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Examinamos a contemplação sob o aspecto da tomada de consciência que
ela envolve e verificamos que a humildade já continha,
essencialmente, estas mesmas características que se encontram
plenamente amadurecidas na contemplação.
A contemplação, porém, pode ser examinada também sob o aspecto de
abarcar uma multidão ou mesmo a totalidade das coisas conhecidas, como
o faz Hugo de São Vitor no Opúsculo sobre o Modo de Aprender.
Segundo este texto, a contemplação
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"Se estende à compreensão de muitas
ou também de todas as coisas,
a qual as abarca em uma visão
plenamente manifesta,
de tal maneira
que aquilo que a meditação busca,
a contemplação possui".
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Pode-se deduzir, a partir destas palavras, que a contemplação é,
sob este aspecto, a operação da inteligência da qual surgem as obras
de síntese tais como a Summa Theologiae de Santo Tomás de
Aquino.
Pode-se mostrar, ademais, que esta outra característica da
contemplação também não apenas está essencialmente contida na
humildade, como também é um desenvolvimento desta última, na medida
em que o homem, consciente de ser apenas uma criatura como todos os
demais homens e não um deus, respeito o seu próximo não por alguma
qualidade circunstancial que se lhe atribua, mas incondicionalmente,
seja o seu próximo quem for ou como se lhe apresente, apenas pela
própria dignidade da natureza humana que não se adquire nem se abdica
por nenhuma circunstancialidade.
O respeito incondicional do homem humilde pelo seu próximo contém
virtualmente as características mais amadurecidas da contemplação
pela qual esta abarca simultaneamente uma totalidade de objetos
cognoscíveis porque o respeito do homem humilde pelo seu semelhante
não consiste no autodomínio do homem que sabe conter seus impulsos
agressivos. Isto não seria uma manifestação de humildade, mas de
paciência ou mansidão. Não é por ser capaz de conter os seus
próprios impulsos que o homem humilde não agride o seu semelhante,
mas pelo profundo respeito que ele tem pelo outro. Por causa disto, o
respeito que o homem humilde demonstra pelo seu semelhante vai muito
além do simples propósito de não agredí-lo, fisica ou moralmente.
O respeito do homem humilde é aquele pelo qual o outro é acolhido em
sua dignidade, não só no trato exterior, como principalmente pela
consideração interior.
Neste sentido, o comportamento do homem humilde difere radicalmente do
comportamento do homem orgulhoso. O homem orgulhoso se comporta como
se a visão que ele possui do mundo fosse dotada de atributos divinos,
e despreza, pelo menos no seu íntimo, todos os homens que não são
capazes de perceber este fato, como se, por causa desta
circunstancialidade, eles fossem dotados de uma natureza inferior.
Por este motivo, quando alguém conversa com um homem orgulhoso, o
homem orgulhoso, em vez de ouvir o que se lhe diz, ouve na realidade
fundamentalmente o seu próprio pensamento que compara o que diz o
locutor com o que pensa o ouvinte que é ele próprio, para a seguir
passar a criticar ou a elogiar o locutor não absolutamente falando,
mas por comparação para consigo mesmo. Seja a atitude final do
orgulhoso para com o locutor uma atitude de crítica ou de elogio, em
ambos os casos ele nunca ouve verdadeiramente o outro, mas apenas a si
próprio. Já o homem humilde, alguém verdadeiramente consciente de
não ser um deus, ou uma criatura dotada de atributos essencialmente
supra humanos, ouve sempre com atenção qualquer outro ser humano que
se lhe dirija a palavra, independentemente de sua aparência ou de suas
credenciais, estando sempre aberto para a possibilidade de que, seja
quem for que lhe dirija a palavra, poderá vir a tratar de algum
assunto mais importante do que tudo quanto ele até então conhecesse.
E mesmo na hipótese de que, durante a conversa, fique claro que não
era este o caso, e que o locutor nada acrescente de importante para o
ouvinte, ainda assim o homem humilde irá ouví-lo e procurar
entendê-lo com seriedade pelo fato de que, ainda que o assunto não
seja importante para o ouvinte, deverá sê-lo pelo menos para o
locutor. Apenas um motivo técnico de força maior pode fazer o homem
humilde deixar de ouvir e procurar entender o seu semelhante, nunca uma
disposição interior de desconsideração pelo outro a quem ele
respeita como um ser humano limitado tanto quanto a si próprio.
Ora, a experiência tem mostrado que esta atitude do homem humilde
conduz, com o tempo e o desenvolvimento, àquela outra pela qual o
homem se torna capaz de prestar uma atenção desapaixonada e imparcial
a uma multidão ou mesmo a todos os aspectos de qualquer realidade que
se lhe venha a propor como tema de sua consideração, ao mesmo tempo
em que se torna capaz de atribuir, a todos e a cada um destes aspectos
um valor, tanto quanto é humanamente possível, objetivamente
considerado.
