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A segunda característica da escola vitorina é o papel de singular
importância que o estudo das Sagradas Escrituras desempenha no
desenvolvimento da vida espiritual, papel que, quase como que num
desenvolvimento natural da característica precedente, os vitorinos
não apenas nos deram o exemplo pela vivência como também a
explicação pela doutrina. Percebe-se claramente nos escritos dos
vitorinos que estamos diante de pessoas que não apenas amavam as
Escrituras, como também que se alimentavam delas num sentido
impressionantemente semelhante às exortações que, desde o início do
século 20, os Sumos Pontífices da Igreja Católica têm feito a
todos os fiéis para que se alimentassem da Sagrada Eucaristia. Não
conhecemos nenhum outro exemplo tão luminoso, em toda a história da
Igreja, daquele princípio que o Concílio Vaticano II enunciou em
sua constituição Dei Verbum sobre as Sagradas Escrituras:
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"A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras
da mesma forma como o próprio corpo do Senhor,
já que, principalmente na Sagrada Liturgia,
sem cessar toma tanto da palavra de Deus
como do corpo de Cristo
o pão da vida e o distribui aos fiéis".
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Os escritos dos vitorinos nos dão razões profundíssimas do motivo
pelo qual isto é exatamente assim, um exemplo de como isto se torna
realidade e nos mostram como isto, inserido dentro de um adequado
contexto, conduz à vida de contemplação.
Sem a intenção de entrar neste que é inteiramente outro assunto,
recolhemos algumas passagens, a título de ilustração, dos sermões
de Hugo de São Vitor, em que ele se refere às Escrituras:
SERMO 4 :
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"Devemos buscar nosso alimento",
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diz Hugo de São Vitor,
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"pelo estudo das Escrituras.
Os maus não apetecem este alimento,
conforme está escrito:
`Sua alma aborrecia todo alimento,
e chegaram às portas da morte'.
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Ele, porém, é dado aos bons,
conforme está escrito:
`Enviou a sua palavra para curá-los,
para livrá-los da ruína'.
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SERMO 5 :
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"Devemos preparar nosso alimento
pelo mais frequente e diligente estudo
e meditação das Sagradas Escrituras.
Por meio deste alimento a alma se robustece,
por ele engorda,
por ele adquire força para a boa obra,
e por ele é conduzido sem defeito à perfeição".
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SERMO 11 :
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"Nossa dieta são as Sagradas Escrituras,
que é servida para nós de modos diversos,
na medida em que nos é ensinada
conforme a diversa capacidade dos ouvintes.
Ora ela é servida aos ouvintes e aos leitores
pela história, ora pela alegoria,
ora pela moralidade, ora pela anagogia;
ora pela autoridade do Velho Testamento,
ora pela autoridade do Novo;
ora envolvida no véu do mistério,
ora em sua forma pura, límpida e aberta".
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SERMO 21 :
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"A boca é o símbolo da inteligência.
Assim como recebemos o alimento pela boca,
assim também é pela virtude da inteligência
que recebemos o alimento da divina leitura.
Os dentes significam a meditação,
pois assim como pelos dentes trituramos
o alimento que recebemos,
assim também pelo ofício da meditação
discutimos e dividimos mais sutilmente
o pão recebido pelo estudo das Escrituras".
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SERMO 85 :
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"Vejamos agora, irmãos caríssimos,
se somos verdadeiramente da linhagem
de nosso bem aventurado Pai Santo Agostinho,
isto é, se somos seus imitadores tal como o devemos ser.
Vejamos se, contemplando o seu exemplo,
amamos a palavra de Deus,
estudando-a, meditando-a,
escrevendo sobre ela,
ensinando-a conforme a graça
que nos foi concedida;
se imitamos, enfim, seu exemplo,
vivendo com todas as nossas forças
sua honestíssima religião".
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SERMO 95 :
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"O Senhor disse, falando a Moisés
sobre a mesa da proposição
que este deveria fazer:
`Farás também uma mesa de pau de cetim,
que tenha dois côvados de comprimento,
um côvado de largura
e um côvado e meio de altura.
E cobri-la-ás de ouro puríssimo,
e far-lhe-ás um lábio de ouro em roda...
... e porás sempre sobre a mesa
os pães da proposição na minha presença'.
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O que é esta mesa, caríssimos,
senão a Sagrada Escritura?
Pois todas as vezes em que
ela nos exorta a bem viver,
tantas são as vezes em que
ela nos oferece o pão da vida.
Lemos que esta mesa é feita de pau de cetim,
pois a verdade da Sagrada Escritura
não se corrompe pelo envelhecimento.
À semelhança da mesa da proposição,
a Escritura também possui dois côvados de comprimento,
pois nos ensina as duas partes da fé,
aquela pela qual cremos no Criador
e aquela pela qual cremos no Redentor.
Possui um côvado e meio de altura
quando nos ensina qual é a altura da esperança
e o início da contemplação.
Possui um côvado de largura
quando nos ensina qual é a largura da caridade.
Esta mesa espiritual é inteiramente coberta
de ouro puríssimo,
pois refulge em toda a sua extensão
não apenas pelos milagres,
como principalmente pela caridade da sabedoria celeste.
O lábio de ouro em sua roda são
os ensinamentos dos santos doutores,
não apenas porque a circundaram
em toda a sua extensão
sem nada haverem deixado
que não tivessem observado,
como também porque se apoiaram
em todos os seus ângulos
para mostrarem aos maus a sua malícia
e aos bons ensinarem o melhor.
Os pães da proposição
são as palavras da sabedoria celeste,
corretamente chamados de pães da proposição,
porque a doutrina da salvação
deve ser proposta sempre a todos os fiéis
e nunca deve faltar na Igreja a palavra de auxílio,
que o Senhor quis que abundasse incessantemente
até o fim dos tempos para todos aqueles
que tem fome e sede de justiça
e que se manifestasse ao mundo
através dos pregadores da verdade
que vivem em sua presença".
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Deve-se acrescentar a estas citações a observação segundo a qual
esta mesma coleção dos 100 Sermões de Hugo de São Vitor,
organizada por ele mesmo, embora contenha inúmeras exortações à
prática das virtudes, conforme seu autor no-lo indica no prólogo e o
torna patente ao longo da sua obra, não foi escrita, entretanto,
tendo como seu principal objetivo a exortação à virtude, mas sim o
de propor aos seus ouvintes algo pelo qual pudesse exercitar-lhes o
entendimento sobre o modo pelo qual o homem pode aproximar-se das
Escrituras para utilizá-las em favor de seu crescimento espiritual.
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