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A explicação apresentada do que seja a humildade é concordante com
uma definição finamente precisa dada por Hugo de São Vitor no
Opúsculo sobre os Frutos da Carne e do Espírito. Segundo ele a
humildade é
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"Uma disposição voluntária da mente
proveniente da intuição
de sua condição de criatura
e da condição do Criador".
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"Humilitas est
ex intuito propriae conditionis,
vel Conditoris,
voluntaria mentis inclinatio".
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Esta disposição da mente, conseqüente da consciência de ser apenas
uma criatura e não um deus, manifesta-se no homem principalmente
através de três sinais. Estes sinais podem servir- nos como
auxílio para exemplificar mais claramente o que significa a virtude da
humildade, na medida em que uma causa pode ser conhecida pelos seus
efeitos. Eles podem servir-nos também para que, por meio deles,
possamos avaliar o quanto possuímos efetivamente desta virtude. Os
três sinais principais pelos quais se manifesta a humildade no homem
são os seguintes:
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Uma reverência espontânea para com aquilo que é por natureza ou por
referência superior ao homem, como o são Deus, as coisas sagradas
ou mesmo a lei moral natural.
Um respeito incondicional por qualquer ser humano.
Um desejo profundo e constante de aprender, principalmente as coisas
mais elevadas.
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Todas estas manifestações são sinais de humildade por serem uma
conseqüência imediata da consciência de nossa condição de criatura
e da condição do Criador.
Aqueles que tem consciência de serem apenas uma criatura devem
necessariamente com isto reconhecerem que eles não são os entes mais
importantes do Universo, e que é ilegítima a pretensão de qualquer
homem que quisesse governar segundo o seu capricho os demais homens e
até toda a ordem cósmica, se isto lhes fosse possível. Apesar de
fantástica, esta é uma pretensão muito comum nos homens orgulhosos,
e se eles não a exercem ou não pensam nela diretamente nestes termos
é apenas por uma questão de impossibilidade física ou social, e não
porque não se julgam no direito de desempenharem tal papel, que de
fato o exercem o tanto quanto lhes é concedido fazê-lo em suas
famílias, em seu trabalho, nos meios, enfim, em que vivem. O
homem humilde, porém, reconhece que o seu capricho não pode ser a
lei pela qual deve ordenar-se o Universo à sua volta; daí a
facilidade com que eles reconhecem a existência de uma lei moral
natural que lhes é superior, e a reverência que tem por Deus, que
associam espontaneamente com a fonte de onde surge a ordem cósmica e
moral, e pelas coisas que se apresentam diante deles como sagradas,
por terem percebido nelas alguma associação com o divino.
O respeito incondicional por todos os seres humanos é uma exigência
da humildade porque aqueles que têm a consciência de serem apenas uma
criatura humana e não um deus são levados a reconhecer que a dignidade
humana que eles possuem é essencialmente a mesma que a presente em
todos os demais homens independentemente de quaisquer condições
circunstanciais. O homem rico que não trata o homem pobre com o mesmo
respeito com que trataria outro homem rico deverá admitir, se quiser
explicar de uma forma coerente o seu comportamento, que está agindo
como se estivesse pressupondo considerar-se uma criatura superior, ou
um deus, por ser rico; o homem erudito que não trata o analfabeto com
o mesmo respeito com que trataria outro erudito está também agindo
como se tivesse admitido o pressuposto de possuir atributos divinos,
que o tornam superior à comum natureza humana, por se tratar de um
erudito. O homem honesto que nutre vingança ou mesmo sentimentos de
desrespeito pelo criminoso está se colocando em um plano superior ao da
natureza que o homem criminoso também possui; ele não se julga apenas
no dever de fazer cumprir a justiça tendo em vista ao bem comum da
sociedade, mas também no direito de desprezar um ser que possui a
mesma natureza que ele; só poderia fazer isto coerentemente se
admitisse agir tendo como pressuposto ter-se atribuído uma natureza
superior à do criminoso, a qual, todavia, objetivamente falando, é
essencialmente a mesma natureza humana para ambas estas pessoas. O
homem que desrespeita aquele que o desrespeitou primeiro está agindo
como quem é tomado de uma indignada surpresa por ter sido ultrajado em
sua natureza superior que ele cultua como a nenhuma outra, como se nele
houvesse algo de essencialmente superior a toda a natureza humana; ele
