IIIª Parte. G.


CAPÍTULO 101

Estando os acontecimentos assim configurados, outro fator surgiu por esta época para mais promover o desenvolvimento do Renascimento na Itália.

Conforme explicamos na Primeira Parte desta Introdução Histórica, muito tempo antes da Renascença, nos anos 300 da Era Cristã, a transferência da capital do Império Romano para Constantinopla havia feito surgir, com o início das invasões bárbaras no Ocidente, o Império Bizantino no Oriente.

O Império Bizantino não passou pelas transformações por que passou o Ocidente. Não houve ali as invasões que assolaram o mundo ocidental. Houve, é fato, uma invasão progressiva do Islã, mas quando o Islam conquistava, um após outro, os territórios do Império Bizantino, este se tornava muçulmano. Neste sentido, tratava-se de algo que do ponto de vista histórico era substancialmente diverso do que ocorria no ocidente com as invasões bárbaras. Quando os bárbaros invadiam um território romano, mais cedo ou mais tarde eles se convertiam ao Cristianismo e, tornando-se cristãos, incorporavam-se à civilização que haviam invadido. Depois vinha outra leva de bárbaros e o processo recomeçava novamente.

Mas no Império Bizantino não havia uma assimilação de uma civilização por outra. À medida em que o Islã avançava, desaparecia a civilização conquistada e era substituída por outra.

Dentro da parte que restava do Império Bizantino a história era bastante linear. O modo de vida que existia no Império Romano oriental durante os oito primeiros Concílios Ecumênicos continuou existindo nos séculos seguintes. Não houve Idade Média no Império Bizantino. Não houve Feudalismo. Não houve invasão de bárbaros. O poder temporal, apesar de todos os problemas, tentava coexistir com o poder espiritual sem os conflitos radicais que houve no Ocidente. Não houve um momento em que se fêz necessária uma reforma na Igreja como a que na Primeira Parte desta Introdução descrevemos ter sido necessária no Ocidente. Enfim, nada de substancialmente novo aconteceu, exceto a diminuição progressiva do território do Império Bizantino que caía cada vez mais em poder dos muçulmanos.

Mas, à medida em que a conquista islâmica continuava, chegou-se a um ponto em que, na primeira metade dos anos 1400 DC, o território dominado pelos muçulmanos já era tão grande que praticamente só restava ao Império Bizantino a sua própria capital, a cidade de Constantinopla, e algumas poucas terras ao seu redor.

Deste modo a história do Império Bizantino foi bastante mais linear do que a do Ocidente. E esta história foi linear também quanto ao aspecto educacional.

Assim como no antigo Império Romano predominava o estudo da Retórica como principal meio de formação dos homens, assim também este era o estudo predominante no Império Bizantino. Tal como antigamente, sempre houve também uma minoria que se dedicava aos estudos filosóficos.

A única novidade que se acrescentou a este panorama do antigo Império Romano foi o surgimento da vida monástica. Mas, à diferença do Ocidente, os mosteiros do Império Bizantino não tinham escolas. No Ocidente em grande parte dos mosteiros mais cedo ou mais tarde surgia uma escola, já que com a invasão dos bárbaros e a queda do Império Romano as escolas profanas deixavam de existir. Passando para a organização monástica, a escola pôde se transformar graças à liberdade que no Ocidente os monges tiveram para gradativamente geminar a educação com a vida espiritual até ao nível da própria concepção fundamental desta educação. A educação se transformou em um meio de ascese, a pedagogia passou a buscar seus fins últimos nas mais profundas exigências da vida espiritual e em função destas organizou seu programa e seus métodos. A antiga educação pagã foi modificada de um modo firme mas tão gradual que sua metamorfose, embora fosse imperceptível de uma geração para outra, passados mil anos, resultou em uma transformação gigantesca. Entre as Instituições de Quintiliano tais como eram no século I e os Princípios Fundamentais de Pedagogia de Hugo de São Vitor no século XII a distância cronológica é de um milênio, mas para os que conseguem penetrar no alcance de seus conteúdos e na profundidade de seus pressupostos, a distância real é astronômica.

Ao contrário do Ocidente, porém, no Império Bizantino a civilização não só não desmoronou como também nunca ameaçou desmoronar. O que ocorria era a diminuição do seu território de um modo contínuo, mas o que permanecia dentro de suas fronteiras sempre menores continuava firme em seus alicerces. Não havia, pois, neste contexto, necessidade pela qual os mosteiros devessem abrir escolas. Para os padrões do mundo antigo, havia escolas em abundância, as quais contavam com professores que ensinavam gramática e oratória e que estavam a par de todos os clássicos da literatura antiga, isto é, tudo aquilo que nos mosteiros do ocidente havia sido relegado a um plano secundário. Enquanto no Ocidente a espiritualidade foi moldando a cultura antiga até se chegar à criação da primeira Universidade, nada disso ocorria no Oriente. Os mosteiros eram apenas casas de oração. Para se estudar existiam as escolas onde estudava-se uma retórica que não tinha relação, de modo direto, com a ascese cristã.

