14. Atualidade da questão.

Já acabamos de mencionar que a contemplação como fim último do homem não é uma concepção pessoal de Santo Tomás de Aquino, nem de Aristóteles. Queremos mostrar agora como não é também nem sequer algo próprio da civilização grega ou dos primórdios da civilização cristã. Gostaríamos de dar um exemplo que pudesse trazer à luz que o problema da contemplação como fim último do homem não é um problema sequer cultural; é, antes, conforme já tivemos a oportunidade de o dizer, uma verdadeira aspiração profunda da natureza humana. Ainda que não se diga nada a este respeito aos homens, ainda que eles vivam em uma civilização que a ignore, os homens a buscam apenas porque são homens.

Temos um depoimento disto registrado num livro de Raissa Maritain, filósofa e esposa do conhecido pensador francês Jacques Maritain, em que ela nos descreve a sua própria vida (110).

Raissa nasceu em 1883, na Rússia. Aos dois anos sua família mudou-se para Mariupol, na Criméia. Com 10 anos seus pais emigraram para Paris e aí, desde cedo, manifestou especial inclinação para o estudo. Aos dezessete anos ingressou na Sorbonne. O relato que ela nos deixou sobre o que encontrou nesta que era em sua época a mais famosa Universidade do mundo, esta mesma cujos alicerces tinham sido plantados diversos séculos antes por Hugo de São Vitor, e na qual no século XIII havia ensinado Santo Tomás de Aquino, tem muitíssimo a ver com tudo quanto estivemos expondo:

"Dezessete anos",

diz Raissa,

"apenas dezessete anos, e as mais profundas exigências do espírito e da alma já se fazem ouvir!

Toda uma vida já foi vivida, a da infância, a da confiança ilimitada.

Agora, eis a adolescência, com seu cunho próprio: uma exigência total.

Se os professores se lembrassem um pouco de sua própria alma de adolescentes, como tremeriam diante da ingenuidade dos que vêm a eles com a confiança ainda de uma criança, mas já com os direitos de um juiz justo!

Mas os professores de meu tempo, por melhores, dedicados e competentes que fossem, de geração em geração tinham se afastado cada vez mais das grandes exigências do espírito humano.

O brilhante desenvolvimento das ciências da natureza e as esperanças infinitas que havia despertado, os levaram a desprezar os outros conhecimentos, em particular a esta sabedoria pela qual aspiramos antes, depois e acima de qualquer conhecimento das ciências particulares.

Assim era a Sorbonne no começo de nosso século, nos anos que precederam a guerra de 1914.

Quando nela ingressei, preocupei-me apenas em encontrar estes professores dos quais esperava que, sem que eu os interrogasse, fossem responder às minhas perguntas, dar-me uma visão ordenada do Universo, por todas as coisas no seu verdadeiro lugar. Depois de tudo isso saberia, eu também, qual é o meu lugar nesse mundo e se poderia ou não aceitar a vida que não escolhi e que me pesava.

O que me movia não era a curiosidade, não estava ávida de saber uma coisa qualquer, ainda menos de saber tudo; não estava perturbada pelas descobertas da ciência, no momento estas me deixavam bem indiferente, como algo de excedente mas que não me afetava diretamente. Não, eu só procurava verdadeiramente aquilo de que precisava para justificar a existência, aquilo que me parecia, a mim, necessário para que a vida humana não fosse uma coisa absurda. Tinha necessidade da alegria da inteligência, da luz da certeza, de uma regra de vida fundada sobre uma verdade sem falhas.

Com semelhantes disposições, evidentemente, eu deveria ter-me dirigido primeiramente aos filósofos. Mas ninguém me tinha orientado, e eu acreditava então que as ciências da natureza eram a chave de todo o conhecimento. Inscrevi-me, portanto, na Faculdade de Ciências.

Nenhuma das minhas interrogações foi tratada pelos sábios eminentes que nos ensinavam a estrutura do Universo Físico.

Aqueles que amavam o estudo tranqüilo da natureza eram observadores admiráveis. Mas, quanto a mim, preocupava-me com essa mesma natureza, mas queria conhecê-la de outra maneira, nas suas causas, na sua essência, na sua finalidade. Um dia aventurei-me a dizer isso ao professor e ele me respondeu, indignado:

Mas isso é mística!'

Desde então ouvi esta fórmula de escândalo muitas vezes na Sorbonne. Era com ela que costumavam condenar qualquer atividade da inteligência que procurava se elevar acima da simples verificação empírica dos fatos. Mas para mim foi a primeira ferida, o primeiro golpe no meu espírito, na confiança que depunha nos meus professores" (111).

"Tive que aprender que os sábios pouco estimam os supremos princípios da inteligência, ou, pelo menos, não parecem preocupar-se muito com eles. Os valores puramente especulativos os interessam bem pouco, e as matemáticas são o seu mais alto céu inteligível. Os sábios, quando não filosofavam, se limitavam em geral ao simples bom senso empírico. Os que filosofavam e que conheci na Sorbonne eram, quando muito, partidários de doutrinas que negavam a objetividade de todo saber que ultrapassasse o conhecimento dos fenômenos sensíveis. Perguntava-me como os notáveis homens de ciência, cujos cursos eu seguia, ou aqueles cujos livros eu lia, podiam permanecer tranqüilamente num estado de espírito tão vago e tão confuso, sem preocupação alguma" (112).

Decepcionada com os estudiosos das ciências da natureza, Raissa nos conta que passou então a freqüentar os cursos dos professores que se dedicavam à filosofia:

"Os filósofos cujos cursos passei a seguir na Faculdade de Letras tinham muitos méritos, possuíam erudição ampla e profunda, e uma alta consciência das exigências da investigação científica.

Mas toda a sua inclinação era para a erudição histórica; consideravam as doutrinas não como proposições ou aproximações da verdade, mas como obras de arte ou de imaginação, tendo até menos referência com a realidade do que a arte, reduzindo seu estudo a um desfile caleidoscópico em que a forma nova destruía a anterior. Entregavam-se à análise sem fim das particularidades das causas históricas das doutrinas filosóficas como se esta fosse a tarefa que lhes cabesse de modo essencial. Por uma estranha contradição vivida, queriam verificar tudo e ao mesmo tempo desesperavam da verdade, cujo simples nome lhes desagradava e que não devia ser pronunciada senão entre as aspas de um sorriso desiludido.

A única lição prática que pude receber daquele ensino, tão consciencioso e desinteressado, foi uma lição de relativismo integral.

Finalmente, fiz um balanço de tudo o que me tinham trazido aqueles anos de estudo na Sorbonne. Não queria saber mais de uma tal comédia. Eu seria capaz de aceitar uma vida dolorosa, mas não uma vida absurda. Eu queria saber se ser é um acidente, um benefício ou uma desgraça. Se a natureza humana era tão infeliz que não chegava a possuir senão uma pseudo inteligência, capaz de tudo menos da verdade, se ela, ao julgar-se a si mesma, devia humilhar-se até esse ponto, não se podia mais nem pensar nem agir dignamente. Tinha pensado durante muito tempo que ainda valia a pena lutar pelos pobres, mas agora eu via que se não houvesse no mundo um só coração que padecesse certos sofrimentos, mesmo que não houvesse no mundo um só corpo que não conhecesse a morte, ainda assim isso exigiria uma satisfação" (113).

Referências

(110) Maritain, Raissa: As Grandes Amizades; São Paulo, Agir, 1970. (111) Ibidem; o.c., C. 3, pgs. 39-41. (112) Ibidem; o.c., C. III. (113) Ibidem, C. III, pgs. 58-65.