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Lemos no Livro de Números (Num. 22-24) que quando os filhos
de Israel, saídos do Egito, caminhavam pelo deserto rumo à terra
prometida, Balac dispôs-se a impedí-los e, para tanto, conduziu
Balaão para que os amaldiçoasse. Deus, porém, converte sua
maldição em bênção. Percorreremos convosco as palavras desta
história segundo a inteligência espiritual para que, por elas, na
medida de nossas possibilidades, edifiquemos a santidade de vossos
costumes.
Aquele povo, ora chamado pelo nome de Jacó, ora chamado pelo nome
de Israel, significa o povo dos verdadeiramente fiéis, os quais são
verdadeiramente Jacó quando lutam fortemente contra os vícios e são
verdadeiramente Israel quando suavemente se deleitam na bondade das
virtudes. São Jacó quando se afadigam nos negócios terrenos por
causa da necessidade corpórea e são Israel quando especulam a
sublimidade dos bens celestes. Por isso corretamente disse Balaão
pelo espírito profético:
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"Quem poderá contar o pó de Jacó,
e conhecer o número da descendência de Israel?"
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Entendemos pelo pó de Jacó os ativos que tratam do que é terreno,
e entendemos pela descendência de Israel os especulativos que
contemplam o que é celeste.
Balac, que traduzido significa `o que lambe', `o que esmaga', ou
ainda `o que envolve', significa o demônio, que lambe aos que pode
pelo afago da má tentação, esmaga-os pelo consentimento ou pelo
fruto do pecado, e envolve-os pelas redes do mau costume.
Balaão, que traduzido significa `povo vão', significa a multidão
dos falsos cristãos, que desprezam a verdade e seguem a vaidade,
principalmente aqueles que entre eles, seja pela prudência da carne,
seja pela ciência do século, seja pela vanglória da filosofia,
parecem se sobressair por uma certa autoridade diante dos demais.
Assim como Balaão, que era adivinho (Num. 22,5), todos
estes são também como que adivinhos junto ao demônio e a todos os
demônios quando cultuam a vã sabedoria do mundo ou, melhor ainda,
quando, por meio dela, mal vivendo, cultuam a própria impiedade
demoníaca. Acrescentando cotidianamente vícios aos vícios, ou
mudando vícios por vícios, como que inovam o culto de novos
demônios. A estes convém adequadamente o que está escrito:
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"Sacrificaram aos demônios e não a Deus,
a deuses que desconheciam,
deuses novos, acabados de chegar,
que seus pais não tinham adorado".
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Assim como Balaão (Num. 22,31), estes também têm o seu
olho tapado. Ainda que vejam o que Deus é pela ciência, ignoram
porém o que Ele seja quanto ao amor. E quando Deus olha do céu
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"sobre os filhos dos homens,
para ver se há quem tenha entendimento
e busque a Deus",
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se há entre eles algum que entenda pelo conhecimento, não há,
todavia, quem o busque pelo amor.
Já que eles, portanto, crêem retamente, um de seus olhos está
aberto. O outro, porém, está fechado, pois vivem mal. Por este
motivo,
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"todos se desviaram,
se tornaram inúteis".
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Desviaram-se do bem, tornaram-se inúteis no mal. Como Balaão,
são ouvintes da palavra de Deus, mas não querem cumprí-la. Vêem
as visões do Onipotente pelo conhecimento, mas detratam o que viram
pela obra. Caem também como Balaão, e assim se abrem os seus
olhos; mas caem pela condenação eterna, e seus olhos só se abrem
pelo perfeito conhecimento da maldade passada. Não conhecerão, de
fato, perfeitamente sua impiedade até que sintam a pena que por ela
mereceram. Pode-se entender também que alguns deles caem quando,
compungidos alguma vez de sua elevação, se humilham, e assim se
abrem os seus olhos, por terem sido perfeitamente iluminados por
Deus. Pois, de fato, é assim que Deus
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"resiste aos soberbos,
e dá a sua graça aos humildes".
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Ou certamente, assim como o próprio Balaão mais adiante diz de si
mesmo, que caindo se lhe abriram os olhos (Num. 22,34), é
deste mesmo modo que pode-se entender que os orgulhosos do século
quando caem se lhes abrem os olhos. Eles passam efetivamente a
conhecer as coisas que são verdadeiras; no entanto, não cessam de
praticar as coisas más.
Balac enviou primeiro a Balaão príncipes nobres (Num.
