12. Exemplo da Encíclica Mediator Dei.

Pode-se ainda ilustrar o assunto de que estamos tratando através de uma passagem da encíclica Mediator Dei de Pio XII sobre a Liturgia. Esta encíclica, juntamente com a Mistici Corpori Christi sobre o mistério da Igreja, escrita também por Pio XII quase à mesma época, são dois dos mais importantes documentos pontifícios de todos os tempos, e que praticamente assinalaram com uma década de antecedência o caminho que seria seguido pelo Concílio Vaticano II.

Na Mediator Dei Pio XII nos fala da natureza e da profundidade do sacrifício da Missa e exorta todos os fiéis a uma mais freqüente e íntima participação da mesma:

"Oxalá todos correspondam, livre e espontaneamente, a estes solícitos convites da Igreja",

diz Pio XII.

"Oxalá que os fiéis, até diariamente, se lhes é possível, participem do divino sacrifício, não só espiritualmente, mas também pela comunhão do Augusto Sacramento, recebendo o corpo de Jesus Cristo, oferecido por todos ao eterno Pai. Estimulai, pois, veneráveis irmãos no episcopado, nas almas confiadas aos vossos cuidados, a fome apaixonada e insaciável de Jesus Cristo; que por vossos ensinamentos, adensem-se à roda dos altares turmas de crianças e jovens que vão consagrar ao divino Redentor as suas pessoas, a sua inocência, a sua entusiástica atividade; aproximem-se numerosos os esposos, para que, nutridos da sagrada mesa e graças a ela, possam educar seus filhos no sentido e na caridade de Jesus Cristo; em suma,

`Convidai e obrigai a entrar',

como diz o Evangelho, todos os homens, de qualquer classe que sejam, porque este é o pão da vida, de que todos têm precisão".

Mediator Dei, n. 115

Feitas estas exortações, o pontífice passa a dar aos bispos algumas orientações sobre como favorecer a ascese cristã entre os fiéis, pois sem o cultivo da vida espiritual, diz Pio XII, não lhes será possível participarem do sacrifício eucarístico "sem que as preces litúrgicas se reduzam a um vão ritualismo" (n. 170). A ascese cristã, diz Pio XII, "aquela que dispõe o homem a tomar parte mais frutuosa nas sagradas funções" do sacrifício eucarístico, embora se possa realizar sob múltiplas formas,

"Tendem todas, embora de modo diverso, à conversão e à orientação para Deus de nossa alma, à expiação dos pecados e à prossecução das virtudes, habituando-nos à meditação das verdades e tornando-nos o espírito mais pronto para a contemplação dos mistérios da natureza humana e divina de Cristo".

Mediator Dei, n. 170

Deste modo, Pio XII exorta aos bispos que, "no seu zelo pastoral, recomendem e encorajem o povo que lhes é confiado" à ascese cristã, "da qual brotarão sem dúvida frutos salutares". Que neste exercício da vida espiritual "tome parte o maior número possível não só do clero como também dos leigos" (n. 173).

Porém o que mais nos interessa, aquilo que é o próprio motivo pelo qual estamos trazendo o texto desta encíclica para ilustrar como exemplo o comentário destas notas, é a observação que Pio XII faz logo em seguida a respeito da natureza do que se denomina ascese:

"Relativamente aos vários modos como se costumam praticar estes exercícios, seja a todos bem sabido e claro que na Igreja terrestre, tal como na celeste, há muitas moradas, e que a ascética não pode ser monopólio de ninguém".

Mediator Dei, n. 174

Na Igreja terrestre, diz Pio XII, tal como na celeste, há muitas moradas, "e a ascética não pode ser monopólio de ninguém". Pio XII volta a estabelecer um princípio da vida espiritual já bem conhecido há muitos séculos na tradição cristã. A ascética, aquela parte da vida espiritual que nos prepara para a contemplação, não é um caminho único, e por isso não só não pode ser monopólio de ninguém, como inclusive este fato deve ser levado em conta, diz a Encíclica, pelos bispos que governam a Igreja aos quais cabe o dever de favorecê-la e fomentá-la na vida dos fiéis. Assim como houve diversas escolas de espiritualidade, ainda muitas haverá, e tantas até poderia haver quantos cristãos houvessem, e muitas das possíveis jamais chegarão a se realizarem concretamente. Deve-se notar também que isto mesmo que a encíclica diz da ascese ela não o diz, e não o diz não porque não se lembrou, mas porque o mesmo já não se pode dizer, da realidade plena da contemplação, pois ela é a mesma para a qual tendem todas estas diversas formas de ascese.

Isto não significa, porém, que qualquer que seja a forma com que se organize a vida espiritual esta seja correta. Ela deve, em primeiro lugar, como o declara também a Encíclica, ordenar seus meios coerentemente de modo a conduzir efetivamente ao seu objetivo:

"Disto será índice",

continua Pio XII,

"a eficácia com que tais exercícios conduzam as almas a amar sempre mais e promover o culto divino; levem os fiéis a participar nos sacramentos com maior fervor; e a ter as coisas santas na devida veneração e respeito".

Mediator Dei, n. 175

Ademais, ainda que legítima, a escolha de uma determinada via de ascese não é algo que pode ser decidido com base em uma questão de gosto ou de capricho pessoal:

"É absolutamente necessário que a inspiração com que alguém é levado a professar certos e determinados exercícios provenha do Pai das luzes, origem de tudo o que é bom, de todo dom perfeito",

Mediator Dei, n. 175

conclui Pio XII.

De fato, foi assim que surgiram na Igreja todas as correntes de espiritualidade mais conhecidas e muitas outras que foram sendo seguidas por um número mais restrito de pessoas sem terem se formalizado através de algum instituto ou em escritores de maior vulto. Nenhuma delas jamais surgiu pelo simples capricho de se inventar um novo caminho, mas foi o próprio Deus, o qual, dizem as Escrituras, deseja que "todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade" (1 Tim 2,4), quer diante das dificuldades especiais em que os homens se encontravam, sugeriu-lhes, pela própria luz da graça do Espírito Santo, a necessidade ou a conveniência de se abrir uma outra via.