10. 2. A constância da fé.

Para entender o que significa a constância da fé, convém examinar primeiro uma observação dos "Mistérios da Fé Cristã", onde Hugo de S. Vítor diz que crer é algo muito diferente do que apenas não negar os ensinamentos da fé:

"Há um gênero de homens",

diz Hugo de S. Vítor,

"para os quais crer significa apenas não contradizer a fé".

Ainda que não a contradigam não só pelas palavras, mas também pelas obras, tais pessoas

"são chamadas fiéis mais pelo costume da vida do que pela virtude de crer".

"Dedicados apenas às coisas do mundo e às coisas que passam",

continua Hugo,

"nunca elevam a mente ao pensamento das coisas futuras; embora recebam os sacramentos da fé cristã juntamente com os demais fiéis, não atentam para o que significa ser cristão ou que esperança há na expectativa dos bens futuros. Embora chamamos a estas pessoas fiéis pelo nome, de fato e em verdade estão longe da fé".

De fato, diz ainda Hugo em outra passagem dos Mistérios da Fé Cristã, pela fé produz-se

"uma tal pureza do coração e da consciência"

no homem que já

"se começa a saborear interiormente aquilo que se crê pela fé".

Se isto ocorre não uma vez ou outra, mas sempre e cada vez mais freqüente e constantemente, chamamos a isto de constância da fé, o que fêz São Paulo dizer que os homens santos

"vivem da fé".

De fato, na Epístola aos Hebreus, São Paulo cita o livro de Habacuc, em que o profeta diz a mesma coisa:

"O justo viverá da fé,
diz o Senhor,
mas,
se retroceder,
não será aceito à minha alma".

Heb. 10, 37

O mesmo, porém agora com suas próprias palavras, São Paulo escreve na Epístola aos Colossenses:

"Já que ressuscitastes com Cristo,
procurai as coisas do alto,
pensai nas coisas do alto,
não vos interesseis pelas terrenas,
já que vós morrestes,
e vossa vida está escondida
com Cristo em Deus".

Col. 3, 13

Se nossa fé não for assim, embora sejamos chamados de fiéis, diz Hugo de São Vítor,

"de fato e em verdade estaremos longe da fé".

Outra era a fé do profeta Elias, de quem dizem as Escrituras que vivia constantemente

"na presença do Senhor".

I Reis 17, 1

Outra também era a fé dos salmistas, os quais, em suas orações, quando se referiam ao tabernáculo ou à casa do Senhor, freqüentemente era à fé que estavam se referindo:

"Pudesse eu habitar para sempre no teu tabernáculo, ó Senhor, e acolher-me à sombra das tuas asas".

Salmo 61, 5

"Bem aventurado, Senhor, o homem que acolhes e tomas para ti. Ele habita nas tuas moradas, sacia-se dos bens de tua casa, da santidade do teu templo".

Salmo 65, 5

"A minha alma suspira, deseja os átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne exultam pelo Deus vivo. Bem aventurados, Senhor, os que moram na tua casa, eles te louvam sem cessar. Ao passarem pelo vale mais árido, o transformam em fonte, e a primeira chuva o recobre de bênçãos. Caminham com vigor sempre crescente, verão o Deus dos deuses em Sião".

Salmo 84, 3-8

Para entender o significado destas passagens, deve-se considerar primeiramente que o maior mandamento do Cristianismo não é a fé, mas o amor a Deus, conforme a sentença de Cristo:

"Amar a Deus de todo o coração,
com todo o entendimento,
com toda a alma,
com todas as forças,
este é o primeiro",

diz Jesus,

"e o maior de todos os mandamentos".

Mc. 12, 29-31

Porém, para que Deus habite permanentemente em nós pelo amor, devemos também construir em nós uma casa para a fé, e é desta casa que falam os salmos acima. Pela constância da fé se constrói a casa em que Deus vem habitar em nós pelo amor, e é desta constância que também falava Ricardo de São Vítor no prefácio do De Trinitate:

" `O meu justo vive da fé'.

Esta sentença é ao mesmo tempo apostólica e profética. O Apóstolo diz o que o profeta prediz, pois o justo vive da fé; e se assim é, ou melhor, porque assim é, devemos nos elevar com freqüência aos mistérios de nossa fé. Se somos filhos de Sião, levantemos aquela sublime escada da contemplação, tomemos asas como de águia, pelas quais nos possamos destacar das coisas terrenas e nos levantar às coisas celestes. Pensemos nas coisas do alto, não nas coisas da terra, onde Cristo está sentado à direita de Deus; para isto de fato Cristo nos enviou o seu Espírito, para que conduzisse o nosso Espírito de tal modo que para onde Cristo ascendeu com o corpo, ascendamos nós pela mente".