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A guerra é o ato pelo qual um povo resiste à injustiça ainda que à custa do seu
próprio sangue. Mas a guerra, assim como as mais santas coisas, pode-se desviar do seu fim
e tornar-se um instrumento de opressão. Eis o motivo por que para se poder julgar do seu
caráter num qualquer caso especial, precisamos conhecer o seu fim.
Até as cruzadas, a defesa do território e do governo legítimo de cada povo ocupara
quase exclusivamente e avigorara a santidade das armas. O soldado morria nas fronteiras da
pátria e este nome era o que mais exaltava o seu coração no momento do combate. Quando
porém Gregório VII começou a despertar na mente dos seus contemporâneos a idéia de uma
república cristã, alargou-se o horizonte da dedicação assim como o da fraternidade. Nasceu
a cavalaria; a guerra tornou-se não somente um serviço cristão como também um serviço
monástico. Tornou-se claro que toda alma batizada ficava sendo a serva do direito contra a
força. Como o caçador armado e pronto presta o ouvido junto a uma ávore procurando saber
de que lado está o vento, assim a Europa de então, de lança em riste e com o pé no estribo,
aplicava toda a sua atenção em ver de que lado partia o som da injúia. Quer ele partisse do
trono, quer da torre de um simples castelo, quer fosse preciso atravessar os mares para a
alcançar, quer se achasse só à distancia que um cavalo percorre, ninguém se deixava prender
nem pelo tempo nem pelo lugar, nem pelo perigo, nem pela dignidade.
Entre as causas fracas que a cavalaria cristã tomara sob a sua proteção uma havia,
entre todas sagrada, e essa era a da Igreja. Não possuindo a Igreja nem soldados nem
muralhas para se defender, estivera sempre à mercê dos seus opressores. Qualquer príncipe
que lhe quisesse fazer mal, podia fazer-lho impunemente. Apenas, porém, se constituiu a
cavalaria, logo tomou sob a sua protecção a cidade de Deus; porque em primeiro lugar a
cidade de Deus era fraca, e depois porque a causa da sua liberdade era a causa própria do
gênero humano. Estou persuadido de que hoje não existe pessoa alguma incapaz de apreciar
esta ordem de sentimentos. A glória do nosso século, entre as suas muitas misérias, está no
conhecimento de que existem interesses mais altos, mais universais do que os interesses da
família e da nação. Qual o francês que não acompanharia com os seus votos, se não com a
sua pessoa, um exército de cavaleiros atravessando a Europa em socorro da Polônia? Qual o
francês, mesmo descrente, que não conta entre os crimes de que sofre esse ilustre país, a
violência feita à sua religião, os seus bispos e padres exilados, a espoliação dos mosteiros,
o roubo das igrejas e o martírio das consciências? Se a prisão arbitrária e o encarceramento
do bispo da Polônia causaram uma tão viva comoção na Europa moderna, qual não seria a da
Europa do século treze ao saber que um embaixador apostólico fora morto à traição com um
golpe de lança?
Não era contudo este o primeiro acto de tirania de que a cristandade tinha de pedir
contas ao Conde de Toulouse. Havia muito tempo que nos países dependentes do seu.
domínio não existia segurança alguma para os católicos. Os seus mosteiros eram destruídos,
as suas igrejas saqueadas e muitas transformadas por ele em fortalezas. Foram expulsos das
suas sedes os bispos de Carpentras e de Vaison, e os católicos não conseguiam nunca que ele
lhes fizesse justiça contra os hereges; todas as empresas do erro se colocavam sob a sua
protecção, e ele ostentava pela religião esse insigne desprezo que, já por si, é num príncipe
uma tirania. Um dia em que o bispo de Orange lhe veio suplicar que poupasse os Lugares
Santos e que pelo menos se abstivesse nos domingos e dias santificados de praticar aqueles
crimes com que se não cansava de oprimir a província de Arles ele, pegando na mão direita
do prelado, disse-lhe:
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"Juro por esta mão
que não respeitarei nem os domingos
nem os dias santificados,
e que não pouparei nem as pessoas
nem as coisas eclesiásticas."
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Cartas de Inocêncio III
L.10, c.69
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Por esse tempo infestavam a França tropas sem serviço regular, que reunindo-se em bandos
numerosos, enchiam as estradas de roubos e assassinatos. Perseguidos por Felipe Augusto,
encontravam nas terras do conde de Toulouse, seu vassalo, impunidade certa, devido ao
ardor com que cooperavam nas suas empresas com as suas rapinagens e sacrílegas
crueldades. Roubavam dos tabernáculos os vasos sagrados, profanavam o corpo de Jesus
Cristo, arrancavam às imagens santas os seus ornamentos para com eles enfeitarem mulheres
perdidas; arrasavam as igrejas, espancavam e feriam os padres, a muitos esfolaram vivos.
Uma horrenda traição do príncipe deixava os seus súditos sem defesa contra uma tal
perseguição de assassinos. Quando por último o conde de Toulouse, depois de tantos crimes
de que fôra autor ou cúmplice, recebeu como amigo e cobriu de favores o assassino de
Pedro de Castelnau, excedeu os limites e chegou o momento em que a tirania, devido aos
seus próprios excessos, sucumbe por força.
