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Falamos do sacrifício enquanto instituição de direito natural,
expondo depois algumas características que a esta instituição são
acrescentadas pelo Cristianismo. O advento do Cristianismo,
porém, havia sido precedido entre os judeus pelas leis da Antiga
Aliança, promulgadas por meio de Moisés junto ao Monte Sinai,
pouco antes de um milênio antes de Cristo.
Com o advento da Lei Mosaica a atitude até então espontânea do
sacrifício foi sancionada e regulamentada pela lei divina. Mais
ainda, pode-se dizer que foi trazida para o próprio centro da Antiga
Aliança, pois quando o povo escolhido, saindo do Egito, chegou aos
pés do Sinai, assim falou Deus a Moisés:
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"Vós vistes o que eu fiz aos Egípcios.
Pois bem,
se ouvirdes atentamente a minha voz
e guardardes a minha aliança,
sereis minha propriedade especial entre os povos,
e vós constituireis para mim
um reino de sacerdotes
e uma nação santa".
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Um reino de sacerdotes, pois, era o que Deus queria do povo de
Israel. E o sacerdócio existe em função do sacrifício.
Como e em que extensão as leis ditas cerimoniais do Velho Testamento
regulamentaram a atividade sacerdotal do povo de Israel é um assunto
sobre o qual não desejamos entrar em maiores detalhes. Mas a
instituição destas leis cerimoniais na lei mosaica tornou o povo de
Israel um povo cuja própria existência tinha por finalidade prestar
um culto a Deus, único entre os povos, cujo centro eram os
sacrifícios descritos nos livros sagrados. A instituição dos ritos
contidos nas leis cerimoniais principiou um verdadeiro trabalho
pedagógico de Deus em seu povo escolhido em relação à atitude
sacrificial que destinava-se também a possibilitar aos homens a
compreensão do que Cristo um dia haveria de fazer na cruz, ao mesmo
tempo em que já era figura dEle.
O caráter pedagógico das leis cerimoniais em relação à atitude
sacrificial aprofundou-se com as missões dos profetas da Antiga
Aliança posteriores a Moisés. Eles procuraram fazer ver, dentre
outras coisas, que o verdadeiro valor do sacrifício diante de Deus
consiste em ser símbolo de um outro sacrifício espiritual que
necessariamente deve existir juntamente com o primeiro. É neste
sentido que devem ser interpretadas diversas outras passagens do Velho
testamento, posteriores a Moisés, em que Deus parece desprezar a
prática dos sacrifícios.
No Salmo 49, por exemplo, posterior a Moisés, diz Deus pela
boca do profeta:
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"Escuta, Israel,
tenho que te admoestar.
Não tomarei o novilho de tua casa,
nem os cabritos de teu rebanho.
Se eu tivesse fome,
não o diria a ti,
porque minha é toda a terra
e tudo o que ela contém.
Porventura eu como a carne de touros,
ou bebo o sangue de cabritos?
Oferece a Deus o sacrifício de louvor,
e cumpre os votos que fizeste ao Altíssimo.
Prestai atenção,
os que de Deus esqueceis:
honra-me quem oferece
um sacrifício de louvor;
ao que segue o caminho reto,
dar-lhe-ei a fruir a salvação eterna".
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Esta passagem, assim como outras, não se destina a condenar as
práticas cerimoniais da Lei Mosaica, mas a chamar a atenção para o
sacrifício interno simbolizado pelo externo.
Comentando este fato, diz Agostinho no décimo livro da Cidade de
Deus:
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"O sacrifício visível é sacramento
do sacrifício invisível,
ou seja, sinal sagrado.
Eis porque a alma penitente,
a que se refere o profeta no Salmo 50,
ou o próprio profeta,
invocando a clemência divina,
exclama:
`Se houvesse querido sacrifícios,
eu te-lo-ia, sem dúvida, oferecido,
mas não te deleitarás com holocaustos.
O sacrifício para Deus é
o espírito arrependido;
Deus não despreza
o coração contrito e humilhado'.
É de se notar como onde disse
que Deus não quer sacrifícios,
ali mesmo mostra que Deus quer sacrifícios.
