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Cerca de duzentos anos depois, se tornamos a investigar o tema da
contemplação nos filósofos gregos, já encontraremos novos
aprofundamentos. No diálogo denominado Timeu, Platão descreve um
encontro de Sócrates com o sábio cujo nome, Timeu, deu o título
à obra.
Timeu havia passado uma vida observando a natureza:
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"Era o melhor astrônomo",
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diz o diálogo,
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"e quem se deu a mais trabalho
para penetrar a natureza do Universo" (22).
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Sócrates pede então que Timeu lhe descreva aquilo que ele aprendeu
durante seus tantos anos de trabalho. Timeu concorda e faz uma
descrição de toda a ordem do Universo. Mas no meio do diálogo
encontra-se uma passagem que é como que uma conclusão da descrição
que Timeu fêz a Sócrates:
diz Timeu,
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"descobrir o autor
e o pai deste Universo
é uma tarefa difícil;
uma coisa, porém,
é evidente:
(seja quem for que fêz
o que estamos vendo),
ele contemplava um modelo eterno" (23).
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Não há como não perceber que nesta passagem de conteúdo tão denso
estamos diante de uma notável evolução em relação às idéias que
viemos expondo.
De fato, com os pré-socráticos naturalistas, apesar da
contemplação da natureza já ser entre eles um exercício da
inteligência, os primeiros princípios desta natureza eram
considerados entidades ao modo de causa material, se bem que
Anaxágoras, já bastante posterior inclusive a Pitágoras,
admitisse também um princípio inteligente.
Com Pitágoras a essência da natureza não é a matéria de que ela
é feita; esta é apenas o suporte de uma ordem inteligível que é a
sua verdadeira essência.
Mas aqui, com Timeu, parece pretender-se que a essência da
natureza não é sequer isto; a natureza parece comportar-se como se
tivesse sido feita por alguém, sabe- se lá quem, que, ao
fazê-la, contemplava um modelo eterno.Mesmo que se discuta a
existência deste alguém e deste modelo, permanece todavia o fato de
que a natureza parece comportar-se tal como se assim fosse. Este
modelo eterno, mesmo abstraindo-se a questão de sua existência, é
que é o primeiro princípio da natureza, mais ainda do que a própria
ordem do Universo, muito mais ainda do que o suporte material de que
ela possa ser feita.
As implicações desta observação de Timeu são evidentes; sábio
será aquele que consegue elevar sua mente até a contemplação do
modelo do qual proveio o cosmos. Foram necessários quase três
séculos de gerações de sábios para que a filosofia grega começasse
a perceber isto.
Daí o surgimento com Platão de uma concepção mais profunda do que
seja um filósofo. Com ela surge também uma mais profunda pedagogia
para permitir a realização deste ideal.
Platão deixou uma definição magistral do que seja um filósofo, um
marco comparável ao de Pitágoras quando, séculos antes, ele havia
recorrido à comparação com o espetáculo dos Jogos Olímpicos.
Esta definição de Platão está contida no Livro V da
República, obra que contém também as idéias pedagógicas de
Platão.
No diálogo a República, Glauco pergunta a Sócrates o que é um
filósofo. Sócrates responde:
"Será preciso,
para entende-lo,
recordar-te ou que te recordes tu mesmo
que aquele de quem dissemos
que ama alguma coisa deve,
para que a expressão seja correta,
amar não apenas uma parte do objeto amado,
mas a sua totalidade.
Assim também não podemos dizer
que o filósofo é aquele que ama a sabedoria
apenas em parte,
mas na sua totalidade.
Aquele que,
com as melhores disposições,
saboreia todo gênero de ensinamento,
aquele que está sempre pronto para aprender
sem mostrar-se nunca cansado,
a este chamaremos com justiça de filósofo" (24).
Glauco, porém, interrompe esta explicação. Ele não entendeu o
que Sócrates quiz dizer. Se é de fato assim como diz Sócrates,
ele tem muitas objeções a fazer. Eis aqui algumas:
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"Mas Sócrates,
se nos ativermos ao que dizes,
irás encontrar
uma verdadeira multidão destas criaturas.
Tais me parecem ser
os aficcionados por espetáculos,
que também se comprazem no saber.
