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"Ide, anjos velozes,
a uma gente desolada e dilacerada,
a um povo terrível,
após o qual não há outro,
uma gente que espera e é pisada,
cujos rios destroçaram sua terra".
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Eis, irmãos caríssimos, o divino ofício que nos foi confiado.
Eis o cuidado, a solicitude e o trabalho dos sacerdotes. Eis a
piedosa, mas perigosa responsabilidade que lhes foi imposta:
A palavra profética, ou melhor, a palavra divina, nos admoesta
nesta passagem que não desprezemos o ministério que nos foi
divinamente confiado, nem que abandonemos esta santa responsabilidade,
para que não ocorra que os homens, formados à imagem e semelhança de
Deus, redimidos pelo precioso sangue de Cristo, por nossa
negligência deslizem para a condenação eterna por suas culpas
temporais. E que não venha a ocorrer que não somente neles se
encontre o pecado por causa de seus próprios delitos, mas que também
em nós, além dos nossos próprios, se acrescentem os pecados
alheios. Haveremos, efetivamente, de dar conta não somente de
nós, mas também das almas que nos tiverem sido confiadas, a não ser
que lhes tivermos anunciado insistentemente a palavra da salvação.
Ouçamos, pois, mais atentamente o que nos é divinamente ensinado:
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"Ide, anjos velozes,
a uma gente desolada".
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Os sacerdotes são anjos, como se depreende de uma passagem da
Escritura em que se afirma que
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"Os lábios do sacerdote
são os guardas da sabedoria,
e pela sua boca se há de buscar a lei,
porque ele é o anjo do Senhor dos exércitos".
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Se somos, portanto, sacerdotes do Senhor, também somos, pelo
mesmo ofício, seus anjos, isto é, seus mensageiros, e devemos
anunciar ao povo as coisas que são de Deus.
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"Ide, anjos velozes,
a uma gente desolada".
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Demonstra-se de dois modos que a natureza humana provém de Deus e
que nEle possui suas raízes, conforme já o dissemos em outro lugar.
Primeiramente, por ter sido criada à imagem de Deus, na medida em
que pode conhecer a verdade; depois, por ter sido criada à Sua
semelhança, na medida em que pode amar o bem. Segundo estes dois
modos pode ser reconhecida como unida a Deus não apenas a criatura
humana, como também a angélica, na medida em que pelo conhecimento
contempla a Sua sabedoria e pelo amor frui de Sua felicidade. Por
estes dois modos evita o mal, pois pelo conhecimento da verdade que
possui desde a origem na divina imagem que lhe foi enxertada repele o
erro e pelo amor da virtude que possui na semelhança divina odeia a
iniquidade. Pela sugestão diabólica, porém, entrando a
ignorância na natureza humana, e desarraigou-se no homem a raiz do
conhecimento divino; sobrevindo também a concupiscência,
arrancou-se a planta do amor.
Qualquer gente ímpia, portanto, afastada pela culpa dos bens divinos
e celestes, plantada primeiramente no bem pelos dois bens precedentes,
sobrevindo-lhe os dois males seguintes é corretamente apresentada e
chamada de desolada do bem:
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"Ide, anjos velozes,
a uma gente desolada".
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E, deve-se notar, a palavra divina não diz apenas desolada, como
também acrescenta "dilacerada", desolada por ter sido afastada do
bem, dilacerada por ter mergulhado no mal. A natureza humana,
efetivamente, depois que é afastada do bem, é imediatamente e de
múltiplas maneiras dilacerada pelo mal, conduzida por diversos vícios
e pecados à condenação. Alguns pelo orgulho, outros pela inveja,
outros pela ira, outros pela acédia, outros pela avareza, outros
pela gula, outros pela luxúria, outros pela usura, outros pela
rapina, outros pelo furto, outros pelo falso testemunho, outros pelo
perjúrio, outros pelo homicídio, outros contemplando a mulher para
desejá-la, outros chamando `louco' a seu irmão, e por tantos
outros vícios ou pecados, interiores e exteriores, os quais pela
brevidade do presente não queremos nem podemos enumerar.
portanto,
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"anjos velozes,
a uma gente desolada e dilacerada",
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para que, pelo vosso ensino, torneis a unir o que foi dilacerado pelo
mal, e replanteis o que foi desenraizado do bem. "Ide, anjos",
ide "velozes", ide
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"a uma gente desolada e dilacerada,
a um povo terrível,
após o qual não há outro".
