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Vamos começar abordando a primeira das questões propostas, isto é,
se há formas melhores e preferíveis de se organizar uma sociedade ou
se todas são indiferentes entre si e se, algumas sendo piores e outras
melhores, haverá alguma que seja preferível a todas as demais.
O Comentário à Política trata deste assunto em diversos locais ao
longo de seus oito livros. As premissas de que se deve partir na
colocação deste problema são apresentadas no início do Livro
VII.
Quem quer investigar de modo certo e conveniente o problema da
sociedade ótima, diz o VIIº da Política, deve considerar
primeiro qual é o gênero de vida preferível a todos os demais, e
qual é a operação excelente do homem. Pois, se não for manifesto
qual seja a operação ótima do homem, não poderá ficar manifesto
qual seja a sociedade ótima, porque os homens que viverem nesta
sociedade deverão necessariamente alcançar a vida que é, em si
mesma, preferível a todas as demais (14). A finalidade da
sociedade ótima deverá ser o fim ótimo do homem, porque a sociedade
não é mais do que a ordem da sociedade, e a razão da ordem é tomada
de seu fim; portanto, para o conhecimento da sociedade ótima é
necessário primeiro conhecer qual é o fim ou a operação ótima do
homem (15).
Ora, o bem do homem é o ser perfeito do próprio homem, porque a
bondade é uma certa perfeição (16).
Há, porém, três gêneros de bens para o homem: os bens da alma,
os bens do corpo e os bens exteriores. A felicidade, sendo o bem
perfeitíssimo do próprio homem, deve reunir a todos estes três.
Não há dúvida de que, os bens do homem dividindo-se em três
partes, isto é, nos bens exteriores, como as riquezas e os amigos,
nos bens do corpo, como a saúde e a vivacidade dos sentidos, e nos
bens da alma, todos eles devem estar presentes nos que são felizes
(17). Se algumas destas coisas faltasse, naquela parte haveria
imperfeição; ninguém diria ser feliz aquele que não tivesse
alcançado alguma parte das virtudes, como a fortaleza, a justiça,
ou a prudência (18).
Embora, porém, todos concedam que todos estes bens devem pertencer
à felicidade, há muita diferença entre os homens quando se lhes
pergunta acerca da quantidade e do excesso. De fato, alguns dizem ser
suficiente à felicidade perfeita qualquer quantidade de virtude, mesmo
que seja pequena, mas no que diz respeito à riqueza e ao dinheiro, ao
poder, à glória, à fama e a outras coisas semelhantes, dizem que
estas devem pertencer à felicidade num excesso infinito, querendo
dizer com isso que a felicidade consiste principalmente nos bens
exteriores, e apenas secundariamente na virtude (19).
Mas nós, diz o Comentário ao VIIº da Política, reprovando o
que estes dizem, afirmamos ser fácil mostrar pelas próprias
operações que nos são mais manifestas que a felicidade consiste
principalmente nos costumes, isto é, nas operações provenientes de
hábitos ordenados segundo a razão e na excelência da perfeita
operação do intelecto, acrescentada de uma pequena posse de bens
exteriores, de preferência à abundância inoportuna destes bens
exteriores à qual se acrescentam virtudes e operações intelectuais
deficientes. A felicidade, portanto, mais consiste na excelência da
virtude e da operação do intelecto do que nos bens exteriores
(20).
Do que foi dito pode-se concluir em que consiste a felicidade de uma
cidade. Dizemos ser feliz, e, portanto, ótima, aquela cidade que
opera o ótimo. Portanto, será impossível uma cidade ser feliz e
ótima sem virtudes morais e intelectuais (21).
