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Para um mundo cada vez mais irreversivelmente comprometido com o progresso material
em evidente detrimento e abandono das realidades eternas, a decisão de convocar o
Concílio Vaticano II, vigésimo primeiro da série dos Concílios Ecumênicos, foi
anunciada em 1959, no dia da festa da conversão do Apóstolo São Paulo. Tão
repentina como a conversão de São Paulo foi também a convocação do Concílio
Vaticano II. Nesta data Sua Santidade, o Papa João XXIII, estava na Basílica de São
Paulo Fora dos Muros, junto ao local onde vinte séculos antes havia sido martirizado o
apóstolo São Paulo. Junto com ele estavam diversos cardeais. Subitamente veio-lhe
uma inspiração. Não nomeou nenhuma comissão para estudar previamente o assunto,
não consultou nenhum especialista, não fêz perguntas a ninguém, nem estudou o
problema longamente por si próprio. Naquele mesmo local, dali a poucos momentos,
anunciou aos cardeais o seu firme propósito de convocar o Concílio Vaticano II.
João XXIII referiu-se várias vezes a este fato; prestes a iniciar-se o Concílio, ele
afirmou:
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"A idéia do Concílio não amadureceu
como fruto de prolongada consideração,
mas como o florir espontâneo
de uma inesperada primavera".
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João XXIII
Alocução 9 agosto 59
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"Consideramos inspiração do Altíssimo
a idéia de convocar
um Concílio Ecumênico,
que desde o início de nosso pontificado
se apresentou à nossa mente
como o florir de uma inesperada primavera".
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Motu Proprio Supernu Dei Nutu
5 junho 1960
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"A idéia mal surgiu em nossa mente
e logo a comunicamos com fraternal confiança
aos senhores cardeais,
lá na Basílica Ostiense
de São Paulo Fora dos Muros,
junto ao sepulcro do Apóstolo dos Gentios,
na festa comemorativa de sua conversão,
a 25 de janeiro de 1959".
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Alocução de 20 junho 1962
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A decisão de convocar o Concílio Ecumênico, portanto, não necessitou de tempo para
amadurecer na alma do Pontífice. Surgiu, consumou-se e foi comunicada à Igreja em
questão de poucos momentos. Muito diversa, entretanto, era a natureza dos motivos que
levaram João XXIII a esta convocação. Os concílios ecumênicos nunca foram
assembléias que se reunissem a intervalos regulares; todos os vinte concílios
anteriores aos Vaticano II haviam sido convocados por motivos graves e excepcionais.
É, portanto, uma questão importante saber que problemas João XXIII tinha em mente,
tão graves e excepcionais, a ponto de fazê-lo julgar necessária a convocação de um
concílio ecumênico.
O próprio João XXIII respondeu a esta pergunta no discurso que fêz aos cardeais
naquele 25 de janeiro de 1959, ao anunciar pela primeira vez o Concílio. Não há
melhor exposição do que suas próprias palavras:
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"Se o bispo de Roma estende o seu olhar
sobre o mundo inteiro,
de cujo governo espiritual foi feito responsável
pela divina missão que lhe foi confiada,
que espetáculo triste não contempla
diante do abuso e do comprometimento
da liberdade humana que,
não conhecendo os céus abertos
e recusando-se à fé em Cristo Filho de Deus,
redentor do mundo e fundador da Santa Igreja,
volta-se todo em busca dos pretensos
bens da terra,
sob a tentação e a atração
das vantagens da ordem material
que o progresso da técnica moderna
engrandece e exalta.
Todo este progresso,
enquanto distrai o homem
da procura dos bens superiores,
debilita as energias do espírito,
com grave prejuízo
daquilo que constitui
a força de resistência da Igreja
e de seus filhos aos erros,
erros que,
no curso da história do Cristianismo,
sempre levaram à decadência espiritual e moral
e à ruína das nações.
Esta verificação desperta no coração
do humilde sacerdote
que a divina providência conduziu
a esta altura do Sumo Pontificado
uma resolução decidida
para a evocação de algumas formas antigas
de afirmações doutrinárias
e de sábias ordenações
da disciplina eclesiástica que,
na história da Igreja,
em épocas de renovação,
deram frutos de extraordinária eficácia
para a clareza do pensamento
e para o avivamento da chama
do fervor cristão.
Veneráveis irmãos e diletos filhos!
