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Para determinar os princípios intrínsecos do movimento,
Aristóteles procede da seguinte maneira.
Qualquer coisa que passe por uma mutação está se tornando alguma
coisa a partir da negação desta coisa. Exemplificando esta
afirmação, dizemos que o branco se torna branco a partir do não
branco. Temos assim os dois primeiros princípios necessários em
qualquer mutação, o término para o qual tende o movimento e o oposto
deste término, a partir do qual se iniciou o movimento. A natureza,
pois, supondo o movimento, pressupõe também, em cada movimento,
como princípios, a existência de dois contrários entre os quais se
realiza o movimento.
Não basta, porém, a existência de dois contrários para explicar o
movimento. É necessário também tomar como um terceiro princípio o
sujeito destes contrários, pois, em qualquer movimento, como no
movimento do branco para o não branco, não é o próprio branco que
se torna negro, mas alguma coisa branca que deixa de ser branca e se
torna negra. Os contrários, que já foram identificados no
parágrafo anterior como princípios do movimento, transformam-se não
a si mesmos, mas a um terceiro, que é o sujeito de ambos, e este
sujeito é, deste modo, o terceiro princípio intrínseco que deve ser
postulado para explicar o movimento.
Os movimentos das coisas naturais, portanto, podem ser explicados
admitindo-se a existência de três princípios:
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O sujeito;
o término para o qual tende o movimento;
o oposto deste término.
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Aristóteles chama de término para o qual tende o movimento de `forma
para o qual tende o movimento', ou simplesmente de `forma', a qual
inere em um sujeito. O oposto desta forma, para a qual tende o
movimento, ele a chama apenas de `privação desta forma'.
Deve-se considerar, porém, a hipótese de que em algumas
transformações da natureza possa ocorrer não apenas uma passagem de
uma forma para a privação desta forma, ou vice versa,
conservando-se o sujeito, mas também que o próprio sujeito possa
mudar e tornar-se outro sujeito.
Como exemplo do que estamos dizendo, tomemos um bloco de minério de
ferro, uma pedra vermelho escura da qual se extrai o ferro e que em
nada se parece com uma reluzente barra de aço. Suponhamos que este
minério esteja inicialmente frio e em seguida seja aquecido a altas
temperaturas. Aqui o sujeito é o minério de ferro, a privação da
forma é a qualidade fria, a forma para a qual tende o movimento é a
alta temperatura. O sujeito em si, nesta transformação, não
mudou; era minério de ferro, permaneceu minério de ferro. Mudaram
apenas as suas qualidades. O sujeito minério de ferro frio,
continuando minério de ferro, transformou-se em minério de ferro
quente.
Há, porém, uma outra transformação a que pode submeter-se o
minério de ferro na qual, diversamente do que ocorre na que acabamos
de expor, o sujeito deixará de ser minério de ferro para
transformar-se em ferro e aço. Se, de fato, em vez de ser apenas
aquecido, este material for colocado juntamente com carvão em um alto
forno a mais de mil graus de temperatura, o minério se transformará
em metal reluzente, a princípio líquido, sólido depois de esfriado
à temperatura ambiente. Não terão sido mais as qualidades do
sujeito que mudaram do frio para o quente ou vice versa, permanecendo
inalterado o sujeito, mas será o próprio sujeito que se ocultava sob
estas qualidades que terá se transformado.
Ora, conforme vimos, toda transformação na natureza supõe
necessariamente três princípio que são o sujeito, a forma e a
privação da forma. Se, portanto, o minério de ferro, que na
primeira transformação era o sujeito, ele próprio, na segunda
transformação, é também capaz de sofrer uma transformação, isto
só poderá acontecer se se admite que este sujeito também seja
constituído por uma composição de sujeito e de forma. Há um
sujeito mais elementar, oculto sob a aparência ou a forma do minério
de ferro, que se transforma e adquire a forma do ferro ou aço. O
minério de ferro, que era sujeito da primeira transformação, ele
próprio, se for passível de transformação, deve ser composto, por
sua vez, de um sujeito mais elementar e de uma respectiva forma.
