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Eis uma questão impossível de se responder inteiramente em poucas
páginas. Segundo Hugo de São Vítor, o estudo deve conduzir à aquisição da Ciência
Sagrada, através da qual o aluno possa conduzir-se, por sua vez, no caminho da
virtude e da contemplação. Surge então a questão de o que, segundo este modo de se
entender o estudo, deve-se estudar ou deixar de estudar.
A primeira resposta que encontramos nos escritos de Hugo de São Vitor
a este respeito é que se deve estudar tudo, sem desprezar nada. Uma afirmação
como esta pode parecer, num primeiro exame, um despropósito, mas Hugo, neste
ponto, foi bastante claro. Segundo ele nos explicou no início do Opúsculo sobre o
Modo de Aprender, o aluno que despreza de antemão qualquer forma de
conhecimento, o aluno que "tem como vil alguma ciência ou alguma escritura",
mostra não possuir com isto a virtude da humildade, e a humildade é, segundo
Hugo, "o princípio de todo o aprendizado". E no sexto livro do Didascalicon ele
vai ainda mais longe; ali ele nos diz o seguinte:
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"Eu ouso afirmar que nunca desprezei nada que
pertencesse ao estudo; ao contrário, freqüentemente
aprendi muitas coisas que outros as tomariam por
frívolas ou mesmo ridículas. Algumas destas coisas
foram pueris, é verdade; todavia, não foram inúteis.
Não digo isto para jactar-me de minha ciência, mas
para mostrar que o homem que prossegue melhor é o
que prossegue com ordem, não o homem que,
querendo dar um grande salto, se atira no precipício.
Assim como as virtudes, assim também as ciências tem
os seus degraus. É certo, tu poderias replicar:
`Mas há coisas que não me parecem ser de
utilidade. Por que eu deveria manter-me
ocupado com elas?'
Bem o disseste. Há muitas coisas que, consideradas
em si mesmas, parecem não ter valor para que se as
procurem, mas, se consideradas à luz das outras que
as acompanham, e pesadas em todo o seu contexto,
verifica-se que sem elas as outras não poderão ser
compreendidas em um só todo, e, portanto, de forma
alguma devem ser desprezadas. Aprende a todas, verás
que nada te será supérfluo. Uma ciência resumida não
é uma coisa agradável".
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Se este texto do Didascalicon é claro ao afirmar que o estudo não deve excluir de
seu interesse nenhuma forma de conhecimento, ele não é porém menos claro ao
explicar as razões pelas quais se recomenda tal preceito. Hugo quer que o aluno
nada exclua de seu interesse para com isto aprender a buscar metodicamente a
integridade do conhecimento que é um todo ordenado cujas partes principais não
podem ser compreendidas em um só conjunto sem o concurso das partes
secundárias. Se o estudante, portanto, não deve desprezar nenhuma forma de
conhecimento, isto não significa que deve aplicar-se a todas por igual ou preferir
umas às outras sem critério. Indubitavelmente, segundo Hugo de São Vitor, a parte
principal do estudo é o conhecimento das Sagradas Escrituras e da Ciência Sagrada
que dela deriva.
O que, porém, e como deve ser estudado para se alcançar o
conhecimento desta Ciência Sagrada é algo que não é possível de ser respondido
nas poucas páginas deste texto. Há, entretanto, pelo menos um critério tão
importante que não pode deixar de ser aqui mencionado. Pelas explicações e pelos
exemplos dados por Hugo de São Vítor, depreende-se que, independentemente da
questão do conteúdo do estudo, ele deve ser conduzido preferencialmente através
dos textos cujos autores escreveram manifestamente sob a influência dos dons de
entendimento e sabedoria, e que são, em geral, os escritos dos teólogos que também
foram santos. A razão desta exigência consiste em que, conforme já havíamos
apontado, o estudo deve ordenar-se, como ao seu fim último, à contemplação.
Chama-se contemplação àquela operação da alma que surge no homem quando, sob
a influência dos dons do Espírito Santo de entendimento e de sabedoria, a uma fé
firme, constante e pura se acrescenta uma caridade intensa. Quando o homem
consegue viver as virtudes teologais num grau tão alto a ponto de poder elevar-se à
contemplação, esta se torna um dos principais meios de santificação para o homem.
As obras dos teólogos em que se manifesta a influência do dom de entendimento ou
do dom de entendimento elevado pelo dom de sabedoria são obras que derivam,
portanto, do próprio exercício da vida contemplativa. "Elas são doces e repletas
de amor pela vida eterna", diz Hugo de São Vitor no quinto livro do
Didascalicon. O convívio do aluno com elas, ao contrário das demais obras, ainda
que tratem dos mesmos assuntos, habitua-o gradativamente a perceber que elas têm
uma origem diversa dos livros comuns e acaba por auxiliá-lo a conduzir-se na
busca da contemplação. Ora, é justamente este o fim a que se ordena o estudo, e é
por isto que as próprias Sagradas Escrituras já distingüiam entre estes e os demais
livros:
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"As palavras dos sábios",
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diz o Eclesiastes,
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"são como aguilhões,
e como cravos fixados no alto,
que por meio do conselho dos Mestres
nos foram comunicadas
pelo único Pastor.
Não busques, pois,
meu filho,
mais alguma coisa além destes.
Não se põe termo em multiplicar livros,
e a meditação freqüente é aflição da carne".
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