19. 4. O Livro de Judite.

No livro de Judite temos o exemplo de uma fé que não apenas se nos mostra com as qualidades da firmeza e constância, mas que, além disto, amadureceu pela experiência de sua própria vivência.

O livro nos conta uma história ocorrida pouco depois do retorno do povo judeu do exílio da Babilônia. Sabemos disso porque, durante a narrativa, um dos personagens, Aquior, diz a respeito dos judeus que

"há poucos anos, este povo foi levado cativo para uma terra estranha e há pouco tempo tornou-se a juntar dos lugares para onde tinha sido disperso, retomando a posse de suas montanhas, assim como de Jerusalém, onde tem o seu santuário".

Jd. 5, 22-23

Percebe-se, no livro de Judite, a intenção de narrar uma história cujos fatos são reais. Grande parte dos nomes das pessoas e dos lugares, porém, são fictícios; alguns são tão claramente impossíveis que o autor parece tê-los incluído propositalmente apenas para deixar claro que, por algum motivo que nos é desconhecido, quis ocultar os nomes verdadeiros.

A história de Judite se inicia quando Nabucodonosor, apresentado como rei dos assírios reinando em Nínive, após vencer uma guerra contra os medos, ensoberbeceu- se em seu coração e enviou o general Holofernes para que

"exterminasse todos os deuses da terra, a fim de que só ele fosse chamado deus pelas nações que fossem subjugadas pelo poder de Holofernes".

Jd. 3, 13

Na época em que ocorreram os fatos narrados no livro de Judite, porém, Nabucodonosor, monarca nomeado em outros livros das Sagradas Escrituras, já havia morrido há muito tempo; ele também não havia sido rei dos assírios, mas dos babilônios, e a cidade de Nínive, uma das maiores do mundo antigo, jazia em ruínas há pelo menos mais de um século. Não foi, porém, por engano que o autor deste livro nos apresentou este personagem impossível, porque qualquer judeu de sua época que tivesse lido o livro, assim como qualquer pessoa de hoje que tenha familiaridade com as Sagradas Escrituras, perceberia de imediato a impossibilidade deste personagem tão claramente como hoje qualquer brasileiro perceberia que Napoleão não poderia ser um presidente do Brasil no século XX. Nabucodonosor, o suposto rei dos assírios apresentado pelo livro de Judite, portanto, deve ser algum poderoso rei persa que o autor, por algum motivo a nós desconhecido, não quis identificar.

Os reis persas eram, nesta época, soberanos muito poderosos. Além de dominarem todo o Oriente, foram o primeiro povo da história que conseguiram derrotar e conquistar a civilização egípcia, que já tinha, nesta época, três mil anos de existência, era uma das principais potências do mundo antigo e estava situada em território relativamente afastado e protegido das demais grandes potências da época. Quando, portanto, o rei persa que o livro de Judite nos apresenta como sendo Nabucodonosor enviou o general Holofernes para que subjugasse todas as nações para que "só ele fosse chamado de deus", não é motivo de espanto o terror que se apossou de todos os povos:

"Foi tão grande o medo que se apoderou dos habitantes das cidades",

diz o livro de Judite,

"que as pessoas mais distantes, à chegada de Holofernes, saíam-lhe ao encontro juntamente com os povos, recebendo-o com coroas e com archotes, dançando ao som dos tambores e das flautas. Todavia, nem mesmo fazendo isto puderam abrandar a ferocidade daquele coração, porque este lhes destruía não apenas as suas cidades, como também os seus bosques sagrados",

isto é, os seus lugares de culto (Jd. 3, 9-12). Tal foi a reação de todos os povos diante das tropas do rei persa. Qualquer tentativa de defesa era manifestamente impossível; só lhes restava ajoelharem-se diante do inimigo, beijarem-lhe os pés e esperarem que não destruísse mais do que aquilo a que já se havia proposto. Nenhum dos povos por onde passou o general Holofernes reagiu de maneira diversa, tal era a evidência da superioridade do poder militar dos persas.

Só a reação dos judeus foi diferente. Eles temiam, diz o livro de Judite, que Holofernes fizesse à

"cidade de Jerusalém e ao templo do Senhor o que havia feito às outras cidades e aos seus templos".

Jd. 4, 2

Tamanha era a convicção do povo judeu que o Deus de Israel era o Deus verdadeiro que decidiram prepararem-se para uma guerra impossível. Ao contrário de todas as nações, os judeus

"ocuparam então os cumes dos montes, cercaram as suas aldeias de muros e fizeram provisões de trigo, preparando-se para a guerra".

