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Não foi menor o dom que havia-lhe sido concedido em outros milagres
mais interiores e espirituais no que diz respeito ao bem das almas,
como se verá por algumas coisas que passo a referir.
Havia no convento de Claraval um monge menos perfeito que os demais,
ao qual o santo abade havia ordenado, por causa de uma culpa cometida
em segredo, que não comungasse. Ele, porém, em uma festa solene,
vendo todo o convento comungar e temendo a vergonha e a infâmia,
aproximou-se junto com os demais ao altar. Era São Bernardo quem
celebrava a missa, e foi de sua mão que o monge, juntamente com os
demais, recebeu o Santíssimo Sacramento. O santo, por se tratar
de uma causa oculta, não o quis negar. Voltou-se, porém, ao
Senhor, pedindo-lhe que castigasse aquela temeridade. Havendo
tomado o monge a hóstia sagrada, não podia engoli-la por mais que
tentasse, até que depois, prostrando-se aos pés de seu prelado,
com muitas lágrimas lhe disse em segredo o que se passava e lhe mostrou
a hóstia na boca. O santo padre, repreendendo-o pelo seu
atrevimento e dando-lhe uma salutar penitência, o absolveu, e com
isto o monge conseguiu engolir aquele celestial manjar, para que se
veja o quanto se deve prezar a obediência aos superiores no uso dos
Santos Sacramentos.
Houve outro monge que, no mesmo convento, achando-se árido e sem
devoção para chorar os pecados que havia cometido no século, pediu
ao santo com grande afeto que lhe alcançasse do Senhor espírito de
ternura e de devoção e, pela sua oração, conseguiu-o tão
copiosamente que dali em diante seus olhos foram uma fonte de
lágrimas.
Tratava uma vez São Bernardo na corte do rei de França uma paz de
grande importância e a rainha, ainda que no demais se mostrava muito
devota, no tratar da paz era-lhe contrária. Casada por muitos anos
com o rei sem que tivessem filhos, era tida por isto como estéril, o
que era para ela causa de grande aflição e de descontentamento para o
rei. Tendo a rainha certo dia manifestado seu desconsolo e angústia
ao servo de Deus, ele aconselhou-a a que não impedisse aquela paz,
mas que a incentivasse, porque desta maneira o Senhor cumpriria o seu
desejo. A rainha assim o fêz e, ao fim de um ano, pelas orações
do santo, deu à luz um filho.
Quando estava São Bernardo para partir pela segunda vez de Roma,
desejou levar consigo algumas relíquias. Ofereceram-lhe a cabeça
inteira de São Cesário mártir mas ele, por sua modéstia, não
quis senão um dente. Quiseram retirá-lo das arcadas utilizando
alicates, mas não o conseguiram, quebrando, em vez disso, os
próprios alicates. Então São Bernardo disse:
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"É preciso rogar ao santo mártir
que se digne conceder-nos
tão grande presente".
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Fêz oração e, aproximando com reverência da sagrada cabeça,
facilmente retirou com os dedos o dente que os outros não o haviam
conseguido fazer com ferros.
Em outra ocasião, estando enfermo e muito debilitado, ordenou a um
de seus monges que havia ficado com ele, porque os outros estavam em
outras tarefas, que fosse à igreja fazer oração por ele. Fê-lo o
religioso em três altares diversos que ali estavam, o da gloriosa
Virgem Maria Nossa Senhora, o de São Lourenço mártir e o de
São Bento abade. Logo em seguida entrou na cela de São Bernardo
a Rainha dos anjos acompanhada dos outros dois santos e, com uma
suavidade e uma serenidade impossíveis de imaginar, tocou-o com a sua
grande mão onde lhe doía e curou-o completamente. Pois entre os
dons que teve este santo abade um deles foi o de ser devotíssimo da
Sacratíssima Virgem, e ela o presenciou e favoreceu singularmente.
E diz-se que certa fez molhou-lhe os seus lábios com um jorro de
leite saído de seu sagrado peito, e que dali veio a doçura e a
suavidade de estilo que está espalhada por todas as suas obras.
Ainda em outra ocasião, entrando na igreja maior de Espirra, cidade
da Alemanha e câmara do Império, acompanhado de todo o clero e de
grande multidão de povo, ajoelhou-se três vezes em três lugares
diversos e disse no primeiro
no segundo
e no terceiro
E em memória desta devoção e saudação do santo, hoje em dia na
mesma igreja encontram-se três placas de metal, nelas gravadas estas
palavras, e cada dia se canta a Salve Regina com grande solenidade e
música. E os próprios hereges, dos quais há muitos naquela
cidade, vêm para ouvi-la.
Não é justo que, entre tantos milagres, nos esqueçamos de um muito
notável que lhe aconteceu ao escrever uma carta. Estava no convento
de Claraval um monge, sobrinho de São Bernardo, chamado Roberto.
Sendo jovem, enganado por falsos amigos, abandonou a religião em que
havia começado a servir ao Senhor, mudando-se para a de Cluny.
Determinou-se o santo abade, como bom pastor, a recuperar sua ovelha
e, para isto, decidiu escrever-lhe uma carta. Chamando a Guilherme
Rieval, que depois foi abade de Claraval, ordenou-lhe que pegasse
papel e tinta e que saísse com ele para o campo, onde seria possível
escrever com mais quietude. Enquanto São Bernardo ditava a carta e
Guilherme a escrevia, iniciou-se subitamente uma chuva forte.
Querendo o secretário levantar-se de onde estava e recolher o papel
para que não se molhasse, o santo lhe disse:
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"Obra é de Deus;
escreve e não temas".
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E assim escreveu e acabou sua carta, no meio da água, sem
molhar-se, porque a caridade que movia o santo padre a ditar a carta
foi tão poderosa que cobriu o papel e o defendeu da água. E por
causa deste milagre se costuma colocar-se esta carta como a primeira
das de São Bernardo, todas elas admiráveis, a qual assim começa:
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"Roberto, filho amadíssimo,
há bastante tempo,
e mais ainda do que pude suportá-lo,
estive aguardando que a piedade de Deus
se dignasse visitar tua alma por si
e a minha por ti".
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