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Vamos mostrar, a seguir, como sem a humildade a contemplação se
torna impossível, não por se tornar coisa muito difícil, mas porque
a ausência da humildade exclui intrinsecamente a possibilidade da
contemplação.
Já explicamos o que é a contemplação, apresentando-as de modos
aparentemente bastante diversos. Dissemos que a contemplação é a
adoração a Deus em espírito e verdade de que fala João 4; que é
um exercício intenso e simultâneo das virtudes da fé, esperança e
caridade; que é uma operação do intelecto que abarca de um modo
simultâneo a totalidade dos objetos já apreendidos pelas primeiras
operações da inteligência e reelaborados pela reflexão. Dissemos
também que trata-se de uma realidade tão rica que sempre que alguém
se aproxima dela, ainda que pareça que tudo tenha sido dito, este
alguém nos trará sobre ela algo novo, com toda a aparência de algo
inédito a seu respeito. Temos disto um exemplo na biografia de São
João da Cruz escrita pelo Pe. Crisógono, que tem como um de seus
principais méritos a extrema fidelidade com que segue os documentos
originais sobre os quais se baseia. Lemos nesta obra que entre
1579 e 1582 São João da Cruz foi reitor do Colégio São
Basílio em Baeza, onde residiam os estudantes que cursavam Teologia
na Universidade local. O Colégio recebia freqüentemente visitas de
outros alunos e de catedráticos da Universidade que vinham consultar o
santo reitor. A estes visitantes, dizem os documentos de que se
utiliza o Pe. Crisógono,
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"Frei João lhes expunha a Escritura,
falava-lhes de Teologia e dos mistérios da fé.
Aconteceu muitas vezes
que um doutor que há muitos anos
regia uma cátedra de Teologia Positiva
vinha consultá-lo sobre algumas passagens da Escritura
e retornava muitíssimo satisfeito.
Não obstante seu vasto conhecimento
das obras de Santo Agostinho
e de São João Crisóstomo,
parecia-lhe que as explicações de frei João
eram explicações novas,
ensinamentos do Espírito Santo".
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Pe. Crisógono
Vida de S. João da Cruz
Cap. 11, n. 38
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Esta passagem da biografia de São João da Cruz é a realização
daquele dito de Jesus, o qual, após narrar algumas parábolas aos
judeus, afirmou que
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"Todo escriba instruído no Reino dos Céus
é semelhante a um pai de família,
que tira de seu tesouro coisas novas e velhas".
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O Reino dos Céus é a plenitude da graça do Espírito Santo, que
é o que produz a contemplação; os instruídos no Reino dos Céus
são todos aqueles que nela produziram raízes e perseveraram com
firmeza. São estes, como São João da Cruz, que do seu
tesouro, "ali onde está o seu coração", conforme também o afirma
Jesus (Mt. 6, 21), tiram coisas novas e velhas.
Podemos, entendendo este caráter tão rico da contemplação,
explicar sua relação com a humildade se a apresentarmos de um novo
modo, dizendo que ela é aquilo mesmo a que nos referimos anteriormente
ao definirmos a humildade. Dissemos que a humildade é o ter
consciência de ser apenas uma criatura, um ser humano, e não um deus
ou um ser dotado de atributos divinos. Neste sentido podemos dizer que
estas palavras também determinam a contemplação; a contemplação é
num sentido mais amplo, mas essencialmente idêntico àquele em que a
humildade também o é.
Que significa, porém, ter consciência? Segundo o modo corrente de
falar das pessoas, ter consciência de algo ou ter consciência das
coisas significa o mesmo que aquilo que se quer dizer com a expressão
Ter consciência ou estar consciente significa o mesmo, na linguagem
corrente das pessoas, que "cair na real". Subentende- se que
aqueles que se utilizam desta expressão queiram com ela significar
que, antes do homem ter consciência ou estar consciente, ele não
tinha caído na real, isto é, vivia no mundo da sua própria
imaginação, inconsciente da distância que separava a sua
imaginação que ele dava por suposto como idêntica à realidade, e a
própria realidade. A contemplação, entendida neste sentido,
implicaria no máximo desenvolvimento possível ao homem desta qualidade
de deslocar-se do mundo ilusório de sua imaginação e dar-se conta
da realidade, ou seja, cair na real.
Esta concepção de contemplação admite como pressuposto que os
homens costumem viver com a atenção voltada habitualmente para as suas
próprias fantasias, não obstante a realidade do mundo que os cerca,
inclusive as suas próprias realidades humanas não construídas pela
fantasia, serem objetivamente muito mais ricas e deverem chamar muito
mais a atenção do homem do que as construções de sua imaginação.
Só com muito esforço, esforço que já pressupõe um razoável grau
de consciência deste fato e da alienação que ele implica, é que os
homens, pouco a pouco, começam a desprender a habitualidade de sua
atenção de um imaginário construído em sua maior parte pelo
estímulo de paixões cultivadas sem vínculo com a razão e passam a
dar cada vez maior atenção ao próprio real. A isto chama-se cair
na real, e o processo pelo qual se faz isto chama-se contemplação.
