CAPÍTULO 75

É o mesmo Pastor que, em um volume posterior, o Tomo III vol. 5 de sua obra, descreve o progresso da imoralidade durante a época do Renascimento:

"Se se investigam as causas principais por que nesta época muitos italianos se encaminharam pelos mais perniciosos extravios, não pode ser duvidosa a resposta: é o desenvolvimento do individualismo promovido pelo Renascimento".

"Os partidários desta perniciosa tendência contrapunham conscientemente a renúncia a si mesmo, a humildade e a mortificação da religião cristã ao egoísmo, ao orgulho, à vanglória, ao espírito mundano e à sede de prazeres da antigüidade pagã. Desta maneira surgiram aquelas funestas figuras que juntaram a mais elaborada cultura a uma astuciosa malícia e desprezo de todas as leis morais".

"Do individualismo ilimitado, tão grandemente favorecido pelo Renascimento, nasceram, além da ambição pela glória, outros muitos e perniciosos vícios, como a prodigalidade, a luxúria, o jogo, a sede de vingança, a mentira e a fraude, a imoralidade, os crimes e homicídios, a indiferença religiosa, a incredulidade a a superstição. À simplicidade e bons costumes do tempo antigo se opôs em quase todas as cidades um luxo crescente e uma crescente imoralidade".

"Talvez o pior dos lados sombrios dos italianos desta época foi a desonestidade conjugal. Não há dúvidas de que a imoralidade fêz terríveis progressos em todas as grandes cidades e mesmo em muitas das pequenas na época do Renascimento. As mais grosseiras desordens eram muito freqüentes, principalmente entre as pessoas instruídas e de elevada classe. A ilegitimidade dos filhos já não se considerava uma mancha, de maneira que quase não se fazia mais diferença entre os filhos bastardos e os filhos legítimos. Mesmo havendo honrosas exceções, a maioria dos príncipes italianos do Renascimento estavam demasiadamente contaminados pela corrupção moral".

"Toda a Itália, escrevia na história de Frederico III Enéias Sílvio Piccolomini, o futuro Papa Pio II, está em nossos tempos governadas por príncipes nascidos fora de matrimônio".

"Quando, mais tarde, já Papa Pio II, passou pela cidade de Ferrara em 1459, deixou escrito que foi recebido por sete príncipes, dos quais nem sequer um havia nascido de matrimônio legítimo".

"É simplesmente assombrosa a indulgência com que as pessoas cultas contemplavam os excessos dos grandes. Poetas, literatos e artistas glorificavam as vergonhosas paixões dos príncipes, ainda mesmo durante as suas vidas, de uma maneira que, embora parecesse aos séculos posteriores o cúmulo da indiscrição, passava na época por uma inocente homenagem".

"Juntamente com os príncipes concorriam em imoralidade grande parte dos humanistas representantes do Renascimento, muitos dos quais tinham sabido tornarem-se indispensáveis em quase todas as cortes dos príncipes como educadores de seus filhos, como oradores e diplomatas".

"Embora apenas as pessoas mais instruídas tivessem acesso à literatura obscena dos expoentes do Renascimento, em círculos mais extensos difundia-se o mesmo veneno por meio das novelas e comédias escritas em linguagem popular. O argumento favorito destes novelistas eram as relações sexuais em seu mais crasso realismo, e juntamente com ele, a hostilidade contra o matrimônio e a família, o engano dos maridos que ingenuamente confiavam em suas esposas, as infidelidades cometidas contra outros mais desconfiados, apesar de todas as suas vigilâncias. De modo geral, predomina a tendência a desculpar o adultério e até a glorificá-lo, desde que tenha sido levado a efeito com astúcia e engenhosidade".

"Assim como na elite pensante do Renascimento, também nesta literatura encontra-se o amor livre como um ideal a que se deve aspirar, e se foi chegando tão longe que até muitas pessoas, honestas em outros aspectos, começaram a defender a legitimidade do divórcio".

"Além da literatura obscena teve um grande efeito pernicioso nas classes mais favorecidas desde a segunda metade dos anos 1300 o costume que se estendeu por toda a Itália de ter como escravas donzelas orientais. Quase todas as casas distintas de Florença tinham estas escravas, e este abuso conduzia, com forte freqüência, a destruir a felicidade das famílias. Outras vezes eram criados em conjunto os filhos legítimos com os ilegítimos".

