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Se a própria pena que também é culpa provém de Deus. O que assim
parece, porque tudo o que é justo provém de Deus, e esta pena é
uma pena justa. Deste modo, parece que tal pena provenha de Deus.
SOLUÇÃO.
Não convém dizer isto, pois ela não possui o ser justa por uma
qualidade própria, mas pela lei divina, conforme já foi dito. De
fato, está escrito:
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"Deus não fêz a morte,
nem se alegra com a perdição
dos viventes".
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Ou, ainda que se conceda que a pena provenha de Deus, não todavia a
culpa, ainda que coincidam no mesmo a culpa e a pena. De fato, não
possui de Deus que seja culpa, ainda que de algum modo possua de Deus
que seja pena.
A pena, sendo algo em si mesmo, é dito provir de Deus de três
modos: por causa de sua matéria, a qual foi feita por Deus, como a
matéria do fogo; por causa da natureza, isto é, que tal coisa não
possa estar em tal outra sem que padeça, natureza esta que provém de
Deus; e por causa do julgamento divino, pelo qual tal pena é
infligida a tal culpa. Todavia não dizemos que Deus seja causa
daquela pena; isto seria dizer que Deus teria feito a culpa daquela
pena, e Deus não é causa da corrupção. Se não tivesse existido
a culpa não padeceria, de fato, aquele que é punido. Assim,
portanto, a pena, que é algo, é dita provir de Deus por três
motivos, pela matéria, pela natureza e pelo julgamento. Segundo
duas outras coisas, porém, a culpa e a corrupção, não provém de
Deus. A pena que é pecado pode ser dita provir de Deus por causa de
duas coisas: o julgamento divino e a natureza, que consiste em que
ninguém pode pecar sem que seja punido. A culpa, porém, e a
corrupção não provém de nenhum modo de Deus.
Portanto, não se deve dizer que seja pela obra ou pelo impulso de
Deus que alguém é precipitado no pecado, nem mesmo naquele que é
pena de outro pecado.
Quanto às Escrituras que parecem assim dizê-lo, devem ser
referidas à permissão ou à subtração da graça. Alguns também as
referem à abertura do caminho, porque a iniqüidade concebida
interiormente não pode manifestar-se se não se lhe abre o caminho,
como ocorreu com Nabucodonosor que primeiro concebeu interiormente a
malícia e Deus, expondo-lhe o povo judeu, abriu-lhe o caminho para
que deste modo pudesse vir a exercer a malícia para a qual antes o
caminho estava fechado.
Outros, porém, referem-nas ao fechamento do caminho. Para não
permitir que o homem tenha outro caminho pelo qual trilhar, Deus
fecha-lhe todos os demais. Deus assim é dito precipitar alguém no
pecado por não ter-lhe fechado o caminho que trilhou, assim como fêz
com os demais que não trilhou. Deste modo Deus não é a causa pela
qual o homem trilhou tal caminho, sendo o próprio homem que assim
procedeu, mas é a causa pela qual o homem não trilhou os demais.
Ambos, Deus e o homem, são também a causa do homem ter trilhado
este caminho de preferência aos demais. Assim, se o homem não peca
mais do que pecou, isto vem por autoria divina; se ele, porém, peca
tanto e não menos, isto procede do próprio homem. Seria como se um
homem estivesse numa torre e, querendo jogar-se por uma janela
abaixo, alguém lhe fechasse todas as janelas pelas quais poderia
fazê-lo exceto uma, justamente aquela pela qual o homem se atirasse.
A causa pela qual o homem não se jogou pelas demais foi a pessoa que a
fechou; a causa pela qual o homem se jogou pela janela pela qual o fêz
foi o próprio homem, e não quem fechou as demais; a causa pela qual
o homem se jogou por aquela determinada janela, em vez de o ter feito
pelas demais, são ambos, isto é, o homem que se jogou e o homem que
fechou as outras janelas.
Outros ainda referem estas Escrituras à ocasião, como quando o
Senhor, entrando em Jerusalém, comoveu toda a cidade e a malícia
anteriormente concebida, recebendo a ocasião, foi estimulada à
inveja e daí à perseguição.
Assim, a sentença do Apóstolo segundo a qual os que conheceram a
Deus, mas não o quiseram glorificar, foram por Ele entregues
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"aos desejos de seu coração,
a paixões da ignomínia,
a um sentimento depravado",
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segundo uns refere-se à permissão, segundo outros à subtração da
graça, à abertura do caminho ou ao não fechamento do caminho.
Nós, porém, dizemos referir-se ao conjunto de todas estas coisas
mais do que a uma só delas, embora nem todas ocorram sempre em toda a
parte. Três delas ocorrem sempre: a permissão, a subtração da
graça e o não fechamento do caminho. Quanto à abertura do caminho e
à ocasião, porém, estas nem sempre ocorrem.
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