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Embora a beleza das criaturas seja perfeita de muitos e diversos
modos, todavia há quatro modos principais nos quais consiste a sua
beleza. Estes são a posição, o movimento, a espécie e a
qualidade, os quais se alguém for capaz de investigar, encontrará
neles a admirável luz da sabedoria de Deus.
Quisera eu poder discernir estas coisas com tanta delicadeza, poder
narrá-las com tanta competência quanto posso ardentemente amá-las!
É para mim uma doçura e uma alegria imensa tratar com freqüência
destas coisas, nas quais simultaneamente o sentido é ensinado pela
razão, a alma se deleita pela suavidade e o afeto é estimulado pela
emulação de modo que nos maravilhamos juntamente com o salmista, e
admirando clamamos:
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"Quão admiráveis são as tuas obras,
ó Senhor!
Tudo fizeste com sabedoria."
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e também:
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"Deleitaste-me,
ó Senhor,
com os teus feitos;
exulto com a obra de tuas mãos.
Quão magníficas são as tuas obras,
ó Senhor,
quão profundos os teus pensamentos!
O ignorante não conhece,
e o estulto não compreende estas coisas".
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De fato, todo este mundo sensível é como um livro escrito pelo dedo
de Deus, isto é, criado pela virtude divina, e cada uma das
criaturas são como figuras, não imaginadas pela opinião humana, mas
instituídas por arbítrio divino para a manifestação da sabedoria de
Deus invisível. Deste modo, assimo como um analfabeto que visse um
livro aberto veria as figuras mas não conheceria as letras, assim
também é o estulto e o "homem animal", que "não percebe as coisas
que são de Deus" (I Cor. 2): nestas criaturas visíveis vê
externamente a espécie, mas não lhes compreende internamente a
razão. O homem espiritual, porém, pode julgar a todas as coisas,
considerando externamente a beleza da obra, e concebendo internamente
quão admirável é a sabedoria do Criador.
Por isto não há ninguém para quem as obras de Deus não sejam
admiráveis. O ignorante admira nelas somente a espécie; o sábio,
porém, através daquilo que vê externamente, busca o conhecimento
profundo da sabedoria divina, como se em uma só e mesma Escritura um
destes homens louvasse a cor e a forma das figuras e o outro louvasse o
sentido e o significado.
É coisa excelente, pois, contemplar e admirar as obras divinas, mas
para aquele que sabe verter a beleza das coisas corporais num uso
espiritual.
Por isto é que também as Sagradas Escrituras tanto nos exortam a
desejar as coisas admiráveis de Deus, para que dando crédito às
coisas externas, cheguemos internamente ao conhecimeno da verdade.
Por isto é que o salmista, considerando com isso já ter feito uma
grande coisa, ainda promete continuar a fazê-lo, dizendo:
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"Lembrei-me dos dias antigos:
meditei em todas as tuas obras,
e na obra das tuas mãos meditarei".
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E é por isto também que se diz em Isaías a alguns homens que
ignoravam o seu Criador e ofereciam aos ídolos o culto devido a
Deus:
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"Quem jamais mediu as águas do mar
com côncavo da mão,
ou mensurou os céus com o palmo?
Quem suspendeu a terra inteira com três dedos,
pesou as montanhas em sua grandeza,
ou colocou as colinas em uma balança?
Aquele que está sentado sobre o globo da terra,
onde os seus habitantes parecem gafanhotos;
Ele, que desenrola os céus como uma lâmina,
e os estende como uma tenda para habitar".
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E o salmista, novamente, em algum lugar, repreendendo os cultuadores
dos ídolos, diz:
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"Todos os deuses dos gentios são demônios;
o Senhor, porém, fez os céus".
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O que julgais que significa utilizar assim as obras de Deus como meio
de afirmar a verdadeira divindade dizendo: "O Senhor, porém, fez
os céus", senão que a criatura quando retamente considerada mostra
ao homem o seu Criador? Consideremos, pois, quão grande são as
coisas admiráveis de Deus, e pela beleza das coisas criadas busquemos
aquele belo, o mais belo entre todos os belos, que é tão admirável
e tão inefável que toda beleza transitória, ainda que seja
verdadeira, a ele não pode ser comparada.
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