35. As primeiras revogações das leis sobre o aborto.

Os acontecimentos finais do período compreendido pelo presente capítulo foram as primeiras revogações das leis restritivas ao aborto nos países desenvolvidos e a declaração da ONU, que examinaremos mais adiante, sobre o planejamento familiar como sendo um direito humano básico.

Desde 1967 até o final de 1968 cinco estados norte americanos revogaram suas leis sobre o aborto: Colorado, Califórnia, Carolina do Norte, Maryland e Georgia. O que veio a ocorrer depois disto será analisado em um capítulo posterior.

A legislação contra o aborto na Inglaterra foi revogada pelo Abortion Act de 1967. Esta lei, teoricamente, não permite o aborto a pedido. Existem quatro cláusulas em que a gestante deve poder ser enquadrada para obter o aborto, e é necessário o exame preliminar de dois médicos que devem decidir, "de boa fé", conforme reza a lei, se tais requisitos são ou não satisfeitos. Entretanto, na prática não é necessário ser enquadrado em nenhum requisito, e é extremamente fácil conseguir um aborto por qualquer motivo, ou sem nenhum motivo.

A situação real do aborto na Inglaterra depois da legalização ficou muito clara através de um trabalho realizado em Londres por dois jornalistas free lance. O trabalho foi publicado sob forma de um livro denominado Babies for Burning, nome tirado da prescrição da lei inglesa exigindo que os fetos abortados sejam incinerados, prescrição que os jornalistas descobriram nem sempre ser cumprida. Michael Litchfield e Susan Kentish consultaram- se primeiramente com um médico de sua confiança e conseguiram um atestado escrito de que Suzan não apenas não estava grávida como também era estéril e não seria capaz de engravidar. Em seguida um gravador foi escondido na bolsa da jornalista e o casal visitou cerca de três dezenas de clínicas de aborto legal na cidade de Londres, todas supostamente sob fiscalização das autoridades médicas inglesas. Apesar de que em todas as clínicas o casal ter-se apresentado dizendo apenas que Susan estava grávida e queria abortar, ninguém jamais fêz qualquer pergunta para saber se a gestante estaria preenchendo algum dos quatro requisitos exigidos pela lei inglesa para se pedir um aborto, não obstante os médicos serem obrigados a enviar um relatório ao Ministério da Saúde sobre todos os abortos legais realizados. Em algumas clínicas o casal chegou a dizer que, apesar de desejarem o aborto, não tinham certeza se o caso deles se enquadraria na lei; mas os médicos sempre lhes respondeu que não se preocupassem com a formalidade. Os médicos de todas as clínicas realizaram exame de toque na paciente e todos constataram que a jornalista, uma mulher estéril, estava grávida e que deveria submeter-se ao aborto com presteza antes que a idade gestacional avançasse. Para confirmar o diagnóstico, todos também recomendaram um exame de gravidez feito em um laboratório de confiança indicado por eles. Os exames realizados, invariavelmente em todos os laboratórios indicados, acusaram a presença de gravidez. Em todos os casos o aborto foi agendado, mas o casal não compareceu na data marcada. Com certeza teria sido realizado, ainda que o útero estivesse vazio.

Se a lei estivesse sendo cumprida, haveria quatro cláusulas que deveriam ser verificadas para que o casal pudesse pedir o aborto legal, as quais seriam atestadas por dois médicos que deveriam encaminhar a este respeito, para cada caso, um relatório escrito às autoridades governamentais da área da saúde. O sistema adotado por algumas das clínicas visitadas pelo casal foi o de que um dos dois médicos seria o próprio que faria o aborto, que nunca examinava a paciente nem lhe fazia qualquer pergunta;. o outro seria um médico psiquiatra que cobrava para consultar a paciente e fornecer a sua assinatura. Os jornalistas gravaram uma entrevista com um médico psiquiatra na qual se esforçaram ao máximo para que deles não se pudesse inferir nenhum problema psicológico que pudesse estar relacionado com a conveniência de um aborto. Todas as perguntas que o psiquiatra lhes fazia eram sistematicamente respondidas contrariamente à obtenção do aborto por motivos psiquiátricos; se este perguntava a Suzan se sobre seu relacionamento com o marido ela respondia que o adorava e que dele só recebia manifestações de um amor devotado; se ele lhe perguntava se tinha medo do parto ou da perspectiva de uma maternidade, ela respondia que gostava muito de crianças e que o casal desejava ter filhos, apenas não queriam esta gravidez; se ele lhe perguntava sobre o relacionamento com os pais durante a infância as respostas eram do mesmo gênero. Depois de muitas perguntas e respostas similares o psiquiatra perguntou se Susan urinava na cama quando menina. Suzan respondeu afirmativamente a esta pergunta; o psiquiatra disse concluir então, diante desta declaração, que o casal não teria condições psicológicas de levar adiante aquela gravidez e que redigiria o relatório autorizando o aborto.

