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Tenho sido rogado freqüentemente por muitos, oralmente e por carta,
que expusesse por escrito porque necessidade e por que razão Deus,
sendo onipotente, tomou a humildade e a enfermidade da natureza humana
para poder salvá-los.
Tentarei satisfazer aos seus pedidos, não para que pela razão se
aproximem da fé, mas para que se deleitem das coisas que crêem pela
inteligência e pela contemplação, e possam, o quanto possam,
estarem preparados para darem uma satisfação àqueles que lhes
perguntarem sobre a nossa esperança.
Vejamos primeiramente o que é pecar, e o que é satisfazer pelo
pecado.
Se o anjo ou o homem sempre dessem a Deus o que lhe é devido, nunca
pecariam, pois nada mais é pecar do que não dar a Deus o que lhe é
devido, isto é, toda a vontade da criatura racional sujeita à
vontade de Deus.
Quem não dá a Deus isto que lhe é devido, tira de Deus o que lhe
é devido e o desonra, e isto é pecar. Enquanto não devolver o que
é devido, permanece em culpa.
Não é suficiente, porém, devolver o que lhe foi tirado, pois pela
injúria feita sempre deve-se devolver mais do que se tirou. É assim
que não é suficiente para quem lesa a saúde de outro que lhe devolva
a saúde, pois deve também, pela dor impingida, recompensar-lhe com
algo mais. Do mesmo modo não é suficiente para quem viola a honra de
alguém que lhe devolva a honra, pois deve também, de acordo com o
dano que lhe causou, restituir-lhe algo a mais que seja de seu
agrado.
Mas com que poderás resgatar a Deus pelo teu pecado?
Arrependimento, um coração contrito e humilhado, abstinências,
trabalhos corporais, misericórdia no dar e no perdoar e obediência?
Em tudo isto, porém, o que dás a Deus? Ao dares a Deus algo que
já lhe devias, mesmo que não tivesses pecado, não podes computar
isto como o resgate que lhe deves pelo teu pecado. O que, pois, lhe
darás pelo teu pecado? Se eu mesmo, e tudo o que eu posso, mesmo
quando não peco, e Ele o devo para que não peque, nada mais terei
com que possa resgatar pelo pecado.
Entretanto, ainda que estas coisas não as devesse já a Deus, mesmo
estas não seriam suficientes para resgatar do pecado, mesmo de um
pecado tão pequeno como um olhar contra a vontade de Deus.
Considera quão grave é o pecado. Se estás na presença de Deus e
alguém te dissesse:
e Deus, ao contrário:
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"De modo algum
quero que olhes",
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pergunta em teu coração qual é o motivo que justificaria ir contra a
vontade de Deus.
Se necessário fosse olhar para que todo o mundo e tudo o que não é
Deus não perecesse e não voltasse ao nada, mesmo se houvessem muitos
mundos cheios de criaturas e que estas se multiplicassem ao infinito,
nem por isto deverias olhar, o que não significa outra coisa senão
que tudo isto é de menos valor do que a gravidade do pecado.
Ninguém, pois, poderá satisfazer pelo pecado, por menor que seja,
a não ser quem puder resgatar pelo pecado do homem com algo que seja
maior do que tudo o que não é Deus.
Ora, somente poderá dar algo de seu a Deus que seja maior do que
tudo o que há debaixo de Deus aquele que for maior do que tudo aquilo
que não é Deus.
Ninguém, porém está acima de tudo o que não é Deus senão
Deus.
Portanto, não poderá satisfazer pelo pecado do homem ninguém,
senão só Deus. Mas também não o poderá fazer, se não for
homem, caso contrário não será o homem que dará a satisfação.
É necessário, portanto, que esta satisfação venha do Deus homem.
A razão, portanto, nos ensina que quem satisfará pelo pecado do
homem deve possuir algo maior do que tudo o que há debaixo de Deus, e
que o dê espontaneamente, e não por uma obrigação, a Deus.
Deverá, pois, se pôr a si mesmo para a honra de Deus, ou algo de
si mesmo que de algum modo já não o devesse a Deus.
Se, porém, o Filho de Deus der a sua vida a Deus, ou se se
oferecer à morte para a honra de Deus, isto Deus não o exigiria
dele, porque a morte entrou no mundo pelo pecado, e o Deus homem não
tendo pecado, não seria obrigado a morrer.
É fácil também ver que a morte deste homem é maior do que tudo
aquilo que há ou pode haver no mundo.
Considera que se alguém te dissesse:
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"Se não matares este homem,
perecerá todo este mundo
e tudo o que não é Deus",
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deverias matá-lo para conservar todas as demais criaturas? Não o
farias, certamente, mesmo que te mostrassem um número infinito de
criaturas. E se te dissessem:
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"Ou o matas,
ou todos os pecados do mundo
cairão sobre a tua alma"?
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Deverias responder que mais preferirias que caíssem sobre a tua alma
todos os pecados não só deste mundo, como de todos os que existiram e
de todos os que existirão, do que matar a este homem.
Mas por que esta é a resposta que deverias dar, senão porque a vida
deste homem, ou mesmo uma sua pequena lesão, vale mais do que todos
os pecados do mundo? De onde que se segue que esta vida é mais
amável do que são odiáveis todos os pecados.
Não vês que um bem tão amável pode ser suficiente para pagar o que
é devido pelos pecados de todo o mundo? Na verdade o pode mais ao
infinito.
Vê-se, portanto, como esta vida pode vencer todos os pecados, se
por eles for entregue.
Se, porém, o Filho de Deus oferecer espontaneamente a Deus um dom
tão grande assim, não é justo que fique sem retribuição. Mas o
que se lhe dará que como Deus já não o tivesse, ou o que se lhe
perdoará, se nada devia? Antes que o Filho oferecesse sua vida ao
Pai, tudo o que era do Pai também era seu, e nunca deveu nada que
pudesse ter que lhe ser perdoado.
Vê-se, assim, por um lado, a necessidade de ser recompensado,e
por outro, a impossibilidade de se o fazer.
Mas se o Filho quisesse o que a si é devido, dá-lo a outrem,
poderia o Pai proibir-lhO?
Mas a quem mais convenientemente atribuiria o fruto e a retribuição
de sua morte senão àqueles por quem se fêz homem para os salvar e aos
quais morrendo deu o exemplo de morrer pela justiça? Inutilmente
seriam seus imitadores, se não pudessem ser partícipes de seus
méritos.
Ou a quem mais justamente faria herdeiros da dívida, da qual ele não
necessita, e da exuberância de sua plenitude, do que aos seus pais e
irmãos? Nada mais racional, nada mais doce, nada mais desejável o
mundo jamais poderá ouvir. É evidente que Deus jamais rejeitará a
nenhum homem que dele se aproxime sob a tutela de seu nome.
Verdadeiramente quem sobre este fundamento edifica, está alicerçado
sobre uma rocha firme.
Quem poderá conceber uma misericórdia maior do que o pecador,
condenado ao eterno tormento, sem ter como redimir-se, ao qual Deus
Pai se dirige e lhe diz:
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"Aceita o meu Filho Unigênito,
e ele te redimirá?"
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E o próprio Filho:
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"Toma-me contigo,
e redime-te?"
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Pois é de fato isto o que dizem, quando nos chamam à fé cristã e a
ela nos trazem.
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