36. A idéia do planejamento familiar como direito humano.

A idéia do planejamento familiar como direito humano foi introduzida pelo movimento neo malthusiano no fim do século XIX e no início do século XX, expressa nos conceitos do movimento feminista da época. A idéia atravessou todo o século XX mudando sua apresentação não apenas conforme a época, mas também conforme as circunstâncias. Quando, na década de 50, foi criada a IPPF, esta assumiu como prioridade de trabalho tanto o aspecto de direito humano envolvido no planejamento familiar como o aspecto das conseqüências sociais e econômicas do controle da natalidade. Entretanto, a 7a Conferência Internacional da IPPF de 1963 decidiu que a prioridade máxima da organização estaria dali em diante relacionada com o aspecto de direito humano do problema, sem, entretanto, desconsiderar os demais aspectos. A 8a. Conferência de 1967 teve então como título "Paternidade Planejada: um Dever e Direito Humano". Através de seus estatutos a IPPF havia assumido a tarefa de, entre outros objetivos, tornar este princípio universalmente aceito e se tornou, de fato, a principal porta voz desta concepção.

Data aproximadamente do ano de 1967 o início de um envolvimento maior e mais estreito desta organização com a Organização das Nações Unidas. Até então, conforme veremos adiante, a ONU já havia se pronunciado de uma forma implícita sobre o planejamento familiar como direito humano em mais de uma ocasião. Entretanto, no ano seguinte ao início deste relacionamento mais estreito entre suas atividades com os problemas populacionais e as atividades da IPPF, a ONU veio a estabelecer este princípio de maneira clara e formal. A ONU já havia se posto a caminho desta formulação ao incluir o princípio de que cada casal teria o direito de decidir a respeito do número e do espaçamento de suas crianças nas resoluções adotadas pela Assembléia Mundial da Saúde e pela Assembléia Geral. Além da aproximação cada vez mais profunda entre a ONU e a IPPF, o interesse constante em planejamento familiar demonstrado pela Comissão sobre o Status da Mulher também colaborou na enfatização do aspecto de direito humano envolvido na questão.

Que o acesso, porém, aos meios de controle de natalidade fosse um direito humano fundamental foi claramente estabelecido na Conferência Internacional sobre Direitos Humanos patrocinada pela ONU em maio de 1968 em Teeran. A resolução ali aprovada afirmava que os casais tem um direito humano básico não apenas de decidirem livre e responsavelmente sobre o número e o espaçamento de seus filhos, mas também de terem informação e educação adequada de como fazê-lo. A resolução também incluía a afirmativa de que

"a taxa presente de crescimento populacional em algumas áreas do mundo dificulta a luta contra a fome e a pobreza, e em particular reduz as possibilidades de alcançar rapidamente níveis de vida adequados, assim debilitando a plena realização dos direitos humanos".

Em outra parte do texto podia-se ler o seguinte:

"Acreditamos que a grande maioria dos pais deseja obter conhecimentos e meios para planejar as suas famílias. Acreditamos que o objetivo do planejamento familiar é a plenitude da vida humana, não a sua restrição; que o planejamento familiar, ao garantir maiores oportunidades a cada pessoa, liberta o homem para que possa atingir sua dignidade individual e realizar todo o seu potencial. Os casais tem o direito humano fundamental de decidirem livre e responsavelmente quanto ao número e ao espaçamento de seus filhos e o direito de obter instrução adequada a respeito".

Muitos dos que votaram esta resolução o fizeram com a intenção de que a insistência sobre o direito dos casais em decidirem o número e o espaçamento dos seus filhos representaria uma desaprovação das medidas governamentais destinadas a interferir neste julgamento, tais como campanhas de educação de massas, oferecimento de bônus e outros incentivos à limitação da natalidade, e medidas semelhantes destinadas a influenciar e a formar padrões de comportamento sobre tamanho familiar.

O que ocorreu, porém, foi que em um primeiro momento o princípio foi utilizado pelo movimento do planejamento familiar e pelos governos que o apoiavam para argumentar que a questão não era apenas que todas as crianças deveriam ser crianças desejadas, mas que também, por implicação, os governos teriam a obrigação de aceitar a responsabilidade de fornecer aconselhamento em planejamento familiar e outros serviços correlatos para tornar capazes os casais de planejarem o tamanho de suas famílias. Aceito este princípio, as várias correntes paralelas que foram examinadas ao longo deste histórico interagindo entre si acabaram por se fundir e, depois de terem lutado para reconhecerem o planejamento familiar como direito humano em uma batalha que, conforme pudemos examinar, durou quase dois séculos, os mesmos que estavam até aqui interessados em implantá-lo passarão a estar agora interessados em derrubá-lo.