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Caríssimos, lemos nas Sagradas Escrituras como, no tempo dos
Juízes (Rute 1, 1), faleceu Maalon, marido de Rute, a
moabita, deixando-a viúva e sem descendência. Aconselhada por
Noemi, sua sogra, Rute deitou-se aos pés de Booz (Rute 3,
7), seu parente próximo, rogando-lhe humildemente que lhe
concedesse unir-se a ele pelo matrimônio, para não deixar sem
descendência a casa de seu esposo (Rute 3, 9). Disse então
Booz a Rute:
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"Não nego que sou teu parente próximo,
mas há outro mais próximo do que eu.
Se ele te quiser receber
pelo direito de parentela, está bem.
Se, porém, não o quiser,
eu sem dúvida te receberei".
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Rute, nome que traduzido significa `a que se apressa', retamente
figura a santa Igreja, que se apressa para cumprir com toda a
devoção os preceitos que lhe são dados do céu. Seu marido
entende-se não inconvenientemente ser Cristo, do qual está
escrito:
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"O que tem a esposa é o esposo";
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e do qual o bem aventurado Apóstolo diz:
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"Cristo amou a Igreja e por ela
se entregou a si mesmo,
para a santificar,
purificando-a no Batismo da água
na palavra da vida,
para apresentar a si mesmo
a Igreja gloriosa,
sem mácula nem ruga,
mas santa e imaculada".
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Para esta esposa seu esposo de certo modo está morto, na medida em
que Cristo, enquanto homem, cessou de estar e de conviver entre os
homens, conforme diz o Apóstolo:
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"Humilhou-se a si mesmo,
feito obediente até à morte,
e morte de cruz".
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Cristo, de fato, ainda que tenha ressuscitado entre os mortos, ainda
que já não morra e que a morte não mais domine sobre Ele, pois Ele
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"vive, e vive para Deus",
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dirigiu-se, porém, para uma região longínqua, para receber para
si o Reino. Por este motivo está corporalmente ausente e está, de
certo modo, como se estivesse morto. Seu parente próximo, ou
melhor, seu parente mais próximo, é agora a assembléia dos prelados
da Igreja. Embora, efetivamente, todos os verdadeiros cristãos
possam retamente ser ditos parentes próximos de Cristo, conforme Ele
próprio no-lo atesta, dizendo:
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"Todo aquele que fizer a vontade
de meu Pai, que está nos céus,
esse é o meu irmão e irmã e mãe";
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são, todavia, os pastores da Igreja, a cujo ministério pertence
ensinar, batizar, instruir nos demais sacramentos, confirmar os que
crêem e gerar para Cristo a descendência espiritual, os que
maximamente lhe são mais próximos.
Isaías nos fala da descendência de Cristo com as seguintes
palavras:
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"Se oferecer a sua alma pelo pecado,
verá uma descendência perdurável,
e a vontade do Senhor
em sua mão será governada".
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Cabe ao parente próximo de Cristo, isto é, ao coro dos santos
prelados, providenciar de todos modos para que, através do ensino,
em nenhum tempo lhe falte esta descendência. De fato, quando os
santos doutores ensinam, não geram para si, mas para o Senhor,
porque ao gerarem a prole espiritual através do ensino, não buscam o
seu louvor, mas o de Cristo. E já que todas as coisas que fazem, o
fazem para a glória de Deus, verdadeiramente podem dizer:
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"Não a nós, Senhor,
não a nós,
mas ao teu nome dá a glória".
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Assim como o parente mais próximo de Rute (Rute 4, 8), os
santos prelados ou doutores da Igreja também possuem dois calçados
interiores, pelo conhecimento da verdade e pelo amor da virtude, e
dois calçados exteriores, pela palavra do ensino e pelo exemplo da boa
obra. Quem estiver desprovido de um ou de ambos destes calçados não
será idôneo para suscitar a descendência para Cristo.
