CAPÍTULO IX

Mas não há por que admirar-se, entretanto, se considerarmos que não há quem possa resistir ao Espirito Santo e ao braço do Todo Poderoso. A opinião da santidade de Bernardo era grandíssima; suas palavras eram como setas agudas lançadas pela mão do Senhor; sua oração, tão eficaz e poderosa, que alcançava do céu tudo o que desejava, e os milagres que Deus operava obrava por meio dele eram tantos, tão contínuos e tão grandes que só eles já eram suficientes para dobrar o mundo à sua vontade. Gofredo, monge de Claraval, companheiro e secretário do santo, afirma como coisa certa e notória que em uma aldeia da cidade de Constança, na presença de muitas testemunhas, com a imposição de suas mãos em um só dia iluminou onze cegos, curou dez defeituosos e dezoito cochos, e que na cidade de Colônia, em apenas três dias, doze cochos, dois estropiados, três mudos e dez surdos recuperaram completamente a saúde, de modo que alguns homens piedosos, querendo pela sua devoção deixar uma memória escrita dos milagres que o santo fazia e começaram-nos a escrever para pouco depois verem-se obrigados a desistir de o fazer, vencidos pela multidão e grande quantidade deles. O próprio santo se admirava com os milagres que Deus operava por ele, não sabendo ao que atribuí-los, porque pela sua profunda humildade conhecia e dizia que não se deviam à santidade que não possuía nem tampouco aos seus méritos, mas que eram concedidos para a salvação e para o aproveitamento de muitos, para que estimassem e honrassem a virtude que supunha-se que ele teria. E também para que conhecessem que Deus não faz milagres para o bem daqueles através dos quais os realiza, mas para o proveito daqueles que podem vê-los e daqueles que o acabam sabendo, nem tampouco para que os que fazem mais milagres sejam tidos por mais santos, mas para que todos sejam amigos e imitadores da santidade. E este também é o motivo pelo qual faremos silêncio sobre muitos, somente mencionando aqui a alguns poucos, dos quais esperamos que aqueles que os lerem possam aproveitar-se.

Comecemos pelo primeiro milagre que o santo fez ao voltar da fundação do mosteiro chamado das Três Fontes.

Foi avisado que um parente seu, chamado Gisberto, estava para morrer. Já estava impossibilitado de falar e não havia podido confessar-se. Era homem nobre e rico, mas de má vida e usurpador do bem alheio. Entrou o servo de Deus na igreja para celebrar missa e encomendá-lo a Deus e no mesmo instante o enfermo volta a si e começa a confessar e a chorar os seus pecados. Quando, porém, São Bernardo acaba a missa, o doente torna a perder a fala. Foi o santo visitá-lo e encontra-o naquele estado; rogam-lhe para que faça oração por ele e São Bernardo, levantando os olhos ao céu e movido pelo Senhor, responde com grande liberdade aos que estavam ali presentes:

"Vós sabeis as más obras que fez este homem, e que ele é possuidor de muitos bens mal ganhos. Restitua, ele e seus filhos, aquilo que não é seu; abandone os maus tratos e os modos injustos de que tem feito uso contra os pobres. Se assim o fizer, morrerá como cristão".

Tudo isto o enfermo o fêz tal como o santo o havia mandado. Logo a língua, muda e presa, ficou solta e livre. Já podendo falar, confessou-se com muita contrição e, recebidos os outros sacramentos da Igreja, faleceu com muita edificação de todos e esperança de eterna salvação.

Quando pregava, na região de Tolouse, contra o herege Henrique de quem já falamos, certo dia, acabado o sermão, aquela boa gente trouxe uma grande quantidade de pães para que o santo os abençoasse. Ao fazê-lo, o santo lhes disse:

"Nisto podereis ver, meus filhos, se é verdade o que vos prego e se é falso o que vos ensinam e aquilo de que vos querem persuadir os vossos adversários. Isto é, se todos os vossos enfermos que comerem destes pães ficarem curados".

Estava ali presente o bispo de Chartres e, parecendo-lhe que aquela proposta do santo era demasiadamente ampla, querendo modificá-la, acrescentou:

"Haveis de entender que ficareis curados se for com fé que comerdes deste pão".

Então respondeu São Bernardo:

"Não foi isto o que eu disse, senhor, mas exatamente o que minhas palavras disseram, isto é, que todos os enfermos que provarem deste pão haverão de recuperar a saúde, para que se entenda que somos legítimos e verdadeiros mensageiros de Deus".

Tal como o disse, assim o foi. Todos os que comeram daquele pão curaram-se, sem exceção alguma.

A fama deste milagre espalhou-se imediatamente por toda a província e foi de muito proveito para estancar a heresia. Despertou e inflamou o coração do povo à devoção do santo abade. Concorriam em tão grande número de todas as partes para vê-lo e prestar-lhe reverência que foi necessário, para escapar a todas estas homenagens, mudar o caminho de Salat, onde havia sido o milagre, para a cidade de Tolouse.

