João Cassiano

XIVª CONFERÊNCIA DOS
PADRES DO DESERTO

O Abade Nésteros e a Ciência Espiritual

- condensado da tradução de
D. Timóteo Amoroso Anastácio -

Diálogo entre o Abade Nésteros
e os monges Cassiano e Germano


NÉSTEROS

Existem neste mundo muitas espécies de ciências, e sua variedade corresponde à das artes e profissões. Nenhuma, entretanto, existe que não seja ensinada conforme uma ordem e um método próprios, pelos quais podem adquirí-las os que as procuram.

Se, portanto, estas artes só se aprendem mediante linhas certas e particulares, quanto mais a disciplina e a profissão da nossa vida religiosa, que visa contemplar os arcanos das coisas invisíveis e busca não vantagens presentes, mas o prêmio da eterna recompensa, exige uma ordem e um método bem determinado!

Dupla é a ciência da vida religiosa: a primeira, a prática, isto é, a ativa, consuma-se no trabalho de emendar os costumes e se purificar dos vícios. A segunda, a teorética, consiste na contemplação das coisas divinas e no conhecimento das significações mais sagradas.

Quem quiser chegar à teorética tem que primeiro, necessariamente, adquirir a ciência ativa, empenhando-se com todo o zelo e virtude. A ciência prática podemos possuí-la sem a teorética, mas a teorética não pode, absolutamente, ser conseguida sem a ativa. São como dois degraus ordenados e distintos para que a humildade humana possa subir para as alturas. Se eles se sucedem da maneira que dissemos, é possível chegar ao cume. É, pois, em vão que tende à visão de Deus quem não evita o contágio dos vícios:

"O Espírito de Deus detesta o fingimento e não habita num corpo escravo do pecado".

Sab. 1, 5 e 4

A perfeição da vida ativa consiste em dois pontos. O primeiro é o modo de conhecer a natureza dos vícios e o método de curá-los. O segundo é discernir a ordem das virtudes e formar com a sua perfeição a nossa alma. De que maneira, na verdade, poderia atingir o plano das virtudes quem não pôde compreender a natureza dos vícios nem se esforçou para extirpá-los? Saibamos, no entanto, que nos custará duas vezes mais a pena e o suor para expulsar os vícios do que para adquirir as virtudes. Isto nós não compreendemos por uma conjectura pessoal, mas é o que nos ensina a palavra daquele que é o único a conhecer as forças e a condição da sua criatura:

"Eis que eu hoje te estabeleci sobre as nações e sobre reinos, a fim de que arranques e destruas, ponhas a perder e dissipes, edifiques e plantes".

Jer. 1, 10

Para expelir o que é nocivo, ele designou quatro coisas necessárias; para tornar-se perfeito nas virtudes e adquirir tudo o que diz respeito à justiça, somente duas.

A prática que, conforme dissemos, consiste em dois pontos, divide-se em muitas profissões e ocupações. Alguns, com efeito, dirigem toda a sua intenção para a vida secreta do deserto e para a pureza do coração. Outros dedicaram a sua solicitude e zelo a instruir irmãos e à cura vigilante dos cenóbios. Outros se comprazem no pio serviço de hospitalidade e de caridade prestada a estrangeiros em hospitais. Outros ainda, escolhendo o cuidado de enfermos, ou a mediação em favor dos miseráveis e oprimidos, ou que se aplicaram ao ensino ou, ainda, à distribuição de esmola aos pobres, tiveram um lugar eminente entre os maiores e mais santos, por sua afeição e bondade.

É útil e conveniente a cada um que conforme o propósito de vida que escolheu ou a graça que recebeu, embora louvando e admirando as virtudes dos outros, não se afaste, de modo algum, da profissão que abraçou uma vez por todas, sabendo que, segundo o Apóstolo, um é o corpo da Igreja, mas muitos são os seus membros. Costuma acontecer aos que ainda não estão bem firmes na profissão que abraçaram que, ouvindo louvores referentes a outros que vivem em situações diferentes e praticam outras virtudes que as suas, de tal modo se inflamam que desejam imitá-los imediatamente em sua disciplina. Os esforços que a fraqueza humana envida em tais circunstâncias são necessariamente vãos, pois é impossível que um só e mesmo homem brilhe ao mesmo tempo em todas as virtudes acima enumeradas. Ao pretender todas juntas, acontece inevitavelmente que enquanto vai atrás de todas, não consegue nenhuma integralmente.

Muitos são os caminhos que levam a Deus. Cada um, portanto, siga o que ele tomou até o fim, com irrevogável fidelidade, para ser perfeito em qualquer profissão.

Mas, voltemos à exposição da ciência que constituíu o exórdio desta conversação. Como dissemos acima, a prática se divide em muitas profissões e atividades. A teorética, por seu lado, se divide em duas partes: a interpretação histórica e a inteligência espiritual. É por isto que Salomão, ao enumerar a graça multiforme da Igreja, acrescentou:

"Todos os que estão junto dele, têm uma dupla vestimenta".