Jd. 4, 3-4

O sumo sacerdote Eliaquim não era de opinião diversa. Ele percorria as cidades de Israel exortando o povo à fé. Recordava-lhes como exemplo a fé que havia animado Moisés, dizendo-lhes:

"Sabei que o Senhor ouvirá as vossas súplicas, se permanecerdes constantes nos jejuns e nas orações diante do Senhor. Lembrai-vos de Moisés, servo do Senhor, o qual, não combatendo com ferro, mas suplicando com santas orações, destroçou Amalec, que confiava na sua força, no seu poder, no seu exército, nos seus escudos, nos seus carros e cavaleiros.

Assim sucederá a todos os inimigos de Israel, se vós permanecerdes nesta obra que começastes".

Jd. 4, 12-14

Se esta atitude ainda é capaz de causar espanto para nós, homens de hoje, tão distantes no tempo da realidade daqueles acontecimentos, quanto mais não o terá sido para o próprio general Holofernes, ao ouvir que um povo militarmente insignificante se preparava para resistir ao seu exército. Ele admirou-se, dizem as Escrituras, e em seguida

"encheu-se de furor, e inflamou-se com grande cólera".

Jd. 5, 2

Não podia acreditar que um povo tão pequeno tivesse a ousadia de pretender guerrear contra o seu exército.

"No dia seguinte",

continua a Escritura,

"mandou suas tropas marcharem contra Betúlia",

Jd. 7, 1

uma cidade cujo nome provavelmente também é fictício, mas que ocupava uma posição estratégica no caminho para Jerusalém.

Bastou, porém, que as tropas de Holofernes se aproximassem de Betúlia,

"cento e vinte mil combatentes a pé, vinte e dois mil cavaleiros, sem contar os homens aptos para a guerra e toda a juventude que tinha levado, à força, das províncias e das cidades",

Jd. 7, 2

e a cercassem durante 20 dias para que ficasse claro que a fé dos habitantes daquela cidade era do mesmo gênero daquela que animava São Pedro antes do dia de Pentecostes. "Caminhando sobre as águas do mar ao encontro de Jesus", diz o Evangelho de Mateus, "e percebendo a força do vento, Pedro teve medo e começou a afundar. Jesus então o repreendeu:

`Homem de pouca fé, por que duvidaste?'

Mt. 14, 31

Esta fé, diz também Jesus,

"é como uma semente plantada em lugar pedregoso, onde não há muita terra. Logo nasce, porque não tem profundidade de terra; mas, saindo o Sol, queima-se, e porque não tem raíz, seca. Estes são aqueles que ouvem a palavra e logo a recebem com gosto; mas eles não tem raízes. Crêem durante algum tempo, mas no momento da provação voltam atrás".

Mt. 13, 5-6; 13, 20;
Lucas 8, 13

Assim se mostrou ser a fé dos betulienses. Eles creram em Deus, mas as raízes desta fé não foram suficientemente profundas. Vinte dias depois de iniciado o cerco de Betúlia pelas tropas de Holofernes, "que havia decidido vencê-los sem combate" (Jd. 7, 9),

"esgotaram-se as cisternas e os depósitos de água para todos os moradores de Betúlia, de maneira que não havia mais, dentro da cidade, com que matar a sede".

Jd. 7, 11

Vinte dias antes Eliaquim lhes havia recordado que nenhuma força humana é capaz de vencer aqueles que crêem no Senhor. "Deus combaterá por vós", havia-lhes dito muito tempo antes Josué, e "um só de vós porá em fuga mil homens dos inimigos", se

"tiverdes um grandíssimo cuidado em amar o Senhor vosso Deus, em andar em todos os seus caminhos, observar os seus mandamentos, estar unidos a Ele, e o servir de todo o coração e de toda a vossa alma".

Jos. 23, 11; 22, 5

Mas agora, diante do espectro da sede, ninguém via mais como isto seria possível e nem acreditava mais nestas palavras. Ao contrário, chamaram Ozias, o governador da cidade, e lhe disseram:

"Deus seja o juiz entre nós e ti, porque tu nos trouxeste estes males, não querendo tratar a paz com os assírios. Agora, pois, manda ajuntar a todos os que há na cidade, para que todos nos rendamos voluntariamente ao exército de Holofernes".

