|
Pergunta-se novamente se toda vontade provém de Deus, já que nada
existe que não tenha seu ser proveniente de Deus.
SOLUÇÃO.
Não se deve conceder que se nada há que não tenha o ser proveniente
de Deus então toda vontade provém de Deus, isto é, tanto a boa
quanto a má. O mesmo entende-se do agir. Quando nos referimos a
uma ação ou vontade má, a expressão mais denota a qualidade do que
a essência. Pelo que, embora ela tenha por onde seu ser possa ser
dito proveniente de Deus, como sua qualidade, todavia, não é
proveniente de Deus, não se deve dizer que a ação ou a vontade má
sejam provenientes de Deus. Deve observar-se que a desordenação
que é dita ser qualidade da má ação por causa do modo semelhante da
resposta, ou na medida em que tomamos o termo qualidade de modo amplo
enquanto pode designar-se por ele tanto o que algo é como o que não
é. Do mesmo modo, a afirmação segundo a qual a essência de uma
ação provém de Deus pode ser entendida de duas maneiras: ou que ela
própria provenha de Deus ou que aquilo pelo qual ela possui ser
provenha de Deus.
Outros, porém, dizem que nem todo pecado provém de Deus, mas
somente o que é pena de outro pecado, o qual efetivamente se
realizaria pela operação de Deus. Dizem estes, de fato, que se
quando a Escritura Deus
|
"te-los entregado a um
sentimento depravado"
|
|
estas palavras devam ser entendidas como referindo-se apenas à
permissão, de modo geral poder-se-ia dizer o mesmo de todo pecado,
isto é, que Deus o opera. Nunca, porém, se diz Deus entregar
alguém a algum pecado, senão ao que já é pena de outro pecado.
Do mesmo modo, se estas palavras devessem ser entendidas como
referindo-se à subtração da graça, ficaria também evidente que
seria Deus que, ao subtrair a graça, operaria tal pecado. De
fato, se o pecado se segue de modo necessário à subtração da
graça, qual seria a sua causa senão o que a subtraíu?
Tratar-se-ia da mesma situação de uma casa que tivesse algum
fundamento sem o qual não pudesse permanecer de pé; se alguém
retirasse este fundamento, quem se tornaria causa do desabamento,
senão aquele que o tivesse retirado? Ou se alguns homens estivessem
em botes em alto mar e alguém os afundasse, sendo que sem estes botes
os homens não poderiam viver, qual seria a causa de sua morte senão
quem afundou os botes?
Com estas e outras semelhanças procuram afirmar que Deus opera alguns
pecados, ainda que não todos.
Não parece, porém, existir semelhança entre a casa, que nada pode
merecer, e o homem, por cuja culpa é-lhe retirado aquilo sem o qual
não pode perseverar. A semelhança seria mais conveniente se houvesse
uma casa prestes a cair e alguém a escorasse com as mãos para que,
sustentando-a, não viesse a cair e se, posteriormente, por uma
exigência racional, retirasse as mãos. Não seria, efetivamente,
a causa pela qual a casa teria caído, mas sim a causa pela qual a casa
não tivesse caído antes. Assim como se alguém estivesse nú e outro
lhe desse roupas para vestir mas, já vestido, o primeiro passasse a
ofender de tal modo ao segundo que este razoavelmente lhe tomasse as
roupas de volta; se o primeiro viesse a morrer por causa do frio, quem
será a causa desta morte, senão o próprio homem que morreu nú? E
assim também se alguém, por exigência de alguma causa, retira a
alguém os ensinamentos que antes lhe oferecia, não faz isto operando
algo, mas mais não operando o que antes operava. Assim também
dizemos que Deus, subtraindo a graça, por exigência de nossa
culpa, não é ele próprio a causa pela qual a graça nos é
subtraída quanto a nós, nem Ele faz isto operando algo, mas não
operando o que antes não operava. Assim também por nenhuma razão
deve-se conceder que pela operação de Deus se realize algum pecado,
seja ele ou não pena de outro pecado.
O que, portanto, diz Santo Agostinho que Deus opera nos corações
dos homens, seja inclinando ao bem ou ao mal, é dito operar ou pela
semelhança do modo do uso da palavra subtrair, que em latim é
construída com o caso acusativo, como se significasse fazer algo ou,
melhor ainda, porque operar é tomado tanto pelo operar como pelo não
operar, conforme diz o Apóstolo:
|
"O que eu faço, não o entendo".
|
|
De outro modo, se o operar não fosse assim tomado, fazer o mal e
não fazer o bem não seriam partes do operar. Assim também deve
entender-se aquela passagem em que se diz que Deus
|
"retribuirá a cada um
segundo as suas obras",
|
|
isto é, pelas coisas que faz e também pelas que não faz, se as
tivesse que ter feito. Quanto ao que se diz no Apocalipse:
|
"Aquele que é impuro,
continue na impureza",
|
|
entende-se isto ser justo não pela qualidade da impureza, mas pelo
julgamento de Deus que faz com que isto se realize. De onde que se
estas coisas são ditas justas, não o são pela justiça que há
nelas, mas na regra divina, não porém de modo que a própria
impureza proceda de Deus ou que Deus as faça. O mesmo pode-se
dizer de qualquer pecado que seja pena de um pecado precedente; esta
pena é dita justa não por alguma qualidade sua, mas pelo julgamento
divino.
|
|