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Mas, para entender melhor como se processou esta transformação, temos que analisar
um pouco melhor as Instituições Oratórias de Quintiliano, o livro em que os
humanistas viram como que o código da formação ideal do homem.
Quintiliano, conforme vimos, havia sido professor e advogado no Império Romano
durante o século I da era cristã. Seu pai já era advogado na Espanha, terra em que
Quintiliano nasceu. Ainda menino, mudou-se para Roma, juntamente com o pai, onde
este passou a advogar. Desejando também ser advogado e seguindo os conselhos
deixados por Cícero, o mais famoso entre os advogados e oradores romanos, dedicou-
se durante a juventude aos estudos que pudessem levá-lo ao máximo de cultura geral
que lhe fosse permitido em seu tempo.
Voltou mais tarde para a Espanha, provavelmente junto com o General Galba, a quem
o Imperador havia nomeado governador daquela província. Quando, anos depois, o
próprio Galba tornou-se Imperador, Quintiliano retornou com ele à Corte Romana.
Anos depois, já aposentado de seus deveres de advogado e professor, durante seis
anos Quintiliano foi ainda preceptor dos sobrinhos do Imperador Domiciano, que se
preparavam para sucedê-lo no governo do Império.
Só depois de tudo isto, já próximo do fim da vida, foi que Quintiliano redigiu os 12
Livros das Instituições Oratórias, resumo de toda a sua experiência como advogado e
educador, e não sem antes ter consultado tudo quanto antes dele havia sido escrito
sobre o mesmo tema na literatura grega e latina.
A originalidade e a grandeza da obra de Quintiliano se devem precisamente ao fato da
mesma conter não apenas o que o autor havia acumulado em uma verdadeiramente
grande experiência pessoal, mas também incorporar, de uma forma ou de outra, aquilo
que de melhor o autor tinha encontrado em tudo quanto antes dele havia sido escrito
sobre a arte retórica.
Estas circunstâncias permitiram ao autor, com razoável facilidade, ultrapassar as
concepções pedagógicas referentes à educação retórica dos que o haviam precedido.
No início desta Terceira Parte fizemos um rápido esboço sobre a evolução da
educação no mundo antigo e medieval. Tal assunto não é estranho ao tema do
Cristianismo, porque é através da educação que se forma o homem e, portanto, na
educação de cada povo ou civilização está embutido o que este ou aquele povo ou esta
e aquela civilização realmente pensam que é o ser humano, por que ele existe e o que
deve ser feito dele. Ademais, vice versa, é esta mesma educação que condiciona, em
grande parte, as possibilidades acerca do que o ser humano será capaz de compreender
a respeito dos problemas fundamentais sobre si mesmo, o mundo e das relações entre
ele e o mundo.
Ora, é evidente que o Evangelho está diretamente relacionado com estas questões de
modo que, na verdade, é imprescindível tocar neste assunto para se tentar entender o
quadro dos problemas do homem moderno que motivaram a convocação dos Concílios
Modernos dos séculos XIX e XX, objetivo desta Introdução Histórica.
Dissemos, neste sentido, no início desta Terceira Parte, como a civilização ocidental
contemporânea proveio da fusão da civilização hebraica, grega e romana, mas seu
sistema educacional é derivado da civilização grega. Na civilização grega as
primeiras escolas foram as fundadas pelos filósofos; na época do apogeu da
democracia ateniense porém, com os sofistas surgiu um outro tipo de escola, sob a
forma de uma versão vulgar das escolas filosóficas, que ensinava a arte de bem falar
em público. Estas novas escolas, que posteriormente evoluíram e se difundiram em
todo o Império Romano, alguns séculos após o advento do Cristianismo, a atividade
educacional passou gradualmente para os mosteiros que, seguindo as orientações de
Santo Agostinho, fundiram os elementos de ambas as correntes mas cristianizando-os
de tal modo que nos anos 1100 e 1200 as escolas superiores da Europa seguiam na
verdade uma orientação cuja grande afinidade com o ideal filosófico era evidente. Foi
com a Renascença que esta concepção de educação começou a tomar o rumo
totalmente diverso que segue até os dias de hoje.
O obra de Quintiliano, que ressuscitou repentinamente nos anos 1400, insere-se neste
contexto de uma maneira bastante peculiar.
Quintiliano viveu no século I da era cristã, mas não era cristão. Provavelmente apenas
no fim de sua vida teria ouvido falar sobre o Cristianismo de uma maneira genérica
como de uma seita secreta perseguida pelo poder imperial.
