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"Sobre os teus muros,
ó Jerusalém, puz guardas.
Eles não se calarão para sempre,
nem de dia, nem de noite.
Vós os que vos lembrais do Senhor,
não vos caleis,
e não estejais em silêncio diante dEle,
até que restabeleça Jerusalém,
e a ponha por objeto de louvor na Terra".
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Jerusalém, cidade santa e cidade do Santo, é a santa Igreja,
cujo rei, saindo em peregrinação, constituíu guardas e sentinelas
para que a guardem de dia e de noite e a defendam do mal. Nela há,
portanto, diversas torres de vigia e diversas sentinelas, ou melhor,
diversas ordens de sentinelas que presidem nas diversas partes da
cidade, afugentam os inimigos e guardam os cidadãos.
Na primeira torre de vigia reside a casa apostólica, a qual, assim
como preside a todos, assim também a todos deve prover. Na segunda
torre de vigia estão os patriarcas; na terceira os arcebispos; na
quarta os bispos; na quinta os arcediagos; na sexta os arciprestes
ou, como em alguns lugares são chamados, os decanos; na sétima os
presbíteros. Em todas estas ordens, aquelas cuja dignidade forem
mais sublimes também serão aquelas cujos deveres serão maiores quanto
à guarda da cidade. Quanto às torres, estas são os ofícios
próprios de cada ordem. Em outras palavras, a torre dos presbíteros
é o presbiterado; a torre dos arciprestes é o arquipresbiterado; a
torre dos arcediagos é o arquidiaconato; e assim quanto ao demais.
A Sagrada Página nos testemunha, porém, que algumas vezes ocorre
que por causa dos pecados do povo um hipócrita sobe à torre do regime
sagrado e, aí colocado, em vez de guardar o povo, o oprime, o que
deverá ser para nós motivo de muita dor e pranto. Por este mesmo
motivo é que o Senhor dizia, por meio de Oséias:
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"Estes reinaram, mas não por mim;
foram príncipes, mas eu não os conheci".
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O Senhor se queixa também de tais homens por meio de Isaías,
dizendo:
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"Suas sentinelas estão todas cegas,
todas se mostraram ignorantes;
são cães mudos, que não podem ladrar,
que vêem coisas vãs, que dormem
e amam os sonhos.
E, como cães impudentíssimos,
não conheceram a saciedade.
Os próprios pastores ignoraram a inteligência.
Todos declinaram para o seu caminho,
desde o mais alto até o mais baixo.
`Vinde', dizem eles,
`bebamos vinho,
e enchamo-nos até à ebriedade e,
como hoje,
assim faremos amanhã,
e muito mais'".
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Agora, pois, despedindo-nos destes a quem Deus não enviou, nem
admitiu, antes demitiu, voltemo-nos aos que presidem bem, e vejamos
como devem ser, como devem presidir e como devem aproveitar. Mas como
encontraremos, irmãos, uma sentinela idônea, se o próprio Senhor
tem dificuldade de a encontrar, quando diz:
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"A quem enviarei,
e quem irá por nós?"
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E também, no Evangelho:
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"Quem julgas que é o despenseiro
fiel e prudente
que o Senhor estabeleceu
sobre as pessoas de sua casa,
para dar a cada um a seu tempo a ração de trigo?"
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É o próprio Senhor, que falando no Apóstolo, pelo Apóstolo nos
ensina como deve ser a sentinela, dizendo:
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"É necessário que o bispo seja irrepreensível,
esposo de uma só mulher,
sóbrio, prudente, modesto,
púdico, hospitaleiro, capaz de ensinar,
não dado ao vinho, não violento, mas moderado,
não litigioso, não cobiçoso,
que saiba governar bem a sua casa,
que mantenha seus filhos na submissão
com toda a castidade.
Se alguém, de fato,
não souber governar a sua casa,
como poderá cuidar da Igreja de Deus?
Que não seja neófito",
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isto é, noviço,
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"para que não ocorra que,
inchado pela soberba,
venha a cair na condenação do demônio".
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Pertence ao seu tempo o que o Apóstolo diz a respeito do bispo ser
"esposo de uma só mulher", sabendo manter "seus filhos na
submissão", pertence ao seu tempo, não ao presente, nem poderia
sê-lo.
Se a sentinela, porém, à qual podemos chamar de pastor ou prelado,
é dada ao vício, não deve ser repreendida pelos seus súditos. A
este respeito nos diz Isidoro:
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"Há alguns que julgam
os seus prelados perversamente,
na medida em que mais os tiverem visto
ocupados com os cuidados terrenos,
ou se eles próprios pouco conhecerem
das coisas espirituais".
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Os prelados devem, portanto, ser julgados por Deus, e não acusados
pelos seus súditos, a exemplo do Senhor que por si mesmo derrubou com
seu próprio açoite as mesas dos vendedores e dos banqueiros. Ou
também, conforme está escrito:
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"Deus levanta-se no conselho divino,
julga no meio dos deuses".
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O prelado deve ser repreendido pelos seus súditos se desviar-se da
fé. No que diz respeito, porém, aos costumes reprováveis, o povo
mais deve tolerá-lo do que puní-lo. Deve-se saber também que
assim como pelos costumes reprováveis o prelado não deve ser acusado
pelos súditos, assim também não deve ser desprezado nas coisas boas
que ensinar e ordenar. Por isto é que o Senhor nos diz no
Evangelho:
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"Sobre a cátedra de Moisés
sentaram-se os escribas e fariseus.
