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diz Hugo de São Vitor,
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"que aquele que tiver iniciado este caminho
procure aprender nos livros em que estudar
não apenas pela beleza do fraseado,
mas também pelo estímulo que eles oferecem
à prática das virtudes,
de tal maneira que o estudante procure neles
não tanto a pomposidade ou a arte das palavras,
mas a beleza da verdade".
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Eis algo que, na pedagogia vitorina, é de essencial importância.
Jesus promete, no Evangelho, como prêmio aos que seguirem os seus
preceitos, que encontrarão a verdade e a verdade os libertará, ou tornará livres. Ao
dizer isto, Jesus se referia à verdade que se alcança através do dom do Espírito
Santo a que as Escrituras denominam de sabedoria, um objetivo elevadíssimo, ao
qual se ordena todo o desenvolvimento da vida espiritual. O estudante, porém, que
desejar chegar a tanto, deverá acostumar-se primeiro a deixar-se libertar
continuamente através de verdades menores. Consideremos, pois, primeiramente,
do que libertam estas verdades menores.
Na vida humana o desenvolvimento da vida do intelecto é sempre
precedido pelo desenvolvimento da vida dos sentidos, e é só gradualmente que se
uma se emancipa à outra. Mesmo assim, porém, isto só ocorre com naturalidade
quando a vida das virtudes e da inteligência se inicia precocemente e bem, algo
raramente observado nos dias de hoje. Quando não é este o caso, o homem
desenvolve uma visão do mundo que partirá de uma apreciação fortemente baseada
nos sentidos, cujos critérios de validade serão a servilidade na imitação dos
costumes sociais e a força das paixões e não a evidência da verdade. Nestas
condições, o desenvolvimento da inteligência será orientado para que esta sirva de
instrumento para a vida dos sentidos e das paixões.
No Eclesiástico pode-se ler:
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"Assim como o Sol resplandecente
ilumina todas as coisas,
assim da glória do Senhor estão
cheias as suas obras".
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A primeira parte desta sentença é evidente para todos, em qualquer época e lugar.
Já a segunda será percebida com naturalidade, mas de forma gradual e com força
sempre crescente, naqueles em que a virtude e a inteligência se iniciaram desde
cedo, assim que se tiverem apresentado as primeiras possibilidades de o fazerem;
para as demais pessoas, a segunda parte da sentença do Eclesiástico pouca coisa
significará além de uma simples poesia que se esquece após ter sido ouvida. Por
mais que os primeiros tentem explicar aos segundos que algo de verdadeiramente
extraordinário nos está sendo apontado na segunda parte desta passagem do
Eclesiastes, eles não conseguirão entender a razão para tanto entusiasmo. Embora
freqüentemente eles próprios não se dêem conta deste fato, as psicologias de ambos
estes grupos de homens foram construídas de um modo estruturalmente diverso e é
por isso que o Eclesiastes também nos diz a este respeito:
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"Os perversos dificultosamente se corrigem,
e o número dos insensatos é infinito;
se a árvore cair para a parte do meio dia, ou para a do norte,
em qualquer lugar onde cair, aí ficará".
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Deve-se considerar, além disso, que mesmo para os homens de ambos os casos, a
mensagem contida na Revelação estará sempre situada num plano
extraordinariamente mais elevado do que aquele em que os homens costumam
colocar-se. A este respeito nos diz, de fato, o profeta Isaías:
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"Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos,
nem os meus caminhos são os meus caminhos,
diz o Senhor.
Quanto o céu sobe em elevação à terra,
tanto se elevam os meus caminhos acima dos vossos,
e os meus pensamentos acima dos vossos".
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Esta é a razão por que todos aqueles que se dedicam ao estudo da Ciência Sagrada
se deparam constantemente com uma visão do mundo que difere enormemente de
suas opiniões e pontos de vista pessoais. Ainda que se tratem das melhores pessoas,
elas encontram incessantemente neste estudo a proposta de vivência de virtudes e
apresentação de verdades que estarão em conflito com os seus pequenos pontos de
vista pessoais. Se o estudo da Ciência Sagrada é conduzido corretamente isto não
será uma ocorrência fortuita, mas algo que deverá acontecer continuamente, pois
esta é precisamente uma das justificações para a sua existência.
O que fazer, porém, quando nos encontrarmos diante de um evento como
este? Admirar a beleza da verdade apreendida não será suficiente; será necessário
renunciar decididamente aos nossos próprios pontos de vista, que freqüentemente
representam o atrelamento da inteligência à vida das paixões, libertando-a para
habituá-la a seguir mais docilmente a evidência da verdade. A menos que estejamos
dispostos a isto estaremos estudando, no dizer de Hugo de São Vitor, apenas pela
"beleza do fraseado e pela arte das palavras" e não "pela prática das virtudes e
pela busca da verdade".
Deve-se considerar, ademais, que há um motivo mais específico pelo
qual nesta passagem do Didascalicon Hugo de São Vitor se referiu aos alunos que
buscam no estudo a beleza do fraseado e a arte das palavras como sendo aqueles
que se desviaram da verdadeira meta. É que em sua época, assim como em todo o
mundo antigo, o principal desvio da educação se manifestou sob a forma da
educação retórica, a qual deu origem, durante a Renascença, à educação que hoje se
conhece como humanista, em que o aluno estudava para alcançar uma bagagem
razoável de cultura geral através da qual adquiriria boas maneiras e a capacidade
de escrever e falar corretamente e bem. A expressão de Hugo de São Vitor, ao dizer
que estes alunos se aproximavam da escola já com a idéia preconcebida de que ali
estavam para buscar "a beleza do fraseado e a arte das palavras" descreve
perfeitamente a atitude fundamental que à época norteava a muitos em seus estudos.
Hoje em dia não percebemos mais a força que estas poucas palavras de Hugo
tinham porque o principal desvio da educação consiste em estudar com a finalidade
de aprender alguma profissão ou técnica com a qual pode-se conseguir, ou não, um
retorno financeiro. Este, na ótica da pedagogia vitorina, é um desvio ainda mais
grave e ao qual só pode ter-se chegado por ter-se passado primeiro pelo anterior
sem que se tivesse percebido suficientemente toda a gravidade do que estava
ocorrendo.
Para Hugo de São Vitor o que o estudante deve procurar com o estudo é
o libertar-se, através da busca da verdade, da estreita visão de mundo que lhe é
imposta pela vida das paixões e de que vive tanto ele como a sociedade à qual ele
imita. Estas coisas aprisionam a inteligência e não lhe permitem seguir a luz da
graça e a própria evidência de uma verdade que deveria, à medida em que é
buscada, tornar-se cada vez mais radiante.
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