Não quer sacrifício de rês sacrificada,
mas o sacrifício do coração contrito.
O sacrifício que Deus não quer,
segundo o profeta,
é figura do sacrifício que quer.
Por isso,
onde no Velho Testamento se lê:
`Quero misericórdia
e não sacrifícios',
não convém entender outra coisa senão que
o que todos chamam de sacrifício
é signo do verdadeiro sacrifício".
S. Agostinho
A Cidade de Deus X, 5
"A própria alma é sacrifício
quando se oferece a Deus abrasada
no fogo de seu amor e,
despojando-se da concupiscência do século
para reformar-se
de acordo com o modelo imutável,
lhe oferece a infinita beleza
de seus próprios dons".
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O Espírito Santo, pois, inspirou tais passagens do Velho
Testamento não para condenar a prática das leis cerimoniais
instituídas por Moisés, mas para chamar a atenção para este
verdadeiro sacrifício do qual aquele outro é símbolo. No profeta
Malaquias, o último do Velho Testamento na ordem cronológica,
Ele volta a repreender os sacerdotes que cumprem negligentemente as
leis cerimoniais:
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"Um filho ama o pai,
e um servo o seu senhor.
Se eu, pois, sou pai,
onde está a honra que me corresponde?
E se eu sou o Senhor,
onde está o respeito que se me deve?
diz o Senhor dos Exércitos a vós,
sacerdotes,
desprezadores de meu nome.
Vós, porém, me perguntais:
`Em que modo desprezamos o vosso nome?'
Vós ofereceis sobre o meu altar
alimentos ofensivos.
Quando ofereceis em sacrifício
um animal cego,
isto não é mau?
E quando ofereceis
um animal coxo ou doente,
isto não é mau?
Eu já não encontro em vós
o meu comprazimento,
diz o Senhor dos Exércitos,
e nenhuma oblação vinda de vossas mãos
já me agrada;
porque desde onde o Sol desponta
até onde se põe,
grande é o meu nome
entre as nações,
e em todo o lugar
se oferece ao meu nome
o perfume de incenso
com uma oblação pura.
Vós, porém, o profanais:
trazeis vítimas roubadas,
coxas ou doentes
para oferecê-las em sacrifício.
Como posso eu aceitá-las com agrado,
de vossas mãos?"
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Esta passagem de Malaquias é de particular importância por ter sido
considerada já entre os primeiros cristãos como uma profecia da
instituição do Sacrifício Eucarístico, que se espalharia entre
todas as nações, do nascente ao poente, agora sim em substituição
aos sacrifícios da lei mosaica, restritos apenas ao povo judeu. É ao
Sacrifício do Altar que se referiam estas palavras:
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"Eu já não encontro em vós
o meu comprazimento,
diz o Senhor dos Exércitos,
e nenhuma oblação
vinda de vossas mãos
já me agrada;
porque desde onde o Sol desponta
até onde se põe,
grande é o meu nome entre as nações,
e em todo o lugar se oferece ao meu nome
o perfume de incenso
com uma oblação pura".
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A oblação pura a que se refere Malaquias é o próprio Cristo
oferecido no Sacrifício do Altar.
Assim é que um longo caminho preparava o terreno para a Redenção
que seria operada por Cristo. Vindo ao mundo, ofereceu-se a si
próprio como vítima do sacrifício da cruz; sem que os romanos se
dessem conta da importância da coincidência, Cristo foi imolado
precisamente no dia da Páscoa, no qual, em todas as casas do povo de
Israel, se celebrava o sacrifício do cordeiro pascal. Jesus era,
neste dia, o cordeiro de Deus. Sem que também os romanos o tivessem
percebido, foi igualmente, devido a circunstâncias aparentemente
fortuitas, excepcionalmente crucificado obedecendo a diversos detalhes
que estavam prescritos há mais de mil anos pela lei mosaica para o
ritual do cordeiro pascal. A semelhança, porém, não foi uma
simples coincidência: toda a história de Israel foi uma preparação
para que fosse possível perceber-se que naquela Páscoa Cristo
oferecia a Deus o sacrifício de um cordeiro que era ele próprio.
