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"Exultarão os santos na glória,
e se alegrarão nos seus leitos".
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Nestas e nas seguintes palavras, caríssimos, declara- se qual seja
a dignidade dos santos e, sob a brevidade de poucas palavras,
designa-se qual seja a sua glória.
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"Exultarão os santos na glória,
e se alegrarão nos seus leitos.
As exultações de Deus
estarão em suas gargantas,
e espadas de dois gumes em suas mãos,
para exercer a vingança nas nações,
e as repreensões entre os povos:
para acorrentar os reis em grilhões,
e seus nobres em algemas de ferro,
para neles executar a sentença promulgada.
Esta é a glória para todos os seus santos".
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A glória dos santos é a sua boa consciência, conforme no-lo atesta
o apóstolo Paulo quando diz:
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"Nossa glória é esta,
o testemunho de nossa consciência".
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Não inconvenientemente, portanto, os santos são ditos exultarem na
glória, quando exultam em sua boa consciência. A isto também se
refere o que o mesmo apóstolo nos diz:
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"Examine cada um a sua obra,
e assim terá somente glória em si mesmo
e não em outro".
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O santo salmista, ou melhor, o Espírito Santo, em sua narrativa
antepõe a glória da consciência às demais virtudes dos justos não
porque ela as preceda pela ordem, mas pela supereminência de sua
dignidade. De fato, as virtudes e as boas obras a precedem, e por
elas trilhamos o bom caminho pelo qual se alcança a boa consciência.
Quem, de fato, possui uma boa consciência, senão quem se
reconhece, pela virtude e pela obra, possuidor da justiça? Exultar
na glória, portanto, é algo que pertence apenas aos que possuem boa
consciência, a qual somente é constituída pela justiça.
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"E se alegrarão nos seus leitos".
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Os santos se alegrarão em seus leitos quando, removidos os desejos da
carne, afastados dos cuidados do mundo e estabelecidos na paz
interior, contemplam na quietude os bens celestes. Pelos leitos nos
quais repousam entendemos o repouso interior, verdadeiramente
alcançado pela mente quando esta repousa perfeitamente do que é
exterior e dirige toda a sua intenção ao que é interior. A esposa
lembra-se destes leitos e deste repouso no Cântico dos Cânticos,
onde diz:
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"Eu durmo,
mas o meu coração vela".
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Dorme bem, certamente, enquanto seu coração vela, aquele que dorme
para os sentidos exteriores enquanto interiormente se entrega com
devoção à contemplação das coisas interiores. Todos os carnais,
aos quais só as coisas exteriores agradam, têm ódio do repouso
destes leitos. Repreendendo-os com sutileza sob o nome de Efraim, o
profeta assim se exprime:
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"Efraim é novilha ensinada
a amar a debulha".
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A novilha, de fato, ama a debulha porque come das espigas que
tritura. Assim também os carnais amam de coração os negócios
exteriores, não para servirem às necessidades ou utilidades da
Igreja, mas para que possam banquetear-se a gosto com comida e bebida
forte e abundante, e também com palavras e vaidades mundanas.
Finalmente, queixam-se de ter-lhes sido feito grave dano todas as
vezes em que não se lhes permite guardar ou dispor do que é exterior.
Não são assim os santos, principalmente os perfeitos, que amam mais
as coisas interiores, das quais lhes advém alegrias bem maiores. De
onde que acrescenta o salmista:
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"As exultações de Deus
estarão em suas gargantas".
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As exultações de Deus estão na garganta dos santos quando com
exultação dão graças a Deus pelos benefícios recebidos. Por isto
é que o profeta diz de Jerusalém, ou melhor, da totalidade dos
justos:
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"Nela se achará o gozo e a alegria,
a ação de graças e a voz do louvor".
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A ninguém é suficiente, porém, que apenas faça o bem se também
não trabalhar para destruir, o tanto quanto lhe for possível, o mal
nos demais. É por isso que, com muita conveniência, o salmista
acrescenta que os justos
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"Terão espadas de dois gumes em suas mãos,
para exercer a vingança nas nações,
e as repreensões entre os povos:
para acorrentar os reis em grilhões,
e seus nobres em algemas de ferro, para neles executar a sentença promulgada.
Esta é a glória para todos os seus santos".
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Falando da armadura espiritual, o Apóstolo assim se refere à
espada:
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"Tomai também a espada do espírito,
que é a palavra de Deus".
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E também, em outro lugar:
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"Viva é a palavra de Deus,
eficaz,
e mais penetrante
do que toda espada de dois gumes.
Chega até à divisão da alma e do espírito,
das junturas e das medulas,
e discerne os pensamentos
e as intenções do coração".
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O salmo, porém, se refere a "espadas de dois gumes",
utilizando-se do plural, porque dois são os Testamentos da palavra
de Deus, aos quais talvez também se refira aquela passagem do
Evangelho onde os apóstolos, respondendo a Jesus, lhe dizem:
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"Senhor, eis aqui duas espadas".
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Estas espadas são de dois gumes, isto é, cortam dos dois lados,
porque exteriormente amputam em nós a luxúria da carne, e
interiormente cortam a malícia do coração. Cortam dos dois lados
porque distingüem os bons dos maus e os maus dos bons. Os santos têm
estas espadas em suas mãos porque as palavras sagradas que eles ensinam
também as exercem pelas obras.
