|
Vimos assim como uma série de acontecimentos circunstanciais deram
rumo à vida de Hugo de S. Vitor. Seu próprio tio bispo havia
trazido para a Saxônia os primeiros cônegos vitorinos, de quem ele
recebeu sua primeira formação. As circunstâncias de uma guerra
obrigaram-no a transferir-se ainda jovem para a França, onde
professou no mosteiro que havia dado origem, poucos anos antes, aos
Cônegos de S. Vitor. Neste mosteiro organizava-se uma grande
biblioteca que daria acesso a Hugo ao que de melhor havia sido escrito
pela tradição cristã. Mais importante do que tudo isso, porém,
foi o fato de que, anexo ao mosteiro, estava-se organizando uma
escola de Teologia em uma cidade que era um dos pólos do renascimento
cultural da época. A organização e a direção desta escola
nascente seria dentro em breve confiada ao próprio Hugo, e isto
acabaria por dar à sua obra escrita contornos inexistentes nas de
outros teólogos. Raramente, senão mesmo nunca em toda a história,
um teólogo da envergadura de Hugo de S. Vitor, homem de
inteligência brilhante, santidade manifesta e nítida vocação
docente, tendo diante de si tantos estudantes de tão notável talento
que lhe chegavam a São Vitor provenientes de todas as partes do
mundo, como o foram, por exemplo, Ricardo de S. Vitor e Pedro
Lombardo, se viu obrigado não apenas a ensinar, mas também a
explicar aos alunos como e por que se deveria aprender, orientar os
professores sobre como e por que se deveria ensinar, e à escola como e
por que se deveria organizar.
O resultado deste conjunto de fatores foi uma obra teológica em que
não apenas a Pedagogia ocupa um lugar de altíssimo relevo, mas
principalmente em que os elementos pedagógicos não podem ser expostos
dissociados da profundidade com que são tratados os mistérios da fé e
do contínuo conduzir à perfeição da vida cristã. Sua pedagogia é
uma forma de ascese cujo lugar próprio é uma escola, em que não é
possível separar a vida intelectual da vida espiritual como atividades
independentes uma da outra, e em que se cria uma situação em que
ambas estas coisas interagem entre si no sentido de se amplificarem
mutuamente. Que isto seja possível é algo que, fora da escola de
S. Vitor, temos dois exemplos muito conhecidos em S. Antônio de
Pádua e em S. Tomás de Aquino.
A finalidade da Pedagogia, segundo Hugo de S. Vitor, é a mesma
de qualquer espiritualidade, e é conduzir à contemplação. A
diferença entre a espiritualidade vitorina e outras correntes de
espiritualidade é que, para alcançar este objetivo, Hugo se utiliza
justamente da escola, entendida precisamente no sentido tradicional do
termo, mas evidentemente organizada para este fim, enquanto que para
as demais correntes a escola pode ser um elemento estranho, um
complemento ou, se parte integrante da vida espiritual, sempre um
elemento secundário. Seja como for, de modo geral, fora dos moldes
vitorinos, não é cursando uma escola, nem mesmo uma escola de
Teologia, que se chega à vida contemplativa; as escolas não são
organizadas para conduzir à contemplação, mas para transmitir certos
conhecimentos ou conferir determinadas habilidades práticas.
Segundo Hugo de S. Vitor, porém, não é necessário subverter a
essência do que sempre se entendeu por ser uma escola para através
dela conduzir-se o aluno à contemplação; ao contrário, esta
finalidade é a própria essência da Pedagogia e, se já existiu
alguma vez algo que subvertesse a Pedagogia, esta subversão foi
exatamente aquela pela qual uma escola, e principalmente uma escola de
Teologia, deixou de significar o mesmo que um modo de conduzir à
sabedoria e à vida espiritual.
O que Hugo de S. Vitor entende por contemplação? Uma primeira e
simples, mas profunda explicação a respeito encontra- se num
opúsculo intitulado "Sobre o modo de Aprender e de Meditar".
Nele Hugo afirma que há três operações básicas da alma racional,
as quais constituem entre si uma hierarquia, e que devem, portanto,
ser desenvolvidas uma em seqüência à outra.
Hugo denomina a primeira de pensamento. A segunda, de meditação.
A terceira, de contemplação.
O pensamento ocorre, diz Hugo,
|
"quando a mente é tocada transitoriamente
pela noção das coisas,
ao se apresentar a própria coisa,
pela sua imagem,
subitamente à alma,
seja entrando pelo sentido,
seja surgindo da memória" (13).
|
|
Entre os ensinamentos de Hugo de S. Vitor entra aqui o do papel que
a leitura, ou o estudo, adquire na Pedagogia. A importância da
leitura reside em que ela pode ser utilizada para estimular a primeira
operação da inteligência que é o pensamento. Mas ao mesmo tempo a
limitação da leitura está em que ela não pode estimular as
operações seguintes da inteligência, a meditação e a
contemplação, a não ser indiretamente, na medida em que a leitura
estimula o primeiro estágio do pensamento que é pressuposto dos
demais. Daqui se segue a conclusão de que uma escola que se limita a
fazer o aluno estudar é uma escola que está confinando as
potencialidades da inteligência humana apenas ao seu estágio mais
elementar.
