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Não basta, porém, apenas que a fé seja animada pela esperança.
As Sagradas Escrituras, na Epístola aos Gálatas, depois de
recordar aos cristãos da Galácia que havia sido através da fé que
haviam recebido o Espírito Santo (Gal. 3, 1-5), acrescentam
que a fé a que São Paulo se refere é aquela fé que "opera pela
caridade" (Gal. 5, 6):
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"Ainda que eu tivesse toda a fé",
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diz São Paulo,
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"ao ponto de transportar os montes,
se não tivesse caridade,
não seria nada".
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Em conformidade com estas palavras, a Epístola de São Tiago diz
também que a fé, sem a obra da caridade, ainda que fosse animada
pela esperança,
A esperança de tal homem seria inútil:
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"Poderá salvá-lo tal fé?",
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pergunta São Tiago (Tg. 2, 14). Nos escritos de Santo
Tomás de Aquino encontramos também repetidamente afirmado que a fé
somente se torna realidade perfeita através da caridade.
A caridade é o amor a Deus que nos foi prescrito no Evangelho de
São Marcos como sendo o maior de todos os mandamentos:
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"Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração,
com toda a tua alma,
com todo o teu entendimento,
com todas as tuas forças".
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Poderia-se chamar ao que nos foi ordenado neste mandamento apenas de
amor, mas a tradição cristã preferiu em vez disso utilizar-se da
palavra caridade, uma palavra especial, porque em todos os tempos os
cristãos perceberam que a caridade é mais do que amor. A caridade é
amor, mas é um amor muito especial, um amor que só pode nascer não
apenas da fé, mas também necessariamente da esperança.
Amor, no seu sentido mais geral, significa uma afinidade da vontade
por alguma coisa. A caridade, embora sendo um amor especial, sendo
porém também amor, pressupõe esta afinidade para com as coisas
divinas pela qual amamos a Deus. Mas se a caridade fosse apenas esta
afinidade pelas coisas divinas, não haveria razão para que fosse
chamada com um nome especial.
Se a caridade fosse apenas uma afinidade pelas realidades divinas,
seria ela a mesma coisa que o amor, tomado em seu sentido genérico,
ainda que preceituado ao seu grau máximo:
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"a Escritura não preceituou
apenas que amássemos a Deus,
ou que amássemos apenas a Deus,
mas que o amássemos o quanto pudéssemos",
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diz Hugo de São Vítor.
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"A tua possibilidade
será a tua medida".
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Um amor desta natureza pressuporia uma afinidade para com as coisas
divinas levada ao seu grau máximo, o que certamente também
pressuporia a fé, mas poderia ser alcançado sem a esperança. Mesmo
levado a este grau máximo, portanto, a caridade não passaria de
outro nome do amor, tomado na sua máxima intensidade.
A caridade, porém, diz Santo Tomás de Aquino, não é apenas
amor; é uma forma especial de amor a que chamamos de amizade. O amor
de caridade não é apenas aquele amor pelo qual o homem cumpre o
mandamento de amar a Deus de todo o coração, com toda a alma, com
todo o seu entendimento, e com todas as suas forças; é aquele amor
que pressupõe o amor pelo qual o homem é amado primeiro por Deus.
Na Epístola de São João as Sagradas Escrituras se expressam a
este respeito muito claramente:
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"Nisto consiste a caridade",
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diz São João em sua primeira epístola,
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"não fomos nós que amamos a Deus,
mas Ele que nos amou primeiro".
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São João diz isto porque as Sagradas Escrituras nos mostram
repetidas vezes que Deus nos quer tratar não apenas como objetos de
seu amor, como trata na realidade tudo o que há no Universo, obra de
sua criação, mas nos quer tratar como a amigos. O amor que Ele tem
por nós é muito especial, apesar de não o merecermos ou até mesmo
de merecermos o contrário. Na parábola do filho pródigo lemos que
quando este filho retornou à casa do pai e pediu para ser contado
apenas entre os seus servos, conforme ele merecia, Deus o acolheu
novamente como filho, fazendo pouco ou nenhum caso de seus pedidos de
ser recebido entre os criados. Todas as Sagradas Escrituras,
ademais, dão a entender que Deus não quer apenas a nossa
felicidade, mas, mais do que isso, Ele quer nos tornar participantes
de sua própria felicidade. E no Evangelho de São João, lemos
que Jesus disse, durante a última ceia, aos seus discípulos:
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"Não vos chamo mais de servos,
porque o servo não sabe
o que o seu amo faz;
mas eu vos chamo de amigos,
porque tudo o que ouvi do Pai
eu vos dei a conhecer".
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Ora, isto é mais do que amor no sentido genérico da palavra, diz
Santo Tomás de Aquino. O que todas estas palavras da Escritura
nos revelam é a verdadeira natureza da amizade:
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"A amizade requer por natureza
uma mútua benevolência",
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diz Santo Tomás de Aquino,
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"porque o amigo é,
para o amigo,
outro amigo;
requer, ademais,
que esta benevolência se fundamente
sobre alguma comunicação.
A caridade é o amor de amizade
fundamentado sobre a comunicação
entre Deus e o homem
na medida em que Deus quer nos comunicar
a sua própria felicidade",
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Summa Theologiae
IIa IIae, Q.23 a.1
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e o homem, em resposta,
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"se une a Deus pelo afeto de tal modo
que não vive mais para si,
mas para Deus".
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Está se vendo, pois, que a caridade é mais do que amar a Deus.
Para amar a Deus, seria suficiente o conhecimento da fé. Mas a
caridade pressupõe a aceitação daquele amor com que Deus, apesar de
não o merecermos, nos amou primeiro, amor pelo qual Ele nos quer
tratar como a um amigo e nos fazer participantes de sua vida, de sua
natureza e de sua felicidade. Ora, esta aceitação se dá pela
esperança, pela qual aspiramos precisamente à participação da
eterna felicidade que há em Deus. Sem o desejo do céu, portanto,
não pode haver caridade. A caridade é uma entrega mútua entre Deus
e o homem.
Talvez a mais bela descrição encontrada na tradição cristã do que
seja a caridade esteja contida naquela oração com que Santo Inácio
de Loyola encerra seus Exercícios Espirituais:
diz Santo Inácio,
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"e recebei toda a minha liberdade,
a minha memória,
o meu entendimento,
e toda a minha vontade,
tudo o que eu tenho e possuo;
Vós mo destes,
a Vós, Senhor, o restituo:
tudo é vosso,
disponde de tudo à vossa vontade;
dai-me o vosso amor e graça,
que isto me basta".
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Quem quer que seja verdadeiramente sincero ao se dirigir a Deus com
tais palavras, pode estar certo de viver na caridade.
Pode estar certo, também, conforme veremos mais adiante, de viver
na graça de Deus. Chama-se graça, no dizer de Santo Tomás de
Aquino, a uma
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"luz e esplendor da alma,
que lhe é uma qualidade,
assim como a beleza o é para o corpo,
infundida por Deus
juntamente com a caridade na alma,
como se Deus a estivesse criando novamente
e através da qual,
já nesta vida,
a alma participa da natureza divina".
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Por causa disso, diz mais ainda Santo Tomás:
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"aqueles que amam a Deus deste modo
têm em si próprios
a maior prova de serem amados por Deus,
porque ninguém pode amar a Deus deste modo
se Deus não o amar primeiro,
pois o próprio amor pelo qual
nós amamos a Deus deste modo
é causado em nós pelo amor
com que Deus nos ama".
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