|
|
"Adveio o fogo divino,
não queimando, mas iluminando,
não consumindo, mas brilhando.
Encontrou os corações dos discípulos,
receptáculos puros,
e conferiu-lhes os dons dos carismas".
|
|
|
Breviário Vitorino
Responsório de Pentecostes
|
Deus, o Criador de todas as coisas, quando ordenou o céu,
o Sol e a Lua,
|
"o Sol para presidir ao dia,
e a Lua, para presidir à noite".
|
|
Estes dois luminares significam os dois Testamentos, o Velho e o
Novo. O Velho é significado pela Lua, pois assim como a Lua foi
dada para presidir à noite, assim também o Velho Testamento foi
dado aos pecadores, que são noite e filhos da noite, trevas e filhos
das trevas (I Tess. 5, 5), pelo que nos diz o Apóstolo:
|
"A lei não foi feita para os justos,
mas para os pecadores".
|
|
O Novo Testamento, porém, é significado pelo Sol, pois assim
como o Sol foi dado para presidir ao dia, assim também o Novo
Testamento foi dado aos justos, aos filhos da adoção, aos
Apóstolos, aos discípulos de Cristo, que são dia e filhos do
dia, luz e filhos da luz (I Tess. 5, 5). Ambos os
Testamentos foram escritos pelo dedo de Deus, isto é, pelo
Espírito do Deus vivo; o Velho, porém, foi escrito "em tábuas
de pedra", enquanto que o Novo foi escrito
|
"nas tábuas de carne do coração".
|
|
As tábuas de pedra significam a vontade dura e inflexível e a
inteligência obtusa e insensível, que são as duas coisas em que
consiste o interior do homem velho, não renovado pela Lei, pela qual
os corações duros não se tornam brandos nem sensíveis. As tábuas
de carne do coração significam a capacidade tanto de inteligir como de
amar, devendo-se entender aqui por coração ao intelecto, e por
carne ao afeto.
Nas Escrituras há uma outra passagem em que o Senhor fala mais
abertamente sobre o modo como seria escrito o Novo Testamento, quando
nos diz, por meio de Jeremias:
|
"Darei minhas leis nas suas mentes,
e as escreverei nos seus corações".
|
|
Ele quer dizer que haveria de escrevê-las nas mentes pela
inteligência e nos corações pelo amor; que haveria de escrevê-las
pela inteligência contra a ignorância e pelo amor contra a
concupiscência, pela inteligência que ilumina o cego e pelo amor que
ajuda o enfermo.
No dia de hoje cumpriu-se esta promessa nos Apóstolos, quando o
Espírito Santo, que é fogo invisível, apareceu em fogo visível
para infundir o fogo do amor divino no coração de seus fiéis e
iluminar suas mentes pelo esplendor do conhecimento de Deus. O
Espírito Santo é o fogo do qual diz o Senhor:
|
"Vim enviar um fogo à terra,
e o que desejo eu, senão que arda?"
|
|
Ele é também o fogo que, segundo a Lei, deveria arder continua e
perpetuamente no altar do Senhor,
|
"o fogo perpétuo,
que nunca faltará sobre o altar",
|
|
preceituado pelo Levítico (Lev. 6,13). O altar do Senhor é
o coração do fiel; trata-se, portanto, do fogo a que nos
referíamos no início, quando nossa sentença nos dizia:
|
"Adveio o fogo divino,
não queimando, mas iluminando,
não consumindo, mas brilhando",
|
|
fogo verdadeiramente divino, porque é Deus, que não queima nem
consome, mas brilha e ilumina. Brilha em si e de si, pelo que é, e
não do que recebe, o que pode ser declarado ainda mais abertamente
dizendo tratar-se de um fogo que
|
brilha pela natureza,
não pela graça.
|
|
Brilha pela natureza, ao contrário da criatura racional a qual,
quando brilha, não o faz pelo que ela é, mas por receber uma luz que
a faz brilhar. A criatura racional brilha, portanto, pela graça,
não pela natureza. Tudo aquilo, porém, que brilha em si mesmo por
natureza, é pela graça que ilumina os outros.
Existe ainda um outro fogo que não é divino, mas maligno. Tal é o
fogo da concupiscência, e assim é também o fogo da geena (Mat.
