CAPÍTULO II

São Bernardo iniciou seu noviciado na idade de vinte e três anos, começando com tão grande aplicação e cuidado para com o aproveitamento que não parecia que começava, mas sim que acabava. Tinha sempre no coração, e muito freqüentemente também na boca, estas palavras:

"Bernardo, Bernardo,
para que vieste à religião?"

Entregou-se tanto a mortificação, não só dos afetos interiores e das paixões desordenadas, como também dos sentidos exteriores, que parecia que não os usava senão para o estritamente necessário. Via e não via, comia e não comia, dormia e não dormia, tanto estava ele absorto e transportado em Deus. Havia estado um ano inteiro na sala de noviços, mas não sabia se o teto era abobadado ou de madeira e, havendo entrado na igreja muitas vezes, a qual tinha muitas janelas, julgava que não havia nela senão apenas uma. Tinha a carne tão sujeita e submetida ao espírito que mais parecia estar morto do que mortificado. O silêncio, perpétuo; o riso, raríssimo e em extremo modesto, dado com razão para não parecer demasiadamente austero; o hábito, pobre, grosseiro e vil, mas limpo, porque, ainda que fosse amigo da pobreza, não o era da pouca limpeza. Dirigia-se às refeições como a um tormento, e só a memória da comida já o enfastiava. Desgostava-se com o sono por julgá-lo uma semelhança da morte e quando, forçado pela necessidade, concedia-se algum descanso, este era tão superficial e leve, que a nenhum outro, senão a ele, poderia ser suficiente. E quando via algum religioso dormindo mal composto ou roncando, ressentia-se e dizia que dormia como secular e não como religioso. Com os inúmeros jejuns e vigílias, com a extrema penitência e com a austeridade da vida que levava, estragou-se tanto o seu estômago, que o pouco que comia não podia mais retê-lo e, se algo ficava, era mais para dilatar-lhe a morte do que para sustentar- lhe a vida. Veio a perder o paladar de tal maneira que algumas vezes, por descuido de quem o servia, comeu óleo cru no lugar da manteiga e bebeu azeite em vez de água, sem que se desse conta. E mesmo com tão pouca saúde, nunca foi possível convencê-lo de que nos trabalhos da comunidade admitisse alguma dispensa; antes, sendo já professo, socorria os noviços e pensava e dizia que os demais eram santos e perfeitos, pelo que podiam receber alguma dispensa, mas que no que lhe dizia respeito, como imperfeito e principiante que era, não lhe convinha senão rigor e estreiteza.

Isto foi de tal maneira que se os monges se ocupavam com algo que ele não soubesse fazer, compensava-o tomando naquele mesmo momento outra ocupação de igual ou maior trabalho e mais vil e humilde. Certa vez os monges foram por obediência ceifar em uma propriedade do mosteiro, e a ele impuseram que descansasse por causa de suas poucas forças e porque não sabia fazer o trabalho; pediu então ao Senhor que lhe concedesse a graça e a habilidade de ceifar; e Deus atendeu-o, concedendo-lhe esta graça com tamanha abundância, que acabou por se avantajar aos demais, e por toda a sua vida durou esta graça, com a admiração dos monges e por muito gosto seu pela devoção que sentia ceifando, recordando-se da mercê que o Senhor lhe havia feito.

Sendo São Bernardo tão mortificado, sua carne tão sujeita ao espírito e o espírito tão recolhido, tão interior, vivendo sempre dentro de si, veio a ser como um espelho limpo e lustroso para receber os raios da divina sabedoria. E assim não só alcançou um perfeitíssimo hábito de oração e meditação, como também um altíssimo grau de contemplação passiva, pela qual, alienado dos sentidos e das obras exteriores, derretido e empapado em uma suavidade inefável com um silêncio profundo e com abraços castíssimos, unia-se ao o Sumo Bem. E o Senhor o regalava num grau tão alto que uma vez, estando de joelhos diante de um crucifixo, o próprio crucifixo estendeu o braço e se curvou sobre ele, abraçando-o e acariciando-o com sumo amor. Nas próprias obras exteriores constituía coisa admirável o modo como chegou, por singular privilégio do Senhor, a ocupar-se de tal modo no que fazia ao mesmo tempo em que tratava interiormente com Deus. São Bernardo não era daqueles que, com o pretexto de entregar-se a contemplação, fogem do trabalho, ou que pelo seu gosto particular deixam o bem comum; antes, juntava a ação com a contemplação e antepunha as coisas publicas ou de obediência às suas próprias e voluntárias. Mas quando se achava livre e sem obrigação de acudir às coisas comuns e de obediência, desaparecia e mergulhava de tal modo na consideração das coisas invisíveis como não se tivesse sentido nem memória de coisa alguma da terra. Caminhou certa vez um dia inteiro ao longo do lago de Lausanne e à noite, comentando seus companheiros sobre aquele lago, admirou-se, afirmando firmemente que não havia visto e nem sabia que lago se tratasse. Outra vez, indo falar aos padres da Cartuxa, emprestaram-lhe um cavalo bem adestrado e com um arreio curioso; e como o Prior da Cartuxa tivesse reparado no aparato que o cavalo levava, dirigiu-se ao santo para avisá-lo e ele, abrindo os olhos para ver o que antes não havia visto, disse que ele também estava admirado e com grande sinceridade confessou que não havia reparado naquilo. De onde se vê o quão concentrado e absorto andava sempre este santíssimo homem, não só dos exercícios corporais, como também em outros negócios de muita importância, nos quais parecia impossível não distrair-se das coisas divinas. O mesmo se pode dizer da doutrina de São Bernardo, porque costumava ir ao campo e aos bosques tratar familiarmente com o Senhor para receber raios e luz do céu, e na oração e na meditação penetrar os altíssimos mistérios da teologia. E costumava dizer, pela graça, aos seus amigos, que o pouco que sabia das Sagradas Escrituras, o havia aprendido meditando e orando nos campos, sem ter outro mestre que não as musgo e faias. Mas esta ciência da Sagrada Escritura, que ele dizia que era pouca, foi um dos raros e eminentes dons que recebeu; porque tinha tão assimiladas todas as palavras e sentenças dos livros sagrados que, quando falava, escrevia ou pregava, era a Sagrada Escritura, não como quem a cita, mas como quem a havia ruminado, digerido e convertido em si. E o próprio santo confessou algumas vezes que, orando, havia visto a Sagrada Escritura como declarada e exposta diante de si. Mesmo assim, não por isto deixava de ler e de estudar com grande cuidado as interpretações dos padres e santos doutores, sem igualar- se com eles e fazendo-se de mestre, mas sim, como humilde discípulo, sujeitando-se com modéstia ao que eles haviam escrito e seguindo com grande acerto o exemplo que eles nos deixaram, como em suas devotíssimas obras se pode ver.