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Muitos anos depois, já passada a Guerra do Peloponeso e o Governo dos Trinta
Tiranos, algumas pessoas que se sentiram ofendidas pelo magistério de Sócrates
inventaram uma queixa caluniosa contra ele no tribunal de Atenas.
Sócrates se dizia inocente.
O magistrado, porém, diante da multidão dos quinhentos juízes, perguntou:
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"Afinal, Sócrates,
vamos ser sinceros uns com os outros.
Qual é a tua ocupação?
Se dizes que estás sendo caluniado,
de onde procedem as calúnias a teu respeito? Naturalmente, se não tivesses
uma ocupação muito fora do comum,
não haveria este falatório,
a menos que praticasses alguma extravagância".
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Sócrates, então, com suas próprias palavras, contou a sua história:
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"Muito bem, atenienses.
Ouvi, então.
Alguns de vós achareis que estou gracejando,
mas não tenhais dúvidas,
eu vos contarei toda a verdade".
"Eu, atenienses,
devo a reputação que me deram
exclusivamente a uma ciência.
E qual é esta ciência?
Aquela que é, talvez, a ciência do homem".
"Para testemunhar a minha ciência,
e se é uma ciência, e qual é ela,
vos trarei o testemunho do deus de Delfos".
"Conhecestes a Querofonte, certamente".
"Querofonte era meu amigo de infância,
e também amigo do partido do povo
e seu companheiro naquele exílio
de que voltou conosco.
Ora, Querofonte, certa vez,
indo até Delfos,
arriscou esta consulta ao oráculo,
- repito, senhores, não vos amotineis -,
ele perguntou se havia alguém
mais sábio do que eu.
Respondeu o oráculo que não havia
ninguém mais sábio.
Quando soube daquele oráculo,
pus-me a refletir assim:
`Que quererá dizer este oráculo?
Que sentido oculto existe naquela resposta?
Eu mesmo não tenho consciência
de ser nem muito sábio nem pouco sábio.
Que quererá então ele dizer,
declarando-me o mais sábio?
Naturalmente não está mentindo,
pois isto lhe é impossível'.
Por longo tempo fiquei nesta incerteza
sobre o sentido.
Por fim, muito contra o meu gosto,
decidi-me por uma investigação,
que passo a expor.
Fui ter com um dos que passam por sábios,
porquanto, se havia lugar,
era ali que, para rebater o oráculo,
eu poderia apresentar
alguém mais sábio do que eu.
Submeti esta pessoa a exame.
Não preciso dizer o seu nome,
mas era um dos políticos.
Eis, atenienses,
a impressão que me ficou do exame
e da conversa que tive com ele:
achei que ele passava por sábio
aos olhos de muita gente,
principalmente aos seus próprios,
mas não o era.
Tentei, então, explicar-lhe
que ele supunha ser sábio,
mas não o era.
A conseqüência foi a de tornar-me odiado
dele e de muitos dos circunstantes.
Ao retirar-me,
ia concluindo de mim para comigo:
`Mais sábio do que este homem eu sou.
É bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom,
mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe,
enquanto eu, se não sei,
pelo menos não suponho saber.
Parece que sou um nadinha
mais sábio do que ele
exatamente em não supor
que eu saiba o que não sei'.
Daí fui ter com outro,
um dos que passam por ainda mais sábios
e tive a mesmíssima impressão.
Também ali me tornei odiado dele
e de muitos outros.
Depois disso não parei,
embora sentisse,
com mágoa e apreensão,
que ia me tornando odiado.
Não obstante, parecia-me imperioso
dar a máxima importância a este serviço.
Cumpria-me, portanto,
para averiguar o sentido do oráculo,
ir ter com todos os que passavam
por senhores de algum saber.
Ó atenienses!
Já que lhes devo a verdade,
eu vos declaro que se deu comigo
mais ou menos isto:
investigando de acordo com o oráculo,
achei que aos mais reputados
pouco faltava para serem os mais desprovidos,
enquanto outros, tidos como inferiores,
eram os que mais visão tinham
de ser homens de senso.
