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Diz o Apóstolo:
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"entregou-os Deus aos desejos
de seu coração,
às paixões da ignomínia,
a um sentimento depravado".
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Por estas autoridades, e muitas outras, como esta:
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"Deu-lhes um espírito de torpor,
para que vendo não vejam,
e ouvindo não ouçam";
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e também:
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"Endureceu-se o coração
do Faraó";
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"Ele tem misericórdia
de quem quer,
e endurece a quem quer".
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Por estas e por muitas outras passagens parece que muitos males podem
realizar-se por obra de Deus. Santo Agostinho também reúne em um
mesmo lugar muitas passagens para argumentar a este respeito, depois do
que conclui que por elas fica manifesto que pertence a Deus operar no
coração dos homens, nos bons inclinando pela sua misericórdia aos
bens e nos maus inclinando aos males pelo seu julgamento, às vezes
oculto, às vezes manifesto, sempre, todavia, justo.
Do mesmo modo, lemos no Apocalipse:
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"Porventura não é justo
que aquele que está na impureza
se torne ainda mais impuro?"
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De onde vem esta justiça? Não será de Deus, de quem provém toda
justiça? De onde que parece que é Deus quem opera isto. Do mesmo
modo, o pecado que é pena de um pecado precedente, de quem provém?
Toda justiça provém de Deus, e este pecado é uma pena justa, de
onde que parece que tem sua origem de Deus.
SOLUÇÃO.
Alguns respondem a isto dizendo que todo pecado provém de Deus, não
apenas aquele que é pena de outro pecado, mas também aquele que é
apenas culpa, os quais concedem que o furto, o latrocínio, o
adultério, provém de Deus, conforme diz o profeta:
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"Não há mal na cidade que não seja
por disposição de Deus".
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Estes também pela razão procuram provar o mesmo: toda essência, de
fato, provém de Deus. Ora, a vontade má e a ação má são
pecado, e possuem essência, de onde que se conclui, segundo a
opinião deles, que o pecado provém de Deus.
A estes pode-se objetar: o que é fazer o pecado, senão pecar? O
que é fazer adultério, senão adulterar? O que é fazer o furto,
senão furtar? De onde que se se concede que Deus faz o pecado
segue-se que Deus peque, furte, adultere e mate, o que não apenas
é nefando de se dizer, como também de se pensar.
Esta objeção sobre a vontade má e sobre a ação não boa, que são
algo, e que, deste modo, procederiam de Deus, resolve-se deste
modo: o pecado, considerado em si mesmo, é uma coisa distinta do
pecado considerado segundo outro. O pecado, considerado em si mesmo,
é uma certa desordenação ou privação da justiça. Neste sentido,
ele nada mais é do que a ausência da justiça, de onde que não
procede de Deus, por não ser nada. Deus, de fato, não pode ser o
autor daquilo que nada é. A vontade má e a ação não boa são
pecados segundo outro, isto é, segundo uma desordenação; são
alguma coisa, mas são ditas pecado não pelo que possuem, mas pelo
que não possuem. São, efetivamente, pecado, porque não possuem
ordem nem modo.
Quanto à autoridade do profeta, a qual diz que
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"Não há mal na cidade que não seja
por disposição de Deus",
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pode entender-se do mal da adversidade ou do mal da perversidade. Ou
talvez nem sequer tenhamos que entendê-la do mal da adversidade, se
examinarmos mais diligentemente a circunstância desta Escritura.
Acrescenta, de fato, o profeta logo a seguir:
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"porque o Senhor nada faz sem ter
revelado antes o seu segredo
aos profetas seus servos".
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Há alguns que levantam objeções semelhantes quanto ao poder de
pecar, pois ele provém de Deus; sendo ele pecado, deste modo parece
que o pecado provém de Deus. Mas este argumento de nada vale,
porque o poder de pecar nem é pecado, nem é causa suficiente do
pecado sem a vontade.
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