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A alguns poderá parecer surpreendente que nos refiramos à
demonstração da existência de uma causa primeira em termos que
sugerem tratar-se de algo tão complexo, e que gastemos muitas
páginas de um inteiro capítulo para produzir apenas alguma centelha de
evidência da existência desta causa primeira, com receio de entrar no
tema mais profundamente para não transformar este trabalho em um
tratado de Metafísica. Se o assunto é tão complexo, como se
explica que Santo Tomás de Aquino expôs, em algumas poucas
páginas do início da Summa Theologiae, não uma, mas cinco vias ou
cinco demonstrações da existência desta causa? Cada uma destas
demonstrações não ocupa mais do que umas poucas linhas. Em uma ou
duas páginas, portanto, parece poder demonstrar-se a existência da
causa primeira não só de uma, mas de cinco maneiras diferentes.
Como então podemos dizer que vamos gastar um capítulo inteiro deste
trabalho sem chegar a desenvolver integralmente sequer uma só?
Para responder a esta pergunta é preciso examinar mais atentamente o
próprio texto de Tomás de Aquino.
Constata-se, em primeiro lugar, que na exposição das cinco vias
S. Tomás usa expressões filosóficas sem se dar ao trabalho de
explicá-las; deduz-se daí que evidentemente ele supõe um leitor
que conheça bem filosofia.
É verdade que no prólogo da Summa Theologiae S. Tomás diz que a
obra se destina a principiantes:
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"Já que o doutor da verdade católica
deve instruir não somente os aproveitados,
mas também os principiantes,
o propósito de nossa intenção nesta obra
é tratar das coisas que pertencem à religião cristã
segundo convém ao ensino dos principiantes".
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A obra, pois, se destina ao ensino dos principiantes, mas tratam-se
de principiantes em Teologia, não em filosofia, pois desde o início
da Summa Santo Tomás emprega termos filosóficos cujo entendimento
não é imediato, antes, envolve conhecimento prévio de filosofia, e
faz isto sem dar qualquer explicação dos mesmos, usando-os na medida
em que os mesmos vão se fazendo necessários sem qualquer ordem ou
graduação de dificuldade.
Para entender a natureza da exposição das cinco vias, ademais,
deve-se considerar que a demonstração da existência de uma causa
primeira é muito mais uma tarefa da filosofia do que da Teologia. Ao
teólogo interessa saber como a filosofia pode dar esta demonstração,
de quantas maneiras pode fazê-lo e com base em que argumentos;
desdobrar, porém, esta argumentação em seus detalhes é um problema
eminentemente filosófico e não teológico. Por isso as cinco vias
descritas no início da Summa Theologiae não são desenvolvimentos
completos destas demonstrações, mas uma exposição dos princípios
sobre as quais elas se baseiam. Em sua essência são completas;
supondo um leitor perfeitamente versado em filosofia, são capazes de
produzir a evidência do que se pretende demonstrar. Mas para quem
não conhece filosofia mais a fundo, elas mais parecem simples
argumentos prováveis destituídos de verdadeira força demonstrativa.
É preciso, ademais, levar em conta que na época de Santo Tomás de
Aquino havia uma opinião muito difundida segundo a qual a existência
da causa primeira era uma verdade evidente que não necessitava nem
podia ser demonstrada justamente porque as coisas evidentes não podem
ser objeto de demonstração. Por causa disso é que, antes da
exposição das cinco vias, na Summa Theologiae, Tomás apresenta
uma demonstração de que a existência da causa primeira não é coisa
evidente (2); e, na Summa contra Gentiles, antes das
demonstrações da existência de Deus, Tomás usa dois capítulos
para discutir as opiniões dos que afirmavam ser evidente sua
existência e explicar porque seus argumentos careciam de fundamento
(3).
Ademais, na Summa contra Gentiles, ele também afirma que
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"esta opinião,
(isto é, a de que a existência de uma causa primeira
é algo evidente que não necessita de demonstração),
tem sua origem em parte no costume,
porque os homens se acostumaram
desde o princípio de suas vidas
a ouvir o nome de Deus e a invocá-lo.
Ora, o costume, e principalmente
o costume que provém desde o princípio,
adquire força de natureza;
disto resulta que as coisas
de que somos imbuídos desde a infância
acabam por possuir tanta firmeza
que nos parecem
coisas naturalmente conhecidas e evidentes" (4).
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Considerando, pois, o objetivo de conjunto da Summa Theologiae,
que não era o de demonstrar a existência de Deus, mas de um modo
acessível aos principiantes em Teologia expor
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"a profundidade dos mistérios da fé
e a perfeição da vida cristã" (5),
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e considerando estas disposições de que seus contemporâneos estavam
imbuídos, segundo a qual mais deviam ser convencidos que a existência
da causa primeira não era evidente do que do contrário, fica claro
que existem mais estes outros motivos para que na abordagem das cinco
vias Tomás se tivesse limitado a apontar apenas genericamente quais os
fundamentos em que se baseiam as demonstrações de que ele trata do que
em desenvolver plenamente as mesmas.
Deste modo, tal como são expostas, as cinco vias podem ser
comparadas a uma comunicação sobre uma técnica cirúrgica apresentada
em um Congresso de Medicina; toda a técnica está ali contida, mas
somente um médico, ainda que em cirurgia seja um principiante, será
capaz de realizar a cirurgia apenas ouvindo aquela breve comunicação;
o leigo que tenha estado presente à comunicação, mesmo que não
tivesse tido dificuldade em entender o sentido dos termos usados, não
conseguiria fazer com ela o que o comunicante pretendia que se fizesse.
Referências
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(2) Summa Theologiae, Ia, Q. 2 a.1.
(3) Summa contra Gentiles, I, 10-11.
(4) Idem, I, 11.
(5) Summa Theologiae, IIIa, Q. 71 a.4 ad 3.
(6) I Sententiarum, d. 35 Q. 1 a.1.
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