Prov. 31, 21

Quanto à ciência espiritual, ela compreende três gêneros: a tropologia, a alegoria e a anagogia, dos quais se diz nos Provérbios:

"Quanto a ti, escreve estas coisas em tríplices letras sobre a largura de teu coração".

Prov. 22, 20

A história abraça o conhecimento das coisas passadas e visíveis, que o Apóstolo narra deste modo:

"Está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava e o outro da mulher livre. O que nasceu da escrava, nasceu segundo a carne; o que nasceu da livre, em virtude da promessa".

Gal. 4, 22-23

O que se segue, pertence à alegoria, porque aí se diz que as coisas que aconteceram realmente prefiguravam um outro mistério:

"Estas mulheres",

continua ele,

"são as duas Alianças. Uma, a do Monte Sinai, gerando na escravidão, e é Agar. O Sinai é um monte da Arábia, que simboliza a Jerusalém de agora, que é escrava com seus filhos".

Gal. 4, 24-25

A anagogia se eleva dos mistérios espirituais aos segredos do céu, mais sublimes e sagrados, como se vê no que o Apóstolo acrescenta:

"Mas a Jerusalém do alto é livre, e é ela que é nossa mãe. Porque está escrito:

`Alegra-te, estéril que agora dás à luz, irrompe em gritos, tu que não geravas, porque os filhos da abandonada são mais numerosos do que os daquela que tinha esposo'".

Gal. 4, 26-27

A tropologia é a explicação moral relativa à purificação da vida e à formação ascética, como se por estas duas Alianças compreendêssemos a prática e a ciência da teorética. Ou que quiséssemos tomar Jerusalém ou Sião pela alma humana, segundo estas palavras:

"Louva, Jerusalém, o teu Senhor; louva o teu Deus, Sião".

Salmo 147, 12

Deste modo, portanto, as quatro figuras, se assim quisermos, se reúnem em uma só, de maneira que a mesma e única Jerusalém pode ser entendida em quatro acepções diferentes. Segundo a história, é a cidade dos Judeus; segundo a alegoria, a cidade celeste; segundo a tropologia, é alma humana, que é, sob esse nome, freqüentemente increpada ou louvada pelo Senhor. Destes quatro gêneros de interpretação diz o bem aventurado Apóstolo:

"Agora, pois, irmãos, se eu venho a vós falando em línguas, que proveito vos trago, a não ser que vos fale em revelação, ou em ciência, em profecia ou em doutrina?"

1 Cor. 14, 6

A revelação se refere à alegoria, pela qual aquilo que a narrativa histórica esconde se torna manifesto pelo sentido espiritual.

A Ciência, também lembrada pelo Apóstolo, representa a tropologia. Esta nos faz discernir, mediante um exame prudente, a utilidade ou decência das coisas que dependem do juízo prático.

A Profecia, que o Apóstolo pôs em terceiro lugar, significa a anagogia, que transfere o discurso para as coisas futuras e invisíveis.

A Doutrina expõe simplesmente a ordem da história, em que não há nenhum sentido mais oculto do que aquele que soa nas próprias palavras.

Se, portanto, sois solícitos em chegar à luz da ciência espiritual, não por vício de vaidade e jactância, mas pela graça da purificação, inflamai-vos, primeiro, do desejo daquela bem aventurança da qual se diz:

"Bem aventurados os puros de coração, porque verão a Deus",

Mat. 5, 8

a fim de que possais alcançar também aquela outra da qual fala o anjo a Daniel:

"Os que tiverem sido doutos, refulgirão como o esplendor do firmamento, e os que instruem a muitos para a justiça, brilharão como as estrelas nas eternidades sem fim".

Dan. 12, 3

E noutro profeta:

"Acendei em vós a luz da ciência, enquanto é tempo".

Os. 10, 12

Guardando esta diligência que eu sinto em vós pela leitura, apressai-vos, com todo o zelo, para possuir o mais depressa possível a plenitude da ciência prática, isto é, moral. Sem ela é impossível ter a pureza teorética de que falamos. E esta só a conseguem, como se fosse, por assim dizer, um prêmio, aqueles que, depois de muito servir numa vida de obras e trabalhos, se tornam perfeitos, não pelo efeito das palavras de seus mestres, mas pela virtude de seus próprios atos.

Não é na meditação da Lei que eles adquirem a inteligência, mas como o fruto das suas obras. Com o salmista, eles cantam:

"Pelos vosso mandamentos, eu tive a inteligência".

Salmo 118, 104

E, depois de terem eliminado as suas paixões, dizem com confiança:

"Eu salmodiarei, e terei a inteligência no caminho imaculado".

