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"Louvai o Senhor desde a terra,
os dragões e todos os abismos,
o fogo, o granizo, a neve,
o gelo e o vento tempestuoso,
que cumprem a sua palavra;
os montes e todas as colinas,
as árvores frutíferas, e todos os cedros;
as feras e todos os rebanhos,
as serpentes e as aves de penas;
os reis da terra e todos os povos,
os príncipes e todos os juízes da terra.
Os jovens e as virgens,
os velhos junto com os moços,
louvem o nome do Senhor,
porque só o seu nome é excelso".
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Irmãos caríssimos, o santo salmista inicia o salmo ao qual pertencem
estas palavras convidando algumas criaturas celestes, como os anjos, o
sol, a lua e as estrelas, ao louvor do Criador. Desce, em
seguida, para convidar ao mesmo louvor as criaturas da terra que
acabamos de ouvir. "Louvai o Senhor", diz o salmista,
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"os dragões e todos os abismos".
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Não são, porém, apenas as criaturas descritas neste salmo que
louvam a Deus. Todos os seres corpóreos que subsistem, na medida em
que possuem e têm o seu lugar no decoro de todo o universo, também
louvam a Deus. Dentro deste decoro as coisas visíveis louvam a Deus
de um modo contínuo e sublime quando, admiravelmente criados e
convenientemente dispostos por Deus, jubilosamente nos estimulam e
convidam pela sua contemplação a admirar e louvar o Criador.
Temos, porém, que nos ocupar não tanto com o que a letra significa
exteriormente, como com a doçura que sua inteligência espiritual
contém interiormente. Passaremos a discutir, portanto, seu sentido
moral, para considerar o que se esconde nas coisas aqui descritas que
pertencem à edificação dos costumes.
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"Louvai o Senhor desde a terra,
os dragões e todos os abismos."
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Os dragões, conforme diz Santo Agostinho, não são os maiores
animais que há sobre a terra. Embora sejam animais perniciosos,
possuem todavia algo pelo qual podem ser colocados em boa
significação, pois nenhuma das coisas existentes está inteiramente
privada da participação do bem, já que a própria Escritura nos
testemunha que
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"Viu Deus todas as coisas
que havia feito,
e que eram imensamente boas".
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Todas as coisas, portanto, podem significar alguma coisa boa, mesmo
as ínfimas e as mínimas, as quais, quando comparadas com as demais,
parecem deformes. Os dragões, por conseguinte, pelo fato de
superarem todas as demais criaturas pelo seu tamanho corporal,
significam aqueles que pelo grande mérito da justiça, pela opinião
do bom nome ou pela autoridade transcendem a todos os demais. É assim
que admiramos e imitamos a Abraão entre os patriarcas, Isaías entre
os profetas, João entre os evangelistas, Pedro entre os
apóstolos, Estêvão entre os mártires, Nicolau entre os
confessores, a bem aventurada Maria entre as virgens.
Os abismos são de grande profundidade e não podem ser penetrados pela
vista humana. Eles, portanto, significam corretamente aqueles que
são repletos entre todos pela profundidade da sabedoria e da ciência
celeste do oculto e do místico. O apóstolo Paulo, admirando-se
desta profundidade, exclama dizendo:
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"Ó profundidade das riquezas
da sabedoria e da ciência de Deus!
Quão incompreensíveis são
os seus julgamentos,
e imperscrutáveis os seus caminhos!
Pois quem conheceu
o pensamento do Senhor?
Ou quem foi o seu conselheiro?"
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E o salmista:
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"Teus julgamentos são
como o mar profundo".
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E Salomão:
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"Há justos e sábios,
e as suas obras estão nas mãos de Deus;
e contudo o homem não sabe
se é digno de amor ou de ódio".
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Os abismos podem, portanto, expressar corretamente aqueles aos
quais, entre todos, foi concedido conhecer as coisas que se ocultam
nos mistérios ou investigar mais profundamente os segredos dos juízos
divinos.
O fogo sugere de modo especial aqueles cuja mente, acesa pela
caridade, arde mais fervorosamente. A caridade, de fato, é
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"o fogo perpétuo,
que nunca deve faltar
no altar do Senhor",
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isto é, no segredo do coração humano. Este é o fogo do qual o
próprio Senhor diz:
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"Vim trazer fogo à terra,
e que quero eu,
senão que ele se acenda?"