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Todas as vezes, irmãos caríssimos, que o homem pela justiça
conserva a nobreza, a elegância e a beleza de sua condição,
verificamo-lo possuir uma aparência formosa. Quando, porém, pela
culpa mancha em si mesmo o decoro da beleza, encontramo-lo
imediatamente deforme e horrível, dessemelhante de Deus, tornado
semelhante ao demônio.
E então? Nos dias de domingo e nas solenidades festivas o povo
confiado aos vossos cuidados aflui à igreja, ajusta sua forma
corporal, reveste-se com roupas mais ornamentadas e tingidas de
diversas cores. Vós, talvez, contemplando homens e mulheres
trajados de modo tão fulgurante, vos gloriareis de terdes tais
súditos e de serdes seus prelados. Não é boa, porém, esta vossa
glória se é nisto que vos gloriais e se o povo a vós confiado for
encontrado desolado e afastado do bem, dilacerado pelo mal e terrível
pelos diversos vícios e pecados. Prestai diligentemente atenção em
suas vidas, considerai seus costumes, julgai a sua beleza segundo as
coisas que pertencem ao homem interior e não segundo as que pertencem
ao exterior, enrubescei e compadecei-vos deste povo que é vosso
súdito, se tal o virdes como aqui ouvis, isto é,
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"uma gente desolada e dilacerada,
um povo terrível,
após o qual não há outro",
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porque talvez vossa seja a culpa, vossa a negligência, vossa a
preguiça, por ele ser tal porque não lhe anunciastes os seus pecados
e as suas impiedades.
portanto,
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"anjos velozes,
a uma gente desolada e dilacerada,
a um povo terrível,
após o qual não há outro".
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"Ide, anjos", porque é o vosso ofício. "Ide, velozes", para
que a vossa demora não cause perigo.
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"Ide a uma gente desolada e dilacerada,
a um povo terrível,
após o qual não há outro",
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para que pelo vosso ensino se alcance o remédio:
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"Não queirais sentar-vos
no conselho da vaidade,
nem associar-vos
com os que planejam a iniquidade.
Odiai a sociedade dos malfeitores,
e não queirais sentar-vos com os ímpios".
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Alguém de vós poderá pensar silenciosa ou mesmo responder
abertamente, dizendo:
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"Tu nos proíbes,
pelo exemplo que nos colocas do Salmista,
de nos dirigirmos a estes,
mas é a estes que o Senhor nos encaminha,
quando nos diz:
`Ide, anjos velozes,
a uma gente desolada e dilacerada,
a um povo terrível,
após o qual não há outro'".
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Entendei, porém, que onde o Senhor diz: "Ide, anjos velozes, a
uma gente desolada e dilacerada, a um povo terrível, após o qual
não há outro", Ele vos impõe aqui um ofício, e vos dá o
preceito de ensinar aos ímpios; ali, porém, onde dissemos: "Não
queirais sentar-vos no conselho da vaidade, nem associar- vos com os
que planejam a iniquidade; odiai a sociedade dos malfeitores, e não
queirais sentar-vos com os ímpios", aqui, digo, vos é
continuamente negada a permissão para pecar com os ímpios.
"Ide", portanto, "anjos", para ensinar; não queirais ir para
pecar. "Ide a um povo terrível", para que pela palavra da
salvação o torneis de formosa aparência; não queirais ir, para que
pela deformidade de seu pecado vos torneis a vós mesmos semelhantes a
eles. Cristo comeu com os pecadores para associá- los consigo mesmo
no bem, mas não comeu com eles para que se associasse com eles no
mal. "Assim como Cristo o fêz, assim fazei-o vós também; assim
como Ele não fêz, assim não o queirais vós fazer".