5, 22). Tanto o fogo da concupiscência como o fogo da geena têm
em comum a propriedade de queimar; o fogo da concupiscência, porém,
não apenas queima, como também consome. A concupiscência queima a
natureza, e consome a graça. Estes dois fogos igualmente não
brilham nem iluminam. Ambos são tenebrosos. O fogo da
concupiscência possui trevas interiores e o da geena possui trevas
exteriores.
Talvez alguém pergunte o que são trevas interiores e trevas
exteriores. Deve-se saber que trevas nada mais são do que privação
da luz. Há, porém, duas luzes, a luz interior e a luz exterior.
A luz interior é o conhecimento da verdade que ilumina os olhos do
homem interior, isto é,
|
"os olhos do vosso coração",
|
|
no dizer do Apóstolo. A privação desta luz são as trevas
interiores, e padecem destas trevas aqueles nos quais arde o fogo da
concupiscência. Estes, porém, ainda podem usar da luz visível,
pois Deus, em sua bondade,
|
"faz nascer o Sol sobre bons e maus,
e faz chover sobre justos e injustos".
|
|
No futuro, porém, estes mesmos serão
|
"lançados às trevas exteriores",
|
|
quando também serão privados desta luz visível da qual não são
dignos. A privação desta luz exterior são as trevas exteriores.
Ao contrário destes dois fogos, porém, o fogo divino não queima
nem consome, mas brilha e ilumina. No entanto, - dirá alguém -,
porventura não diz o Apóstolo:
|
"Nosso Deus é um fogo devorador"?
|
|
E, não obstante, acabamos de dizer que o fogo divino não consome
nem devora. Como, portanto, ambas estas coisas podem ser
simultaneamente verdadeiras, isto é, que consuma e não consuma?
Não pode haver contradição na palavra da verdade.
Devemos dizer que o fogo divino, efetivamente, consome
|
"os espinhos e os abrolhos",
|
|
isto é, os espinhos e os abrolhos dos vícios, e a ferrugem dos
pecados, pois a caridade, conforme diz a Escritura,
|
"cobre a multidão dos pecados".
|
|
O fogo divino, porém, não consome a natureza; ao contrário,
purifica-a não somente da corrupção, como também da imperfeição
do bem. E, purificada ilumina-a, e iluminando-a a plenifica,
aperfeiçoa e consuma.
Nossa sentença, a seguir, nos diz que este fogo divino
|
"Encontrou os corações dos discípulos,
receptáculos puros".
|
|
"Os corações dos discípulos, receptáculos puros", são
receptáculos pela natureza da Criação, e puros pela graça da
Redenção. Os corações humanos, os quais foram criados para que
fossem capazes do conhecimento divino simultaneamente com o amor
divino, são os mesmos corações que pelo pecado se tornaram repletos
de malícia, de imundície e de ignorância. Foi por terem assim se
tornado que nos foi enviado o Filho para que primeiro purificasse estes
receptáculos, com o fim de que não se fizesse injúria ao Espírito
Santo que depois haveria de vir. Posteriormente, de fato, foi-nos
enviado também o Espírito Santo, para que plenificasse os
receptáculos assim purificados. O Filho veio, portanto, para que
efundisse amargura; o Espírito Santo, porém, para que infundisse
doçura. O Filho veio para que removesse o que é antigo, o
Espírito Santo para que concedesse o que é novo. O Filho, para
que libertasse; o Espírito, para que beatificasse. O Pai, por
conseguinte, criou estes receptáculos, o Filho os purificou, e o
Espírito Santo os plenificou de bens.
Segue-se, então:
|
"E conferiu-lhes os dons dos carismas".
|
|
Entre os dons dos carismas os principais são a palavra da sabedoria e
a palavra da ciência, ou simplesmente a sabedoria e a ciência. A
sabedoria é o conhecimento das coisas divinas, a ciência é o
conhecimento das coisas humanas. A sabedoria é como o Sol, a
ciência é como a Lua, pela qual somos instruídos sobre como nos
devemos conduzir
|
"no meio de uma nação
depravada e corrompida".
