QUESTÃO CENTÉSIMA TERCEIRA.

Diz o Apóstolo:

"Ao que não opera, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é reputada como justiça, segundo o propósito da graça de Deus".

Rom. 4, 5

Aqui costuma-se perguntar sobre a graça e o mérito. Tudo parece proceder da graça, e que o mérito nada confere; ou, se algo procede do mérito, então nem tudo procede da graça. Ora, que tudo provenha da graça é algo atestado pelas Escrituras. Por isto é que diz o Apóstolo:

"O que tens tu, que não recebeste?"

1 Cor. 4, 7

"Pela graça sou o que sou".

1 Cor. 15, 10

E também:

"Todos nós participamos de sua plenitude, e graça sobre graça".

Jo. 1, 16

O que, portanto, deve-se dizer? Dizer que o mérito não é nada é o erro dos Maniqueus, assim como afirmar tudo provir do livre arbítrio é o erro dos Pelagianos.

SOLUÇÃO.

Dizer que tudo procede da graça não exclui o mérito, pois o mérito provém da graça. Por isso deve-se ver o que a graça de Deus opera em nós sem nós e o que opera em nós mas não sem nós.

A graça preveniente, que também é dita graça operante, sana o livre arbítrio, libertando-o do jugo do pecado, e isto ela opera em nós sem nós. A partir daí a vontade, já sanada, não é ociosa, nem recebe a graça de Deus em vão; o que ela opera não o opera por si, mas com a graça, ou melhor, a graça de Deus coopera com o livre arbítrio; por isso é que é dita graça cooperante e a própria obra ou mérito é dita ser procedente da graça e da vontade. De fato, não operam separada mas simultaneamente. De onde que, ainda que tudo proceda da graça, não se segue que nada proceda do mérito ou do livre arbítrio. Pode-se fazer a seguinte comparação: se alguém, encontrando uma criança caída num lamaçal e incapaz de erguer-se, a levantasse e então a segurasse pela mão para que caminhasse, o caminhar proviria de ambos, mas o ato de levantar-se teria provindo apenas de quem a encontrou e não da criança. Assim procede apenas da graça preveniente que queiramos o bem, e procede da graça subseqüente, não dela apenas, mas também do livre arbítrio, sanado e libertado pela graça, que operemos o bem.