Quão velozes? Tão velozes que "pelo caminho não saudeis a
ninguém" (Luc. 10, 4), e, "se alguém vos saudar",
Não que a salvação não deva ser anunciada a todos; por estas
palavras o Espírito Santo quer dar a entender quão velozes e
pressurosos importa que sejam os sacerdotes no anúncio da salvação,
como se dissesse:
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"Prega a palavra,
insiste a tempo e fora de tempo,
repreende, suplica, admoesta
com toda a paciência e doutrina",
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e
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"não queirais adiar a palavra
dia após dia,
de domingo a domingo,
de solenidade a solenidade,
mas que,
ao menos nos domingos
e nas solenidades festivas
não vos seja suficiente celebrar somente as missas
para o povo reunido na igreja segundo o costume.
Não seja suficiente para o homem apostólico
e para cada uma das ordens
fazer um discurso genérico
ou anunciar a festa da semana seguinte.
Antes, castigai o povo sobre o mal,
ensinai-o e formai-o no bem,
declarai-lhes a pena
que há de vir sobre os pecadores
e a glória reservada aos justos".
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"Ide, anjos; ide velozes". Se adiais de domingo a domingo pregar
ao povo a palavra da salvação, quem saberá dizer se então estareis
vivos, sãos ou presentes? E ainda que ocorra que estejais vivos,
sãos ou presentes, quem saberá se alguém que antes estava presente
estará então ausente e não mais ouvindo o bom conselho para a sua
alma, surpreendido por uma morte inesperada e súbita, seja arrebatado
para a pena eterna sem se ter lavado da sua culpa? Porventura de
vossas mãos Deus não pedirá com justiça contas do sangue deste
homem?
pois,
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"anjos velozes,
a uma gente desolada e dilacerada,
a um povo terrível,
após o qual não há outro".
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O que significa: `Depois do qual não há outro'? Porventura
depois deste povo não haverá mais de nascer ou de viver quem faça o
bem ou quem faça o mal? Certamente que não. O que significa,
então, o `após o qual não haverá outro'? Significa que não
haverá, diante do supremo juiz, ninguém pior, mais torpe pela
culpa, mais terrível do que este. Três são os povos: o cristão,
o judeu, e o pagão. Aqueles que no povo cristão são cristãos
segundo o nome, mas que pela injustiça servem ao demônio, são mais
terríveis que os judeus ou os pagãos, já que são piores pela
iniquidade. De fato, quanto mais facilmente, ajudados pela graça,
se quiserem, podem permanecer na justiça, tanto mais gravemente
ofendem não querendo abster-se da culpa. Aquele a quem mais foi
confiado, mais lhe será exigido. Quanto mais alto for o degrau,
tanto maior será a queda, e mais pecou o demônio no céu, do que o
homem no paraíso. Conforme no-lo ensina a Escritura,
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"Aquele servo,
que conheceu a vontade de seu Senhor,
e não se preparou,
e não precedeu conforme a sua vontade,
levará muitos açoites.
O servo, porém,
que não a conheceu,
e fêz coisas dignas de castigo,
levará poucos açoites".
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Assim como no-lo é manifestado por esta sentença, assim também o
Senhor repreendeu as cidades em que havia feito vários prodígios,
pelo fato de não haverem feito penitência, dizendo:
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"Ai de ti, Corozaim!
Ai de ti, Betsaida!
Porque, se em Tiro e em Sidônia
tivessem sido feitos os milagres
que se realizaram em vós,
há muito tempo eles teriam feito penitência
em cilício e em cinza.
Por isso eu vos digo
que haverá menor rigor
para Tiro e Sidônia no dia do Juízo
do que para vós.
E tu, Cafarnaum,
elevar-te-ás porventura até o céu?
Não, hás de ser abatida até o inferno.
Se em Sodoma tivessem sido feitos
os milagres que se fizeram em ti,
ainda hoje existiria.
Por isso vos digo que no dia do Juízo
haverá menos rigor para a terra de Sodoma
que para ti".
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Deste mesmo modo pode-se repreender também este povo de falsos
cristãos, depravado por diversas impiedades, feito terrível,
distante da divina semelhança da qual se afastou segundo a sua
iniquidade:
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"Ai de ti, povo iníquo,
povo mentiroso, povo apóstata,
que pela tua má vida conculcas o Filho de Deus,
que manchaste o sangue do Testamento
em que foste santificado
e fazes injúria ao Espírito da graça!
