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Com o que expusemos manifesta-se que a concepção de educação
segundo uma orientação dirigida à sabedoria e à contemplação como
ao seu fim último não é uma concepção pessoal de Santo Tomás de
Aquino, nem sequer de Aristóteles.
Nem poderia sê-lo, pois, conforme vimos demonstrado no capítulo
anterior, o fim último do homem não pode ser outro senão este: o
homem, por natureza, tende para a contemplação (90). Os
numerosos exemplos históricos, todos os quais tiveram sua influência
na obra de Tomás de Aquino, não fazem mais do que ilustrar melhor
as afirmações de J. Pieper de que fizemos uso na introdução deste
trabalho, agora um pouco melhor compreensíveis:
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"O homem é um ser tal
que a sua realização,
a sua suprema felicidade,
se encontra na contemplação.
Esta sentença é de extraordinária relevância
para a educação:
ela expressa toda uma concepção cósmica,
especialmente uma concepção
que busca as raízes da natureza humana" (91).
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Dos exemplos que trouxemos à luz, podemos notar uma diferença entre
os provenientes da filosofia grega e os provenientes da tradição
cristã. Aqueles que vieram da filosofia grega, pelo menos os que
foram aqui expostos, tenderam historicamente a uma concepção de
contemplação em que vai se aprofundando cada vez mais o caráter
abstrato do que é objeto de contemplação. Foi assim que da natureza
passamos à ordem da natureza, e da ordem da natureza passamos ao
modelo de que foi tirada esta ordem, idéias maximamente abstratas,
como a beleza em si e o bem em si.
Nos exemplos provenientes da tradição cristã, pelo menos nos que
foram aqui expostos, o que se acentuou foi o caráter universal do
objeto da contemplação: uma visão plenamente manifesta que se
estende à compreensão de todas as coisas, no dizer de Hugo de São
Vitor.
Ambas estas características não são, entretanto, senão aspectos
diversos de uma só coisa. Assim é que, por um lado, as idéias
mais abstratas são ao mesmo tempo as idéias mais gerais, aquelas que
em sua universalidade abarcam o maior número ou mesmo a totalidade dos
seres, assim como o ser, que é maximamente abstrato e ao mesmo tempo
se aplica à totalidade dos entes.
Por outro lado, na mente humana, uma compreensão que abarque
simultaneamente muitas ou mesmo a totalidade de todas as coisas não
pode se dar sem o uso de uma grande capacidade de abstração.
Na contemplação, tal como descrita nos textos filosóficos de S.
Tomás de Aquino, encontramos também ambas estas características
devido à natureza do que é o objeto de contemplação, isto é, a
causa primeira do ser de todas as coisas.
De fato, para poder ser causa primeira do ser de todas as coisas,
esta causa deverá possuir o ser de um modo mais elevado do que o
possuído por todos os demais entes de que ela é causa. Ela não
pode, por exemplo, ao contrário dos demais entes, ter o seu ser
causado, pois neste caso já não seria mais a causa primeira. Não
sendo causada, a causa primeira deve existir por si mesma e,
portanto, deverá possuir o seu ser como uma exigência interna de sua
própria natureza. O que é, porém, exigência interna da essência
de algo pertence ao próprio ser deste algo. Daqui se segue que, se a
causa primeira tem o seu ser por uma exigência interna de sua
essência, a causa primeira será, em sua essência, o próprio ser.
Ora, o ser é, dentre todas as coisas, aquilo que necessita do grau
de abstração mais elevado para poder ser apreendido.
Chama-se de abstração ao processo pelo qual compreendemos algo
mediante algumas de suas características desconsiderando ou abstraindo
de outras; assim, quando compreendemos o que é o homem abstraímos de
sua individualidade, se é Antônio ou João; quando compreendemos o
que é animal, abstraímos se é homem ou gato; quando compreendemos o
que é ser vivo, abstraímos se é animal ou planta; quando
compreendemos o que é ser, abstraímos se é animado ou inanimado.
Além do ser já não há mais abstração possível.
Por ter como seu objeto à causa primeira, que é o próprio ser por
essência, a sabedoria tende a produzir, portanto, uma contemplação
de máxima abstração.
Ademais, a sabedoria tende a produzir também uma contemplação de
máxima universalidade, em relação a nós, pelo próprio processo
pelo qual nos é exigido chegar à sabedoria.
Em relação a nós a contemplação da sabedoria é maximamente
universal porque, conforme já mencionamos, diz Tomás na Summa
contra Gentiles que o conhecimento que a sabedoria possui da causa
primeira não é o conhecimento comum que a maioria dos homens possui de
Deus (93), mas o mais perfeito e sublime dos conhecimentos
(94), porque supõe
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"muito conhecimento prévio,
praticamente todos os conhecimentos da filosofia
se ordenando ao conhecimento de Deus
que nos é dado pela sabedoria,
a sabedoria sendo a última parte da filosofia,
que só pode ser alcançada
depois de termos passado por todas as outras" (95).