Enganamo-nos muito todavia se supomos que era fácil à cristandade vencer o conde
de Toulouse. A sua posição era formidável, como bem o provaram os factos. Raimundo VII
morreu vitorioso sobre os seus inimigos depois de quatorze anos de guerras; legou o
patrimônio de seus antepassados a seu filho, que o conservou até morrer, e este grande
domínio só se veio a reunir à coroa de França pelo casamento de um irmão de S. Luiz com a
filha única do conde Raimundo VII. A força desta casa provinha de muitas causas. Tomara
grandes raízes no país pela sua antiguidade e uma bem merecida ilustração a recomendava
ao afeto dos povos. A heresia, tornando-se quase geral, formara entre o príncipe e os seus
súditos um novo laço que à medida que os apartava do resto da cristandade dava às suas
relações comuns a força de uma liga religiosa. Os vassalos de todas as categorias
participavam nos erros do seu suserano e a cobiça dos bens do clero fortalecia a sua
comunidade de idéias pela comunidade de interesses. O resto dos católicos não eram nem
bastante fervorosos nem em numero suficiente para enfraquecerem esse feixe tão unido de
que o conde de Toulouse era o laço. Ele tinha além disso por fiéis aliados da sua causa os
condes de Foix e de Comminges, o visconde de Béarn, o rei de Aragão Pedro II, cuja irmã
desposara, e sentia-se ao abrigo do lado de Guienne de que estavam de posse os Ingleses.
Felipe Augusto seu suserano, entretido com as suas disputas com a Inglaterra e com o
Império, não podia ser o chefe da cruzada e, faltando-lhe este chefe, o único a temer, o
exército dos cruzados composto de bandos desunidos não podia esperar senão vitórias
passageiras e uma desorganização natural, ainda mais rápida do que as derrotas. Senhor de
toda a linha dos Pirineus, tendo na retáguarda Aragão a defendê-lo, à direita e à esquerda
dois mares inofensivos e, de roda, um grupo de cidades fortes todas defendidas por vassalos
dedicados, o conde Raimundo tinha mil probabilidades de levar sempre vantagem aos seus
inimigos. A guerra dos albigenses era pois uma guerra séria, em que as dificuldades morais
excediam mesmo as dificuldades estratégicas. Pois, que se podia fazer desse país quando se
estivesse senhor dele? Veremos o raro e magnânimo bom senso de Inocêncio III,
continuamente avisado do abismo que ali existia, e um valente capitão, ao princípio
vitorioso, sucumbir ao peso das suas angústias, antes de encontrar a morte do soldado.
Assim que Inocêncio III teve conhecimento do assassinato de Pedro de Castelona,
dirigiu uma carta aos nobres, aos condes, barões e cavaleiros das províncias de Narbonne,
Arles, Embrun, Aix e Viena, em que depois de descrever eloqüentemente a morte do seu
legado, declarava o conde de Toulouse excomungado, desligados os seus vassalos e súditos
do juramento de obediência, a sua pessoa e os seus estados condenados pela cristandade.
Previra todavia o caso em que o conde se arrependesse dos seus crimes e deixava-lhe uma
porta aberta para, querendo, se reconciliar com a Igreja. Essa carta tem a data do dia 10 de
março de 1208. O Soberano Pontífice escreveu em iguais termos aos arcebispos e bispos das
mesmas províncias, ao arcebispo de Lião, ao de Tours, e ao rei de França. Associou ao
abade de Cister, o seu único legado sobrevivente, Navarre bispo de Conserans, e Hugues,
bispo de Riez, e encarregou particularmente o abade de Cister de com os seus religiosos
pregar a cruzada. Tratara-se dos preparativos durante o resto do ano e da primavera do ano
seguinte.
Entretanto, assustado com o que se estava passando, e sabendo que os bispos da
província de Narbonne haviam delegado ao papa os seus colegas de Toulouse e de
Conserans para o informarem detalhadamente dos sofrimentos das suas Igrejas, o conde
Raimundo, por seu lado, enviou a Roma o arcebispo de Auch, e o antigo bispo de Toulouse,
Rabenstens, encarregados de fazerem amargas queixas do abade de Cister e de dizer ao
Soberano Pontífice que seu amo estava pronto a submeter-se e a dar satisfações se se lhe
concedesse mais retos e justos legados. Anuiu Inocêncio III, mandando partir para França o
notário apostólico Milon, homem de uma prudência consumada, com a missão especial de
ouvir e julgar a causa do Conde. Milon convocou, em Valência, uma assembléia de bispos,
onde Raimundo compareceu e aceitou as condições de paz que lhe foram propostas. Eram as
seguintes: que havia de expulsar os hereges das suas terras, retirar aos judeus todos os
empregos públicos, reparar os estragos que fizera nos mosteiros e nas Igrejas, restabelecer
nas suas sedes os bispos de Carpentras e Vaison, velar pela segurança das estradas, nunca
mais exigir impostos contrários aos antigos usos do país e purificar os seus estados dos
bandos armados que os infestavam. Como penhor da sua sinceridade, Raimundo entregou nas
mãos do legado o condado de Melgueil e mais sete cidades da Provença que lhe pertenciam,
sob condição de perder a sua soberania sobre elas se faltasse à sua palavra. Combinou-se
que a sua reconciliação solene com a Igreja teria lugar em Saint-Gilles, segundo as formas
nesse tempo em uso. Estando o conde de Toulouse de boa fé, a penitência publica a que ele
se sujeitava, longe de o rebaixar perante os seus contemporâneos e perante a posteridade,
ganhar-lhe-ia ao contrário um título do respeito de todos os cristãos. Teodósio nada perdeu
da sua gloria por Ambrósio ter obstado a sua entrada na catedral de Milão; só o crime nos
desonra; a expiação voluntária, sobretudo num soberano, é uma homenagem que se tributa a
Deus e à humanidade, exaltando aquele que se sente capaz de a fazer e tornando-o
participante da invencível honra que está em Jesus Cristo crucificado. E' possível que o
orgulho não compreenda o que acabo de dizer, mas isso que importa? Ha muito tempo que a
cruz é senhora do mundo, sem que o orgulho tenha ainda podido descobrir a razão disso.
