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O leitor das Sagradas Escrituras deverá aprender primeiramente como
reconhecer quais são as Escrituras que devem ser dignamente honradas
com o nome de Sagradas. Pois, de fato, alguns dos que ensinaram
pelo espírito deste mundo deixaram escrito muitas coisas. A
Lógica, a Matemática e a Física ensinam verdades, mas não são
capazes de alcançar aquela verdade na qual se encontra a salvação da
alma, sem a qual será inútil alcançar todas as demais verdades. Os
filósofos pagãos também escreveram tratados sobre Ética, nos quais
descreveram alguns membros das virtudes, truncados, porém, do corpo
da bondade, pois os membros das virtudes não podem ter vida sem o
corpo da caridade divina. Todas as virtudes formam um só corpo, cuja
cabeça é a caridade, e os membros do corpo não podem viver se não
são sensificados pela cabeça. Os escritos, pois, em que não é
possível encontrar a verdade sem contaminação de erro, nem são
capazes de restaurar a alma conduzindo-a ao verdadeiro conhecimento de
Deus e ao amor, não são dignos de serem considerados sagrados.
Somente são corretamente chamados de sagrados aqueles escritores que
foram inspirados pelo Espírito de Deus e que, administrados por
aqueles que falaram pelo Espírito de Deus, tornam o homem divino,
restaurando-o à semelhança de Deus, instruindo-o ao seu
conhecimento e exortando-o ao seu amor. Nestas Escrituras tudo o que
é ensinado é a verdade; tudo o que é preceituado é a bondade; tudo
o que é prometido é a felicidade. Pois Deus é verdade sem
falácia, bondade sem malícia, felicidade sem miséria.
Se queres, pois, distinguir as Escrituras Sagradas das demais que
não merecem este nome, distingue primeiro e considera diligentemente
por uma reta consideração a própria matéria a respeito da qual e na
qual versa a sua abordagem (1).
Duas são as obras de Deus nas quais se resume tudo o que foi feito.
A primeira é a obra da criação, pela qual foram feitas as coisas
que não existiam; a segunda é a obra da restauração, pela qual
foram refeitas as coisas que haviam perecido. A obra da criação
consiste na criação das coisas do mundo com todos os seus elementos.
A obra da restauração é a Encarnação do Verbo com todos os seus
mistérios, seja aqueles que o precederam desde o início dos
séculos, seja aqueles que o seguiram até o fim do mundo.
A matéria das Sagradas Escrituras deve ser considerada também
quanto a esta divisão; isto é, deves considerar aquilo de que tratam
e o modo com que o tratam, para que pela matéria e pelo modo possas
distingüi-las do restante dos demais livros que se escrevem. De
fato, a matéria de todos os demais livros consiste nas obras da
criação, enquanto que a matéria das Sagradas Escrituras consiste
na obra da restauração. Esta é a primeira distinção a ser feita
quanto à matéria de que tratam os livros e as escrituras diversas.
Além disto, os demais livros, se ensinam alguma verdade, não o
fazem sem o contágio do erro; se parecem recomendar alguma bondade,
ou ela vem mesclada com a malícia, de modo a não ser pura, ou pelo
menos é sem o conhecimento e o amor de Deus, de modo a não ser
perfeita (2).
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