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"Mirra, aloés e cássia de tuas vestes,
dos palácios de marfim;
com elas filhas de reis
te deleitam em tua honra.
A rainha, de pé, à tua destra,
com vestes douradas,
é circundada pela multidão".
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Estas palavras, caríssimos, designam a santidade de cada um dos
fiéis e figuram a justiça da Igreja universal. No primeiro verso
descrevem-se as virtudes de qualquer dos fiéis e no segundo
declara-se a justiça de toda a Igreja.
A mirra é muito amarga; significa, por isso, a mortificação da
carne, não quanto à natureza, mas quanto à culpa. A natureza, de
fato, deve sempre ser alimentada; a culpa, porém, destruída.
Esta é a mirra de todos os eleitos pois, conforme diz o Apóstolo,
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"os que são de Cristo
crucificaram a própria carne,
com os vícios e as concupiscências".
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Sobre esta mirra e as suas espécies já dissemos muitas coisas neste
mesmo livro, em algum outro sermão. Satisfeitos agora, portanto,
com estas poucas palavras sobre ela, passemos ao aloés.
O aloés é uma erva que comprime os inchaços; designa, por isso, a
virtude da humildade. O próprio Senhor nos mostra no Evangelho o
quanto nos é necessária esta virtude quando diz:
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"Todo o que se exalta, será humilhado;
e o que se humilha, será exaltado".
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E também:
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"Se não vos converterdes,
e não vos tornardes como crianças,
não entrareis no Reino dos Céus".
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Verdadeiramente Abraão possuíu esta humildade, quando disse:
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"Falarei ao meu Senhor,
ainda que eu seja pó e cinza".
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Jacó também verdadeiramente a possuíu quando, falando ao Senhor,
afirmou:
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"Sou indigno de todas
as tuas misericórdias".
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O anjo apóstata, não querendo possuí-la, caíu irrecuperavelmente
do céu como um relâmpago. A descendência de Adão careceu dela
quando edificava a terra de Babilônia, merecendo a confusão de seus
lábios. E assim aconteceu sempre em tudo o demais, de tal maneira
que
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"Antes da ruína
exalta-se o coração do homem,
e antes da glória,
humilha-se".
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A cássia, também chamada de cana aromática, purga o ventre e
alivia a natureza de suas superfluidades; significa, por isso, a
virtude da confissão, a qual, na medida em que elimina a culpa da
mente pela porta da boca, exonera a própria mente do peso do pecado.
Pela mirra, portanto, entendemos a mortificação da carne; pelo
aloés, a humilhação da mente; pela cássia, a confissão do
pecado. Esta mirra, este aloés e esta cássia, diz o salmista,
são
As vestes do corpo de Cristo, que é a Igreja, são os santos mais
perfeitos, pelos quais a santa Igreja se reveste e se ornamenta assim
como o fazem os homens com as suas vestimentas. Destas vestes ou
santos alguns são de cor rubra, como os mártires, rubros pelo seu
sangue. Outros são da cor do jacinto e da cor do céu; são os
confessores, sublimemente elevados à contemplação das coisas
celestes. Outros ainda são da cor da neve, como as virgens; ou
negros, como os humildes, sempre se enegrecendo pela memória de seus
pecados. Outros, finalmente, são de várias e combinadas cores,
significando que participam de diversas virtudes e boas obras.
Todos estas vestes, acrescenta o salmista, são
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"dos palácios de marfim".
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Entendemos pelos palácios de marfim as congregações continentes e
castas. Os elefantes, de fato, cujos ossos denominamos marfim, são
animais castíssimos. Copulam de costas, parem apenas uma única
vez, não se deitam na terra, vivem trezentos anos. Quem desejar
entendê-lo, verá que todas estas coisas convém às almas justas e
castas. As vestes de Cristo, portanto, são dos palácios de marfim
porque todos os fiéis são da congregação dos castos e continentes;
e destas vestes são a mirra, o aloés e a cássia porque destes mesmos
fiéis provém as santas virtudes e a boa fama que elas difundem. Com
esta mirra, aloés e cássia, as santas virtuides e a boa fama das
vestes de Cristo, continua o salmista,
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"filhas de reis
te deleitam em tua honra".
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Os reis são os santos prelados, que regem os demais pela virtude do
discernimento. Suas filhas são as almas de seus santos súditos,
alimentadas pela doutrina com que as ensinam e ornamentadas pelos
exemplos que lhes oferecem. Estas almas não são designadas pelo nome
de filhos, mas pelo de filhas, com o que se quer significar a sua
magnífica devoção, pois o sexo feminino é muito devoto,
retribuindo com fervor admirável aos que se inclinam ao seu amor.