Jd. 7, 13-15

Ozias, o governador da cidade, também não estava mais certo se naquela situação ainda se poderia confiar em Deus. Quando o povo, já "cansado de clamores e de prantos" (Jd. 7, 22), ficou alguns momentos em silêncio, Ozias aproveitou para propor-lhes uma experiência:

"Tende bom ânimo, irmãos, e por estes cinco dias esperemos a misericórdia do Senhor. Talvez se aplaque a sua ira e dê glória ao seu nome. Mas se, passados estes cinco dias, não nos vier socorro, faremos o que vós dissestes".

Jd. 7, 23-25

É visível, nestas passagens, que o livro de Judite quer tratar, mais do que sobre a questão da natureza da fé, sobre a questão da experiência da vida da fé, claramente evidenciada nas atitudes dos betulienses. A fé dois betulienses era aquela fé sem raízes de que Jesus fala na parábola do semeador, que como uma semente plantada em lugares pedregosos, sobrevindo o calor causticante da provação, queima e seca, porque não tem raízes. O livro de Judite quer nos mostrar o contraste entre esta fé sem raízes, uma fé que se desenvolveu muito rapidamente ou tão desatentamente que não teve tempo ou atenção para fazer a experiência de si mesmo, e a fé de Judite, que por ter provavelmente já longamente vivido da fé, não apenas cria que Deus auxilia aqueles que o buscam, mas também havia experimentado de que modo Deus faz isto. Não era o modo como os betulienses esperavam que fosse.

A Escritura nos ensina que a providência divina ampara de um modo especial aqueles que vivem da fé. Diz, de fato, o livro de Provérbios:

"Tem confiança no Senhor de todo o teu coração, e não te estribes na tua prudência.

Pensa nEle em todos os teus caminhos, e Ele mesmo dirigirá os teus passos".

Pr. 3, 5-6

E também acrescenta o Eclesiástico:

"Confia em Deus e ele te protegerá; ai, porém, dos fracos de coração, que não confiam em Deus, e que por isso não serão protegidos por Ele".

Ecles. 2, 6; 2, 15

Santo Tomás de Aquino, como se estivesse comentando estas passagens, nos mostra nas Quaestiones Disputatae de Veritate que os homens bons estão inseridos dentro de uma ordem da providência divina que difere essencialmente do modo como se ordenam todos os demais entes:

"Tanto mais nobremente algo é colocado sob a ordem da providência",

diz Tomás de Aquino,

"quanto mais próximo estiver do primeiro princípio, que é Deus. Entre todas as criaturas, são as substâncias espirituais as que mais se aproximam do primeiro princípio, de onde que são ditas terem sido assinaladas pela sua imagem, e por isto obtiveram da divina providência que não apenas sejam provistas, mas também que provejam, sendo esta a causa pela qual as substâncias espirituais podem eleger os seus atos, e não as demais criaturas, que são somente provistas, sem que possam prover. Mas as criaturas às quais a possibilidade de proverem foi comunicada não são fins de suas providências, mas se ordenam elas próprias a outros fins, a saber, a Deus, de onde que são ordenadas por Deus na medida em que tomam da retidão divina a retidão de sua providência.

A divina providência, portanto, se estende aos homens de dois modos.

De um primeiro modo, na medida em que eles próprios são provistos por Deus.

De um segundo modo, na medida em que eles próprios se fazem providentes de seus atos.

Falhando, pois, ao proverem, ou observando a retidão ao fazê-lo, os homens são ditos bons ou maus. Pelo fato de que são provistos por Deus, a eles são oferecidos bens ou males; e na medida em que eles de modo diverso se acham no provirem, de modos diversos também são provistos por Deus.

Se observam a reta ordem ao proverem, neles a divina providência observa uma reta ordem condizente com a dignidade humana, a saber, que nada a eles aconteça que não se converta em bem para eles e que tudo o que a eles provenha os promova ao bem, segundo está escrito na Epístola aos Romanos:

`Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus'.

Rom. 8, 28

Se, porém, ao proverem, não observam a ordem que é condizente com a criatura racional, mas proveem segundo o modo dos animais brutos, a divina providência os ordenará segundo a ordem que compete aos animais brutos, isto é, de tal maneira que as coisas que neles são boas ou más não se ordenem para o bem deles próprios, mas para o bem dos outros, segundo o que diz o Salmo 48:

`O homem, estando em honra, não compreendeu; foi comparado aos jumentos ignorantes, e tornou-se semelhante a eles'.