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O granizo, ao cair, faz barulho, e por isto figura abertamente
aqueles cuja palavra é severa e castiga asperamente os dissolutos e os
irrequietos.
A neve, sendo branca, é corretamente o tipo daqueles que são
cândidos pela pureza.
A água solidifica-se tornando-se gelo pela força do frio. São
verdadeiramente gelo aqueles que pelo rigor de sua disciplina reprimem o
fluxo da mente e da carne.
O vento tempestuoso, isto é, o vento que ora produz, ora desfaz uma
borrasca, significa o Espírito Santo, que ora eleva, ora humilha
os pensamentos da mente humana. Não incorretamente podem ser ditos
vento ou espírito aqueles que, pelo amor, se unem a Deus, que é
espírito. De fato, diz o Apóstolo aos Coríntios:
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"Aquele que está unido ao Senhor
é um só espírito com Ele".
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Quem, porém, preferir julgar que as criaturas mencionadas neste
salmo designam os maus, poderá entender pelos dragões os maliciosos,
pelos abismos os astutos e os enganadores, pelo fogo os cobiçosos,
pelo granizo os perseguidores, pela neve os hipócritas, pelo gelo os
endurecidos, pelo vento tempestuoso os sediciosos e os amotinados. A
todos estes o salmista chama ao louvor de Deus, na medida em que, com
estas palavras, os convida com sutileza para que se convertam do mal ao
bem. Parece, porém, melhor que pelos dragões e pelas outras
criaturas que se lhes seguem se entenda significar-se os bons, por
causa das palavras que se acrescentam:
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"que cumprem a sua palavra",
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pois os bons sem dúvida cumprem a palavra de Deus, na medida em que
obedecem aos preceitos do Senhor.
Segue-se:
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"Os montes e todas as colinas,
as árvores frutíferas, e todos os cedros;
as feras e todos os animais domésticos,
as serpentes e as aves de penas".
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Os montes designam os adiantados e perfeitos, enquanto que as colinas
os principiantes e imperfeitos. O salmista, portanto, nos ensina que
não são somente os montes os que louvam a Deus, mas que também as
colinas são contadas entre aqueles que cantam o seu louvor. Não
desanimem, por conseguinte, as colinas, isto é, aqueles que se
iniciam no bem, muito embora não tenham alcançado ainda a
perfeição.
As árvores frutíferas são os que oferecem aos outros o fruto da
doutrina da vida.
Os cedros são aqueles que, desprezando as coisas terrenas, se elevam
sublimemente à esperança das celestes.
Pelas feras entendemos todos os animais silvestres e não
domesticados, que vagueiam por locais solitários e fogem da presença
dos homens. Pelos rebanhos entendemos os animais domésticos e
mansos. As feras, portanto, significam corretamente aqueles que
levam uma vida solitária; os rebanhos, aqueles que vivem socialmente
com outros.
As serpentes são prudentes e rastejam sobre a terra. As aves voam
para o alto e se aproximam do céu. Pelas serpentes, portanto, podem
designar-se convenientemente todos os que administram as coisas que
pertencem à vida ativa; pelas aves, todos aqueles que se elevam,
pelas penas das virtudes, à contemplação das coisas celestes.
Segue-se:
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"Os reis da terra e todos os povos,
os príncipes e todos os juízes da terra.
Os jovens e as virgens,
os velhos junto com os moços,
louvem o nome do Senhor,
porque só o seu nome é excelso".
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Pelos reis entendemos todos os que presidem a outros com retidão.
Pelos povos entendemos todos aqueles que humildemente obedecem aos seus
prelados.
Príncipes, na língua latina, soa como "primi incipientes", o que
significa "os que começam primeiro". Os príncipes, portanto,
significam corretamente os que, precedendo os demais pelo exemplo da
boa obra, dão-lhes a forma para a justiça. Por isto é que do
próprio Senhor está escrito:
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"As coisas que Jesus
começou a fazer e a ensinar";
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e o bem aventurado apóstolo Pedro diz aos prelados:
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"Aos anciãos que há entre vós,
rogo que apascenteis o rebanho de Deus
não como os que dominam,
mas como os que se tornam
exemplo para os demais".
