CAPÍTULO 99

Foi assim, pois, que nasceu a pedagogia humanista.

Num dado momento, vinha a notícia de que alguém, financiado por algum duque ou príncipe, havia descoberto certo número de manuscritos antigos do mundo romano. Pouco tempo depois, de outro lugar vinha outro anúncio de que outra pessoa, financiada por algum outro príncipe ou duque, havia descoberto em determinado local outro número de manuscritos antigos do mundo grego. Em sua maioria tais manuscritos não eram obras de ciência nem de filosofia, mas de literatura, em prosa ou poesia, ou relatos históricos. Todos eles chamavam a atenção pela sua perfeição estética no uso da linguagem grega e latina, perfeição que não existia mais entre os estudiosos da época e da Idade Média anterior. De todos os cantos surgiam, durante a Renascença, notícias de descobertas de mais e mais destes textos antigos.

Onde estavam escondidos tantos manuscritos antigos? Que expedições milionárias, que métodos sofisticados foram utilizados para descobrí-los?

A sensação que tais descobertas produziram faria o estudioso moderno pensar, em um primeiro momento, em expedições caríssimas explorando locais inacessíveis com escavações demoradas, enfrentando mil perigos vindos de toda a parte, em aventuras emocionantes cujos relatos hoje poderiam ser transformados em longas metragens campeões de bilheteria.

No entanto nenhuma destas descobertas teve em sua origem emoções semelhantes às que acabamos de supor. O humanista simplesmente visitava um mosteiro qualquer, onde era sempre bem acolhido, e pedia para ver os livros da biblioteca. Ali, no meio de outros tantos livros, encontrava estes textos misturados com outras obras, em algum canto geralmente pouco usado pelos monges. A partir daí o humanista se transformava em um herói, como se aquele livro que ele havia copiado e que empunhava vitorioso diante de seus colegas humanistas tivesse desaparecido há séculos e só tivesse sido recuperado graças a esforços comparáveis aos de um Hércules.

Este sentimento, no entanto, não correspondia à realidade. O que ele havia descoberto não era o manuscrito original que havia sido redigido pelo próprio punho de Cícero ou de Quintiliano. Nas circunstâncias da época, um manuscrito original desta natureza, datado de quinze séculos ou mais, dificilissimamente poderia-se ter conservado. Seria algo fisicamente quase impossível. Ao que sabemos, existe apenas um único caso de um manuscrito original anterior à era cristã que se tenha conservado até hoje; são os manuscritos do Mar Morto, descobertos apenas em 1947. Se aqueles textos da antigüidade que os humanistas foram descobrindo nas bibliotecas dos mosteiros se tinham conservado é porque tais textos haviam sido copiados e recopiados muitas vezes pelos monges ao longo da história. De fato, todos eles haviam sido copiados e recopiados com uma certa metodicidade pelos monges até pouco antes do advento da Peste Negra, quando esta epidemia desorganizou completamente a disciplina dos mosteiros. Com o declínio dos estudos e da disciplina monástica, todos estes manuscritos ficaram relegados a um canto das bibliotecas e davam a falsa impressão de que estavam abandonados desde a antigüidade romana.

Por que então os monges nunca fizeram alarde de toda esta vasta literatura antiga que haviam tão diligentemente guardado e copiado desde épocas imemoriais? A resposta é simplesmente porque quase não davam importância a estes textos. Eram usados apenas para aprender a ler e a escrever, e para aprender alguns rudimentos de retórica. Se para mais do que isso não valiam, para que chamar tão estrepitosamente a atenção do mundo para eles? Embora eles demonstrassem um belíssimo domínio da língua latina, o valor de seu conteúdo era considerado pequeno; o que verdadeiramente era importante para os professores e estudantes anteriores à Peste Negra era outro tipo de literatura. Os clássicos da antigüidade que fascinariam os renascentistas eram, até pouco tempo antes, considerados apenas como literatura de conteúdo de importância muito secundária para merecerem maiores atenções.

Foi então que o que havia sido durante séculos considerado como um refugo passou a parecer aos humanistas que fosse o supra sumo da cultura, e foi com base nesta literatura que eles reconstruíram a cultura do homem nos anos 1400 e 1500. A perfeição do Latim de Cícero, o ápice da perfeição artística da língua latina, pareceu- lhe também o ápice da cultura humana.

Já o Latim de Santo Tomás de Aquino e dos demais escolásticos era um Latim verdadeiramente simplório; em sua época quanto mais profundo fosse um autor geralmente tanto mais simplório era o Latim de que se utilizava. Sua linguagem não possuía nenhum rebuscamento. Entre os filósofos gregos já havia aparecido em parte esta tendência; o maior entre os filósofos gregos, Aristóteles, foi justamente aquele que se utilizou da língua grega em sua forma mais simples.

Esta simplicidade de linguagem curiosamente reforçou entre os renascentistas a idéia de que a Idade Média havia sido a Idade das Trevas. Desprezando o conteúdo das obras escritas anteriormente, estes homens julgaram que apenas uma cultura inferior poderia ter-se expressado em uma linguagem que lhes parecia tão bárbara.