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"Durante a noite,
em meu pequeno leito,
busquei Aquele a quem ama a minha alma;
busquei-O, e não O achei".
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A alma que busca a Deus e deseja chegar mais plenamente ao
conhecimento e ao amor de Deus deve buscá-lo no pequeno leito, isto
é, no repouso da mente, desocupando-se e repousando da ocupação e
da inquietação das coisas terrenas. Não poderá buscar a Deus,
nem merecerá encontrá-Lo a não ser que pelo amor repouse dos
cuidados e da ocupação com as coisas exteriores. Deus deve ser
procurado, portanto, no pequeno leito, isto é, no repouso da
mente.
Deve ser procurado também pela noite, isto é, pela adversidade das
tentações e dos trabalhos, e no leito das virtudes e dos vícios.
Importa deste modo que a alma trabalhe em muitas adversidades, seja
retardada por muitos obstáculos e fatigada por muitas lutas antes que
corrija perfeitamente os seus costumes, alcance a pureza de coração e
mereça contemplar a Deus.
Corretamente, portanto, a alma diz buscar a Deus de noite, isto
é, pelas adversidades e trabalhos. E não o diz no leito, mas no
pequeno leito, porque enquanto os vícios, os primeiros costumes e a
memória e a deleitação dos pecados passados ainda impugnam a alma, o
repouso que se tem em tais coisas é exíguo e estreito.
O motivo, ademais, pelo qual diz também `o meu' e não \ `o
nosso' pequeno leito, está em que não o pode ainda ter em comum com
o esposo e não pode dele fruir perfeitamente em quietude tão exígua,
pois o lugar deste esposo está na paz e não na luta e na perturbação
dos vícios. Este é o modo pelo qual Deus é buscado no pequeno
leito pelos principiantes durante a noite.
Posteriormente, porém, Deus também é buscado de outro modo no
pequeno leito e durante a noite, quando a alma, mais plenamente
purificada dos vícios, estando já adormecidas as tentações e
purificada a consciência, tiver alcançado uma quietude mais plena.
Advém, então, a graça do Espírito Santo à sua mente,
sedando-lhe os vícios e as tentações, conforme está escrito:
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"É Ele que quebra os arcos
e faz em pedaços as lanças,
e queima ao fogo os escudos".
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A alma então poderá desocupar-se e ver quão suave é o Senhor.
O pequeno leito, portanto, em que a esposa descansa, é a paz e a
tranqüilidade da mente. Neste pequeno leito ela busca o amado durante
a noite quando adormecem os desejos da carne e, após a luta e os
trabalhos, sobrevindo a vitória, o repouso lhe tiver sido concedido.
De fato, trabalha-se durante o dia e durante a noite cessa-se o
trabalho e repousa-se. Passando a alma, pois, após o peso do dia e
o calor das tentações, do trabalho ao pequeno leito da quietude e à
noite do descanso da fadiga e da inquietação, fica ela pronta e
desocupada para poder melhor buscar o seu amado. Neste pequeno leito,
conforme diz o Cântico, e durante a noite,
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"Ela dorme,
mas o seu coração vela".
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Isto é, dorme exteriormente, mas vela interiormente. E quanto mais
quieta e desocupada estiver exteriormente, tanto mais ocupada estará
interiormente em buscar o seu amado. Busca-o, porém, no pequeno
leito, e não no leito, porque ainda não possui a plena quietude,
mas uma quietude estreita, pois não frui de seu amado como o deseja
nem o tem junto a si. De onde que chama ao seu leito de pequeno
leito, como quem o possui sozinha e no qual ainda não pode repousar
com o esposo. Diz, por isso, corretamente, que o busca durante a
noite, isto é, durante a noite da cegueira na qual é detida para que
não possa fruir plenamente dele nem perceber a sua presença. Este
esposo, de fato, presente pela sua essência e pelo desejo, já é
possuído quando é desejado, pois quando não está presente pela
revelação de sua presença, ainda não possuído, não pode ser
desejado. A alma ainda não afastou a sua cegueira, nem foi iluminada
para sentir a sua presença. Lamenta-se desta noite e por causa dela
é estimulada a buscar o seu amado, mas não o encontra. Deseja ser
iluminada e que lhe sejam abertos os olhos do coração para que o
encontre e que, pela graça que lhe for concedida, intelija a sua
presença e sinta ser vista por Ele e ela vê-lo. Busca, portanto,
uma maior iluminação da graça, a inteligência da presença e a
experiência da doçura espiritual:
diz ela,
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"aquele a quem ama a minha alma".
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No amor da alma podemos observar o amor espiritual e também afetuoso.
Quando, de fato, amamos alguém afetuosamente, dizemos amá-lo como
a nossa alma, como se disséssemos:
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"Aquele a quem amo
afetuosa e espiritualmente,
isto é,
para a salvação da alma,
não para a comodidade temporal ou carnal".
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Mas nem sempre o esposo se oferece imediatamente à esposa, nem se
mostra a quem o deseja, freqüentemente adiando o cumprimento do voto
para que aumente o desejo e, aumentado este, mais perfeitamente depois
o remunere e o realize. Às vezes também o adia para provar a
constância de quem busca e realizar o que é desejado com mais
utilidade do que demora. Aquilo que, de fato, é adquirido com mais
trabalho, é conservado mais fortemente e guardado com mais cautela.
Não poucas vezes esmorecem os desejos imediatamente cumpridos,
enquanto que mais crescem os que se retardam. De onde que a esposa,
sentindo a demora, e não conhecendo a dispensação, impaciente pelo
amor, lamenta-se dizendo
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"Busquei-o,
e não o achei".
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De fato, ainda não alcançou a graça que buscava, ainda não sente
a presença do esposo.
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