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Juízes são os que distingüem verazmente o verdadeiro do falso e o
bem do mal.
Já nos jovens observamos o vigor da fortaleza. Os jovens,
portanto, designam corretamente aqueles que são fortes na guerra e
vencem o maligno. E o bem aventurado João, falando com eles em sua
epístola, lhes diz:
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"Eu vos escrevo, jovens,
porque sois fortes,
porque a palavra de Deus
permanece em vós
e porque vencestes o maligno".
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Entendemos por virgens todos os que possuem a integridade virginal do
corpo, ou certamente aqueles que, possuindo a integridade da fé e da
mente, e unindo-se a Cristo seu esposo, não consentem à
corrupção do demônio.
Pelos velhos, finalmente, podemos entender todos os que são maduros
pela gravidade. Pelos moços, todos aqueles que estão sempre prontos
pela velocidade da boa obra.
Todos estes que foram mencionados, portanto, vivendo com justiça,
cantam o louvor de Deus. Feliz daquele que se reconhecer
verdadeiramente possuidor de algum destes bens que foram mencionados, e
mísero e miserável o que se perceber vazio de todos.
Agora, portanto, irmãos caríssimos, retornemos a nós mesmos e
examinemos se por alguma graça estamos no número dos que descrevemos.
Vejamos se somos dragões transcendendo pelo menos a alguns pela
dimensão de alguma virtude ou opinião; se somos abismo, contendo,
na medida em que o possa sofrer a nossa fragilidade, a sabedoria
escondida e a profundidade da ciência divina. Estas coisas,
entretanto, são muito grandes, e talvez excedam inteiramente a nossa
pequenez; nem também são comuns a todos, sendo mais próprias de
poucos. Se, portanto, não podemos ser dragões e abismos pela
excelência, sejamos pelo menos fogo pelo fervor do espírito, granizo
pela correção dos inquietos, neve pela brancura da pureza, gelo
coibindo o que de mal flui em nós, vento unindo-nos pelo amor a Deus
em espírito. Sejamos montes pela perfeição, ou pelo menos colinas
como bons principiantes; árvores frutíferas oferecendo aos outros o
fruto da doutrina; cedros, elevando-nos à sublimidade da esperança
dos bens celestes. E se não pudermos ser feras conduzindo uma vida
solitária, sejamos rebanhos convivendo na mansidão com os demais,
serpentes tratando com prudência os negócios da vida ativa e aves
voando para a contemplação das coisas celestes. Sejamos, se não do
número dos reis, presidindo os outros, pelo menos do número do
povo, obedecendo humildemente aos nossos prelados. Sejamos
príncipes, oferecendo aos demais o exemplo da justiça. Sejamos
juízes, pelo discernimento do que é reto. Sejamos jovens, vencendo
o maligno; virgens, possuindo a integridade, se não do corpo, pelo
menos da fé e da mente. Sejamos finalmente velhos pela maturidade da
gravidade e moços pela velocidade da boa obra. Cada um louve o
Senhor segundo o dom que lhe foi especialmente concedido. Não
todos, na verdade, podem tudo. E já que em cada uma das noites do
ano cantamos estas coisas, quando as pronunciarmos pela boca examinemos
se as temos no coração. Louvar o Senhor, de fato, é o nosso
especial ministério. Seu louvor será cantado aceitavelmente quando
aquilo que for proferido pela boca for também a poesia do coração.
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"Porque só o seu nome é excelso".
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Assim como somente Ele é, por ser verdadeiramente e ser
imutavelmente, assim também verdadeiramente somente o seu nome é
excelso. E ainda que a criatura tenha o seu ser e um ser
elevadíssimo, todavia sua existência não tem nenhuma comparação
com a essência do Criador, nem sua elevação com a sua excelência.
Porque
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"todos os povos na sua presença
são como se não fossem.
Diante dEle são considerados
como um nada,
uma coisa vazia".
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E também:
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"Mil anos diante de seus olhos
são como o dia de ontem que passou".
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Por isso é que todos os santos, quando progridem na contemplação de
Deus, quanto mais admiram o interior da divindade, tanto mais
reconhecem nada serem. Nunca, de fato, se leu que Abraão tenha
confessado ser cinza, senão quando mereceu conversar com o Senhor
(Gen. 18, 27). De fato, talvez acreditasse ser algo, se
não se apercebesse da verdadeira essência que estava acima dele.