Sacrifício tão mais valioso quanto mais valiosa era a vítima, o
Filho de Deus feito homem, e mais ainda por simbolizar externamente
outro sacrifício interior que estava acontecendo o qual jamais
encontraria outro igual na história, o sacrifício de um amor que
conhecia ao Deus amado como nenhuma criatura jamais o pôde e que
também, por conhecer tanto a Deus, por isto mesmo conhecia também
de modo igual a malícia do pecado pelo qual agora este amor se oferecia
em reparação. Foi este amor que mereceu a salvação dos homens.
É por isto que ao mesmo tempo em que no Cristianismo o maior
mandamento é o amor a Deus, seu símbolo é o Cristo crucificado,
pois aquele sacrifício celebrado por Jesus no dia da Páscoa foi o
maior ato de amor que jamais houve, e não acidentalmente foi que se
consumou num rito sacrificial. Desde a instituição da gênero
humano, a própria natureza humana, educada posteriormente pela
pedagogia divina, o tomou como capaz de expressar visivelmente tudo
aquilo que o amor pode conter de mais puro e mais sublime. O próprio
Cristo, um dia antes de morrer, já o havia dito:
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"Ninguém tem maior amor
do que aquele que dá
a vida pelos amigos".
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Assim, o sacrifício de Cristo na cruz está tão no centro do
Cristianismo como o preceito do amor a Deus. Aquele sacrifício foi
o exemplo mais sublime da prática daquele mandamento, pelo amor
sublime com que nele Cristo amou a Deus e aos homens.
A Revelação, porém, não havia de terminar com a morte de
Cristo. Na noite anterior à sua Paixão, Jesus havia afirmado aos
Apóstolos que ainda tinha muitas coisas para dizer, mas que eles
|
"não as teriam podido
compreender naquele momento".
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Por isto, subindo aos céus, rogaria ao Pai para que lhes enviasse
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"um Consolador,
que estaria com eles para sempre,
o Espírito da Verdade",
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o qual
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"lhes ensinaria toda a verdade".
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A revelação cristã em toda a sua totalidade, portanto, tudo aquilo
que o Cristo ainda desejava ensinar sem que o pudesse, ou, no seu
dizer, "toda a verdade", somente seria ensinada aos Apóstolos
após a sua morte, por inspiração do Espírito Santo.
Foi desta maneira que depois da morte e ressurreição de Cristo o
caráter interior do sacrifício foi acentuado mais ainda do que havia
sido feito pelos profetas do Velho Testamento. É assim que na
primeira carta de São Pedro, este escrevia aos cristãos:
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"Achegai-vos a Cristo,
pedra viva,
rejeitada pelos homens,
mas eleita e honrada por Deus.
Vós também,
como pedras vivas,
estais edificados sobre Ele,
para serdes um edifício espiritual,
um sacerdócio santo,
para oferecer vítimas espirituais,
aceitas por Deus por Cristo Jesus.
Vós sois estirpe eleita,
sacerdócio régio,
gente santa,
povo trazido à salvação,
para tornardes conhecidos
os prodígios daquele que vos chamou
das trevas para a luz admirável".
|
|
É de se notar como São Pedro diz que os cristãos são um
sacerdócio santo, mas para oferecer vítimas espirituais, não as dos
animais do Velho Testamento. Descreve aqui, pois, São Pedro,
um sacrifício puramente interior.
Também diz São Paulo, na Epístola aos Romanos:
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"Exorto-vos, pois, irmãos,
pela misericórdia de Deus,
a oferecer os vossos corpos como vítima viva,
santa, agradável a Deus,
como vosso culto racional".
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E João, no Apocalipse:
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"Jesus Cristo,
aquele que nos amou,
nos libertou de nossos pecados
em virtude de seu sangue
e fêz de nós um reino de sacerdotes
para Deus, seu Pai,
a Ele a glória e o poder
pelos séculos dos séculos".
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Merece que se observe, nesta passagem, a expressão "reino de
sacerdotes". É a mesma que Deus havia revelado a Moisés no
Êxodo.
