CAPÍTULO 97

Em rápidos traços, foi esta a formação do homem que fascinou aos homens da Renascença. Foi assim que eles desejaram se formar, e foi assim que eles passaram a aspirar que os homens se formassem.

Na concepção original de Quintiliano, ele desejava formar o homem bom. Entre os seus alunos talvez o tivesse conseguido em boa parte, mas na Renascença o mesmo método falhou de muito.

Conforme vimos, os próprios humanistas afirmavam que jamais houve tanta corrupção na história humana como entre eles e, no entanto, estava justamente entregue aos seus cuidados a educação das cortes nas quais, juntamente com os homens de letras, estava o grande foco daquela corrupção.

Como pode ter acontecido semelhante paradoxo, se esta geração se esforçou tanto para educar os homens segundo uma metodologia que, segundo Quintiliano, deveria levar à formação de

"um homem bom, perito no falar",

e sublinhava ainda que, entre estas duas coisas, o homem bom era ainda mais importante do que o perito no falar?

Este paradoxo pôde ter acontecido porque a pedagogia de Quintiliano não era um sistema autônomo de educação. Conforme vimos, ela foi uma aproximação da educação retórica à educação dos filósofos, este último sim um sistema pedagógico completo, autônomo e superior.

Isto fica claro quando se considera que, embora o homem bom fosse o objetivo principal declarado de Quintiliano, e a perícia no falar fosse o objetivo secundário, a parte central das Instituições Oratórias, isto é, a maior parte do tratado, explicita em todos os detalhes em que consistem as técnicas da arte de falar; mas, quando chegamos ao homem bom, que é algo mais importante do que a perícia no falar, Quintiliano não nos oferece em nenhuma parte do seu livro uma explicação semelhantemente elaborada do que seja um homem bom. Na verdade, ele remete a abordagem mais detalhada deste assunto aos livros dos filósofos, os quais ele mesmo reconhece que tratam do assunto como algo que pertencia aos seus domínios.

Ou seja, a educação de Quintiliano é uma educação que necessita de uma outra para que lhe explique os seus objetivos; seus objetivos não podem ser compreendidos apenas dentro de seu próprio sistema.

Por conseqüência, o professor que desejasse ser fiel às Instituições Oratórias como ideal de ensino, deveria reportar-se a uma outra cultura, para além das Instituições, como referência, para compreender-lhe o seu sentido último.

No final do século I da era cristã, na cidade de Roma, qual fosse tal cultura de referência era algo evidente para a elite romana, pois um conhecimento, ainda que superficial, dos escritos dos filósofos gregos, principalmente da corrente estóica, já era comum entre os romanos cultos. Quando Quintiliano dizia que queria formar um homem bom, e não explicava precisamente o que significava este homem bom, os romanos entendiam o que ele queria dizer com esta expressão segundo a acepção que ela tinha na filosofia grega e na dos filósofos estóicos em particular.

Na Renascença a referência óbvia para se entender o que poderia significar o homem bom não era mais a Filosofia, mas o Cristianismo. No entanto, era justamente com a tradição cristã que os humanistas estavam tentando romper; ao fazerem isto, estavam na realidade tentando romper com o único contexto em que na época era possível enquadrar a Pedagogia de Quintiliano de modo a se poder compreender o sentido final em função do qual Quintiliano propunha todo o seu sistema.

Em vez do Cristianismo, os humanistas da Renascença buscaram como referência de fundo para as Instituições Oratórias a literatura pagã em geral, da qual Quintiliano, no Livro X das Instituições, fêz um numeroso elenco e comentário.

Quintiliano, porém, não havia elaborado este longo elenco como uma referência para o objetivo final de sua pedagogia. Esta referência final ele diz explicitamente que está nos tratados dos filósofos gregos. A lista das obras da antigüidade pagã do Livro X são para ele apenas modelos de arte oratória ou elementos de cultura geral necessários ao orador para poder falar e escrever bem. Considerada a obra toda, a pedagogia de Quintiliano aponta para um padrão superior ao de sua época.

Para os humanistas, porém, as referências da literatura antiga não foram tomadas neste sentido técnico que Quintiliano quis dar, e sim como o modelo que a humanidade deveria imitar. Enquanto Quintiliano tentava na realidade elevar-se acima do antigo paganismo, os renascentistas tentaram ressuscitar este antigo paganismo em toda a sua inteireza. Admiraram nos antigos justamente aqueles traços marcantes que provinham de seu egoísmo que não conhecia problemas de consciência, de seu orgulho pessoal desmedidamente cultivado, de seu amore à glória e de sua sede de prazeres; e, enquanto admiravam ilimitadamente estas características do paganismo, desprezaram abertamente no Cristianismo as características opostas. Aquilo que nos séculos imediatamente passados era considerado uma abominação, agora era louvado em todo lugar pelos homens mais cultos.