2. Os três sentidos das Sagradas Escrituras.

As Sagradas Escrituras se interpretam segundo três modos de entendimento.

A primeira interpretação é a histórica, na qual se considera a primeira significação das palavras em relação às próprias coisas sobre as quais são ditas.

As Sagradas Escrituras, porém, possuem uma propriedade que as diferencia dos demais livros, porque aquilo que nelas é significado em primeiro lugar pelas palavras são, por sua vez, como que tantas outras palavras que nos são propostas para a significação de outras coisas.

História vem da palavra grega `historeo', que significa vejo e narro. Neste sentido é que se deve entender propria e estritamente o termo história; costuma, porém, esta palavra ser tomada num sentido mais amplo de modo a designar o sentido que em primeiro lugar relaciona as palavras com as coisas. Além dela, porém, existe também a significação alegórica.

A alegoria consiste em que aquilo que é proposto pela significação da letra significa também alguma outra coisa tanto no passado, como no presente ou no futuro. O termo alegoria soa como discurso alheio, porque é dita uma coisa mas significada outra.

Subdivide-se a alegoria em simples alegoria e anagogia.

Ocorre simples alegoria quando por um fato visível se significa um outro fato visível.

Ocorre anagogia, isto é, um conduzir para o alto, quando por um fato visível se declara um fato invisível.

Para maior clareza, colocamos um exemplo destes três modos de entendimento. (Neste exemplo que será dado a seguir, Hugo se utiliza de uma outra nomenclatura que é também a mais comum em seus escritos: além do sentido literal ou histórico ele menciona o sentido alegórico sem, porém, subdividí-lo, e ao sentido alegórico acrescenta o sentido moral, também denominado por ele de sentido tropológico ou tropologia).

Diz a Sagrada Escritura que havia um homem na terra de Hus, chamado Jó, que sendo muito rico caíu em uma tão grande miséria que sentando-se junto a um monturo ou coletor de estrume raspava com uma telha as chagas de seu corpo (3).

O sentido histórico é evidente; passemos, portanto, ao alegórico. Na alegoria consideramos que as coisas significadas pelas palavras significam por sua vez outras coisas, e um fato significa outro fato. Jó, efetivamente, traduzido significa sofredor; significa, portanto, o Cristo, que antes estava junto às riquezas da glória do Pai sendo co-igual a Ele e condescendeu- se de nossa miséria sentando-se humilhado no monturo deste mundo, compartilhando conosco, fora o pecado, todos os nossos defeitos.

O sentido moral é aquilo que por meio deste fato deve- se fazer, isto é, aquilo que este fato significa ser digno de ser feito. Jó pode significar qualquer alma justa ou penitente, que compõe em sua memória um monturo de todos os pecados que fez e não vez ou outra, mas perseverantemente, sentando-se e meditando sobre o mesmo, não cessa de chorar (4).