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Devido ainda à própria natureza da causa primeira considerada em si
mesma, a sabedoria pode produzir uma contemplação em que a
inteligência se eleva ao seu ato mais perfeito possível.
De fato, já mencionamos que a causa primeira possui o ser de modo
mais perfeito do que o de todos os demais entes. Há, porém, uma
série de propriedades que são conseqüência necessária do ser
enquanto ser (97). Se a causa primeira, portanto, possui o ser
de modo mais perfeito do que todas as demais coisas, possuirá, por
conseqüência, estas propriedades conseqüentes ao ser também de modo
mais perfeito. Estas propriedades são a bondade, a beleza e a
inteligibilidade.
No que diz respeito à bondade, todo ser é necessariamente bom, em
algum grau, apenas por ser ente. De fato, diz-se algo ser bom por
ser desejável à vontade; a bondade é uma adequabilidade de algo à
vontade. Conforme pode ser lido no texto com que se abrem as
Quaestiones Disputatae de Veritate de Tomás de Aquino,
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"O nome bem designa
a conveniência do ente ao apetite,
conforme se diz no princípio dos Livros de Ética:
O Bem é aquilo
que todos apetecem" (98).
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Ora, as coisas são desejáveis por serem perfeitas. Todo ser,
porém, na medida em que é, supõe uma certa perfeição. Somente o
nada não pode ter perfeição alguma. Conclui-se, portanto, que a
bondade é algo que se segue ao ser, e se a causa primeira possui o ser
de um modo mais eminente do que todas as coisas, ela deve possuir
também, e de um modo mais eminente do que todas as coisas, toda a
bondade que existe em todos os seres de que ela é causa. A bondade de
cada ser não é mais do que uma parte da bondade que existe de um modo
mais pleno na causa primeira.
Mas, ademais, além de bom, todo ser é, em algum grau, apenas por
ser ente, necessariamente belo. De fato, diz-se algo ser belo por
ser contemplável, isto é, por ser possível de ser visto ou
inteligido com prazer. São ditas belas as coisas que, ao serem
vistas, agradam (99). O belo, desta maneira, assim como o bom,
diz respeito à vontade, pois quem quer que agrade, agrada à
vontade. Mas ao mesmo tempo o belo acrescenta ao bom uma ordenação
às faculdades cognitivas, pois não é dito belo aquilo que
simplesmente agrada à vontade, mas aquilo cuja apreensão agrada
(100). Esta apreensão tanto pode ser a dos sentidos como a da
inteligência. Assim, portanto, como pertence à natureza do bom que
no bom repouse a vontade, do mesmo modo pertence à natureza do belo
que a vontade repouse em sua vista ou conhecimento (101), e mais
ainda no conhecimento do que na vista, porque o conhecimento
intelectivo supera o dos sentidos. Ora, diz S. Tomás, o objeto
próprio do conhecimento intelectivo, aquilo que o intelecto apreende
por primeiro, como algo mais cognoscível do que tudo, e ao qual reduz
todas as suas apreensões, é o ser (102). Todas as atividades
cognocitivas, porém, tendem ao repouso na plena possessão de seu
objeto. Qualquer faculdade cognoscitiva, portanto, na medida em que
é exercida de modo suficientemente perfeito, encontra deleitação no
objeto que tem adequação para com ela (103). De onde que, se o
objeto próprio da inteligência é o ser, as coisas sendo
inteligíveis justamente na medida em que são, segue-se que a beleza
é conseqüência do ser e que todo ser, na medida em que é, possui
aquela adequação à vontade e à inteligência a que se denomina
beleza. Conclui-se, portanto, que a causa primeira, na medida em
que possui o ser de modo mais eminente do que todas as coisas, possui
também de modo mais eminente a beleza que existe em cada um dos seres
de que ela é causa; a beleza de cada ser não é mais do que uma
participação da beleza que existe mais plenamente na causa primeira.
Finalmente, além de bom e belo, todo ser é também, em algum
grau, apenas por ser ente, necessariamente inteligível.
Isto ocorre porque o objeto próprio da inteligência é o ser: tudo o
que é inteligível, de fato, é inteligido por redução ao ser, e
algo que totalmente não fosse não poderia ser inteligido. Todas as
coisas, pois, são inteligíveis justamente na medida em que são
ser, e, portanto, todo ser é necessariamente inteligível.
Este caráter inteligível do ser explica o caráter evidente dos
primeiros princípios da demonstração.
