CAPÍTULO 4

Se disséssemos que na verdadeira divindade houvesse apenas uma única pessoa, assim como também uma única substância, por causa disto sem dúvida ela não teria a quem poderia comunicar aquela infinita abundância de sua plenitude.

Mas, pergunto, por que se daria isto? Quereria ela talvez ter a quem comunicá-la, e não o poderia, apesar de querê-lo? Ou não quereria fazê-lo, apesar de ter a quem o pudesse? Se, porém, alguém é sem dúvida alguma onipotente, não poderia ser desculpado,pela impossibilidade. Mas o que consta não ser por defeito de potência, poderia sê-lo unica e tão somente por defeito de benevolência? Considera, pois, eu te peço, qual e quanta seria o defeito de benevolência se a pessoa divina verdadeiramente pudesse ter, querendo-o, alguém a quem comunicá-lo e ainda assim de nenhum modo o quisesse. É certo, conforme dissemos, que nada é mais doce do que a caridade, nada é mais feliz do que a caridade, nada a vida racional experimenta como mais doce do que as delícias da caridade. Nunca nenhuma deleitação foi fruída mais deleitavelmente e destas delícias careceria por toda a eternidade se, carecendo de consórcio, permanecesse solitária no trono de sua majestade. Por estas considerações podemos advertir qual e quanta seria este defeito de benevolência se preferisse avarentamente reter somente para si a abundância de sua plenitude que poderia, se assim o quisesse, com tanto cúmulo de bem aventurança, com tanto aumento de delícias, comunicá-la a um outro. Se assim o fosse, se nela houvesse tanto defeito de benevolência, merecidamente se envergonharia de conhecer-se a si mesmo, merecidamente se envergonharia de ser assim visto, merecidamente fugiria de todos os olhares, merecidamente se envergonharia dos próprios anjos. Mas, que dizemos? Não é possível que na suprema majestade exista algo pelo qual não possa gloriar-se e pelo qual não possa ser glorificada. De outra forma, onde estaria a plenitude de sua glória? Pois ali, conforme já havíamos demonstrado, não pode faltar nenhuma plenitude. Porém, o que pode haver de mais glorioso, o que pode haver de mais magnificiente do que nada possuir que não se queira comunicar? Consta, por conseguinte, que naquele indeficiente bem e sumamente sábio conselho tanto não pode encontrar-se a avarenta reserva como não pode haver uma desordenada efusão. Eis, portanto, que tens a descoberto, como podes vê-lo, que naquela suma e suprema excelsitude a própria plenitude da glória obriga a que não falte o consorte da glória.