Deixemos esse cego de nascença e repitamos a quem a pode compreender esta palavra
dAquele que conquistou a terra e o céu com um suplício sofrido voluntariamente:
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"Aquele que se exalta será humilhado,
aquele que se humilha será exaltado."
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Se, pois, o conde de Toulouse estivesse de boa fé, a penitência por ele aceita não teria senão
atraído sobre ele a estima e interesse de todos. Os infelizes nunca chegam a conhecer o
poder da arma que têm entre as mãos. O conde de Toulouse, porém, não estava de boa fé;
fora unicamente a política que lhe arrancara promessas que se não sentia disposto a cumprir.
Quando, portanto, à porta da abadia de Saint-Gilles, depois de jurar sobre as relíquias dos
santos e sobre o próprio corpo do Senhor de cumprir tudo o que prometera, ele ofereceu os
seus ombros nus ao castigo imposto pelo legado, não representou senão uma cena indigna de
perjúrio e ignomínia. Aquilo, a que esse homem nunca, nem no último extremo, se devia ter
sujeitado, sofreu-o sem desembainhar a espada. Uma circunstância memorável veio ainda
agravar o seu castigo e comunicar-lhe um caráter de uma certa grandeza. Quando quis sair da
Igreja, era tão compacta a multidão, que não pôde avançar um passo; indicaram-lhe então
uma saída secreta pelos subterrâneos consagrados às sepulturas e assim passou nu e ferido
por diante do túmulo de Pedro de Castelnau.
Poucos dias depois desta cena, que tivera lugar a 18 de junho de 1209, o legado
Milon foi reunir-se em Lião ao exército dos Cruzados. Este tinha à sua frente o duque de
Borgonha, os condes de Nevers, de Saint-Paul, de Bar, de Montfort, vários outros senhores
de nota e alguns prelados. Inocêncio III ordenara que no caso do conde de Toulouse ser
absolvido, se respeitasse o seu domínio direto, mas que marchassem contra os seus vassalos
e aliados para os obrigar a submeterem-se. Avançou pois o exército para o Languedoc, e
apenas chegara a Valence, quando o próprio conde Raimundo veio ao seu encontro,
revestido com a cruz. Cercaram Beziers que, tomada de assalto e de improviso, foi vítima do
furor dos soldados, sem distinção de idade, de sexo ou de religião. Os legados, nas suas
cartas ao Soberano Pontífice, calcularam o numero de mortos em perto de vinte mil. Essa
carnificina, que não fôra premeditada nem prevista, é um dos fatos que deu à guerra dos
Albigenses um caráter que nenhum historiador é capaz de lhe tirar. A tomada de Carcassone
seguiu-se logo à de Beziers. Os habitantes entregaram-se e tiveram a vida salva: a cidade foi
posta a saque por prévia determinação. Difícil seria começar pior uma guerra mais justa no
seu princípio.
Até aqui a alma e chefe da Cruzada fôra o abade de Cister. Depois dos sucessos de
Beziers e de Carcassone, os Cruzados, muitos dos quais pensavam em retirar-se, julgaram
oportuno eleger um chefe militar. Essa escolha foi confiada a um conselho, composto do
abade de Cister, de dois bispos e de quatro cavaleiros, que a ninguém consideraram mais
digno do comando do que a Simão de Montfort. Esse guerreiro, descendente da casa de
Hainaut, nascera do casamento de Simão III, conde de Montfort e de Evreux, com uma filha
de Roberto, conde de Leicester, e desposara Alice de Montmorency, mulher tão heróica
como o seu nome. Não se poderia encontrar nem capitão mais arrojado nem cavaleiro mais
religioso do que Simão de Montfort, e se às qualidades eminentes que brilhavam na sua
pessoa ele tivesse juntado um maior fundo de desinteresse e doçura, não haveria cruzado
nenhum do Oriente que o excedesse em glória. Apenas o nomearam para o comando geral
quando se viu abandonado por todos. Os condes de Nevers e de Toulouse e o duque de
Borgonha retiraram-se um atrás do outro, deixando a Montfort uns trinta cavaleiros e um
número insignificante de soldados. Estas mudanças de fortuna eram vulgares neste gênero de
expedições, onde cada um vinha e voltava à vontade.
E' claro que eu só quero descrever o projecto geral da guerra e das negociações; não
é muito fácil distinguir qual o seu fim, porque dois planos forcejavam por dirigi-lo, o plano
do abade de Cister e o do papa.
O plano do abade de Cister, de combinação com os principais bispos do Languedoc e
dos paizes vizinhos, era acabar com a casa de Toulouse. Este plano era injusto e impolítico.
Injusto, porque se Raimundo VI era merecedor da sua ruina, e se se tornava impossível no
futuro fiarem-se nele, não acontecia o mesmo com seu filho, criança de doze anos, que nem
era cúmplice dos crimes de seu pai, nem incapaz de uma educação católica sob uma tutela
desinteressada. Era impolítico, porque era confundir a questão religiosa, sobre que a
cristandade toda estava de acordo, com uma questão de família que podia vir causar a
desunião; dando também uma aparencia de ambição a uma guerra empreendida com motivos
mais puros. E' verdade que o abbade de Cister tivera a rara ventura de encontrar no conde de
Montfort um homem talhado para o seu plano, e talvez não fosse senão depois de o ter visto à
obra que ele concebesse a idéa de aniquilar a casa de Toulouse. Porém as qualidades
guerreiras do conde de Montfort eram para os súditos e vassallos dessa casa apenas as
qualidades de um inimigo, e o abade de Cister, querendo ir depressa com receio de não
poder sempre dispor das forças de uma cruzada, devia saber que era preciso esse tempo, em
que ele não confiava, para substituir no governo de um paiz uma família antiga por uma
família nova; devia temer-se de transformar uma guerra católica numa guerra pessoal entre
os Raimundo e os Montfort. Foi ao abuso que ele fez da sua autoridade, sustentando um
plano vicioso, que são devidos os erros e as violências que tiraram à cruzada contra os
Albigenses o caráter de santidade que, a outros respeitos, ela tinha.
