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Vimos nos capítulos anteriores a natureza da ação sacrificial, e
como ela se desenvolveu no povo escolhido do Antigo Testamento.
Vimos como Cristo ofereceu a Deus sua própria vida em sacrifício,
e como, para que se cumprissem as Escrituras, instituíu um novo
sacrifício que representasse perpetuamente entre os homens aquele
único sacrifício com que Ele, oferecendo- se uma só vez a Deus,
obteve o perdão dos pecados de todos os homens que crendo nEle, o
tomam como Redentor.
A Sagrada Escritura, na Epístola aos Hebreus, diz que sempre
houve sacrifícios entre o povo eleito, mas que estes não eram capazes
de perdoar os pecados. Cristo, entretanto, com
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"com um único sacrifício",
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obteve a remissão dos pecados para todos os homens. Ela diz também
que ao sacrifício que Cristo fêz de sua vida se aplica esta profecia
de Jeremias:
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"Eis que virão dias, diz o Senhor,
em que estabelecerei com a casa de Israel
e com a casa de Judá uma nova aliança...
... terei misericórdia de suas iniqüidades,
e de seus pecados já não me lembrarei".
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Jer. 31, 31-34
Heb. 10, 15-18
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Como pôde a morte de um homem, fato tão comum e banal na história
dos povos, morto às pressas e sem pompa do lado de fora dos muros de
uma cidade situada nos confins de um Império que já não mais
existe, ser capaz de obter o perdão dos pecados para todos os homens,
mesmo para os que ainda hoje vivem? Que há na morte de Cristo que
não há na minha, ou na de qualquer outro homem, nem nos sacrifícios
da Antiga Aliança, para conseguir um efeito desta envergadura?
Para isto conseguir, havia nela, primeiro, ela própria, que por si
só já era mais valiosa do que toda a Criação e, em segundo, o
amor com que foi entregue.
Não é difícil perceber que a morte de alguém que fosse ao mesmo
tempo Deus e homem é algo maior do que tudo o que há ou pode haver no
mundo.
No início da Idade Média Santo Anselmo escreveu coisas
belíssimas a este respeito. Considera, diz ele, que estivesses
diante de alguém que fosse ao mesmo tempo Deus e homem, e que te
dissessem:
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"Se não matares este homem,
perecerá este mundo
e tudo o que não é Deus".
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Deverias, pergunta Anselmo, matar este homem para conservares todas
as demais criaturas? Certamente que não o deverias fazer, e isto
mesmo que te mostrassem um número infinito de criaturas.
Considera, porém, que depois disso te dissessem pior:
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"Então, se não matares este homem,
todos os pecados do mundo
cairão sobre a tua alma".
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Que deverias responder?
Que mais preferirias que caíssem sobre a tua alma todos os pecados
não só deste mundo, como de todos os que existiram e de todos os que
existirão, do que matar a este homem que também é Deus.
Mas por que é esta a resposta que deverias dar? Não é porque a
vida deste homem, ou mesmo uma sua pequena lesão, vale mais do que
todos os pecados do mundo? Devemos concluir pois que esta vida é mais
amável do que são odiáveis todos os pecados de todo o mundo.
Devemos concluir que um bem tão amável pode ser suficiente para pagar
o que é devido pelos pecados do mundo inteiro, e o pode mais ao
infinito. Esta vida, um bem tão grande assim, pode vencer todos os
pecados, se por eles for entregue, e o pode muito mais ainda, porque
em qualquer satisfação sempre Deus considera, ainda mais do que a
quantidade da oblação, o afeto do oferente.
Ainda mais devemos acrescentar que se o Filho de Deus der a sua vida
a Deus, ou se oferecer à morte para a honra de Deus, estará
fazendo algo que Deus não o exigiria dele como uma obrigação,
porque a morte entrou no mundo pelo pecado, e o Deus homem, não
tendo pecado, não seria obrigado a morrer.
E temos ainda que Deus é soberanamente justo e infinitamente bom.
Que faria Ele se visse seu Filho oferecer-lhe espontaneamente algo
tão grande e tão precioso, algo maior do que tudo o que não é
Deus, oferecido com um amor com que jamais tivesse sido amado?
Poderia Deus não querer retribuir-lhe?
Mas agora, ó perplexidade! O que Deus poderá dar a seu Filho em
retribuição que ele já não tivesse?
Antes que o Filho oferecesse sua vida ao Pai, tudo o que era do Pai
também era seu.
E o que se lhe poderá perdoar, se nada devia? Nunca deveu nada que
pudesse ter que lhe ser perdoado!
Vê-se, assim, por um lado, a necessidade de ser recompensado, e,
por outro, a impossibilidade de se o fazer.
Imagina agora que o Filho quisesse dar a outrem o que a si é devido.
