25. Primeiro êxito na reforma da Lei do Aborto.

Em meio à polêmica que vinha sendo criada desde 1930, o assunto foi vivamente debatido no Parlamento inglês. Foi sugerida, como resultado, a criação de uma Comissão Real para investigar o problema em todos os seus aspectos. A comissão foi designada em 1937 conjuntamente pelo Ministério da Saúde e pelo Home Office. Quando esta comissão terminava as última série de audiências concedidas aos interessados e peritos no assunto e já se preparava para considerar o que se escreveria no relatório final ocorreu um episódio envolvendo o Dr. Alec Bourne que marcaria todo o desenrolar dos fatos subseqüentes.

No dia 27 de abril de 1938 uma pequena estudante inglesa de 14 anos foi estuprada por um grupo de soldados. Algumas semanas depois um médico católico do Hospital St. Thomas recusou-se a interromper a gravidez. O médico teria dito à menina que a criança poderia vir a ser o futuro primeiro ministro da Inglaterra.

A menina foi então encaminhada à Dra. Joan Malleson, que havia sido uma das participantes da fundação da ALRA. Esta escreveu ao Dr. Alec Bourne, que havia feito parte do Comitê sobre o aborto da Associação Médica Britânica e já era nesta época também membro da ALRA. O Dr. Bourne respondeu a esta carta:

"Eu me sentirei feliz em levá-la ao Hospital St. Mary e fazer a curetagem. Já fiz isso antes e não terei a menor hesitação em fazê-lo novamente. Já disse também que a próxima vez em que se me apresentar a oportunidade, escreverei ao Procurador Geral e o convidarei a tomar uma atitude".

Num livro "O Credo de um Médico", escrito posteriormente pelo Dr. Bourne, ele próprio nos relata o que ocorreu em seguida:

"Coloquei a menina de cama sob observação durante oito dias, para estar certo do tipo de criança com quem eu estava tratando".

No oitavo dia Bourne tomou um esfregaço para exame patológico:

"O fato causou uma completa quebra na moral da menina. Toda a sua graciosidade desapareceu e ela começou a chorar além do controle. Isto me fêz imediatamente decidir que ela tinha que ser livrada de sua gravidez. Não havia nela nada da fria indiferença de uma prostituta".

No dia 14 de junho, no Hospital St. Mary, foi realizado o aborto. Antes de realizar a operação, o Dr. Bourne avisou a polícia de suas intenções:

"Eu acabei não escrevendo ao Procurador Geral",

diz o Dr. Bourne,

"porque achei que a própria polícia iria notificá-lo".

Ao inspetor de polícia o Dr. Bourne havia dito:

"Eu quero que o Sr. me prenda".

A polícia realmente prendeu o Dr. Bourne, mas não evitou o aborto. Ela chegou ao hospital na madrugada do dia seguinte, quando a operação já tinha sido terminada. Os jornais deram ampla cobertura aos fatos e o Dr. Bourne começou a receber centenas de cartas, inclusive de pessoas de renome mundial como Bertrand Russel, H. G. Wells e outros.

No dia primeiro de julho Bourne foi apresentado à corte de polícia. A promotoria explicou os fatos e afirmou que ele tinha abertamente desafiado a lei para que fosse ventilada a opinião de que a lei do aborto deveria ser relaxada. No British Medical Journal de 1938 lia-se: "Ele teve a excepcional sorte de ser capaz de achar aquele que, segundo o seu próprio ponto de vista, era um caso absolutamente perfeito".

Havia na época duas leis inglesas em vigor que tratavam a respeito do aborto. Uma datava de 1861, a outra era de 1929. A lei de 1861 punia com prisão perpétua todas as pessoas que estivessem envolvidas com o aborto, inclusive a própria gestante. Referia-se explicitamente à gestante ao citá-la nos seguintes termos: "toda mulher que esteja grávida que, com a intenção de provocar seu próprio aborto, administre ilegalmente veneno ou outra coisa nociva, ou procure utilizar ilegalmente qualquer instrumento ou outros meios para o mesmo propósito". A lei de 1861 dizia essencialmente que todas as pessoas que provocassem "ilegalmente" o aborto eram réus de prisão perpétua. Já a lei de 1929 de certa forma permitia o aborto terapêutico, mas os seus termos eram confusos e não funcionava na prática; ela dizia que a destruição da criança antes e depois do nascimento não deveria ser tratada como um delito se efetuada de boa fé e com o único propósito de preservar a vida da mãe. Não ficava claro porém se ela realmente se referia a um aborto propriamente dito ou apenas a certas complicações encontradas no momento de partos particularmente difíceis, eventos que naquela época eram mais dramáticos e bem mais freqüentes do que hoje em dia.

No julgamento do Dr. Bourne a defesa argumentou primeiramente sublinhando a juventude e a inocência da menina, a brutalidade do estupro, a experiência do Dr. Bourne e as excelentes condições nas quais o aborto foi realizado. Além disso o advogado afirmou que Bourne não podia ser considerado culpado porque a lei exigia que o aborto deveria ser realizado "ilegalmente" para que o crime fosse cometido.

