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No sermão anterior sobre os filhos de Israel dissemos algumas coisas
sobre Balac, Balaão e a bênção pela qual este abençoou os filhos
de Israel. Aproximemo-nos agora das próprias palavras desta
bênção e vejamos que ensinamentos morais ela contém em seu
interior.
Antes que Balaão abençoasse os filhos de Israel, pediu a Balac
que edificasse sete altares e colocasse sobre cada altar um novilho e um
carneiro (Num. 23,1). Se alguém perguntar que significação
terá o holocausto de Balac, o qual significa o demônio,
responderemos que nem tudo o que está contido na letra deve ser vertido
para a inteligência espiritual, assim como nem a parábola corre por
tudo o que ela contém. Balaão, porém, abençoou os filhos de
Israel por três vezes (Num. 23,7-10; 23,18-24;
24,3-9), para que se entendesse que a própria bênção, ainda
que vinda pelo homem, tivesse sido dada não pelo homem, mas pela
santa e indivídua Trindade.
As palavras da primeira bênção são as seguintes:
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"De Aram me conduziu Balac,
rei dos moabitas,
dos montes do oriente.
`Vem', disse,
`e amaldiçoa Jacó;
apressa-te e execra Israel'.
Como amaldiçoarei
a quem não amaldiçoou Deus?
Por qual razão execrarei
a quem Ele não execrou?
Do alto dos rochedos o verei,
e das colinas o considerarei.
Este povo habitará só,
e não será contado entre as nações.
Quem poderá contar o pó de Jacó,
e conhecer o número da descendência de Israel?
Morra a minha alma da morte dos justos,
e tornem-se os meus novíssimos
semelhantes aos deles".
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Aram é nome que traduzido quer dizer `Excelso'; significa, por
conseguinte, a soberba. Corretamente, portanto, o rei ímpio
conduziu Balaão de Aram ou dos montes para amaldiçoar o povo de
Deus, porque é coisa que procede em sua totalidade da soberba que os
maus injuriem os bons com a cooperação do demônio.
Moab é nome que traduzido quer dizer `Do pai', e significa todos
os réprobos, entre os quais de um modo especial o foram aqueles aos
quais foi dito:
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"Vós tendes por pai o diabo".
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Balac, rei dos moabitas, chama portanto Balaão para amaldiçoar
Israel, porque o demônio, reitor destas trevas, isto é, dos
demônios entenebrecidos e dos homens ímpios pela culpa dos primeiros
progenitores, solicita veementemente aos mais ímpios entre estes
homens ímpios, entregues pela impiedade ao seu culto, que blasfemem
os justos pela cobiça do louvor e da vanglória. Tratam-se de homens
que se elevam de tal modo entre os demais homens pela glória de sua
sabedoria e de seu poder que, se não forem refreados pelo temor da
potência divina, é com grande facilidade que se inclinam à
perpetração do delito da injúria e da blasfêmia.
A experiência mais freqüente, no entanto, tem mostrado que a
maldição impetrada aos justos redunda, de muitos e diversos modos,
em prejuízo para os ímpios. Sendo capazes de considerar que os
justos são guardados pela proteção divina, tomados pelo temor
divino, os ímpios receiam que ao lançar-lhes uma maldição venha
esta a recair sobre eles próprios. De boa vontade o fariam, se não
estivessem tomados pelo medo de que seu golpe se dirija sobre si
mesmos. De onde que Balaão, coibido pelo temor de Deus de lançar
como pretendia, se lho tivesse sido permitido, a maldição sobre o
povo de Deus, silenciou, dizendo:
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"Como amaldiçoarei
a quem não amaldiçoou Deus?
Por qual razão execrarei
a quem Ele não execrou?
Do alto dos rochedos o verei,
e das colinas o considerarei".
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Do alto dos rochedos ou das colinas os perfeitos amantes e mestres
desta vaidade consideram o povo de Deus. Tomados então pelo temor de
Deus, ao levantarem sublimemente a mente à sua contemplação,
ponderam com sutileza quão merecidamente este povo dista de todos os
demais povos. Vêem que na Igreja
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"a um é dado pelo Espírito
a palavra da sabedoria,
a outro a palavra da ciência,
a outro a fé,
a outro o dom das curas,
a outro a profecia,
a outro o discernimento dos espíritos,
a outro a variedade das línguas,
a outro a interpretação das palavras".
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Vêem alguns esforçarem-se nas boas obras, outros crescerem nas
virtudes, outros resplandecerem pelos milagres, outros submeterem-se
pela humildade, outros presidirem pela excelência e todos quererem
aproveitar a todos. E, vendo o povo dos justos pleno da bênção da
graça celeste, apavorados pelo julgamento do alto, de nenhum modo
presumem lançar-lhes a maldição de sua blasfêmia; antes, ao
contrário, o abençoam quando proclamam, ainda que contra a vontade,
aquilo que de bom viram neles. Efetivamente, é do julgamento divino
e não do seu arbítrio que procede o proclamarem com admiração a
justiça dos bons, justiça que eles nem seguem e nem amam. De onde
que corretamente Balaão diz nos versos seguintes:
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"Ele abençoou,
e não posso proibir a bênção".
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A bênção que ele não pode proibir, isto é, as palavras que a
proclamam, é acrescentada onde se diz:
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"Este povo habitará só,
e não será contado entre as nações".
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É grande louvor, irmãos, que se diga que este povo habitará só.
