|
Unir-se a Deus sem interrupção e ficar-lhe inseparavelmente unido
pela contemplação, como dizeis, é impossível ao homem na
fragilidade da carne.
Mas precisamos de saber onde devemos ter fixa a intenção da nossa
mente e para qual objetivo reconduzir constantemente o olhar da nossa
alma. Se a mente puder guardá-la, alegre-se; se se deixar
distrair, deplore e suspire.
E saiba que decaiu do bem supremo, todas as vezes que se surpreender
esquecida daquela contemplação. Julgue ser uma prostituição todo
afastamento, ainda que momentâneo, da contemplação do Cristo.
Quando, pois, o nosso olhar se desviar dele um pouco, voltemos de
novo para ele os olhos do coração e reapliquemos como em linha reta a
força da mente.
Tudo, na verdade, se tem na profundeza da alma. Se daí foi expulso
o demônio, e se os vícios não mais aí reinam, conseqüentemente se
funda em nós o reino de Deus, como diz o Evangelista:
|
"O reino de Deus não virá
de modo visível.
Não dirão: ei-lo aqui ou ali.
Em verdade, eu vos digo,
o reino de Deus está dentro de vós".
|
|
Ora, dentro de nós não pode existir senão o conhecimento ou a
ignorância da verdade e o amor dos vícios, pelos quais preparamos em
nosso coração um reino para o demônio ou para o Cristo. O
Apóstolo, por sua vez, assim descreve a qualidade desse reino:
|
"O reino de Deus
não é comida ou bebida,
mas justiça, paz e alegria
no Espirito Santo"
|
|
Se, portanto, o reino de Deus está dentro de nós, e se ele é
justiça, paz e alegria, quem mora nessas virtudes, está, sem
dúvida, no reino de Deus. E, pelo contrário, quem vive na
injustiça, na discórdia e na tristeza que produz a morte, está no
reino do demônio, no inferno e na morte, pois é por esses indícios
que se discerne o reino de Deus ou do diabo.
E, de fato, se, elevando o olhar da mente, considerarmos aquele
estado em que vivem as potências celestes que estão verdadeiramente no
reino celeste, como é que devemos julgá-lo, senão a perpétua e
continua alegria? Que é, pois, mais próprio e mais conveniente à
verdadeira bem-aventurança, do que a tranquilidade constante e a
alegria eterna?
E para aprenderdes com maior certeza que assim é como dizemos, não
por minha conjetura, mas pela autoridade mesma do Senhor, escuta-o
descrevendo claramente a natureza e o estado daquele mundo:
|
"Eis que eu crio novos céus
e uma nova terra;
as coisas antigas não serão mais lembradas,
nem subirão mais ao coração.
Mas gozareis de uma alegria
e exultação eterna no que eu criar".
|
|
E ainda:
|
"Nela se encontrarão
o gozo e a alegria,
ação de graças e cantos de louvor.
E isto será de mês a mês,
de sábado a sábado".
|
|
E mais uma vez:
|
"A alegria e a exultação eles terão,
a dor e o gemido fugirão".
|
|
Se desejais conhecer com clareza ainda maior o que são a vida e a
cidade dos santos, prestai atenção ao que diz a voz do Senhor,
falando a Jerusalém:
|
"Eu te darei por visita a paz
e como autoridade a justiça.
Não se ouvirá mais falar
de iniqüidade em tua terra,
nem de devastações e de ruínas
em tuas fronteiras,
e a salvação cobrirá teus muros
e o louvor as tuas portas.
Para ti não haverá mais o sol
para luzir durante o dia,
nem o esplendor da lua te iluminará,
pois o próprio Senhor será a tua luz eterna,
e Deus a tua glória.
Teu sol não se porá,
e a tua lua não diminuirá,
e terminarão os dias do teu luto".
|
|
Por isto o santo Apóstolo não declara que qualquer alegria, de um
modo geral e simplesmente, seja o reino de Deus, mas somente aquela
que é no espirito, como ele assinala e específica (Rom. 14,
17). Ele sabe que existe uma outra alegria, que é censurável,
da qual se diz:
|
"Este mundo se alegrará".
|
|
E ainda:
|
"Ai de vós que rides,
porque chorareis".
|
|
O reino dos céus, sem dúvida, deve ser entendido em três
sentidos. Ou que os céus, isto é, os santos, hão de reinar sobre
os outros homens submetidos a eles, conforme esta palavra:
|
"Tu governarás cinco cidades,
e tu a dez",
|
|
e esta outra dirigida aos discípulos:
|
"Assentai-vos-eis sobre doze tronos
e julgareis as doze tribos de Israel".
|
|
Outro sentido é que os próprios céus tornar-se-ão o reino de
Cristo, quando tudo lhe for submetido e Deus começar a "ser tudo em
todos" (I Cor. 15, 28). Ou, enfim, que os santos
reinarão nos céus com o Senhor.
Por este motivo, saiba cada um desde agora, enquanto se acha neste
corpo, que lhe caberá aquele lugar e ministério do qual na vida
presente ele se mostrar um membro devotado. E não duvide, também,
que no século ele terá a mesma sorte daquele cujo serviço e companhia
tiver agora preferido. É a sentença do Senhor que diz:
|
"Se alguém me quer servir,
me siga,
e onde eu estou,
lá estará o meu ministro".
|
|
Quanto à contemplação de Deus, esta pode entender-se de muitos
modos.
Pois Deus, nós o conhecemos não só pela admiração da sua
essência incompreensível, que ainda se acha escondida na esperança
da promessa, mas também pela grandeza das suas criaturas, ou se
consideramos a sua justiça ou do auxílio cotidiano da sua
providência. Assim é quando repassamos, de mente muito pura, tudo
o que ele fez por seus santos ao longo de cada geração. É quando
admiramos, de coração a tremer, a força com que governa, modera e
rege todas as coisas, bem como a imensidade da sua ciência e o seu
olhar ao qual não escapa nem o segredo dos corações. Ou quando
pensamos que o numero das areias e das ondas do mar ele contou e
conhece. E quando contemplamos, cheios de estupefação, que são
presentes ao seu conhecimento as gotas das chuvas, os dias e as horas
dos séculos, o passado e o futuro. E quando vemos, num transporte
de admiração, a inefável clemência com que suporta, sem que a sua
longanimidade se canse, os crimes inumeráveis cometidos a cada momento
diante dos seus olhos. E a vocação a que nos chamou, pela graça da
sua misericórdia e sem quaisquer méritos precedentes. E ainda
quantas ocasiões de salvação ele concede aos que vai adotar como
filhos!
Pois ele nos fez nascer de tal modo que, desde o berço, a sua graça
e o conhecimento da sua lei nos fossem dados. E, vencendo em nós ele
próprio o adversário, ao preço apenas do consentimento da nossa boa
vontade, nos agracia com a eterna bem-aventurança e prêmios sem
salvar, o plano de sua incarnação, e dilatar entre os povos as
maravilhas dos seus méritos.
São, aliás, inumeráveis outras contemplações do mesmo gênero,
que podem nascer em nossas faculdades, segundo a qualidade da nossa
vida e a pureza do coração, e nas quais Deus é visto ou possuído
em puras intuições. Ninguém, no entanto, as poderia reter
perpetuamente, se nele ainda vive algo dos afetos carnais. Porque
|
"não poderás ver a minha face",
|
|
diz o Senhor,
|
"nenhum homem pode me ver e viver",
|
|
Isto é, para este mundo e as afeições terrenas.
|
|