Pronunciamos diante de vós,
por certo tremendo um pouco de emoção,
mas ao mesmo tempo
com humilde resolução de propósito,
o nome e a proposta de celebração
de um Concílio Ecumênico
para a Igreja Universal".
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Este texto é muito importante, porque mostra que João XXIII, ao ter convocado o
Concílio Vaticano II, não estava pensando, pelo menos de modo principal, nem na
unidade dos cristãos, nem na reforma litúrgica, nem em outros temas específicos. Ele
estava na realidade aflito diante do triste espetáculo do homem contemporâneo,
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"distraído da busca dos bens superiores,
envolvido com os bens da terra,
que o progresso da técnica
engrandece e exalta".
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Não era a primeira vez que um papa apontava a preocupação da Igreja perante um fato
tão grave e para o qual a própria humanidade nele envolvida vinha perdendo, a cada
geração, cada vez mais a capacidade de apreciá-lo em seu justo significado. Na sua
mensagem de Natal de 1953, Pio XII havia abordado este problema com a mesma
clareza de proporções que em 1959 levaria João XXIII a convocar o Concílio:
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"O moderno progresso técnico,
em suas múltiplas aplicações,
com a absoluta confiança que infunde
e com as inexauríveis possibilidades
que promete,
estende diante dos olhos do homem
de nossa época
uma visão tão vasta
que para muitos
passa a ser confundida
com o próprio infinito",
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disse na época Pio XII.
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"A conseqüência deste fato
é que os homens passam a atribuir
a estas realidades
uma autonomia impossível e,
não obstante isso,
esta suposta autonomia
passa a se constituir
no fundamento de uma concepção
de vida e do mundo
que consiste em:
A. Considerar como o mais alto
valor do homem e da vida humana
extrair o maior proveito possível
das forças e dos elementos naturais;
B. Fixar como objetivos preferenciais
a todas as demais atividades humanas
o desenvolvimento de novas tecnologias
de produção de bens materiais;
C. Colocar nestes processos
a perfeição da cultura
e da felicidade terrena.
Qualquer um poderá, porém,
ver que um mundo conduzido desta maneira
não pode mais dizer-se
iluminado por aquela luz,
nem possuído daquela vida
que o Verbo de Deus,
esplendor da glória divina,
fazendo-se homem,
veio trazer aos homens".
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No Natal de 1961 João XXIII retomou novamente o mesmo assunto e, na Bula
Humanae Salutis voltou a expor as causas da convocação do Concílio Ecumênico,
dizendo que o que o preocupava era
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"o gravíssimo estado
de indigência espiritual da humanidade,
por cujos bens ela já nem anseia
senão muito debilmente,
enfraquecida pela procura
quase exclusiva dos gozos terrenos
que o progresso põe,
com grande facilidade,
ao alcance de todos".
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No pensamento de João XXIII, esta foi a preocupação fundamental por trás de seu
propósito de convocar o Vaticano II. Resta, porém, perguntar ainda o que ele esperava
concretamente que o Vaticano II fizesse para responder a tão grave problema.
João XXIII quis também ser claro quanto ao que pensava a este respeito. Repetidas
vezes, em vários pronunciamentos que antecederam o Concílio, disse o que esperava
que o Concílio fizesse. No dia 14 de novembro de 1960, por exemplo, João XXIII
explicava que o Concílio não estava sendo convocado para discutir algum ou alguns
pontos específicos da doutrina cristã, como havia sido o caso dos vinte concílios
anteriores. Ao contrário, a problemática do mundo contemporâneo era tal que exigia de
um Concílio Ecumênico uma tarefa que não havia sido exigida dos anteriores:
disse então João XXIII,
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"num mundo de fisionomia
profundamente mudada,
no meio das situações e dos perigos
da procura quase exclusiva
dos bens materiais,
no esquecimento
ou no enfraquecimento
dos princípios da ordem espiritual
e sobrenatural
que caracterizavam a penetração
e a extensão da civilização cristã
através dos séculos,
mais do que tal ou tal ponto de doutrina,
trata-se de repor em todo o seu valor
e em toda a sua luz
a substância do pensamento
e da vida humana e cristã,
de que a Igreja é depositária
e mestra pelos séculos".
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Segundo esta passagem, pois, o objetivo do Concílio não seria discutir um ou outro
ponto de doutrina, mas sim
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"repor em toda a sua luz
a substância do pensamento
e da vida cristã".
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