Mas seria uma ingenuidade supor que no Cristianismo todo sacrifício
visível e externo haveria de ser suprimido. Não é concebível que
Deus repentinamente proibisse uma das expressões mais naturais do amor
humano para com Ele, mais ainda após ter, pela Antiga Aliança,
cultivado esta expressão num grau tão elevado. De fato, esta
expressão continuaria sob a forma do Sacrifício da Missa, o qual
perpetua entre os homens, por instituição do próprio Cristo, o
mesmo sacrifício que Ele realizou na Páscoa memorável da
Redenção. Como todas as leis cerimoniais do Antigo Testamento
eram uma figura deste sacrifício que seria realizado por Cristo,
estando agora presente entre os homens a realidade antes apenas
figurada, extingüem-se só por isto os ritos anteriores.
Naquele sacrifício prefigurado pelas leis cerimoniais, o sacrifício
único da cruz, Jesus ofereceu a Deus algo que valia mais não só do
que todos os sacrifícios da Antiga Aliança, mas também mais do que
toda a obra da Criação; algo de tamanha importância e
centralidade, oferecido também por amor dos homens, não podia
perder-se num momento passado da história. Por amor aos homens,
novamente, Jesus decidiu perpetuar aquele momento. Seu sacrifício
haveria de ser representado, ao longo dos séculos, por outro
verdadeiro sacrifício, ainda que sem derramamento de sangue. Não se
trata de um novo sacrifício instituído para acrescentar eficácia ao
sacrifício da cruz; é o próprio sacrifício da cruz reproduzido
incessantemente diante dos homens para perpetuar a sua memória e para
chamar aos homens de todos os tempos à participação viva daquele.
Sabemos que a missa instituída por Cristo é sacrifício não apenas
pela profecia de Malaquias, mas também pela profecia messiânica do
Salmo 110, reconhecida como tal pelas palavras de Cristo no Novo
testamento, e pela tradição dos rabinos.
No Salmo 110 está escrito que ao Messias o Senhor teria jurado,
|
"irrevogavelmente:
`Tu és sacerdote para sempre
segundo a ordem de Melquisedec'".
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Ora, alguém é ordenado sacerdote segundo uma dada ordem para poder
realizar o sacrifício segundo o determinado rito daquela ordem. E de
Melquisedec a única menção que as Sagradas Escrituras fazem data
de 1200 anos antes desta profecia; foi ele o rei que a Escritura
designa no Gênesis que teria se aproximado de Abraão após sua
vitória militar contra Codorlaomer com uma oferta de pão e vinho para
oferecer um sacrifício,
|
"pois era sacerdote
de Deus Altíssimo".
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Em nenhuma outra passagem do Velho Testamento se cita um sacrifício
de pão e vinho, exceto o de Melquisedec. O Messias ser ordenado
para sempre segundo a ordem de Melquisedec não significa outra coisa
senão que Ele seria ordenado por Deus para oferecer este mesmo
sacrifício. Porém a única vez que a Escritura menciona Cristo ter
celebrado algum rito com pão e vinho foi durante a última ceia. Nela
ele tomou o pão, o abençoou, o partiu e o deu aos seus discípulos
dizendo:
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"Tomai e comei,
isto é o meu corpo".
|
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Tomando depois o cálice, deu graças e o deu a beber, dizendo:
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"Bebei dele todos.
Isto é o meu sangue da Nova Aliança,
que será derramado por muitos
para o perdão dos pecados".
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Esta ceia era, pois, um sacrifício de pão e vinho oferecido a Deus
segundo a ordem de Melquisedec. Dizendo Jesus "Isto é o meu
corpo" e "Isto é o meu sangue que será derramado por muitos",
quiz dizer que este sacrifício de pão e vinho não era algo distinto
do sacrifício da cruz que seria realizado no dia seguinte.
Mas na última ceia Cristo acrescentou, ordenando aos Apóstolos:
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"Fazei isto em minha memória".