O juiz não aceitou estes argumentos, declarando que a palavra "ilegalmente" estava incluída na lei por razões técnicas e não para sugerir uma alternativa. De fato, explicou o juiz, a palavra aparecia em muitas outras leis onde não poderia haver exceções concebíveis. Ficou bastante claro que o argumento baseado na palavra "ilegalmente" não era uma boa defesa; devido à cobertura da imprensa, porém, transformou-se em excelente publicidade.

O resultado deste primeiro julgamento foi a decisão de que o caso deveria ser levado a júri e juiz na Corte Suprema.

O julgamento na Corte Suprema se deu nos dias 18 e 19 de julho. A defesa começou recusando como jurado qualquer pessoa que acreditasse, baseada em convicções religiosas, que o aborto sempre é errado. A criança que tinha sofrido o estupro e o aborto foi chamada a testemunhar. Ela, e outras testemunhas, simplesmente contaram novamente os fatos ocorridos.

Após o depoimento das testemunhas, a defesa pediu que o juiz explicitasse o significado da palavra "ilegalmente" contida na lei. Segundo ela, esta palavra implicava que o aborto deveria ser considerado legal não apenas para salvar a vida da mãe, mas também para proteger a sua saúde. A defesa continuou argumentando que Bourne considerou que a operação deveria ser realizada quando o risco da operação era contrabalanceado pelo risco à saúde da mãe entendida no seu sentido mais amplo.

O Dr. Bourne recusou-se a distinguir claramente entre proteger a vida e proteger a saúde. Ele procurou chamar a atenção para o fato de que as circunstâncias da gravidez, a idade da criança e as prováveis conseqüências emocionais eram fatores importantes que deveriam ser levados em consideração.

Veio em seguida um dos momentos decisivos do julgamento, quando a criança chorou ao ser examinada.

No seu pronunciamento final a defesa argumentou que a exceção permitindo o aborto "para salvar a vida da paciente" deveria ser tomada segundo uma visão ampla e liberal. Segundo ela, dizer que o médico

"não deveria operar até mesmo quando se visse face a face com a certeza de que ela sofreria uma pane nervosa e mental completa revoltava o senso de justiça de cada um e de todos os demais sensos".

Veio em seguida o pronunciamento final da promotoria. Esta afirmou que existe uma diferença fundamental entre preservar a vida e preservar a saúde. "A destruição de uma criança não nascida é a destruição de uma vida humana potencial", declarou a promotoria. A lei inglesa, segundo ela, estava baseada no caráter sagrado da vida e era algo bastante diferente matar por algo que é menos do que uma vida e matar para preservar a própria vida.

A instrução final coube ao juiz MacNaghten, e tornou-se um documento que marcou a história. O magistrado rejeitou qualquer distinção clara entre os danos à vida e os danos à saúde. Deu seu endosso às testemunhas médicas da defesa no que dizia respeito às declarações sobre os danos possíveis à saúde da menina. Salientou a diferença entre o respeitável Dr, Bourne e os desprezíveis "aborteiros clandestinos". Afirmou que qualquer pessoa que tivesse objeções ao aborto baseado em crenças religiosas não deveria ser médico ou pelo menos não deveria praticar obstetrícia. Declarou ao júri que se o médico acreditou que a continuação da gravidez traria à menina a ruína física ou mental então ele operou "com o único propósito de preservar a vida da mãe". Concluíu dizendo que o júri deveria decidir se a promotoria tinha conseguido provar além de qualquer dúvida razoável que o Dr. Bourne "não tinha acreditado" que a operação tivesse sido necessária para preservar a vida da mãe, definida desta maneira.

Restava apenas a deliberação do júri. Enquanto isso, do lado de fora do tribunal, a imprensa também havia dado a sua contribuição ao caso transformando o Dr. Bourne em um mártir que voluntariamente se tinha exposto ao sacrifício para que a lei pudesse ser esclarecidas.

Finalmente, o júri decidiu pela absolvição do réu, com o regozijo geral da imprensa. O British Medical Journal afirmou em um de seus editoriais:

"Foi muito menos um julgamento penal do que um esforço cooperativo realizado pelo júri, pelo juiz, pelos advogados e pelas testemunhas para criar leis independentemente dos fortes, mas caducos, sentimentos existentes".

No sistema jurídico inglês as decisões dos tribunais não são jurisprudência apenas para fins de interpretação de leis ambíguas ou de leis que não previam determinados casos; as decisões de um juiz inglês podem ter uma força quase idêntica à de uma lei devidamente aprovada e promulgada. A partir de 1938, portanto, com a jurisprudência de MacNaghten, o sistema legal inglês passou a permitir os abortos em caso de estupro. Este primeiro relaxamento das leis do aborto, principalmente devido à maneira espetacular como foi conseguido, foi o primeiro obstáculo concreto ultrapassado em direção a uma ampliação cada vez maior da terminologia da lei e das indicações legais do aborto.