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Sucedeu, porém, que justamente nesta época, logo após Hugo de São Vitor e Pedro
Lombardo, começaram a aparecer entre os estudiosos de Paris, após muitos séculos de
esquecimento, as obras do filósofo grego Aristóteles, obras que em seu conjunto
constituem o mais monumental trabalho de síntese que o pensamento antigo havia
produzido.
Será importante examinar de que modo a obra de Aristóteles veio a reaparecer na
cristandade precisamente nesta época e em Paris.
Na antigüidade as obras de Aristóteles não tiveram uma grande difusão como muitas
outras a tiveram, devido não só à sua complexidade, como também ao fato de terem
sido redigidas de uma forma extremamente complicada para serem entendidas. Alguns
pensam que isto se deve ao fato de não haver sido o próprio Aristóteles quem as
escreveu, sendo as obras de Aristóteles na realidade constituídas pelos apontamentos
dos alunos que tomavam notas de suas aulas, talvez com alguma revisão por parte do
mestre. Já segundo Plutarco, famoso escritor grego da antigüidade, teria sido o próprio
Aristóteles quem as escreveu propositalmente neste estilo. Diz, de fato, Plutarco ao
escrever a vida de Alexandre o Grande, ex aluno de Aristóteles, que quando Alexandre
já se encontrava na Ásia no comando dos exércitos macedônios que conquistariam
para os gregos todo o mundo oriental, soube que Aristóteles havia publicado em livros
alguns tratados de Filosofia. Alexandre, então, teria escrito a Aristóteles a seguinte
carta:
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"Alexandre a Aristóteles,
saudações.
Fizeste mal em editar os
tratados de Filosofia.
Em que eu, que fui teu discípulo,
irei superar aos demais homens,
se as coisas que tu me ensinaste
se tornam agora comuns a todos?
Gostaria de ser superior
antes pela melhor instrução
do que pelo poder".
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Mas Aristóteles respondeu a esta mensagem, continua Plutarco, dizendo a Alexandre
que este não se preocupasse, porque os seus livros não seriam de nenhum préstimo
para o ensino ou o aprendizado, e que neste sentido seria indiferente se fossem ou não
publicados, pois haviam sido escritos apenas para o uso daqueles que já haviam sido
instruídos.
De fato, qualquer que seja a versão certa dos fatos ocorridos, o que se pode constatar é
que as obras de Aristóteles são muito diversas das que nos deixou Platão, as quais,
embora profundas, são de leitura fácil e agradável. Em contraposição a elas, as de
Aristóteles são praticamente impossíveis de serem entendidas pela simples leitura, e
este foi um dos principais motivos para a sua pouca difusão, não obstante a sua
importância.
Não bastasse este já não pequeno problema, coincidiu que a época em que viveu e
floresceu Aristóteles foi a mesma em que Alexandre, rei dos Macedônios, subjugou
não apenas todo o Oriente, mas também, e em primeiro lugar, toda a Grécia. Era
natural, portanto, que os gregos tivessem ódio pelos macedônios. Sob este ponto de
vista, não era a situação ideal para Aristóteles que vivia e filosofava entre os gregos
não apenas ter sido o professor de Alexandre, como ademais ele próprio, Aristóteles,
ser também um macedônio, embora tivesse vivido a melhor parte de sua vida em
território grego. Ponderadas estas coisas, quando morreu o Filósofo, seus discípulos
julgaram que seria uma boa medida de segurança esconderem suas obras no sótão da
casa de um certo Neleu, no que parece terem tido bastante razão, pois estas obras ali
permaneceram, esquecidas e intactas, durante quase trezentos anos.
Pouco antes de Cristo estas obras reapareceram, na mesma época em que os romanos
invadiam e conquistavam a Grécia. As obras do Filósofo foram então levadas para
Roma, onde os romanos encarregaram ao filósofo Andrônico de Rodes que as
colocasse em ordem e as publicasse.
A notícia de que haviam chegado e Roma as obras do grande Aristóteles empolgou a
nascente intelectualidade romana. Os romanos, finalmente, iriam tomar conhecimento
do que havia escrito este grande sábio.
A expectativa foi longa, pois a obra era, além de extensa, bastante complexa, e todos
sabiam que devia tratar-se de alguma coisa de transcendental importância.