De tudo isto é evidente que a providência divina governa os bons de um modo mais alto do que os maus: os maus, de fato, na medida em que se retiram de uma determinada ordem da providência, não fazendo a vontade de Deus, caem sob uma outra ordem, isto é, sendo feito deles as divina vontade; mas os bons quanto a ambas estas coisas estão sob a reta ordem da providência".

Quaest. Disputatae de Veritate
Quaestio 5, a.5, a.7

Estas palavras de Santo Tomás de Aquino, e muitas outras de que estão repletas os textos dos santos, via de regra provêm de pessoas que têm a experiência do que dizem. São testemunhos de homens que experimentaram, em grau maior ou menor, por terem vivido por longo tempo a vida da fé, de que modo devem ser entendidas as palavras de Jesus quando nos exortava a buscar em primeiro lugar o Reino de Deus, prometendo-nos que tudo o resto nos seria acrescentado (Mt. 6, 33). A experiência mostra que, ao contrário do que parece sugerir à primeira vista tal promessa, a provação não tarda a se aproximar dos que crêem, conforme nos ensina o Eclesiástico:

"Meu filho",

diz o Eclesiástico,

"quando entrares no serviço de Deus, persevera firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação.

Humilha o teu coração e tem paciência, inclina o teu ouvido e recebe as palavras de sabedoria, e não te apresses no tempo da prova,

porque no fogo se prova o ouro e a prata, e os homens amados por Deus são provados no cadinho da humilhação".

Ecles. 2, 1-2, 5

Ocorre, porém, que mais tarde, se é verdade que o homem busca em primeiro lugar o reino de Deus, começa a ficar sempre mais claro que as provações parecem vir propositalmente para poderem ser vencidas através da virtude da fé e para que, vencendo-as justamente deste modo, o homem possa aprender a viver ainda mais profundamente da fé. É isto o que nos diz o livro da Sabedoria:

"Foi a Sabedoria que conduziu o homem justo por caminhos direitos,

lhe mostrou o Reino de Deus,

defendeu-o dos enganadores,

e meteu-o num duro combate, para que vencesse,

e soubesse que, de todas as coisas, a mais poderosa é a Sabedoria".

Sab. 10, 10

E também:

"A criatura, servindo a ti, seu Criador,

torna-se violenta para atormentar os injustos,

e torna-se mais benigna para fazer o bem àqueles que em ti confiam,

para que saibam os teus filhos, a quem amaste, Senhor,

que não são os frutos naturais que sustentam os homens,

mas que é a tua palavra que conserva aqueles que crêem em ti".

Sab. 16, 24-26

É por isso que o Eclesiástico, após ter pedido ao homem preparar a "sua alma para a provação", acrescenta logo em seguida:

"Vós, os que temeis o Senhor, amai-O, e os vossos corações serão iluminados".

Ecles. 2, 10

As Sagradas Escrituras estão repletas de exemplos concretos destes ensinamentos.

Nos vinte primeiros capítulos do Êxodo elas nos narram como Deus havia libertado os judeus do Egito com prodígios tão extraordinários que eles praticamente nada tiveram que fazer senão admirar como Deus tudo fazia e a tudo provia. Mas, depois que alcançaram a liberdade através da passagem do Mar Vermelho, Deus pediu-lhes que lutassem, em condições de evidente inferioridade, para conquistarem a terra prometida. Esta conquista é a narrada no livro de Josué.

Comparando-se, porém, as narrativas de Êxodo e de Josué, vem naturalmente a pergunta: que necessidade havia de se lutar? Deus que havia feito tudo na libertação do Egito, uma nação muito mais poderosa, não poderia fazê-lo novamente na conquista da terra prometida, em vez de fazer passar o povo judeu pelo medo e pela angústia de enfrentar inimigos mais poderosos do que ele? Mas se nos lembrarmos das palavras que Josué nos deixou próximo ao término de sua vida, teremos que concluir que isto não ocorria senão para dar ocasião aos israelitas de aprenderem a viver da fé e a crescerem nela.

Dentro da própria narrativa de Êxodo encontramos novamente exemplos deste modo de agir da providência.

