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A causa do entendimento errôneo de todas estas coisas por parte
daqueles a quem mencionamos acima não é outra senão que a Sagrada
Escritura não é por eles entendida segundo o sentido espiritual, mas
segundo o som da letra. Por isso nos esforçaremos em demonstrar,
segundo a pequenez do nosso sentir, aos que crêem que as Sagradas
Escrituras não foram compostas por palavras humanas, mas redigidas
por inspiração do Espírito Santo e transmitidas e confiadas a nós
por vontade de Deus Pai pelo seu Filho unigênito Jesus Cristo, o
que a nós parece ser a reta via dos que observam a inteligência,
aquela regra e disciplina transmitida por Jesus Cristo aos apóstolos
os quais, por sucessão, a transmitiram também aos seus pósteros que
haveriam de ensinar a santa Igreja.
Todos, conforme penso, até mesmo os mais simples dos fiéis, crêem
que há certas dispensações místicas assinaladas pela Sagrada
Escritura. Quais sejam estas, porém, ou o que são, quem possuir
reta mente e não for oprimido pelo vício da jactância será
religiosamente obrigado a confessar ignorá-lo.
Se alguém, por exemplo, nos questionar sobre as filhas de Ló, que
contra o direito se aproximaram carnalmente do pai, ou sobre as duas
esposas de Abraão, ou sobre as duas irmãs que se casaram com
Jacó, ou sobre as duas servas que lhes aumentaram a numerosidade dos
filhos, o que mais poderá ser respondido senão que estas coisas são
certos sacramentos e formas de coisas espirituais, que nós todavia
ignoramos quais sejam?
Quando lemos sobre a construção do tabernáculo, temos como certo
também que estas coisas que são escritas são figuras de outras coisas
ocultas. Adaptar, porém, cada uma ao seu modo e abrir e dissertar
sobre cada uma delas, considero ser coisa imensamente difícil, para
não dizer impossível.
Todavia, conforme disse, é algo que não escapa até mesmo da
inteligência comum que aquela descrição é repleta de mistérios.
Todas aquelas narrativas que parecem terem sido escritas sobre
núpcias, sobre procriação de filhos, sobre guerras diversas ou
quaisquer outras histórias, que outra coisa devemos crer que sejam
senão formas e figuras de coisas ocultas e sagradas? Todavia, devido
ao fato de que os homens usam de tão pouca aplicação para exercitar o
engenho e que, antes que aprendam, já consideram que sabem, decorre
que nunca começam a saber. No entanto, se não faltar o estudo nem o
mestre, e se estas coisas forem buscadas como divinas, isto é,
religiosa e piamente, com autêntica esperança de que muitas sejam
abertas pelo Deus que revela, ainda que para o entendimento humano
sejam imensamente difíceis e ocultas, talvez quem assim as busque
facilmente encontrará o que é lícito buscar.
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