O fato de explicarmos a contemplação deste modo pode causar surpresa
a não poucas pessoas, que imaginam a contemplação, mesmo que a
admirem, como um processo de alienação do real. Para confirmar esta
teoria eles podem nos citar, por exemplo, a Regra de São Bento,
que prescreve aos monges, como um de seus preceitos,
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"fazer-se alheio
às coisas do mundo".
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Ora, não é a contemplação o fim da Regra de São Bento, como
é o fim de toda a autêntica espiritualidade? No entanto ela nos
prescreve como um dos meios para se fazer isto exatamente o alheamento
das coisas do mundo. Portanto, a contemplação parece supor não uma
queda na realidade, mas uma alienação dela. É assim que raciocinam
muitas pessoas, ainda que não o queiram admitir. Quem o faz,
porém, não percebe que São Bento está falando do mundo não
enquanto realidade ontológica, mas enquanto objeto das paixões
humanas e que, na realidade, quanto mais o monge se torna alheio às
coisas do mundo tomadas neste sentido, mais consciente na verdade, em
vez de alheio, ele vai se tornando da realidade. Este exemplo mostra
o quão deturpado e ilusório é o conceito que as pessoas costumam se
fazer desta realidade tão profunda, supondo que a contemplação seja
algo que obrigue as pessoas a se tornarem alienadas, quando na verdade
a contemplação significa o movimento que retira o homem precisamente
deste estado.
Vamos examinar, porém, mais de perto, como se dá este processo de
queda na realidade que se produz pela contemplação. A experiência
mostra que, à medida em que se desenvolve no homem aquilo que se chama
de contemplação, o homem verifica que muitas das coisas que ele
aprendeu ou adquiriu através da contemplação eram, na realidade,
coisas que ele já sabia antes. Não todas, mas muitas, ou pelo
menos uma boa parte do que ele aprendeu pela contemplação eram coisas
que ele deverá reconhecer que já, de fato, as sabia. Esta
afirmação não deveria soar como novidade para nós, se já lemos no
texto que é o objeto principal deste comentário que Hugo de S.
Vitor nos diz que a contemplação não é uma atividade que nos ensina
coisas desconhecidas, mas uma operação da inteligência cuja
principal característica, ao contrário da reflexão, é precisamente
o debruçar-se sobre coisas já sabidas. Esta afirmação, porém,
pela pouca intimidade que as pessoas têm para com a realidade a que ela
se refere, costuma soar, para muitos, como algo estranho. Uma das
perguntas que mais freqüentemente surgem nas salas de aula quando se
explica este assunto é precisamente qual a razão de uma atividade,
que é tida como a mais complexa das operações da inteligência,
debruçar-se sobre coisas já sabidas, se elas já são conhecidas?
Pois, se elas já são conhecidas, por que perder tempo com elas?
E, mais ainda, perder tempo com coisas já sabidas justamente
através de uma atividade que nos é apresentada como a mais complexa de
todas as operações do intelecto? Não seria isto o exemplo mais
evidente de uma baixíssima taxa de eficiência de trabalho? À
primeira vista, semelhante coisa parece um contrasenso; examinada,
porém, a questão mais profundamente, verifica-se que estas
objeções são, na realidade, exemplos de superficialidade e que há
inúmeros motivos para justificar-se a existência, a importância e
inclusive a necessidade da operação a que chamamos de contemplação.
Vamos nos deter agora em apenas um só destes motivos. Este motivo
que, independentemente dos demais, por si só já é suficiente para
justificar a contemplação, é o seguinte: embora saibamos todas
estas coisas sobre as quais a contemplação se debruça, nosso agir se
comporta tal como se efetivamente não as soubéssemos. Esta é,
ademais, uma realidade de que temos tão pouca consciência que, para
entendê-la melhor, devemos fazer um esforço para examinarmos a
própria comunidade humana como se a estivéssemos observando de fora
dela.
Imaginemos um curso de pós graduação em psicologia humana ministrada
em uma Universidade extra terrestre para marcianos. Logo na primeira
semana de aula o professor explicará aos seus alunos a existência de
uma civilização no planeta Terra em que seus habitantes se auto
denominam, e com razão, de animais racionais. Ante que se inicie a
segunda semana de aula, porém, um dos alunos, filhos de uma família
abastada, resolve, em um fim de semana prolongado, fazer uma visita
por sua própria conta ao planeta que será objeto dos estudos recém
iniciados, não querendo esperar pelo estágio que será, para este
fim, especialmente oferecido pela Universidade Marciana ao final do
curso. Quando, na segunda feira seguinte, este aluno voltar aos
bancos escolares, certamente a primeira coisa que ele irá fazer será
protestar diante da afirmação de seu professor de que os terráqueos
são animais racionais:
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"Pude constatar
com os meus próprios olhos",
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dirá o aluno,
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"que trata-se, efetivamente,
da opinião que eles têm de si próprios.
Mas pude observar também,
e tenho provas mais do que suficientes
para estar convencido disto,
de que tal afirmação não passa de um mito.