Há também os que gostam
das apresentações do teatro e da música,
um gênero de pessoas muito estranho
para ser contado entre os filósofos,
que com certeza
nunca compareceriam de boa vontade
a estes discursos com que nós nos entretemos.
Estes mesmos, entretanto,
como se tivessem alugado suas orelhas,
correm de um lado para outro
para ouvir todos os coros das festas dionisíacas,
sem perder nenhum,
seja que se apresentem em outra cidade
ou mesmo em alguma aldeia.
A todos estes
e a outros aprendizes deste gênero,
até mesmo os das artes mais mesquinhas,
deveremos chamar de filósofos?" (25).
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Sócrates, ao ouvir a objeção de Glauco, já tinha a resposta.
Eis o que ele diz:
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"Não, certamente
estes não são filósofos;
são apenas pessoas
semelhantes aos filósofos.
Os verdadeiros filósofos
são aqueles que gostam
de contemplar a verdade" (26).
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Para explicar melhor o que acaba de dizer, Sócrates passa a fazer
uma distinção entre uma idéia considerada em si mesma e as
aparências destas idéias nos corpos e nas ações dos homens:
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"O bom e o justo,
e todas as idéias,
tomadas em si mesmas,
são,
cada uma delas,
uma coisa distinta.
Quando, porém,
cada uma delas se mistura
com as ações dos homens,
com os corpos e entre elas próprias,
passamos a vê-las
sob uma multidão de aparências.
Por isto devemos distinguir
entre os aficcionados
pelos espetáculos e pelas artes
e os homens de ação, por um lado,
e pelo outro,
aqueles de quem ainda agora falávamos,
os únicos que corretamente
podemos chamar de filósofos.
Os amigos das audições e dos espetáculos
gostam de belas vozes,
cores e formas
e de todas as coisas elaboradas
com estes elementos,
porém as suas mentes são incapazes
de ver e saborear
a natureza do belo em si mesmo.
Raros são aqueles que têm a capacidade
de apreciar a natureza do belo em si mesmo.
Aquele que pode ver apenas
as coisas belas,
mas não a beleza em si mesma,
que tampouco é capaz,
se alguém lhe guia,
de segui-lo até o conhecimento dela,
este vive em sonhos.
Que outra coisa é sonhar,
seja dormindo,
seja com os olhos abertos,
senão tomar a cópia pelo objeto real?" (27).
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O filósofo, pois, segundo Sócrates, não é aquele que contempla
as coisas belas, mas aquele que contempla a beleza tal como ela é em
si mesma. A beleza tal como ela é em si pode se realizar de infinitas
maneiras, em uma rosa, em uma paisagem, em uma música, em uma boa
ação. Mas cada uma destas realizações não esgota senão uma
pequeníssima parte das possibilidades da beleza; não é a própria
beleza com todas as possibilidades que ela contém, é apenas uma
pequeníssima parte dela; é uma beleza que possui apenas em parte
aquilo que a beleza em si possui inteiramente; estas realizações não
são a beleza, são participações mínimas da verdadeira beleza;
esta verdadeira beleza não é mais do que aquele modelo eterno que o
pai do Universo, fosse quem fosse, estava contemplando quando fêz o
Universo, colocando em cada coisa uma pequenina parte do que ele via
na beleza que ele contemplava. As pessoas que gostam apenas de ver
coisas belas, diz Sócrates, estão dormindo de olhos abertos;
estão confundindo a cópia com o original. Só são verdadeiros
filósofos aqueles que perceberam que tudo o que vemos não passa de uma
cópia de um original mais perfeito, e que, deixando a cópia de
lado, partem em busca do original; e que, em o alcançando, se
dedicam a contemplá-lo; são, deste modo, diz Sócrates na mesma
passagem já citada, aqueles
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"que gostam
de contemplar
a verdade" (28).
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Referências
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(22) Platão: Timeu, 27 a. (23) Ibidem; 28 c-29 a.
(24) Idem: A República, L.V, 474 c; L.V, 475 b-c.
(25) Ibidem, L.V, 475 d-e. (26) Ibidem, L.V,
475 e. (27) Ibidem, L.V, 476 a-c. (28) Ibidem,
L.V, 475 e.
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