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Com isto não fêz outra coisa senão instituí-los sacerdotes para
oferecerem este mesmo sacrifício, com o fim de que todos os homens
pudessem se unir a Ele de modo visível e real no sacrifício da
Redenção, centro do Cristianismo e paradigma do preceito da
caridade, participando assim juntamente com o próprio Cristo daquele
ato de amor e oferecendo juntamente com o sacrifício dEle os seus
próprios pessoais.
Não há, pois, também contradição alguma em se dizer ora que o
sacrifício da Missa é o ponto central do Cristianismo, ora que o
mandamento do amor é este ponto central. O primeiro é a mais plena
realização do outro.
Mas há ainda outro motivo pelo qual sabemos que a Missa é
sacrifício. É que, desde o início do Cristianismo isto foi
afirmado unanimemente por todos os cristãos de todos os lugares e de
todas as épocas durante quinze séculos sem que tivesse havido uma
única voz que o tivesse contestado. De um modo especial a história
da Igreja primitiva testemunha abundantemente que a Missa foi vista
desde o princípio como o Sacrifício da Nova Aliança.
Assim é que no século II o mártir São Justino deixou
testemunhado num texto denominado "Apologia ao Judeu Trifão" o
costume que ele descreve como sendo o de toda a Igreja:
|
"Eu dizia, senhores,
que também a oblação da flor de farinha que,
conforme a tradição,
é oferecida pelos que são purificados da lepra,
era figura do pão da ação de graças
em relação ao qual Jesus Cristo,
Nosso Senhor,
manda fazer em memória da paixão
que ele sofreu pelos que são purificados nas almas
de toda a maldade dos homens,
para que rendêssemos graças a Deus
por ter criado o Universo
com todas as coisas que nele existem através do homem e,
ao mesmo tempo,
por nos ter libertado do mal em que nascemos
e ter destruído fatalmente os principados
e as potestades através daquele que,
segundo a Sua vontade,
nasceu passível.
É daí que,
como falei anteriormente,
diz Deus através do profeta Malaquias,
um dos doze profetas,
sobre os sacrifícios então por vós,
judeus, oferecidos:
`Minha vontade não está em vós,
diz o Senhor,
e não aceitarei de vossas mãos
os vossos sacrifícios;
porque do nascer ao por do Sol
o meu nome é glorificado entre os gentios
e em todo lugar se oferecem ao meu nome
incenso e um sacrifício puro,
pois grande é o meu nome
entre os gentios, diz o Senhor:
vós, porém, o profanais'.
Já então ele profetiza sobre
os sacrifícios a ele oferecidos
em todo lugar por nós,
gentios, isto é,
do pão da ação de graças
como também do cálice da ação de graças,
dizendo que nós glorificaremos o seu nome,
vós, porém, o profanais".
|
|
Por volta do ano 340 DC, Eusébio de Cesaréia também escrevia
em um livro denominado Demonstração Evangélica:
|
"(O Salmista diz que Cristo)
será sacerdote segundo a ordem
de Melquisedec (Salmo 110,4).
O cumprimento desta profecia causa admiração
ao que contempla como Jesus,
nosso Salvador, o Cristo de Deus,
cumpre ainda agora,
por meio de seus servidores,
o seu ministério sacerdotal entre os homens
à maneira de Melquisedec.
Pois assim como ele,
sendo sacerdote dos gentios,
nos é apresentado não utilizando
nenhum gênero de vítimas corporais,
mas apenas pão e vinho ao abençoar Abraão,
do mesmo modo nosso Salvador e Senhor,
em pessoa primeiro,
e depois todos os sacerdotes que procedem dele,
cumprindo o ministério sacerdotal espiritual
segundo os ritos da Igreja por todas as nações,
insinuam com pão e vinho
os mistérios do seu corpo
e do seu sangue salvador,
tendo Melquisedec já visto de antemão
estas coisas que haviam de acontecer,
segundo o atesta a Escritura de Moisés,
dizendo:
`E Melquisedec, rei de Salém,
apresentou pão e vinho;
e era sacerdote do Deus Altíssimo,
e abençoou a Abraão'
|
|
|
Com razão, portanto,
apenas a Aquele que foi mostrado
`jurou o Senhor e não se arrependerá:
Tu és', diz Ele,
`sacerdote para sempre
segundo a ordem de Melquisedec'".