Oxalá que esta voz de louvor estivesse no coração principalmente dos
monges e de todos aqueles que, de um modo ou de outro, pregam com a
boca a vida solitária ou a demonstram pelo hábito. Envergonhem-se e
temam, diante destas palavras, todos aqueles que, abandonando os
claustros, constantemente se metem em cuidados apenas por curiosidade,
e não por necessidade; envergonhem-se aqueles que de boa vontade
freqüentam os espetáculos e as fábulas da vaidade, aqueles que amam
as saudações nas praças, as primeiras cadeiras nas sinagogas, os
primeiros lugares nos jantares, aqueles que amam ser chamados de
mestres pelos homens (Mt. 23, 6-7). Dizendo isto não
pretendemos dizer que devam ser vituperadas as pessoas autênticas,
honestas e religiosas que socorrem, de acordo com o lugar, o tempo e a
causa, às necessidades exteriores da santa mãe Igreja. Uma coisa
é a sedução da curiosidade e outra coisa bastante diversa o ditame da
razão quando ordena o que deve ser feito. Também este louvor foi
conhecido pelo povo de Deus, onde se lê:
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"Efraim era como uma novilha,
acostumada a gostar da debulha".
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Mas o povo dos justos
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"habitará só,
e não será contado entre as nações",
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porque todas as demais nações seguem os desejos da carne e a glória
do mundo. Somente os eleitos seguem a justiça e os bens espirituais.
E não são somente os contemplativos que habitam só; também os
ativos habitam só, na medida em que não se associam às obras dos
réprobos. No entanto, embora convenha a todos os fiéis que habitem
só, não apenas pela morada corporal, como também pela unanimidade
dos corações, convém, porém, que maximamente habitem só, não
apenas pela singularidade das boas obras, como também, o quanto lhes
for possível, pela morada corporal, aqueles que são revestidos do
hábito religioso e professaram em alguma religião. A profissão, o
hábito e a ordenação exigem que aqueles que entre todos professam a
santidade pelo hábito estejam separados e distantes não apenas dos
maus, como inclusive dos que agem bem. Não devem ser contados entre
as nações pela conversação corporal aqueles que são divididos entre
os demais por uma especial profissão religiosa.
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"Quem poderá contar o pó de Jacó,
e conhecer o número da descendência de Israel?"
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No sermão anterior dissemos que deveria entender-se pelo pó de
Jacó os ativos, e pelo número da descendência de Israel os
contemplativos. Acreditamos, quanto à letra, que o povo de Israel
não possa ser contado entre as multidões, o que pode depreender-se
de muitos lugares do Velho Testamento, como daquele onde se diz que o
povo de Israel seria inumerável como as estrelas do céu e a areia da
praia (Gen. 22, 17). Quanto, porém, ao entendimento
espiritual, deve-se crer que o povo dos justos é muito mais
inumerável, pois deles Davi afirma:
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"Muito me honram os teus amigos, ó Deus;
muito me conforta o seu principado.
Enumera-los-ei",
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isto é, como se dissesse: `Se quiser enumerá-los',
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"multiplicar-se-ão mais do que a areia".
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Ora, da multiplicação carnal de Israel está escrito:
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"Multiplicarei a tua descendência
como a areia das praias";
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mas da multiplicação espiritual de Israel, isto é, "dos amigos de
Deus", está escrito que
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"multiplicar-se-ão mais do que a areia".
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Sobre a inumerabilidade dos justos o bem aventurado apóstolo João,
após ter visto no Apocalipse doze mil assinalados de cada uma das
tribos de Israel, também acrescenta:
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"Depois disto vi uma grande multidão
que ninguém podia contar,
de todas as nações, tribos, povos e línguas,
que estavam de pé diante do trono
e diante do Cordeiro,
revestidos de vestiduras brancas,
e com palmas nas suas mãos".
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Assim como, portanto, a Escritura testemunha que
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"os dias de Israel são inumeráveis",
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assim também Israel é inumerável. E não apenas os ativos são
inumeráveis, apesar de serem em muito maior número que os
contemplativos, mas também o são os contemplativos, o que se
demonstra pela própria Escritura a qual, depois de dizer:
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"Quem poderá contar o pó de Jacó",
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acrescenta:
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"e conhecer o número da descendência de Israel?"
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Como se dissesse: `Ninguém'.
Segue-se:
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"Morra a minha alma da morte dos justos,
e tornem-se os meus novíssimos
semelhantes aos deles".
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Os sábios deste mundo profano, estes que maquinam o mal contra os
justos o quanto podem, quando se vêem estimulados pelo temor, elevam
a mente à contemplação da vida dos justos e então desejam morrer de
sua morte, embora recusem imitar a sua vida. Amam de todo o coração
a concupiscência da carne e a glória do mundo, antepondo-as às
virtudes e às boas obras. Ignoro o que haverão de alegar para
desejar a morte dos justos e receber os seus mesmos prêmios. Se não
quiserem viver a vida dos justos, de nenhum modo merecerão morrer de
sua morte. Seriam sem dúvida ouvidos na oração em que pedem a boa
morte, se depois da oração se dedicassem ao bem viver.
Agora, caríssimos, recolhamos aquilo pelo qual possamos avançar no
caminho de Deus de tudo o que foi dito. Dediquemo-nos a habitar só
e a não ser reputados entre as nações por alguma inquietude
dissoluta. Apliquemo-nos, com Jeremias, a sentarmo-nos sós.
Conforme ele mesmo nos diz,
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"É bom para o homem ter levado
o jugo desde a sua mocidade;
sentar-se-á solitário e ficará em silêncio,
porque elevou-se sobre si mesmo".
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Apliquemo-nos, juntamente com os justos, a viver com justiça, para
também com eles morrer bem e merecermos, pelos seus méritos e pelas
suas preces, alcançar a glória do alto.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo.
Amén.
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