A segunda operação da inteligência, continua Hugo, é a
meditação. A meditação baseia-se no pensamento, e é
|
"um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento,
esforçando-se para explicar algo obscuro,
ou procurando penetrar no que ainda nos é oculto"(14).
|
|
Segundo as palavras de Hugo,
|
"na leitura,
mediante regras e preceitos,
somos instruídos a partir das coisas
que estão escritas.
A meditação toma depois,
por sua vez,
seu princípio da leitura,
embora não se realizando
por nenhuma das regras
ou dos preceitos da leitura.
A meditação é uma cogitação freqüente com conselho,
que investiga prudentemente a causa e a origem,
o modo e a utilidade de cada coisa" (15).
|
|
Mas acima da meditação e baseando-se nela, existe ainda o que Hugo
chama de contemplação. Ele explica o que ela é e no que difere da
meditação do seguinte modo:
|
"A contemplação é uma visão livre e perspicaz da alma
de coisas que existem em si de modo amplamente disperso.
Entre a meditação e a contemplação
o que parece ser relevante
é que a meditação é sempre de coisas ocultas
à nossa inteligência;
a contemplação, porém, é de coisas que,
segundo a sua natureza,
ou segundo a nossa capacidade,
são manifestas;
e que a meditação sempre se ocupa em buscar
alguma coisa única,
enquanto que a contemplação se estende
à compreensão de muitas,
ou também de todas as coisas.
A meditação é, portanto,
um certo vagar curioso da mente,
um investigar sagaz do obscuro,
um desatar o que é intrincado.
A contemplação é aquela vivacidade da inteligência,
a qual, já possuindo todas as coisas,
as abarca em uma visão plenamente manifesta,
e isto de tal modo que aquilo que a meditação busca,
a contemplação possui" (16).
|
|
Isto é, pois, o que é contemplação para Hugo de S. Vitor.
Naturalmente não é só isto. Trata-se de uma explicação
inicial, mas atrás da qual se esconde um universo que o leitor de
primeira viagem sequer pode suspeitar. Não se trata, porém, senão
de uma forma muito distante, daquilo que ocorre de modo espontâneo com
todo aluno quando ele terminou de estudar algum assunto mais vasto e
reflete sobre o conjunto dos conhecimentos adquiridos. Esta forma tão
rudimentar de contemplação não é aquilo a que Hugo queria
propriamente referir-se quando fala desta operação da inteligência;
ao contrário, a contemplação de que Hugo trata é a mais elevada e
profunda das operações que a inteligência pode alcançar, algo pelo
qual esta faculdade pode ser levada até os limites de sua
perfectibilidade, e que, ao contrário desta que acabamos de
considerar e que ocorre quase que espontaneamente com todos os
estudantes, a contemplação a que Hugo se refere é algo que exige
uma dedicação muito maior do que a exigida pelo estudo que lhe deu
início. E, tanto é assim, que no V Livro do Didascalicon Hugo
afirma que o estudo é para os principiantes, a contemplação para os
perfeitos (17).
Seja como for, porém, na pedagogia vitorina a contemplação
principia na leitura ou no estudo. Isto significa que requer-se uma
teoria da leitura em que o mestre ou o aluno saiba como utilizar-se
dela para produzir o pensamento e ao mesmo tempo compreenda que há
outros processos mais elevados que devem ser desenvolvidos mas que podem
ser impedidos por uma concepção errônea do que seja estudar.
O assunto é tão importante que Hugo dedicou quase inteiramente uma
de suas principais obras pedagógicas, isto é, os seis primeiros dos
sete livros do Didascalicon, ao problema do estudo e da leitura.
Um rápido exame destes seis primeiros livros do Didascalicon nos
mostra que neles uma das primeiras preocupações de Hugo foi responder
à pergunta sobre o que, segundo este modo de entender a Pedagogia,
se deve ou não se deve estudar. A resposta que ele dá a esta
pergunta é que se deve estudar tudo. Pode parecer um despropósito,
mas Hugo, neste ponto foi bastante claro. Segundo ele nos explica no
início do Opúsculo sobre o Modo de Aprender, o aluno que despreza
de antemão qualquer forma de conhecimento, o aluno "que tem como vil
alguma ciência ou alguma escritura", mostra não possuir com isto a
virtude da humildade, e a humildade, segundo Hugo, "é o princípio
de todo aprendizado" (18). E no sexto do Didascalicon ele vai
ainda mais longe; em uma das raríssimas páginas em que ele fala de si
mesmo, Hugo nos diz o seguinte:
|
"Eu ouso afirmar que nunca desprezei nada que pertencesse ao estudo;
ao contrário, freqüentemente aprendi muitas coisas que outros as
tomariam por frívolas ou mesmo ridículas. Algumas destas coisas
foram pueris, é verdade; todavia não foram inúteis. Não digo
isto para jactar-me de minha ciência, mas para mostrar que o homem
que prossegue melhor é o que prossegue com ordem, não o homem que,
querendo dar um grande salto, se atira no precipício. Assim como as
virtudes, assim também as ciências têm os seus degraus. É certo,
tu poderias replicar:
`Mas há coisas que não me parecem ser de utilidade. Por que eu
deveria manter-me ocupado com elas?'