Poderia o Pai proibir-lho? Mas a quem mais convenientemente
atribuiria o fruto e a retribuição de sua morte senão àquele por
quem se fêz homem para os salvar, e aos quais morrendo deu o exemplo
de morrer pela justiça? Inutilmente seriam seus imitadores, se não
pudessem ser partícipes de seus méritos. Ou a quem mais justamente
faria herdeiros de sua dívida, da qual ele não necessita, e da
exuberância de sua plenitude, do que aos seus pais e irmãos? Nada
mais racional, nada mais doce, nada mais desejável o mundo jamais
pôde ouvir. É evidente que Deus jamais rejeitará a nenhum homem que
dEle se aproxime sob a tutela de seu nome. Verdadeiramente quem sobre
este fundamento edifica está alicerçado sobre uma rocha firme. Quem
poderá conceber uma misericórdia maior do que o pecador, condenado ao
eterno tormento, sem ter como redimir-se, ao qual Deus Pai se
dirige e lhe diz:
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"Aceita o meu Filho Unigênito,
e ele te redimirá?"
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E o próprio Filho:
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"Toma-me contigo,
e redime-te?"
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Pois é de fato isto o que dizem, quando nos chamam à fé cristã e a
ela nos trazem.
Até aqui as palavras de Santo Anselmo, reproduzidas com pequenos
retoques. Cumpre, porém, continuar o que ele vinha dizendo.
Poderia e deveria algo tão grande e tão sublime ficar esquecido na
noite da história, presenciado apenas por algumas poucas testemunhas?
Não deveria a sua notícia chegar ao conhecimento de todos os homens,
e de um modo que pudesse movê- los não só a tomarem Cristo consigo
para sua redenção como também a amarem cada vez mais a Deus que
tanta bondade demonstrou por nós? Mais ainda, se este é o
fundamento de nossa esperança em que devemos crescer e perseverar,
não deveria não só ser anunciado como também tornado vivo e presente
na mente e no coração de cada um como uma lembrança entre todas
particularmente querida?
De que modo quis Cristo pois que este momento não se afastasse da
lembrança dos homens?
Disse-o um dia antes de sua morte, durante a última ceia:
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"Fazei isto para celebrar
a minha memória".
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Naquela noite os Evangelhos que relatariam sua vida e sua morte ainda
não existiam; ele poderia ter dito, em vez do que disse, apenas
isto:
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"Escrevam e leiam isto,
em minha memória",
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como de fato, depois veio a se fazer. Naquela noite, porém,
Cristo não o havia pedido. Em vez disso, ao querer que a
Redenção ficasse para sempre na lembrança dos homens, em vez de uma
leitura, sua preferência recaíu sobre uma cerimônia a ser celebrada
com pão e vinho, e não sem motivo. Quis, com isso, que sua
lembrança não ficasse apenas na memória dos homens, mas lhes fosse
motivo e ocasião para acendê-los ao amor de Deus. Na última ceia
ele havia dito:
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"Como o Pai me amou,
assim também eu vos amei.
Permanecei no meu amor.
Digo-vos estas coisas
para que vossa alegria seja completa.
Ninguém tem maior amor
do que aquele que dá a vida
por seus amigos".
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Justamente por este motivo, ao escolher o pão e vinho para ser
lembrado, sendo ele sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, quis
que sua lembrança fosse também um sacrifício, não para nos merecer
novamente a redenção que já tinha merecido de uma vez para sempre,
mas para que dela participássemos em um ato que é por sua natureza uma
das expressões visíveis mais puras do amor humano para com Deus. Ao
dizer do pão:
e do vinho:
palavras que desde o início do Cristianismo nunca foram tomadas apenas
simbolicamente, que quis Ele senão que este sacrifício fosse um
sacrifício vivo, uma oblação pura, em que fosse oferecidos,
segundo o seu próprio dizer,
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"seu corpo e seu sangue
derramado por nós",
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isto é, sua própria paixão, num sacrifício em que ele próprio
estivesse pessoalmente presente? Não se limitou, porém, a querer
estar pessoalmente presente, pois acrescentou:
e
Que quis com isto senão que a Eucaristia fosse também uma refeição
e Ele próprio nosso alimento? O alimento, porém, é para a vida,
e a vida da alma é a caridade, conforme diz o Apóstolo:
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"Ainda que tudo tivesse
e tudo fizesse,
se não tiver caridade,
nada me aproveita".
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Através da Eucaristia é fortalecida a vida espiritual do homem ao
modo de uma comida espiritual e um remédio espiritual; a alma faz uma
refeição espiritual por deleitar-se e inebriar-se pela doçura da
bondade divina, segundo diz o Cântico dos Cânticos:
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"Comei, amigos,
e inebriai-vos, caríssimos".
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E porque uma refeição espiritual e a caridade não podem existir sem
a graça, é manifesto que com esta refeição se confere a graça
(S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, III, Q. 79).
De outro modo, para que Cristo estaria nela presente, se é para
isto que Ele veio ao mundo, segundo São João:
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"A graça e a verdade
vieram por meio de Jesus Cristo"?
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E também:
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"E todos nós participamos de sua plenitude,
e graça sobre graça".
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E também ainda:
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"A todos os que o receberam,
deu-lhes o poder de se tornarem
filhos de Deus,
os quais não do sangue,
nem da carne,
nem da vontade do homem,
mas de Deus nasceram".
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Fica assim novamente claro que não há diferença entre dizer que o
mandamento do amor é o centro do Cristianismo e dizer que a
Eucaristia é o centro do Cristianismo. Pelas razões apontadas, a
Eucaristia é, de um modo multiforme, a festa da caridade, o momento
em que ela nos é comunicada do modo mais belo, aquilo que está
contido por excelência neste sacrifício e nesta refeição.
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