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"Amarás o Senhor teu Deus
de todo o teu coração,
e de toda a tua alma,
e de toda a tua força".
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Depois que o homem abandonou a caridade pela culpa primordial e decaíu
para a miséria deste mundo sujeitou-se a muitos cuidados, ocupou-se
com muitas ações e afadigou-se com muitos trabalhos. De tudo pelo
que o homem se aflige debaixo do Sol, uma só é a melhor parte.
Consiste em servir a Deus, a única coisa que permanece. Todas as
demais são passageiras, e como são vãs!
Quem não serve a Deus, portanto, é vão, e sua vida deve ser
estimada como nada. Melhor seria que ele não fosse do que fosse mau,
e melhor seria que não tivesse vivido do que mal vivido. Se tal homem
pudesse nesta vida ter a força de Sansão, a beleza de Absalão, a
sabedoria de Salomão, a velocidade de Azael, as riquezas de
Creso, a probidade de Alexandre, o poder de Otaviano, que tinha o
mundo sob o seu poder, a longevidade de Enoc o qual, nascido no
princípio do mundo, até o fim não morrerá, se tal homem pudesse
possuir tantas e tais coisas no presente, tudo isto de nada lhe
aproveitaria se não servisse a Deus. Quando, ao morrer, tudo enfim
lhe for cobrado, a miserável carne será entregue aos vermes e o
espírito aos demônios e aos tormentos infernais até que no dia da
ressurreição toda a carne retorne à sua origem. Então, retomada a
carne pela qual e na qual pecou, novamente receberá a eterna
condenação. Melhor é, portanto, servir a Deus, e ainda que o
homem em toda a sua vida estivesse destituído de auxílios temporais e
corporais, se nela se tiver entregue ao serviço de Deus, passará da
miséria da vida presente à eterna bem aventurança.
Entre todos os bens do mundo presente que o gênero humano busca ou
alcança, o melhor e o único bem que permanece é servir a Deus.
Devemos, portanto, buscar de todos os modos o que seja servir a
Deus. Se, buscando-o, o encontrarmos, sem sombra alguma de
desânimo deveremos nele perseverar, pois é somente ao que persevera
que está prometida a bem aventurança.
Irmãos, podemos compreender e declarar o que seja servir a Deus com
breves, doces e alegres palavras. Servir a Deus é amar a Deus.
Quem não ama não serve, e quem ama serve. Quem pouco ama, pouco
serve; quem muito ama, muito serve; e quem perfeitamente ama,
perfeitamente serve.
Quem possuir coisas temporais, terras, vinhas, rebanhos,
armamentos, vestes preciosas, casas, prata, ouro ou esposa, às
quais tenha muito amor, se perceber que possui uma de todas estas
coisas, ou mesmo todas elas simultaneamente, contra o amor de Deus,
deve abandoná-las todas, pospor todas ao amor de Deus e a todas
antepor este amor. Até mesmo a sua própria vida o homem deve
entregar pelo amor de Deus se vier a acontecer que não possa
conservá-la juntamente com ele. Assim o fêz Pedro, assim o fêz
Paulo, assim o fizeram todos os demais apóstolos e mártires de
Cristo, entregando por amor a Deus não somente as suas coisas, como
também a si mesmos. Todos estes, homens como nós, nos legaram tais
exemplos de como devemos agir.
Devemos, portanto, amar a Deus porque Ele nos amou primeiro,
dando-nos e prometendo-nos a multidão de seus dons. Em todos estes
Ele como que mereceu de nós que o amássemos. O menor de todos os
dons que Deus deu ao homem para que fosse amado por ele é todo este
mundo. Foi por causa do homem que Deus fêz o mundo, o céu, a
terra, o mar, o sol, a lua, as estrelas, os pássaros, os peixes,
os animais da terra, as plantas, as árvores, e todas as coisas que
subsistem visivelmente. Ora, se entre todos os dons de Deus o menor
é todo este mundo, quanto consideraremos que será o máximo?
O segundo dom que foi concedido por Deus ao homem foi tê-lo criado
à sua imagem semelhança. Grande e admirável dom é certamente a
criatura ser tornada semelhante e conforme ao Criador.
O terceiro dom é a graça, que nos foi concedida na Redenção.
Deus, de fato, diz a Escritura,
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"não poupou o seu próprio Filho,
mas o entregou por todos nós".
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O quarto dom Deus no-lo conserva e no-lo promete. É o dom da
glória futura, do qual se diz que
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"nem o olho viu, nem o ouvido ouviu,
nem entrou no coração do homem
o que Deus preparou
para aqueles que o amam".
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Podemos dizer, portanto, que o primeiro dom é o bem da criatura, o
segundo dom é o bem da natureza, o terceiro dom é o bem da graça e o
quarto dom o bem da glória. Por todos estes devemos amar a Deus.
Mas quanto devemos amá-Lo?
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"Com todo o coração,
com toda a alma,
com todas as forças,
com todo o entendimento".
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Com todo o nosso coração, isto é, com sabedoria; com toda a
alma, isto é, com doçura; com todas as forças, isto é, com
fortaleza; com todo o entendimento, isto é, com toda a memória, e
por quaisquer outros modos que puderem ser ditos, pois não se pode
excessivamente dizer aquilo que não se pode excessivamente amar.
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"E o teu próximo como a ti mesmo".
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Devemos amar o próximo como a nós mesmos pelo benefício, pela
palavra, pela intenção. No benefício temos a boa obra, na palavra
o conselho sadio, na intenção a autenticidade do desejo. Em tudo
isto amemos o próximo na via, do qual seremos consortes na pátria.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, nosso
Senhor, que é Deus bendito, pelos séculos dos séculos.
Amén.
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