|
|
|
Eusébio de Cesaréia
Demonstração Evangélica
L. 5, C. 3, MG 22, 361
|
Por volta do ano 400, Santo Agostinho também escrevia em seus
livros coisas do mesmo teor:
|
"Jesus é também nosso sacerdote para sempre
segundo a ordem de Melquisedec",
|
|
diz Agostinho,
|
"ele que ordenou que se celebrasse
a semelhança daquele sacrifício da cruz
em memória de sua paixão;
para que vejamos que aquilo
que Melquisedec ofereceu a Deus
(Gen. 14, 18) é já oferecido
na Igreja de Cristo por toda a terra".
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Livro das 83 Questões
Q. 61, nº2, ML 40, 49
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O mesmo Agostinho, em um sermão pregado no dia da Páscoa a um
grupo de recém batizados diz também o seguinte:
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"Agora vêdes com nova luz
sobre a mesa do Senhor
esta comida e esta bebida,
e agora percebeis com nova piedade
o que significa tão limpo e fácil sacrifício,
oferecido agora não naquele templo
construído por Salomão,
mas sim desde o nascer ao por do Sol,
assim como foi predito pelos profetas.
Não necessitamos já de hóstias cruentas
dos rebanhos de animais;
não necessitamos já pôr nos altares
ovelhas nem cordeiros;
já lestes no livro do Gênesis
como Melquisedec,
sacerdote do Deus excelso,
ofereceu pão e vinho
quando abençoou nosso pai Abraão.
Assim, pois,
Cristo Nosso Senhor,
feito príncipe dos sacerdotes,
estabeleceu esta nova maneira
de sacrificar o que aqui vedes,
o seu próprio corpo e o seu próprio sangue.
Reconhecei no pão aquilo que pendeu da cruz;
reconhecei no cálice aquilo que fluíu do lado".
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Sermão do Dia da Páscoa
ML 46, 827
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Em outro sermão de Santo Agostinho encontramos ainda esta passagem:
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"A Igreja,
pela sucessão certíssima dos bispos,
persevera desde o tempo dos Apóstolos
até os nossos e daqui para a frente,
e imola ao Senhor no Corpo de Cristo
um sacrifício de louvor,
não segundo a ordem de Aarão,
mas segundo a ordem de Melquisedec.
Naquele salmo,
que o Senhor Jesus afirma no Evangelho
que havia sido escrito acerca dele mesmo,
está escrito:
`Jurou o Senhor,
e não se arrependerá:
Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedec'.
Os que leram sabem o que ofereceu Melquisedec
quando bendisse a Abraão (Gen. 14, 18);
e já são partícipes do mesmo,
vêem que este sacrifício se oferece a Deus
em toda a terra.
E quando diz que Deus não se arrependerá,
significa que não mudará este sacerdócio.
Mudou, de fato, o sacerdócio
segundo a ordem de Aarão.
De onde que outro profeta diz:
`Minha vontade não está em vós,
diz o Senhor Onipotente,
e não receberei hóstia de vossas mãos'.
|
|
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Eis aqui o sacrifício
segundo a ordem de Aarão.
E acrescenta porque não recebe este sacrifício:
`Porque desde o oriente até o poente
meu nome é glorificado entre as nações,
e em todo lugar se ofecere ao meu nome
incenso e uma hóstia pura,
porque grande é o meu nome entre as nações,
diz o Senhor Onipotente'
|
|
|
Eis aqui o sacrifício
segundo a ordem de Melquisedec'.
|
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Tais passagens são exemplos de inúmeras outras que poderiam ser
citadas de um período que abrange quinze séculos desde o início do
Cristianismo, sem que nele se encontrem vozes contestatárias. Mais
adiante haveremos de abordar outros escritores dos três primeiros
séculos que trataram deste mesmo assunto; os anteriores, porém, já
nos mostram em que sentido o caráter sacrificial da Missa foi tido
como doutrina constante entre os cristãos.