Os santos que exerceram grande influência na literatura cristã do Oriente, como São Basílio, São Gregório de Nazianzo, S. Gregório de Nissa, S. João Crisóstomo, foram todos eles monges. Antes disso, porém, haviam freqüentado, durante suas juventudes, as escolas dos retores. Muitos deles expressaram críticas a este tipo de formação e formularam o desejo de uma educação mais condizente com o ideal cristão. Pode-se citar como exemplo disto a seguinte passagem de um livro em forma de diálogo escrito por São João Crisóstomo, um monge que no século IV veio a tornar-se bispo de Constantinopla:

"Ninguém ignora que o corpo de Igreja está mais sujeito a enfermidades do que a própria carne, corrompe-se mais depressa e se restabelece mais lentamente. Porém, enquanto os que curam nossos corpos inventaram uma variedade de medicamentos e dispõem de uma série de instrumentos para tanto, no que diz respeito aos cuidados das almas, além do exemplo, não há outro caminho para a saúde a não ser o ensino.

Se este remédio falhar, todos os demais serão inúteis.

É certo que para melhor ordenar a vida, outra vida bem ordenada pode despertar o desejo de imitá-la; mas, quando a alma sofre a enfermidade de um ensinamento já errôneo, não há outro remédio senão usar copiosamente da palavra.

Mesmo que houvesse alguém que operasse milagres, mesmo assim a palavra seria altamente necessária, e temos disto um exemplo em São Paulo Apóstolo, que fêz uso dela, apesar de que em todos os lugares era admirado pelos seus milagres".

- "Mas João",

interrompe o interlocutor do diálogo,

"se a palavra é tão importante, por que lemos na Segunda Epístola aos Coríntios que o próprio São Paulo não ocultava a sua pobreza no falar, como também confessa que é leigo na matéria?"

"É isto",

responde João Crisóstomo,

"é isto que fêz a perdição de muitos e os tornou incapazes de ensinar verdadeiramente. As pessoas chamam ignorante não apenas àqueles que não se adestraram nas charlatanices da eloqüência, mas também àqueles que não sabem defender a verdade.

Ora, São Paulo não se diz leigo em ambas as coisas, mas apenas em uma delas e, para deixar isto bem claro, faz uma clara distinção, dizendo:

`Na verdade, sou imperito no falar; não o sou, porém, na ciência'.

2 Cor. 11, 6

Se estivéssemos exigindo a suavidade de Isócrates, a majestade de Demóstenes, a gravidade de Tucídides, a sublimidade de Platão, então terias razão em citar São Paulo Apóstolo.

Mas tudo isso eu deixo de lado.

Que a expressão seja pobre, que a composição das palavras seja simples e corrente; mas o que a ninguém se pode permitir é ser leigo no exato conhecimento das verdades da fé.

Em que o bem aventurado Apóstolo São Paulo superou a todos os demais apóstolos? Que fêz ele em Tessalônica, em Corinto, e na mesma Roma? Não passava dias e noites inteiras, sem interrupção, na explicação das Sagradas Escrituras? Que ninguém, pois, para acobertar a si próprio, pretenda arrancar deste bem aventurado Apóstolo aquela que foi a sua máxima excelência e a coroa de sua glória".

S. João Crisóstomo
De Sacerdotio L. IV, 5-6

Este texto de São João Crisóstomo, bispo de Constantinopla no final dos anos trezentos, pertence a um livro em que ele procura traçar o perfil ideal do sacerdote cristão. Ele menciona a educação retórica a que ele próprio havia sido submetida durante a sua juventude e, indiretamente, aspira por outra.

Mas durante a história do Império Bizantino que se seguiu não surgiu nenhuma outra forma de educação. O Cristianismo aprendeu a conviver com a formação retórica tal como ela havia evoluído na antigüidade romana. O grego se tornou a língua nacional do Império Bizantino e as obras dos grandes escritores da Grécia eram acessíveis, compreendidas e admiradas por todos.

Os escritores bizantinos, conforme escreve Charles Diehl,

"gostavam de tomar por modelos a autores clássicos e se esforçavam por imitá-los. Ao contato dos clássicos, acabaram criando uma linguagem erudita, muito diferente do grego que se falava correntemente, mas com a qual se vangloriavam de reproduzir a beleza artística do grego antigo. Ademais, assim como o estilo imita a forma antiga, seu pensamento também se moldava constantemente sobre as idéias clássicas. Estão cheios de lembranças da história e da mitologia gregas, e este respeito quase que supersticioso pela tradição grega clássica deveria ter para a literatura conseqüências assas importantes".

Mas, à medida em que o Império Bizantino foi desmoronando, e no início dos anos 1400 DC foi se percebendo cada vez mais claramente que seria apenas uma questão de tempo para que o Império fosse tragado pelo Islã, os professores e os homens cultos de Constantinopla começaram a fugir para o Ocidente.

Para onde, porém, no Ocidente, poderiam fugir? Naquela época havia um lugar onde não somente encontrariam um refúgio seguro, como também seriam regiamente acolhidos. Este lugar não era a França, nem a Espanha ou a Alemanha, mas o norte da Itália, onde fervilhava o Renascimento. Déspotas e humanistas italianos os receberiam como se recebem os heróis. Juntamente com estes sábios de Constantinopla vinham para os italianos mais manuscritos antigos e uma nova oportunidade de aprender a língua grega tal como era falada em um lugar em que ela havia permanecido viva ininterruptamente desde a antigüidade. A história da Renascença conserva até hoje o nome e as atividades de todos os principais dentre estes sábios imigrantes bizantinos.