14. Exemplo de Hugo de S. Vitor diante da natureza.

Vimos a atitude de Santa Clara diante da beleza de uma árvore, inspirada no exemplo de São Francisco. Examinamos a de São Bernardo, diante de um dos lagos mais belos da Terra. Com Hugo de São Vitor nos deparamos com uma terceira atitude diante da mesma situação. Embora haja pouquíssimos dados biográficos sobre Hugo de São Vitor, muitíssimo menos do que os que existem sobre Santa Clara e São Bernardo, suas obras, entretanto, por trás de uma aparente impessoalidade, são um perfeito espelho de sua alma, mais até do que o seria uma sua possível biografia. Através destes escritos podemos reconstituir, com razoável probabilidade, como Hugo se comportaria, na condição de um cristão que busca a Deus, se se visse diante de uma linda árvore ou de um belíssimo lago.

Se se encontrasse diante de um belíssimo lago, Hugo de S. Vítor provavelmente nem louvaria imediatamente a Deus, nem, porém, se negaria a contemplar o lago. Começaria provavelmente a refletir. Como é grande este lago, pensaria. Quantas gotas de água haverá nele? Pensaria em um número pelo qual poderia enumerá-las, para reconhecer em seguida tratar-se de uma tarefa humanamente impossível. No entanto, continuaria Hugo, Deus certamente conhece, em sua sabedoria, o número exato, tão claramente como o faria um homem diante de duas ou três frutas. É uma sabedoria admirável, tão mais admirável quanto mais se considera a impossibilidade humana de alcançá-la. E, no entanto, Deus não conhece apenas quantas gotas há neste lago, como também, à diferença do homem diante das três frutas, criou-as a todas, tirando-as do nada:

"Que potência não seria necessária, quando nada existia, para fazer com que do nada algo existisse? Que sentido poderá compreender",

escreve Hugo,

"quanta virtude não haverá no se fazer do nada uma única coisa, ainda que seja a mínima de todas? Se, portanto, há tanta potência no se fazer do nada uma só coisa, ainda que pequena, como não se poderá compreender quão grande deveremos estimar a potência que criou tamanha multidão de seres? De que tamanho é esta multidão? Quantos são? O número das estrelas do céu, a areia do mar, o pó da terra, as gotas da chuva, as penas das aves, as escamas dos peixes, os pelos dos animais, a grama dos campos, as folhas e os frutos das árvores, e os números inumeráveis dos demais inumeráveis, qual é a magnitude desta grandeza? Mede a corpulência das montanhas, o curso dos rios, o espaço dos campos, a altura do céu, a profundidade do abismo. Admira, pois não o és capaz; mas justamente não o sendo capaz é que melhor te admirarás".

Tratado dos Três Dias

Este lago, pois, consideraria Hugo de S. Vitor, é na realidade um caminho que Deus colocou diante dos homens para que eles pudessem alcançar um vislumbre da sabedoria divina. O lago é belo, diria Hugo; mais bela ainda é, porém, a sabedoria que se revela através dele. Os profetas do Velho Testamento dizem também a mesma coisa; eles haviam-se dado conta de que a natureza havia sido oferecida aos homens precisamente para isto, para abrir-lhes um caminho para a contemplação da sabedoria divina. De fato, eles nos deixaram escrito:

"Quão magníficas são as tuas obras, ó Senhor; mais profundos, porém, são os teus pensamentos".

Salmo 91

De onde que os salmos nos ensinam a nos utilizarmos da magnificência das obras de Deus para termos um vislumbre da maior profundidade de seus pensamentos.

"Todo o mundo sensível",

diz Hugo,

"é como um livro escrito pelo dedo de Deus, e cada uma de suas criaturas são como figuras, não imaginadas pela opinião humana, mas instituídas pelo arbítrio divino, para a manifestação da sabedoria do Deus invisível. Não há ninguém para quem as obras de Deus não sejam admiráveis",

Tratado dos Três Dias

mas devemos saber ultrapassar nelas a beleza de suas aparências para nos remontarmos ao conhecimento da perfeição de seu Criador. Como nos será possível, de fato, amar a Deus como nos foi prescrito, com toda o nosso coração, com toda a nossa alma, com todo o nosso entendimento, com todas as nossas forças, se dEle só lhe conhecemos um nome?

"Deus, em si mesmo, não pode ser visto; fêz, porém, com que pudesse ser visto pelas coisas que fêz, pois, como diz o Apóstolo,

`as coisas invisíveis de Deus podem ser vistas pela criatura, pelo entendimento das coisas que foram criadas'.

Rom. 1

Se quisermos, pois, que Deus habite em nós permanentemente pelo amor, devemos construir em nós uma casa para a sabedoria".

Tr. Três Dias/De Arca Noe

Venham, pois, ver este lago, mas não prestem demasiada atenção àquilo que apenas os olhos enxergam, pois há nele uma beleza maior que se nos revela, invisível aos olhos da carne. A figura do lago é apenas uma aparência; Deus, porém, colocou aqui toda esta água para que, através dela, os homens pudessem ter um vislumbre de Sua própria mente. Devemos, pois, saber nos aproveitar dele, pois o lago nos oferece um modo de conhecer a Deus, e só podemos amar aquilo que, de alguma forma, o conhecermos.

"Gostaria de discernir estas coisas com tanta delicadeza para poder narrá-las" a todos os homens,

diz ainda Hugo no Tratado dos Três Dias; infelizmente, porém, aqueles que passam por aqui olham para o lago e não vêem mais do que água. É possível que amem a Deus desta maneira? Pois, agindo deste modo, parece que, efetivamente, não o conhecem.