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Tudo isto sendo assim, esboçaremos, como exemplo e forma, conforme
nos ocorrer, de que modo deve ser entendida, sobre cada uma destas
coisas, a divina Escritura.
Repetiremos e mostraremos primeiro que o Espírito Santo, pela
providência e vontade de Deus e pela virtude de seu Verbo
unigênito, que era no princípio Deus junto de Deus, iluminava os
ministros da verdade, os profetas e apóstolos, para que conhecessem
os mistérios daquelas coisas ou causas que aconteciam entre os homens
ou com os homens. Chamo aqui de homens as almas colocadas nos corpos
que, ao narrar ações humanas ou transmitir preceitos e
observâncias, descreviam figuradamente os mistérios que lhes eram
conhecidos e revelados por Cristo, não para que qualquer um que os
quisesse conculcar aos pés as tivesse explicadas, mas para que os que
se entregassem ao seu estudo com toda a pureza, sobriedade e vigílias
pudessem investigar profundamente o sentido escondido do Espírito de
Deus e pudessem, pela narrativa costumeira do discurso, contemplar um
outro contexto mais elevado, tornando-se desta maneira sócios da
ciência e do Espírito e participantes do conselho divino. De fato,
não há nenhuma outra maneira pela qual a alma pode alcançar a
perfeição da ciência se não pela inspiração da verdade da
sabedoria divina.
Estes homens, portanto, repletos do espírito divino, trataram
principalmente de Deus, isto é, do Pai, do Filho e do Espírito
Santo. Falaram também, conforme dissemos, repletos do espírito
divino, dos mistérios do Filho de Deus, de como o Verbo se fêz
carne e por qual causa veio a tomar a forma de servo. Pela palavra
divina, em seguida, ensinaram aos mortais, sobre as criaturas
racionais, tanto as celestes quanto as mais felizes entre as terrenas,
sobre a diferença das almas e sobre a origem destas diferenças, e
sobre o que é este mundo, por que foi feito e de onde provém a
existência de tanta e tamanha malícia sobre a terra. Quanto à
questão sobre se esta malícia existe somente na terra ou também é
encontrada em outros lugares, isto será necessário que o aprendamos a
partir dos discursos divinos.
A intenção do Espírito Santo era iluminar primeiramente estas
santas almas e outras a elas semelhantes que haviam se consagrado ao
ministério da verdade. Em seguida, conforme já dissemos, por causa
daqueles que não pudessem ou não quisessem entregar-se ao trabalho e
à indústria pela qual mereceriam que lhes fossem ensinadas ou viessem
a conhecer tantas e tais coisas, havia a perspectiva de ocultar os
mistérios envoltos em discursos costumeiros, sob o pretexto de alguma
história ou da descrição de coisas visíveis.
Foi deste modo que se introduziu a narração da criação e da
formação da criatura visível e do primeiro homem, à qual se seguiu
a da sua descendência, fazendo-se referência a algumas coisas
realizadas por alguns justos e também relembrando-se alguns de seus
delitos como de homens. Foi daqui que foram escritas algumas ações
impúdicas e iníquas dos ímpios. De um modo admirável,
encontram-se também narrações de batalhas realizadas e a descrição
da diversidade ora dos que vencem, ora dos vencidos, pelas quais
coisas se declaram, aos que sabem investigar tais ditos, certos
mistérios inefáveis. À Escritura legal, pela admirável disciplina
da sabedoria, é inserida a Lei da verdade e também dos profetas; e
com todas estas coisas foram tecidas pela divina arte da sabedoria como
que um certo indumento e véu dos sentidos espirituais. É a isto que
chamamos de corpo da Sagrada Escritura, e é deste modo que, pelo
que chamamos de revestimento da letra, tecido pela arte da sabedoria,
muitos, que não o poderiam de outro modo, podem ser edificados e
adiantar-se.
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