se julga no direito indiscutível de desprezar outra natureza humana de
um modo como se tratam as coisas dotadas de uma dignidade inferior;
age, portanto, tal como agiria se tivesse explicitamente admitido o
pressuposto de ser superior à natureza humana que ele não pode
objetivamente negar ao seu adversário. Em todos estes exemplos o
homem orgulhoso está agindo de um modo que só poderia ter alguma
explicação lógica na hipótese dele estar admitindo ser dotado de
atributos divinos, se é que um deus nestas circunstâncias escolheria
agir desta forma. O homem humilde, porém, diante de uma ofensa ou
de uma injustiça não nega a realidade da ofensa ou da injustiça, se
ela de fato existe; não se crê no direito, entretanto, de
desrespeitar o agressor como se o faria com um ser inferior, nem sequer
no íntimo de sua alma. Limita-se, se necessário, a tomar as
providências tecnicamente cabíveis para que os seus direitos não
sejam lesados, sem colocar-se, porém, em uma situação de superior
desprezo diante do autor da ofensa. No caso de ser um pai, um
educador ou alguém legitimamente atribuído de um ofício que exija
como um dever que em certas circunstâncias, para o bem do outro, e
não para colocar-se em um pedestal, seja utilizada alguma repreensão
mais forte, o fará apenas por motivos técnicos e não por sentir-se
desrespeitado, e o fará num contexto em que poderá notar-se bem a
racionalidade e a ponderação da repreensão empregada em vista do
objetivo de promover o bem do repreendido, uma autêntica ausência do
desejo de ofender ou desprezar o outro e uma verdadeira motivação de
fazer o bem. O homem humilde não desrespeita sua esposa, seu pai ou
sua mãe, seu empregado, seu patrão, seu irmão, ou qualquer outro
ser humano, mesmo se desrespeitado de fato ou presumidamente por eles.
Limita-se, se necessário, a explicar suas razões ou a providenciar
a garantia de seus direitos por canais racionais, sem atribuir-se o
direito de poder ofender ou agredir alguém a ser tratado como inferior
por ter sido por ele ofendido. O homem humilde, enfim, consciente da
dignidade humana que tanto ele como os demais homens condividem,
respeita-a incondicional e integralmente segundo o mandamento de
Cristo que diz:
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"Ouvistes o que foi dito
aos antigos:
`Não matarás',
pois quem matar responderá em juízo.
Eu, porém, vos digo
que quem se irar contra seu irmão
será levado a juízo;
quem lhe disser:
`Estúpido',
será levado à barra do tribunal;
e quem lhe disser:
`Desgraçado'
será réu do fogo do inferno.
Se estiveres, pois,
para apresentar a tua oferta ao pé do altar
e ali te recordares de que teu irmão
tem qualquer coisa contra ti,
deixa a tua oferta diante do altar
e vai primeiro reconciliar-te
com teu irmão;
voltarás, então,
para apresentares a tua oferta".
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O respeito incondicional ao semelhante, proveniente da consciência
que o homem tem de ser portador apenas da dignidade humana que qualquer
outro homem incondicionalmente também possui, é, assim, o segundo
sinal pelo qual se manifesta a humildade.
O desejo de aprender provém, no homem humilde, da consciência de
que, como criatura, não só não possui a onisciência divina, como
também não possui a perfeição da bondade divina. Em princípio
deveria ser muito claro para todos que ninguém é portador da
onisciência divina. Todos os homens, de fato, sabem que ignoram
praticamente a totalidade de tudo aquilo que pode ser conhecido. O
problema surge quando, na prática, a maioria dos homens age como se o
que eles desconhecessem fossem apenas os detalhes do conjunto da
realidade cognoscível, tendo porém uma perfeita ciência da
ordenação essencial do Universo e do homem dentro dela. Embora
estas pessoas admitam desconhecer os detalhes, e admitam inclusive
desconhecer a maior parte dos detalhes, agem, porém, como se a sua
mente fosse um perfeito espelho do que há de essencial na ordem
cósmica, nada necessitando aprender ou ser-lhe acrescentado a este
entendimento. Nada, pelo menos, que fosse verdadeiramente capaz de
produzir alguma diferença essencial. Neste sentido, possuem a
onisciência divina no que ela tem de mais importante; Deus os supera
apenas no conhecimento enciclopédico dos detalhes da criação, não
porém no conhecimento das linhas mestras do seu plano criador. É
evidente, porém, que quem pensa ou age com a coerência de quem
estivesse partindo de pressupostos de tal natureza terá muito pouco
interesse em aprender. Sua motivação para aprender será apenas
circunstancial; ela dirá respeito apenas a alguns detalhes eventuais,
dos quais ele admite não ter a obrigação de conhecê-los a todos.
