2. Antecedentes remotos da atual problemática do aborto. O aborto no Antigo Testamento.

Garret Hardin, autor que não esconde suas posições favoráveis ao aborto legalizado, afirma, com base em um estudo de George Devereux, que 99% de todas as sociedades antigas estudadas por antropólogos praticavam o aborto. Quando escrevíamos este livro, não tivemos a possibilidade de verificar o acerto desta afirmação. Entretanto, o que se pode constatar com certeza é que pelo menos em uma delas, a sociedade judaica do Velho Testamento, o aborto era praticamente desconhecido e é justamente por isto que o problema não é mencionado nas Sagradas Escrituras, a não ser indiretamente, em pouquíssimas passagens, onde se menciona a pena a que o agressor de uma mulher gravida estaria sujeito se esta posteriormente viesse a abortar.

O momento histórico mais oportuno dentre todas as situações mencionadas na história sagrada para que alguém pensasse na possibilidade da prática do aborto foi provavelmente o episódio narrado no Segundo Livro de Samuel e no Livro das Crônicas em que o rei Davi engravidou a mulher do general Urias. O pobre oficial estava em campanha e recusava-se a retornar à intimidade do lar enquanto não tivesse ganho a guerra. O desespero e a aflição de sua mulher e do rei Davi, que não sabiam como iriam explicar ao povo a origem daquela gravidez prestes a se manifestar a todo o povo sugeriria a muitos cidadãos do século vinte a tentação da prática do aborto como forma de resolver tão delicada situação. Entretanto, nem sequer nestas circunstâncias as Sagradas Escrituras mencionam que alguém tivesse pensado em tal possibilidade. Em vez induzir um aborto, Davi mandou matar o general e casou-se com a viúva grávida. O episódio foi causa para rei de uma violentíssima repreensão por parte do profeta Natan, e está na origem do Salmo 50:

"Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua misericórdia",

diz Davi arrependido neste salmo também conhecido como Miserere,

"segundo a multidão das tuas clemências, apaga a minha iniqüidade; lava-me inteiramente de minha culpa, purifica-me do meu pecado, porque eu reconheço a minha maldade: foi contra ti que eu pequei, fiz o que é mau diante dos teus olhos".

Para que pudesse cair em si, Natan havia montado um estratagema para que o soberano julgasse em público e inadvertidamente o seu próprio crime, sentenciando, sem o perceber, que ele havia se tornado réu de morte pelo que acabava de cometer. Mas para nós esta passagem das Escrituras é também importante como testemunho do grau de impensabilidade da prática do aborto provocado entre os judeus do Antigo Testamento, um evento nunca mencionado nos textos sagrados.

Se não se menciona a prática do aborto no Velho Testamento isto se deve não apenas ao respeito pela vida que transparece em todo o texto sagrado, como também ao fato de que as atitudes para com as crianças naquela época eram muito diferentes das atitudes para com as mesmas no mundo moderno.

No Velho Testamento as crianças não são vistas como uma fonte de aborrecimentos ou como uma manifestação de explosão demográfica. Elas são vistas como uma bênção. A primeira bênção sobre o homem foi:

"Crescei e multiplicai-vos, povoai e submetei a terra".

Gen 1,28

Esta bênção original foi depois renovada com Noé (Gen 9,7), e o contexto de ambas as passagens mostra que se trata mais de um dom do que de um verdadeiro preceito.

Aos patriarcas Deus prometeu abundante descendência. A Abraão disse:

"Contempla o céu e conta as estrelas, se puderes: assim será a tua descendência".

Abraão não foi tomado pelo pânico diante de uma tal expectativa; ao contrário, recebeu esta promessa como uma grande bênção. E esta mesma promessa foi renovada depois a Isaac (Gen 26), a Jacó (Gen 32), e aos demais israelitas que escolheram a obediência da Lei (Deut. 30, 16).

Por outro lado, a esterilidade era vista como coisa vergonhosa e causa de grandes lamentações. As mulheres de Abraão (Gen 11), de Isaac (Gen 25) e de Jacó (Gen 30) sofriam todas de esterilidade e em cada caso o favor divino superou a deficiência.

Assim, na sociedade do Velho Testamento as crianças eram encaradas como um dom de Deus e como uma recompensa para a fé nEle. Os filhos são uma recompensa para a qual o homem de fé pode aspirar. Para aquele homem que teme o Senhor e segue os seus caminhos os Salmos prometem

"uma esposa como a videira fecunda no interior de sua casa" e filhos como "rebentos de oliveira ao redor de sua mesa".

Salmo 128

No meio de um povo que pensava deste modo, a prática do aborto seria algo altamente improvável. O silêncio do Velho Testamento sobre o assunto, tanto ao não narrar nenhum fato ligado ao tema do aborto provocado, como ao não proibí-lo ou sequer mencioná-lo em seus textos legais, indica apenas que naquela sociedade uma legislação sobre o aborto era algo desnecessário.