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Acabamos de afirmar que existe uma operação da inteligência, à
qual chamamos de contemplação, que produz efeitos visíveis no
homem, transformando aquele que se familiariza com ela num exemplo vivo
de sabedoria, efeito que se torna perceptível aos demais homens,
parecendo-lhes como se se houvesse personificado uma sabedoria
superior. Na medida em que, o mais das vezes, esta operação não
se alcança sem o auxílio da graça, e sua manifestação mais plena
não se alcança nunca sem a graça, estes são aqueles dos quais
Jesus afirma que
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"serão chamados filhos de Deus",
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dos quais Santo Tomás de Aquino também diz que
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"participam da semelhança
do Filho de Deus unigênito,
os quais Deus na sua presciência
predestinou para serem conformes
à imagem de seu Filho (Rom. 8, 29),
o qual é a Sabedoria gerada".
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Summa Theologiae
IIa IIae, Q. a.
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A Sagrada Escritura atesta a existência de uma operação da
inteligência capaz de produzir tais efeitos no homem. Às vezes não
nos damos conta deste fato porque no mundo latino esta realidade veio a
ser conhecida pelo nome de contemplação, um termo que reflete uma
concepção derivada da tradição grega pela qual tenta-se descrever
esta operação da alma por meio de uma analogia com a faculdade da
visão:
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"Por ela chegamos
às próprias fronteiras do inteligível",
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diz o filósofo grego Platão;
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"embora sendo unicamente do intelecto,
é imitada pela faculdade da vista
ao procurar contemplar os animais,
as estrelas e o próprio Sol".
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Por causa de nos termos acostumado a este nome sem nem sempre conhecer
bem a realidade à qual ele se refere, não nos damos conta do número
imenso de vezes em que as Escrituras nos descrevem esta mesma realidade
por meio de uma analogia com a faculdade do ouvir.
De fato, é muito freqüente no Velho Testamento que as exortações
de Moisés e os oráculos dos profetas se iniciem com um pedido para
que os homens as ouçam. Uma leitura menos atenta dará a impressão
que com estas palavras os profetas estão apenas fazendo uma chamada
para reunir o povo, nada que em si pudesse ter um valor maior do que
uma interjeição mais elaborada. Outras vezes parecerá que o pedido
de que os homens ouçam estas exortações significa uma maneira mais
delicada de dizer que as obedeçam; segundo esta interpretação, ao
pedir aos homens que as ouvissem, os profetas queriam dizer que as
obedecessem, só indiretamente estando eles interessados em que fossem
ouvidas, na medida em que para obedecê-las os homens deveriam
primeiro tomar conhecimento dos seus conteúdos. Efetivamente, em
algumas passagens esta é a interpretação correta, mas em uma grande
multidão de outras a extrema freqüência com que aparecem estas
expressões, como se estivessem querendo chamar a nossa atenção
também para o próprio ato do ouvir, e o contexto em que são usadas,
nos mostram que estes pedidos para que ouçamos, mais do que simples
interjeições ou expressões sinônimas para significarem a
obediência, designam, na realidade, um verdadeiro chamado à
contemplação descrita por analogia com o ouvir e tendo o ouvir como
seu ponto de partida.
Vejamos alguns exemplos destas expressões:
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"Se ouvirdes atentamente a minha voz,
e guardardes a minha aliança,
diz o Senhor,
constituireis para mim um reino de sacerdotes,
e uma nação santa".
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"Ouvi a palavra do Senhor,
ó príncipes;
escuta a lei de nosso Deus,
ó povo".
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"Aplicai os ouvidos,
diz o Senhor,
e ouvi a minha voz;
atendei e ouvi as minhas palavras".
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"Eis que (naquele dia)
um rei, (isto é, o Messias),
reinará com justiça,
e os seus príncipes governarão com retidão.
Não se ofuscarão os olhos dos que vêem,
e os ouvidos dos que ouvem
escutarão atentamente".
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"Vinde cá, ó nação, e ouvi;
povos, estai atentos;
ouça a terra, e o que ela contém;
o mundo, e tudo o que ele produz".
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"Farei vir sobre este povo
o que eles temiam,
diz o Senhor,
porque eu chamei,
e não houve quem me respondesse;
falei, e não me deram ouvidos,
e fizeram o mal diante de meus olhos,
e escolheram o que eu não queria".
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diz Jeremias.
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"A quem conjurarei que me ouça?