Naquela mesma comarca, com a mesma finalidade e para confirmação da fé, curou um clérigo do Colégio de São Saturnino, paralítico incurável, o qual que também se chamava Bernardo, tão debilitado e consumido que muitas vezes parecia haver entrado em artigo de morte. Vendo-o o santo, abençoou-o e partiu. Naquele momento confortaram-se-lhe os nervos e, recobrando as forças, levantou-se da cama onde estava, correu atrás do santo abade, deteve- o e jogou-se a seus pés, beijando-os com grande devoção e afeto. Mais ainda, acompanhou-o e, para ser agradecido a Deus, tomou o hábito em Cister, submetendo-se à obediência de São Bernardo. Tendo dado bom exemplo mostras de religião e prudência, foi escolhido pelo próprio São Bernardo para ser abade de outro mosteiro chamado Valdaqua.

E quem poderá narrar o domínio que teve este grande santo sobre os demônios e o império com que os expulsava das pessoas a quem cruelmente atormentavam? Não somente estando presente, impondo-lhes as mãos, fazendo o sinal da cruz ou dando-lhe um pouco de água benta para beber, mas também estando ausente, fugiam os espíritos infernais da estola do santo como de um espantoso suplicio. Deixando de lado outros milagres que dizem respeito a este assunto, mencionarei somente dois memoráveis.

Estando na cidade de Milão para reconduzi-la à unidade da Igreja e à obediência do Romano Pontífice, conforme dissemos acima, entre outros muitos e assinalados milagres que o santo fêz houve o de uma mulher honrada e de idade madura, em que Satanás havia entrado e possuído por muitos anos, tendo-a maltratado de tal maneira que ela já não podia ver, ouvir ou falar e mostrava uma língua que mais parecia uma tromba de elefante ou de algum outro horrível monstro do que de uma mulher. Tinha o rosto muito feroz e espantoso; o alento, hediondo, insuportável e digno do hóspede que a atormentava. Foi pela força que tiveram que conduzí-la. certa manhã, ao santo, quando celebrava missa no templo de Santo Ambrósio. Olhou-a com olhos brandos e piedosos e logo entendeu que aquele demônio era rebelde e que havia tomado posse, por permissão do Senhor, tão fortemente daquela mulher, que dificilmente poderia deixá-la. Voltando-se para o povo, que era enorme, ordenou que todos orassem atentamente, e aos clérigos que mantivessem a mulher firme e imóvel.

Chegando ao mistério da consagração, quantas cruzes fazia sobre a hóstia, outras tantas, dirigindo-se para a endemoninhada, fazia sobre ela, com incrível raiva e dor daquele espírito maligno, que o mostrava com o ranger dos dentes, com os gestos, os gritos e os movimentos de todo o corpo. Finalmente, tendo dito o Pai-nosso, tomou o corpo do Senhor na patena e esta sobre a cabeça da triste mulher, falando com o demônio, lhe disse:

"Eis aqui, espírito maligno, o teu juiz. Eis aqui o Senhor todo poderoso. Contradize-o, se podes. Este é o sagrado corpo que se formou nas entranhas da virgem, pendeu da cruz, foi sepultado, ressuscitou da morte, subiu triunfante aos céus. Pelo poder desta soberana majestade, eu te ordeno que deixes esta sua serva e que não mais te atrevas a molestá-la daqui em diante".

Saiu aquele espirito infernal e pertinaz que possuía aquela pobre mulher, louvando todos ao Senhor e confessando que o Santíssimo Sacramento do Altar é eficacíssimo e poderosíssimo contra todo o poder do inferno quando a ele nos dirigimos com a pureza e com a fé convenientes. Este é o primeiro milagre.

O segundo é que, estando em Pavía, um pobre lavrador trouxe sua mulher endemoninhada para que a curasse, e o demônio começou a ridicularizar o santo e a dizer:

"Não me expulsará de minha casa este comedor de cachorros e de cebolas".

Dizia-lhe também outras palavras injuriosas para irritá-lo. Mas ele, verdadeiro humilde, não se perturbou, e mandou que levassem a mulher para igreja de São Ciro, que havia sido bispo de Pavia e resplandecia com muitos milagres. Levaram-na até a igreja, e não quis Deus que São Ciro a curasse, para guardar aquela honra para São Bernardo, a cuja presença voltaram-na a trazer. O demônio começou a escarnecê-lo e a dizer:

"Não me expulsou Cirinho, muito menos me expulsará Bernardinho".

Ao ouvir isto, disse São Bernardo:

"Não te expulsou Ciro, nem te expulsará Bernardo, mas quem te expulsará será Jesus Cristo".

Fêz uma oração pela mulher e esta ficou curada.