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Havia desejado o santo abade permanecer toda a sua vida naquele
lugarejo desconhecido dos homens; mas o Senhor o trouxe à luz para
que repartisse ao mundo os tesouros e as graças que em sua cela havia
alcançado. Foi necessário que dela saísse para reconciliar com a
Igreja Romana os cismáticos, para convencer publicamente os hereges
e para promover o bem e estabelecer a paz entre os católicos.
Levantou-se no tempo de São Bernardo, depois da morte de
Honório, Sumo Pontífice, um perigoso cisma na Igreja porque um
romano ilustre, chamado Pierleone, tomou com má fé o nome de
Anacleto e usurpou a cadeira de São Pedro, opondo-se ao verdadeiro
Pontífice, Inocêncio, o segundo deste nome. Houve grande
escândalo e uma divisão muito perigosa na cristandade, porque no
início não era possível distingüir-se tão facilmente qual dos dois
deveria ser tido como legítimo sucessor de São Pedro e vigário
geral do Senhor. Celebravam- se em várias partes sínodos nacionais
sobre este artigo, e especialmente na França foi convocado um
concilio na cidade de Etampes. E para poder, com maior luz e
assistência do Espirito Santo, decidir uma dificuldade tão grande,
pareceu bem ao rei de França e aos demais principais prelados que
antes de tudo se chamasse ao Concílio o abade de Claraval, pelo
grande conceito que todos tinham de sua sabedoria e santidade.
Chamaram-no e o santo abade, obrigado pela obediência aos seus
prelados e pela importância do assunto, veio cheio de tremor e temor,
considerando a gravidade e o perigo do que haveria de ser tratado,
embora tivesse tido grande consolação no caminho e ficado muito
animado com uma visão e revelação do Senhor. Chegando ao local do
Concílio, foi recebido como a um anjo do céu e, na primeira
sessão, por consentimento e unanimidade gerais, determinou-se que
fosse posta aquela controvérsia nas mãos de São Bernardo para que a
determinasse e todos seguissem o seu parecer, coisa grandíssima e
grande argumento da estima que todos tinham do espirito do Senhor que
habitava e falava nele, ainda que ele próprio procurasse desculpar-se
com sua modéstia, por parecer-lhe carga intolerável e além de suas
forças. Finalmente, vencido pelos pedidos e pela autoridade daquela
sagrada congregação, o aceitou, confiado tanto em Deus quanto
desconfiado de si. E depois de haver invocado o favor do céu e feito
todas as diligências para acertar, declarou Inocêncio como o sumo e
verdadeiro Papa e pastor da Igreja, sem que houvesse em todo aquele
concílio uma única pessoa que o contradissesse ou se opusesse a tal
declaração; e com isto foi Inocêncio obedecido no reino de
França. E porque o rei Henrique da Inglaterra se mostrava duro e
de parecer contrário, o glorioso abade foi até ele, persuadindo-o a
que se conformasse com o que se havia determinado na França, tomando
sobre a sua consciência qualquer culpa que em fazê-lo pudesse haver,
e o rei o fêz, e para honrar mais ao Pontífice veio à França,
onde havia chegado como que fugindo da Itália. Inocêncio, o qual
com grande alegria de todos o recebeu em Chartres e lhe deu a sua
bênção apostólica.
Mas, porque na província de Gasgonha ainda durava o cisma pela
ambição de Gerardo, bispo de Anguleme, o qual, favorecido por
Guilherme, conde e príncipe poderoso, fazia grandes desaforos, o
santo abade foi enviado pelo Papa para trazer o conde à razão e
refrear a tirania do mau bispo. Foi São Bernardo à Gasgonha,
falou ao conde Guilherme e procurou reconduzi-lo à obediência do
verdadeiro pastor, o mesmo fazendo-o alguns bispos e pessoas
religiosas; mas, ainda que ele se tivesse aproximado, nunca quis se
conformar com que voltassem para suas igrejas os bispos que com tanta
violência haviam sido afastados delas. Vendo o santo a obstinação
do conde e que os meios humanos para nada adiantavam, recorrei aos
divinos e fêz o que aqui direi. Foi à igreja, celebrou missa,
tomou o santíssimo sacramento nas mãos sobre uma patena e saiu para
onde estava o conde, o qual, por estar excomungado, não podia entrar
na igreja e estava junto à porta, do lado de fora. Com o rosto
inflamado, lançando chamas, com os olhos faiscando e uma voz
terrível e espantosa, falou- lhe desta maneira:
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"Nós te rogamos,
e tu nos tens desprezado;
todos estes servos de Deus te suplicaram,
e tu não fizeste caso deles.
Eis aqui o filho da Virgem,
Cabeça e Senhor da Igreja que tu persegues,
que vem à tua presença.
Eis o teu juiz,
para cujas mãos há de retornar a tua alma.
Veremos se fazes caso dEle,
se lhe voltas as costas,
como o fizeste conosco".
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Diante destas palavras tremeu o conde. Caíu ao chão, tornou a
levantar-se. Voltou a cair de novo sem poder falar, soltando saliva
e espumando pela boca, espantado e atônito. Finalmente, fêz tudo o
que o santo mandou, e dispensou depois tão estreita amizade com ele,
que com seus santos conselhos e doces palavras modificou-se de tal
maneira que, deixando o Estado, retirou-se, fez penitência muito
rigorosa e fêz-se santo, disto fazendo menção o Martirológio
Romano no dia 11 de fevereiro. Quanto ao bispo Gerardo, este
ficou obstinado em sua malícia, tendo sido encontrado pouco depois,
pela manhã, morto em sua cama, sem confissão nem viático.
