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Muito bem, disse ele, falastes corretamente sobre o fim. Mas,
antes de mais nada, deveis saber qual é o nosso escopo, isto é, a
firme determinação a que devemos aderir sem cessar, para podermos
atingir o nosso fim.
Em toda arte e disciplina, como já disse, tem precedência um certo
escopo, isto é, um propósito da alma, uma incessante intenção da
mente. Se alguém não o guardar com perseverante empenho, não
poderá chegar ao fim desejado.
Pois, como eu disse, o lavrador, tendo por fim próprio viver do
proveito de colheitas abundantes com segurança e largueza, exerce o
seu escopo ou determinação ao purgar de sarças e ervas inúteis o seu
campo, só confiando em atingir o fim almejado, a opulência, se,
antes de obtê-lo já de algum modo o possua em seu trabalho e sua
expectativa.
Igualmente o mercador. Não abandona o desejo de adquirir
mercadorias, pois é por seu intermédio que pode mais rendosamente
acumular riqueza. Em vão cobiçaria o lucro, se não tomasse o
caminho que a ele conduz.
Os que ambicionam as honras deste mundo, através de determinadas
dignidades, escolhem antes os cargos e carreiras a que devem
dedicar-se para poder chegar, pelo caminho certo, ao fim que é a
desejada dignidade.
Assim, o fim último da nossa via é o reino de Deus. Mas, qual
seja o escopo, deve-se cuidadosamente procurar. Se não o soubermos
com clareza, em vão nos cansaremos em nossos esforços, pois os que
viajam sem caminho certo, só conseguem o labor da jornada, não o
avanço.
O fim último da nossa profissão, como já dissemos, é o reino de
Deus ou dos céus. Quanto ao nosso escopo, é a pureza de coração
sem a qual é impossível alguém alcançar aquele fim.
Portanto, fixando neste escopo o olhar que nos dirige, orientamos a
nossa corrida por uma linha certa, de modo que se o nosso pensamento se
desviar um pouquinho, nós o retificamos, voltando logo a
contemplá-la, como a uma norma. Revertendo os nossos esforços a
esse signo único, ele nos avisará imediatamente, caso o nosso
espírito se desvie ainda que pouco da direção proposta.
É como os que são hábeis no manejo de armas de arremesso. Quando
querem demonstrar sua perícia diante de um rei deste mundo,
esforçam-se por lançar dardos ou flechas em pequenos escudos onde
são pintados os prêmios. Estão certos de não poder alcançar o seu
fim, o prêmio cobiçado, senão visando diretamente ao alvo.
Ganharão o prêmio se puderem realizar o escopo proposto. Se este
lhes for subtraído da vista, seja qual for o desvio que afaste o olhar
imperito da direção correta, eles não perceberão que se apartaram
daquela linha, porque lhes falta o sinal certo que lhes aprove a
correção do tiro ou acuse a sua falha.
E assim, ao lançarem no ar e no vácuo seus inúteis arremessos,
estão impedidos de distinguir por que erraram ou se enganaram, pois
carecem de qualquer indicação do desvio, e o seu olhar confuso não
pode ensinar como, desde então, corrigir ou recuar a linha acertada.
Assim também a nossa profissão. seu fim, segundo o Apóstolo, é
a vida eterna, conforme, suas próprias palavras:
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"Tendes por fruto a santidade,
e por fim a vida eterna".
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Quanto, porém, ao nosso escopo, é a pureza de coração, que ele
merecidamente chama de santidade, sem a qual aquele fim não poderia
ser atingido. É como se dissesse em outras palavras:
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`Tendes o vosso escopo
na pureza de coração,
e o vosso fim na vida eterna'.
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Falando, aliás, desse escopo, o mesmo Apóstolo emprega o próprio
termo, isto é, escopo, de modo bem significativo:
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"Esquecendo o que está para trás,
e lançando-me para frente,
eu sigo sem parar até o fim,
para a recompensa
a que fui chamado do alto".
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O texto grego é mais claro ainda, trazendo: "katá skopón
diwko", isto é: "eu sigo até o fim, segundo o escopo", vale
dizer, segundo a determinação que me propus, como se dissesse:
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"Por este propósito,
pelo qual esqueço o que ficou para trás,
isto é, os vícios do velho homem,
eu me esforço por chegar ao meu fim,
que é a recompensa celeste".