Resta notar ainda a unidade existente entre o Sacrifício da Missa e
o Sacrifício da Cruz, para poder explicar- se um aparente paradoxo
encontrado na Epístola aos Hebreus. Um primeiro exame desta
epístola, de fato, nos mostra que ela discorre sobre o tema de
Cristo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, mas não menciona o
Sacrifício da Missa. Só um exame mais atento tanto da epístola
como do assunto considerado em si mesmo pode nos explicar o motivo desta
importante, mas aparente contradição.
A unidade existente entre o Sacrifício da Missa e o Sacrifício da
Cruz advém de um ser a representação do outro. É o mesmo
sacrifício, oferecido sob formas distintas:
diz Jesus, e também:
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"Isto é o meu sangue,
derramado por muitos".
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Não há, pois, aqui, dois sacerdócios distintos. No altar se faz
sem derramamento de sangue aquilo mesmo que Jesus fêz na cruz. Neste
único sacerdócio tem primazia, entretanto, o Sacrifício da Cruz,
já que o do altar é representação daquele.
O sacrifício de Melquisedec, figurando o do altar, figura também o
principal, que é o da cruz. No sacerdócio de Melquisedec,
enquanto oferecimento do sacrifício de pão e vinho, figura-se o
sacrifício do altar; pela reverência exibida por Abraão a este
sacrifício, figura-se o sacrifício da cruz, pelo qual foi redimida
a humanidade e foram abençoadas todas as nações da terra. No
sacerdócio de Melquisedec está, portanto, representado todo o
sacerdócio de Cristo, e não apenas o Sacrifício da Missa.
Por causa deste fato, mais o acréscimo de outras causas
circunstanciais, é que pôde a Epístola aos Hebreus, ao abordar o
tema de Cristo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, não
mencionar o Sacrifício da Missa.
O Apóstolo não quis na Carta aos Hebreus dissertar sobre o pleno
conteúdo de Melquisedec figura de Cristo. Ele escreveu esta carta a
hebreus, e sua preocupação evidente foi a de demonstrar a excelência
do sacerdócio de Cristo sobre o sacerdócio judaico. Ele quis
mostrar como o sacerdócio de Cristo extinguiu o judaico, para que os
hebreus convertidos ao cristianismo não cedessem à tentação
existente entre eles de retornarem aos ritos antigos e de ensinarem aos
gentios recém convertidos a obrigatoriedade das leis cerimoniais do
Velho Testamento. Ora, a justificação destas afirmações tem a
sua fonte no Sacrifício da Cruz. Dissertar sobre a missa em tal
contexto só serviria para dispersar a atenção dos destinatários
sobre um assunto não só muitíssimo delicado naquele época, como
também de cuja acertada solução dependia decisivamente a própria
difusão do Evangelho entre os gentios. E, de fato, o sacrifício
de Melquisedec nesta carta só é invocado na medida em que por ele
pode-se evidenciar que o Antigo Testamento demonstra a existência de
um sacerdócio superior ao da Lei Mosaica. Se o Apóstolo estivesse
tratando do assunto em si mesmo, se tivesse querido tratar de todo o
significado contido no tema do sacerdócio de Melquisedec, ele teria
que, em algum momento, ter explicado o que significa a presença do
pão e do vinho nesta forma de sacerdócio. Mas em nenhum momento
nesta epístola se menciona nada a respeito de pão e de vinho. Este
aspecto da questão é passado totalmente em silêncio, o que mostra
que a intenção do autor da Epístola não foi a de tratar do assunto
considerado em si mesmo, mas apenas na medida em que ele poderia trazer
luz a uma outra questão, que é o verdadeiro tema da Epístola e
que, em seu tempo, exigia uma solução urgente e definitiva para a
própria sorte da propagação da mensagem cristã entre os povos de
toda a terra.
Podemos concluir este capítulo mencionando que poucos anos após ter
se cumprido a Redenção, o exército romano entrou em Jerusalém,
destruíu o templo de Salomão ali reconstruído e dispersou a
comunidade judaica pelo mundo da época. Com isso cessaram até hoje,
não só de direito, como também de fato, a quase totalidade dos
sacrifícios prescritos pela Lei Mosaica.
Sobrevindo a realidade, cessou a figura.
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