3. Comentário ao trabalho de K. Davis.

A leitura deste trabalho, inserido em seu contexto histórico, levanta sérias dúvidas quanto à posição real de sua atitude diante do movimento do planejamento familiar. O autor dá a entender em seu trabalho que as posições que ele defende são vistas com hostilidade pelos responsáveis dos movimentos de planejamento familiar. Mas seriam as idéias que ele expressa realmente diferentes daquelas dos responsáveis por estes movimentos? Historicamente, quando se examina o que ocorreu no período imediatamente anterior e posterior ao aparecimento da polêmica suscitada por este trabalho verifica-se que, tenha ou não sido esta a intenção do autor, ele serviu como um trampolim diplomático para que os planejadores familiares, tão duramente criticados no texto, pudessem discutir estes fatos sem que parecesse que a iniciativa tivesse partido deles. Propositalmente ou não, foi uma oportunidade áurea, não desperdiçada, conforme veremos, pelas agências que lidavam àquela época com planejamento familiar e questões populacionais porque, à exceção da IPPF, a história do relacionamento destas agências e os governos das várias nações não lhes favorecia criarem uma imagem de idealizadores de semelhantes teorias.

As reações subseqüentes das entidades relacionadas com questões populacionais foram muito significativas a este respeito. Á exceção da IPPF, que assumiu quase literalmente o programa sugerido por Kingsley Davis, os demais "planejadores familiares" de que fala o professor da Universidade da Califórnia se posicionaram, pelo menos no início, formalmente contra o trabalho publicado na Science. Mas, examinados mais atentamente, tais posicionamentos foram redigidos de uma forma bastante ambígua, não sendo possível descartar a conjectura de que assim o tivessem sido propositalmente. Além destes posicionamentos terem sido muito amplamente divulgados nos meios de comunicação especializados, o que contribuíu para a difusão ainda maior do trabalho de K. Davis, eles não se limitaram a afirmarem suas discordâncias do mesmo, mas apresentaram uma longa justificativa dos motivos que os levavam a discordar dos argumentos do professor; ocorre porém que a análise destas justificativas mostra que na verdade elas mais servem para apoiar as idéias contidas no trabalho publicado na Science do que para impugná-las. É que na verdade a cúpola do movimento do planejamento familiar está muito mais preocupada com o controle demográfico do que com o direito das famílias ou das mulheres, e aos poucos todo ele passou a assumir mais abertamente as diretivas sugeridas por K. Davis em 1967.

Outra observação também digna de note refere-se ao oportunismo histórico com que esta polêmica foi levantada. A clareza e a segurança dos conceitos enunciados por K. Davis mostra que este trabalho não era fruto de momento mas o resultado de uma linha de pesquisa que vinha sendo desenvolvida há muitos anos pela comunidade científicas. Entretanto, a discussão mais franca e aberta destes temas só veio à luz quando o planejamento familiar já estava praticamente reconhecido como direito humano fundamental. Ao trabalho de K. Davis se seguiram vários outros na mesma linha.