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Deste modo podemos perceber como, durante a Renascença, ao lado do movimento de
decadência progressiva do ensino superior nas Universidades que vinha desde os anos
1300 DC, foi se desenvolvendo gradualmente o equivalente ao ensino de segundo grau,
a princípio pelos humanistas em geral, posteriormente pelos padres da Companhia de
Jesus.
Era um ensino de segundo grau onde se aprendia muito grego, muito latim, muita
gramática, muita literatura. Ou seja, começou a desenvolver-se, como formação do
homem, aquele ensino de segundo grau que hoje nós chamamos de clássico, às vezes
também conhecido pela expressão de "estudos clássicos", que em uma época
posterior passaram a ser assim designados por oposição aos estudos ditos
"científicos". Receberam o nome de estudos clássicos porque, ao contrário do modo
como os humanistas procediam quando ministravam este mesmo ensino, isto é, do
modo aparentemente desordenado e individual como costumam proceder os
autodidatas, os jesuítas ministravam-no em classes em que os alunos eram
metodicamente promovidos todos juntos para a classe seguinte em períodos de tempo
que eram já conhecidos de antemão. Os textos que o programa de estudos apontava
como devendo ser utilizados em cada classe passaram a ser conhecidos, por isso
mesmo, como "os clássicos", uma expressão que, passados quatro séculos, perdeu seu
sentido original e é usada pelo homem de hoje para designar qualquer obra prima que
o tempo tenha consagrado como referência perene.
Este tipo de educação humanista, baseado no estudo dos clássicos e das línguas
antigas, que era dominante no Renascimento, foi desta maneira cristianizado pelos
jesuítas. Porém, ao mesmo tempo, esta forma de ensino era uma degeneração de um
tipo de educação que havia existido na época de Hugo de São Vitor e Santo Tomás de
Aquino. Esta degeneração chegou a tal ponto que os próprios religiosos passaram ou a
não se dar mais conta deste fato, ou a, depois de duzentos anos de Renascimento, não
terem mais alternativa senão a de darem a este ensino uma tintura e uma orientação
cristã.
De fato, aquele excesso de clássicos, de oratória, de gramática, de estudo de línguas
havia sido criado e introduzido na sociedade antiga por pessoas que não tinham por
intenção a busca da sabedoria, mas o desenvolvimento de qualidades humanas pelas
quais as pessoas pudessem competir na sociedade. Esta educação forma de fato o ser
humano e pode até mesmo produzir, quando bem orientada, certa forma de virtudes
cívicas, mas não é capaz, no que depende de sua natureza, de voltar o homem para a
sabedoria, a contemplação ou a vida espiritual. Pode-se tentar adaptar uma coisa à
outra, mas por mais que se adapte, será sempre uma adaptação, é um pano novo em um
remendo velho. Séculos anteriores haviam visto uma educação que em sua essência
estava voltada para estes outros fins mais nobres; na Renascença, porém, de modo
geral, não era mais possível para as pessoas perceberem isto, e mesmo que alguns o
percebessem, como provavelmente, não obstante o horrendo silêncio histórico que
existe a este respeito, devem te-lo percebido, esta minoria parece ter entendido
também que não era mais possível colocar em prática tais idéias. Se os jesuítas
tivessem aberto escolas onde os alunos passassem algumas décadas de suas vidas para
daí com isto não alcançarem objetivo algum senão a sabedoria, quem é que em uma
época como o Renascimento iria se inscrever em uma escola como esta? Poderiam
abri-las sim, mas não teriam nenhum aluno.
E, na verdade, quando os jesuítas tiveram que fazer esta opção, a situação havia se
tornado muito pior do que a que descrevemos até aqui, a ponto de possivelmente tornar
inclusive proibitivo canalizar os espíritos mais capazes para alguma tentativa heróica
de vulto em outro sentido. Os jesuítas haviam surgido precisamente no momento em
que, na Europa, desencadeava-se a Reforma Luterana, cujo programa inicial era muito
diverso da prática que pode atualmente ser observada nas Igrejas protestantes. Ao dar
início à Reforma, a idéia original de Martinho Lutero não era a de fundar uma outra
Igreja, paralela à Igreja Romana e que, opondo-se a esta, ensinasse o que ele
considerava ser o cristianismo original, tal como vemos ser hoje o que fazem as
diversas denominações evangélicas. Em sua concepção inicial, a intenção de Lutero
consistia em destruir a Igreja Romana substituindo-a pela Luterana. Em seus
primórdios, principalmente no Sacro Império Romano Germânico, nos principados em
que a Reforma se instalava era comum que a prática católica fosse inteiramente
proibida e suprimida, os templos existentes passassem aos reformados, e os sacerdotes
expulsos fossem substituídos por pastores. Para que o povo mais humilde não
interpretasse os acontecimentos como a substituição da Igreja que eles conheciam por
uma outra diversa, mas sim como uma reforma da antiga, os ritos da liturgia católica
romana foram modificados pelos luteranos de tal modo que, embora em seu significado
fossem substancialmente diversos e conformes à nova doutrina, em sua aparência
exterior se assemelhavam muito aos antigos. Em alguns principados germânicos este
processo não se deu somente através da força ordinária da lei, mas também pela
população descontrolada. Uma multidão invadia e tomava os templos à força,
expulsava os sacerdotes e ali mesmo instaurava a nova Igreja. Métodos reformistas
como estes fizeram com que, logo após a morte de Lutero, todo o Sacro Império
mergulhasse em uma sangrenta guerra civil conhecida como a "Guerra dos Trinta
Anos". Foi dentro de um contexto assim tão complexo e tão diverso daquele dos dias
atuais que a Reforma protestante subitamente surgiu na Europa e ameaçou propagar-se
com uma velocidade fulminante por todo o continente.