|
|
Caríssimos, esta nação depravada e corrompida de que nos fala o
Apóstolo é a própria noite da vida presente, e a sabedoria que nela
deve nos instruir é a piedade, uma palavra utilizada pelos latinos
para traduzir o que os gregos denominam de `Theosebia', isto é,
culto de Deus. Cultuar a Deus significa unirmo-nos a Ele pela fé
do conhecimento e pelo afeto do amor, de onde que é evidente que
aqueles que conhecem a Deus mas não o amam não possuem a verdadeira
sabedoria nem a verdadeira piedade, nem podem verdadeiramente cultuar a
Deus, como aqueles de quem diz o Apóstolo:
|
"Embora conheçam a Deus,
todavia não o glorificaram como Deus,
nem Lhe deram graças".
|
|
De modo semelhante, deve-se dizer também que aqueles que parecem
amar a Deus mas não o conhecem, não cultuam verdadeiramente a
Deus, dos quais noutro lugar diz igualmente o Apóstolo:
|
"Possuem o zelo de Deus,
não porém,
segundo a ciência".
|
|
O próprio nome sabedoria nos indica que ela contém em si mesma estas
duas coisas, isto é, o conhecimento e o amor. A ciência, de
fato, que não possui o tempero do amor divino não é saborosa, mas
insípida. Incha, mas não edifica. É indigna, portanto, do nome
de sabedoria. E, ademais, não é qualquer conhecimento que é dito
sabedoria, mas apenas o conhecimento de Deus, e nem qualquer
conhecimento de Deus, mas somente aquele que é possuído com amor.
Somente este é corretamente chamado de sabedoria, isto é, saborosa
ciência, pois, conforme no-lo ensina a Escritura,
|
"Deus é espírito,
e aqueles que O adoram
devem adorá-Lo
em espírito e em verdade".
|
|
Devem adorá-Lo em verdade quanto ao conhecimento, e em espírito
quanto ao amor. O conhecimento da verdade restaura em nós a imagem de
Deus, enquanto que o amor restaura em nós a semelhança de Deus,
pois o homem foi criado à semelhança e imagem de Deus por ter sido
feito participante do amor e do conhecimento de Deus.
Em todos os membros de Cristo, portanto, o Espírito Santo opera o
conhecimento da verdade e o amor da virtude. Um só é o Corpo de
Cristo, constituído de cabeça e membros. Cristo é a cabeça,
possuindo a plenitude da graça e da verdade (Jo. 1, 14); os
membros são os cristãos, que recebem da plenitude da cabeça (Jo.
1, 16). O Espírito de Cristo não habita senão no Corpo de
Cristo, mas na cabeça segundo a plenitude e nos membros segundo a
participação. Neste corpo, por conseguinte, nada está morto;
fora dele nada está vivo. Aquele que, de fato,
|
"não possui o Espírito de Cristo,
este não é dEle",
|
|
isto é, não é seu membro. Somente aqueles, porém,
|
"que são conduzidos pelo Espírito de Deus
são filhos de Deus,
templos do Espírito Santo,
herdeiros de Deus,
co-herdeiros de Cristo",
|
|
|
Rom. 8, 14-17
I Cor. 6, 19
|
os quais desprezam o mundo e repousam na esperança da herança eterna,
de quem nos fala o profeta, quando diz:
|
"Se dormes entre os apriscos",
|
|
isto é, entre duas heranças, entre dois Testamentos, entre a
promessa do Novo Testamento e a promessa do Velho Testamento. A
promessa do Velho Testamento são os bens temporais, os bens caducos
pertencentes ao homem velho; a promessa do Novo Testamento são os
bens eternos, a vida eterna. "Dormir entre dois apriscos"
significa, portanto, repousar entre o desprezo do mundo e o amor e o
desejo dos bens eternos; somente estes que desprezam o mundo e anelam
pelos bens invisíveis são os que guardam o sábado da mente.
O que, de fato, significa aquela mulher que no Apocalipse o
Apóstolo João viu
|
"vestida de Sol
e tendo a Lua sob os pés"?
|
|
Esta mulher é a esposa do Cordeiro, que antes do advento do
Espírito Santo estava coberta pelo véu da ignorância, mas que
agora, depois do advento do Espírito Santo e da infusão de sua
graça, está vestida de Sol, isto é, de uma clara luz, para que
|
"vendo como num espelho a glória do Senhor,
sejamos transformados na mesma imagem,
de claridade em claridade,
como pelo Espírito do Senhor",
|
|
e assim possamos, pelos olhos do homem interior, apreender o Sol da
justiça, o esplendor da glória e o candor da luz eterna. Onde, de
fato,
|
"está o Espírito do Senhor,
ali está a liberdade",
|
|
a liberdade tanto de conhecer, como de amar.