Inocêncio III era um homem completamente diferente do abade de Cister. Estava,
além disso, assente sobre essa cadeira previlegiada que, independentemente da eterna
assistência do Espírito Santo, tem ainda a vantagem de se conservar estranha, pela sua
própria elevação, às paixões que se insinuam mesmo às melhores causas. Ao passo que
muitas vezes um zelo indiscreto procura incluir os homens na destruição dos erros, o papado
esforçou-se sempre por salvar os homens ao mesmo tempo que destruía os erros. Inocêncio
III não tinha o menor desejo de deitar abaixo a casa de Toulouse; não perdera mesmo a
esperança de converter o velho Raimundo a sentimentos dignos dos seus antepassados. Nas
cartas de excomunhão que lançara contra ele previra formalmente a hipótese do seu
arrependimento, e imediatamente depois dos acontecimentos de Saint-Gilles apressara em
recomendar que se não tocasse nos seus domínios. Porém o Papa não tinha ninguém em
França que o secundasse nos seus generosos intentos, não pôde lutar contra a força dos
acontecimentos e os seus esforços inúteis apenas serviram para honrar a sua memória. O
próprio conde Raimundo, abandonando o sistema pacífico que ao princípio adotara,
contribuiu para o triunfo dos inimigos da sua família e foi preciso que um braço supremo
interviesse para de repente mudar a face das coisas.
Monfort, ainda que ficando com pouca gente, não deixou de avançar, de tomar
cidades, de as perder e tornar a tomar, enquanto que o conde Toulouse, sossegado por se
haver reconciliado com a Igreja, parecia não se inquietar com a queda de seus aliados e
vassalos. Porém um concílio celebrado em Avignon pelos o metropolitanos de Viena, de
Arles, de Embrun e de Aix, sob a presidência dos dois legados Hugues e Milon, veio tirá-lo
do seu sossego. O concilio que abriu a 16 de setembro de 1208 dava-lhe um prazo de seis
semanas para cumprir as promessas que fizera em Saint-Gilles, sob pena de ser
excomungado. Raimundo, ao ser informado disso, partiu para Roma. Admitido à audiência
do Santo Padre, que o recebeu com grandes testemunhos de afeição, queixou-se-lhe do rigor
dos legados para com ele, apresentou atestados autênticos de varias igrejas que indenizara,
declarando que estava disposto a executar o resto das suas promessas, pedindo para também
se justificar do assassinato de Pedro de Castelnau e das inteligências que o acusavam de ter
com os hereges. Animou-o o Papa nestes sentimentos, ordenando que se reunisse novo
concilio de bispos em França, para ouvir a sua justificação, com esta cláusula expressa, que
se o julgassem culpado ficasse a sua sentença reservada à Santa Sé. Raimundo, ao sair de
Roma, visitou a corte do Imperador e a do rei de França, na esperança de encontrar neles
apoio; não obteve porém o resultado desejado. Teve pois de se apresentar perante o concilio
a que fôra entregue a sua causa e que se havia de reunir em Saint-Gilles nos meados de
setembro do ano de 1210. Quis nele justificar-se das suas duas acusações, de inteligência
com os hereges e de cumplicidade no assassinato de Pedro de Castelnau. O concílio
recusou-se a ouvi-lo sobre esses dois pontos e apenas lhe pediu que cumprisse a sua palavra
purificando os seus domínios dos hereges e da gente corrupta de que estavam infestados. Ou
fosse porque não pudesse ou porque não quisesse satisfazer essa exigência, Raimundo voltou
para Toulouse, persuadido que era inútil empregar astúcia e que dali por diante nada tinha a
esperar senão da sorte das armas. O concílio, porém, absteve-se de o excomungar, porque o
Soberano Pontífice havia reservado a sua sentença, e Inocêncio III contentou-se em escrever-
lhe uma instante e afetuosa carta em que, sem ameaça de qualidade alguma, o exortava a
cumprir o que prometera.
O Rei de Aragão interveio por seu lado para impedir um rompimento definitivo e a
esse fim se realizaram duas conferências no inverno de 1211, uma em Narbone, outra em
Montpellier. Na primeira, o conde de Toulouse rejeitou abertamente as condições que lhe
haviam já sido propostas em Saint-Gilles; na segunda pareceu a princípio aceitá-las, mas
depois de repente retirou-se sem prévio aviso. O Rei de Aragão, irritado com este
procedimento, ajustou o casamento de seu filho de idade de três anos com uma filha da
mesma idade do conde de Montfort e entregou a criança ao conde para ser educada sob a sua
direcção. Porém, pouco depois, arrependeu-se, e deu sua irmã em casamento ao filho único
de Raimundo, estreitando com esta aliança os laços que já tão intimamente o prendiam à
causa da heresia.
Finalmente, o abade de Cister lança a excomunhão e envia um delegado ao Papa,
para obter que ela fosse confirmada. Inocêncio III confirma-a. Raimundo prepara-se para a
guerra, assegurando-se primeiro da fidelidade dos seus súditos e do auxílio de vários
nobres, em especial dos condes de Foix e de Comminges. Repele Montfort que se
apresentara em frente dos muros de Toulouse, e o próprio exercito Albigense vai acampar
em frente de Castelnaudary. Uma batalha sangrenta força-o a levantar o cerco. Os Cruzados
vencedores tomam cidades sobre cidades, invadem os estados de Foix e de Comminges;
Raimundo parte para a Espanha a implorar auxílio do Rei de Aragão.
