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Repentinamente, diz Garret Hardin, no decênio de
1960, a palavra aborto começou a encontrar-se repetidas vezes
espalhadas pelas páginas dos periódicos norte americanos. Nas
décadas anteriores a palavra foi vista raramente. Os manuais
de estilo de muitos periódicos especificavam que somente seu
eufemismo, "operação ilegal", deveria ser impresso. Agora
tudo tinha mudado. Os periódicos, revistas populares, rádio e
televisão regressavam ao tema continuamente. Os artigos que
apareciam ocasionalmente nas revistas populares antes de 1960
discutiam o assunto apenas em termos horrorrizados. Na
segunda metade da década as revistas mais respeitáveis já
estavam incluindo artigos que recomendavam a legalização da
prática, equilibrados por outros em sentido contrário. Até as
revistas escritas para jovens adolescentes discutiam a
questão aberta e objetivamente. Dez anos antes ninguém teria
sonhado que semelhante transformação da atitude pública
poderia ter tido lugar. O que tinha acontecido?
Dois fragmentos de informação que apareceram na
década de 1950 prepararam o terreno, creio eu, para a mudança
aparentemente repentina que teria lugar durante o seguinte
decênio. Primeiro houve a notícia do uso maciço do aborto
como método de controle de natalidade no Japão. Já se sabia
que o aborto havia sido legalizado nos países escandinavos
desde os anos trinta, mas também sabia-se que esta prática
era marginal. Para obter um aborto legal na Escandinávia a
mulher tinha que suplicar e lutar. Por exemplo, muito
diferentemente do que ocorre hoje em dia no mundo inteiro,
muitas mulheres que solicitavam aborto alegando motivos
psiquiátricos, ao passarem pelo psiquiatra tinham seu pedido
rejeitado.
A situação não era tão diferente nos Estados
Unidos. Mas o Japão! De repente descobrimos que os japoneses
estavam empregando o aborto com a mesma naturalidade que
outros métodos de controle de natalidade. As mulheres não
estavam assistindo à sua perdição. A família não estava se
desagregando. O Estado não estava se desmoronando. Tudo isto
fazia com que se parasse e se refletisse.
Em 1954 a Planned Parenthood of America decidiu
que tinha chegado o momento de celebrar uma Conferência sobre
o aborto. Quarenta a três homens e mulheres, a maioria deles
doutores em Medicina, se reuniram em Harden House, Nova York,
para duas Conferências de grande duração em 1955; os
resultados, editados pelas Dra. Mary Steichen Calderone,
foram publicados em 1958, sob o título "Abortion in the
United States". A Conferência foi um triunfo científico e
dramático. Pela primeira vez os fatos reais sobre o aborto
moderno foram expostos perante a profissão médica com uma
clareza que não dava margem a disputas. Houve resistência,
desde logo. Um dos acontecimentos mais dramáticos de toda a
Conferência foi a confrontação de um aborteiro ilegal
profissional, já aposentado, o Dr. G. Lotrell Timanus, e
seus colegas legais e menos ousados. Até mesmo através das
frias palavras de uma descrição objetiva pode-se sentir a
atmosfera elétrica deste encontro. Foi uma destas raras
confrontações de adversários em que acusado e acusador mudam
de lugar. Foi digno de Zola. Desde então o Dr. Timanus se
apresentou num documentário televisionado, em que se fez
evidente que ele era o vovô bondoso de todo o mundo. Não era
esta a imagem que nós costumávamos ter de um aborteiro. Isto
debilitou a fé das pessoas na moralidade em preto e branco.
Se não pudermos acreditar em um estereótipo, em que mais se
poderá acreditar?
A publicação dos livros de Calderone, "Abortion
in the United States", foi acolhida por um silêncio quase
absoluto por parte da crítica. Uma investigação dos índices
de resumos de livros feita por Freud Dietrich não revelou uma
só resenha deste livro nem na literatura médica, nem na
popular. Entre as revistas semi populares, apenas uma o
resenhou, a Scientific American. O número de janeiro de
1959 incluíu uma nota grande e favorável escrita por James R.