Esta mulher tem a Lua "debaixo de seus pés" (Apoc. 12, 1).
A Lua significa as coisas temporais, mutáveis e caducas, as quais a
alma que verdadeiramente ama a Deus despreza, rejeita, conculca e
considera como esterco. É assim que no Cântico dos Cânticos,
radiante de alegria, a esposa canta:
|
"A sua mão esquerda
está debaixo de minha cabeça,
e a sua destra me abraça".
|
|
Neste lugar, aquilo que João entendeu como sendo o Sol, Salomão
o entendeu pela destra; e o que João entendeu pela Lua, Salomão o
entendeu como sendo a mão esquerda. Quanto ao que João entendeu
pelos pés, pode-se dizer que Salomão o entendeu pela cabeça, não
sendo inconveniente que coisas diversas tenham a mesma significação
segundo uma propriedade comum, assim como de um mesmo símbolo,
segundo diversas propriedades, possam originar-se diferentes
significações.
Pode-se entender também que a cabeça designa a razão, enquanto que
os pés designam o afeto. Segundo este modo de entender, há alguns
que pelo julgamento da razão desprezam o mundo, estando porém unidos
a ele por alguma afeição; estes são aqueles que têm a mão direita
debaixo da cabeça, mas ainda não têm a Lua debaixo dos pés. Há
também outros que não desprezam o mundo somente pelo julgamento da
razão, mas que também não estão unidos a ele por nenhum afeto;
estes não somente têm a mão esquerda debaixo da cabeça, como
também a Lua debaixo dos pés. São aqueles que pela obra do
Espírito Santo "dormem entre os apriscos", repousam entre os
montes (Salmo 103, 10) e se gloriam na esperança dos filhos de
Deus (Rom. 5, 2), não no falar da vaidade, mas na esperança
da eternidade, assim como aquele que diz:
|
"Somente tu, Senhor,
me constituistes na esperança".
|
|
Estes são ainda os filhos de Sião, que exultam no seu rei (Salmo
149, 2), aqueles que com ouro, prata e pedras preciosas edificam
sobre o fundamento que é Cristo (1 Cor 3, 11-12), que não
amam nada contra Deus e, mais ainda, nada amam além de Deus. Nada
amam além de Deus, pois aqueles que amam o mundo não possuem o
Espírito de Deus. A própria Escritura nos diz que o Espírito
Santo é
|
"Aquele que o mundo
não pode receber".
|
|
Os que amam o mundo são aqueles que foram expulsos da face de Deus
e, nesta condição, se tornaram, como Caim,
|
"andarilhos e fugitivos".
|
|
São homens andarilhos de si mesmos e fugitivos de Deus, andarilhos
pela imoderada concupiscência e fugitivos pela consciência pecadora.
São aqueles homens que se gloriam em sua própria confusão, não
interiormente no coração, mas externamente, em sua própria
fisionomia; não no testemunho da própria consciência, mas no louvor
dos homens.
Caríssimos, o profeta nos adverte e nos lembra que o Senhor
|
"dispersa os ossos
dos que agradam aos homens",
|
|
enquanto que os que possuem o Espírito de Deus "dormem entre os
apriscos", possuindo em si a verdadeira paz. Aquele que neles habita
os conduzirá da paz da alma à paz de Deus, da paz interna à paz
eterna, à verdadeira paz, à paz em si mesmo (Salmo 4, 9), à
paz que supera todo o sentido (Fil. 4, 7), ao poço da
saciedade, à fonte da vida, à água do refrigério, ao paraíso das
delícias, à afluência de todos os gozos, à plenitude das
alegrias, aos bens
|
"que o olho não viu,
nem o ouvido ouviu",
|
|
ao maná escondido, à luz do Pai, à claridade superprincipal, à
contemplação da Suma Trindade em toda a verdade, à glória
sempiterna.
Que a ela nos conduza o Deus trino e uno.
Amén.
|
|