O que então se passou mostra quanto o Papa se sentia incerto e irresoluto. O rei de
Aragão, antes de recorrer às armas para proteger seu cunhado, julgou oportuno tentar mais
uma vez a via das negociações e enviou uma embaixada ao Soberano Pontífice, queixando-se
do Conde de Montfort que se apoderara dos feudos dependentes da sua coroa, e ao mesmo
tempo dos legados apostólicos que recusavam absolutamente a admitir o conde de Toulouse
a cumprir a sua penitência. Inocêncio III, influenciado por estas queixas, dirigiu uma carta de
censura ao seus legados e intimou-os a reunir um concílio composto dos bispos e nobres do
país para deliberarem sobre os meios de estabelecer a paz. Ordenou ao conde de Montfort
que restituísse ao Rei de Aragão e aos seus vassalos os feudos de que os despojara com
receio, dizia,
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"de que se pensasse que ele tinha combatido
mais pelos seus interesses
do que pela causa da fé".
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Cartas de Inocêcio III
L.15, C.211
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Finalmente, resolveu suspender a Cruzada manifestando essa intenção numa carta particular
dirigida ao abade de Cister, criado pouco tempo antes arcebispo de Narbonne.
Mas enquanto essas cartas datadas do princípio do ano 1213 estavam em caminho,
reunira-se um concílio em Lavaur, a pedido do rei de Aragão, que, num requerimento escrito,
rogara aos legados e bispos que tornassem a entregar aos condes de Toulouse, de
Comminges e de Foix, assim como ao visconde de Béarn, as terras de que os haviam
despojado e que os reintegrassem na comunhão da Igreja dando eles todas as satisfações que
se lhes exigissem. No caso de recusa de parte do velho Raimundo o rei solicitava, em favor
de seu filho, a justiça do concílio. O concílio decidiu que nunca mais se admitisse
justificação alguma da parte do conde de Toulouse, porque ele faltara constantemente à sua
palavra, mas que se aceitasse a penitência dos condes de Foix, de Comminges e do visconde
de Béarn, logo que estes o desejassem. Julgando o rei de Aragão, por esta resposta, que
existia um propósito fixo contra a casa de Toulouse, declarou abertamente que apelava para
a clemência da Santa Sé contra o inexorável rigor dos legados e bispos e que tomava sob a
sua real proteção o conde Raimundo e seu filho. Este príncipe não podia ser suspeito de
heresia, pois submetera o seu reino à Igreja Romana, na qualidade de feudo apostólico e
servira valentemente a cristandade contra os mouros de Espanha. O peso do seu nome e da
sua espada punha por conseguinte tudo em grande perigo. O concílio de Lavaur expediu, sem
perda de tempo, quatro delegados ao Soberano Pontífice com uma carta cujo fim era
persuadi-lo que a causa católica estava perdida, se não privassem para sempre dos seus
domínios ao conde de Toulouse e aos seus herdeiros. Os arcebispos de Arles, de Aix e de
Bordéus; os bispos de Maguelonne, de Carpentras, de Orange, de Saint-Paul-Trois-Chateaux,
de Cavaillon, de Vaison, de Bazas, de Béziers e de Périgneux escreveram no mesmo sentido
ao Santo Padre. Inocêncio III queixou-se de haver sido enganado pelo rei de Aragão;
ordenou-lhe que desistisse da sua empresa, que concluísse umas tréguas com o conde de
Montfort, e que esperasse a chegada de um cardeal que ele lhe enviaria.
Mas a sorte já se havia pronunciado. O rei reunira um exército na Catalunha e em
Aragão e, atravessando os Pireneus, veio juntar as suas tropas às dos condes de Toulouse, de
Foix e de Comminges.
Estava Montfort em Fanjeaux, quando soube que o exército aliado composto de
quarenta mil homens de infantaria e de dois mil de cavalaria avançava sobre Muret, praça
importante situada sobre o Garonne, a três léguas acima de Toulouse. Foi esse o momento
sublime da sua vida. Tinha apenas sob o seu comando oitocentos cavaleiros e um pequeno
corpo de infantaria; mas partiu imediatamente para Muret. Era manhã quando se pôs a
caminho acompanhado dos seus soldados e dos bispos de Toulouse, de Nîmes, de Uzès, de
Lodève, de Beziers, de Agde, de Comminges e de três abades de Cister. Chegando nesse
mesmo dia ao mosteiro de Bolbonne, pertencente à ordem de Cister, entrou na Igreja, orou
por largo tempo e, colocando a sua espada sobre o altar, tornou a pegá-la, dizendo:
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"Senhor que me escolhestes,
apesar da minha indignidade,
para combater em vosso nome,
pego hoje na espada
que aqui coloquei sobre este altar
a fim de receber de Vós
as minhas armas,
visto ser por Vós
que vou combater!"