Já fizemos notar como todas as coisas seguem os primeiros princípios
das demonstrações, apesar dos primeiros princípios das
demonstrações, como o próprio nome parece indicar, serem mais
propriamente princípios do raciocínio e não das coisas em geral.
Por serem os primeiros princípios do raciocínio, tudo o que a
inteligência entende o entende por redução a estes primeiros
princípios. Ademais, estes primeiros princípios são os únicos
evidentes em si mesmos: eles têm para a inteligência humana uma
inteligibilidade muito maior do que as demais coisas; a verdade contida
nelas é mais brilhante do que a verdade contida nas demais coisas.
A razão deste fato é facilmente compreensível se examinarmos os
enunciados destes princípios. Diz S. Tomás que "o mais firme e o
mais certo de todos os princípios" é o princípio da não
contradição, que diz ser impossível que algo simultaneamente seja e
não seja a mesma coisa (104). Ora, este princípio, cuja
verdade resplandece como evidente mais do que a de qualquer outro, tem
essa evidência como conseqüência direta da apreensão por parte da
inteligência do ser e apenas do ser. A verdade dos demais
raciocínios é algo apreendido por redução a este princípio.
Assim, este exemplo mostra em que sentido o ser é o objeto próprio
da inteligência: o ser é, entre todas as coisas, aquilo que há de
mais inteligível, aquilo cuja adequação para com a inteligência é
maior do que tudo, aquilo cuja verdade é, para nós, mais forte e
mais brilhante.
Mas também já dissemos que nem todas as coisas são ser no mesmo
grau; as coisas podem ter o ser de um modo mais intenso ou menos
intenso.
Ora, quando o homem apreende a verdade dos primeiros princípios, o
ser a que este homem está se referindo ao fazer aquele enunciado é o
ser obtido por abstração das demais características que ele observa
nos entes à sua volta, mas é um modo de ser tal como o dos entes que
ele já viu, isto é, o modo de ser mais débil dos entes que são
causados pela causa primeira. A intensidade do ser que ele tem em
mente quando faz o enunciado dos primeiros princípios é a intensidade
do ser dos entes que ele conhece à sua volta no mundo sensível. Esta
intensidade, porém, já é suficiente para fazer resplandecer como
coisa evidente os primeiros princípios da demonstração.
Mas se ele pudesse ver o ser da causa primeira, muitíssimo mais
intenso do que o ser de todas as coisas, quando ele enunciasse o
princípio da não contradição, este princípio teria uma força
inteligível desproporcionalmente mais intensa.
A verdade deste princípio passaria a resplandecer à inteligência
humana como uma passagem da noite, iluminada pela Lua, para o dia,
que é iluminado diretamente pela luz do Sol.
O homem veria nele não só a evidência dos primeiros princípios das
demonstrações, mas a evidência da necessidade do ser da causa
primeira, com mais força do que vê a verdade dos primeiros
princípios.
A causa primeira, portanto, é dotada de uma inteligibilidade
fortíssima, da qual a inteligibilidade dos primeiros princípios no
homem é um pálido reflexo; ela é mais eminente, em sua
inteligibilidade, do que a inteligibilidade que existe em todos os
seres de que ela é causa. Toda a verdade que existe nas coisas, todo
o espetáculo que se observa na ordem do cosmos, que é um espetáculo
para a inteligência, não é mais do que uma participação imperfeita
do espetáculo muito mais eminente que é a causa primeira para a
inteligência que a puder alcançar.
Todas as perfeições que se acham espalhadas em todas as coisas e que
são conseqüências do ser que em cada uma delas é causado pela causa
primeira estão, assim, presentes de um modo muito mais eminente e
perfeito nesta mesma causa primeira, que é, deste modo, como se
fosse o próprio modelo de onde todas as coisas foram feitas. Em um
só todo ela contém em grau mais elevado todas as possibilidades de
perfeição que estão esparsas em todos os seres.
Quem conhece algum ser, por mais perfeito que seja, pode depois
admirar-se pelo conhecimento de algum outro, pois nenhum ser causado
pode esgotar as possibilidades de perfeição que existem na causa
primeira. Todo ser causado, portanto, pode ter outro ser causado
mais perfeito ou diferentemente perfeito; nenhum ser causado pode, por
conseqüência, esgotar o conhecimento de quem quer que seja. Mas
quem pudesse alcançar a causa primeira veria que o conhecimento de
qualquer outra coisa fora dela não poderia lhe acrescentar nada de
essencialmente novo ou de admirável, pois qualquer que fosse sua
perfeição ou inteligibilidade esta seria sempre uma parte daquela que
está presente inteiramente na causa primeira.