Depois de visitar três dezenas de clínicas e ter chegado à conclusão de que todas as demais se comportariam da mesma forma, o casal de jornalistas partiu para a concepção de planos mais ousados. Marcaram uma hora com o médico de outra clínica e ao serem recebidos disseram que eles estavam ligados a uma indústria química e que sabiam que o médico não estava incinerando os fetos, mas vendendo-os a uma indústria concorrente. Eles, porém, estavam dispostos a cobrir qualquer oferta. No início o médico negou; queria saber de onde eles haviam obtido semelhante informação. Mas depois terminou dizendo que de fato era uma pena incinerar material de tão boa qualidade e que, se eles pudessem trazer discretamente todos os dias uma caminhonete até a sua clínica, fecharia negócio com eles:

"Veja",

disse então este médico,

"tenho bebês muito grandes. É uma pena jogá-los no incinerador, quando se poderia fazer uso muito melhor deles. Fazemos muitos abortos tardios. Somos especialistas nisto; faço abortos que outros médicos nunca fariam. Faço-o com sete meses sem hesitar. A lei diz 28 semanas, é o limite legal. Porém é impossível determinar a fase em que foi feito o aborto quando a criança é incinerada. Por isso, não importa o período em que se faz o aborto. Se a mãe está pronta para correr o risco, eu estou pronto para fazer o aborto. Muitos dos bebês que tiro estão totalmente formados e vivem um pouco, antes de serem eliminados. É uma pena jogá-los no incinerador, porque eles tem muita gordura animal que poderia ser comercializada. Se forem colocados na incubadeira, poderiam sobreviver, mas na minha clínica não possuo estas espécies de facilidades. O nosso negócio é por fim a vidas, e não ajudá-las a começar. Não sou uma pessoa cruel. Sou realista. Se sou pago para fazer um trabalho, e o trabalho é livrar a mulher de um bebê, então não estaria desempanhando o meu papel se deixasse que o bebê vivesse. Poderíamos fazer uma espécie de contrato, um contrato entre cavalheiros. Eu fiz assim com a outra firma. O senhor vai ter que arranjar um furgão ou uma caminhonete, ou uma coisa semelhante, que deve carregar pela porta dos fundos. Quanto à hora e outros pormenores, fixaremos depois. Tudo depende naturalmente de entrarmos em acordo. Existe, naturalmente, o lado financeiro, não é verdade? Qual é a sua oferta?"

Mais tarde, antes de publicarem o livro, os dois jornalistas relatam terem sido visitados pelo Dr. Malcolm Ridley, de Boston, nos Estados Unidos, que teria viajado até a Inglaterra apenas para falar com eles.

"O Dr. Malcolm Ridley, de Boston, Massachussets, veio à Inglaterra especialmente para falar conosco", dizem os jornalistas. "Disse-nos que estava trabalhando com abortos, mas que desejava sair deste campo. `Na vida de um homem', disse ele, `chega o momento em que é preciso parar para fazer uma espécie de inventário. Somente quando se dá um passo atrás de onde se está e se olham as coisas de longe, como expectador, é que se vê a verdade. O que eu vi não me agrada muito, para usar de um eufemismo. Também não me orgulho muito de mim mesmo'. Ele nos contou a sua história como se estivesse fazendo uma confissão e como se estivesse retirando de seus ombros uma carga que já não podia mais suportar:

"Nos Estados Unidos",

disse-nos ele,

"a corrida do aborto tardio divide-se em duas partes.Uma consiste em fazer o aborto na fase final da gravidez, mas conservar a criança viva, embora a mãe pense que ela morreu. Mais tarde a criança será vendida para adoção e nós ficamos com o lucro. Algumas crianças são mandadas para serem adotadas na Inglaterra. Neste país há falta de recém nascidos para adoção por causa da lei do aborto. A outra parte vende os fetos para experiências. As crianças estão oficialmente mortas. Porém são mantidas vivas, mas não são registradas oficialmente como tendo nascido. Portanto, podem ser empregadas em toda a espécie de experiências. Algumas delas vivem por mais de um ano sem terem nascido oficialmente. Algumas são usadas para testes de curas de doenças como o câncer, a leucemia e em cirurgias de transplante. No passado usavam-se animais, mas nunca se pode ter certeza de que o tratamento terá o mesmo resultado e se não será prejudicial para os seres humanos. Com o uso dos fetos, a pesquisa é abreviada de muitos anos. Naturalmente podem ser feitas muitas objeções do ponto de vista moral. Na maioria dos casos, as crianças que são mantidas vivas para experiências são eliminadas antes de completarem um ano. Agora o senhor entende porque eu quero sair deste submundo tétrico. O mundo deve saber o que está acontecendo. O grande perigo é acreditar que isto se limita aos Estados Unidos. Não se esqueça que foi o mesmo dinheiro americano que se usou para criar a indústria do aborto na Inglaterra. O primeiro impulso da lei do aborto de 1967 foi inspirado pelos Estados Unidos. O dinheiro distribuído nos lugares certos constituía uma fortuna. As pessoas que investiam deste modo, e eram grandes investidores, estavam certos de que iam ter lucro de mil por um nos seus investimentos".