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Pedro de Vaulx-Cernay
História dos Albigenses, Cap.71
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Em seguida marchou para Saverdun e aí passou a noite. No dia seguinte confessou-se,
escreveu o seu testamento e mandou-o ao abade de Bolbonne, pedindo-lhe que o transmitisse
ao Soberano Pontífice se acontecesse ele morrer. De tarde atravessou o Garonne, sobre uma
ponte, sem ser molestado, e parou atrás das torres de Muret, guardadas por uns trinta
cavaleiros. Era na manhã de quarta-feira 12 de setembro de 1213. Antes de entrar na cidade
alcançaram-no os bispos, que o haviam largado um instante, para ir ao campo dos inimigos
pedir a paz. O rei de Aragão porém respondera-lhes que não valia a pena um rei e uns bispos
terem uma conferência, por causa de um. punhado de gladiadores. Apesar do mau resultado
dessa tentativa, apenas raiou a aurora, os bispos encarregaram um religioso de prevenir o
Rei que eles e todas as ordens eclesiásticas iriam descalços rogar-lhe que mudasse de
resolução. Quanto se não havia então o conde de Toulouse de ter arrependido do seu
perjúrio e das suas humilhações sem resultado. Como se havia de exprobrar por não ter
desde o princípio recorrido a uma guerra leal e valorosa, em lugar de deixar esmagar os seus
amigos e desonrar a sua causa! Ele, porém, iludia-se; a guerra, do mesmo modo que a
astúcia, havia de lhe ser funesta. Deus lia no coração desse príncipe e não se comovia com a
sua sorte.
Dispunham-se os bispos a sair de Muret, em traje de suplicantes, quando um corpo de
cavaleiros inimigos se precipitou em direção às portas. Montfort deu ordem aos seus que se
dispusessem em linha de batalha na parte baixa da cidade. Ele próprio vestiu a sua armadura
depois de orar numa igreja, onde o bispo de Azas estava oferecendo o santo sacrifício.
Voltou ali de novo depois de armado e, ao dobrar o joelho, rebentaram as ligaduras que
prendiam a parte superior da sua armadura. Notou-se também que no momento em que ele
punha o pé no estribo o seu cavalo, levantando a cabeça, feriu-o. Estes presságios não
perturbaram o coração do cavaleiro, posto que em geral homens dessa têmpera se mostrem
sensíveis a eles. Pôs-se a caminho em direção às suas tropas seguido de Foulques, bispo de
Toulose, que levava o crucifixo na mão. Os cavaleiros desmontaram para adorar o seu
Salvador e beijar a sua imagem. Mas o bispo de Comminges, vendo o tempo a passar, tomou
o crucifixo das mãos de Foulques, e subindo a um ponto elevado, dirigiu uma curta alocução
às tropas e abençoou-as. Depois do que todos os eclesiásticos presentes foram para a igreja
fazer oração e Montfort saiu da cidade à testa de uma força de oitocentos cavaleiros, sem
infantaria.
À frente do exército aliado estendia-se por uma planície ao ocidente da cidade.
Montfort, que saíra por uma porta oposta, como se quisesse fugir, dividiu a sua gente em três
esquadrões e foi direto ao centro do inimigo. A sua esperança, depois da que punha em
Deus, era cortar pelo meio as linhas dos aliados, lançar no meio deles a desordem e o
pânico pela audácia do seu ataque e aproveitar-se de todos os acasos da sorte que a
penetração de um grande capitão sabe discernir no meio dos horrores de um combate. Foi o
que sucedeu. O primeiro esquadrão desbaratou a vanguarda inimiga e o segundo rompeu até
às últimas filas onde se achava o rei de Aragão rodeado da fina flor das suas tropas;
Montfort, que seguia de perto com o terceiro, atacou pelo flanco os aragoneses já em
desordem. A sorte pareceu hesitar aqui um pouco e o tempo urgia, porque os esquadrões, que
haviam atravessado com tão feliz resultado, estavam mais depressa atordoados do que
destroçados, e podiam esmagar Montfort pela retáguarda. Um golpe que atirou por terra
morto o rei de Aragão decidiu a batalha. Os gritos e a fuga dos aragoneses arrastam o resto
do exército na sua derrota. Os bispos que, cheios de angústia, oravam na igreja de Muret, uns
rojando a fronte no chão, os outros com as mãos erguidas para o céu, são em breve atraídos
às muralhas pelos gritos de vitória e vêem a planície coberta de fugitivos querendo escapar
das terríveis mãos dos cruzados. Um corpo de tropas que tentava tomar a cidade de assalto
depõe as armas e é desbaratado ao tentar fugir. Entretanto Montfort, voltando de perseguir os
vencidos através do campo de batalha, deu com o corpo do rei de Aragão estendido no chão
já despojado e nu. Desceu do cavalo e beijou, derramando copiosas lágrimas, os restos
lacerados desse infeliz príncipe. Pedro II, rei de Aragão, fora um valente cavaleiro, querido
dos seu súditos, um verdadeiro católico, digno de outra morte. Os laços que uniam as suas
duas irmãs aos dois Raimundos levaram-no a defender uma causa que ele considerava não já
a da heresia, mas sim a da justiça e do parentesco. Sucumbiu nela por um secreto juízo de
Deus, quem sabe se por desprezar os rogos dos bispos, ou por no seu íntimo ter abusado de
uma vitória que já reputava ganha. Montfort, depois de tratar da sua sepultura, entrou em
Muret descalço, dirigiu-se para a igreja a fim de agradecer a Deus a sua proteção e deu aos
pobres o cavalo e a armadura com que pelejara. Esta memorável batalha, fruto de uma
consciência que se sentia certa de combater por Deus, há de ser sempre tida como um dos
mais belos actos de fé praticados pelos homens sobre a terra.
Estava então Domingos em Muret com os sete bispos que nomeamos e os três abades
de Cister. Dizem os historiadores modernos que ele marchara à frente dos combatentes, com
a cruz na mão; em Toulouse mesmo mostrava-se na casa da inquisição um crucifixo crivado
de setas que diziam ser o que ele assim levara, na batalha de Muret. Os historiadores
contemporâneos, porém, nada dizem disso; afirmam, ao contrário, que Domingos ficara na
cidade em oração com os bispos e os religiosos. Bernardo Guidonis, um dos autores da sua
vida, que habitou a casa da inquisição de Toulouse desde 1308 até 1322, não faz a menor
menção do crucifixo que mais tarde ali se mostrava.
