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No sermão anterior interpretamos, na medida de nossas
possibilidades, as coisas que estavam contidas na primeira bênção
pela qual Balaão abençoou os filhos de Israel. Passaremos agora à
interpretação das que estão contidas na segunda bênção.
Balac, muito irritado e queixando-se por causa de Balaão ter
abençoado os filhos de Israel, pois esperava que os tivesse
amaldiçoado, disse a Balaão:
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"Vem comigo a outro lugar,
onde vejas só uma parte de Israel,
e não possas vê-lo todo,
e amaldiçoa-o daí".
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Conduziu-o então a um lugar elevado, no cimo do monte Fesga.
Balaão, afastando-se e aceitando o conselho divino, retornou para
Balac e lhe disse:
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"Levanta-te, Balac, e escuta;
ouve, filho de Sefor.
Não é Deus como o homem,
para que minta,
nem como o filho do homem,
para que mude.
Ele disse, portanto, e não fará?
Ele falou, e não cumprirá?
Fui trazido para abençoar,
não posso proibir a bênção.
Não há ídolo em Jacó,
nem se vê simulacro em Israel.
O Senhor seu Deus está com ele,
e o clamor da vitória do rei nele.
Deus tirou-o do Egito,
cuja fortaleza é semelhante ao rinoceronte.
Não há agouro em Jacó,
nem adivinhação em Israel.
A seu tempo se dirá a Jacó e a Israel
o que Deus fêz.
Eis um povo que se levantará como uma leoa,
e se põe em pé como um leão;
não se deitará até que tenha devorado a presa,
e tenha bebido o sangue de suas vítimas".
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Disse então Balac a Balaão:
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"Não o amaldiçoes,
nem o abençoes".
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Ao que Balaão lhe respondeu:
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"Não te disse que eu haveria de fazer
tudo aquilo que o Senhor me ordenasse?"
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Muitas são as astúcias do demônio, pelas quais agride os justos e
se esforça todos os dias para destruí-los. Assim é que Balac
chama Balaão de lugar a lugar, para que amaldiçoe o povo de Deus,
porque o demônio, quando não vence contra os justos de um modo,
tenta de outro para vencer. Solicita aos mais vãos do povo vão que
corrompam em parte o louvor dos bons pela maldição da injúria e da
blasfêmia para que, não podendo destruir em sua totalidade a opinião
dos santos, pelo menos a lesem em alguma parte. Isto, de fato, é o
que significa ver em parte e amaldiçoar em parte.
Balaão se afasta e pede à vontade de Deus se pode amaldiçoar o povo
de Deus (Num. 23, 15), pois em tais tentações
freqüentemente o povo vão se recolhe dentro de si mesmo para
investigar a vontade de Deus a este respeito. Quando, porém,
reconhece a benevolência divina para com os eleitos, não se atreve a
lançar sobre eles as suas maldições. Elevando então mais
sublimemente a sua mente à contemplação destes eleitos, separa
imediatamente palavras de bênção para proferir-lhes. Por isto é
que Balaão, depois de ter aceito o conselho de Deus, disse a
Balac:
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"Levanta-te, Balac, e escuta;
ouve, filho de Sefor.
Não é Deus como o homem,
para que minta,
nem como o filho do homem,
para que mude.
Ele disse, portanto, e não fará?
Ele falou, e não cumprirá?
Fui trazido para abençoar,
não posso proibir a bênção".
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"Levanta-te, Balac". Estas palavras são como se ele dissesse:
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`Desiste, demônio,
de incitar-me a blasfemar contra os justos,
porque se eu ousar fazê-lo,
isto será para mim a condenação,
e mesmo assim eu não impediria a sua salvação.
Deus, cujo coração não muda
e cuja boca não mente,
não muda de propósito
e não mente em sua palavra.
Ele propôs e prometeu
que haveria de abençoar todos os povos
na descendência de Abraão.
Aquilo, portanto,
que Ele propôs, não o fará?
E o que Ele disse, não o cumprirá?
De modo algum!
"Deus, de fato, é veraz;
todo homem, porém, é mentiroso".
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Deus é veraz em suas promessas,
e pode-se efetivamente observar cotidianamente
o cumprimento de sua palavra.
A justificação e a salvação dos eleitos é a sua bênção'.
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Diga então o povo vão:
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`O que Deus estabeleceu cumprir,
porventura posso esvaziar pelas minhas maldições?'
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Antes, ao contrário,
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"Fui trazido para abençoar,
não posso proibir a bênção".
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Os réprobos, portanto, quando se elevam para contemplar a vida dos
justos, são também compelidos, pela própria admiração que lhes é
causada, a proclamar a justiça daqueles aos quais não amam. O
louvor desta bênção, procedendo mais da disposição divina do que
de suas vontades, faz com que Balaão diga:
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"Não posso proibir a bênção".