Para que nos utilizemos não de nossas palavras, mas das dos santos
padres, o doutor da Igreja deve resplandecer tanto pela vida como pela
doutrina, pois a doutrina sem a vida o torna arrogante, e a vida sem a
doutrina o torna inútil. O ensino do sacerdote deve ser confirmado
pelas obras, para que aquilo que ensina pela palavra o demonstre pelo
exemplo. É verdadeira, de fato, aquela doutrina à qual se segue a
forma de viver, e nada é mais torpe do que o desprezo em cumprir pela
obra o bem que se ensina. O ensino aproveita com utilidade quando é
efetivamente cumprido.
Cada doutor, portanto, deve dedicar-se para que possua tanto os bens
da obra como os bens do ensino, pois qualquer uma destas coisas sem a
outra não produz aproveitamento. De fato, assim como a doutrina sem
a vida, também a vida sem a doutrina não é suficiente. Os prelados
devem viver santamente por causa do exemplo e ensinar piedosamente por
causa do ofício que lhes foi confiado, na certeza de que não se
salvarão apenas pela sua própria justiça, pois de suas mãos lhes
será exigida também a alma de seus súditos. De que lhes
aproveitará não serem punidos pelos seus pecados se forem punidos
pelos alheios? Estaríamos mentindo, falando deste modo, se o
próprio Senhor, em uma terrível ameaça, não no-lo tivesse
comunicado pelo profeta, dizendo:
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"Filho do homem,
se, dizendo eu ao ímpio:
`Infalivelmente morrerás',
tu não lho anunciares e não lhe falares,
para que ele não se retire
de seu caminho ímpio e viva,
este ímpio morrerá na sua iniquidade,
mas eu requererei de tua mão o seu sangue.
Se, porém, avisares o ímpio,
e ele não se converter
de sua impiedade e de seu mau caminho,
morrerá ele por certo na sua iniquidade,
mas tu livraste a tua alma.
Do mesmo modo,
se o justo deixar a sua justiça,
e cometer a iniquidade,
eu porei diante dele uma pedra de tropeço;
ele morrerá, porque tu não lhe advertiste;
morrerá no seu pecado,
mas eu requererei de tua mão o seu sangue.
Se, porém, avisares o justo para que não peque,
e ele não pecar, viverá a verdadeira vida,
porque tu o advertiste,
e assim livraste a tua alma".
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É, portanto, evidente que nem a doutrina sem a vida, nem a vida sem
a doutrina é suficiente para que o prelado possa gerar para Cristo a
prole espiritual. Se, porém, suceder que falte uma destas duas
coisas, entre as duas alternativas imperfeitas será melhor possuir uma
santa rusticidade do que uma eloqüência pecadora. Se, porém,
faltarem ambas, este prelado não somente será inútil para suscitar a
descendência para Cristo, como também, como árvore infrutífera
que ocupa a terra, será prejudicial para os que lhe forem confiados.
De onde que a Santa Igreja com mérito não reconhece como parente
próximo de Cristo semelhante pastor que somente de nome, e não
também de fato, preside pelo poder e não pela utilidade, e
humildemente pede a Booz, isto é, a qualquer doutor da Igreja,
rico pela palavra de sabedoria e de ciência e forte pelo vigor das
virtudes, que suscite a descendência espiritual para conservar a
perenidade do nome cristão (Rute 3, 9). De fato, o doutor da
Igreja é parente próximo de Cristo pela graça da doutrina, mas há
ainda
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"outro parente mais próximo do que ele",
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que é o pastor, a quem foi confiado o cuidado das almas, que é ainda
mais próximo pelo dever e pela obrigação do cuidado pastoral.
