27. O Congresso de Harden House visto pelo Scientific American.

O número de janeiro de 1959 do Scientific American, em sua seção de livros recentemente lançados, publicou uma resenha de cinco páginas das Atas do Congresso de Harden House publicadas no ano anterior. Das várias resenhas da seção de livros, esta era a principal e a mais longa. Seu título, fundido com o próprio título da seção, era "Livros: Uma Conferência sobre o Aborto como Doença das Sociedades". Segue abaixo um resumo desta extensa resenha.

O aborto é uma prática antiga, diz James R. Newmann, o autor da resenha, mas até mesmo na antigüidade ele provocou algumas diferenças de opinião. Existem poucas dúvidas, entretanto, que no Império Romano e no mundo helenístico o aborto "era muito comum entre as classes superiores". A Igreja cristã tomou uma posição austera contra esta "atitude pagã" e declarou o aborto pecado. Em muitos Estados a lei seguiu a doutrina da Igreja e tornou o pecado um crime.

O aborto é hoje um problema mundial. Estudos e levantamento de dados por parte de indivíduos e da UNESCO mostram a prática estar amplamente difundida, dentre outros, nos países escandinavos, na Finlândia, Alemanha, URSS, Japão, México, Porto Rico, América Latina e Estados Unidos. O livro de George Devereux, A Study of Abortion in Primitive Societies, conclui que o aborto "é um fenômeno absolutamente universal".

O problema cresceu com o crescimento da população. Na maioria das sociedades o problema tem sido usualmente mal abordado em termos práticos. Ignorância, hipocrisia e desumanidade tem imperado nas apreciações sobre o mesmo. Devido ao fato de que admitir francamente as dimensões do mesmo poderia forçar ações remediativas que provocariam oposições religiosas e sociais intensas, políticos, médicos, altos funcionários da saúde pública e outros que fazem as regras e as opiniões preferem pretender que a prática apresenta dimensões desprezíveis. Eles são auxiliados nesta opinião corajosa pela ausência geral de conhecimento sobre a matéria.

Entretanto, está claro que estamos frente a frente com uma matéria da mais alta importância médica e social: uma doença da sociedade, das mais sérias porque muitas comunidades se recusam a reconhecê-la e não fazem nada para eliminar suas causas e mitigar seus efeitos.

Este livro desafiador e absorvente é evidência de que há homens e mulheres que reconhecem a natureza e a extensão do problema e estão trabalhando para trazê-lo a céu aberto. Em 1955 uma Conferência sobre Aborto, patrocinada pela Planned Parenthood Federation of America, foi realizada em Harden House, Harriman, N.Y., e na Academia de Medicina de Nova York. Os participantes, incluindo eminentes ginecologistas, psiquiatras, assistentes sociais, advogados e oficiais da saúde pública discutiram tópicos como a incidência de abortos, métodos utilizados em abortos clandestinos, causas de mortes devidas a aborto, os aspectos legais e psiquiátricos do aborto. Um relatório sobre as discussões, juntamente com uma declaração conclusória que resume os fatos e fornece recomendações, é dada neste volume. Não se poderia enfatizar com demasiada força o valor do material como documento social.

O interesse principal da Conferência foi com o aborto nos Estados Unidos. Trata-se de um quadro chocante. É suficiente apenas contemplá-lo do ponto de vista legal para saber porquê.

Dos quarenta e nove estados, todos exceto seis proíbem o aborto exceto quando necessário "para preservar a vida da mulher". Seis estados permitem um aborto terapêutico "para salvar a vida da criança não nascida", seja lá qual for o absurdo que esta frase possa significar. Em apenas dois estados o aborto é permitido "para preservar a saúde da mãe". Uma reprovação social poderosa entra em ação em seguida para restringir ainda mais as restrições estatutárias. Alguns hospitais se recusam a permitir o uso de suas dependências e facilidades até mesmo para os abortos sancionados pela lei.