Bem o disseste. Há muitas coisas que, consideradas em si mesmas,
parecem não ter valor para que se as procurem, mas, se consideradas
à luz das outras que as acompanham, e pesadas em todo o seu contexto,
verifica-se que sem elas as outras não poderão ser compreendidas em
um só todo, e, portanto, de forma alguma devem ser desprezadas.
Aprende a todas, verás que depois nada te será supérfluo. Uma
ciência resumida não é uma coisa agradável" (19).
|
|
Se este texto mostra que o Didascalicon é claro ao afirmar que o
estudante não deve excluir de seu interesse nenhuma forma de
conhecimento, ele também não é menos claro ao explicar as razões
pelas quais se recomenda tal preceito. O estudante que, no afã de
aprender de tudo, muda constantemente seu objeto de interesse, não
entendeu o que Hugo lhe quer ensinar:
diz Hugo,
|
"pertence à leviandade;
o exercício, porém, à virtude" (20).
|
|
Hugo quer que o aluno nada exclua de seu interesse para com isto
aprender a buscar metodicamente a integridade do conhecimento que é um
todo ordenado cujas partes principais não podem ser compreendidas em um
só conjunto sem o concurso das partes secundárias. Por isto é que o
texto acima adverte que "as ciências têm os seus degraus" e que é
preciso nelas "prosseguir com ordem":
|
"Aqueles que estão sempre desprezando
o velho pelo novo
e aqueles que sobem pelos inferiores aos superiores",
|
|
diz Hugo de S. Vitor em outro lugar,
|
"correm por caminhos muito diversos;
aquele que busca a mudança é tão fastidioso
como é aplicado
aquele que apetece o aperfeiçoamento" (21).
|
|
Outro aspecto desta questão que também deve ser considerado é que,
se o estudante não deve desprezar nenhuma forma de conhecimento, isso
não significa que deva aplicar-se a todas por igual. "Tudo aquilo
que tende a algum fim a ele se dirige segundo algum caminho próprio",
diz Hugo (22), e, em vista disso, há para o aluno, entre os
diversos conhecimentos, uma hierarquia de importância. O aluno,
portanto, deve aprender
|
"a julgar não só entre o dia e a noite,
mas também entre o dia e o dia.
Julgar entre o dia e a noite é dividir
as coisas más das boas;
julgar entre o dia e o dia é ter
o discernimento entre o bom e o melhor.
Muitos, não possuindo este discernimento,
trabalharam muito e progrediram pouco,
já que há alguns bens nos quais
há muito para se mover
e pouco para se promover,
enquanto que há outros que,
com pequeno trabalho,
produzem grande fruto" (23).
|
|
Os que não são capazes de julgar entre o dia e o dia, diz Hugo,
"perdem-se do reto caminho" (24):
|
"É de pessoas assim que a Sagrada Escritura
diz que estão sempre aprendendo,
mas nunca chegam ao conhecimento da verdade" (25).
|
|
A própria organização geral do Didascalicon nos fornece um outro
exemplo de como, segundo Hugo, há uma hierarquia de importância
entre os diversos conhecimentos. Dos sete livros do Didascalicon,
tal como se encontram no vol. 175 da Patrologia Latina de Migne,
os seis primeiros se dedicam ao tema do estudo e da leitura; e destes
seis, os três primeiros versam sobre o modo de estudar o conjunto dos
diversos conhecimentos e os três últimos sobre o modo de estudar
apenas as Sagradas Escrituras.
Numa obra anterior, os Princípios Fundamentais de Pedagogia,
procuramos tratar da Pedagogia, à luz das obras de Hugo de S.
Vitor, de um modo geral e, de um modo mais especial, da
contemplação, fim da mesma. Na Educação segundo a Filosofia
Perene tivemos idêntico objetivo, abordando o mesmo tema enquadrado
dentro da tradição mais vasta da qual Hugo de S. Vitor é apenas
uma parte. Neste presente livro nossa intenção será tratar a
respeito dos princípios relacionados com o estudo das Sagradas
Escrituras, tais como podem ser encontrados nas obras de Hugo de S.
Vitor.
Referências
|
(13) Hugo S. Vitor: De Modo Discendi et Meditandi, PL
175, 879.
(14) Ibidem, loc. cit.. (15) Ibidem, PL 175,
878-879. (16) Ibidem, PL 175, 879.
(17) Hugo S. Vitor: Didascalicon, L. V, C. 8-9;
PL 175, 797.
(18) Idem: De Modo Discendi et Meditandi; PL 175, 877.
(19) Idem: Didascalicon; L. VI, C. 6; PL 175, 799C-801A.
(20) Idem: De modo meditandi; PL 175, 997-8
(21) Ibidem: PL 175, 998. (22) Ibidem: PL
175, 996. (23) Ibidem: loc. cit..
(24) Idem: Didascalicon; L.V, C.5; PL 175, 794.
(25) Ibidem, loc. cit..
|
|
|
|