Os seus ouvidos estão incircuncidados,
e não podem ouvir;
a palavra do Senhor tornou-se para eles
um motivos opróbrio,
e não a receberão".
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"Isto diz o Senhor:
o dia em que eu tirei os vossos pais
da terra do Egito,
não lhes mandei coisa alguma
acerca dos holocaustos.
Eis o que eu lhes mandei:
ouvi a minha voz,
e eu serei vosso Deus,
e vós sereis meu povo,
e andai por todo o caminho
que vos prescrevi,
para serdes felizes.
E não me ouviram,
nem prestaram atenção,
mas foram atrás de seus apetites
e a depravação de seu malvado coração.
E eu vos enviei todos os meus servos e os profetas,
cada dia me apressava a enviá-los;
e não me ouviram,
nem prestaram atenção,
mas endureceram a sua cerviz,
e obraram pior do que os seus pais.
E tu também, Jeremias,
lhes dirás todas estas palavras,
e não te ouvirão;
e chama-los-ás,
e não te responderão".
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"Ouvi a minha voz,
e fazei todas as coisas que eu vos mando,
e sereis o meu povo,
e eu serei o vosso Deus,
para que eu renove o juramento
que fiz a vossos pai
de lhes dar uma terra
que manasse leite e mel.
Ouvi as palavras desta aliança e observai-as,
porque eu conjurei com instância os vossos pais
desde o dia em que os tirei da terra do Egito
até hoje,
admoestando-os,
e dizendo-lhes continuamente:
ouvi a minha voz.
E não ouviram,
nem prestaram ouvidos,
mas cada um seguiu a depravação
de seu coração maligno".
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Nestas exortações podemos entrever que o ouvir de que falam os
profetas é uma atividade do espírito à qual o homem deveria-se
dedicar constantemente para que, deste modo, desviasse o pêndulo que
inclina a sua atenção para a "depravação de seu maligno
coração", isto é, a atividade de sua imaginação movida pelos
vícios e pelas paixões dos sentidos, para uma outra região da alma,
de onde pode-se ouvir a palavra de Deus. De fato, pergunta
Jeremias:
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"Quem considerou
a palavra do Senhor
e a ouviu?"
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Se o tivessem feito, responde o profeta, Deus
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"certamente os teria desviado
de seu mau caminho
e de seus tão depravados pensamentos".
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Porém, continua Jeremias,
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"Este povo é um povo perversíssimo,
porque não quer ouvir as palavras do Senhor;
em vez disso anda",
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(ou poderia dizer "ouve",
ou ainda,
"está constantemente com a atenção
voltada para a")
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"maldade do seu coração".
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Deus quer, portanto, através destas exortações, acostumar-nos a
ouvir a sua palavra para com isto desacostumar-nos a ouvir nossos
próprios pensamentos, que não são, na maior parte das vezes,
verdadeiros pensamentos, isto é, expressões da faculdade da
inteligência que se caracteriza pela apreensão da verdade, mas
simples movimentos da imaginação, prolongamentos muito pouco
conscientes da atividade dos cinco sentidos, impulsionados sem cessar
pelas paixões sensíveis. É isto o que Deus nos quer também
ensinar, quando, através de Isaías, assim nos exorta:
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"Deixe o homem iníquo
os seus pensamentos,
e volte-se para o Senhor,
(inclinando o seu ouvido),
o qual terá piedade dele,
porque os meus pensamentos
não são os vossos pensamentos,
diz o Senhor.
Tanto quanto os céus estão elevados
acima da terra,
assim se acham elevados
os meus pensamentos
acima dos vossos pensamentos,
diz o Senhor".
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Conforme veremos melhor mais adiante, Isaías está exortando os
homens para que abandonem os seus pensamentos através do "voltar-se
para o Senhor", o que, no contexto deste capítulo 55, significa
"inclinando-lhe os ouvidos" (Is. 55, 3).
O Deuteronômio parece, em certas passagens, utilizar- se de
expressões diversas para designar estas mesmas realidades. A
atividade que Isaías descreve no capítulo 55 de sua profecia pelo
"inclinar dos ouvidos" parece às vezes descrita por Moisés no
Deuteronômio pelo termo "meditação", a mesma expressão que Hugo
de São Vitor utiliza para designar a atividade que precede a
contemplação. Conforme veremos, porém, a meditação de que fala
o Deuteronômio não é a mesma realidade que os profetas muitas vezes
expressam pelo "inclinar dos ouvidos"; o contexto do Velho
Testamento é tal que subentende-se que o meditar do Deuteronômio é
um meditar que conduz espontaneamente a um ouvir. A passagem mais
conhecida onde ocorre esta expressão é aquela onde se preceitua o
mandamento do amor a Deus:
diz Moisés ao povo judeu,
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"estas palavras que eu hoje vos intimo
estarão gravadas no teu coração.
