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Eu não disse, respondeu o abade Moisés, que o prêmio da boa obra
nos deva ser tirado, porque o mesmo Senhor declara:
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"Aquele que der a um desses pequeninos
um cálice de água fresca,
porque é um dos meus discípulos,
em verdade vos digo,
não perderá a sua recompensa",
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mas sim que lhe será tirada a ação, atualmente exigida pela
necessidade corporal, pelos ataques da carne ou pelas desigualdades
deste mundo.
A assiduidade da leitura e as aflições do jejum para purificar o
coração e castigar a carne, só tem utilidade na vida presente,
enquanto
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"a carne tem concupiscência
contra o espírito".
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Vemos, aliás, que não raro esse exercício já nesta vida cessa
para aqueles que estão esgotados pelo excessivo trabalho, ou pela
doença e pela velhice, e não podem ser perpetuamente praticados.
Quanto mais cessarão no futuro, quando
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"este corpo corruptível
se revestir de corruptibilidade",
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e esse corpo agora "animal" ressuscitar "espiritual" (I Cor.
15, 44), e a carne começará a não mais ter concupiscência
contra o espírito?
Sobre isto, igualmente, o Apóstolo se pronuncia com clareza:
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"O exercício corporal
tem utilidade limitada,
mas a piedade,
(é a caridade, sem dúvida,
que deve-se entender),
é útil para tudo,
pois ela tem a promessa
da vida presente e futura".
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Dizer que tem uma utilidade limitada, é declarar claramente que ela
nem se pratica todo o tempo, nem pode por si só conferir, a quem se
esforça, a suma perfeição. O limite, com efeito, pode
referir-se às duas coisas, vale dizer, tanto à brevidade do tempo,
já que o exercício corporal não pode ser coeterno ao homem nem na
vida presente nem na futura; como, igualmente à pouca utilidade
obtida pelos exercícios corporais, porque a maceração corporal
produz um certo começo de progresso, mas não a própria perfeição
da caridade, e é esta que tem a promessa da vida atual e futura.
Julgamos, pois, necessário o exercício dessas obras, porque sem
elas é impossível subir ao cume da caridade.
As obras de caridade e misericórdia, como as chamais, são também
necessárias neste tempo, enquanto ainda reina a desigualdade. Mas
dessas obras nem mesmo seria de esperar a sua prática, se não
houvesse, aqui em baixo, um numero muito grande de pobres,
necessitados e enfermos, produzido pela injustiça dos homens,
daqueles, quero dizer, que retiveram para o seu uso exclusivo, sem
contudo, realmente servir-se delas, as coisas que o criador comum
concedeu a todos.
Enquanto, pois, grassar neste mundo uma tal desigualdade, aquela
ação tão necessária aproveitará a quem a exercer, dando ao bom
coração e à benevolência fraterna o prêmio da herança eterna.
Mas no século futuro, reinando a igualdade, ela cessará. Já não
mais haverá ali diferenças que exijam a sua prática, mas todos
passarão da multiplicidade da ação à caridade de Deus e à
contemplação das coisas divinas, numa perpétua pureza de coração.
É a isto que, desde este século, se dedicam com todas as forças,
aqueles que só querem cuidar da ciência e da purificação de sua
mente. Consagrando-se, enquanto se acham na condição carnal e
corruptível, ao ofício em que haverão de permanecer depois de a ter
deixado, eles atingem aquela promessa ao Senhor, nosso Salvador,
que diz:
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"Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus".
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Por que vos admirais da transitoriedade daqueles serviços acima
enumerados? O próprio Apóstolo nos descreve como passageiros até
os mais sublimes carismas do Espírito Santo. Somente a caridade,
como ele nos indica, permanece sem fim:
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"As profecias serão abolidas,
as línguas cessarão;
a ciência será destruída".
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Mas, quanto à caridade, diz ele:
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"A caridade não passará jamais".
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Todos os dons, com efeito, nos são dados em razão da utilidade e da
necessidade, por algum tempo, devendo, sem dúvida, desaparecer logo
que se consumar a presente economia. A caridade, porém, não será
jamais interrompida. Não é só neste mundo que ela opera em nós de
modo útil, mas também no futuro. Depois de deposto o fardo das
necessidades corporais, ela permanecerá ainda mais eficaz e mais
excelente, para que, sempre imune de qualquer desgaste, possa aderir
a Deus, na eterna incorruptibilidade, de modo ainda mais ardente e
mais intenso.
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