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As palavras desta bênção são as seguintes:
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"Não há ídolo em Jacó,
nem se vê simulacro em Israel.
O Senhor seu Deus está com ele,
e o clamor da vitória do rei nele".
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Vemos nestas palavras removidos os males do povo espiritual, ao mesmo
tempo em que lhe são proclamados os bens. O ídolo e o simulacro são
os males removidos do povo espiritual, males que no antigo povo carnal
consta terem existido quase que continuamente. São-lhe também
proclamados os bens, que no povo espiritual se encontram de modo
verdadeiro e perfeito, motivo pelo qual o esposo, louvando a esposa,
diz:
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"Uma só é a minha pomba,
a minha perfeita".
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São igualmente removidas do povo espiritual toda a idolatria e a
infidelidade onde se diz:
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"Não há ídolo em Jacó,
nem se vê simulacro em Israel".
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É proclamada a sua perfeita libertação e liberdade, onde se
acrescenta:
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"O Senhor seu Deus está com ele,
e o clamor da vitória do rei nele".
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O Senhor seu Deus estando com ele, já não serve ao faraó
espiritual no Egito; o clamor da vitória do rei estando com ele, já
canta no deserto com Moisés o cântico de ação de graças.
Note-se com atenção que não se menciona o clamor da batalha, mas o
clamor da vitória. Não houve, de fato, clamor de batalha nas
coisas que precederam a libertação do povo, porque o Senhor lutou
por ele e ele mesmo permaneceu em silêncio. E quanto às coisas que
se seguiram à libertação do povo, não houve também clamor de
batalha, porque Cristo,
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"como um cordeiro diante de quem o tosquia,
permaneceu em silêncio e não abriu a sua boca",
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e os libertou,
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"tomando sobre si os pecados de muitos".
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Dele também diz Isaías:
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"Pisou sozinho no lagar,
e nenhum homem dentre os povos
estava com ele".
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O primeiro clamor da vitória foi, portanto, o cântico que Moisés
cantou juntamente com os filhos de Israel libertados da escravidão do
Faraó, rei do Egito, quando disse:
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"Cantemos ao Senhor,
porque foi gloriosamente engrandecido,
precipitou no mar o cavalo e o cavaleiro".
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O segundo clamor da vitória foi, porém, a ação de graças que,
libertado da escravidão do demônio, cantou o Israel espiritual.
Sob o nome de Sião, por meio de Isaías, diz o Senhor deste
segundo clamor de vitória:
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"Em Sião se encontrará o gozo e a alegria,
a ação de graças e a voz do louvor".
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Na medida, portanto, em que
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"o Senhor seu Deus está com ele,
e o clamor da vitória do rei nele",
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não há ídolo no Jacó espiritual, nem se vê simulacro em Israel,
libertado que foi da escravidão dos demônios e retirado das trevas da
infidelidade. Para confirmar esta sentença, a ela se lhe
acrescenta:
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"Deus tirou-o do Egito,
cuja fortaleza é semelhante ao rinoceronte".
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O rinoceronte é de natureza indomável, e Deus é inteiramente
incompreensível e invencível. Rinoceronte, em latim, soa como "in
nare cornu", o que significa "no nariz está o seu chifre". Como
pelo nariz distinguimos entre os odores agradáveis e ruins,
corretamente pelo nariz entendemos a temperança do discernimento,
enquanto que pelo chifre entendemos a potência. A fortaleza de Deus
é, portanto, como o rinoceronte, porque Deus sempre exerce a
potência de sua fortaleza pela moderação de sua admirável
discrição. De onde que está escrito:
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"Tu, Senhor dos exércitos,
tudo julgas com tranquilidade".
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E da sabedoria se lê que
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"Atinge fortemente
desde uma extremidade a outra,
e tudo dispõe com suavidade".
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Ao mesmo sentido pertence também aquela passagem do salmista:
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"Enviou trevas e escuridão,
e não exacerbou as suas palavras".
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Merecidamente, portanto, não se vê no Israel espiritual simulacro
do antigo êrro, já que Deus o tirou do Egito da antiga
infidelidade. Muitos há, porém, que embora sejam estimados pelo
nome da cristandade e não submetam seus pescoços aos simulacros, se
entregam, entretanto, por um sacrílego costume, a vários
sortilégios e adivinhações. Corretamente se proclama, por isso,
do verdadeiro Israel que
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"Não há agouro em Jacó,
nem adivinhação em Israel".
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Aqueles que, de fato, colocam sua fé e esperança em tais vaidades,
pertencem aos falsos israelitas. De onde que o Apóstolo,
repreendendo aos Gálatas, diz:
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"Observais os dias, os meses,
os tempos e os anos.