Pode-se perceber, deste modo, que a humildade assim considerada é
uma das fontes principais de onde jorrou a Summa Theologiae de Santo
Tomás de Aquino. Nela observa-se uma extraordinária capacidade de
síntese em que o autor demonstra ter desenvolvido uma finíssima
sensibilidade em não deixar escapar nenhum aspecto relevante de
questões de amplíssima natureza, tratando-as a todas com equilíbrio
e isenção de ânimo e discernindo corretamente as conexões existentes
entre elas. Demonstra também ter sido capaz de utilizar, para emitir
o seu próprio julgamento, do mais profundo respeito pelo pensamento
dos autores que anteriormente a ele haviam tratado destes mesmos
assuntos; sejam eles quem sejam, cristão, judeus, muçulmanos,
pagãos, herejes ou mesmo possivelmente algum ilustre desconhecido que
tivesse se apresentado diante dele, pessoalmente ou através de algum
escrito, declarando ter algo a manifestar-lhe sobre o tema, Santo
Tomás de Aquino os consulta a todos com verdadeiro interesse não
apenas para citá-los em sua obra, mas para inteirar-se efetivamente
do que dizem, e os interpreta, caso raro entre os filósofos, sem
distorcer-lhes o pensamento. Vemos assim que apenas a inteligência
não explica a Summa Theologiae; ela é, dentre outros fatores que
concorrem para explicá-la, um dos mais eloqüentes testemunhos do
grau de discernimento a que é capaz de ser conduzido o homem humilde.
É ainda sob esta perspectiva que deve ser interpretado um fato bastante
conhecido ocorrido ainda na adolescência de Santo Tomás de Aquino.
Conta-se que certa manhã, quando era jovem estudante entre os
dominicanos, os colegas de Tomás, querendo colocá-lo em ridículo
pelo seu hábito de falar muito pouco que transparecia entre eles como
um sinal de imbecilidade, escolheram um deles para que se aproximasse
do rapaz e lhe dissesse:
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"Frei Tomás,
vinde para a janela;
vinde ver um boi voando no céu!"
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Calmamente, Tomás de Aquino se aproxima da janela, olha para o
céu e afirma não estar vendo nada. Seus demais colegas, que
contemplas estupefatos esta cena, não conseguem logo a seguir esconder
uma explosão de riso. Estava demonstrado mais do que evidentemente
que Tomás era de fato o idiota que eles sempre haviam suposto. Um
deles então lhe dirige a palavra e pergunta:
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"Que fazes, Tomás?
Que estás a procurar?
Quando é que já se ouviu falar alguma vez
de um boi voando no céu?
Era apenas uma brincadeira,
mas este teu modo de proceder
é para nós agora
causa de preocupação.
Dize sinceramente:
o que te leva a crer
que possa haver de fato
um boi voando no céu?".
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A resposta de Tomás já evidenciava, porém, o quanto estava
enganada esta primeira avaliação de seus colegas:
respondeu Tomás de Aquino,
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"que seria mais fácil
ver um boi voando no céu
do que um frade mentindo".
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Este episódio da vida de Santo Tomás de Aquino, narrado o mais
das vezes apenas como uma anedota, se transforma, porém, diante do
que estivemos expondo, em algo que se reveste de uma transcendente
seriedade. Somente uma pessoa capaz de,pelo impulso interior de não
desconsiderar a um irmão, chegar a admitir a possibilidade de que um
boi esteja efetivamente voando a ponto de, pelo menos, a hipótese
merecer uma verificação ocular, é que poderia, um dia, vir a
escrever uma obra como a Summa Theologiae.
Tudo isto que foi dito da Summa Theologiae pode ser aplicado também
as obras de Hugo de S. Vitor, nas quais transparece um
inconfundível sentido de equilíbrio que lhe é característico e que
é fruto daquela contemplação que abarca em uma só visão uma
multidão de aspectos que o comum dos homens usualmente só alcança de
modo fragmentário e em que a apreensão de cada fragmento
freqüentemente se realiza à custa da exclusão de outros.
O mesmo pode ser dito também da Regra de São Bento, a qual, não
obstante o seu muito menor tamanho, é, porém, neste mesmo aspecto,
não menos admirável do que a Summa Theologiae ou a obra de Hugo de
S. Vitor. Dela vamos a seguir tecer alguns comentários, de cujo
exame novamente se nos revela aquela mesma capacidade de
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"estender-se a uma compreensão,
que abarca em uma visão plenamente manifesta,
muitas ou mesmo todas as coisas",
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que Hugo de S. Vitor atribui à contemplação e que se origina a
partir da virtude da humildade como de um desenvolvimento natural. É
esta qualidade que brilha também de um modo especial na Regra de São
Bento, um texto que mostra um profundo conhecimento da natureza humana
e da vida monástica, em que o autor demonstra, diante destas
realidades, uma delicada reverência incapaz de negligenciar uma justa
atenção para com nenhum de seus múltiplos aspectos, sejam os seus
grandes princípios ou os seus pequeninos detalhes, e a todos sabe
inserir num conjunto cuja unidade é fruto de uma sabedoria tornada
realidade vivente.