Mas, depois de ter sido elevado em rapto à contemplação do que é
imutável, pleno pela potência de tal contemplação, vendo-se a si
mesmo viu também nada ser senão pó. Somente Deus é
verdadeiramente, porque somente Ele permanece incomutavelmente. Tudo
o que agora é de um modo para depois ser de outro já é alguma coisa
próxima do não ser; não pode permanecer no seu estado e de algum
modo se dirige ao não ser, na medida em que é conduzido a outro pela
força do tempo. E o bem aventurado Dionísio Areopagita atesta que
nenhuma essência, luz ou vida pode ter comparação alguma com a
incompreensível infinitude da divindade, dizendo:
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"Às vezes as tradições dos discursos
manifestativos da bem aventurança da divindade,
declarando a racionalidade divina,
a sua sabedoria e a sua subsistência
verdadeiramente existente,
louvam-na como sua razão, intelecto e essência,
e chamam a causa verdadeira das coisas
que são subsistências de luz, forma e vida".
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E embora a razão, a inteligência, a luz e as demais coisas
visíveis pelas quais algumas vezes são entendidas as coisas
invisíveis de Deus, superem e pareçam mais elevadas do que as outras
que designam a divindade, mesmo estas, todavia, são semelhanças
deficientes da verdade divina. Ela está, de fato, acima de toda a
essência, acima de todo o caminho, indistingüível por nenhuma luz,
incomparavelmente distante de toda a semelhança de qualquer razão e
entendimento.
Já que, portanto, somente Deus é verdadeiramente, por ser
imutavelmente, corretamente só o seu nome é excelso, e só Ele deve
ser exaltado. E principalmente nesta sagrada solenidade em que o
unigênito Filho de Deus, coeterno ao Pai eterno, subiu aos céus
na substância de nossa carne e sentou- se nas alturas à destra de sua
majestade, hoje seu nome é singular e solenemente excelso e exaltado,
pois hoje
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"Disse o Senhor ao meu Senhor:
`Senta-te à minha direita,
até que ponha os teus inimigos
por escabelo de teus pés'".
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Hoje aquele
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"que vem de Edom,
com as vestiduras tingidas de Bosra,
formoso em sua estola,
avançando na multidão de sua virtude",
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entrou glorioso no Reino dos Céus quando os príncipes do céu
levantaram os portões eternos e abriram as portas que haviam fechado
durante longo tempo à natureza humana, conforme no-lo declara o
salmista, dizendo:
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"Abri, ó príncipes,
as vossas portas,
e levantai os portões eternos,
e por elas entrará o rei da glória".
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Hoje também
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"O Filho do homem chegou
até o Ancião dos muitos dias,
e o apresentaram diante dEle.
E Ele lhe deu o poder, a honra e o reino;
e todos os povos, tribos e línguas o serviram.
O seu poder é um poder eterno,
que não lhe será tirado,
e o seu reino não será jamais destruído".
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Hoje, igualmente,
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"Jesus, nosso precursor,
entrou até o interior do véu" (Heb. 6,19-20),
"no próprio céu" (Heb. 9,24),
"em um tabernáculo não feito pela mão do homem" (Heb. 9,11).
"Não com sangue de bodes ou de bezerros,
mas com o seu próprio sangue,
entrou uma só vez no Santo dos santos,
depois de ter adquirido uma redenção eterna" (Heb. 9,12),
"feito pontífice eterno segundo a ordem de Melquisedec" (Heb. 6,20),
"para se apresentar agora
diante da face de Deus por nós" (Heb. 9,24),
"vivendo sempre para interceder por nós" (Heb. 7,25).
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E agora, irmãos caríssimos, iniciamos esta palavra pelo que é
terreno; elevemo-nos, porém, também por ela ao interior dos
céus. E que assim como nos elevamos pela palavra, assim também nos
elevemos pela alma, e como nos elevarmos falando, assim nos elevemos
dignamente louvando.
Louvemos, portanto, o Senhor de coração. Louvemo- Lo pela boca
no tempo, para que mereçamos louvá-Lo na eternidade.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, Nosso
Senhor, que é Deus, bendito pelos séculos.
Amén.
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