O salmo declara também qual é a finalidade para que os santos as têm
em suas mãos:
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"Para exercer a vingança nas nações,
e as repreensões entre os povos".
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Pelas nações podemos convenientemente entender, nesta passagem, os
homens maus; pelos povos, os homens bons que, entretanto, são ainda
enfermos e imperfeitos. Os santos, deste modo, vingam a Deus nas
nações pelas espadas quando, seguindo os preceitos das Sagradas
Escrituras, excomungam os maus ou certamente quando lhes anunciam os
castigos que lhes haverão de vir. Exercem as repreensões entre os
povos quando repreendem pelas palavras sagradas quaisquer transgressões
veniais e leves dos homens bons, mas ainda imperfeitos e enfermos. Os
maus incorrem na culpa pelo orgulho e pelo engenho de sua má vontade,
enquanto que os bons pecam por ignorância ou por enfermidade. Quanto
dista a iniqüidade dos maus da enfermidade dos imperfeitos, tanto
parece diferir a vingança da repreensão. A iniqüidade e a
vingança, de fato, são mais graves; a enfermidade e a repreensão
são mais leves.
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"Para acorrentar os reis em grilhões,
e seus nobres em algemas de ferro".
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Nesta passagem podem ser ditos reis aqueles aos quais pelo dever de
ofício compete reger aos demais pela virtude do discernimento; e podem
ser ditos nobres aqueles que pelo fulgor de alguma dignidade parecem
situar-se acima dos demais. Estes freqüentemente caem na culpa com
tanta maior facilidade e rapidez quanto mais estiverem no alto. Os
santos os acorrentam em grilhões e em algemas sempre que pela
autoridade de sua santidade os refreiam de suas maldades. E não são
apenas os santos prelados os que coíbem de suas maldades estes prelados
e nobres que vivem ignobilmente; também os súditos devem coibí-los
de suas maldades, para que suas mãos não possam cumprir as que já
iniciaram, ou se já as iniciaram, não possam nelas acostumar-se ou
permanecer por longo tempo. A não ser que os súditos reprovem e
contradigam com autoridade as suas maldades, saibam que também eles
terão se tornado réus de suas seduções. Se, de fato, a burrinha
de Balaão tivesse levantado o seu condutor até a espada do anjo,
não teriam ambos incorrido na sua sentença? Porém ela lhe
resistiu, apertou- lhe os pés contra o muro, repreendeu-o com
palavras, indo contra sua própria natureza, e assim salvou tanto a
ele como a si mesma (Num. 22, 22-33). Foi assim também
que Paulo resistiu a Pedro na face,
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"porque era repreensível"
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Quanto ao o prelado, deve de boa vontade abraçar a correção dos
súditos, conforme o demonstra o bem aventurado São Gregório no
livro da "Regra Pastoral", quando diz:
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"O prelado que planeja fazer o mal
e todavia vê que os outros
silenciam a este respeito,
é testemunha para si próprio
que em vez de ser defendido contra si mesmo,
deseja ser amado mais do que a verdade.
Foi por isto que Pedro aceitou de boa vontade
a repreensão de Paulo".
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Também Davi ouviu com humildade a correção do súdito, pois os
bons reitores, quando não se amam pelo amor próprio, aceitam a
palavra da liberdade proveniente de seus súditos com o obséquio da
humildade. É necessário, porém, que a mente dos súditos, podendo
apreender certas coisas corretamente, utilize de tal maneira a voz da
liberdade que esta não se transforme em soberba, e que não suceda que
concedendo-se-lhes talvez imoderadamente a liberdade ao seu falar,
percam com isto a humildade de vida.
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"Para neles executar
a sentença promulgada".
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Pela sentença promulgada pode-se entender o decreto divino,
ratificado no mundo por autoria divina e recomendado pelos escritos dos
Santos Padres. Os santos executam esta sentença promulgada nas
nações, nos povos, em seus reis e em seus nobres quando, punindo
alguns pela obstinação e corrigindo outros pelas transgressões, os
restauram, o tanto quanto lhes é possível, à integridade das
virtudes.
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"E esta é a glória
para todos os seus santos",
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a saber, que eles próprios sejam bons pela justiça, e exerçam esta
graça que lhes foi dada sobre os outros, punindo-os ou corrigindo-os
segundo a razão.
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"Para todos os seus santos",
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isto é, não apenas para os maiores, mas também para os menores.
Os inferiores, ainda que não estejam investidos da autoridade de
punir ou corrigir os outros, cooperam todavia com os que a têm, se
não pela ação ou pela palavra, pelo menos com o desejo. De onde
que dizem as Escrituras:
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"Alegrar-se-á o justo
ao ver a vingança".
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E se o justo se alegra ao ver a vingança aplicada aos iníquos, muito
mais deve-se crer que haverá de alegrar-se ao ver, pela correção e
emenda, o perdão concedido e a santidade restituída aos pecadores,
do mesmo modo como o Evangelho nos ensina que
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"Haverá maior júbilo no céu
por um pecador que faça penitência
do que por noventa e nove justos
que não têm necessidade de penitência".
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Esforcemo-nos, portanto, irmãos caríssimos, para que possamos ser
participantes dos bens que nos foram ditos dos santos, para que
mereçamos ser consortes de sua glória.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, Nosso
Senhor, que é Deus bendito, pelos séculos dos séculos.
Amén.
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