Nesta perspectiva, se já era difícil para os jesuítas pensarem efetivamente em termos
de uma Pedagogia Sacra, para a Igreja Luterana tratava-se de uma impossibilidade
intrínseca. Martinho Lutero, por exemplo, simplesmente não conseguia entender o que
fosse a natureza da contemplação. Em seus escritos encontramos afirmações como
esta:
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"Quando eu vivia no Papado,
considerava ser algo espiritualíssimo
quando os monges
sentavam-se em suas celas
e meditavam em Deus e em suas obras,
quando eles,
inflamados por ardentíssimas devoções,
dobravam os joelhos,
oravam
e meditavam nas coisas celestes.
No entanto,
(hoje sei) que estas coisas
espiritualíssimas
não passam de idolatria".
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Lutero havia chegado a conclusões como esta porque, estudando as Epístolas de São
Paulo, encontrou escrito nelas que o homem não se salva pelas obras exteriores, mas
apenas pela fé.
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"É na fé que está a força de Deus
para salvar os homens",
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diz São Paulo na Epístola aos Romanos, e acrescenta:
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"A (santidade) de Deus manifesta-se
nos que crêem
(e que caminham) da fé para a fé,
(pois é a própria Escritura que diz):
`O (homem) justo vive da fé'".
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Segundo Martinho Lutero, isto significava que os monges que se entregavam à
contemplação das coisas divinas estariam indo contra os ensinamentos de São Paulo
pois, em vez de buscaram a salvação que vem apenas da fé, estariam procurando
salvarem-se pelas suas próprias obras. Num equívoco que mostra o quanto os homens
de sua época já se tornavam incapazes de entender o sentido das verdades evangélicas,
o iniciador da Reforma não percebia que a vida contemplativa dos monges era a
própria vida da fé de que fala São Paulo apóstolo. A contemplação, de fato, surge na
alma do homem quando, auxiliado pela graça, a uma fé firme, constante e pura, se
acrescenta um amor intenso. Se há algum homem justo que vive da fé, este homem é
justamente aquele que, amparado pela graça, alcançou a vida contemplativa e que, em
virtude da força de Deus que lhe é infundida pela habitualidade da fé e do amor que o
constitui na contemplação, torna-se capaz de praticar as virtudes cristãs até o
heroísmo.
Em circunstâncias como esta, em que a Igreja parecia estar com os dias contados para
ser suprimida e substituída por outra, como de fato o foi em muitas nações, a opção
pedagógica dos jesuítas revelou-se providencial. A história posterior mostrou que foi
principalmente devido ao súbito surgimento da Companhia de Jesus e à obra por ela
desenvolvida que foi possível deter o avassalador avanço da Reforma protestante. E,
mais especificamente, verificou-se mais tarde que a maior parte deste mérito deveu-se
de modo especialíssimo ao sucesso igualmente fulminante da imensa rede escolar
elaborada pela Companhia. Amainados que foram os primeiros furores da tormenta e
elaborado um mapa das regiões da Europa que haviam permanecido católicas ou em
que havia sido implantada a Reforma luterana, verificou-se que os limites geográficos
destas localidades coincidiam, em grande parte e de modo particularmente evidente no
Sacro Império, com o próprio mapa das fundações das escolas jesuítas.
Se tudo isto explica, justifica, e até mesmo é causa de profunda admiração diante do
trabalho desenvolvido pela Companhia de Jesus, todavia não pode ser motivo para
dissimular que, devido a estas mesmas causas, nesta época da história a educação
cristã em um certo sentido desceu de nível e como que mudou de canal.
Mais tarde, conforme veremos, do ponto de vista do que a educação possui de mais
essencial, ela iria mudar de canal muitas outras vezes mais. Mas agora temos que
chamar a atenção para os problemas relacionados com esta primeira mudança de
canal.
A partir do Renascimento as pessoas pertencentes à civilização ocidental passaram a
ser formadas segundo um padrão educacional inteiramente novo. Com isto certas
verdades mais profundas não seriam mais facilmente perceptíveis para os que fossem
assim sistematicamente educados. Introduziu-se deste modo, em toda uma inteira
civilização, uma incapacidade artificialmente induzida para a apreensão de certas
verdades que, para uma outra, seriam coisas evidentes. A partir deste momento, para a
apreensão destas verdades seria necessário realizar um tremendo esforço que, cada
vez mais, a maioria das pessoas não seria mais capaz de empreender.
É em grande parte devido a esta primeira mudança de canal na educação que provém,
por exemplo, uma dificuldade muito difundida entre os homens de compreenderem o
que significa a ascese cristã; que a conversão não é o ponto culminante do
Cristianismo, mas apenas o seu princípio; que o Cristianismo não chama apenas à
conversão, mas também a algo mais elevado que lhe é posterior, que está além do que
hoje se chama de conversão, e que supõe esta conversão como requisito.
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