A batalha de Muret foi o golpe mortal dado à causa do conde de Toulouse. Os seus
aliados e os habitantes da sua capital submeteram-se ao Soberano Pontífice que encarregou o
cardeal Pedro de Benevento de os reconciliar com a Igreja e de obrigar o conde de Montfort
a reenviar para a Espanha o novo rei de Aragão, criança que ele guardava em reféns, desde
que estava justo o seu casamento com a sua filha. Desempenhou o cardeal a sua dupla missão
no inverno de 1214. Deu mesmo, caso notável, a absolvição ao conde de Toulouse; este acto
de clemência, porém, de nada serviu ao vencido para os seus interesses temporais. Reuniu-
se um concílio em Montpellier no mês de dezembro seguinte para decidir a quem devia
pertencer a soberania do país conquistado. Foi unânime o concílio em favor do conde de
Montfort, cuja brilhante e valente espada decidira a sorte da guerra; contudo o Soberano
Pontífice, por uma carta de 17 de abril de 1215, declarou que Montfort apenas conservaria a
posse da sua conquista até que o concílio ecumênico de Latrão, a quem havia sido entregue
essa questão, pronunciasse sentença definitiva. Foi a última tentativa de Inocêncio III para
salvar a casa de Toulouse. Abandonado por todos, o conde Raimundo retirou-se com seu
filho para a corte do rei da Inglaterra.
No dia 11 de novembro de 1215 o sol ao despontar sobre os Apeninos deparou na
solitária igreja de S. João de Latrão com a mais augusta assembléia do mundo. Viam se ali
reunidos setenta e um primazes e metropolitanos, quatrocentos e doze bispos, mais de
oitocentos abades e priores de mosteiros, uma infinidade de procuradores de abades e de
bispos ausentes; os embaixadores do rei dos Romanos, do imperador de Constantinopla, dos
reis de França, da Inglaterra, da Hungria, de Aragão, de Jerusalém e de Chipre; os delegados
de uma inumerável multidão de príncipes, de cidades e de nobres e, acima de todos, a figura
venerável de Inocêncio III. Notava-se entre os assistentes o abade de Cister, arcebispo de
Narbonne; o conde Simão de Montfort estava representado pelo seu irmão Guy de Montfort;
os dois Raimundos tinham vindo pessoalmente, assim como os condes de Foix e de
Comminges. No dia marcado para se julgar esta grande causa da Cruzada Albigense
entraram os dois Raimundos na assembléia com os condes de Foix e de Comminges e todos
os quatro se prostraram aos pés do trono Apostólico. Em seguida, levantando-se, expuseram
a forma como haviam sido despojados dos seus feudos, apesar da sua perfeita submissão à
Igreja Romana e da absolvição que lhes dera o legado Pedro de Benevento. Em seu favor
tomou um cardeal a palavra com grande força e eloqüência. No mesmo sentido falaram
também o abade de Saint-Tibère e o chantre da Igreja de Lião, este último principalmente,
parecendo convencer o Papa. Mas a maioria dos bispos, sobretudo dos bispos franceses,
pronunciaram-se contra os suplicantes, protestando que restituir-lhes os seus bens seria
acabar com a religião católica no Languedoc e que todo o sangue já vertido por esta causa
seria um sangue inútil e uma dedicação perdida. Declarou então o concílio que o Conde
Raimundo VI incorrera na perda dos seus fundos, os quais seriam definitivamente
transferidos para o Conde de Montfort, e estabeleceu-lhe uma pensão de quatrocentos
marcos de prata, com a condição de viver fora dos seus antigos domínios. À sua mulher
Leonor seriam conservados os bens de que se compunha o seu dote, e destinou-se ao jovem
Raimundo, seu filho, o marquesado de Provença que lhe seria entregue à sua maioridade, se
se conservasse fiel à Igreja. Quanto aos Condes de Foix e de Comminges, a sua causa foi
adiada até se proceder a mais maduro exame. E' digno de nota que o marquesado de
Provença, destinado ao jovem Raimundo, compunha-se das cidades que seu pai cedera à
Santa Sé, no caso de alguma vez faltar às convenções de Saint-Gilles; já por diferentes vezes
se havia proposto ao Soberano Pontífice o reuní-las ao domínio Apostólico; ele, porem, não
quis nunca anuir a isso, valendo-se apenas dos direitos que adquirira para as conservar à
casa de Toulouse.
Depois de encerrado o Concílio o jovem Raimundo, que atraíra a estima de todos pelo
seu nobre comportamento, foi despedir-se do Papa. Não lhe ocultou que se considerava
injustamente despojado do patrimônio de seus antepassados, declarando-lhe ao mesmo
tempo com uma ingênua e respeitosa firmeza que se aproveitaria de todas as ocasiões para
recuperar o que perdera sem culpa sua. Inocêncio III, comovido pela desgraça, inocência e
coragem desse mancebo de dezoito anos, lançou sobre ele esta benção profética :
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"Meu Filho,
que o princípio de todas as vossas ações
seja bom
e o fim ainda melhor!"
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Montfort, revestido por Felipe Augusto dos títulos de Duque de Narbonne e Conde de
Toulouse, não gozou muito tempo do poder que com tanto trabalho adquirira. Ainda o ano de
1266 não chegara ao seu termo o já o jovem Raimundo era senhor de uma parte da Provença.