Consideremos agora este novo sujeito. Seja ele quem for, poderá ou
não ser capaz de mudanças. Se possuir qualquer determinação
identificável, necessariamente poderá sofrer algum tipo de
mutação, porque se ele, sendo determinado, é tal ou qual coisa,
poderá vir a se tornar algo que não seja esta tal ou qual coisa. Se
ele possuir alguma determinação, portanto, deverá ser também
composto de sujeito e de forma. E este outro sujeito também, se
possuir alguma determinação, deverá igualmente ser composto, e
assim sucessivamente, até chegarmos a um sujeito absolutamente
primeiro que seja inteiramente indeterminado. Este, sendo
inteiramente indeterminado, não poderá ser mais transformado em si
mesmo. Este primeiro sujeito, inteiramente indeterminado, que deve
postular-se na natureza para poder explicar-se o movimento, é o que
Aristóteles chama de matéria primeira.
A matéria primeira, enquanto tal, não pode existir por si só. Se
fosse possível isolar-se um pouco de matéria primeira em estado puro
e colocá-la, por exemplo, em um vidro para observação, ela já
não seria mais matéria primeira. Teria as dimensões do vidro,
estaria localizada em tal ou qual lugar, teria uma tal e qual extensão
e, com isto, já não mais se poderia dizer tratar-se de algo
inteiramente indeterminado. De onde se conclui que a matéria
primeira, devido à sua total indeterminação, enquanto tal não pode
existir por si só. Deve-se postular sua existência, mas ela não
poderá ser individualmente identificada. Diz-se que ela apenas
existe em potência e que não existe em ato. Não existindo em ato,
não poderá surgir individualmente em algum lugar para que possa ser
identificada. Para existir, a matéria primeira necessita de receber
uma determinação mínima que lhe será dada por uma forma primeira.
Esta primeira forma que a matéria primeira deve receber para resultar
um primeiro ente em ato ou um primeiro sujeito em ato é chamada de
forma substancial. O composto formado pela matéria primeira e forma
substancial é o que se chama, na filosofia aristotélica, de
substância.
Vemos assim que a forma substancial dá à matéria primeira duas
coisas: uma primeira determinação, a que chamamos de essência, e a
entrada na realidade, a que chamamos de existência. De fato, apenas
por si mesmo a matéria primeira é inteiramente indeterminada e não
pode existir. Ambas estas coisas lhe são dadas pela forma
substancial. É o composto de ambas, isto é, o composto de matéria
primeira e de forma substancial, a que chamamos de substância, que se
constitui no primeiro ente capaz de subsistir por si só.
Por sobre a substância, o primeiro ente que possui a estrutura
mínima possível de existência em ato, podem acrescentar-se e, de
fato, acrescentam-se até necessariamente, diversas outras formas que
são chamadas de formas acidentais, por contraposição à primeira
forma que era chamada de substancial. São exemplos de formas
acidentais a cor, a temperatura, a dureza e outras similares. Estas
formas podem mudar sem que necessariamente mude a substância, e
constituem o que chamamos de acidentes. Acidentes, por
contraposição à substância, são entidades reais mas que não são
capazes de existência em ato por si só. Para existirem, necessitam
de uma substância da qual sejam acidente. Segundo Aristóteles
afirma no quinto capítulo do Livro das Categorias,
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"O sentido primário
mais verdadeiro e estrito
do termo substância
é dizer que é aquilo
que nunca se predica de outra coisa,
nem pode achar-se em um sujeito.
Como exemplo disto
podemos colocar um homem concreto
ou um cavalo concreto.
Todas as demais coisas
que não são substâncias",
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isto é, os acidentes,
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"serão predicados das substâncias
ou estarão nelas
como em seus sujeitos".
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