Salmo 100, 1-2

Se, portanto, quereis preparar no vosso coração o sagrado tabernáculo da ciência espiritual, purificai-vos do contágio de todos os vícios e despojai-vos das preocupações deste século. É, com efeito, impossível que a alma, envolvida mesmo ligeiramente pelas preocupações do mundo, alcance o dom da ciência, se torne fecunda em sentidos espirituais e guarde com tenacidade as santas leituras.

Observai, pois, antes de tudo, o empenho em ordenar à vossa boca um completo silêncio, a fim de que não as anulem por uma vã exaltação nem o vosso zelo na leitura, nem o vosso esforço animado por tanto desejo.

E nisso está o primeiro passo na ciência prática: receber os ensinamentos e as palavras de todos os antigos de coração atento e boca, por assim dizer, muda, e conservá-los com solicitude na alma.

A quem, somente em vista do louvor humano, insiste no esforço da leitura, é impossível merecer o dom da verdadeira ciência. Os que são prisioneiros desta paixão estão forçosamente escravizados a outros vícios, sobretudo a soberba. Sê, portanto, em tudo

"pronto para escutar, mas lento para falar",

Tg. 1, 19

para que não se aplique a ti o que nota Salomão:

"Se vires um homem veloz na palavra, fica sabendo que no insensato há mais esperança do que nele".

Prov. 29, 20

Urge que não vos deixeis levar pelo exemplo daqueles que adquiriram habilidade em discutir e uma certa afluência verbal. Eles podem dissertar com elegância e facúndia sobre tudo que quiserem e passam por ter a ciência espiritual aos olhos dos que não são capazes de perceber o que eles são. Pois uma coisa é ter facilidade em falar e certo brilho no discurso, e outra é entrar até o coração e a medula das palavras celestes e contemplar, com o olhar mais puro do coração, os mistérios mais profundos e escondidos. Isto não o pode nenhuma ciência humana nem erudição secular possuir, mas somente a pureza da alma, pela iluminação do Espírito Santo.

Se, por conseguinte, queres chegar à ciência verdadeira das Escrituras, apressa-te a conseguir, primeiro, uma invariável humildade de coração. É ela que te levará à ciência, não a que enche de vento (1 Cor. 8,1), mas a que ilumina, pela perfeição da caridade. É impossível a uma alma impura obter a ciência espiritual.

Depois disto, eliminadas as preocupações e os pensamentos terrenos, esforça-te, de toda maneira, por dedicar-te assiduamente à leitura sagrada, de modo que a meditação contínua impregne a tua alma e a forme à sua própria imagem, fazendo dela, por assim dizer, uma arca da aliança (Heb. 9, 4-5), com as duas tábuas de pedra, isto é, a eterna firmeza dos dois Testamentos: a urna de ouro, símbolo de uma memória oura e sem mancha, que conserva com tenacidade o maná escondido, vale dizer, a eterna e celeste doçura dos sentidos espirituais e do pão dos anjos, e a vara de Aarão, quer dizer, o estandarte da salvação de nosso sumo e verdadeiro pontífice Jesus Cristo. Todas estas coisas são protegidas por dois querubins, isto é, a plenitude da ciência histórica e espiritual. Porque Querubim significa "plenitude de ciência".

Devemos, por conseguinte, ter todo o empenho em aprender de cor a série das Sagradas Escrituras e em repassá-las na memória, sem cessar. Esta meditação contínua nos produzirá um duplo fruto. Primeiro, enquanto a atenção da mente está ocupada em ler e em preparar as leituras, não se deixará cativar pelos laços dos maus pensamentos. Em segundo lugar, à medida em que cresce, por este esforço, a renovação de nossa mente, começa também a mudar a face das Escrituras, e a beleza de uma compreensão mais sagrada aumenta com os nossos progressos; elas se acomodam à capacidade dos sensos humanos, aparecendo terrena para o homem carnal, e divina para os espirituais.

Para mostrar melhor, por meio de um exemplo, o que tentamos afirmar, basta citar um testemunho da Lei de Moisés. Por ele, vou provar que todos os preceitos celestes se estendem a todo o gênero humano, mas segundo a medida do estado de cada um de nós.

Está escrito na Lei:

"Não fornicarás".

O homem ainda prisioneiro das paixões e obscenidades da carne guardará proveitosamente este preceito, tomando-o simplesmente em seu sentido literal. Mas aquele que já se desprendeu da ação torpe e do afeto impuro, cumpre-lhe observá-lo em seu sentido espiritual, tendo cuidado para não cair em uma forma mais sutil do pecado de fornicação que consiste na divagação dos pensamentos. Todo pensamento que afasta, por pouco que seja, de Deus, e não somente os pensamentos torpes, mas também qualquer pensamento inútil é, aos olhos do perfeito, uma fornicação impura.



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