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Embora Margareth Sanger tenha sido autora de
numerosos livros, considera-se que a essência de seus
argumentos e experiências se encontre na autobiografia que
ela escreveu em 1938. Neste livro são mencionados alguns
fatos, como o que é transcrito a seguir, presenciados por ela
nas favelas de Nova York, que a fizeram tomar uma atitude
conseqüente.
"Num dia quentíssimo de meados de julho de 1912",
diz Margareth em sua Autobiografia, "fui chamada a uma casa
das vizinhanças da rua Grand. Minha paciente era uma judia
russa, pequena e delicada, em torno de seus 28 anos de idade,
com o tipo especial de feições às quais o sofrimento confere
uma expressão como de uma virgem. O pequeno compartimento de
três peças estava em um triste estado de agitação. Jake
Sachs, um chofer de caminhão um pouco mais velho do que sua
esposa, tinha regressado ao lar para encontra-la inconsciente
devido a um aborto auto provocado ao lado dos três filhos
chorando. Chamou o médico mais próximo, o qual por sua vez
tinha me chamado. O salário de Jake era insignificante, e a
maior parte dele tinha sido empregado em vestir e alimentar
adequadamente os filhos, que não estavam muito fortes. Mas a
engenhosidade de sua esposa os tinha ajudado a economizar um
pouco, e ele preferiu gastar estas economias em uma
enfermeira, em vez de mandá-la para um hospital.
O médico e eu pusemos mão à obra para combater a
septicemia. Nunca eu tinha trabalhado com tal rapidez e
concentração. Os dias e as noites se derreteram em um inferno
de letargia. Não parecia concebível que pudesse existir calor
semelhante ao que fazia, e era necessário fazer subir cada
partícula de alimento, gelo ou medicamentos por três lances
de escada.
Jake era mais amável e atencioso do que muitos
esposos que eu tinha encontrado. Queria bem a seus filhos, e
sempre havia ajudado sua esposa a lavá-los e a vestí-los. De
manhã cedo, antes de ir embora, fazia o mais que podia por
mim enquanto observava o seu progresso com ansiedade.
Depois de uma quinzena a recuperação da senhora
Sachs já podia vislumbrar-se. Alguns vizinhos, daqueles que
costumam ser fatalistas quanto aos resultados de um aborto,
se alegraram sinceramente pelo fato dela ter sobrevivido. Ela
sorria debilmente a todos aqueles que vinham vê-la e lhe
agradecia com delicadeza, mas não podia corresponder às suas
cordiais felicitações. Parecia mais desanimada e ansiosa do
que deveria estar, e passava muito tempo meditando.
Depois de três semanas, enquanto eu me preparava
para deixar a frágil paciente que começava a sua vida
novamente, ela finalmente exteriorizou os seus temores,
dizendo:
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"Outra gravidez e será o meu fim,
creio eu?"
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"É muito cedo para falar disso",
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retruquei.
Mas quando o doutor veio para fazer a sua ultima visita,
chamei-o de lado:
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"A senhora Sachs está muito
preocupada com a possibilidade de
outra gravidez".
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respondeu
o doutor.
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"Mais uma travessura como esta,
minha jovem amiga",
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o doutor aproximou-se dela para dizer-lhe isto,
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"e não haverá necessidade de vir
buscar-me".
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respondeu ela
timidamente,
a senhora Sachs titubeou como se precisasse reunir todas as
suas forças para dizê-lo,
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"... que posso eu fazer para
preveni-lo?"
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O médico era um homem bondoso, e tinha-se esforçado muito
para salvá-la, mas tais incidentes tinham chegado a ser tão
comuns para ele que havia muito perdera qualquer delicadeza
que pudesse ter tido. Riu-se afavelmente.
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"Você quer guardar o seu pastel e
comê-lo ao mesmo tempo, não é
mesmo? Pois bem, isto não é
possível de se fazer".
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Logo, recolhendo o seu guarda chuva e a sua maleta para ir-se
embora, acrescentou:
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"Diga a Jack que vá dormir sobre o
telhado".
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Eu dei uma olhada rápida na senhora Sachs. Mesmo através de
minhas lágrimas repentinas, podia ver no seu rosto uma
expressão de desespero total. Olhamo-nos simplesmente, sem
dizer uma palavra. Até que a porta se fechou atrás do doutor.
Imediatamente ela levantou suas mãos finas de veias azuis e
as juntou em um gesto de súplica:
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"Ele não pode entender. É apenas
um homem. Mas você sim, não é
mesmo? Por favor, diga-me o
segredo, e eu nunca o repetirei
para ninguém. Por favor!"
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Que poderia eu fazer? Não podia repetir as frases
consoladoras convencionais que não a consolariam em absoluto.
No lugar disto, fiz o que pude para o seu bem estar físico
imediato e prometi regressar dentro de poucos dias para falar
com ela outra vez. Pouco mais tarde, enquanto ela dormia, saí
na ponta dos pés.
Noite após noite a imagem ansiosa da senhora Sachs
me aparecia. Dei todo o tipo de desculpas a mim mesma para
não regressar. Estava ocupada com outros pacientes. Realmente
não sabia o que dizer nem como convencê-la de minha própria
ignorância. Estava impotente para impedir tais atrocidades
monstruosas. O tempo passava e eu não fazia nada.
Uma noite, três meses depois, tocou o telefone e a
voz agitada de Jake Sachs me suplicou que eu fosse de
imediato. Sua esposa estava novamente doente e pelo mesmo
motivo. Durante um alucinante momento pensei em mandar outra
pessoa, mas na realidade desde logo vesti apressadamente o
meu uniforme, peguei minha maletinha e saí dali. Durante todo
o trajeto estava desejando um choque do trem subterrâneo, uma
explosão, qualquer coisa para que eu não tivesse que entrar
novamente naquela casa. Mas não aconteceu nada. Nem para me
atrasar. Entrei pela porta escura e subi uma vez mais a
escada tão familiar. As crianças estavam ali, criaturas
indefesas.
A senhora Sachs estava em estado de coma e morreu
em 10 minutos. Dobrei suas mãos imóveis sobre o peito,
lembrando-me como me tinha suplicado, pedindo com tanta
humildade os conhecimentos aos quais tinha direito. Cobri o
seu pálido rosto com um pano. Jake estava soluçando, passando
suas mãos pelos cabelos, e arrancando-os como um louco. Vez
ou outra gemia: "Meu Deus, meu Deus, meu Deus!".
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