Newmann. Creio que muitos estudantes de planejamento familiar
iniciaram seu interesse pelo aborto com a leitura do resumo
de Newmann. Sei, pelo menos, que assim aconteceu no meu
próprio caso.
A adoção do aborto no Japão e a publicação das
atas da Conferência de Harden House nos anos 50
contribuíram indubitavelmente para a quebra do tabu contra a
discussão do aborto nos anos 60. Á medida em que desaparecia
o tabu, se tornavam visíveis 12 fatos básicos, e
surpreendentes, relacionados com o aborto:
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1. O aborto é um método de controle de
natalidade. Isto por definição; mas o que é
mais importante, a definição surge
naturalmente da atitude das mulheres que se
submeteram ao aborto. É um erro contrastar o
aborto e o controle da natalidade, como se
faz freqüentemente. O contraste correto se
faz entre aborto e anti concepcionismo,
consistindo o primeiro em matar células vivas
depois da fecundação e o segundo em matar
células vivas antes da fecundação.
2. A maioria das mulheres que se submetem
ao aborto são mulheres casadas. Talvez seja
tentador pensar que as moças solteiras
promíscuas sejam as principais clientes dos
aborteiros, mas isso não é certo, nem nos
Estados Unidos, nem em nenhum dos países
estudados.
3. Mesmo uma pequena taxa de fracasso dos
anticonceptivos produz uma necessidade
realmente grande de abortos. Em uma
população do tamanho da nossa, uma taxa de
fracasso de 1% produziria um quarto de
milhões de criaturas indesejadas por ano. É
provável que uma taxa de fracasso de 1% seja
o máximo a que se possa chegar com a pílula.
Métodos mais antigos apresentam uma taxa de
fracasse cinco vezes maior ou ainda mais.
4. O aborto foi utilizado como método de
controle de natalidade em 99% de todas as
sociedades estudadas por antropólogos.
5. O aborto é o método individual de
controle de natalidade mais extensamente
praticado no mundo atualmente.
6. Um aborto corretamente praticado é muito
menos perigoso do que um parto normal.
7. O aborto não produz esterilidade, mesmo
que, supostamente, um aborto levado a cabo
incorretamente possa ter este resultado.
8. O aborto, quando é legal, não precisa
ser caro. Na Romênia custa menos do que o
equivalente a dois dólares.
9. O aborto em si mesmo não causa nenhum
prejuízo psicológico. A análise psicológica
demonstra que nos casos em que existem
sentimentos de culpabilidade estes foram
injetados na mulher por uma sociedade que
demonstra sua reprovação. Em uma cultura que
o aprova, o aborto não é mais dramático do
que uma extração de dente.
10. Os casos de gravidez indesejadas
ocorrem com maior freqüência nas mulheres
menos bem adaptadas para a maternidade. A
prevenção eficaz de todos os casos de
gravidez indesejada diminuiria a proporção de
crianças criadas por mães ressentidas.
11. O aborto clandestino discrimina contra
os pobres.
12. Os filhos indesejados incrementam o
peso dos impostos, porque aumentam os gastos
com saúde mental, beneficiência e serviços
penais.
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Estes fatos estão agora claros como o cristal e
inegáveis. Como pudemos ter permanecido inconscientes dos
mesmos por tanto tempo?
NOTA: Mesmo para os que se colocam em uma perspectiva favorável
à prática do aborto, algumas destas afirmações são de
validade duvidosa ou mesmo errôneas. Entretanto, visto Garret
Hardin ter sido ele próprio personagem importante na história
da problemática que constitui a pauta deste estudo, seu
testemunho sobre o efeito que o Congresso de Harden House
produziu sobre a opinião dos estudiosos não pode ser
desprezado.
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