Quando Andrônico acabou o trabalho, porém, que decepção! Sim, talvez fosse alguma
coisa transcendente, mas a linguagem era tão concisa e difícil que quase ninguém
conseguia entender alguma coisa, e poucos foram os que se animaram a passar da
simples leitura ao trabalho paciente e necessário para decifrar o que estava ali
contido. O próprio Cícero afirmou, alguns anos mais tarde, que embora as obras de
Aristóteles estivessem já disponíveis em Roma, pouquíssimos eram aqueles que as
conheciam verdadeiramente. Tais obras, pois, acabaram circulando entre um grupo
muito restrito de filósofos que, ademais, em sua maioria não tinha um interesse direto
nos mesmos.
Por volta do ano 500 DC estes poucos filósofos que tinham algum interesse por
Aristóteles emigraram para a Síria. Quando, pouco tempo mais tarde, os muçulmanos
conquistaram a Síria, foram estes que resolveram finalmente compreender a fundo o
que Aristóteles realmente tinha a dizer. As obras de Aristóteles foram traduzidas para
o árabe e, da Síria, já em versão árabe, atravessaram o Egito e o norte da África e,
margeando todo o deserto do Saara, chegaram finalmente à Espanha, quando se deu a
conquista muçulmana da península Ibérica.
Foi então que, nos anos 1100 DC, na Espanha, os cristão começaram a entrar em
contato com Aristóteles, não com o Aristóteles original em grego, que ninguém sabia
bem onde estava, mas com o Aristóteles traduzido pelos muçulmanos em língua árabe.
Percebendo a importância daqueles livros, o arcebispo de Toledo reuniu, vindos de
toda a Europa, homens que conhecessem ao mesmo tempo árabe e latim os quais
constituíram um grupo de tradutores que aos poucos foi vertendo as obras de
Aristóteles para uma língua que pudesse ser lida pelos sábios cristãos. De Toledo, à
medida em que o trabalho ia avançando e novas obras de Aristóteles iam surgindo,
cópias das traduções feitas eram enviadas para Paris.
Pode-se avaliar, pois, todo o tamanho da várias vezes secular viagem que os escritos
do Filósofo tiveram que enfrentar antes de chegar ao pleno conhecimento de nossa
civilização. Depois de escondidos trezentos anos em um sótão, foram capturados pelos
romanos, viajaram da Grécia para Roma, de Roma para a Síria, da Síria para a
Espanha atravessando de todo o norte da África, da Espanha para a França, vertidas do
grego para o árabe e do árabe para o latim, tudo isto ao longo de aproximadamente mil
e quinhentos anos. As obras foram aparecendo finalmente na França aos poucos,
juntamente com diversos comentários de filósofos árabes, mas mesmo isto não
significou que a tarefa estava concluída. A extrema dificuldade de interpretação
daqueles textos obrigou os estudiosos a um debate para penetrar no significado exato
dos ensinamentos de Aristóteles que, na Europa, durou ainda mais dois séculos, no
qual só se chegou a um consenso final com a série dos Comentários de Santo Tomás
de Aquino às obras do Filósofo.
À medida em que estas obras foram surgindo na França e iam sendo debatidos e
interpretados, aos poucos também começava a ficar evidente que elas formavam um
quadro orgânico de uma monumental síntese filológica como até então jamais se havia
visto. Independentemente disto, desde o início dos anos 1100 DC, devido em grande
parte à obra empreendida por Hugo de São Vitor, era precisamente na direção de uma
síntese como esta, mas no campo da Teologia, que se encaminhavam os estudos dos
sábios parisienses.
Não tardou, com isso, que se percebesse que o estudo daquela filosofia que estava
surgindo nos meios parisienses era não só um precioso instrumento para a obra que
vinha sendo empreendida como também, do ponto de vista pedagógico, excelente
preparação para os que se aproximavam do estudo da Ciência Sagrada. Os diversos
tratados da obra de Aristóteles passaram gradualmente a fazer parte do ensino
universitário e, de um certo modo, pode-se dizer que a seqüência de estudos em Paris
passou a ser o Trivium, o Quadrivium, a Filosofia e a Teologia, se bem que, na
prática, a Filosofia era ministrada geralmente em conjunto com as demais artes
liberais.
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