Quando os judeus estavam no cativeiro, Deus havia transformado as águas dos rios do Egito em sangue (Ex. 7, 14- 25), para que o Faraó libertasse o povo escolhido. Mas Faraó não cedeu. Seguiu-se então a praga das rãs (Ex. 7, 26-29; 8, 1- 11), e Faraó novamente não cedeu. Seguiu-se a praga dos mosquitos (Ex. 8, 12-15), e Faraó ainda não cedeu. Quatro novas pragas mais adiante, e Faraó ainda não cedia, não obstante os sinais evidentes que manifestavam a origem divina destes prodígios. Deus então anunciou a Moisés a oitava praga, pela qual as terras do Egito seriam infestadas, à sua ordem, por uma extraordinária horda de gafanhotos. Moisés já antevia que Faraó continuaria não cedendo e que se trata, portanto, de um esforço aparentemente inútil. Mas era evidente também para Moisés que Deus, que tinha o poder de realizar todos aqueles prodígios, poderia, se o quisesse, dizer apenas uma só palavra e mudar o coração de Faraó. Por que, então, não o fazia? É possível que Moisés tenha feito esta pergunta, apenas em seu íntimo ou diretamente para Deus. Se o fêz de fato, as Escrituras não o dizem. Contudo, quando Deus anunciou a oitava praga, explicou também a Moisés porque procedia daquele modo, como se Moisés o tivesse perguntado ou como se o próprio Deus se estivesse antecipando à pergunta. É claro que Deus poderia dizer uma só palavra e mudar o coração de Faraó, mas, se procedia diversamente, Deus disse que assim o fazia,

"operando todos estes sinais, para que tu, Moisés, possas narrar a teu filho, e ao filho do teu filho, quão grandes coisas o Senhor fêz entre os egípcios e que prodígios operou no meio deles, para que conheçais que eu sou o Senhor".

Ex. 10, 2

Para quem bastava dizer uma só palavra e com isto mudar o coração de Faraó, anunciar uma oitava e devastadora praga depois das sete que já se tinham mostrado inteiramente inúteis parecia uma atitude incompreensível e até uma fonte de angústia e apreensão para o povo judeu, o suposto beneficiário das mesmas. Mas Deus procedia assim para o nosso bem; Ele queria ensinar-nos a, contemplando aqueles prodígios, remontar a atenção de nossa alma para uma outra realidade. Desejava, através daqueles eventos visíveis, que aprendêssemos a conhecê-lo melhor e pudéssemos, através do conhecimento da fé, nos aproximar dele. E é assim que Ele ainda age, não apenas com o povo judeu ao ter saído do Egito, mas com todos aqueles que se propõem a empreender a sua busca:

"Se pudéssemos ver os fios sutis com que a providência divina urde a tela de nossa vida",

diz uma irmãzinha missionária que quis ocultar-se no anonimato,

"apoderar-se-iam de nós sentimentos de gratidão e amor para com nosso bom pai celestial e, deixando nas suas mãos todo o cuidado sobre o nosso futuro, contentar-nos-íamos de ser a pequena lançadeira que doce e calmamente desliza entre os fios da urdidura divina".

Tal como Deus havia ensinado a Moisés, a experiência também ensinou a esta irmãzinha que a providência lhe dispunha os acontecimentos de sua vida para que, também através deles, aprendesse a deixar de avaliar a realidade através das sugestões da carne e passasse a contemplar com os olhos da alma outras realidades bem mais profundas.

Nada disso, porém, haviam ainda aprendido os betulienses. Quiseram confiar em Deus, mas ignoravam que Deus mais quereria, ao ver suas boas disposições, aumentar-lhes a fé do que dar-lhes o descanso que julgavam merecer. Por isto, quando Deus lhes respondeu de acordo com a sua fé, não entenderam e se desesperaram. Não sabiam mais o que fazer, pois não tinham tido verdadeira experiência destas coisas. Eram marinheiros de primeira viagem, e logo na primeira tinham se deparado com uma tempestade a enfrentar. Com o navio estava tudo certo; o problema era a inexperiência da tripulação.

A sorte da cidade era que nela havia alguém que já vivia da fé há muito tempo, uma senhora chamada Judite, viúva há três anos e meio. Após a morte do marido, diz a Escritura,

"no andar superior de sua casa havia feito para si um quarto retirado, no qual se conservava recolhida junto com as suas criadas; trazia um cilício sobre os seus rins, jejuava todos os dias de sua vida, exceto nos sábados, nos primeiros dias de cada mês e nas festas de Israel. Era de belíssimo aspecto e estimadíssima por todos, porque tinha muito temor de Deus, e não havia ninguém que dissesse dela uma palavra de desfavor".

