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Não são todos os escritos que tratam de Deus ou dos bens invisíveis
que devem ser chamados de sagrados, e nem tampouco apenas estes.
Entre os livros dos pagãos encontram-se muitas obras que tratam da
eternidade de Deus, da imortalidade das almas, dos prêmios e dos
castigos eternos merecidos pela virtude e pela maldade, tudo isto
demonstrado por meio de argumentação bastante provável, sem que, no
entanto, ninguém julgue por isto que sejam obras dignas de receberem o
nome de sagradas.
Por outro lado, percorrendo a série dos livros do Antigo e do Novo
Testamento, observaremos que tratam-se de escritos que se ocupam
quase que inteiramente de coisas que pertencem à vida presente,
raramente discorrendo abertamente sobre a doçura dos bens eternos e a
felicidade da vida celeste. Não obstante, são estes escritos que a
fé católica costuma chamar de sagrados.
Os escritos dos filósofos brilham externamente pelo esplendor de suas
palavras, mas quando nos estendem uma aparência de verdade,
mesclam-na com o erro, no que podem ser comparados a uma parede de
barro caiada de branco. Tal como a parede caiada, escondem sob uma
camada de cal o barro do erro (nota 1). Os discursos
sagrados, ao contrário, podem ser com muita propriedade comparados
aos favos de mel, pois parecem áridos na simplicidade da linguagem,
mas internamente são repletos de doçura. São, ademais, chamados
de sagrados porque estão tão distantes da contaminação do erro que
nada de contrário à verdade pode ser encontrado neles.
Notas.
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Nota 1: o período mais importante da história da filosofia grega, a época
que se inicia com Tales de Mileto e se encerra com Aristóteles, vai
aproximadamente do ano 600 AC até o ano 350 AC.
Diversamente da doutrina judaico cristã, a filosofia grega não é
uma Revelação, mas um esforço de muitas gerações de sábios que
buscaram se aproximar da verdade através do cultivo das virtudes, do
estudo e da contemplação, inicialmente da natureza, posteriormente
aperfeiçoada pelo desenvolvimento da Metafísica. Como sub produto
deste esforço surgiram muitas obras escritas que se aprimoravam à
medida em que as várias gerações de filósofos iam se sucedendo.
Devido a este caráter gradual dos escritos dos filósofos gregos, em
suas primeiras obras encontram-se, entre as verdades mais sublimes,
também muitos ensinamentos contrários à fé cristã. Cumpre
observar, no entanto, que em Aristóteles, não por acaso o último
desta sequência de sábios e o possuidor, entre os mesmos, da obra
escrita mais extensa, já não se encontra praticamente nada, ou
possivelmente mesmo nada, que divirja da doutrina cristã. Na tempo
de Hugo de S. Vitor, porém, o ocidente cristão ainda não
dispunha do acesso a toda a obra de Aristóteles, com exceção dos
seus tratados de Lógica, disponíveis em uma tradução latina legada
por Boécio. Somente quase dois séculos mais tarde, na época de
Santo Tomás de Aquino, é que foi possível à civilização
ocidental conhecer inteiramente, não sem grande assombro, toda a obra
do filósofo.
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