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Assim sendo, devemos abraçar com toda a energia o que pode nos
encaminhar ao escopo da pureza de coração, e evitar tudo que dela nos
separa, como pernicioso e nocivo.
É ela a razão de tudo que fazemos e suportamos. É por ela que
abandonamos parentes, pátria, honrarias, riqueza, delícias e
qualquer prazer deste mundo, para guardar continuamente a pureza de
coração.
Se nos propomos esta intenção, os nossos atos e pensamentos sempre
irão direto à sua conquista. Mas se ela não estiver constantemente
diante dos nossos olhos, não só os nossos trabalhos se tornarão
vazios e instáveis e sem nenhum proveito, mas também se levantarão
pensamentos de toda sorte e contrários entre si.
Pois é inevitável que a alma, não tendo a que voltar e a que se
fixar de preferência, mude a cada hora e a cada minuto, ao sabor da
variedade dos impactos que sofre, e logo se transforme, em virtude das
influências de fora, na disposição que primeiro lhe ocorra.
Daí vem que já vimos que muitos, depois de ter deixado as maiores
riquezas, não só em quantias de ouro e prata, mas igualmente em
propriedades magníficas, se deixam perturbar, depois disso, por
causa de um canivete, um estilete, uma agulha, uma pena de escrever.
Se tivessem mantido o olhar invariavelmente fixo naquela pureza de
coração, jamais teriam admitido em coisas tão pequenas o que
radicalmente rejeitaram em bens consideráveis e preciosos.
Pois acontece muitas vezes que não poucos guardam com tanto ciúme um
volume, que não permitem a ninguém sequer de leve o ler ou tocar. E
assim encontram ocasião de impaciência e de morte onde eram
estimulados a ganhar a recompensa de paciência e de caridade. Depois
de terem distribuído todos os seus bens por amor de Cristo, eles
retém em coisas mínimas o antigo afeto do seu coração e se deixam
por elas, muitas vezes, encher-se de fortes cóleras, como os que,
não tendo a caridade do Apóstolo, se tornam de todo infrutuosos e
estéreis. O santo apóstolo o previa, em espírito, quando disse:
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"Ainda que eu distribuísse
todos os meus bens
para o alimento dos pobres,
e entregasse meu corpo às chamas,
se eu não tiver a caridade,
de nada me serve".
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Prova-se, assim, com clareza, que não se alcança de imediato a
perfeição pelo simples despojamento e pela renúncia de toda riqueza e
honraria, senão houver aquela caridade cujos membros descreve o
Apóstolo, pois é só na pureza de coração que ela consiste.
Pois o que é não invejar, não se encher de orgulho, não se
irritar, não agir mal, não ir atrás do próprio interesse, não
ter prazer com a injustiça, não levar em conta o mal (I Cor.
13,4ss) e o resto, senão oferecer sempre a Deus um coração
perfeito e sincero, e guardá-lo imune de quaisquer perturbações?
É, portanto, pela pureza do coração que tudo devemos fazer e
apetecer. Por ela, temos de ir atrás da solidão. Por ela,
saibamos que nos cumpre assumir jejuns, vigílias, trabalhos,
despojamento, leitura e outras virtudes, para, graças a isto,
tornar e conservar livre de más paixões o nosso coração, galgando
por estes degraus a perfeição da caridade.
E se eventualmente não pudermos, em virtude de alguma legitima e
necessária ocupação, realizar o ritual dos nossos rigores
costumeiros, não vamos por motivos de tais observâncias cair na
tristeza ou na ira ou indignação, pois é para vencer tais coisas que
teríamos feito o que foi omitido. Não é tão grande o lucro do
jejum, quanto os dispêndios da ira; nem tanto o fruto que se colhe
com a leitura, quanto o dano que sofremos com o desprezo de um irmão.
Convém, portanto, fazer por causa do nosso escopo principal, isto
é, a pureza do coração, que é a caridade, todas aquelas coisas
secundárias, jejuns, vigílias, anacorese, meditação das
Escrituras, e não desbaratar por causa delas esta virtude principal,
pela qual, se a guardarmos intacta em nós, nada nos poderá fazer
mal, ainda que se omita por necessidade algo secundário.
De resto, não nos servirá de nada fazer todas as coisas, se nos
deixarmos privar daquela que chamamos principal e para cuja aquisição
tudo deve ser feito.