A Lei não é meramente, como Mr. Bumble disse, "uma asnice"; ela é muito pior. Nos Estados Unidos nem o estupro, nem o incesto, mesmo se a vítima for uma menina muito jovem, é indicação para o aborto. Desgraças sociais, pobreza ou qualquer outra razão humanitária recebem nenhuma consideração em todos os lugares. E no que diz respeito à atitude extraordinária da lei no tocante às crianças ilegítimas, nada é mais convincente do que o parecer de Ivan Bloch, expresso no seu famoso livro "The Social Life of Our Time". O Estado, diz ele, considera como sagrada a vida da criança antes do nascimento e pune qualquer pessoa que interfira com a sua preservação, mas a seguir considera a mesma criança como bastarda tão cedo quanto tenha nascido e pelo resto de sua vida.

Já que é extremamente difícil obter um "aborto terapêutico", a prática clandestina floresce. As mulheres grávidas não casadas tem a escolha desesperada do suicídio, de sustentar e educar a criança ilegítima, ou a de se dirigir a um aborteiro. As mulheres grávidas casadas que não querem sustentar sua criança podem estar menos desesperadas, mas ela também é costumeiramente assediada por ansiedades e confusa em relação a que caminho seguir. Um dos participantes da Conferência, G. Lottrell Timanus, que por anos praticou em Maryland como aborteiro, vividamente descreveu as condições da típica mulher grávida contra a sua vontade:

"Ela não sabe o que fazer, nem para onde se dirigir. Não há lugar disponível onde ela possa arejar sua situação, confortável, quieta e confidencialmente. Seu único recurso na atualidade é dirigir-se a um médico local, e, debaixo dos padrões atuais, este tem medo até de olhar para ela. Ele não tem lugar para onde encaminhá-la. Não tem recomendações a dar-lhe. Assim, conseqüentemente, ela se dirigirá a um aborteiro".

E isto, como Ashley Montagu disse na sua introdução,

"é como nossa sociedade trata o problema do aborto na sua forma mais elementar".

Ela abandona a mulher ao aborteiro quando de sua maior necessidade.

As estatísticas sobre aborto clandestino são, como já dissemos, nada fáceis de se coletar. O falecido Alfred Kinsey relatou à Conferência que de aproximadamente três mil mulheres entrevistadas pelo seu Instituto, 10% das casadas tinham provocado aborto aos 20 anos de idade, e 22% tinham tido pelo menos um aborto provocado aos 45 anos de idade.

Não menos interessantes são as informações fornecidas pelo Dr. Timanus. Em vinte anos de prática em Baltimore, ele sozinho realizou cinco mil duzentos e dez abortos, todos eles ilegais, exceto uma fração mínima. Manteve cuidadosos registros destes casos e as compilações dos diversos traços gerais característicos dos mesmos são dados em seu relatório. Timanus está agora aposentado, tendo- se desentendido com a lei. Em relação a esta ele fêz uma observação que resume a hipocrisia das posições da profissão médica em relação ao aborto. No período de vinte anos durante os quais ele trabalhou como aborteiro, atendeu os encaminhamentos de trezentos e cinqüenta e três médicos. Deste grupo inteiro de homens respeitáveis, nenhum quiz se apresentar e atestar a seu respeito, ou mesmo admitir que lhe havia encaminhado uma única paciente.

Muitas outras estimativas pessoais do número de abortos clandestinos foram feitas, desde um mínimo de duzentos mil a um máximo de um milhão e duzentos mil abortos por ano nos Estados Unidos. Mesmo aceitando a figura mais baixa, as conseqüências do aborto clandestino são um sofrimento humano aterrador e incalculável, miséria, doença e morte, pesadas perdas econômicas e a corrupção dos padrões éticos e sociais.

O que está para ser feito?