O modo de vida que eles construíram,
suas atitudes,
seu comportamento,
não condiz em nada,
ou quase nada,
com os atributos da racionalidade,
qualquer que seja o modo
como se possa entender
ou mesmo estender o significado deste termo".
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Que responderá o professor diante desta constatação?
O aluno insiste que o que ele diz não exige muita pesquisa, é coisa
evidente, manifesta. Pelo que ele pôde observar, qualquer
extraterrestre que se dirija à Terra não necessitará mais do que
algumas horas para colher material superabundante para apoiar esta mesma
conclusão. E agora, quem estará diante disto com a razão, o
professor ou o aluno? Este jovem acolheu com benevolência as palavras
do mestre, dirigiu-se à Terra não para contestar as palavras do
venerável catedrático, mas por ter acreditado nelas e, justamente
por causa disso, ter sido tomado pela curiosidade de admirar com os
seus próprios olhos uma civilização de animais racionais. Ele havia
partido em princípio predisposto a confirmar a lição do mestre e não
a refutá-la, mas retornou abalado com o que viu. Os fatos falaram
mais alto, ele não pôde negar uma realidade. O que o professor tem
agora a dizer diante dos fatos que ele passa a enumerar e a narrar, um
a um, em todos os seus detalhes? Mentiu, está cego, ou nada
entende de psicologia humana, embora seja este o assunto sobre o qual
vai ministrar o seu curso?
responde-lhe o professor,
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"você não está totalmente errado
em suas observações;
deveria ter esperado, porém,
pelo estágio que faríamos no fim deste curso,
quando compreenderia melhor os homens.
Sei o que você viu.
É, de fato,
uma triste realidade.
Mas, apesar do que você pôde observar,
devo-lhe confirmar que os homens
são verdadeiramente animais racionais.
Não se trata de um mito.
O que ocorre com eles
não é a ausência da racionalidade,
como você presumiu,
mas o fato deles serem vítimas
de uma doença pela qual neles produziu-se
uma separação entre o seu intelegir,
de um lado,
e, de outro lado,
os seus sentimentos,
os seus desejos,
o seu agir,
e até mesmo a sua própria inteligência,
a qual, o mais freqüentemente,
quando é chegado o momento de agir,
ou de funcionar em conjunto
com as demais faculdades da alma,
esquece-se momentaneamente daquilo
que ela própria,
aparentemente,
parecia saber alguns momentos antes,
quando podia funcionar sozinha,
sem interferência dos sentimentos,
dos desejos e do próprio agir.
Trata-se de uma doença
amplamente disseminada no planeta Terra,
mas são muito poucos
aqueles que se dão conta deste fato,
coisa que também faz parte da doença.
Embora esta seja
a doença mais disseminada entre eles,
eles próprios sequer a catalogam como tal.
Há entre eles algumas criaturas
que a conhecem como pecado original,
embora, precisamente falando,
estes sintomas não sejam o pecado original
mas uma conseqüência
do que seria o pecado original.
Este mal foi corretamente descrito
nos textos de alguns de seus sábios
da Idade Média e da Antigüidade;
hoje, porém, a maioria dos humanos crêem
que nenhum conhecimento objetivo
possa ser adquirido com a leitura destes escritos e,
com exceção daqueles que se interessam,
de alguma forma ou de outra,
pela arqueologia,
qualquer contato com eles
é tido como pura perda de tempo.
Estes textos antigos, porém,
não apenas descrevem a doença,
como também lhe apontam o remédio
e o curso clínico do restabelecimento.
O nome que dão ao remédio para esta doença
chama-se graça divina.
Dizem que quando a graça
começa a agir sobre o homem,
o homem vai se curando gradativamente
desta doença.
Ele retorna,
como entre eles deixou escrito o eremita Santo Antão,
ao estado original e,
quando a graça começa a agir sobre o homem,
conforme também eles dizem,
estas criaturas começam a cair na real.
No início deste que é
um longo processo de cura,
esta queda na realidade se manifesta
sob a forma de uma virtude
que eles denominam de humildade.
Eles chamam de humildade
ao início do processo de queda na realidade
que se dá, inicialmente,
apenas em relação a algumas poucas coisas,
embora muito fundamentais,
sem as quais qualquer ulterior queda na realidade
seria apenas ilusória,
se é que se pode falar deste modo.
Mas aqueles que conseguem iniciar
seu processo de cura
através da virtude da humildade,
à medida em que caem na realidade
em relação a um número sempre maior de aspectos,
acabam conseguindo fazê-lo,
depois de muito tempo,
simultaneamente em relação
a todos os aspectos ontologicamente relevantes
para a vida de um ser humano.
Surge então para estes seres
uma outra realidade,
a que eles chamam de contemplação.
Quando surge nos seres humanos
o que se chama de contemplação,
os humanos começam a se tornar livres desta doença
que os obrigava a agir irracionalmente
sem de fato o serem,
e eles começam então a provar
o verdadeiro sentido da liberdade".
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