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Lemos no Livro de Números que após Balaão ter abençoado por duas
vezes os filhos de Israel, Balac conduziu- o até o alto do monte
Fegor (Num. 23, 28). Retomando a sua parábola, ali
Balaão os abençoou ainda uma terceira vez. Após comparar seus
tabernáculos e suas tendas aos cedros próximos das águas (Num.
24,6), deles também falou Balaão:
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"Fluirá a água de seus baldes,
e sua descendência estará em muitas águas.
O seu rei será rejeitado por causa de Agag,
e o seu reino será removido.
Deus o tirou do Egito,
cuja fortaleza é semelhante à do rinoceronte.
As gentes devorarão seus inimigos,
quebrarão seus ossos,
e com flechas os trespassarão.
Deitando-se, dormiu como o leão,
e como a leoa, que ninguém ousará acordar.
Quem te abençoar, ele mesmo será abençoado;
quem te amaldiçoar, será tido por amaldiçoado".
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Tendo já descrito de modo tão belo as coisas mais belas da
conversação dos justos, o mesmo adivinho Balaão, que faz o tipo do
povo vão, proclama ainda magnificamente o seu louvor, dizendo:
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"Fluirá a água de seus baldes,
e sua descendência estará em muitas águas".
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Nas Sagradas Escrituras as águas algumas vezes costumam designar o
Espírito Santo. Outras vezes designam a Ciência Sagrada, ou
ainda a ciência má, a tribulação, os povos que fluem, ou mesmo as
mentes dos homens bons que seguem os ensinamentos da fé. Pela água
designa-se a infusão do Espírito Santo, como quando se diz no
Evangelho:
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"Aquele que crê em mim,
de seu seio correrão rios de água viva".
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A água significa também a Ciência Sagrada, conforme está
escrito:
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"A sabedoria, tal como mãe respeitável,
sairá ao encontro do homem que teme a Deus;
sustentá-lo-á do pão da vida e da inteligência,
e lhe dará a beber da água da sabedoria salutar".
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A água pode figurar ainda a má ciência, assim como a mulher má que
é descrita por Salomão (Prov. 5). Pelo nome de águas,
conforme nos diz o Salmo, costumam-se igualmente entender as
tribulações:
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"Salva-me, ó Deus,
porque as águas entraram
até a minha alma".
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As águas podem designar também os povos que fluem, dos quais está
escrito:
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"Lança o teu pão sobre as águas que passam,
porque depois de muito tempo o acharás".
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As "águas que passam" são os povos que fluem, conforme no- lo
atesta o apóstolo João, quando diz:
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"As águas que viste,
são os povos e as nações".
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Estas águas passam, porque pela mortalidade fluem para a morte.
Sobre elas lançamos o nosso pão quando, necessitando elas de nosso
ministério, pela caridade lhes oferecemos o nosso benefício. Depois
de longo tempo o encontraremos, porque depois desta vida haveremos de
recebê-lo em prêmio.
Pela água designam-se, finalmente, as mentes dos homens bons que
seguem os ensinamentos da fé. É por isto que diz Ezequiel:
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"E eu ouvia o ruído das suas asas,
como o ruído de muitas águas,
como a voz de Deus Altíssimo".
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De fato, o som da sagrada fé, que primeiro se realizou em poucos
santos, posteriormente multiplicou-se por muitas águas, isto é,
por inumeráveis povos.
O balde do Israel espiritual é Cristo. Para o povo antigo, ele
era uma pedra; para nós, porém, ele é balde. Cristo é pedra,
porque subsiste firmemente em si mesmo. É balde, porque tudo fêz com
medida. Para os antigos, sendo pedra, fêz jorrar água; para
nós, sendo balde, nos infunde a graça. Deste balde flui para nós
a água da graça espiritual, a água da sabedoria salutar (Ec.
15,3). Flui a água da graça para a justiça, a água da
sabedoria para a ciência. A água, contida no próprio balde, flui
pela plenitude, e no-la é infundida pela participação desta
plenitude. De fato, conforme diz o Evangelho,
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"De sua plenitude todos nós recebemos,
e graça sobre graça".