22,5). Depois enviou outros ainda mais nobres (Num.
22,15). Assim também o demônio envia demônios para tentar os
valorosos. Se eles não os sobrepujam, manda então outros demônios
ainda mais fortes para convencerem pelas suas sugestões os homens
astutos e bem falantes do mundo a maldizerem a conversação dos
justos, isto é, que os detratem com suas murmurações e com isto,
diminuindo a sua boa fama, tornem preguiçosos, negligentes e
pusilânimes os mais simples ou menos empenhados na boa obra. Neste
sentido, a maldição de Balaão é a detração e a sua bênção é
a recomendação (Num. 22,6). De fato, não lemos em nenhum
lugar, em todas as bênçãos de Balaão, que ele tenha orado a Deus
pedindo bens para os filhos de Israel; limitou-se apenas a falar bem
ou a profetizar sobre eles. Para o demônio e os amantes do mundo,
assim como para os mais simples, os sábios do mundo parecem ter grande
autoridade para louvar ou blasfemar os justos. Todos estes estimam que
pelos descréditos dos sábios uns são rebaixados, enquanto que pelos
seus louvores outros são exaltados. Por isso é que corretamente
Balac diz, por meio de seus mensageiros, a Balaão:
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"Sei que será bendito
aquele a quem tu abençoares,
e maldito aquele
a quem lançares maldição".
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O povo do Senhor também é dito "cobrir toda a face da terra"
(Num. 22,5). Entretanto, o Evangelho nos diz que
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"muitos são os chamados;
poucos, porém, os escolhidos".
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Isto faz com que o demônio tema, prevendo que alguns falsos cristãos
possam converter-se e venham a fazer-lhe oposição. Não descansa,
por este motivo, enquanto não os vir junto de si pela negação da
fé.
Temendo a presença do povo justo em seus territórios, Balac
compara-o aos "bois que destróem a erva até à raiz" (Num.
22,4), porque os justos costumam impugnar, investigando até às
raízes, não apenas as obras dos maus, como também os seus
conselhos. De fato, conforme diz o Apóstolo,
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"o homem espiritual julga todas as coisas,
e ele não é julgado por ninguém".
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Pode-se supor, a julgar pelo que ele responde mais adiante (Num.
22,18), que o preço da adivinhação e da maldição que os
anciãos enviados por Balac de Moab e de Madian levavam nas mãos
para Balaão (Num. 22,7) tivesse sido ouro ou prata, ou mesmo
ambos. Pois, de fato, aos mensageiros que vinham ter com ele pela
segunda vez, disse Balaão:
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"Ainda que Balac me desse a sua casa
cheia de prata e de ouro,
eu não poderei alterar
a palavra do Senhor meu Deus".
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Mesmo tendo dado esta resposta, entretanto, Balaão rogou aos
mensageiros que ficassem com ele mais uma noite, para que pudesse
perguntar ao Senhor ainda mais uma vez se poderia ou não
acompanhá-los (Num. 22,19), o que nos ensina que é nas
próprias trevas, e não na luz, que os maus buscam conselho sobre
como poderão perpetrar as obras das trevas. A eles responde
Isaías, dizendo:
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"Quando vos disserem:
`Consultai os pitões e os adivinhos
que se dedicam aos seus encantamentos',
porventura não é de seu Deus
que o povo há de buscar,
em vez de buscar dos mortos
em favor dos vivos?
Antes à Lei e ao testemunho,
e se seus discursos não forem
conforme esta palavra,
não despontará para eles a luz da manhã".
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O ouro e a prata, que supomos terem sido o preço da maldição,
significam a sabedoria e a eloqüência mundana, coisas que os mais
vãos entre os vãos amam com todas as entranhas por causa da perniciosa
quantidade de dinheiro com que costumam ser recompensadas. É,
portanto, pela sugestão diabólica que os amantes da vaidade se
inclinam a considerar os sábios e os eloqüentes de um modo especial
entre os demais homens. Assim como Balaão, estes também são
conduzidos dos montes do oriente para profereirem sua maldição
(Num. 23,7), pois é da soberba e da astúcia que procede sua
pronta disposição para injuriarem os bons. Pelos montes, de fato,
figura-se a soberba; e pelo oriente, de onde surge a luz mundana,
figura- se a astúcia.