Depois disto, persuadiu São Bernardo ao Imperador Lotário, que
na cidade de Lièje havia se encontrado com o Papa, que deixasse uma
vã e ambiciosa pretensão que tinha de recobrar a investidura dos
bispados que havia sido retirada ao Imperador Henrique, seu
predecessor. Voltou o Papa à Itália, tendo resolvido os assuntos
de França e celebrado um concilio em Reims, e quis passar pela
Borgonha para visitar Claraval e ser hóspede do santo abade naquele
mosteiro, onde viviam seus monges mais como anjos do céu que como
homens vestidos com um saco de carne. Ali teve o Sumo Pontífice
grande consolação pelo que viu. Saíram os monges em procissão,
não com evangelhos dourados nem com cruz de prata, que não havia,
mas com cruz de madeira e pobres ornamentos; com tanta devoção,
porém, e tanta modéstia, que o Papa, os cardeais e os bispos não
puderam conter as lágrimas. O Papa comeu no refeitório, e toda a
comida consistiu em alface e legumes, e como grande regalo houve um
pouco de suco de frutas, e para o Papa um peixe que com só muita
dificuldade se pôde achar.
Na Itália as coisas estavam ainda tumultuadas, e para acalmá-las
convocou o Pontífice outro concílio na cidade de Pisa, no qual,
entre outras coisas, Anacleto foi declarado excomungado, assistindo
sempre São Bernardo a todos os assuntos que ali se tratavam, não
somente como ajudante e participante, como também, de certo modo, na
qualidade de árbitro e ministro principal do Papa. Concluído este,
foi o servo do Senhor à cidade de Milão, que estava separada do
verdadeiro Sumo Pontífice, unindo-a sob a sua obediência.
Foram com o santo para Milão dois cardeais legados `a latere':
Guido, bispo de Pisa, e Mateus, bispo albanês e, por vontade de
São Bernardo, também Gofredo, bispo carnotense, grande amigo seu
e homem de grande prudência e autoridade. Quando estavam a sete
milhas de Milão saíu toda a cidade para recebê-los, eclesiásticos
e seculares, ricos e pobres, cavaleiros e oficiais e, sem repararem
nos cardeais que vinham com ele, lançavam-se aos seus pés,
beijando-os e considerando ser grande felicidade poderem vê-lo,
ouvi-lo, falar-lhe e cortar-lhe de seu pobre hábito pedaços de
pano como relíquias, com as quais curavam-se muitos enfermos; e por
mais que o santo repreendesse ao povo pela honra que lhe faziam e o
exortava a honrarem e reverenciarem àqueles prelados que, por serem
cardeais da santa Igreja Romana e legados do Vigário de Cristo,
eram dignos de toda veneração, não houve remédio e assim, com este
aplauso e regozijo e multidão de gente, entrou em Milão. Dali
voltou à Claraval guiado sempre pela mão do Senhor,com
extraordinário regozijo de todos os seus filhos e satisfação de sua
alma; porque pensava que se haviam acabado os trabalhos daqueles
assuntos complicados e distrações, e que podia naquele lugar repousar
e cuidar de seu aproveitamento com maior sossego. Mas não sucedeu
conforme pensava, porque o Papa, achando-se ainda cercado de
trabalhos por toda a parte e pressionado por Rogério, rei da
Sicília, o qual favorecia o anti- papa, ordenou-lhe que se
dirigisse de novo a Roma, porque não encontrava quem melhor o pudesse
ajudar do que São Bernardo, como a experiência o havia ensinado.
Obedeceu o grande servo do Senhor como verdadeiro filho da
obediência. Foi Roma, e dali a encontrar-se com o rei, e conduziu
a muitos para a obediência de Inocêncio, inclusive ao próprio
Pedro de Pisa, famoso jurista que representava os interesses de
Anacleto, convencendo também o rei Rogério tão manifestamente que
ele não podia mais alegar ignorância. Este, porém, cego pela
paixão e cobiçando os bens da Igreja que havia usurpado, não quis
fazer demonstração pública, como São Bernardo o aconselhava.
Mas, pelas orações do santo abade, Deus deteve o cisma e os males
que dele resultavam com a morte do falso pontífice Anacleto, o qual,
assaltado por uma pestilenta enfermidade que durou três dias,
impenitente, passou desta vida para dar conta na outra ao eterno juiz
dos danos que com sua ambição e tirania havia causado à Igreja.
Logo que morreu Anacleto os de seu partido elegeram-lhe outro
sucessor; mas este, com menor conselho, se dirigiu à noite até
São Bernardo e, largadas as insígnias de sumo pontífice que havia
tomado, conduzindo consigo o próprio santo, lançou-se aos pés do
verdadeiro pontífice Inocêncio, pelo qual foi benignamente
recebido. E com isto se acabou aquele cisma tão longo e tão
lastimoso, dando todos, depois do Senhor, a honra e o louvor deste
final tão desejado ao santo abade que, havendo gastado sete anos nesta
empreitada, pôde concluí-la com o favor do céu.
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