Depois dos políticos,
fui ter com os poetas,
tanto os autores das tragédias
como a outros,
na esperança de aí
me apanhar em flagrante inferioridade.
Levando em mãos as obras
em que pareciam ter posto
o máximo de sua capacidade,
interrogava-os minuciosamente
sobre o que diziam,
para ir, ao mesmo tempo,
aprendendo deles alguma coisa.
Pois bem, senhores,
coro de vos dizer a verdade,
mas é preciso.
A bem dizer,
quase todos os circunstantes
poderiam falar melhor do que eles próprios
sobre as obras que eles mesmo compuseram.
Assim, logo acabei compreendendo
que tampouco os poetas
compunham as suas obras por sabedoria,
mas sim por um dom natural,
por um estado de inspiração.
Ao mesmo tempo, porém,
notei que por causa da poesia
eles supõem ser os mais sábios dos homens
em outros campos em que não o são.
Saí, pois, acreditando superá-los
na mesma particularidade que aos políticos.
Por fim, fui ter com os artífices.
Tinha a consciência de não saber,
a bem dizer, nada,
e a certeza de neles descobrir
muitos belos conhecimentos.
Nisso não me enganava;
eles tinham conhecimentos que me faltavam;
eram, assim, mais sábios do que eu.
Contudo, atenienses,
achei que os bons artesãos
tinham o mesmo defeito que os poetas.
Por praticar bem a sua arte,
cada qual imaginava ser sapientíssimo
nos demais assuntos,
os mais difíceis,
e este engano toldava-lhes
aquela sabedoria.
De sorte que eu perguntei a mim mesmo,
em nome do oráculo,
se preferia ser como sou,
sem a sabedoria deles
nem a sua ignorância,
ou possuir, como eles, uma e outra.
E respondi, a mim mesmo e ao oráculo,
que me convinha mais ser como eu sou.
Desta investigação é que procedem,
atenienses,
de um lado, tantas inimizades
que deram nascimento a tantas calúnias,
e, de outro,
esta reputação de sábio.
É que toda vez os circunstantes supõem
que eu seja sábio
na matéria em que eu confundo a outrem.
O provável, senhores,
é que na realidade sábio seja o oráculo
e que este queira dizer
que pouco valor ou nenhum
tem a sabedoria humana.
Evidentemente se terá servido
do nome de Sócrates
para me dar como exemplo,
como se dissesse:
`O mais sábio dentre vós, homens,
é quem, como Sócrates,
compreendeu que sua sabedoria
é verdadeiramente desprendida
do mínimo valor'.
Por isso não parei esta investigação até hoje,
vagueando e interrogando,
de acordo com o oráculo,
a quem, seja cidadão, seja forasteiro,
eu tiver na conta de sábio, e,
quando julgar que não o é,
coopero provando-lhe que não é sábio.
Esta ocupação não me permitiu lazeres
para qualquer atividade
digna de menção nos negócios públicos,
nem nos particulares.
Vivo muito pobremente.
Além disso,
os moços que espontaneamente me acompanham
sentem prazer em ouvir o exame dos homens.
Eles próprios imitam-me muitas vezes,
interrogando os outros.
Suponho que descobrem uma multidão de pessoas
que supõem saber alguma coisa,
mas pouco sabem, quiçá nada.
Em conseqüência,
as pessoas que eles examinam
se revoltam contra mim,
e não contra si próprios,
e difundem que existe um tal de Sócrates,
que é um grande miserável
que corrompe a mocidade.
Quando se lhes pergunta
por que atos ou ensinamentos,
não têm o que responder.
Para não mostrar então o seu embaraço,
levantam aquelas acusações
que se levantam contra todos os filósofos
que estão sempre à mão:
`Sócrates investiga indiscretamente
os fenômenos celestes;
ensina a descrença nos deuses;
ensina a fazer prevalecer
a razão mais fraca sobre a mais forte'".
"Aí tendes, atenienses,
a verdade.
Em meu discurso não vos oculto nada
que tenha alguma importância.
Nada vos dissimulo".
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