Parou um pouco, refletindo sobre se deveria deixar o sermão; mas,
entendendo que esta era a voz do demônio, voltou a cabeça para trás
e disse:
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"Não foi por ti que comecei
e não será por ti que terminarei",
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e prosseguiu adiante com o seu sermão.
E por ser São Bernardo tão ornado com todas as virtudes e um
prodígio celestial no mundo, estando certa vez muito mal e oprimido
por uma grande quantidade de catarro que o afogava e lhe dificultava a
respiração, foi arrebatado e, estando como em êxtase, pareceu-lhe
que o conduziam diante do tribunal do Senhor, onde também estava o
inimigo do gênero humano para acusá-lo e, havendo o maligno
concluído sua acusação e o carregado de culpas, tendo-se-lhe
concedido tempo para que se defendesse, ele, sem perturbação
nenhuma, respondeu desta maneira:
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"Eu confesso que não sou digno
da glória eterna;
mas meu Senhor a possui por dois títulos,
por ser Unigênito do Pai Eterno
e herdeiro do real reino celeste,
e por tê-la comprado com seu sangue.
Ele, porém se contenta com o primeiro
destes dois títulos,
e só este lhe basta.
Quanto ao segundo,
concede-o a mim em doação e,
em virtude disto,
tenho eu direito ao céu".
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Ficou o perverso acusador confuso e aquela forma de julgamento e de
tribunal desapareceu e o santo varão voltou a si; para que se veja
quão diversos são os julgamentos dos pecadores e dos santos.
Continuemos, porém, o curso de nossa narração.
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