VIDA DE SÃO BERNARDO

1090 - 1153

Escrita pelo Revmo. Pe.
Pedro de Ribadeneira, S. I.

1526 - 1611

PRIMEIRA PARTE


CAPÍTULO I

Na província de Borgonha há um lugarejo, antigamente de pouco nome e estima, chamado Fontaines. Agora, com grande razão, é famoso e célebre, por lá ter nascido São Bernardo Abade, espelho de toda a virtude e retrato de santidade, cuja vida, tirada dos cinco livros que dele escreveram Guilherme, Abade de Bonevales, e Gofredo, monge de Claraval, companheiro e secretário de São Bernardo, é da maneira que se segue.

No dito lugarejo de Fontaines havia um cavaleiro honrado e virtuoso, de nome Tescelin, bom soldado e também servo de Deus, porque de tal maneira seguia a milícia que não se esquecia da profissão de cristão. Estava casado com Aleth de Montbard, mulher virtuosa, honesta e fecunda, de quem teve seis filhos varões e uma filha. Entre os cuidados da casa e da família não se esquecia Aleth das obras de misericórdia e do temor a Deus. Ao dar a luz a um filho, oferecia-o a Deus com suas próprias mãos e o criava em seus peitos, não tendo necessidade de damas de criação; sendo um pouco mais crescido dava-lhe manjares mais grosseiros para comer, como quem o criasse mais para o ermo do que para o século. Estes foram os pais de São Bernardo, que foi o terceiro filho.

Estando sua mãe grávida dele, viu em sonhos que em suas entranhas havia um cão branco com o lombo vermelho que latia. Consultando o caso com um servo de Deus, respondeu-lhe este que aquele filho seria um grande pregador e que ladraria contra os maus para guardar a casa de Deus, que é a Igreja, e com a sua língua medicinal curaria muitas chagas de muitas almas.

Nasceu São Bernardo, e sua mãe o criou com mais cuidado do que aos outros filhos, colocando-o o mais cedo possível nos estudos e dando-lhe bons mestres. Era um menino cuidadoso nos estudos, obediente aos mestres e aos pais, afável com todos, amigo do silêncio e da quietude e inimigo da confusão. Resplandeciam nele uma timidez virginal, uma simplicidade e um candor de ânimo mortificado para todas as coisas do mundo. Quando menino, teve uma forte dor de cabeça; trouxeram-lhe uma curandeira para que o curasse; sabendo quem era, levantou-se imediatamente da cama com grandes vozes e expulsou-a dali com grande nojo, tendo-se o Senhor servido disto para restituir- lhe a saúde, por não tê-la querido pela mão daquela mulher, com ofensa sua. Estando em uma noite de Natal na igreja para assistir as matinas e desejando saber a hora em quer o Senhor havia nascido, caiu um pouco no sono. Apareceu-lhe o menino Jesus, belíssimo, acima de tudo o que se possa dizer, alegrando-lhe a alma com uma suavidade inefável. Com este presente e favor do céu, começou a entregar-se à contemplação, na qual foi eminentíssimo, tornando-se muito devoto do sagrado mistério do nascimento do Senhor e convencido de que aquela hora de meia-noite em que o havia visto seria a própria em que o Verbo eterno e o terno menino haviam nascido. Quando tinha em mãos algum dinheiro, dava-o de esmola aos pobres, mas com grande segredo, para que não se soubesse das obras de caridade que fazia.

Sendo já rapaz, sua santa mãe morreu muito cristãmente, com não pouco sentimento de seu filho Bernardo, por faltar-lhe a partir de agora aquele seu arrimo e tão importante mestra. Era de boa constituição física e de rara beleza. Seu sangue fervia por causa da mocidade, e as companhias e ocasiões que o tentavam para que soltasse as rédeas de seus apetites eram muitas.

Teve muitas tentações do inimigo e algumas mulheres lascivas lhe armaram laços e o molestaram para que perdesse a grande jóia da castidade; mas, com o favor d Senhor, venceu a todas e conservou aquele dom da pureza celestial que, uma vez perdido, não se pode recuperar. Certa vez descuidou-se um pouco e pôs os seus olhos sobre uma mulher muito bela, sem perceber o que estava fazendo; quando se deu conta, ficou tão corado e envergonhado de si mesmo que, para envergonhar-se de si e para pagar a pena daquela culpa atirou-se nu em um tanque de água gelada, que estava ali próximo, até a altura da garganta. Era a época do inverno, e São Bernardo estêve ali tanto tempo que com o grande frio quase se extinguiu o calor natural do corpo, e o tiraram já meio morto. Mas com este ato tão fervoroso mereceu que Deus com a sua graça mortificasse a concupiscência da carne e apagasse as chamas do fogo infernal que reina em nossos membros.

