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"Quão doces são para a minha garganta
as tuas palavras;
são mais doces do que o mel
para a minha boca".
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Não consideras, irmão, que este homem costumava comer as palavras
de Deus, para que dissesse:
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"Quão doces são para a minha garganta
as tuas palavras"?
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E quem é que comeria as palavras de Deus? Se, portanto, as
palavras de Deus podem ser comidas, é porque na realidade elas são
alimento. E que alimento? Não são alimento para o ventre, mas
para a mente. Podem ser para a mesma pessoa jejum para o ventre e
alimento para a mente. De fato, diz a Escritura,
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"Não só de pão vive o homem,
mas de toda a palavra
que procede da boca de Deus".
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E, todavia, há alguma semelhança entre o alimento do ventre e o
alimento da mente. Por este motivo a palavra de Deus é dita
alimento, porque assim como o alimento corporal é refeição para a
carne, assim também a sabedoria é pasto para a mente.
O alimento corporal contém em si três coisas: sabor, nutrição e
massa. O sabor deleita, a nutrição sustenta, a massa onera. O
sabor pertence ao paladar, a nutrição à natureza, a massa à
miséria. A gula percebe o sabor, o estômago recebe a nutrição e a
massa. O estômago recebe a nutrição para a refeição e recebe a
massa para o peso. A nutrição é recebida para que se transforme em
corpo, a massa é recebida para que seja expulsa. O sabor, de certo
modo, é espiritual, e por isso somente deleita, sem onerar.
A fome, por este motivo, nunca pode ser saciada na garganta, porque
ali o apetite não tem medida, nem a deleitação tem fim.
Já no estômago a fome recebe a saciedade, pois ali o apetite de
comer possui uma certa medida e a deleitação possui fim. Ali a
nutrição que sustenta não é recebida sem a massa que onera. No
estômago, para que não se apeteça além do modo em que aproveita, a
própria massa simultaneamente recebida, onerando-o, refreia o
apetite. Quando o seu peso começa a agravar o estômago e de certo
modo, a sufocá-lo, algo que é tolerado contra a vontade, a
nutrição pela qual nos refazíamos já deixa de nos apetecer.
Portanto, irmão, quando comeres, não queiras consultar se a tua
garganta está satisfeita; se seguires o seu julgamento, antes que
satisfaças a sua deleitação, terás sufocado o teu estômago pelo
peso. Prefere consultar o ventre quanto à medida do comer; antes que
ele comece a te doer, modera a avidez da garganta.
Tudo isto, porém, deve ser entendido do alimento corporal. No que
diz respeito à refeição espiritual, ao contrário, deve-se
consultar antes a garganta do que o ventre. Digo a garganta, não a
da carne, mas a espiritual; e digo o ventre, não porém o ventre da
carne, mas o espiritual.
Assim como reconhecemos o alimento espiritual, assim também devemos
entender espiritualmente a garganta e o ventre. O alimento
espiritual, isto é, a palavra de Deus, tal como o alimento
corporal, tem à semelhança deste o seu sabor, pelo qual se deleita a
garganta espiritual; tem a sua nutrição, que é pasto e que dá vida
à substância espiritual. Possui também a sua massa que, de certo
modo, pressiona e onera a enfermidade.
Chamamos de garganta espiritual ao paladar do coração. O sabor da
palavra de Deus é o gosto da doçura interior.
A alma é ela própria a substância espiritual. A nutrição da
palavra de Deus é o exercício da virtude; a sua massa é o peso do
trabalho.
Quando o sabor da doçura interior é recebido sem fastio, a garganta
do coração recebe sua deleitação como de um certo gosto de alimento
espiritual, mas não pode saciar-se. O exercício da virtude, pelo
qual a alma se alimenta, não é recebido sem o peso do trabalho, pelo
qual a carne é onerada, como se esta fosse um certo estômago de nossa
sensualidade.
Quando alguém recebe o alimento pelo exercício da boa obra, o
próprio trabalho da obra castiga aquele que é onerado para que não se
apeteça além da medida a virtude através da qual se faz a
refeição.
Já entendes suficientemente, conforme penso, o que significavam para
o salmista estes versos:
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"Quão doces são para a minha garganta
as tuas palavras;
são mais doces do que o mel
para a minha boca".
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O salmista, de fato, não diz que as palavras de Deus eram doces
para o seu ventre, mas para a "sua garganta". Não que fossem doces
para o seu estômago, mas para a "sua boca". Ele se expressa como
se quisesse dizer:
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"Pela tua palavra, Senhor,
o ventre da carnalidade é onerado,
mas o paladar do coração se deleita".
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O paladar do coração deleita-se interiormente pelo sabor da doçura
porque, se exteriormente o labor da obra onera a enfermidade,
interiormente, porém, o desejo encontra o pasto pela doçura e pelo
gosto da suavidade.
Daqui procede o modo com que aquele amado e querido João, que tão
freqüentemente e de tão boa vontade costumava comer a palavra de
Deus, se mostra a si mesmo, dizendo:
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"Recebi o livro da mão do anjo
e o devorei.
Na minha boca
era tão doce quanto o mel;
tendo-o, porém, devorado,
amargou o meu ventre".
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Assim também tu, irmão, devora o livro da vida. Come a palavra de
Deus. Mas não apenas come; come também avidamente, e não
queiras, se sentires no ventre algo do seu amargor, afastar-te da
doçura de seu sabor.
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