A jumenta em que Balaão se sentou (Num. 22,22), significa
adequadamente a multidão dos súditos estultos, sobre a qual se sentam
os próprios mestres do erro, na medida em que, pela autoridade de sua
doutrina, possuem sobre eles o principado. Mas o anjo do Senhor,
com sua espada desembainhada, ou seja, a ordem angélica com o terror
do julgamento divino, resiste a ambos no caminho da má intenção,
assim como ocorreu com Balaão e sua jumenta (Num.
22,22-23).
Foi a jumenta, antes mesmo do próprio Balaão, que por primeiro
advertiu a presença do anjo com sua espada, desistindo com isto de
prosseguir no caminho do mal (Num. 22,23); posteriormente,
abrindo o Senhor os olhos também a Balaão, e vendo também ele ao
anjo, ficou tomado de pavor (Num. 22,31). Com isto a
Escritura nos mostra que os mais simples mais facilmente e também mais
rapidamente são abalados pelo terror do julgamento divino e abandonam a
intenção da perversidade já iniciada do que aqueles que são
ofuscados pelas trevas de uma maior soberba e impiedosa astúcia.
Balaão, porém, enquanto o Senhor não lhe abre os olhos, fustiga
a jumenta cada vez mais fortemente com suas esporas (Num.
22,23-27), pois o magistrado daqueles que amam a vaidade,
menos atemorizado e ainda sem compreender o julgamento divino, aflige
com palavras duríssimas o povo que lhe é submetido e, tanto quanto
lhe é possível, o obriga a seguir consigo o caminho da iniqüidade.
Antes que Balaão tivesse visto o anjo, a jumenta, já vendo-o no
caminho, fugiu pelo campo cultivado com vinhas. Entretanto,
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"como Balaão a fustigasse
e a quisesse fazer voltar à estrada,
o anjo pôs-se numa passagem estreita entre dois muros
com que estavam cercadas as vinhas".
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As vinhas são as diversas comunidades da Igreja. Os muros, pelos
quais estas vinhas estão cercadas, são os doutores pelos quais as
comunidades dos justos são guarnecidas e fortificadas. A passagem
estreita é o preceito da justiça, ou a diligente censura e a
inteligência sutil da doutrina da Igreja. Conduzido para a passagem
estreita, Balaão vê esvair- se a sua esperança quando comprova que
os esforços de sua perversa intenção são contrários a Deus.
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"O Senhor então abriu a boca da jumenta,
que disse:
`Que te fiz eu?
Por que me feres?'".
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A jumenta fala, pois a multidão dos súditos, auxiliada pela
autoridade dos santos doutores, queixa-se com razão da severidade da
justiça com que é dominada.
Balaão, finalmente, reconhecendo que, se perseverar na sua
intenção de amaldiçoar o povo, caminha contra Deus (Num.
22,34), corrige-se pelo temor. Se não abandona a malícia de
sua péssima vontade, pelo menos abstém- se da perversidade da
injúria. Sua maldição se transforma em bênção (Num.
23,11). Corrigido pelo temor do julgamento divino, é compelido
a silenciar o mal; ainda que contra a vontade, esforça-se em
proclamar o bem dos justos.
Bem mais adiante, a Escritura também nos declara Balaão ter sido
morto pela espada dos filhos de Israel (Num. 31,8). Com isto
ela nos ensina que o principado dos que seguem o que é vão acabará,
no fim, condenado pelo julgamento dos justos.
Irmãos caríssimos, tratamos de todas estas coisas percorrendo apenas
a sua superfície. Deixamos para vós a tarefa de investigar a sua
profundidade. Não é pouco o que resta para ser declarado desta
história; pareceu-nos bem, portanto, encerrar este sermão com o
que já dissemos, reservando o que se segue para ser tratado na
próxima ocasião.
Agora, caríssimos, já que saímos pela fé do Egito espiritual,
caminhando pelo deserto devemos tender para a terra da promissão.
Vejamos, pois, se somos verdadeiros israelitas. O Egito é o
caminho do mundo, o deserto é a vida espiritual, a terra da
promissão é a vida celeste. O Egito é a carne, o deserto é a
alma, a terra da promissão é Deus. Seremos verdadeiros israelitas
se contemplarmos a Deus não apenas pelo olho do conhecimento, mas
também pelo olho do amor. Se tivermos sadios ambos estes olhos,
permaneceremos no caminho reto, e por ele entraremos na terra da
suprema promissão.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, nosso
Senhor, que é bendito pelos séculos.
Amén.
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