CAPÍTULO III

Tendo, pois, estado algum tempo esta luz divina e resplandecente escondida, quis o Senhor colocá-la no candelabro para que iluminasse a todos os de sua casa, e inspirou o abade Estevão para que edificasse um mosteiro em Claraval e que o seu abade fosse São Bernardo, que era ainda jovem e de pouca saúde e não acostumado a tratar com seculares em semelhantes ocupações.

Claraval era um lugar próximo ao rio Alba, no território de Langres, antigo covil de ladrões e de salteadores. Chamavam-no de Vale dos Absintos, seja porque ali havia muitos, seja pela amargura dos que caiam nas mãos dos ladrões. Aqui se fez o novo mosteiro, que foi como que a primeira colônia e povoação que saiu de Cister.

São Bernardo procurou o quanto pode não ser superior de ninguém, mas sujeito a todos; no fim, porém, curvou a cabeça à obediência, considerando especialmente que para lá não se dirigia a passeio, mas a trabalho. O mosteiro não tinha fundação, a casa era muito fria, estreita e mal acondicionada, de modo que os padres que à fundaram passaram por grandes necessidades, fome, sede, frio e falta de roupas. A comida era de folhas de faia cozidas; o pão, de cevada e milho; tão áspero, que um religioso que foi hóspede levou consigo um daqueles pães para mostrá-lo como milagre, julgando como tal que os que o comessem pudessem viver.

O procurador da casa era Gerardo, irmão do santo, o qual, vendo a extrema pobreza que os religiosos padeciam e não encontrando maneira de remediá-la, foi até são Bernardo e lhe expos as necessidades do convento e que, pelo menos, seriam necessárias onze libras de soldo para sustentar o convento e não perecessem os monges. Animou o santo ao procurador, seu irmão, e feita a oração, logo bateu à porta uma mulher que, deitando-se aos seus pés, entregou-lhes uma esmola de doze libras, suplicando que encomendassem seu marido à Deus, por estar gravemente doente. Agradeceu o santo a esmola e disse à mulher que, voltando para casa, encontraria curado o seu marido, como realmente o achou ao chegar. Aproveitando-se deste fato, o abade repreendeu suavemente a pusilanimidade do procurador e aqueles religiosas aprenderam a confiar em Deus, que nunca desampara aos que realmente O servem.

Tinha-se São Bernardo por indigno de que Deus se servisse dele para a salvação das almas, mas a grande caridade que ardia em seu peito o fazia esquecer-se de sua indignidade e dava-lhe grandes ânsias de buscar e procurar a salvação de seus próximos. Pôs-se uma noite a considerar isto na oração, e teve uma visão em que parecia- lhe que de todas as partes, por aqueles montes, vinha um grandíssimo número de homens, de diversos estados e hábitos, e que baixavam ao vale onde estava seu mosteiro, de modo que não caberia toda aquela gente naquele lugar. O significado da visão foi manifestado pelos fatos na multiplicação dos religiosos que militaram sob este grande patriarca e dos muitos e ricos mosteiros que em tantos lugares se fundaram pela sua mão. Entre os que vieram tomar o hábito, para maior consolação de São Bernardo, um dos primeiros foi Tescelin, seu pai, que fazendo-se filho e irmão em espírito daquele que havia engendrado segundo a carne, entrou no mosteiro e concluíu santamente sua peregrinação. A irmã, a única que permanecia no mundo, casada com um homem rico e entregue às galas e pompas da terra, tendo chegado ao mosteiro muito enfeitada e acompanhada para ver seus irmãos, ficou confusa quando soube que não a queriam ver; ouvindo as palavras de vida que lhe disse São Bernardo que, vencido pelos prantos e lágrimas que derramava, acabou saindo para vê-la, transformou-se e de tal maneira que converteu todo o cuidado que antes punha em embelezar e enfeitar seu corpo para embelezar a sua alma e enriquece-la com obras de penitência e de piedade, e isto com tão grande fervor que seu próprio marido, ao fim de dois anos, concedeu-lhe licença para entrar no convento das monjas de Villeto e consagrar-se ao Senhor, onde perseverou santamente e entregou seu espirito a Deus.

Mas não deve causar tanta admiração que Deus Nosso Senhor trouxesse tantos homens de tão diferentes estados e condições para que O servissem em um gênero de vida tão rigoroso e perfeito sob a regra e instituição de São Bernardo, quanto o modo raro e maravilhoso com que os trazia pela intercessão e pelas orações do próprio santo.

