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O número de janeiro de 1959 do Scientific
American, em sua seção de livros recentemente lançados,
publicou uma resenha de cinco páginas das Atas do Congresso
de Harden House publicadas no ano anterior. Das várias
resenhas da seção de livros, esta era a principal e a mais
longa. Seu título, fundido com o próprio título da seção, era
"Livros: Uma Conferência sobre o Aborto como Doença das
Sociedades". Segue abaixo um resumo desta extensa resenha.
O aborto é uma prática antiga, diz James R.
Newmann, o autor da resenha, mas até mesmo na antigüidade ele
provocou algumas diferenças de opinião. Existem poucas
dúvidas, entretanto, que no Império Romano e no mundo
helenístico o aborto "era muito comum entre as classes
superiores". A Igreja cristã tomou uma posição austera
contra esta "atitude pagã" e declarou o aborto pecado. Em
muitos Estados a lei seguiu a doutrina da Igreja e tornou o
pecado um crime.
O aborto é hoje um problema mundial. Estudos e
levantamento de dados por parte de indivíduos e da UNESCO
mostram a prática estar amplamente difundida, dentre outros,
nos países escandinavos, na Finlândia, Alemanha, URSS, Japão,
México, Porto Rico, América Latina e Estados Unidos. O livro
de George Devereux, A Study of Abortion in Primitive
Societies, conclui que o aborto "é um fenômeno
absolutamente universal".
O problema cresceu com o crescimento da população.
Na maioria das sociedades o problema tem sido usualmente mal
abordado em termos práticos. Ignorância, hipocrisia e
desumanidade tem imperado nas apreciações sobre o mesmo.
Devido ao fato de que admitir francamente as dimensões do
mesmo poderia forçar ações remediativas que provocariam
oposições religiosas e sociais intensas, políticos, médicos,
altos funcionários da saúde pública e outros que fazem as
regras e as opiniões preferem pretender que a prática
apresenta dimensões desprezíveis. Eles são auxiliados nesta
opinião corajosa pela ausência geral de conhecimento sobre a
matéria.
Entretanto, está claro que estamos frente a frente
com uma matéria da mais alta importância médica e social: uma
doença da sociedade, das mais sérias porque muitas
comunidades se recusam a reconhecê-la e não fazem nada para
eliminar suas causas e mitigar seus efeitos.
Este livro desafiador e absorvente é evidência de
que há homens e mulheres que reconhecem a natureza e a
extensão do problema e estão trabalhando para trazê-lo a céu
aberto. Em 1955 uma Conferência sobre Aborto, patrocinada
pela Planned Parenthood Federation of America, foi realizada
em Harden House, Harriman, N.Y., e na Academia de Medicina de
Nova York. Os participantes, incluindo eminentes
ginecologistas, psiquiatras, assistentes sociais, advogados e
oficiais da saúde pública discutiram tópicos como a
incidência de abortos, métodos utilizados em abortos
clandestinos, causas de mortes devidas a aborto, os aspectos
legais e psiquiátricos do aborto. Um relatório sobre as
discussões, juntamente com uma declaração conclusória que
resume os fatos e fornece recomendações, é dada neste volume.
Não se poderia enfatizar com demasiada força o valor do
material como documento social.
O interesse principal da Conferência foi com o
aborto nos Estados Unidos. Trata-se de um quadro chocante. É
suficiente apenas contemplá-lo do ponto de vista legal para
saber porquê.
Dos quarenta e nove estados, todos exceto seis
proíbem o aborto exceto quando necessário "para preservar a
vida da mulher". Seis estados permitem um aborto terapêutico
"para salvar a vida da criança não nascida", seja lá qual
for o absurdo que esta frase possa significar. Em apenas dois
estados o aborto é permitido "para preservar a saúde da
mãe". Uma reprovação social poderosa entra em ação em seguida
para restringir ainda mais as restrições estatutárias. Alguns
hospitais se recusam a permitir o uso de suas dependências e
facilidades até mesmo para os abortos sancionados pela lei.
