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Em nosso Livro anterior tratamos suficientemente sobre alguns dos
principais pontos do culto pagão dos ídolos, e como estes falsos
deuses surgiram originalmente. Nós também, pela graça de Deus,
indicamos brevemente que o Verbo do Pai é Ele mesmo divino, que
todas as coisas que existem devem seu próprio ser à sua vontade e
poder e que é através dEle que o Pai dá ordem à criação, por
Ele que todas as coisas são movidas e através dEle que recebem o seu
ser. Agora, Macário, verdadeiro amante de Cristo, devemos dar um
passo a mais na fé de nossa sagrada religião e considerar também como
o Verbo se fêz homem e surgiu entre nós.
Para tratar destes assuntos é necessário primeiro que nos lembremos
do que já foi dito. Deves entender por que o Verbo do Pai, tão
grande e tão elevado, se manifestou em forma corporal. Ele não
assumiu um corpo como algo condizente com a sua própria natureza,
mas, muito ao contrário, na medida em que Ele é Verbo, Ele é
sem corpo. Manifestou-se em um corpo humano por esta única razão,
por causa do amor e da bondade de seu Pai, pela salvação de nós
homens. Começaremos, portanto, com a criação do mundo e com Deus
seu Criador, pois o primeiro fato que deves entender é este: a
renovação da Criação foi levada a efeito pelo mesmo Verbo que a
criou em seu início.
Em relação à criação do Universo e à criação de todas as
coisas têm havido uma diversidade de opiniões, e cada pessoa tem
proposto a teoria que bem lhe apraz. Por exemplo, alguns dizem que
todas as coisas são auto originadas e, por assim dizer, totalmente ao
acaso. Entre estes estão os Epicúreos, os quais negam
terminantemente que haja alguma Inteligência anterior ao Universo.
Outros fazem seu o ponto de vista expressado por Platão, aquele
gigante entre os Gregos. Ele disse que Deus fêz todas as coisas da
matéria pre-existente e incriada, assim como o carpinteiro faz as
suas obras da madeira que já existe. Mas os que sustentam esta
opinião não se dão conta que negar que Deus seja Ele próprio a
causa da matéria significa atribuir-Lhe uma limitação, assim como
é indubitavelmente uma limitação por parte do carpinteiro que ele
não possa fazer nada a não ser que lhe esteja disponível a madeira.
Então, finalmente, temos a teoria dos Gnósticos, que inventaram
para si mesmos um Artífice de todas as coisas, outro que não o Pai
de nosso Senhor Jesus Cristo. Estes simplesmente fecham os seus
olhos para o sentido óbvio das Sagradas Escrituras.
Tais são as noções que os homens têm elaborado. Mas pelo divino
ensinamento da fé cristã nós sabemos que, pelo fato de haver uma
Inteligência anterior ao Universo, este não se originou a si
mesmo; por ser Deus infinito, e não finito, o Universo não foi
feito de uma matéria pré-existente, mas do nada e da absoluta e
total não existência, de onde Deus o trouxe ao ser através do
Verbo. Ele diz, neste sentido, no Gênesis:
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"No início Deus
criou o Céu e a Terra";
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e novamente, através daquele valiosíssimo livro ao qual chamamos "O
Pastor":
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"Crêde primeiro
e antes de tudo o mais
que há apenas um só Deus
o qual criou e ordenou a todas as coisas
trazendo-as da não existência ao ser."
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Paulo também indica a mesma coisa quando nos diz:
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"Pela fé conhecemos
que o mundo foi formado
pela Palavra de Deus,
de tal modo que as coisas visíveis
provieram das coisas invisíveis".
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Pois Deus é bom, ou antes, Ele é a fonte de toda a bondade, e é
impossível por isso que Ele deva algo a alguém. Não devendo a
existência a ninguém, Ele criou a todas as coisas do nada mediante
seu próprio Verbo, nosso Senhor Jesus Cristo, e de todas as suas
criaturas terrenas ele reservou um cuidado especial para a raça
humana. A eles que, como animais, eram essencialmente
impermanentes, Deus concedeu uma graça de que as demais criaturas
estavam privadas, isto é, a marca de sua própria Imagem, uma
participação no ser racional do próprio Verbo, de tal modo que,
refletindo-O, eles mesmos se tornariam racionais expressando a
Inteligência de Deus tanto quanto o próprio Verbo, embora em grau
limitado. Deste modo, os homens poderiam continuar para sempre na bem
aventurada e única verdadeira vida dos santos no paraíso. Como a
vontade do homem poderia, porém, voltar-se para vários caminhos,
Deus assegurou-lhes esta graça que lhes havia concedido
condicionando-a desde o início a duas coisas. Se eles guardassem a
graça e retivessem o amor de sua inocência original, então a vida do
paraíso seria sua, sem tristeza, dor ou cuidados, e após ela
haveria a certeza da imortalidade no céu. Mas se eles se desviassem
do caminho e se tornassem vis, desprezando seu direito natal à
beleza, então viriam a cair sob a lei natural da morte e viveriam não
mais no paraíso, mas, morrendo fora dele, continuariam na morte e na
corrupção. Isto é o que a Sagrada Escritura nos ensina, ao
proclamar a ordem de Deus:
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"De todas as árvores que estão no jardim
vós certamente comereis,
mas da árvore do conhecimento do bem e do mal
não havereis de comer,
pois certamente havereis de morrer".