Jd. 8, 5-8

Desta descrição depreende-se já estarmos diante de uma vida seriamente dedicada a Deus desde a juventude. "Estimadíssima por todos, sem que houvesse ninguém que dissesse dela uma palavra de desfavor", mostra que a sua fé não era recente, por ter sido já provada por muitos; "porque tinha muito temor de Deus" denota a profundidade dos dons do Espírito Santo; o "quarto retirado" e a prática do "jejum todos os dias de sua vida" são instrumentos auxiliares de uma vida séria de oração, que é, conforme veremos, o principal meio de se obter a fé. Uma pessoa assim, com certeza, teria que reagir muito diversamente diante do cerco do general Holofernes.

De fato, "tendo Judite sabido que o governador da cidade havia prometido entregar a cidade dali a cinco dias" (Jd. 8, 9), caso não viesse uma resposta de Deus, mandou chamar os anciãos de Betúlia e lhes disse:

"Que palavra é essa, com a qual concordou Ozias, de entregar a cidade aos assírios, se dentro de cinco dias não vos viesse socorro?

Quem sois vós, que assim provocais o Senhor? Não é esta uma palavra que excite a sua misericórdia, mas antes provoca a sua ira, acende o seu furor. Vós fixastes prazo à misericórdia do Senhor, e ao vosso arbítrio lhe assinalastes o dia".

Jd. 8, 10-13

Estas são palavras de quem certamente já havia experimentado que se

"tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte:

`Muda-te daqui para ali',

e ele se mudará, e nada vos será impossível".

Mt. 17, 20

Judite sabia o que era a fé, e conhecia a resposta de Deus à fé; sabia que os judeus tinham entrado em luta contra Holofernes apenas com a arma da fé; sabia também que o que os betulienses faziam agora não provinha da fé, mas do abandono da fé. Estavam, pois, inteiramente desprotegidos, sem a única defesa com que contavam.

"Agora, irmãos",

continua Judite,

"como vós sois os anciãos do povo de Deus, e de vós depende a sua vida, com vossas palavras animai os seus corações, para que se lembrem que nossos pais foram tentados a fim de que se visse se verdadeiramente serviam ao seu Deus. Devem recordar-se como nosso pai Abraão foi tentado, e como, depois de provado por meio de muitas tribulações, chegou a ser o amigo de Deus. Assim Isaac, assim Jacó, assim Moisés e todos os que agradaram a Deus, passaram por muitas tribulações e permaneceram fiéis. Aqueles, porém, que não aceitam as provas com o temor do Senhor, que mostraram a sua impaciência e irromperam com injuriosas murmurações contra o Senhor foram feridos de morte".

Jd. 8, 21-25

Tratava-se, sem dúvida, não de um castigo, mas de uma oportunidade que Deus dava àqueles que tinham resolvido trilhar o caminho da fé para aprenderem a se libertar da pressão dos julgamentos que procedem dos sentidos da carne e desfrutarem da liberdade de agir à luz de realidades que somente podem ser apreendidas por outros canais. É isto o que acrescenta Judite:

"Creiamos que estes flagelos do Senhor, com que, como seus servos, somos castigados, nos vieram para nossa emenda, e não para nossa perdição".

Jd. 8, 27

O livro conta então como esta mulher, sem auxílio de nenhuma arma, apenas revestida da virtude da fé, pediu que se lhe abrissem as portas da cidade e dirigiu-se sozinha ao acampamento inimigo. Alguns dias mais tarde, o exército persa batia em retirada para nunca mais retornar. Antes de sair de Betúlia, porém, Judite retirou-se e pronunciou em particular uma oração, na qual se percebe claramente como ela apreciava aqueles acontecimentos inteiramente à luz de uma outra realidade. Talvez sejam estas as palavras mais belas e mais profundas deste livro:

"Tu, Senhor",

diz Judite,

"operaste as maravilhas dos tempos antigos, determinaste que umas se sucedessem às outras, e fêz-se sempre o que quiseste.

Todos os teus caminhos estão preparados, e fundaste os teus juízos na tua providência".

Jd. 9, 4-5

Esta é a mesma fé da irmãzinha anônima que admirava os fios sutis com que a providência urde a tela de nossa vida, e se contentava em ser a pequena lançadeira que doce e calmamente desliza entre os fios da urdidura divina.

Como Judite conseguiu sozinha derrotar um exército cuja força não tinha rival militar sobre toda a face da terra são fatos inteiramente secundários que o leitor poderá verificar pessoalmente nas Sagradas Escrituras. A verdadeira lição do livro de Judite é sobre a natureza da vivência da virtude da fé que ele nos ensina.