A Lei não é meramente, como Mr. Bumble disse, "uma
asnice"; ela é muito pior. Nos Estados Unidos nem o estupro,
nem o incesto, mesmo se a vítima for uma menina muito jovem,
é indicação para o aborto. Desgraças sociais, pobreza ou
qualquer outra razão humanitária recebem nenhuma consideração
em todos os lugares. E no que diz respeito à atitude
extraordinária da lei no tocante às crianças ilegítimas, nada
é mais convincente do que o parecer de Ivan Bloch, expresso
no seu famoso livro "The Social Life of Our Time". O
Estado, diz ele, considera como sagrada a vida da criança
antes do nascimento e pune qualquer pessoa que interfira com
a sua preservação, mas a seguir considera a mesma criança
como bastarda tão cedo quanto tenha nascido e pelo resto de
sua vida.
Já que é extremamente difícil obter um "aborto
terapêutico", a prática clandestina floresce. As mulheres
grávidas não casadas tem a escolha desesperada do suicídio,
de sustentar e educar a criança ilegítima, ou a de se dirigir
a um aborteiro. As mulheres grávidas casadas que não querem
sustentar sua criança podem estar menos desesperadas, mas ela
também é costumeiramente assediada por ansiedades e confusa
em relação a que caminho seguir. Um dos participantes da
Conferência, G. Lottrell Timanus, que por anos praticou em
Maryland como aborteiro, vividamente descreveu as condições
da típica mulher grávida contra a sua vontade:
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"Ela não sabe o que fazer, nem
para onde se dirigir. Não há lugar
disponível onde ela possa arejar
sua situação, confortável, quieta
e confidencialmente. Seu único
recurso na atualidade é dirigir-se
a um médico local, e, debaixo dos
padrões atuais, este tem medo até
de olhar para ela. Ele não tem
lugar para onde encaminhá-la. Não
tem recomendações a dar-lhe.
Assim, conseqüentemente, ela se
dirigirá a um aborteiro".
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E isto, como Ashley Montagu disse na sua introdução,
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"é como nossa sociedade trata o
problema do aborto na sua forma
mais elementar".
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Ela abandona a mulher ao aborteiro quando de sua maior
necessidade.
As estatísticas sobre aborto clandestino são, como
já dissemos, nada fáceis de se coletar. O falecido Alfred
Kinsey relatou à Conferência que de aproximadamente três mil
mulheres entrevistadas pelo seu Instituto, 10% das casadas
tinham provocado aborto aos 20 anos de idade, e 22% tinham
tido pelo menos um aborto provocado aos 45 anos de idade.
Não menos interessantes são as informações
fornecidas pelo Dr. Timanus. Em vinte anos de prática em
Baltimore, ele sozinho realizou cinco mil duzentos e dez
abortos, todos eles ilegais, exceto uma fração mínima.
Manteve cuidadosos registros destes casos e as compilações
dos diversos traços gerais característicos dos mesmos são
dados em seu relatório. Timanus está agora aposentado, tendo-
se desentendido com a lei. Em relação a esta ele fêz uma
observação que resume a hipocrisia das posições da profissão
médica em relação ao aborto. No período de vinte anos durante
os quais ele trabalhou como aborteiro, atendeu os
encaminhamentos de trezentos e cinqüenta e três médicos.
Deste grupo inteiro de homens respeitáveis, nenhum quiz se
apresentar e atestar a seu respeito, ou mesmo admitir que lhe
havia encaminhado uma única paciente.
Muitas outras estimativas pessoais do número de
abortos clandestinos foram feitas, desde um mínimo de
duzentos mil a um máximo de um milhão e duzentos mil abortos
por ano nos Estados Unidos. Mesmo aceitando a figura mais
baixa, as conseqüências do aborto clandestino são um
sofrimento humano aterrador e incalculável, miséria, doença e
morte, pesadas perdas econômicas e a corrupção dos padrões
éticos e sociais.
O que está para ser feito?