Pode-se entender também que estas almas são descritas pelo nome de
filhas, e não pelo de filhos, para melhor manifestar o quanto é
agradável a Cristo a admirável justiça dos perfeitos, se tanto o
deleitam pela sua santidade também as almas enfermas e imperfeitas
significadas pelo nome de filhas. As filhas de reis, portanto,
deleitam a Cristo em sua honra quando as multidões devotas dos
súditos o honram deleitavelmente pela sua bondade. Esta honra
deleitável, ou esta honorável deleitação, que procede das virtudes
já mencionadas, são para Cristo como uma suave refeição quando
Ele vê que seus súditos, por meio destas virtudes, vivem de modo
justo e oferecem as outros exemplos de justiça.
Tendo já nos falado dos santos fiéis, o salmista passa agora a nos
falar da Igreja, designada pela rainha. Dela nos diz que
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"a rainha, de pé, à tua destra,
com vestes douradas,
é circundada pela multidão".
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Assim como no verso precedente designam-se as virtudes e a fama das
virtudes de quaisquer fiéis, assim também designa-se neste a
justiça da Igreja universal e, desta justiça, sua múltipla
variedade e sua vária multiplicidade. A santa Igreja é
retissimamente comparada à rainha porque, unida ao rei celeste, é
por Ele sublimemente coroada. Ela está junto do rei pela fé, e de
pé pela boa intenção. Os falsos fiéis, ainda que estejam
próximos, crendo retamente no que é verdadeiro, todavia não estão
de pé realizando com reta intenção o bem que operam. Elias foi do
número não só dos que estavam próximos, como também dos que
estavam de pé, ao dizer:
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"Viva o Senhor,
em cuja presença eu estou".
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Ao dizer "estou", Elias mostrou permanecer diante de Deus; ao
acrescentar "em sua presença", mostrou também não estar ausente da
divina presença pela intenção. A santa Igreja está agora de pé
à direita de Deus pela justiça, para que no futuro mereça estar
também à sua direita pela glória. Assim também os réprobos estão
agora à esquerda pela culpa, e no fim dos tempos ali também
permanecerão pela pena.
Desta rainha, ou da Igreja, o salmista também afirma que ela se
veste
Pelas vestes deve-se entender a justiça, pelo ouro a sabedoria. De
fato, tudo o que a santa Igreja opera no exercício das virtudes ou na
exibição das boas obras é ornamentado pelo fulgor da sabedoria
celeste. Nisto ela imita o seu Criador segundo as suas
possibilidades, o qual tudo fêz com sabedoria. Foi assim que, na
primeira disposição de todas as coisas, em primeiro lugar Deus criou
a luz, para só em seguida passar a dispor todo o restante. E no
último dia, diz a Escritura, tendo Ele já a tudo disposto,
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"viu todas as coisas que tinha feito,
e eram imensamente boas".
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O salmista, prosseguindo, declara que a rainha é
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"circundada pela multidão".
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Estas palavras significam que a santa Igreja não se contenta com uma
só virtude, nem com uma só obra, mas quer ser circundada pela
multiplicidade das virtudes e ornamentada pela variedade das boas
obras,
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"segundo a dispensação
da multiforme graça de Deus".
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A esta variedade se referem aquelas palavras do Apóstolo Pedro:
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"Ministrai na vossa fé a virtude,
na virtude a ciência,
na ciência a abstinência,
na abstinência a paciência,
na paciência a piedade,
na piedade o amor fraterno,
no amor fraterno a caridade".
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A esta variedade se referem também aquelas outras palavras do
apóstolo Paulo:
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"Em todas as coisas nos mostramos
como ministros de Deus,
com muita paciência na tribulação,
nas necessidades, nas angústias,
nos açoites, nos cárceres,
nas sedições, nos trabalhos,
nas vigílias, nos jejuns;
com a castidade, com a ciência,
com a longanimidade, com a mansidão,
com o Espírito Santo,
com a caridade não fingida,
com a palavra da verdade,
com a virtude de Deus,
com as armas da justiça,
à direita e à esquerda,
entre a glória e a ignomínia,
entre a infâmia e o bom nome;
como sedutores, embora verdadeiros;
como desconhecidos, embora conhecidos;
como moribundos, mas ainda agora vivos;
como castigados, mas não amortecidos;
como tristes, mas sempre alegres;
como pobres, mas enriquecendo a muitos;
como não tendo nada, possuindo tudo".
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Caríssimos, juntamente com todos os santos e a santa mãe Igreja,
também nós somos chamados à coroa da pátria celeste. Exercitemos,
portanto, com todas as nossas forças, as virtudes e as boas obras.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, nosso
Senhor, que é Deus bendito para sempre.
Amén.
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