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Seguem as palavras da bênção:
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"A sua descendência estará em muitas águas".
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Assim como o balde deste povo é Cristo, assim também pela sua
descendência deve-se entender o mesmo Cristo. Pois Cristo nasceu,
segundo a sua carne, deste povo. Ele é balde quando refrigera a
nossa sede espiritual pela sua graça; é descendência, porque pela
mesma graça nos regenera. Ele é a descendência da qual foi dito a
Abraão:
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"Na tua descendência serão benditas
todas as nações da terra";
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e a Davi:
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"Suscitarei tua descendência depois de ti,
que será dos teus filhos,
e estabelecerei o seu reino".
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Por meio de Isaías também nos é dito:
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"Se o Senhor dos exércitos
não nos tivesse deixado uma descendência,
teríamos sido como Sodoma,
e nos tornado semelhantes a Gomorra".
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Desta descendência é que diz Davi:
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"Não há quem faça o bem,
não há até um só",
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isto é, senão um só, que é Cristo.
De fato, desde o início do século resplandescente, o pai de
família de que nos fala o Evangelho teve, em tempos diversos,
diversos justos para cultivar a sua vinha, bons cultivadores e bons
cultivados. Sempre houve, em todos os tempos, bons prelados e bons
súditos. Ninguém, todavia, teve de si mesmo aquilo que foi ou
aquilo que fêz. Todos o tiveram daquele único que foi sempre
fielmente esperado por todos, que foi a todos tão misericordiosamente
oferecido, aquele que, pelos seus sofrimentos, obteve que o bem que
se realizasse em sua fé fosse para aqueles que o praticassem para a
justiça pela qual retornariam à pátria perdida. Somente Ele é bom
entre todos, e nenhum justo antes de sua paixão entrou na pátria até
que ele próprio tivesse vindo, a todos tivesse redimido e a todos
tivesse aberto a entrada desta mesma pátria. E porque a justiça de
todos somente a Ele deveria ser referida e somente a Ele deveria ser
atribuída, um deles disse por todos:
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"Não a nós, Senhor,
não a nós, mas ao teu nome
dá a glória".
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A ti a glória, porque tua é a graça pela qual vem a nós a
justiça, e não por nossa causa. Pois, efetivamente, segundo a
palavra profética,
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"Todas as nossas obras,
foste tu que as fizeste, ó Senhor".
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"Diante de quem", conforme diz Moisés,
Esta descendência é aquele grão de trigo de que nos fala o
Evangelho que, caindo na terra pela Encarnação e mortificado pela
paixão, produziu muito fruto (Jo. 12, 24-25) pela
justificação de muitos ímpios, que aqui são significados pela
multidão das águas. "As águas", de fato, "são os povos"
(Apoc. 17, 15), e as muitas águas são a multidão dos
povos, multidão inumerável de que João nos fala no Apocalipse
quando, depois dos cento e quarenta e quatro mil assinalados de todas
as tribos dos filhos de Israel, testemunha ter visto uma
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"Grande multidão,
que ninguém podia contar,
de todas as nações, tribos, povos e línguas,
que estavam de pé diante do trono e do Cordeiro".
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Esta mesma multidão é chamada por Isaías de descendência
perdurável quando o profeta, falando muitas coisas na pessoa do Pai
sobre a paixão de Cristo e a redenção do gênero humano, exclama:
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"Se oferecer a sua vida pelo pecado,
verá uma descendência perdurável",
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isto é, uma descendência perdurável no mundo pela graça e
perdurável no céu pela glória.
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"O seu rei será rejeitado por causa de Agag,
e o seu reino será removido".
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Em seu sentido literal, a verdade desta passagem é evidente para
todos os que conhecem a história narrada pelo Primeiro Livro dos
Reis. Ali as Escrituras nos contam que, por ordem do Senhor,
Saul foi destruir os amalecitas e todos os que com eles encontrasse
vivos. Ao executar a ordem, porém, Saul foi desobediente ao
Senhor, conservando vivo a Agag, rei de Amalec. Ao voltar da
matança, o profeta Samuel veio ao seu encontro e lhe disse:
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"O Senhor te rejeita,
para que não sejas rei de Israel".