Os palestristas durante o Congresso apresentaram
evidências da magnitude da prática do aborto nos Estados
Unidos, discutiram suas causas e colocaram às claras seus
efeitos trágicos. Já na seção final, referente às conclusões
e recomendações, houve uma tendência a disputar sobre
ninharias, argumentar sobre problemas incongruentes e
irrelevantes e passar por cima das questões essenciais. Os
participantes reconheceram que eles estavam tratando com um
problema explosivo e que era tão difícil esboçar reformas
específicas como batalhar por elas. Mais ainda, conforme
diversos palestristas apontaram, desde que a Igreja Católica
se opõe ao aborto sob todos os pontos de vista, tornava-se
certo antecipar veementes críticas para quaisquer
recomendações no sentido de modificar os presentes estatutos
sobre o aborto que a Conferência pudesse adotar.
Uma declaração de conclusões foi finalmente
preparada, na qual mais de três quartas partes dos
participantes que assinaram tiveram o cuidado de declarar,
entretanto, que suas assinaturas representaram opiniões
pessoais e em nenhum sentido envolviam os hospitais,
Universidades, juntas de saúde ou outras organizações com as
quais eles estavam vinculados. Esta declaração merece maiores
atenções.
As leis e a moral vigente, os signatários
firmemente asseveram, falharam inteiramente em controlar o
aborto clandestino. "Ao invés disso, ele continuou em uma
extensão ignorada, ou, talvez, indultada por uma grande
proporção do público em geral e até das profissões
médica e legal".
A emenda constitucional que proibia bebidas
alcoólicas é um exemplo de uma lei inexecutável que conduziu
a males muito maiores do que aqueles para os quais ela foi
concebida para evitar. Os signatários fazem uma pungente
comparação entre a alta incidência de abortos com uma doença
da sociedade e a alta incidência de doenças venéreas três
décadas antes. Ambos são problemas epidemiológicos. Até
recentemente o problema das doenças venéreas estava envolto
em silêncio. Finalmente, os médicos e as agências de saúde
pública decidiram quebrar as barreiras e ventilar o problema.
Isto conduziu a um controle mais saudável até mesmo antes que
os antibióticos finalmente rompessem com o cerne das doenças
venéreas. "O mesmo tipo de ataque frontal deveria ser
agora levado a efeito para com o problema do aborto
intencional".
Diversas medidas remediativas são recomendadas.
Primeiro, estudos médicos, psico sociais e
psicológicos sobre as mulheres que procuram abortos são
necessários. Muito mais é preciso ser conhecido sobre o
problema antes que ele possa ser manipulado inteligentemente.
Segundo, centros de consulta para mulheres que
procuram abortos precisam ser levantados.
A terceira medida é estender, sob a supervisão
médica, a prática de conceder aconselhamento gratuito sobre
contraceptivos. Admitidamente existe muito pouca evidência
para fundamentar o ponto de vista de que o aumento da
disponibilidade de serviços contraceptivos reduziria a taxa
de abortos clandestinos. Mas, até que estatísticas seguras
possam decidir a questão, temos todas as razões para adotar
uma atitude na hipótese deque tais serviços serão de ajuda.
Sob as presentes circunstâncias, existe uma lamentável
desigualdade de acesso a informações sobre contraceptivos. "A
Lei, em sua majestática igualdade", certa vez Anatole
France nos lembrou, "proíbe tanto aos ricos quanto aos
pobres que durmam debaixo das pontes e que mendiguem nas
ruas". Foi notado na Conferência que entre as pessoas de
baixo nível educacional é ainda não raro encontrar mulheres
que nem sequer relacionam gravidez com relação sexual.
Um obstáculo formidável para a reforma é,
certamente, a própria Lei. Os estatutos existentes são tão
fanaticamente estritos e retrógrados que a única maneira
possível de conviver com eles é rompendo-os.
Na sua recomendação final os signatários encorajam
as autoridades tais como a National Conference of
Comissioners on Uniform State Laws, a American Law
Institute, e o Council of State Governments a esboçarem um
modelo de Lei que possa substituir os estatutos existentes.
Novamente, é para os países escandinavos que devemos nos
dirigir para instruir-nos sobre tais modelos.
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