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Considera o exemplo da construção de um edifício. Primeiro se
assentam os alicerces e depois, por cima deles, levanta-se o
prédio. Finalmente, consumada a obra, a casa é revestida com as
suas cores.
Assim também no estudo das Sagradas Escrituras importa que primeiro
se aprenda a história, repetindo do princípio ao fim a verdade das
coisas acontecidas, confiando diligentemente à memória o que foi
feito, por quem foi feito e onde foi feito. Somente será possível
investigar perfeitamente as sutilezas da alegoria quem primeiro está
bem fundamentado na história.
Depois da lição da história resta investigar os mistérios das
alegorias, para o que deve-se saber que esta não é matéria
apropriada para espíritos tardos e obtusos. Trata-se de uma
investigação que exige inteligências já maduras, possuidoras de uma
sutileza incapaz de perder a prudência no discernimento. É um
alimento sólido, que não pode ser engolido se não for bem
mastigado. Neste estudo é necessário fazer uso de tal moderação
que, à medida em que se busca a sutileza das Escrituras, a
presunção não nos torne temerários, recordando-nos do que diz o
Salmista:
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"Retesará o seu arco e o apontará,
e preparará para eles dardos de morte".
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Observa a obra do pedreiro com um pouco mais de diligência.
Assentados os alicerces, ele estende uma linha na horizontal e levanta
outra na vertical. Põe então em sua devida ordem as pedras
previamente polidas com esmero. Depois, busca outras e mais pedras,
e se encontrar algumas que não se encaixem na primeira disposição,
toma de sua lima, apara as saliências, aplaina as superfícies
ásperas e reduz à forma o que antes era informe. Finalmente,
acrescenta a pedra assim trabalhada à ordem em que havia disposto as
anteriores.
É um exemplo digno de imitação. Os alicerces se encontram dentro da
terra, e nem sempre têm suas pedras devidamente trabalhadas e
lapidadas. Já o edifício está acima da terra, e exige uma
estrutura mais trabalhada, com pedras perfeitamente ajustáveis entre
si.
Assim também a sagrada página contém muitas coisas que segundo o seu
sentido natural parecem contradizer-se entre si, e algumas que até
mesmo parecem absurdas ou verdadeiras impossibilidades. O entendimento
espiritual, entretanto, não admite nenhuma repugnância; ainda que
haja nele muita diversidade, não pode haver, porém, nenhuma
contrariedade.
Não carece também de significado a primeira série de pedras
assentada sobre os alicerces, dispostas segundo uma linha previamente
estendida e sobre a qual se ergue e se encaixa todo o restante do
edifício. Esta primeira série de pedras é como que outro alicerce,
e a base de todo o edifício. Este alicerce sustenta o que lhe é
superposto e é sustentado, por sua vez, pelo alicerce anterior.
Sobre o primeiro alicerce repousa toda a construção; nem tudo,
porém, se lhe ajusta perfeitamente; sustenta o edifício, mas está
abaixo do edifício. O segundo alicerce também sustenta o edifício,
porém não está apenas debaixo do edifício, mas também no
edifício.
Dizemos que o alicerce que está debaixo da terra representa a
história, e que o edifício que sobre ele se levanta representa a
alegoria. A base deste edifício, portanto, base que lhe serve como
de um segundo alicerce, deverá também pertencer à alegoria.
A construção é composta de muitas ordens de pedras, cada ordem
possuindo o seu alicerce; assim também a divina página contém muitos
mistérios, cada um possuindo os seus princípios.
A primeira ordem é o mistério da Trindade, pois a Escritura ensina
que antes que existisse qualquer criatura Deus era trino e uno.
Já existindo trino e uno, Deus criou toda a criatura do nada, tanto
as visíveis como as invisíveis; esta é a segunda ordem.
Deu livre arbítrio à criatura racional e preparou-lhe a graça,
para que pudesse merecer a eterna bem aventurança. Puniu-as por
terem caído por sua livre vontade; persistindo em sua queda,
confirmou-as para que não pudessem cair mais ainda. A origem do
pecado, o que ele é e qual a sua pena, eis a terceira ordem.
Os mistérios que Deus instituíu sob a lei natural para a
restauração do gênero humano, eis a quarta ordem.
As Escrituras que Ele instituíu sob a Lei, eis a quinta ordem.
O mistério da Encarnação do Verbo, eis a sexta ordem.
Os mistérios do Novo Testamento, eis a sétima ordem.
Sua própria ressurreição, eis finalmente a oitava ordem.
Esta é toda a divindade, este é aquele edifício espiritual
construído e erguido para o alto com tantas ordens quantos mistérios
nele se contém. Os alicerces de cada ordem são os princípios destes
mistérios. Se os alicerces da história já foram assentados, resta
agora assentar os alicerces do próprio edifício. A linha que deve
ser estendida antes de alicerçar as primeiras pedras é o caminho da
verdadeira fé; as primeiras pedras que alicerçam a obra espiritual
são os mistérios da fé pelos quais esta obra se inicia. Antes,
pois, de abordar o estudo da alegoria, o estudante deve procurar
instruir-se de quanto diz respeito à profissão da verdadeira fé para
que tudo o que vier a encontrar depois possa ser edificado com
segurança. Muitos que estudam as Escrituras, por não possuírem os
alicerces da verdade, caem em erros diversos, e tantas vezes mudam
suas sentenças quantas vezes se aproximam da leitura das Escrituras.
No livro de Ezequiel lemos que eram as rodas que seguiam os animais,
e não os animais que seguiam as rodas:
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"E quando os animais andavam,
andavam também as rodas junto deles;
e quando ao animais se elevavam da terra,
também as rodas se elevavam juntamente".
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Assim ocorre com a mente dos homens santos, que quanto mais progridem
nas virtudes ou na ciência, tanto mais profundos vêem ser os arcanos
das Sagradas Escrituras, e aquilo que para os homens simples e ainda
presos às coisas da terra parecem coisas desprezíveis, para os
espíritos mais elevados parecem sublimes.
Continua Ezequiel:
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"Para onde o espírito ia,
e para onde o espírito se elevava,
as rodas, seguindo-o,
também igualmente se elevavam.
Porque o espírito da vida estava nas rodas".
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Lemos, assim, que as rodas seguiam estes animais, e seguiam o
espírito. Ainda em outro lugar está escrito:
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"A letra mata,
o espírito, porém,
vivifica",
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porque, a saber, importa que o estudante das Escrituras esteja tão
consolidado no entendimento espiritual que os pontos mais importantes da
letras, que algumas vezes podem ser entendidos pervertidamente, não o
inclinem a desviar-se.
Por que aquele povo tão antigo, que havia recebido a Lei da Vida,
foi reprovado, senão porque seguiu de tal maneira a letra que mata que
não possuíu o espírito que vivifica? Não digo estas coisas para
dar a qualquer um a ocasião de interpretar as Escrituras à sua
vontade, mas para mostrar que aquele que segue apenas a letra não pode
permanecer muito tempo sem cair no erro. É necessário, pois, seguir
a letra de tal maneira que não se dê preferência ao nosso julgamento
diante daquele dos autores sagrados; e não seguir a letra de tal
maneira que se julgue depender dela todo o julgamento da verdade. Não
é o letrado, mas o espiritual que tudo julga (1 Cor 2,15).
Não é possível, porém, julgar a letra com segurança se se
presumir do próprio julgamento, mas é preciso primeiro aprender, e
informar-se, e assentar o alicerce da inabalável verdade.
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