Se alguém, com efeito, se apressa a arranjar e preparar as
ferramentas de qualquer arte, não é para as possuir ociosas nem para
fundar na mera posse dos instrumentos o fruto deles esperado, mas sim
para adquirir realmente, por seu serviço, a maestria e o produto
daquela arte, de que são eles os meios.
Assim, os jejuns, as vigílias, a meditação das Escrituras, o
despojamento e a privação de todos os recursos não constituem a
perfeição, mas são instrumentos da perfeição, pois se não é
neles que está o fim dessa disciplina, é por eles que se chega ao
fim.
É, portanto, em pura perda que alguém multiplicará tais
exercícios, se neles detiver a intenção do seu coração, como se
fossem o sumo bem, deixando de fixar no fim pelo qual se justificam
aquelas práticas, todo o esforço da sua virtude. Possuiriam os
instrumentos daquela disciplina, mas ignorariam o seu fim, no qual
consiste todo o fruto.
Tudo, pois, que pode perturbar a pureza e a tranqüilidade da mente,
ainda que pareça útil e necessário, deve ser evitado como
prejudicial . Com esta norma poderemos escapar à dispersão dos
pensamentos extravagantes e atingir, seguindo a justa direção, o fim
querido.
Este, portanto, deve ser para nós o principal esforço, esta a
invariável intenção do coração, para que a mente sempre esteja
fixa em Deus e nas coisas divinas. Tudo o que disto se afasta, mesmo
que seja grande, deve ser julgado secundário ou mesmo ínfimo, ou por
certo nocivo. De modo muito belo, o Evangelho traça uma figura
deste espírito e deste modo de agir, no episódio de Maria e Marta.
Enquanto Marta prestava um serviço absolutamente santo, pois era ao
próprio Senhor e a seus discípulos que ela ministrava, e Maria,
somente atenta à doutrina espiritual, estava fixa aos pés de Jesus,
que ela, beijando, ungia com o perfume duma boa confissão, é ela a
preferida pelo Senhor, por ter escolhido a melhor parte, e uma parte
que não lhe podia ser tirada.
Marta, com efeito, toda ocupada nos piedosos cuidados do seu serviço
doméstico, vendo-se incapaz de cumpri-lo sozinha, pede ao Senhor a
ajuda da irmã:
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"Não te importas que minha irmã
me deixe servir sozinha?
Dize-lhe, pois, que me ajude".
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Não era a uma obra vil, mas a um louvável ministério, que ela
chamava Maria. E, no entanto, que resposta ouviu do Senhor?
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"Marta, Marta, estás preocupada
e te perturbas por muitas coisas.
Não há necessidade senão de poucas,
e até mesmo uma só basta.
Maria escolheu a boa parte,
que não lhe será tirada"
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Vedes, portanto que o Senhor colocou o bem principal só na
"theoria", isto é, na contemplação divina. Segue-se que as
outras virtudes, ainda que as proclamemos necessárias e úteis e
boas, nós a julgamos de segundo grau, porque todas são praticadas
para a obtenção desta só. Dizendo o Senhor:
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"Estás preocupada
e te perturbas por muitas coisas;
não há necessidade senão de poucas
e até mesmo uma só basta";
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ele colocou o sumo bem não na ação, embora louvável e abundante de
frutos, mas na contemplação dEle mesmo, que é, na verdade,
simples e una. Ele afirmou que poucas coisas são necessárias para a
perfeita bem-aventurança, isto é, aquela "theoria" que começa
pela consideração do exemplo de uns poucos santos.
Elevando-se desta contemplação, aquele que ainda se acha em
progresso, chegará também a esse único assim chamado, isto é, à
visão de Deus só, com a sua graça. Ultrapassando, com efeito,
os atos e ministérios maravilhosos dos santos, ele já passa a
nutrir-se da beleza e do conhecimento de Deus:
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"Maria escolheu a boa parte,
que não lhe será tirada".
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É preciso considerar isto mais cuidadosamente. Quando Ele disse:
"Maria escolheu a boa parte", embora se cale a respeito de Marta e
não pareça censurá-la, ao louvar aquela, declara esta inferior.
E quando diz "que não lhe será tirada", mostra que desta pode-se
tirar a sua parte, um serviço corporal não pode perseverar sempre com
o homem, ao passo que a ocupação de Maria, esta, como Ele
ensina, em tempo algum pode findar.
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