De tudo isto pode-se concluir, portanto, que a causa primeira é o
objeto de conhecimento que, em sua própria essência, e não apenas
em relação a nós, isto é, não apenas pelo processo pelo qual nos
é necessário chegar à sabedoria, é capaz de produzir na
inteligência o grau mais eminente possível de contemplação.
Tendo chegado a este ponto, porém, é necessário fazer uma
importante observação. Isto que acabamos de descrever, este
conhecimento em que encontramos uma inteligibilidade que em sua
distância da inteligibilidade dos demais conhecimentos guarda uma
analogia com a distância entre a luz que há no dia e a que há na
noite, este conhecimento não é a contemplação da sabedoria de que
fala S. Tomás de Aquino.
A sabedoria de que fala Santo Tomás de Aquino, de fato, é o
conhecimento mais perfeito e sublime que há entre todos os
conhecimentos do homem (105), ao qual se ordenam os conhecimentos
de todas as demais ciências, e ao qual não se chega senão após se
ter passado por todas elas (106).
Ora, este não é o conhecimento da causa primeira que acabamos de
descrever. Este conhecimento que acabamos de descrever não necessita
da ordenação prévia de todas as demais ciências; não necessita
sequer da ordenação de uma só; ele supõe apenas uma apreensão
direta da causa primeira tal como ela é em si mesma; esta forma de
conhecimento é a que seria a mais plena de todas as sabedorias, a
verdadeira sabedoria, a sabedoria propriamente dita, e não aquela
para a qual se requer o conhecimento de todas as demais ciências.
A sabedoria que descreve Tomás de Aquino nos comentários a
Aristóteles é apenas um conhecimento indireto da causa primeira à
qual se ordenam todas as demais ciências; é apenas uma fagulha da
verdadeira sabedoria; a verdadeira sabedoria, diziam os antigos
filósofos gregos na pessoa de Pitágoras, é algo que pertence de
modo próprio apenas aos deuses; o homem, enquanto tal, pode no
máximo, pelo cultivo daquela outra sabedoria, tornar-se um amigo da
verdadeira sabedoria, isto é, um filósofo, nome inventado por
Pitágoras que em grego significa amigo da sabedoria:
diz Santo Agostinho,
|
"segundo dizem,
criou a palavra filosofia.
Perguntaram-lhe certa vez
que profissão tinha;
respondeu ser filósofo, isto é,
amigo da sabedoria,
visto parecer-lhe arrogantíssimo
proclamar-se sábio" (107).
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A isto acrescenta Hugo de São Vítor:
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"Pitágoras foi o primeiro
que chamou filosofia
ao estudo da sabedoria,
preferindo ser conhecido como filósofo
do que como sábio,
e é muito belo que ele tivesse chamado
aos que buscam a verdade
de amantes da sabedoria em vez de sábios,
porque a verdade é tão escondida
que por mais que a mente
se disponha à sua busca,
ainda assim é difícil que ela possa
compreender a verdade tal qual ela é" (108).
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Que mais se pode dizer a isto, senão concluir com as palavras de S.
Tomás de Aquino comentando a Aristóteles, já citadas na
introdução deste trabalho?
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"A vida especulativa é encontrada
perfeitissimamente
nas substâncias separadas;
nos homens, todavia,
apenas imperfeitamente
e como que participativamente.
E, no entanto,
este pouco é maior
do que todas as coisas que há no homem" (109).
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Referências
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(90) Lauand, L.J: O que é a Universidade; o.c., pg.77.
(91) Pieper, Josef: in Lauand, L. J.: "O que é
Universidade"; o.c., pg. 69.
(93) Summa contra Gentiles, III, 38. (94) Idem, I,
2. (95) Idem, I, 4.
(97) Quaestiones Disputatae de Veritate, Q. I, a.1.
(98) Idem, Q. I, a.1.
(99) Summa Theologiae, Ia., Q.5 a.5 ad 1. (100)
Idem, Ia IIae, Q.27, a.1, ad 3. (101) Idem, loc. cit..
(102) Quaestiones Disputatae de Potentia, Q.1 a.1.
(103) Raeymaeker, L.: Metaphysica Generalis; Louvain,
E. Warny, 1935; vol. 1, pgs. 84-5.
(104) In libros Metaphysicorum Expositio, L. IV, l. 6, 597.
(105) Summa contra Gentiles, I, 2. (106) Idem, I, 4.
(107) Santo Agostinho: A Cidade de Deus, L. VIII,
C.2; São Paulo, EDAMERIS, 1964; pg. 388.
Também: PL 41, 225.
(108) Hugo de São Vitor: Didascalicon, L. I, C. 3;
PL 176, 742-3.
(109) In libros Ethicorum Expositio, L.X, l.11,
2110.
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