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Vimos a atitude de Santa Clara diante da beleza de uma árvore,
inspirada no exemplo de São Francisco. Examinamos a de São
Bernardo, diante de um dos lagos mais belos da Terra. Com Hugo de
São Vitor nos deparamos com uma terceira atitude diante da mesma
situação. Embora haja pouquíssimos dados biográficos sobre Hugo
de São Vitor, muitíssimo menos do que os que existem sobre Santa
Clara e São Bernardo, suas obras, entretanto, por trás de uma
aparente impessoalidade, são um perfeito espelho de sua alma, mais
até do que o seria uma sua possível biografia. Através destes
escritos podemos reconstituir, com razoável probabilidade, como Hugo
se comportaria, na condição de um cristão que busca a Deus, se se
visse diante de uma linda árvore ou de um belíssimo lago.
Se se encontrasse diante de um belíssimo lago, Hugo de S. Vítor
provavelmente nem louvaria imediatamente a Deus, nem, porém, se
negaria a contemplar o lago. Começaria provavelmente a refletir.
Como é grande este lago, pensaria. Quantas gotas de água haverá
nele? Pensaria em um número pelo qual poderia enumerá-las, para
reconhecer em seguida tratar-se de uma tarefa humanamente impossível.
No entanto, continuaria Hugo, Deus certamente conhece, em sua
sabedoria, o número exato, tão claramente como o faria um homem
diante de duas ou três frutas. É uma sabedoria admirável, tão mais
admirável quanto mais se considera a impossibilidade humana de
alcançá-la. E, no entanto, Deus não conhece apenas quantas
gotas há neste lago, como também, à diferença do homem diante das
três frutas, criou-as a todas, tirando-as do nada:
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"Que potência não seria necessária,
quando nada existia,
para fazer com que do nada algo existisse?
Que sentido poderá compreender",
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escreve Hugo,
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"quanta virtude não haverá
no se fazer do nada uma única coisa,
ainda que seja a mínima de todas?
Se, portanto, há tanta potência
no se fazer do nada uma só coisa,
ainda que pequena,
como não se poderá compreender
quão grande deveremos estimar a potência
que criou tamanha multidão de seres?
De que tamanho é esta multidão?
Quantos são?
O número das estrelas do céu,
a areia do mar, o pó da terra,
as gotas da chuva, as penas das aves,
as escamas dos peixes, os pelos dos animais,
a grama dos campos,
as folhas e os frutos das árvores,
e os números inumeráveis dos demais inumeráveis,
qual é a magnitude desta grandeza?
Mede a corpulência das montanhas,
o curso dos rios, o espaço dos campos,
a altura do céu, a profundidade do abismo.
Admira, pois não o és capaz;
mas justamente não o sendo capaz
é que melhor te admirarás".
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Este lago, pois, consideraria Hugo de S. Vitor, é na realidade
um caminho que Deus colocou diante dos homens para que eles pudessem
alcançar um vislumbre da sabedoria divina. O lago é belo, diria
Hugo; mais bela ainda é, porém, a sabedoria que se revela através
dele. Os profetas do Velho Testamento dizem também a mesma coisa;
eles haviam-se dado conta de que a natureza havia sido oferecida aos
homens precisamente para isto, para abrir-lhes um caminho para a
contemplação da sabedoria divina. De fato, eles nos deixaram
escrito:
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"Quão magníficas são as tuas obras,
ó Senhor;
mais profundos, porém,
são os teus pensamentos".
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De onde que os salmos nos ensinam a nos utilizarmos da magnificência
das obras de Deus para termos um vislumbre da maior profundidade de
seus pensamentos.
diz Hugo,
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"é como um livro escrito
pelo dedo de Deus,
e cada uma de suas criaturas
são como figuras,
não imaginadas pela opinião humana,
mas instituídas pelo arbítrio divino,
para a manifestação da sabedoria
do Deus invisível.
Não há ninguém para quem
as obras de Deus não sejam admiráveis",
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mas devemos saber ultrapassar nelas a beleza de suas aparências para
nos remontarmos ao conhecimento da perfeição de seu Criador. Como
nos será possível, de fato, amar a Deus como nos foi prescrito,
com toda o nosso coração, com toda a nossa alma, com todo o nosso
entendimento, com todas as nossas forças, se dEle só lhe conhecemos
um nome?
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"Deus, em si mesmo,
não pode ser visto;
fêz, porém, com que pudesse ser visto
pelas coisas que fêz,
pois, como diz o Apóstolo,
`as coisas invisíveis de Deus
podem ser vistas pela criatura,
pelo entendimento das coisas
que foram criadas'.
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Se quisermos, pois,
que Deus habite em nós
permanentemente pelo amor,
devemos construir em nós
uma casa para a sabedoria".
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Tr. Três Dias/De Arca Noe
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Venham, pois, ver este lago, mas não prestem demasiada atenção
àquilo que apenas os olhos enxergam, pois há nele uma beleza maior
que se nos revela, invisível aos olhos da carne. A figura do lago é
apenas uma aparência; Deus, porém, colocou aqui toda esta água
para que, através dela, os homens pudessem ter um vislumbre de Sua
própria mente. Devemos, pois, saber nos aproveitar dele, pois o
lago nos oferece um modo de conhecer a Deus, e só podemos amar aquilo
que, de alguma forma, o conhecermos.
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"Gostaria de discernir estas coisas
com tanta delicadeza
para poder narrá-las"
a todos os homens,
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diz ainda Hugo no Tratado dos Três Dias; infelizmente, porém,
aqueles que passam por aqui olham para o lago e não vêem mais do que
água. É possível que amem a Deus desta maneira? Pois, agindo
deste modo, parece que, efetivamente, não o conhecem.
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