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Diz o Apóstolo:
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"Aquele que ama o próximo,
cumpriu a Lei".
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Pergunta-se se o amor do próximo e o amor de Deus são o mesmo. Se não são o mesmo,
como o amor do próximo é a plenitude da Lei? Como toda a lei é restaurada no amor do
próximo? Como os três preceitos da primeira tábua, que dizem respeito a Deus, se cumprem
no amor do próximo? Por outro lado, se um e outro são o mesmo, por que foram dados
separadamente um preceito do amor a Deus e outro preceito do amor ao próximo?
Solução. O amor é nome de uma virtude e assim pode ser dito que o mesmo
é o amor pelo qual amamos a Deus e ao próximo. É também nome de um movimento da
mente, e neste sentido um é o amor de Deus e outro é o amor do próximo, e o amor de Deus é
maior do que o amor do próximo, porque o amor de Deus está contido no amor do próximo.
Quem, de fato, ama a Deus, por conseqüência ama ao próximo e inversamente; por
conseguinte, coloca-se um movimento pelo outro. O amor do próximo, de fato, é um
movimento da mente ao próximo por causa de Deus; como, portanto, pode haver amor ao
próximo sem amor de Deus? O amor do próximo é, de fato, uma certa matéria na qual se
exerce o amor de Deus, o qual é mais escondido e cujo afeto se manifesta mais abertamente
no amor do próximo. O amor de Deus é um movimento da mente para Deus por causa dEle
mesmo.
Pergunta-se ademais se o amor do próximo possa ser sem o amor de Deus.
Pois parece que pode, porque alguém pode amar o próximo não por causa de Deus, mas por
causa de alguma outra coisa.
Solução. Não se deve conceder que alguém ame o próximo, a não ser que o
ame por causa de Deus. Amar diversamente não é amar, antes, é mais propriamente odiar,
porque, conforme diz o Salmista,
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"Quem ama a iniqüidade,
odeia a sua alma".
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Deste modo, não pode amar o seu semelhante quem a si mesmo odeia.
Pergunta-se ademais em que lugar foi-nos preceituado como o homem deve
amar a si mesmo.
Solução. Quando se ensina ao homem como se deve amar a Deus, nisto
mesmo lhe é ensinado como o homem deve amar a si mesmo.
O que é, de fato, amar a si mesmo, senão amar o seu próprio bem?
Qual é, porém, o bem do homem, senão Deus?
Quem, portanto, ama a Deus, nisto mesmo ama a si próprio. E o quanto amar
a Deus, tanto amará a si mesmo.
Pergunta-se também se o homem deve somente amar o próximo como a si
mesmo. Pois, de fato, está escrito:
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"Amarás o teu próximo
como a ti mesmo".
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Solução. Assim como a semelhança designa, segundo alguns, não a quantidade, quando se diz
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"Ama ao próximo
como a ti mesmo",
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isto significa "ao mesmo que para ti desejas", ou seja, para que ele venha a possuir a Deus,
e entrega-te o quanto possas à obra para que ele possa fazer o que é preciso para que se
salve. Não será necessário repetir o que já dissemos acima sobre a caridade. Não todas as
coisas podem ou devem ser ditas em todo lugar.
Pergunta-se finalmente se é possível possuir o amor de Deus sem o amor do
próximo, o que alguns o quiseram provar dizendo que se não existisse nenhum homem senão
apenas um, este poderia amar a Deus sem que amasse ao próximo, assim como Adão, antes
que existisse Eva, amou a Deus sem que tivesse amado o próximo, pois ninguém ainda
existia além dele próprio.
Solução. Este discurso, segundo o qual o amor de Deus poderia ser possuído
sem o amor do próximo, é positivo e falso. Coloca, de fato, existir o próximo, e sem o seu
amor poder possuir o amor de Deus. O amor de Deus é como que a forma e a causa do amor
do próximo, e o amor do próximo é como que a matéria do amor de Deus. O amor de Deus é
oculto, enquanto que o amor do próximo se manifesta exteriormente e nele o próprio amor de
Deus é declarado, pelo que diz o Apóstolo que o amor do próximo é a plenitude da lei.
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"Amarás o próximo como a ti mesmo",
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isto é, amarás o próximo com o mesmo fim para o qual amas a ti mesmo quando te amas
corretamente, isto é, em Deus e por causa de Deus. Ora, segundo S. Agostinho, amar a Deus
de todo o coração significa amá-lo com toda a inteligência; amá-lo com toda a alma significa
com toda a vontade; amá-lo com todo o entendimento significa com toda a MEMÓRIA, de
tal maneira que todos os pensamentos, toda a vontade e toda a MEMÓRIA sejam
conduzidas a Ele, de quem procede aquilo que a Ele conduz. É por isso que o próprio
Agostinho diz também que quando ainda temos concupiscências carnais, de nenhum modo
pode-se amar a Deus com toda a alma.
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