Nas Instituições Oratórias, portanto, nada há de influência cristã, e é uma obra cujo
contexto pertence inteiramente ao mundo antigo tal como o Cristianismo o iria
encontrar.
Ora, ocorre que uma análise mais cuidadosa destas Instituições Oratórias mostra
facilmente que ela representou, neste mundo antigo, um decidido e talvez mesmo o
maior esforço de aproximação que houve da educação retórica ao ideal pedagógico
dos filósofos gregos.
Segundo Henri Bornesque, Quintiliano quis com a sua obra
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"reagir contra o ensinamento
dos retóricos que,
esquecendo-se de formar o espírito
e o coração,
se perdem dentro da vã complicação
de suas regras.
Para Quintiliano, a prática da declamação
não é suficiente para formar
o verdadeiro orador".
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Mas, conforme já vimos, com o advento do Cristianismo, gradualmente triunfou na
Pedagogia uma concepção que continha tudo quanto os antigos filósofos através dela
buscavam. Este processo de aproximação da educação geral administrada para a
maioria dos homens para a concepção colocada pelos antigos filósofos, cujo ponto alto
na antigüidade romana havia sido dado pelo próprio Quintiliano acabou, portanto, por
se realizar no Cristianismo e de um modo tal que teria parecido para os mais arrojados
daqueles filósofos uma perene utopia.
O grande paradoxo foi que, entretanto, enquanto no século I da era cristã, no ambiente
do Império Romano, a obra de Quintiliano representava uma tentativa de aproximação
da educação geralmente oferecida aos cidadãos do Império àquela de concepção mais
elevada dos filósofos, na Renascença a mesma obra de Quintiliano foi usada pelos
humanistas justamente para se distanciarem desta mesma concepção que havia se
incorporado e desenvolvido na tradição cristã.
A obra de Quintiliano foi, assim, por um paradoxo descomunal, interpretada pelo seus
maiores entusiastas do movimento renascentista em um sentido exatamente oposto ao
que teve quando da época em que havia sido escrita.
Posteriormente, no fim dos anos 1500, já no fim da época renascentista, surgiu na
Igreja a Companhia de Jesus.
Quando nesta época os homens em geral já não conheciam nem aceitavam nenhum
outro tipo de educação a não ser a moldada pela Renascença, os jesuítas, que então
surgiam, desenvolveram um sistema de educação baseado nas idéias renascentistas
sobre educação e, portanto, também na obra de Quintiliano. Este sistema educacional
dos jesuítas tomou corpo em um código interno à Companhia de Jesus que recebeu o
nome de Ratio Studiorum. Entre os textos dos jesuítas que, durante largos anos,
prepararam a Ratio Studiorum, são abundantíssimas as citações a Quintiliano,
demonstrando como este autor teve, na verdade, uma influência também direta sobra a
educação jesuíta que poucos anos depois viria a se transformar em um modelo para
toda a Europa.
No caso dos jesuítas, porém, ao contrário dos humanistas em geral até então, o ideal de
Quintiliano foi interpretado na direção original em que havia sido formulado, e o tipo
de educação que os jesuítas acabaram desenvolvendo pode ser abreviadamente
descrito como sendo um humanismo cristão.
O que os jesuítas fizeram foi, provavelmente, devido à situação dos homens e às
circunstâncias da época, o melhor que talvez poderia ter sido feito. Organizar a
educação nos padrões expostos nos Princípios Fundamentais de Pedagogia de Hugo
de São Vitor teria sido talvez uma batalha perdida, mas ao mesmo tempo deve-se dizer
que entre os Princípios de Hugo de São Vitor e a Ratio Studiorum dos jesuítas a
diferença é descomunal. Se, por um lado, salvou-se com isto uma orientação que
estava correndo o risco de se perder, ao mesmo tempo a educação em geral desceu um
imenso degrau.
Iniciou-se a partir daí um longo processo de que haveremos de tratar com mais detalhe,
onde entre os que pagaram a conta está o homem contemporâneo, inserido em uma
gaiola ardilosamente urdida pela história, cuja complexidade supera a capacidade de
compreensão da maioria dos homens mas que, ao mesmo tempo, sem que eles saibam
por que, lhes tornou imensamente dificultoso abrir os olhos para a luz que o Cristo,
fazendo-se homem, desejou tão ardentemente trazer ao mundo.
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