A confissão deste médico não é um caso isolado", conclui o casal de jornalistas.

"Testemunhos de enfermeiras, estudantes de medicina e ginecologistas no campo do aborto nos Estados Unidos confirmam tudo o que nos foi revelado pelo Dr. Ridley".

Quando Michael e Susan publicaram o livro, junto com o mesmo foram publicados os nomes das clínicas e dos médicos; embora os jornalistas tivessem sido processados por calúnia e posteriormente absolvidos em todos os casos, nenhum médico foi para a cadeia. O Ministério da Saúde investigou as denúncias, mas aparentemente nada mudou. A lei do aborto continuou a mesma.

Quanto à denúncia dos bebês vendidos para experimentação científica, o autor das mesmas, o Dr. Ridley de Boston que de iniciativa própria havia atravessado o Atlântico para conversar com os jornalistas, apesar de procurado, nunca mais pôde ser encontrado. Entretanto, várias outras denúncias a este respeito surgiram na Europa e nos Estados Unidos. No Handbook of Abortion, de Jack Willke, uma das publicações mais respeitadas no mundo sobre o tema, encontra-se escrito que por esta época apareceram denúncias sobre experimentação em fetos vivos na Universidade Stanford, na Califórnia, onde "foram abertas as caixas torácicas de fetos humanos ainda vivos de até 24 semanas a fim de estudar o trabalho co coração"; "Laphom e Marksberry relataram nos Estados Unidos a extração de cérebros de fetos humanos conservados vivos em cultura durante cinco meses"; na Universidade de Helsinqui, na Finlândia, "bebês de 12 a 20 semanas tiveram a cabeça decepada e colocada em um aparelhamento que injetava produtos químicos na circulação cerebral dos mesmos"; na Universidade de Szged, na Hungria, "fizeram-se experiências retirando o coração, ainda batendo, de bebês não nascidos de até onze semanas"; na Inglaterra, em 1970, "a Clínica Langham de abortos admitiu estar enviando fetos abortados ao Hospital de Middlesex; disse Philip Stanley, porta voz do hospital, ao jornal `World News':

`Não há o que discutir. Para ser legalmente viável o feto precisa ter 28 semanas. Antes disso nada mais é do que lixo' ".

Em maio de 1970, Mr. St. John Stevas, membro do Parlamento Britânico, fazia uma denúncia oficial de que na Inglaterra fetos abortados vivos estavam sendo vendidos para experiências médicas; formou-se uma Advisory Board chefiado pelo então presidente da Associação Médica Britânica para estudar o assunto, que se reuniu seis vezes para ouvir os pontos de vista das partes interessadas. Estas declararam durante as audiências que as pesquisas com fetos vivos eram particularmente importantes e úteis nos seguintes casos: estudos de transferência de substâncias através da placenta humana, reação de fetos a drogas, desenvolvimento endocrinológico do feto, efeitos colaterais no feto de drogas administradas à gestante, processos fisiológicos e bioquímicos em geral e durante a fase pré natal, e, de modo especial, estas experiências se haviam revelado como os mais promissores métodos de abordagem para o estudo de certas falhas no correto desenvolvimento do cérebro humano. Dois anos mais tarde o Comitê parlamentar publicou seu relatório oficial declarando por unanimidade que a contribuição para a saúde e o bem estar da população proveniente das experiências com fetos vivos procedentes do aborto legal eram de tamanha importância que a prática deveria ser legalizada para os fetos, que tivessem menos de 300 gramas de peso. No final de 1972 entrava em vigor na Inglaterra e no País de Gales uma lei autorizando, sob certas condições, a experimentação em fetos vivos provenientes da prática do aborto legal.

Quanto ao Dr. Alec Bourne, o médico membro da ALRA cujo famoso julgamento em 1938 havia introduzido a jurisprudência permitindo o aborto em caso de estupro, este percebeu já bem antes da publicação de Babies for Burning no que iria resultar a legalização do aborto na Inglaterra da qual ele havia sido o primeiro responsável de importância. Suas opiniões a respeito do assunto mudaram completamente e em 1967 fundou em Londres a Sociedade para a Proteção das Crianças não Nascidas. Do trabalho realizado por esta sociedade, porém, não nos havia chegado nenhuma notícia quando da redação deste trabalho.