Orígenes

De Principiis (livro IV)

IIIª Parte


CAPÍTULO 14

Tudo isto sendo assim, esboçaremos, como exemplo e forma, conforme nos ocorrer, de que modo deve ser entendida, sobre cada uma destas coisas, a divina Escritura.

Repetiremos e mostraremos primeiro que o Espírito Santo, pela providência e vontade de Deus e pela virtude de seu Verbo unigênito, que era no princípio Deus junto de Deus, iluminava os ministros da verdade, os profetas e apóstolos, para que conhecessem os mistérios daquelas coisas ou causas que aconteciam entre os homens ou com os homens. Chamo aqui de homens as almas colocadas nos corpos que, ao narrar ações humanas ou transmitir preceitos e observâncias, descreviam figuradamente os mistérios que lhes eram conhecidos e revelados por Cristo, não para que qualquer um que os quisesse conculcar aos pés as tivesse explicadas, mas para que os que se entregassem ao seu estudo com toda a pureza, sobriedade e vigílias pudessem investigar profundamente o sentido escondido do Espírito de Deus e pudessem, pela narrativa costumeira do discurso, contemplar um outro contexto mais elevado, tornando-se desta maneira sócios da ciência e do Espírito e participantes do conselho divino. De fato, não há nenhuma outra maneira pela qual a alma pode alcançar a perfeição da ciência se não pela inspiração da verdade da sabedoria divina.

Estes homens, portanto, repletos do espírito divino, trataram principalmente de Deus, isto é, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Falaram também, conforme dissemos, repletos do espírito divino, dos mistérios do Filho de Deus, de como o Verbo se fêz carne e por qual causa veio a tomar a forma de servo. Pela palavra divina, em seguida, ensinaram aos mortais, sobre as criaturas racionais, tanto as celestes quanto as mais felizes entre as terrenas, sobre a diferença das almas e sobre a origem destas diferenças, e sobre o que é este mundo, por que foi feito e de onde provém a existência de tanta e tamanha malícia sobre a terra. Quanto à questão sobre se esta malícia existe somente na terra ou também é encontrada em outros lugares, isto será necessário que o aprendamos a partir dos discursos divinos.

A intenção do Espírito Santo era iluminar primeiramente estas santas almas e outras a elas semelhantes que haviam se consagrado ao ministério da verdade. Em seguida, conforme já dissemos, por causa daqueles que não pudessem ou não quisessem entregar-se ao trabalho e à indústria pela qual mereceriam que lhes fossem ensinadas ou viessem a conhecer tantas e tais coisas, havia a perspectiva de ocultar os mistérios envoltos em discursos costumeiros, sob o pretexto de alguma história ou da descrição de coisas visíveis.

Foi deste modo que se introduziu a narração da criação e da formação da criatura visível e do primeiro homem, à qual se seguiu a da sua descendência, fazendo-se referência a algumas coisas realizadas por alguns justos e também relembrando-se alguns de seus delitos como de homens. Foi daqui que foram escritas algumas ações impúdicas e iníquas dos ímpios. De um modo admirável, encontram-se também narrações de batalhas realizadas e a descrição da diversidade ora dos que vencem, ora dos vencidos, pelas quais coisas se declaram, aos que sabem investigar tais ditos, certos mistérios inefáveis. À Escritura legal, pela admirável disciplina da sabedoria, é inserida a Lei da verdade e também dos profetas; e com todas estas coisas foram tecidas pela divina arte da sabedoria como que um certo indumento e véu dos sentidos espirituais. É a isto que chamamos de corpo da Sagrada Escritura, e é deste modo que, pelo que chamamos de revestimento da letra, tecido pela arte da sabedoria, muitos, que não o poderiam de outro modo, podem ser edificados e adiantar-se.