Tu as ensinarás aos teus filhos,
e as meditarás sentado em tua casa,
e andando pelo caminho,
e estando no leito
e ao levantar-te".
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Encontramos no Salmo 118 a voz de alguém que cumpria com esta
exortação de Moisés:
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"Quanto eu amo a vossa lei,
Senhor.
Ela é objeto de minhas meditações
o dia todo.
Mais sábio do que os meus inimigos
me tornou o teu mandamento,
porque ele está sempre comigo.
Sou mais prudente
do que todos os meus mestres,
porque os teus mandamentos
são a minha meditação.
Quão doces são as tuas palavras
ao meu paladar!
São mais doces do que o mel
à minha boca".
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Ora, esta atitude preceituada por Moisés e descrita pelo salmista
conduz à contemplação de que falam os profetas. Ela nos é
descrita, por exemplo, quando Isaías faz uma profecia a respeito do
Messias que haveria de vir, dizendo que ele teria uma língua erudita
para ensinar porque todas as manhãs ouviria o Senhor como a um
mestre:
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"O Senhor me deu
uma língua erudita",
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diz o futuro Messias por meio de Isaías,
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"para eu saber sustentar com a palavra
o que está cansado.
Ele me chama pela manhã,
pela manhã chama aos meus ouvidos
para que eu o ouça como a um mestre.
O Senhor Deus abriu-me o ouvido,
e eu não o contradigo;
não me retirei para trás".
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Esta mesma atitude que haveria de ser encontrada em toda a sua
perfeição no Messias é encontrada também no profeta Jeremias, que
diz aí ter encontrado o seu alimento, e apresenta este fato diante de
Deus como prova de seu amor para com Ele:
diz Jeremias dirigindo-se a Deus,
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"lembra-te de mim e visita-me,
e defende-me dos que me perseguem,
pois é por amor de ti
que tenho sofrido afrontas.
Achei a tua palavra,
e alimentei-me com ela;
e a tua palavra foi para mim
o prazer e a alegria do meu coração".
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Neste mesmo sentido, depois de quarenta dias de jejum, quando foi
tentado pelo demônio no deserto para que transformasse algumas pedras
em pão, Jesus respondeu-lhe dizendo que não precisava disto, pois
seu alimento consistia em bem outra coisa. Citando Moisés, e à
semelhança de Jeremias, Jesus responde ao demônio dizendo:
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"Não só de pão vive o homem,
mas de toda a palavra
que sai da boca de Deus".
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Com isto cumpria-se a profecia de Is. 50. Porém, é igualmente
de grande interesse saber a respeito da proveniência desta citação
que Jesus faz de Moisés. Ela está em Deuteronômio 8, onde
Moisés pede ao povo judeu que não se esqueça de que Deus havia
libertado o povo do Egito, símbolo da escravidão, por
conseqüência símbolo dos vícios e do pecado, para passar quarenta
anos no deserto antes de entrar na terra prometida, alimentando-se
durante estes longos anos unicamente do maná que descia diariamente do
céu,
diz Moisés,
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"que o homem não vive só de pão,
mas de toda a palavra que sai
da boca de Deus".
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O maná com que Deus alimentava os judeus no deserto antes de entrarem
na terra prometida era, deste modo, uma figura da própria palavra de
Deus, com que o Senhor quer que nos alimentemos. O deserto é, por
sua vez, a figura do silêncio interior com que Deus quer que deixemos
de escutar e inclinar nossa atenção aos nossos próprios pensamentos e
às paixões da nossa alma, para poder passar a nos alimentar de sua
palavra, conforme nos diz o Eclesiastes:
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"As palavras dos sábios
são ouvidas em silêncio,
mais do que o clamor do príncipe
entre os insensatos".
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Esta é, por sua vez, a mesma atitude que Jesus elogiou em Maria,
irmã de Marta, a qual, sentada aos pés de Jesus, ouvia-lhe as
suas palavras. É de se notar nesta passagem que, ao contrário do que
muitos supõem por inadvertência, o Evangelho não diz que Maria
estava rezando aos pés de Jesus, mas apenas que o ouvia. No
entanto, mesmo assim, Jesus a elogia e diz dela que
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"uma só coisa é necessária,
e Maria escolheu a melhor parte,
que não lhe será tirada".