Este, reverentemente advertido diante dos anciãos de Belém (Rute
4, 2), isto é, diante dos homens mais perfeitos da santa
Igreja, para que se empenhe no ofício de que é incumbido, na medida
em que se recusa em cumpri-lo (Rute 4, 6), como que perde,
freqüentemente pela providência da graça divina, ambos os calçados
(Rute 4, 8), na medida em que recusa a solicitude de reger pela
qual deveria fecundar a santa Igreja por uma prole espiritual. Em seu
lugar, o doutor da Igreja recebe ambos os calçados (Rute 4,
10), na medida em que, substituindo-o, instrui incessantemente a
santa Igreja pela palavra e pelo exemplo para que, para a honra de
Cristo, seja ela fecundada pela descendência espiritual. Foi assim
que, para o lugar de Judas, o sínodo dos apóstolos escolheu
Matias, e no lugar dos judeus entrou a plenitude dos gentios,
conforme o próprio Senhor o havia predito aos judeus:
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"O Reino de Deus vos será tirado,
e será dado a um povo
que produza os seus frutos".
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Daqui procede também ter sido dito ao bispo de Filadélfia:
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"Guarda o que tens,
para que ninguém tome a tua coroa";
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e igualmente, ao bispo de Éfeso:
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"Tenho contra ti que deixaste
a tua primeira caridade.
Lembra-te pois de onde caíste,
arrepende-te e volta às tuas primeiras obras,
do contrário virei a ti e removerei
o teu candelabro do teu lugar".
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De fato, o candelabro de qualquer pastor réprobo é removido de seu
lugar quando, por exigência de seus pecados, a dignidade
eclesiástica que lhe foi concedida lhe é retirada como a um inútil e
indigno e transferida a outro digno e capaz de produzir frutos. Tal é
o que vemos acontecer com freqüência, isto é, que os réprobos,
afastados de seus cargos, são substituídos por outros pelos quais os
deveres da Igreja são exercidos conforme é devido.
Semelhante pastor, finalmente, é merecidamente chamado descalço,
na medida em que, no que diz respeito ao ministério eclesiástico, é
espoliado das vestimentas da palavra e do exemplo, e também despojado
tanto do mérito como do prêmio. Na medida em que amou gerar e
propagar a família de seus vícios, abandonou ao outro os calçados do
ensino e da obra, pelos quais deveria ter fortalecido aos seus, que
lhe haviam sido confiados, em preparação ao Evangelho da paz.
Oxalá que então se cumpra a imprecação do salmista:
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"Seja exterminada a sua posteridade,
e que em uma geração se apague o seu nome".
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Lemos também no livro de Rute que, com a recusa do parente mais
próximo, todas as coisas que haviam sido do defunto passaram por
privilégio para a posse de Booz, que se tornou seu novo usuário
(Rute 4, 9). Isto significa que, principalmente no que diz
respeito aos santos e aos perfeitos reitores de almas, eles mesmos
fazem, conforme no-lo ensina o Evangelho, as mesmas obras que
Cristo fêz, e ainda
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"as fazem maiores do que estas".
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Entende-se também que eles, assim como Booz, comprem todas as
coisas "da parte do campo de Elimelec que estava para ser vendido"
(Rute 4,2), na medida em que renunciam às suas coisas e às suas
vontades para obedecerem à divina vontade. É por isto é que o bem
aventurado Pedro diz a Cristo:
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"Eis que nós abandonamos tudo,
e te seguimos".
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Assim fêz também o mercador prudente, que
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"encontrando uma pérola preciosa de grande valor,
vende tudo o que tem e a compra".
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Feitas estas coisas, felicitaram então os anciãos de Belém a
Booz, dizendo-lhe:
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"Faça o Senhor que esta mulher,
que entra na tua casa,
seja como Raquel e Lia,
que edificaram a casa de Israel".
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Os anciãos de Belém oram por Booz em favor de Rute, o que
significa que na santa Igreja os perfeitos auxiliam por suas contínuas
orações ao prelado eclesiástico e a toda a congregação que lhe é
confiada. E assim como Raquel e Lia edificaram a casa de Israel,
assim também Rute edifica a casa de Booz, na medida em que a santa
congregação confiada ao prelado fiel, fecundada a descendência
espiritual pelo seu ministério, multiplica-lhe a posteridade que são
os homens espirituais, alguns dos quais se dedicam à contemplação,
enquanto outros se ocupam com a ação.