Vendo, pois, o santo moço os grandes perigos em que estava, começou a pensar sobre como se livraria deles e sobre como poderia recolher-se em alguma religião como em um porto seguro. Estando a decidir estas coisas, teve grandes tentações e assaltos do inimigo e de seus ministros. Fazia-lhe guerra a flor da idade, propondo-lhe os deleites sensuais e exortando-o a não deixar o presente pelo que haveria de vir. O demônio lhe sugeria que, ainda que caísse em algum pecado, poderia na velhice fazer penitência do mesmo, e que Deus é clemente e misericordioso, como quem conhece tão bem a nossa fraqueza e derramou o seu sangue por nós na cruz. Não faltavam amigos e companheiros que tendo entrado pelo amplo caminho da perdição o exortavam com suas palavras e com seus exemplos a imitar o que eles faziam. O mundo lhe oferecia grandes esperanças de honras e bens, fundadas em sua grande inteligência, suas letras e sua gentil disposição, e seus próprios irmãos e parentes, que em semelhantes decisões são os mais cruéis e perigosos inimigos, eram os que mais atiçavam aquele fogo, alegando que o seu temperamento seria muito delicado para levar a austera e rigorosa vida de religioso, e que por outro caminho mais brando poderia servir a Deus e ser útil às almas sem enterrar os talentos que Ele lhe havia concedido, com os quais, seguindo o curso das boas letras que já havia começado, poderia alcançar o prêmio merecido por sua excelente ciência e virtude, honrando a sua casa, ilustrando a sua pátria e aproveitando ao mundo.

Achou-se turbado e afligido o virtuoso jovem com a confusão de tantos pensamentos e entendeu a cautela com que se devem tratar as coisas de Deus e que não se deve revelar a vocação de Deus, quando Ele chama à perfeição, senão a muito poucas pessoas, espirituais e escolhidas, como o fez aquele mercador no Evangelho que, tendo encontrado o tesouro no campo, escondeu-o e vendeu quanto tinha para comprar aquele campo e gozar do tesouro que nele havia. Mas ainda que São Bernardo, por tantas partes combatido, esteve vacilante, no fim, favorecido pelo Senhor, rompeu suas cadeias e saiu vencedor. Estando em uma igreja chorando com muitas lágrimas e derramando seu angustiado coração com grandes suspiros na aceitação Senhor, suplicando-lhe que o encaminhasse para o que haveria de ser para o seu maior serviço, foi iluminado pela luz do céu e, fortalecido com a sua graça, determinou-se a militar sob o estandarte da cruz como valoroso soldado e a chamar e trazer consigo todos o que pudesse para aquela gloriosa conquista. Fê-lo de tal maneira que ganhou para Deus um tio seu, irmão de sua mãe, que se chamava Viderico, grande soldado, rico e senhor de um castelo, com o qual abriu caminho aos demais, e logo o seguiram Bartolomeu e André, os dois irmãos menores de São Bernardo; o mesmo fizeram em seguida Guido e Gerardo, os dois irmãos maiores. Deste modo ficou só o menor de todos os irmãos, de nome Eduardo, a quem lhes pareceu que seria bom deixá-lo no século para o consolo de seu pai, que já era idoso, e para o governo da casa e dos bens que possuíam.

Decidiram todos os irmãos de São Bernardo, seu tio e mais outros trinta que o seguiram, que ingressariam na na religião de Cister, que pouco antes havia sido fundada pelo venerável abade Roberto sob a regra de São Bento e confirmada pelo Sumo Pontífice no ano do Senhor de 1098. Esta tinha um só mosteiro no interior de um bosque afastado. Pelo grande rigor da vida e do retiro que nela se observava, havia muito poucos que quisessem abraçá-la. Foi este lugar que São Bernardo, seus irmãos e os outros companheiros escolheram para se entregarem verdadeiramente a Deus em perfeita humildade e desprezo do mundo.

Aconteceu, porém, que Guido, o irmão mais velho, certo dia encontrou pelo caminho Eduardo, o menor de todos os irmãos, que se entretinha com outros amigos, e lhe disse:

"Eduardo, fica com Deus; nós vamos para o mosteiro e te deixamos como herdeiro de todos os nossos bens".

Ouvindo estas palavras respondeu o menino, não com juízo de menino, mas de sábio ancião:

"Pois então vós ficais com o céu e para mim deixais a terra? Não é boa esta partilha".

E assim, depois de alguns dias, também ele seguiu a seus irmãos e ingressou no mosteiro, onde foram todos recebidos no ano do Senhor de 1113, para grande consolação do abade Estevão, que havia sucedido a Roberto, e dos poucos monges que com ele estavam e que, com grande esperança, aguardavam que Deus lhes daria copiosa e feliz descendência e que por todo o mundo se dilatariam os filhos daquela casa, conforme uma revelação que pouco antes havia recebido um daqueles santos monges, como adiante se verá.

Aquela sagrada religião não somente cresceu pelos insignes varões que teve, como também pelas santas monjas que tiveram seu princípio de um mosteiro que por ocasião da entrada de São Bernardo e de seus trinta companheiros lhes havia sido construído. De fato, como alguns deles eram casados e suas mulheres, para que o Senhor fosse melhor servido, haviam dispensado seus maridos do vínculo conjugal e queriam também elas oferecerem-se em holocausto ao Senhor, para recolhê-las, por solicitação de São Bernardo, construíu- se um mosteiro na paróquia Linganiense, que se chama Villeto. Deste mosteiro, que foi muito célebre na religião e santidade e, com o tempo, muito abastado de riquezas e posses, como que de uma raiz e planta, estendeu-se o fruto por outras partes.



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