Esta delicadeza, que na contemplação não despreza e não nos cega
para com nenhuma parte de um universo, é essencialmente a mesma que na
humildade não despreza e não nos cega o entendimento diante da
realidade de nosso semelhante. E, efetivamente, são estas mesmas
características que também se encontram na Regra de São Bento
todas as vezes que o santo patriarca ensina aos monges como tratar aos
seus semelhantes.
São Bento pede ao abade "que não faça distinção de pessoas, que
uns não sejam mais amados do que outros", "que o nascido livre não
seja anteposto ao originário de condição servil", porque "somos
todos um em Cristo, somente num ponto por eles distinguidos, se
formos melhores do que os outros nas boas obras e humildes" (2,
16-21); pede também ao abade que ao ensinar "tempere o carinho
com o rigor, mostrando a severidade de um mestre e o pio afeto de um
pai" (2, 24), lembrando-lhe "que coisa difícil e árdua
recebeu: reger as almas e servir ao temperamento de muitos, a este com
carinho, àquele, porém, com repreensões, a outro com persuasão,
segundo a maneira de ser e a inteligência de cada um, de tal modo que
se conforme e adapte a todos" (2, 31-32).
Quanto tiverem que ser feitas coisas importantes no mosteiro, julgue o
próprio abade o que for mais útil, não porém sem "convocar antes
toda a comunidade e ouvir o conselho dos irmãos". Neste conselho,
porém, São Bento insiste que não sejam chamados apenas os mais
importantes ou os mais sábios, mas que todos sejam efetivamente
ouvidos:
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"Dissemos que todos
sejam chamados a conselho",
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diz São Bento,
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"porque muitas vezes
o Senhor revela ao mais moço
o que é melhor".
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A Regra insiste também que o respeito e a atenção devem ser dados
não apenas aos superiores, mas particularmente aos velhos e às
crianças. Na lista dos preceitos do quarto capítulo pode-se ler:
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"Fugir da vanglória;
venerar os mais velhos,
amar os mais moços".
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No trigésimo sétimo capítulo lemos também:
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"Ainda que a natureza humana
seja levada à misericórdia
para com estas idades,
velhos e crianças,
no entanto que a autoridade da Regra
olhe também por elas.
Considere-se sempre a fraqueza
que lhes é própria,
e haja em relação a elas
uma pia consideração".
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Mais notável ainda é a passagem em que São Bento ensina como se
devem acolher os hóspedes:
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"Se chegar algum monge peregrino
de longínquas províncias",
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diz São Bento,
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"e quiser habitar no mosteiro como hóspede,
e mostra-se contente com o costume
que encontrou neste lugar e,
porventura, não perturba o mosteiro
com suas exigências supérfluas,
mas simplesmente está contente com o que encontra,
seja recebido por quanto tempo quiser.
Se repreende ou faz ver alguma coisa
razoavelmente
e com a humildade da caridade,
trate o abade prudentemente deste caso,
pois talvez por causa disso
Deus o tenha enviado".
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Esta passagem é particularmente notável por mostrar até que ponto
deve ir a humildade para embasar verdadeiramente o edifício
espiritual. São Bento não se limita a dizer que se o visitante
quiser habitar no mosteiro como hóspede, isto é, sem ser admitido
como membro da comunidade, deve "ser recebido por quanto tempo
quiser". Não contente com isto, o legislador acrescenta que, se,
além disto, o hóspede passar a repreender a conduta dos monges ou
lhes fizer ver que algo vai mal no mosteiro, não devem os monges se
aborrecer com isto julgando que o visitante esteja abusando da
hospitalidade que lhe foi oferecida intrometendo-se em assuntos que
não lhe dizem respeito. Muito ao contrário, São Bento pede ao
próprio abade que vá ouví-lo com atenção e que "trate
prudentemente deste caso". O mais impressionante, porém, é que
São Bento não pede ao abade que ele faça isto porque pode ocorrer
que o hóspede esteja com a razão, mas porque, e pondere-se quanta
diferença vai nisto, ele deve considerar seriamente a hipótese de que
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"pode ser que por causa disto
Deus o tenha enviado".
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É muito difícil julgar o que é mais extraordinário, se ouvir São
Bento legislar desta maneira ou ver Santo Tomás de Aquino procurar
no céu um burro voando. O que é certo, porém, é que se ambos
não tivessem sido capazes destas coisas, nem teriam alcançado a vida
de contemplação, nem teriam escrito a Summa Theologiae ou legislado
sobre a vida monástica.
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