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Ao elogiar Maria dizendo que ela havia escolhido a melhor parte,
Jesus reconhece e elogia em Maria aquilo mesmo que o profeta Isaías
havia visto realizar-se no próprio Jesus, quando diz que toda manhã
Ele "ouviria o Senhor como a um mestre". Como se estivesse
entrevendo as muitas Marias que haveria na história, Isaías também
se pergunta, logo a seguir:
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"E qual de vós teme o Senhor,
qual de vós ouve a voz do seu Servo?"
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Vemos assim que Jesus e Jeremias dizem de si mesmos que se
alimentavam da palavra de Deus. A mesma coisa também o diz
Isaías, convidando a todos os homens a que façam o mesmo, isto é,
que abandonem os seus próprios pensamentos, inclinem o seu ouvido e se
alimentem da palavra de Deus, a qual ele compara com um manjar
substancioso. Pode-se notar, no capítulo 55 de sua profecia, que
ao chamar os homens, ele os está exortando fundamentalmente ao ouvir a
Deus com atenção:
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"Todos vós que tendes sede",
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diz o Senhor por meio de Isaías,
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"vinde às águas;
e os que não tendes dinheiro,
apressai-vos,
comprai e comei;
vinde,
comprai sem dinheiro
e sem nenhuma troca,
vinho e leite.
Por que motivo empregais o dinheiro
em coisas que não são alimento,
e o vosso trabalho
no que não pode saciar-vos?
Ouvi-me com atenção,
e comei do bom alimento,
e a vossa alma se deleitará
com manjares substanciosos.
Inclinai o vosso ouvido
e vinde a mim;
ouvi,
e a vossa alma viverá,
e farei convosco um pacto eterno,
concedendo-vos as misericórdias
que prometi a Davi".
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Nesta passagem Isaías nos indica o modo pelo qual é possível ao
homem abandonar seus próprios pensamentos, que não são pensamentos.
O homem pode fazer isto passando a uma forma de pensamento mais
elevada, à qual Isaías chama de "inclinar o ouvido". Inclinando
o ouvido, Isaías pede ao homem que abandone seus próprios
pensamentos e se volte para o Senhor.
Vemos esta mesma doutrina ser ensinada pelo próprio Deus ao profeta
Jeremias quando este pediu que o Senhor se lembrasse dele, pois o
profeta havia achado sua palavra e se alimentado com ela. Deus então
lhe responde:
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"Se te converteres,
eu te converterei,
e estarás diante de minha face.
Se afastares o precioso do vil,
serás como a minha boca,
e voltar-se-ão eles para ti
e não tu para eles".
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"Se te converteres", ou "se te voltares para Deus", significa
aqui o mesmo que o "inclinar o ouvido" do profeta Isaías ou o
"alimentar-se da palavra de Deus" de que havia acabado de falar
Jeremias; esta atitude é já uma predisposição para que Deus nos
dê a sua graça, designada pela expressão "e eu te converterei", a
qual, com a perseverança, acaba produzindo a presença de Deus
("estarás diante de minha face"). Isto se inicia, diz o Senhor
a Jeremias, quando pelo esforço do homem, não sem o auxílio da
graça, este "afasta o precioso do vil", isto é, volta a sua
atenção para a escuta da palavra de Deus, que é o precioso, e
abandona a atenção aos seus próprios pensamentos, que é o vil.
Qual é, porém, o efeito que isto causa na alma do homem? São os
mesmos, afirma Isaías, que os que anteriormente afirmamos serem
produzidos pela contemplação. Diz, efetivamente, a continuação
da profecia contida em Is. 55:
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"Porque assim como desce do céu
a chuva e a neve,
e não voltam mais para lá,
mas embebem a terra,
e fecundam a terra,
e fecundam-na e fazem-na germinar,
a fim de que dê semente ao que semeia
e pão ao que come,
assim será a minha palavra
que sair da minha boca,
diz o Senhor;
não tornará para mim vazia,
mas fará tudo o que eu quero,
e produzirá os efeitos para os quais a enviei".