Por outro lado Toulouse, cansado do jugo do seu novo Conde, tornou a mandar chamar o
velho Raimundo à corte da Inglaterra, onde ele se refugiara, e abriu-lhe as suas portas. À
primeira noticia desta mudança de fortuna grande número de fidalgos se apressou em vir
prestar juramento de fidelidade ao seu antigo suserano. Compreendeu então o vencedor de
Muret que não basta, para adquirir o prestígio do governo dos povos, ganhar batalhas e
tomar cidades de assalto: dera, por sua infelicidade, com essa força tão honrosa para a
humanidade que faz com que seja impossível reinar sobre os homens quando não se reina
sobre os seus corações. Expulso de Toulouse, que ele debalde tentara desarmar e amedrontar
com toda a casta de suplícios, veio triste e acabrunhado pôr cerco a esses muros onde nunca
mais havia de penetrar. A duração do cerco, a incerteza do futuro, as censuras que o Cardeal
Bertrand, legado Apostólico, lhe dirigia sobre a sua inação, assim como esse desânimo que
produzem os revezes quando chegam já no declinar da vida, lançaram o valente cavaleiro
numa tal melancolia que lhe fazia pedir a Deus a morte. No dia 25 de Junho de 1218 vieram
de madrugada anunciar-lhe que o inimigo estava de emboscada nos fossos do castelo. Pediu
a sua armadura e, revestindo-se dela, foi ouvir missa. Tinha esta já começado quando o
vieram avisar de que as maquinas de guerra haviam sido assaltadas e estavam em risco de
serem destruídas:
disse ele,
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"que eu veja primeiro
o Sacramento da nossa redenção!"
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Seguiu-se outro mensageiro que lhe anunciou não poderem as suas tropas resistir por mais
tempo:
disse ele,
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"enquanto não vir o meu Salvador".
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Pierre de Vault-Cernay
História dos Albigenses, C. 85
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Finalmente, quando o padre levantou a hóstia, Montfort, ajoelhando-se e elevando as mãos
ao céu, pronunciou as palavras "nunc dimittis" e saiu. A sua presença no campo da batalha
fez recuar o inimigo até às trincheiras da praça; esta, porém, foi a sua última vitória. Uma
pedra feriu-o na cabeça; batendo no peito e recomendando-se a Deus e à bem aventurada
Virgem Maria, caiu morto.
A sorte continuou a favorecer os Raimundos. Dos dois filhos que deixara o Conde de
Montfort, o mais novo foi morto junto aos muros de Castelnaudary e quatro anos de revezes
convenceram o mais velho de que não era competente para poder com a herança de seu pai,
de sorte que cedeu todos os seus direitos ao rei de França. O velho Raimundo, tranqüilo em
Toulouse, sob a proteção das vitorias de seu filho, teve tempo de se voltar para Deus que o
humilhara e tornara a exaltar. A 12 de julho de 1222, voltando ele de fazer oração à porta de
uma igreja, pois continuava excomungado, sentiu-se doente e mandou a toda a pressa chamar
o abade de Saint-Sernin, para o reconciliar com a Igreja. O abade já o encontrou sem fala. O
velho Conde ao vê-lo levantou os olhos para o céu, e agarrando-o nas mãos conservou-as
entre as suas, até exalar o ultimo suspiro. O seu cadáver foi transportado para a igreja dos
cavaleiros de S. João de Jerusalém, que escolhera para lugar da sua sepultura; não se
atreveram contudo a enterrá-lo, por causa da excomunhão. Deixaram o seu caixão aberto e,
três séculos depois, ainda se podia vê-lo da mesma forma, sem que tivesse havido uma mão
assaz ousada para pregar uma tábua sobre esse caixão consagrado pela morte e pelo tempo.
A pedido de seu filho, tratou-se da questão da sua sepultura durante os pontificados de
Gregório IX e Inocêncio IV. Inúmeras testemunhas atestaram que ele antes de morrer dera
evidentes provas de verdadeiro arrependimento; contudo recearam perturbar essas cinzas
dando-lhe honras tardias.
Raimundo VII sobreviveu vinte e seis anos a seu pai. Soube defender-se contra as
armas da própria França; porém, demasiado fraco para poder sustentar essa luta, concluiu
com S. Luiz, em 1228, o tratado que pôs termo a essa longa guerra. O casamento de sua filha
única com o conde de Poitiers, um dos irmãos do Rei; a restituição, a título de dote, do
condado de Toulouse; a cessão de vários territórios; a promessa de se conservar fiel à Igreja
e de se servir da sua autoridade contra os hereges, tais foram as principais condições da paz.
Confirmou-a a Igreja, tornando a receber no seu grêmio ao jovem conde que, por penitência,
se obrigou a servir a causa da cristandade, na Palestina, durante cinco anos. Só vinte anos
depois é que ele pensou seriamente em cumprir esse dever e partiu para a Terra Santa. Deus,
porém, não lhe permitiu chegar ao termo da sua viagem. Adoeceu em Pris, perto de Rodes,
de onde se fez transportar para Milhaud e aí morreu a 26 de setembro de 1248, rodeado dos
bispos de Toulouse, de Agen, de Cahors e de Rodes, dos cônsules de Toulouse e de grande
numero de fidalgos vindos todos receber os últimos adeuses de um príncipe que sempre lhes
fôra caro e em quem na descendência masculina acabava o ramo mais velho de uma ilustre
raça. Quando o Santo Viático chegou perto do conde ele ergueu-se do leito e ajoelhou-se no
chão diante do corpo do seu Senhor, realizando assim na sua morte, como o fizera na sua
vida, o desejo que por ele formara outrora Inocêncio III, quando na sua mocidade o
abençoara:
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"Meu filho,
que o princípio de todas as vossas acções
seja bom,
e o fim ainda melhor!"
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