Certa vez veio uma quadrilha de jovens cavaleiros, bizarros e galhardos, para ver o santo abade, de quem a fama publicava grandes coisas. Era tempo de Quaresma, e eles, com o ardor da juventude, buscaram um lugar ali, próximo à igreja, para correrem, exercitarem-se nas armas e se entreterem. Pediu-lhes o santo que não o fizessem, mas não quiseram. Mandou então que lhes levassem cerveja e, abençoando-a primeiro, deu-a para que bebessem. Mal haviam saído do mosteiro quando, movidos por um novo espírito que vinha do céu, começaram a tratar entre si sobre a vaidade do mundo, seus enganos e perigos, e de tal maneira se inflamaram no desejo da perfeição que logo, sem demora, todos juntos, com um só ânimo e uma só vontade, voltaram ao mosteiro e com muita humildade pediram para que nele fossem admitidos, onde com grande fortaleza e paciência, passando por muitos trabalhos, perseveraram gloriosamente na religião.

Foi esta mudança verdadeiramente proveniente da destra do Altíssimo, mas não o foram menos outras, entre as quais a de um clérigo chamado Marcelino que, indo em nome do arcebispo, seu senhor, receber São Bernardo que vinha a Mogúncia, dizendo-lhe quem era e quem o enviava, o santo parou e, pondo os olhos nele, disse-lhe:

"Outro Senhor maior vos enviou
e quer se servir de vós".

E ainda que a princípio o clérigo contradissesse e estivesse alheio e muito além de tal pensamento, no fim se rendeu e em companhia de muitos homens doutos e honrados veio até o mosteiro de Claraval para pedir o hábito.

E não é de menor admiração o que sucedeu com Henrique, irmão carnal do rei de França; antes, é tão maior quanto mais alta era a dignidade da pessoa com quem ocorreu. Havia vindo este príncipe a Claraval para tratar com o santo abade de alguns negócios de importância. Quando os havia terminado, pediu para que se juntassem todos os monges para despedir-se deles e encomendar-se às suas orações. Assim se fez, e logo disse-lhe o santo que tinha esperança de que não morreria no estado em que estava no presente, senão que rapidamente entenderia por experiência o quanto era eficaz a intercessão que havia pedido àqueles servos de Deus. Cumpriu-se aquela profecia, de maneira que no próprio dia determinou-se Henrique a seguir as pegadas de Cristo Nosso senhor e morrer na cruz da santa religião. Sentiu a mudança de seu senhor toda a sua família, que o chorava em vida por morto. Porém, entre os demais criados, havia um que se chamava André, o qual teve tão estranho sentimento, que saiu como que fora de si e, frenético com a cólera, começou a dizer blasfêmias e graves injúrias contra o santo abade, como se se tratasse de um charlatão ou de um falso profeta. Rogou o príncipe ao santo que o acalmasse e que e pusesse nele maior cuidado do que nos outros para convertê-lo ao Senhor, ao que São Bernardo lhe disse:

"Deixai-o agora, pois está muito amargo e cego com a paixão, e considerai-o como vosso".

E como a Henrique, com esta nova esperança, lhe crescesse mais o desejo e tornasse a pedir ao bem-aventurado padre que lhe falasse, o santo lhe respondeu com um rosto severo:

"Não já vos disse que é vosso?"

Ouviram esta argumentação todos os presentes e o próprio André, o qual, mais obstinado e furioso do que antes, balançando a cabeça, dizia dentro de si, como depois o confessou:

"Agora sim conheço que és falso profeta,
porque jamais acontecerá o que dizes".

Partiu no dia seguinte muito furioso, lançando maldições ao abade e suplicando a Deus que se abrisse a terra para que tragasse aquele mosteiro. Mas naquela mesma noite, estando na pousada, sentiu tão grandes aguilhões ou impulsos e movimentos interiores, que logo levantou-se da cama sem esperar o dia e voltou a Claraval para pedir com grande humildade que lhe fosse concedido receber o hábito, para admiração e consolo dos que ali estavam e sabiam sobre o que havia se passado.

Em outro caminho que fez São Bernardo a Flandres, ganhou para o Senhor alguns nobres e letrados flamengos, que o seguiram e voltaram com ele para a Borgonha. E em Chalons, cidade da Champanhe de França, estendendo as redes da pregação, colheu uma grande quantidade de excelentes homens, e cada dia se via entrar pelas portas de seu mosteiro muitos que, movidos pela fama do santo e desenganados da vaidade e dos embustes do mundo, vinham para imitar a Cristo sob tão valoroso capitão.