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A mesma coisa o afirma Jeremias, quando, através dele, Deus
mostra um critério para distinguir a verdadeira palavra de Deus:
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"Se um profeta disser
que tem a minha palavra",
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diz o Senhor por meio de Jeremias,
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"anuncie a minha palavra
com toda a verdade",
(e veremos a diferença entre ela
e uma palavra qualquer).
"Que diferença há
entre a palha e o trigo?, diz o Senhor.
Não são as minhas palavras como um fogo,
diz o Senhor,
e como um martelo que quebra a pedra?"
"Qual, porém, destes profetas,
assistiu verdadeiramente
ao conselho do Senhor,
viu e ouviu a sua palavra?
Quem considerou a sua palavra
e a ouviu?
Se tivessem assistido ao meu conselho
eu os teria certamente desviado
do seu mau caminho
e dos seus tão depravados pensamentos".
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A mesma coisas também o ensina o Eclesiastes, ao dizer que as
palavras dos sábios provém na verdade de um único pastor que é
Deus, que elas produzem um efeito na alma diverso do que as palavras
contidas em todos os outros livros e que é a estas que devemos prestar
atenção:
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"As palavras dos sábios",
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diz o Eclesiastes,
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"são como aguilhões,
e como pregos afixados no alto,
que por meio do conselho dos mestres
nos foram comunicadas
por um único Pastor.
Não busques, pois,
meu filho,
mais coisa alguma além destas.
Não se põe termo
em multiplicar os livros,
e a meditação freqüente
é a aflição da carne".
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Note-se que estas palavras aparecem no Eclesiastes pouco depois dele
ter afirmado, conforme vimos, que as mesmas palavras dos sábios devem
ser ouvidas em silêncio, isto é, no silêncio produzido pela
contemplação, em que aprendemos, pela escuta da palavra de Deus, a
não mais dar ouvidos às nossas paixões e aos pensamentos que delas
derivam.
Todas estas passagens mostram que pertence aos ensinamentos das
Sagradas Escrituras a afirmação de que existe uma operação da
alma, relacionada com o ouvir a palavra de Deus, que é autêntico
alimento para a alma e que produz notáveis efeitos de transformação
na mesma.
Esta operação da alma, dizem as Escrituras, floresceria entre os
homens com o advento do messias, cuja obra foi prefigurada no retorno
dos exilados judeus, espalhados por todas as nações da terra, assim
como hoje os homens estão espalhados por todas as paixões da carne,
à terra santa de Israel, com a conseqüente reconstrução de
Jerusalém. "Naquele tempo reunir-se-ão todas as nações em
Jerusalém em nome do Senhor, e não andarão mais após a maldade de
seu péssimo coração", diz Jeremias, atribuindo a esta época um
efeito que em todo o seu livro ele atribui claramente à contemplação
entendida sob as expressões da escuta da palavra de Deus (Jer. 3,
17). É o mesmo que afirma Isaías ter ouvido Deus pedir-lhe,
quando lhe ordenou que preparasse o retorno dos exilados:
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"Ouvi uma voz que me dizia",
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diz Isaías,
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"`Clama'.
E eu disse:
`Que hei de clamar?'
`Clama que toda a carne é feno,
e que toda a sua glória é como a flor do campo.
Secou-se o feno,
e caíu a flor,
mas a palavra de nosso Senhor
permanece para sempre' ".
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Que significa Isaías ser chamado a preparar a vinda do messias
clamando ao povo que tudo passa, que as coisas do mundo secam como o
feno e caem como a flor e só a palavra de Deus permanece? Não há
dúvida que é o mesmo que Jesus ensinaria pessoalmente, ao dizer a
Maria que somente havia uma única coisa necessária, que nunca lhe
seria tirada. Seus frutos não secam como o feno, nem caem como a
flor do campo, mas permanecem para sempre.
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"Sentada aos pés do Senhor
com os ouvidos atentos",
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diz Hugo de S. Vitor,
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"Maria nos oferece um exemplo muitíssimo evidente
da virtude da contemplação.
Em sua sede pelas palavras que lhe dizia,
o próprio Senhor foi testemunha
de haver escolhido a melhor parte,
exemplo louvável e admirável
que observamos em muitos outros que,
com este mesmo empenho,
com o auxílio da graça de Cristo,
abandonaram uma vida de depravação
e alcançaram tanta bondade na virtude
e tão grande honestidade nos costumes
que em sua luz podemos conhecer mais claramente
ter sido realizado o que estava escrito no Salmo:
`Enviou o Senhor a sua palavra,
e os curou,
e os livrou da ruína' ".
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