Alguém poderia objetar dizendo que a fortaleza, a justiça e as
demais virtudes não são de uma só e mesma natureza no homem e na
sociedade. Mas a isto deve-se responder que a virtude de toda uma
cidade e a virtude de um só homem são coisas de mesma natureza, ambas
ordenando-se à operação; elas não diferem senão como o todo da
parte e como o maior do menor. De fato, a virtude moral da cidade é
agregada a partir das virtudes parciais dos cidadãos, e por isso a
mesma é a virtude do cidadão e a virtude de toda uma cidade (22).
Portanto, a vida ótima do homem individualmente considerado e a vida
ótima de toda uma cidade é a mesma (23). É o que se deduz,
ademais, da comum opinião de todos os homens, pela qual fica também
manifesto que todos pretendem que a felicidade de um só homem e de toda
a cidade seja da mesma e de uma só natureza. É isto o que dizem todos
os que falam a respeito da felicidade. Aqueles que colocam a
felicidade do homem consistir nas riquezas, são eles também os que
dizem ser feliz a cidade que possui riquezas em abundância. Se
alguém, portanto, sustenta que é a operação da virtude que faz a
felicidade do homem, deverá concluir daqui que a cidade feliz será
aquela que mais se esforça por alcançar e participar das ações
virtuosas. Todos, portanto, confessam uma só e a mesma ser a
felicidade de qualquer homem separadamente e de toda a cidade (24).
Ora, a felicidade do homem é a perfeição do intelecto em relação
ao primeiro e maior de todos os inteligíveis, isto é, a causa
primeira. A felicidade prática, a que provém apenas das virtudes
morais, é uma participação do intelecto quanto aos agíveis pelo
homem, e é muito deficiente em relação à natureza do primeiro
inteligível. Portanto, para cada homem, individualmente
considerado, a felicidade contemplativa é mais elegível do que a
felicidade prática, além de ser mais contínua, suficiente e
deleitável. Deve-se daí concluir que a contemplação de toda a
cidade é mais elegível do que a virtude política de toda a mesma
cidade, e a virtude contemplativa de toda a cidade é preferível à
contemplação de um só homem (25).
Destas passagens do Comentário à Política pode-se deduzir que
como o homem é um animal naturalmente inclinado à vida em sociedade,
e que, ademais, necessita da sociedade para alcançar a vida das
virtudes, tanto morais como intelectuais, a sociedade ótima é aquela
organizada de tal maneira que, através dela, o homem alcança a
excelência na virtude e na inteligência. Vale a pena voltar a
mencionar que, no livro I do Comentário à Política, Tomás de
Aquino ressalta que a sociedade não foi feita apenas
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"para que os homens nela encontrassem
o suficiente para poderem viver;
a cidade existe não apenas
para que o homem viva,
mas para que o homem viva bem" (26),
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e viver bem, segundo o Filósofo, é viver segundo a excelência da
virtude e da inteligência (27). A natureza do homem é tal que
sem a sociedade ela não pode alcançar a virtude e a inteligência;
portanto, a sociedade que não se organiza de modo a proporcionar ao
homem a possibilidade de alcançar tais objetivos, concedendo-lhe, ao
contrário, apenas bens materiais e uma vida em liberdade e
segurança, estará causando ao homem um dano irreparável, pois não
há outro modo pelo qual o homem possa alcançar a felicidade que
provém destas coisas senão através da sociedade.
Referências
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(14) In libros Politicorum Expositio, L. VII, l. 1, 1047.
(15) Idem, L. VII, l. 1, 1048. (16) Idem, L.
VII, l. 1, 1049. (17) Idem, loc. cit.. (18)
Idem, L. VII, l. 1, 1050. (19) Idem, L. VII,
l. 1, 1051. (20) Idem, L. VII, l. 1, 1052.
(21) Idem, L. VII, l. 1, 1057. (22) Idem,
loc. cit.. (23) Idem, L. VII, l. 2, 1059.
(24) Idem, L. VII, l. 2, 1060. (25) Idem, L.
VII, l. 2, 1082. (26) Idem, L. I, l. 1, 31.
(27) Idem, L. VII, l. 1, 1052.
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