Os palestristas durante o Congresso apresentaram evidências da magnitude da prática do aborto nos Estados Unidos, discutiram suas causas e colocaram às claras seus efeitos trágicos. Já na seção final, referente às conclusões e recomendações, houve uma tendência a disputar sobre ninharias, argumentar sobre problemas incongruentes e irrelevantes e passar por cima das questões essenciais. Os participantes reconheceram que eles estavam tratando com um problema explosivo e que era tão difícil esboçar reformas específicas como batalhar por elas. Mais ainda, conforme diversos palestristas apontaram, desde que a Igreja Católica se opõe ao aborto sob todos os pontos de vista, tornava-se certo antecipar veementes críticas para quaisquer recomendações no sentido de modificar os presentes estatutos sobre o aborto que a Conferência pudesse adotar.

Uma declaração de conclusões foi finalmente preparada, na qual mais de três quartas partes dos participantes que assinaram tiveram o cuidado de declarar, entretanto, que suas assinaturas representaram opiniões pessoais e em nenhum sentido envolviam os hospitais, Universidades, juntas de saúde ou outras organizações com as quais eles estavam vinculados. Esta declaração merece maiores atenções.

As leis e a moral vigente, os signatários firmemente asseveram, falharam inteiramente em controlar o aborto clandestino. "Ao invés disso, ele continuou em uma extensão ignorada, ou, talvez, indultada por uma grande proporção do público em geral e até das profissões médica e legal".

A emenda constitucional que proibia bebidas alcoólicas é um exemplo de uma lei inexecutável que conduziu a males muito maiores do que aqueles para os quais ela foi concebida para evitar. Os signatários fazem uma pungente comparação entre a alta incidência de abortos com uma doença da sociedade e a alta incidência de doenças venéreas três décadas antes. Ambos são problemas epidemiológicos. Até recentemente o problema das doenças venéreas estava envolto em silêncio. Finalmente, os médicos e as agências de saúde pública decidiram quebrar as barreiras e ventilar o problema. Isto conduziu a um controle mais saudável até mesmo antes que os antibióticos finalmente rompessem com o cerne das doenças venéreas. "O mesmo tipo de ataque frontal deveria ser agora levado a efeito para com o problema do aborto intencional".

Diversas medidas remediativas são recomendadas.

Primeiro, estudos médicos, psico sociais e psicológicos sobre as mulheres que procuram abortos são necessários. Muito mais é preciso ser conhecido sobre o problema antes que ele possa ser manipulado inteligentemente.

Segundo, centros de consulta para mulheres que procuram abortos precisam ser levantados.

A terceira medida é estender, sob a supervisão médica, a prática de conceder aconselhamento gratuito sobre contraceptivos. Admitidamente existe muito pouca evidência para fundamentar o ponto de vista de que o aumento da disponibilidade de serviços contraceptivos reduziria a taxa de abortos clandestinos. Mas, até que estatísticas seguras possam decidir a questão, temos todas as razões para adotar uma atitude na hipótese deque tais serviços serão de ajuda. Sob as presentes circunstâncias, existe uma lamentável desigualdade de acesso a informações sobre contraceptivos. "A Lei, em sua majestática igualdade", certa vez Anatole France nos lembrou, "proíbe tanto aos ricos quanto aos pobres que durmam debaixo das pontes e que mendiguem nas ruas". Foi notado na Conferência que entre as pessoas de baixo nível educacional é ainda não raro encontrar mulheres que nem sequer relacionam gravidez com relação sexual.

Um obstáculo formidável para a reforma é, certamente, a própria Lei. Os estatutos existentes são tão fanaticamente estritos e retrógrados que a única maneira possível de conviver com eles é rompendo-os.

Na sua recomendação final os signatários encorajam as autoridades tais como a National Conference of Comissioners on Uniform State Laws, a American Law Institute, e o Council of State Governments a esboçarem um modelo de Lei que possa substituir os estatutos existentes. Novamente, é para os países escandinavos que devemos nos dirigir para instruir-nos sobre tais modelos.