Observai, pois, e fazei tudo
o que eles vos disserem;
mas não imiteis as suas ações,
porque dizem e não fazem".
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Examinemos, porém, irmãos caríssimos, o que os guardas das
cidades terrenas e mundanas costumam fazer em seu trabalho, e então
talvez poderemos compreender mais claramente o que deverão fazer os
guardas espirituais da santa Igreja. Os guardas e as sentinelas das
cidades costumam, de fato, principalmente em tempo de guerra,
sentar-se no alto, vigiar, andar, principalmente à noite, à roda
de toda a cidade, tocar a trombeta, soprar a flauta, tocar a cítara
e cantar.
Assim também, diletíssimos, precisamente assim devem fazer as
sentinelas de nossa cidade. Devem sentar-se no alto, pela
conversação espiritual, para que sua conversação não esteja na
terra, mas no céu. Devem sentar-se não na carne, mas no
espírito, para que a sua alma não se humilhe no pó e o seu ventre
não se una à terra, para que aqueles que evangelizam Sião subam ao
monte excelso e sejam
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"formosos sobre os montes
os pés dos que anunciam e pregam a paz,
dos que anunciam o bem,
dos que pregam a salvação,
dos que dizem a Sião:
`O teu Deus reina'".
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Devem vigiar em todo o seu redor, dirigindo seu olhar à direita,
para que não sejam enganados pela prosperidade; à esquerda, para que
não sejam abatidos pela adversidade; para trás, pela útil memória
das coisas passadas; para a frente, pela providência das coisas
futuras. Devem vigiar em toda a sua volta, para que não suceda que o
inimigo chegue de improviso, quebre as portas ou abra o muro,
incendeie as casas, derrube as torres, mate os cidadãos, carregue os
despojos, destrua a cidade e deporte o povo para Babilônia. Devem
circundar toda a cidade, isto é, todo o povo a si confiado, e
investigar se, caindo a pedra de alguma virtude, o muro da disciplina
aos poucos não perde a sua firmeza. E, se acontecer que seja isto o
que se encontre, devem-no reparar o tanto mais rapidamente quanto
possível. Tudo isto o cumpriu muito bem aquele que disse:
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"Além destas coisas,
que são exteriores,
a minha preocupação quotidiana
é a solicitude por todas as igrejas".
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Devem tocar as trombetas pela terrível pregação. Algumas trombetas
são de madeira, outras são de terra, outras de chifre, outras de
bronze. A trombeta de madeira, colocada no fogo, facilmente se
queima. A trombeta de chifre quebra-se com facilidade pela
percussão; ela procede da carne, mas excede a carne. A trombeta de
bronze é forte, e não cede facilmente quando percutida. Por causa
destas coisas a trombeta de madeira significa muito bem a pregação
daqueles que são facilmente vencidos pela tentação; a trombeta de
terra, a pregação daqueles que são abatidos pelas adversidades; a
trombeta de chifre, a pregação daqueles que vencem as tentações; a
trombeta de bronze a pregação daqueles que perseveram invencíveis em
meio às adversidades.
As sentinelas devem soprar a flauta pela branda consolação. É
conveniente, efetivamente, que à aspereza e à dureza do terror se
siga a brandura da consolação, para que pela suavidade seguinte se
modere a aspereza precedente. Aos pregadores ordena-se que façam uso
desta flauta ali onde está escrito:
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"Dizei aos pusilânimes:
confortai-vos".
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As sentinelas devem também tocar a cítara pelas boas obras. A
cítara, de fato, por ser tocada pelos dedos para produzir o som, é
corretamente figura da boa obra. Esta cítara possui seis cordas, que
são as seis obras de misericórdia:
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"Tive fome, e me destes de comer;
tive sede, e me destes de beber;
era peregrino, e me recolhestes;
nu, e me vestistes;
enfermo, e me visitastes;
estava na prisão, e me fostes visitar".
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As sentinelas devem igualmente cantar pelo louvor e pela ação de
graças. Sempre, de fato, devem dar graças ao Senhor, dispensador
de todos os bens.
E todas estas coisas as santas sentinelas o devem fazer de dia e de
noite, isto é, na prosperidade e na adversidade. De onde que o
próprio Isaías, de quem são as palavras propostas com as quais
iniciamos, disse de si mesmo:
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"Na atalaia do Senhor eu estou,
nela permaneço incessantemente
durante o dia;
em minha vigilância eu estou,
nela permaneço todas as noites",
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até, diz ainda Isaías,
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"que restabeleça Jerusalém,
e a ponha por objeto de louvor na terra".
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Deus põe primeiro, pela graça, o louvor da santa Igreja no mundo;
depois, pela glória, põe-na no céu por objeto de louvor. Mas
até que a ponha por objeto de louvor no céu é necessário que as suas
santas sentinelas a vigiem no mundo para protegê-la. Sabemos, mo
entanto, que
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"Se o Senhor não guardar a cidade,
é em vão que vigia a sentinela".
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Roguemos, pois, ao Senhor que Ele mesmo nos guarde como à pupila
dos seus olhos, para que pela graça que nos tiver sido concedida no
tempo, com Ele possamos reinar na eternidade.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, Nosso
Senhor, que Deus, bendito pelos séculos.
Amén.
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