26. O Congresso de Harden House visto por Garret Hardin.

Repentinamente, diz Garret Hardin, no decênio de 1960, a palavra aborto começou a encontrar-se repetidas vezes espalhadas pelas páginas dos periódicos norte americanos. Nas décadas anteriores a palavra foi vista raramente. Os manuais de estilo de muitos periódicos especificavam que somente seu eufemismo, "operação ilegal", deveria ser impresso. Agora tudo tinha mudado. Os periódicos, revistas populares, rádio e televisão regressavam ao tema continuamente. Os artigos que apareciam ocasionalmente nas revistas populares antes de 1960 discutiam o assunto apenas em termos horrorrizados. Na segunda metade da década as revistas mais respeitáveis já estavam incluindo artigos que recomendavam a legalização da prática, equilibrados por outros em sentido contrário. Até as revistas escritas para jovens adolescentes discutiam a questão aberta e objetivamente. Dez anos antes ninguém teria sonhado que semelhante transformação da atitude pública poderia ter tido lugar. O que tinha acontecido?

Dois fragmentos de informação que apareceram na década de 1950 prepararam o terreno, creio eu, para a mudança aparentemente repentina que teria lugar durante o seguinte decênio. Primeiro houve a notícia do uso maciço do aborto como método de controle de natalidade no Japão. Já se sabia que o aborto havia sido legalizado nos países escandinavos desde os anos trinta, mas também sabia-se que esta prática era marginal. Para obter um aborto legal na Escandinávia a mulher tinha que suplicar e lutar. Por exemplo, muito diferentemente do que ocorre hoje em dia no mundo inteiro, muitas mulheres que solicitavam aborto alegando motivos psiquiátricos, ao passarem pelo psiquiatra tinham seu pedido rejeitado.

A situação não era tão diferente nos Estados Unidos. Mas o Japão! De repente descobrimos que os japoneses estavam empregando o aborto com a mesma naturalidade que outros métodos de controle de natalidade. As mulheres não estavam assistindo à sua perdição. A família não estava se desagregando. O Estado não estava se desmoronando. Tudo isto fazia com que se parasse e se refletisse.

Em 1954 a Planned Parenthood of America decidiu que tinha chegado o momento de celebrar uma Conferência sobre o aborto. Quarenta a três homens e mulheres, a maioria deles doutores em Medicina, se reuniram em Harden House, Nova York, para duas Conferências de grande duração em 1955; os resultados, editados pelas Dra. Mary Steichen Calderone, foram publicados em 1958, sob o título "Abortion in the United States". A Conferência foi um triunfo científico e dramático. Pela primeira vez os fatos reais sobre o aborto moderno foram expostos perante a profissão médica com uma clareza que não dava margem a disputas. Houve resistência, desde logo. Um dos acontecimentos mais dramáticos de toda a Conferência foi a confrontação de um aborteiro ilegal profissional, já aposentado, o Dr. G. Lotrell Timanus, e seus colegas legais e menos ousados. Até mesmo através das frias palavras de uma descrição objetiva pode-se sentir a atmosfera elétrica deste encontro. Foi uma destas raras confrontações de adversários em que acusado e acusador mudam de lugar. Foi digno de Zola. Desde então o Dr. Timanus se apresentou num documentário televisionado, em que se fez evidente que ele era o vovô bondoso de todo o mundo. Não era esta a imagem que nós costumávamos ter de um aborteiro. Isto debilitou a fé das pessoas na moralidade em preto e branco. Se não pudermos acreditar em um estereótipo, em que mais se poderá acreditar?

A publicação dos livros de Calderone, "Abortion in the United States", foi acolhida por um silêncio quase absoluto por parte da crítica. Uma investigação dos índices de resumos de livros feita por Freud Dietrich não revelou uma só resenha deste livro nem na literatura médica, nem na popular. Entre as revistas semi populares, apenas uma o resenhou, a Scientific American. O número de janeiro de 1959 incluíu uma nota grande e favorável escrita por James R. Newmann. Creio que muitos estudantes de planejamento familiar iniciaram seu interesse pelo aborto com a leitura do resumo de Newmann. Sei, pelo menos, que assim aconteceu no meu próprio caso.

A adoção do aborto no Japão e a publicação das atas da Conferência de Harden House nos anos 50 contribuíram indubitavelmente para a quebra do tabu contra a discussão do aborto nos anos 60. Á medida em que desaparecia o tabu, se tornavam visíveis 12 fatos básicos, e surpreendentes, relacionados com o aborto:

1. O aborto é um método de controle de natalidade. Isto por definição; mas o que é mais importante, a definição surge naturalmente da atitude das mulheres que se submeteram ao aborto. É um erro contrastar o aborto e o controle da natalidade, como se faz freqüentemente. O contraste correto se faz entre aborto e anti concepcionismo, consistindo o primeiro em matar células vivas depois da fecundação e o segundo em matar células vivas antes da fecundação.

2. A maioria das mulheres que se submetem ao aborto são mulheres casadas. Talvez seja tentador pensar que as moças solteiras promíscuas sejam as principais clientes dos aborteiros, mas isso não é certo, nem nos Estados Unidos, nem em nenhum dos países estudados.

3. Mesmo uma pequena taxa de fracasso dos anticonceptivos produz uma necessidade realmente grande de abortos. Em uma população do tamanho da nossa, uma taxa de fracasso de 1% produziria um quarto de milhões de criaturas indesejadas por ano. É provável que uma taxa de fracasso de 1% seja o máximo a que se possa chegar com a pílula. Métodos mais antigos apresentam uma taxa de fracasse cinco vezes maior ou ainda mais.

4. O aborto foi utilizado como método de controle de natalidade em 99% de todas as sociedades estudadas por antropólogos.

5. O aborto é o método individual de controle de natalidade mais extensamente praticado no mundo atualmente.

6. Um aborto corretamente praticado é muito menos perigoso do que um parto normal.

7. O aborto não produz esterilidade, mesmo que, supostamente, um aborto levado a cabo incorretamente possa ter este resultado.

8. O aborto, quando é legal, não precisa ser caro. Na Romênia custa menos do que o equivalente a dois dólares.

9. O aborto em si mesmo não causa nenhum prejuízo psicológico. A análise psicológica demonstra que nos casos em que existem sentimentos de culpabilidade estes foram injetados na mulher por uma sociedade que demonstra sua reprovação. Em uma cultura que o aprova, o aborto não é mais dramático do que uma extração de dente.

10. Os casos de gravidez indesejadas ocorrem com maior freqüência nas mulheres menos bem adaptadas para a maternidade. A prevenção eficaz de todos os casos de gravidez indesejada diminuiria a proporção de crianças criadas por mães ressentidas.

11. O aborto clandestino discrimina contra os pobres.

12. Os filhos indesejados incrementam o peso dos impostos, porque aumentam os gastos com saúde mental, beneficiência e serviços penais.

Estes fatos estão agora claros como o cristal e inegáveis. Como pudemos ter permanecido inconscientes dos mesmos por tanto tempo?

NOTA: Mesmo para os que se colocam em uma perspectiva favorável à prática do aborto, algumas destas afirmações são de validade duvidosa ou mesmo errôneas. Entretanto, visto Garret Hardin ter sido ele próprio personagem importante na história da problemática que constitui a pauta deste estudo, seu testemunho sobre o efeito que o Congresso de Harden House produziu sobre a opinião dos estudiosos não pode ser desprezado.