Temo por vós,
não tenha eu talvez
trabalhado inutilmente entre vós".
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No verdadeiro Israel, porém, assim como não há ídolo nem
simulacro, assim também não há agouro, não há adivinhação,
não há encantamento nem qualquer observação supersticiosa ou o que
quer que seja que se comprove contrário à sagrada fé.
Para mostrar ainda que este povo é digno não de maldição, mas de
bênção, os seus bens espirituais são em seguida elegantemente
proclamados, onde se diz:
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"A seu tempo se dirá a Jacó e a Israel
o que Deus fêz".
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Dir-se-á a Jacó e a Israel o que Deus fêz, pois o próprio
Deus lhos revelará, Ele mesmo
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"que anuncia a sua palavra a Jacó,
suas justiças e seus julgamentos a Israel.
Não fêz assim com nenhuma outra nação,
e seus julgamentos não lhes manifestou".
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Os julgamentos ou as obras de Deus são manifestados aos fiéis em
diversos tempos e por diversos modos. São manifestados pela
natureza, pela criatura, pela Lei, pela profecia, pela graça.
São manifestados mais plenamente após a morte quando for recebida a
primeira estola; serão manifestados plenissimamente após o fim do
século quando for recebida a segunda estola e a posse da glória.
Enquanto, porém, ainda estamos na via e não na pátria muitas
coisas permanecem ocultas, poucas manifestas. Ainda que, conforme
diz o salmista, Deus manifeste ao homem muitas coisas
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"incertas e ocultas de sua sabedoria",
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contudo o homem não sabe
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"se é digno de amor ou de ódio,
mas tudo se reserva incerto para o futuro".
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Os julgamentos ocultos de Deus sobre nós são "muitos abismos"
(Salmo 35, 7), pois
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"agora conhecemos em parte,
mas então conheceremos
assim como somos conhecidos".
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E assim,
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"A seu tempo se dirá a Jacó e a Israel
o que Deus fêz".
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Segue-se:
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"Eis um povo que se levantará como uma leoa,
e se põe em pé como um leão;
não se deitará até que tenha devorado a presa,
e tenha bebido o sangue de suas vítimas".
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A vida dos justos é comparada aos mais nobres entre os animais, para
que por esta comparação se mostre claramente qual é a nobreza dos
seus costumes. O leão são os homens robustos e perfeitos, a leoa os
imperfeitos e enfermos. O leão são os contemplativos, a leoa os
ativos. O leão é Israel, a leoa é Jacó. Sabe-se que quando o
leão está com fome emite um rugido que o animal aterrorizado que o
ouve pára e se imobiliza; o leão, então, capturando-o deste
modo, bebe o seu sangue e come a sua carne. O leão supera também
todos os outros animais por não temer a ferocidade de nenhum deles.
Trata-se, de fato, do mais forte de todos os animais, aquele que
não teme o encontro de nenhum outro. Assim também é o povo dos
justos, principalmente a assembléia dos pregadores, quando têm fome
da conversão dos que vivem mal. Emitem o terror da pregação e com
isto prendem os homens e todos aqueles que vivem como animais, para que
não possam mais correr pelos diversos vícios. Como que capturados
pela boca, bebem o seu sangue quando consomem inteiramente a sua
crueldade; matam-nos, para que morram para o mundo; e os comem,
incorporando-os a si, quando pela fé os associam e unem a si mesmos.
E assim como o leão supera os animais pela ferocidade, assim também
estes superam os demais homens pela virtude, pois para se refazerem
pela emenda dos pecadores, não temem o encontro de nenhuma crueldade.
E nem
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"se deitará, até que tenha devorado a presa,
e tenha bebido o sangue de suas vítimas",
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pois de modo algum cessarão de prender as almas que devem ser salvas,
de uní-las a si e de consumirem as suas crueldades até que
reconheçam ter-se completado, no fim dos tempos, o número dos
eleitos.
Balaão, isto é, o povo vão, proclama freqüentemente este louvor
dos justos; por isto Balac, isto é, o demônio, aquele que lhe
havia sugerido palavras de blasfêmia e de maldição, é conduzido à
ira. De onde que Balac diz a Balaão:
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"Não o amaldiçoes,
nem o abençoes".
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O demônio, efetivamente, prefere que os amantes da vaidade silenciem
por completo antes do que profiram o que quer que seja de bem dos bons.
Deus ordena, porém, para o louvor de seu nome, que também pela
boca dos maus algumas vezes cresça o louvor dos bons.
Que o Senhor nos conceda, irmãos caríssimos, que sempre sejamos
partícipes da graça e do louvor dos justos, até que com eles,
auxiliados pelas suas preces e pelos seus méritos, mereçamos entrar
na pátria da suprema promissão.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, nosso
Senhor, que é Deus bendito pelos séculos.
Amén.
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