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E, logo a seguir, acrescentou a estas palavras:
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"Hoje o Senhor rasgou de ti o Reino de Israel,
para o entregar a outro melhor do que tu".
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Pouco depois as Escrituras nos mostram o início da realização desta
profecia, quando dizem que
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"ungido Davi, daquele dia em diante
comunicou-se o Espírito do Senhor a Davi,
e retirou-se de Saul,
e atormentava-o um espírito maligno,
por permissão do Senhor".
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Tudo isto é o que diz respeito ao sentido literal desta passagem.
Quanto à inteligência espiritual, o rei de Israel é rejeitado por
causa de Agag quando algum prelado da Igreja é reprovado em seu
regime por não combater contra o demônio segundo o preceito divino.
E o "seu reino lhe será tirado", porque
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"onde não há quem governe,
o povo se dispersa".
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Seguem-se as palavras de Balaão:
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"Deus o tirou do Egito,
cuja fortaleza é semelhante à do rinoceronte".
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Esta sentença é colocada por duas vezes nesta história (Num.
23, 22; Num. 24, 8). Com isto as Escrituras querem nos
mostrar que Deus não só criou o mundo na sabedoria, como também na
sabedoria redimiu o gênero humano. Quando da criação do mundo, a
fortaleza de Deus é corretamente dita semelhante à do rinoceronte,
porque está escrito:
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"Fizeste todas as coisas em sabedoria".
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Quando da redenção do gênero humano, a fortaleza de Deus é
também convenientemente dita semelhante à do rinoceronte, porque
está escrito:
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"A sabedoria vence a malícia".
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O motivo, porém, pelo qual a fortaleza de Deus é apresentada como
semelhante à do rinoceronte no-lo é dito logo em seguida:
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"As gentes devorarão seus inimigos,
quebrarão seus ossos,
e com flechas os trespassarão".
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Os inimigos espirituais de Israel são principalmente os israelitas
carnais, conforme foi corretamente escrito:
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"Os inimigos do homem serão
os de sua própria casa".
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E também:
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"Cada um guarde-se de seu próximo,
e não se fie de nenhum de seus irmãos".
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Entendemos pelas gentes aos gentios. É manifesto, portanto, que
aquilo que nos é significado quando nos é dito que
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"As gentes devorarão seus inimigos"
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cumpriu-se de modo claro e real quando os romanos, conduzidos por
Tito, mataram no cerco de Jerusalém muitos milhares de judeus,
destruíram os muros da cidade, incendiaram o seu templo e, da parte
restante do povo que escapou da morte, conduziram alguns para o
cativeiro e dispersaram outros por várias regiões. Espiritualmente,
"as gentes devoram os seus inimigos" quando os convertidos à fé de
Cristo entre os gentios superam pela sua pregação a incredulidade dos
judeus ou de quaisquer outros que imitam a incredulidade dos judeus, e
quando, vencida a sua infidelidade, os chamam à fé,
incorporando-os a si. "Quebram os seus ossos", quando amolecem os
mais duros e os mais fortes entre eles pelo terror das ameaças
divinas. "E com flechas os trespassam", quando penetram em seus
duros corações pelas palavras da sutilíssima Escritura, para dali
gerarem a Cristo, matando-os segundo a carne e ressuscitando-os
segundo o espírito.
Tudo isto o estamos discutindo segundo a inteligência espiritual.
Não negamos, porém, que na sua literalidade estas palavras também
tenham se cumprido ao povo antigo e carnal. Vários povos,
efetivamente, destruíram muitas nações odiosas aos judeus, como
Ciro e Dario aos babilônios e muitos mais a muitos outros.
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"Deitando-se, dormiu como o leão,
e como a leoa, que ninguém ousará acordar".
