QUESTÃO SEXAGÉSIMA

O Apóstolo afirma:

"Os que observam a lei serão justificados".

Rom. 2, 13

Pergunta-se se o cumprimento da lei justifica, o que assim parece pelo que o doutor da lei perguntou ao Senhor:

"O que devo fazer para possuir a vida eterna?"

E o Senhor lhe respondeu:

"O que está escrito? Como lês?"

E ele:

"Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração de toda a tua alma, de toda a tua mente, e o próximo como a ti mesmo".

E o Senhor lhe disse:

"Faze isto, e viverás".

Lc. 10, 25-28

Eis que, portanto, o cumprimento do mandamento da lei confere a vida eterna. De onde que se lê que a lei cumprida justifica (Rom. 2, 13). Do mesmo modo, em outra passagem, quando o jovem lhe disse:

"O que devo fazer para possuir a vida eterna?"

O Senhor lhe respondeu:

"Honra teu pai e tua mãe, não mates, não furtes, não cometas adultério, não digas falso testemunho, não cobices a esposa de teu próximo, nem as suas coisas".

E o jovem lhe disse:

"Tudo isto desde a minha juventude observei".

O Senhor, então,

"Pondo nele os olhos, o amou",

o que não teria feito, se não tivesse sido justo pela observação dos mandamentos divinos. Quanto ao que Jesus acrescenta,

"Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres; e vem e segue-me",

Mt. 19, 21

isto pertence à perfeição da justiça. Assim também diz o Apóstolo Paulo:

"O mandamento da lei, que era para a vida, para mim foi para a morte".

Diz também o venerável Beda:

"A lei, observada em seu tempo, não somente conferia os bens temporais, mas também os eternos, de onde que é manifesto que a lei cumprida justifica".

Mas o Apóstolo assegura que a lei não conduziu ninguém à perfeição, dizendo que

"O homem não se justifica pelas obras da lei; se a justiça se obtém pela lei, então Cristo morreu em vão".

Gal. 2,16; 2,21

Há também muitas outras passagens do Apóstolo onde ele reafirma o mesmo. Por este motivo alguns dizem que aqueles preceitos cujo cumprimento confere a justiça são os preceitos do Evangelho, embora estejam escritos na lei. Quem os cumpre se torna imediatamente um homem evangélico, não é mais um homem da lei. Estes também dizem que aqueles preceitos que são entendidos cumpridos na lei não justificam imediatamente, mas apenas tornam o homem idôneo a receber a fé de Cristo, somente pela qual recebe-se a salvação; dizem, de fato, que aquele que se mostra exteriormente amar a Deus e ao próximo, ainda que não ame interiormente com o coração, o quanto depende da lei este homem observa a lei, pois a lei impera sobre a mão, e não sobre a alma.

A esta solução pode-se contra argumentar que se pelo cumprimento destes preceitos realizado apenas exteriormente os homens se tornam dignos de receber a fé de Cristo a fé não é conferida pela graça, mas pelos méritos. Ademais, se os torna idôneos, como sabem que receberão? De onde que estes não parecem resolver convenientemente a questão colocada. Que perfeição maior, de fato, pode haver que amar a Deus de todo coração, e ao próximo como a si mesmo?

Por isso dizemos que o cumprimento dos mandamentos mencionados justifica imediatamente; não o faz, todavia, a lei que não é suficiente, mas enferma e sem a graça, para o seu cumprimento, a qual nem confere, nem demonstra abertamente a fé de Cristo, sem a qual não se cumprem os preceitos da lei. A lei demonstra, efetivamente, a pátria, mas não mostra o caminho pelo qual se deve ir, nem como, de onde que diz o Apóstolo:

"O homem não se justifica pelas obras da lei".

Gal. 2, 16

Poderá, porém, alguém dizer que esta autoridade manifestamente contradiz a nossa solução. Não são, porventura, afirmações contrárias que a justiça proceda do cumprimento dos preceitos legais, como acima dissemos, e que ninguém seja justificado pelas obras da lei?

SOLUÇÃO.

O Apóstolo chama de obras da lei as que são apenas feitas pelo temor, que são preceituadas pela lei, pelas quais não há justiça. Deve-se notar que a lei é dita de muitos modos. Algumas vezes o livro de Moisés é chamado de lei, outras vezes as cerimônias e as observâncias legais, outras os dez mandamentos escritos em duas tábuas, outras o livro dos Salmos, outras ainda é chamada de lei qualquer observância, como quando se diz: `Esta é a lei desta ou daquela coisa'. A razão natural também é chamada de lei. No Novo Testamento a lei é tomada de muitos modos, como a lei da fé, a lei do espírito, a lei da graça, a lei da carne, a lei dos membros, a lei do pecado, a lei da morte.