IIIª Parte. D.


CAPÍTULO 50

Com o que fica exposto, comentamos duas das causas que confluíram para o advento do Renascimento. A primeira foi o declínio do ensino e das universidades. A segunda foi o nominalismo que passou a imperar nas mesmas universidades.

Uma terceira causa que acrescentou-se a estas duas foi a Peste Negra, da qual já comentamos algo nas primeiras partes desta introdução.

A Peste Negra foi a epidemia que dizimou tão grande parte da Europa em 1348 e nos anos que se seguiram. Proveniente da Ásia central, passou pelo Oriente Médio e, através dos portos marítimos do norte da Itália e de Marselha, invadiu toda a Europa.

Na sua obra "História da Civilização" Will Durant recolhe o seguinte testemunho datado de 1354 de um habitante de Siena sobre a Peste:

"Parentes, amigos e nem sacerdotes acompanhavam os corpos às valas. O ofício dos mortos não era recitado. Em muitos lugares da cidade escavavam-se fossas, largas e profundas, dentro das quais jogavam-se os corpos, cobertos com um pouco de terra. Desta maneira enchia-se camada após camada, até que toda a fossa estivesse cheia. Em seguida, iniciava-se outra fossa. E eu, Agniolo de Tura, com minhas próprias mãos sepultei cinco de minhas crianças em uma só fossa, assim como muitos outros também o fizeram. Muitos, porém, dos mortos estavam tão mal cobertos com terra que os cães reescavavam a fossa para comer suas carnes, dispersando pedaços dos mortos pela cidade. Os sinos não batiam, e ninguém chorava, não importando quão grande tivesse sido a sua perda, pois quase todos estavam na expectativa de sua própria morte. Todo o povo dizia e acreditava que aquilo já era o fim do mundo".

No "Decameron" de Bocaccio temos uma outra descrição do que foi a Peste Negra em Florença, vista por uma testemunha ocular:

"Não era apenas a conversa e o convívio com os doentes que transmitiam a infecção para os sãos, mas o simples tocar das roupas ou do que quer que tivesse sido tocado ou usado pelos doentes parecia suficiente para comunicar aquela doença. Uma coisa que tivesse pertencido a um homem doente ou que tivesse falecido pela doença, sendo tocada por um animal, em pouco tempo o matava, coisa que eu vi com os meus próprios olhos. Esta tribulação encheu de terror o coração de todos, de modo que o irmão abandonava o irmão, o tio abandonava o sobrinho, freqüentemente a esposa abandonava o marido e, o que é ainda mais extraordinário e até mesmo inacreditável, alguns pais e mães se recusavam a visitar as suas próprias crianças como se não fossem suas. O povo comum, desesperado e sem recursos, adoecia diariamente aos milhares para morrer inapelavelmente logo a seguir. Muitos exalavam o seu último suspiro nas próprias ruas enquanto que muitos outros dentre os que morriam em suas casas faziam saber de suas mortes aos vizinhos mais pelo fedor de seus corpos em decomposição do que por outro modo. Destes, e de outros que morriam, a cidade estava repleta. Os vizinhos, movidos mais pelo medo de que a decomposição dos cadáveres os colocasse em perigo do que por uma caridade pelos que partiam retiravam estes corpos de dentro das casas e os colocavam do lado de fora junto às portas onde, na parte da manhã, aqueles que passavam podiam ver uma multidão de cadáveres. Posteriormente os carrinhos os levavam e freqüentemente este carrinho levava juntos marido e mulher, dois ou três irmãos, pai e filho e assim por diante. A coisa chegou a tal ponto que o povo não se lembrava dos homens que morriam mais do que hoje em dia se lembraria das cabras que morrem".

Tais testemunhos tentam descrever o aspecto geral da Peste Negra na Europa tal como foi vista pelos contemporâneos. Interessa-nos porém, mais de perto, uma outra série de testemunhos, coligidos ainda por Ruy Nunes, todos do após Peste, sobre a queda do nível de ensino.

Na "História da Educação na Idade Média" Ruy Nunes coligiu alguns destes testemunhos anteriores à Peste; mas na "História da Educação no Renascimento" o mesmo autor reúne outros testemunhos, datados de depois da Peste, bastante piores do que os anteriores.

Na "História da Educação no Renascimento" Ruy Nunes cita que logo após a Peste Negra o Chanceler e os professores de Oxford escreveram ao Rei da Inglaterra declarando que a Universidade havia sido arrasada em conseqüência da epidemia. Uma dúzia de anos após a Peste os estudantes de Avinhão escreveram ao Papa dizendo que naquela Universidade já não havia mais aulas nem professores; os poucos alunos que ainda se viam por ali não tinham professores de todas as matérias e os que restavam eram muito deficientes.

Citando o historiador Campbell, Ruy Nunes diz que

"antes da Peste Negra havia guerras, disputas e polêmicas que continuaram a assolar as escolas. No entanto, só depois de 1348, nas gerações posteriores à Peste Negra, choveram testemunhos de todos os lados a respeito da decadência das Universidades, das deficiências dos mestres e da ameaçadora extinção do saber".

"O cronista Guilherme de Naugis diz que na França, após a Peste Negra, raras eram as pessoas capazes de instruir os meninos nos rudimentos da gramática nos lares, nas vilas e nos castelos. Testemunhos semelhantes existem sobre a falta de professores na Inglaterra".

Estes testemunhos descrevem um triste quadro. Não há aulas, não há professores nem alunos nas Universidades. Na França e na Inglaterra não se encontram professores para ensinar as primeiras letras. Tudo isto dura décadas, e não é mais conseqüência apenas de uma queda geral do ensino, mas resultado da Peste Negra. Uma série de outros testemunhos mostram que a disciplina nos mosteiros e nos conventos também foi diminuindo. As regras rígidas começaram a ser mais tolerantes e foi se negligenciando o cuidado com as almas.

A Peste Negra, portanto, contribuíu para abaixar ainda mais o nível do ensino e do clero.