Ele procurará aprender estes detalhes que reconhece ignorar quando o
conhecimento dos mesmos, pelas contingências da vida, se tornar
necessário para o êxito de seus empreendimentos pessoais. Costuma
ocorre também que um homem como este julgue ser alguém essencialmente
honesto e justo, não necessitando de progredir na vida das virtudes,
a não ser, talvez, em um ou outro pequeno detalhe, já que ninguém
pode ser inteiramente perfeito. Deste modo, vemos tratar-se de
alguém que se julga suficientemente rico de conhecimento e de virtude e
que, se ouve falar da graça, fonte tanto da virtude como da
verdadeira sabedoria, não saberia dizer no que ela poderia vir a
ser-lhe verdadeiramente útil. Julgando-se assim tão bem dotado em
bens da alma, não pode evidentemente possuir grandes motivações para
buscar qualquer aprendizado mais profundo. Às vezes, mas não
necessariamente, sua verdadeira motivação vital é a busca da riqueza
material, de que pode considerar-se injustamente pobre e carente. O
homem humilde, ao contrário, tendo consciência de suas verdadeiras
condições, reconhece ser um indigente de graça, virtude e
conhecimento e busca, por uma necessidade intrínseca e constante,
estes bens com avidez e interesse. O homem humilde, por este motivo,
busca avidamente aprender quer se lhe ofereça ou não a oportunidade de
fazê-lo; a consciência de sua indigência é tão clara que se o
conhecimento não se lhe apresenta ele irá buscá-lo onde quer que
seja possível encontrá-lo. Ele não depende da escola ou do
professor para aprender, mas para facilitar o seu trabalho, que ele
irá empreendê-lo de qualquer modo. Estas são, efetivamente, as
características que Santo Atanásio descreve na biografia de Santo
Antão, ao narrar seu procedimento logo após a sua conversão:
diz Atanásio escrevendo sobre Santo Antão,
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"ainda quando jovem,
que havia na aldeia um ancião
que desde a sua juventude
levava na solidão uma vida de oração.
Quando Antão o viu,
`teve zelo do bem',
e se estabeleceu imediatamente
na vizinhança da cidade.
Desde então,
quando havia em alguma parte
uma alma esforçada,
ia, como sábia abelha,
buscá-la,
e não voltava sem havê-la visto.
Só depois de haver recebido,
por assim dizer,
provisão para a sua jornada de virtude,
regressava.
Assim vivia Antão
e era amado por todos.
Submetia-se com toda a sinceridade
aos homens piedosos que visitava,
e se esforçava por aprender
aquilo que em cada um avantajava em zelo
e prática religiosa.
Observava a bondade de um,
a seriedade de outro na oração;
estudava a aprazível quietude de um
e a afabilidade de outro;
fixava sua atenção nas vigílias observadas por um
e nos estudos de outro;
admirava um por sua paciência,
e outro pelo jejuar e dormir no chão;
considerava atentamente a humildade de um
e a paciência e a abstinência de outro,
e em uns e outros notava especialmente
a devoção a Cristo e o amor que mutuamente se davam.
Então se apropriava
do que havia obtido de cada um
e dedicava todas as suas energias
a realizar em si as virtudes dos outros.
Não tinha disputas com ninguém de sua idade,
nem tampouco queria ser inferior a eles no melhor;
e ainda isto fazia de tal modo
que ninguém se sentia ofendido,
mas todos se alegravam com ele.
E assim todos os aldeões
e os monges com os quais estava unido
viram que classe de homem era ele
e o chamavam de amigo de Deus,
estimando-o como a um filho ou irmão".
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Santo Atanásio
Vida de S. Antão, C. 3-4
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Esta é a atitude naturalmente espontânea daqueles que fazem uma justa
estimação de si mesmos como criaturas. Em oposição a eles, já
tivemos a oportunidade de conhecer pessoas que não só não se
interessam por aprender como inclusive recusam-se de modo deliberado e
sistemático a dedicar-se a qualquer forma de aprendizado para com isto
não inibirem suas potencialidades criativas a que dão um incalculável
valor. Com isto eles próprios reconhecem, como deuses que se
supõem, que não estão no mundo para aprender, mas para criar, o
que é o mesmo que se auto atribuírem uma psicologia própria dos
deuses.
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