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"Certamente havereis de morrer", isto é, não apenas morrereis,
mas permanecereis no estado de morte e corrupção.
Estarás talvez a divagar por que motivo estamos discutindo a origem do
homem se nos propusemos a falar sobre o Verbo que se fêz homem. O
primeiro assunto é de importância para o último por este motivo: foi
justamente o nosso lamentável estado que fêz com que o Verbo se
rebaixasse, foi nossa transgressão que tocou o seu amor por nós.
Pois Deus havia feito o homem daquela maneira e havia querido que ele
permanecesse na incorrupção. Os homens, porém, tendo voltado da
contemplação de Deus para o mal que eles próprios inventaram,
caíram inevitavelmente sob a lei da morte. Em vez de permanecerem no
estado em que Deus os havia criado, entraram em um processo de uma
completa degeneração e a morte os tomou inteiramente sob o seu
domínio. Pois a transgressão do mandamento os estava fazendo
retornarem ao que eles eram segundo a sua natureza, e assim como no
início eles haviam sido trazidos ao ser a partir da não existência,
passaram a trilhar, pela degeneração, o caminho de volta para a não
existência. A presença e o amor do Verbo os havia chamado ao ser;
inevitavelmente, então, quando eles perderam o conhecimento de
Deus, juntamente com este eles perderam também a sua existência.
Pois é somente Deus que existe, o mal é o não-ser, a negação e
a antítese do bem. Pela natureza, de fato, o homem é mortal, já
que ele foi feito do nada; mas ele traz também consigo a Semelhança
dAquele Que É, e se ele preservar esta Semelhança através da
contemplação constante, então sua natureza seria despojada de seu
poder e ele permaneceria indegenerescente. De fato, é isto o que
vemos escrito no Livro da Sabedoria:
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"A observância de Suas Leis
é a garantia da imortalidade".
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E, incorrompido, o homem seria como Deus, conforme o diz a própria
Escritura, onde afirma:
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"Eu disse:
`Sois deuses,
e todos filhos do Altíssimo.
Mas vós como homens morrereis,
caireis como um príncipe qualquer'".
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Esta, portanto, era a condição do homem. Deus não apenas o havia
feito do nada, mas também lhe tinha graciosamente concedido a Sua
própria vida pela graça do Verbo. Os homens, porém, voltando-se
das coisas eternas para as coisas corruptíveis, pelo conselho do
demônio, se tornaram a causa de sua própria degeneração para a
morte, porque, conforme dissemos antes, embora eles fossem por
natureza sujeitos à corrupção, a graça de sua união com o Verbo
os tornava capazes de escapar na lei natural, desde que eles retivessem
a beleza da inocência com a qual haviam sido criados. Isto é o mesmo
que dizer que a presença do Verbo junto a eles lhes fazia de escudo,
protegendo-os até mesmo da degeneração natural, conforme também o
diz o Livro da Sabedoria:
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"Deus criou o homem para a imortalidade
e como uma imagem de sua própria eternidade;
mas pela inveja do demônio
entrou no mundo a morte".
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Quando isto aconteceu os homens começaram a morrer e a corrupção
correu solta entre eles, tomou poder sobre os mesmos até mais do que
seria de se esperar pela natureza, sendo esta a penalidade sobre a qual
Deus os havia avisado prevenindo-os acerca da transgressão do
mandamento. Na verdade, em seus pecados os homens superaram todos os
limites. No início inventaram a maldade; envolvendo-se desta
maneira na morte e na corrupção, passaram a caminhar gradualmente de
mal a pior, não se detendo em nenhum grau de malícia, mas, como se
estivessem dominados por uma insaciável apetite, continuamente
inventando novo tipos de pecados. Os adultérios e os roubos se
espalharam por todos os lugares, os assassinatos e as rapinas encheram
a terra, a lei foi desrespeitada para dar lugar à corrupção e à
injustiça, todos os tipos de iniqüidades foram praticados por todos,
tanto individualmente como em comum. Cidades fizeram guerra contra
cidades, nações se levantaram contra nações, e toda a terra se viu
repleta de divisões e lutas, enquanto cada um porfiava em superar o
outro em malícia. Até os crimes contrários à natureza não foram
desconhecidos, conforme no-lo diz o Apóstolo mártir de Cristo:
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"Suas próprias mulheres
mudaram o uso natural em outro uso,
que é contra a natureza;
e os homens também,
deixando o uso natural da mulher,
arderam nos seus desejos um para com o outro,
cometendo atos vergonhosos com o seu próprio sexo,
e recebendo em suas próprias pessoas
a recompensa devida pela sua perversidade".
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