"Nos anos 1300 era grande em muitas cidades italianas o número das prostitutas, mas nos anos 1400 percebe-se um deplorável aumento das mesmas. Mais significativo foi o fato de que começou-se a trocar, por esta época, o nome com que se designavam as mulheres públicas. Em vez do antes usado de pecadoras, passou-se a utilizar o mais decoroso de cortesãs. Correspondendo a esta denominação, as cortesãs passaram a se esforçar também por conseguir uma educação brilhante. Vemos pelos testemunhos da época como aquelas damas cultivavam a música, liam os poetas e sabiam falar e escrever com elegância. Suas cartas mostram uma expressão segura e correta, e até mesmo citações latinas. Uma das mais famosas cortesãs romanas levava o orgulhoso nome de Impéria; sua morte precoce, porém, preservou-a da sorte de quase todas as restantes de suas companheiras, as quais, depois de haver dissipado sua beleza e sua riqueza, acabavam no hospital ou na indigência pública, tal como Tullia d'Aragona, célebre também como poetisa, que chegou a tal pobreza em sua velhice que passou seus últimos anos em uma taverna do Transtevere, onde morreu".

Em conseqüência do aumento da prostituição, à Peste de 1348 acrescentou-se, a partir dos fins dos anos 1400,

"uma terrível epidemia de sífilis. Já conhecida anteriormente, esta repugnante enfermidade, que se manifestava em novas formas e com uma maior violência, alcançou, em parte por efeito do notável crescimento da imoralidade, uma tão grande extensão como nunca outra epidemia havia alcançado anteriormente".

Naquela época não se conhecia ainda a cura da sífilis. Hoje facilmente tratável com os antibióticos mais simples, naqueles dias esta horrenda doença, uma vez contraída, evoluía inexoravelmente ano após ano até morte do paciente.

"Descrevia-se a doença como um mal terrível e espantoso, diante da qual a humanidade retrocedia tomada de horror, como um sofrimento pior do que a própria lepra, diante da qual nenhuma outra doença pode disputar a primazia, um mal que consome o corpo, deixa o espírito exausto e transforma os doentes em cadáveres viventes. Assim como nos demais países da Europa, o novo mal foi visto como um justo castigo de Deus pelos pecados dos homens e pela grande corrupção dos costumes".

"Entretanto, não era a multidão das prostitutas e das cortesãs o pior dos danos que afligiram a Itália do Renascimento. O historiador deste período não pode deixar de mostrar outro lado todavia mais repugnante. Há testemunhos irrecusáveis que não permitem duvidar que renasceu nesta época"

a prática da homossexualidade. Muitíssimo comum na antigüidade pagã,

"quase totalmente desarraigada pela Igreja e pelas legislações civis penetradas pelo espírito cristão durante a Idade Média, voltou a introduzir-se agora nas sociedades graças à cega adoração dos humanistas pela literatura pagã. No início dos anos 1400 a homossexualidade surge nas cidades de Veneza, Siena e Nápoles. São Bernardino de Siena perseguiu este vício em seus sermões com inflamadas palavras, mas os humanistas glorificavam publica e desavergonhadamente este pecado que em outro tempo havia sido a maldição do mundo antigo e muitos chegavam até mesmo a gloriar-se do mesmo. Ariosto, um dos humanistas, chegou a declarar que praticamente todos os humanistas estavam manchados com o vício pelo qual Deus havia castigado a Sodoma e a Gomorra. No fim dos anos 1400 Antonio Loredano, embaixador de Veneza em Roma, perdeu seu cargo por escândalo dado nesta matéria, mas o pior para os italianos foi ter penetrado este vício também nas classes inferiores. No tempo da expedição de Carlos VIII, no fim dos anos 1400, quando as tropas francesas invadiram temporariamente o norte da Itália, o cronista da expedição militar escreveu estas palavras:

`Todo este país, todas as suas cidades, Roma, Florença, Nápoles, Bolonha, Ferrara, estão contaminadas com este mal'".