Melhor seria para estes
`não conhecer o caminho da justiça
do que, depois de o terem conhecido,
tornarem para trás daquele mandamento
que lhes foi dado.
De fato realizou-se neles
aquele provérbio verdadeiro:
`Voltou o cão para o seu vômito
e a porca lavada tornou a revolver-se
no lamaçal'' (2 Pe. 2, 21-22)".
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Como não vemos, portanto, que este povo não poderá ser pior do que
si mesmo e que nenhum outro povo mau haverá de vir depois dele? Neste
o peso dos males manifestado pela palavra profética já parece ter-se
espalhado, pelo que se diz:
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"Ai de vós,
os que ao mal chamais bem,
e ao bem mal,
que tomais as trevas por luz,
e a luz por trevas,
que tendes o amargo por doce,
e o doce por amargo!
Ai de vós,
os que sois sábios a vossos olhos e,
segundo vós mesmos, prudentes!
Ai de vós os que sois poderosos para beber vinho,
e fortes para fazer misturas inebriantes!
Vós os que justificais o ímpio pelas dádivas,
e ao justo tirais o seu direito!".
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De todas estas coisas, irmão caríssimos, há muito mais que poderia
ser dito, as quais temos que omití-las por causa da brevidade.
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"Ide, anjos velozes,
a um povo terrível,
após o qual não há outro,
a uma gente que espera e é pisada".
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O que ela espera? A vossa palavra, o vosso exemplo, o vosso amparo
e, pela vossa solicitude e pelo vosso serviço, o auxílio e o dom
divino. Espera a vossa palavra, para que possa aprender; o vosso
exemplo, para que dele receba a forma; o vosso amparo, para que seja
defendido; por vossa solicitude e serviço, o auxílio e o dom divino
para que possa ser libertado do mal e justificado no bem.
Quem a pisou? Todos os demônios, que continuamente dizem à sua
alma: "Curva-te, para que passemos por ti". De fato, os maus,
os que desprezam as coisas celestes, e se curvam para as terrenas,
oferecem aos demônios o caminho para serem por eles pisados e
atravessados.
Segue-se:
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"Cujos rios destroçaram sua terra".
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Quem são estes rios que destroçam a terra dos que vivem mal? Onde
os vícios fluem com impetuosidade, carregam consigo os maus aos
tormentos. O que é a destruição da terra, senão a dissipação de
qualquer virtude? Os rios, portanto, destroçam a terra dos maus
quando os vícios lhes removem as virtudes. A soberba, de fato,
remove a humildade, a ira remove a paz, a inveja a caridade, a
acédia a exultação espiritual, a avareza a liberalidade, a luxúria
a continência.
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"Ide, anjos velozes,
a uma gente desolada e dilacerada,
a um povo terrível,
após o qual não há outro,
uma gente que espera e é pisada,
cujos rios destroçaram sua terra".
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"Naquele tempo", acrescenta logo em seguida Isaías,
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"será levada uma oferta
ao Senhor dos exércitos
por um povo desolado e dilacerado,
por um povo terrível,
após o qual não houve outro,
por uma gente que espera e é pisada,
cujos rios destroçaram a sua terra".
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De que tempo nos fala o profeta? Daquele tempo em que tiverdes ido a
este povo ao qual sois enviados e, pelo vosso ensino, o tiverdes
curado dos males que já mencionamos. Que oferta então será levada
ao Senhor? Uma oferta de gratidão, um holocausto entranhado e
medular, um voto interior, que será levado ao lugar do nome do
Senhor, ao monte Sião, isto é, à Santa Igreja.
Ide, pois, anjos velozes, e ensinai ao povo terrível, cumpri o
vosso ministério. Se assim o fizerdes, alcançareis para vós um bom
lugar. Que a vós e a nós conceda esta graça aquele que nos promete
também a glória, Jesus Cristo, Nosso Senhor, o qual vive e
reina, por todos os séculos dos séculos.
Amén.
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