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"Que ela seja
um exemplo de virtude
em Éfrata",
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resplandecendo na Igreja universal pela sua obediência.
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"Que ela tenha um nome
célebre em Belém",
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difundindo-se e celebrando-se a sua boa fama por toda a Igreja.
E, finalmente,
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"que a tua casa se torne
como a casa de Farés,
que Tamar deu à luz de Judá,
pela descendência que o Senhor
te der desta jovem".
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Isto ocorrerá sempre que muitos entre os que dela forem gerados pelo
ensino, purificados dos antigos pecados pelo amargor de uma
salutaríssima confissão e, em seguida, escolhidos e divididos entre
vários outros principalmente pelo dom da ciência e da virtude,
mereçam algumas vezes ser exaltados à culminância de reger a
Igreja. Tamar, efetivamente, significa `amargor', Judas
significa `o que confessa', e Farés significa `divisão'. E
nisto a descendência de Farés, a quem Tamar deu à luz, teve uma
divisão mais duradoura do que a das demais tribos de Israel, pois
dela procedeu, com a linhagem de Davi, a dignidade real, conforme
também se declara no livro de Rute, onde está escrito:
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"Estas são as gerações de Farés:
Farés gerou a Esron, Esron gerou a Aram,
Aram gerou a Aminadab, Aminadab gerou a Naason,
Naason gerou a Salmon, Salmon gerou a Booz,
Booz gerou a Obed, Obed gerou a Isaí,
também conhecido como Jessé,
e Isaí gerou a Davi".
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Agora, portanto, irmãos caríssimos, retornando a nós mesmos,
desejemos que este Booz espiritual sempre nos presida, e temamos que
aquele inútil parente próximo reine sobre nós. Quando é dado à
Igreja um bom pastor, ele provém do dom de Deus. Quando, porém,
é um réprobo que preside, isto ocorre porque assim o exigem os
pecados do povo, pois, conforme o declaram as Escrituras, Deus faz
reinar o hipócrita sobre os homens por causa dos pecados do povo (Jó
36, 8-9). O reitor desordenado, portanto, na medida em que os
homens reconheçam terem recebido o regime de um pontífice perverso por
causa de seus próprios méritos, não deve ser julgado pelo povo.
Deus, efetivamente, dispõe a vida dos governantes de acordo com os
méritos do povo, como é manifesto no exemplo do pecado de Davi, o
qual pecou à semelhança dos príncipes que prevaricam por causa do
mérito do povo. Se o reitor exorbitar da fé deverá ser repreeendido
pelos súditos, mas pelos costumes réprobos mais deverá ser tolerado
pela plebe do que desprezado. Agora, portanto, caríssimos, não
presumamos despedaçar temerariamente os prelados naquilo em que eles
tenham procedido desordenadamente. Segundo a sentença do bem
aventurado S. Gregório, nenhum de nós, mesmo que injustamente
ordenado, repreeenda temerariamente a sentença de seu pastor, para
que não ocorra que, ainda que injustamente ordenado, pela soberba de
uma repreensão inchada surja uma culpa que antes não existia. Se,
porém, virmos um verdadeiro Booz solicitamente suscitar a
descendência espiritual para propagar o nome de Cristo pela palavra do
ensino e pelo exemplo da boa obra, alegremo-nos. E nós mesmos, bem
vivendo, e admoestando-nos um ao outro, empenhemo-nos em ser seus
consortes no mérito, para que mereçamos tornar-nos também seus
consortes no prêmio.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Nosso Senhor Jesus
Cristo, que é, em tudo, Deus bendito, pelos séculos dos
séculos.
Amén.
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