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É notório como isto se cumpriu segundo a letra ao antigo Israel,
principalmente quando, submetidas por Davi as nações à sua volta,
houve uma paz tranqüila no tempo de Salomão, paz que que nenhum rei
ou reino ousou perturbar. Misticamente, porém, estas palavras se
referem principalmente aos contemplativos e a quaisquer perfeitos, os
quais, quanto mais longe estão dos negócios terrenos e do estrépito
do mundo, tanto mais quieta e seguramente vivem. Dormem, de fato,
quieta e verdadeiramente, pois possuem os olhos do coração fechados
para o que é exterior, somente voltados para as coisas interiores e
eternas. Por isto é que diz a esposa no Cântico dos Cânticos:
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"Eu durmo,
mas o meu coração vela".
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Ninguém também ousará acordá-los, porque seus exércitos são
terríveis como os
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"acampados em ordem de batalha".
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Por isto é que, do leito de Salomão, leito que designa as almas
contemplativas, está escrito:
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"Eis o leito de Salomão,
rodeado por sessenta valentes
entre os mais fortes de Israel,
todos armados de espadas,
e muito doutos para a guerra;
cada um deles leva a espada sobre a sua coxa,
por causa dos temores noturnos".
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Sessenta valentes rodeiam o leito de Salomão porque as almas
contemplativas, nas quais o nosso pacífico rei repousa
principalmente, são guardados pelos homens perfeitos, maximamente os
prelados. Os quais são "muito doutos para a guerra", porque sabem
resistir doutissimamente aos assaltos do inimigo astuto. "Cada um
deles leva a espada sobre sua coxa" porque, para não serem mortos
pela concupiscência da carne, apertam-na fortissimamente contra si
pela virtude da abstinência e da continência. Daqui vem que, com o
auxílio da graça de Cristo, os inimigos são mantidos ao longe em
suas investidas e todos quantos os inquietam são afastados. Muito
corretamente, portanto, o povo justo e verdadeiramente israelítico
no-lo é apresentado como
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"dormindo como o leão
e como a leoa,
que ninguém ousará acordar",
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porque quando ele é guarnecido pela forte custódia dos homens
perfeitos, não é inquietado sequer pelas portas dos inferiores.
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"Quem te abençoar, ele mesmo será abençoado;
quem te amaldiçoar, será tido por amaldiçoado".
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Balaão pronuncia com firmeza no fim desta última bênção que cada
um será participante daquela coisa que tiver proferido, quer
abençoe, quer amaldiçoe os justos de Deus. Ele pretende que
Balac, depois disto, desista de sua estultícia.
diz Balaão,
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"ele mesmo será abençoado".
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O Espírito Santo aqui se refere, com toda a certeza, àquela
bênção que não somente se faz com a boca, mas que procede de um
coração abençoado e benévolo. Balaão, de fato, abençoa os
filhos de Israel. Fê-lo, porém, apenas pela boca e forçado, e
não de boa vontade. Por este motivo, não participou de nenhum modo
de sua bênção. Mais o creria eu que ele tenha participado da ímpia
maldição gerada pelo seu ímpio coração e que tenha incorrido na
culpa de ter dado mau conselho contra os filhos de Israel morrendo,
finalmente, pela própria espada dos Israelitas (Num. 31,8).
A autoridade sagrada demonstra manifestamente que aqueles que
amaldiçoam o povo de Deus se tornam participantes da mesma maldição
quando diz:
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"Não vos enganeis: nem os fornicadores,
nem os idólatras, nem os adúlteros,
nem os efeminados, nem os sodomitas,
nem os ladrões, nem os avarentos,
nem os que se dão à embriaguez,
nem os maldizentes
possuirão o reino de Deus".
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Os maldizentes, portanto, se juntarão a todos os demais malfeitores
quando, no fim, se lhes disser:
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"Ide, malditos, para o fogo eterno,
preparado para o diabo e os seus anjos".
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E agora, caríssimos, por meio das coisas que nos foram ditas,
trabalhemos para que nos tornemos participantes da bênção dos
justos. Que ajudados pelos seus méritos e pelas suas preces, tanto
neste mundo como no céu, possamos merecer a bênção por direito de
herança.
E que, para tanto, se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo,
nosso Senhor, que é Deus bendito, pelos séculos dos séculos.
Amén.
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