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Mas ainda que São Bernardo se tivesse modificado para com os
demais, não se modificou, todavia, para consigo mesmo, porque
sempre guardou aquela integridade e rigor de vida que dissemos; por
onde veio a enfraquecer-se muito em a ver-se curvado diante do peso de
grandes enfermidades, os próprios médicos maravilhando-se como,
estando tão fraco e exausto, podia ainda ocupar-se de qualquer
tarefa. O próprio santo padre afinal o reconheceu e acusou-se de
ter- se excedido tanto na penitências e estragado sua constituição
física com execessivas austeridades, enfraquecendo seus membros e
impedindo de sua parte a maior glória do Senhor. Porque,
certamente, foi maravilhosa e extraordinária a austeridade de que este
santo se utilizou em sua vida, e parece que humanamente não poderia
viver se o Senhor não o sustentasse sobrenaturalmente. Mas estava
tão inflamado e abrasado no amor de Deus que não pensava em outra
coisa, de dia ou de noite, a não ser como poderia aumentar mais a sua
glória e aproveitar as almas, e procurava estas duas coisas com grande
ânsia e solicitude. A este alvo se dirigiam todas as suas ações e
sua conversação, mais divina do que humana; sua oração, o
escrever tantas cartas sobre tão importantes assuntos, o interpretar
das divinas Escrituras, as argumentações com pessoas particulares e
os negócios públicos que tratava; e acrescentando-lhe o Senhor uma
eloqüência tão admirável e uma sagacidade e prudência maravilhosa
com a qual se acomodava à condição, capacidade e costumes de cada um
com os quais tratava. Com os lavradores falava como se tivesse sido
criado no campo; com os cavaleiros, como cortesão; com os idiotas
usava comparações de coisas materiais e grosseiras; com os letrados e
sofistas disputava sobre questões sutis com grande engenho e agudeza.
E, finalmente, como excelente pescador, tinha diferentes iscas e
anzóis para pescar, adaptados ao gosto e ao natural de cada um; e
tudo isto nascia de sua grande caridade e do desejo que tinha de ganhar
almas para o Senhor. Era também efeito desta caridade a compaixão e
a dor que sentia pelos pecados e faltas de seus próximos, e
especialmente dos que tinha aos seus cuidados. Porque, ainda que
fosse tão amoroso conforme dissemos, não deixava de admoestar e
repreender como pai, secreta e publicamente, ao que cometia alguma
falta, e de adotar todos os meios possíveis para corrigí-lo. E
quando isto não bastava, cortava-o como um membro podre e o afastava
de sua congregação. Porém quando a isto o obrigava a necessidade,
ficava tão afligido e transpassado pela dor, que não haverá mãe
alguma que assim sinta a morte corporal de seu filho como ele sentia a
espiritual de qualquer um dos seus. Tais eram as entranhas do
verdadeiro imitador de Cristo poque era muito compassivo e muito
brando, e sofria-lhe o coração ver quem quer que fosse triste ou
desconsolado.
Não é para admirar-se que com os homens fosse tão brando aquele que
com os próprios animais era tão humano, porque algumas vezes, indo
pela estrada, acontecia-lhe ver alguma lebre sendo perseguida pelos
cães ou alguma ave que fugia do gavião, e ele, movido de
compaixão, os abençoava para livrá-los, declarando aos
caçadores, como de fato sucedia, que em vão os seguiriam. Deste
forno tão inflamado de caridade saía o ouro fino da paciência firme e
constante que teve São Bernardo, a qual manifestou claramente nas
continuas tribulações e enfermidades que padeceu desde o principio de
sua bem-aventurada conversão até o ultimo momento de sua vida, que
não foi senão uma morte prolixa. Mas também pode-se ver que a
mesma caridade e amor do Senhor dava-lhe forças para que, quando
surgia uma grave necessidade ou coisa de seu serviço, estando como
estava fraco, debilitado e consumido, pela divina providência parecia
que recobrava novas forças e novo vigor para trabalhar e nela
ocupar-se.
Também também sua paciência em algumas coisas graves de honra, de
bens e de sua pessoa que se lhe ofereceram. Escreveu certa vez o servo
do Senhor a um bispo, que era conselheiro do rei, pedindo-lhe que o
avisasse sobre certas coisas que iam mal encaminhadas. Respondeu-lhe
o bispo com irritação, tratando-o de néscio e atrevido, e o santo
abade voltou a escrever-lhe com tanta submissão e humildade que o
confundiu e fêz com que se tornasse grande amigo.
Enviou-lhe um rico abade seiscentos marcos de prata como esmola para
que os gastasse em beneficio de sua Ordem. Foram roubados no
caminho, e quando o soube, disse:
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"Bendito seja Deus,
que nos livrou de tão grande peso".
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Tendo-se-lhe tirado, por engano ou por força, dez mosteiros ou os
lugares onde haviam de ser construídos, permaneceu muito sereno, sem
querer jamais pleitear com os que lhe haviam feito aquele agravo. Um
religioso de outra religião, pouco estável em sua vocação, havendo
lido algumas obras muito espirituais de São Bernardo, foi a
Claraval e pediu com grande urgência que o recebesse entre seus
monges; e como o santo não o concedesse, julgando que era melhor que
perseverasse onde havia começado, saindo o pobre homem de si,
levantou a mão e deu um bofetão ao santo abade com tanta força, que
logo se inchou sua bochecha; e ele o defendeu e o ajudou para que não
lhe fizessem mal algum, antes, para que o acomodassem e o tratassem
bem.
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