QUESTÃO CENTÉSIMA VIGÉSIMA SÉTIMA.

Diz o Apóstolo que

"a caridade de Deus está derramada em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado".

Rom. 5, 5

Pergunta-se se é a mesma a caridade pela qual Deus nos ama e pela qual nós amamos a Deus.

SOLUÇÃO.

Há os que dizem que é a mesma, aos quais Santo Agostinho objeta explicando esta passagem e dizendo que nela o Apóstolo refere-se à caridade pela qual nós amamos a Deus, enquanto que em outra passagem, onde se diz:

"Deus é caridade",

I Jo. 4, 8

o Apóstolo refere-se à caridade pela qual Deus nos ama. Ora, tudo isto não o diria Santo Agostinho se se tratasse da mesma caridade.

Do mesmo modo, em outro lugar diz ainda Agostinho:

"Chamo de caridade ao movimento da alma ao amor de Deus por causa de si mesmo e ao próximo por causa de Deus".

Ora, Deus não é movimento, portanto existe uma caridade que não é Deus.

Ademais, a caridade pode aumentar e diminuir, mas Deus não o pode; existe, portanto, uma caridade que não é Deus.

Parece dever sustentar-se firmemente, portanto, que o nome de caridade é usado de modo equívoco de Deus, quando se diz que Deus é caridade, e de uma certa virtude, quando se diz que certa virtude é a caridade, ou que a caridade de Deus foi derramada em nossos corações. O Apóstolo Paulo quase sempre designa por este nome à virtude, que não é Deus, mas procede de Deus, enquanto que o Apóstolo João por este mesmo nome designa o próprio Deus.

Parece contradizer esta conclusão o fato de mesmo Santo Agostinho afirmar que a caridade fraterna, pela qual nos amamos mutuamente, ser o próprio Deus. (Neste caso, não haveria diferença entre a caridade que é Deus e a caridade que é virtude, ambas sendo a mesma). (Poderia responder-se a isto) concedendo (a afirmação de Agostinho, explicando, porém), que Deus caridade nos faz amar um ao outro mediante a (virtude da) caridade, assim como nos faz crer mediante a (virtude da) fé. Conforme, de fato, o mesmo Agostinho, aquele de quem provém a fé é o mesmo de quem provém a caridade. (Com isto poder-se-ia condenar aqueles que sustentam a existência de duas caridades. Haveria, porém, outra dificuldade a ser respondida: se) Deus é, de fato, em nós a caridade (pela qual nos amamos um ao outro, como vimos ser afirmado por Agostinho), mas também existe em nós a caridade que é virtude, haveria então neste caso em nós não uma, mas duas caridades, e seria por meio de duas caridades e não de uma que amaríamos a Deus.

De nenhum destes argumentos, (porém), pode-se concluir haver duas caridades. Assim como o Sol nos ilumina, assim também os raios do Sol nos iluminam. Portanto, há duas coisas que nos iluminam. Não se segue, porém, que isto ocorra distinta e separadamente. De fato, o Sol nos ilumina pelos seus raios, e Deus nos ilumina ou ilustra pela caridade virtude.