CAPÍTULO V

Mas ainda que São Bernardo se tivesse modificado para com os demais, não se modificou, todavia, para consigo mesmo, porque sempre guardou aquela integridade e rigor de vida que dissemos; por onde veio a enfraquecer-se muito em a ver-se curvado diante do peso de grandes enfermidades, os próprios médicos maravilhando-se como, estando tão fraco e exausto, podia ainda ocupar-se de qualquer tarefa. O próprio santo padre afinal o reconheceu e acusou-se de ter- se excedido tanto na penitências e estragado sua constituição física com execessivas austeridades, enfraquecendo seus membros e impedindo de sua parte a maior glória do Senhor. Porque, certamente, foi maravilhosa e extraordinária a austeridade de que este santo se utilizou em sua vida, e parece que humanamente não poderia viver se o Senhor não o sustentasse sobrenaturalmente. Mas estava tão inflamado e abrasado no amor de Deus que não pensava em outra coisa, de dia ou de noite, a não ser como poderia aumentar mais a sua glória e aproveitar as almas, e procurava estas duas coisas com grande ânsia e solicitude. A este alvo se dirigiam todas as suas ações e sua conversação, mais divina do que humana; sua oração, o escrever tantas cartas sobre tão importantes assuntos, o interpretar das divinas Escrituras, as argumentações com pessoas particulares e os negócios públicos que tratava; e acrescentando-lhe o Senhor uma eloqüência tão admirável e uma sagacidade e prudência maravilhosa com a qual se acomodava à condição, capacidade e costumes de cada um com os quais tratava. Com os lavradores falava como se tivesse sido criado no campo; com os cavaleiros, como cortesão; com os idiotas usava comparações de coisas materiais e grosseiras; com os letrados e sofistas disputava sobre questões sutis com grande engenho e agudeza. E, finalmente, como excelente pescador, tinha diferentes iscas e anzóis para pescar, adaptados ao gosto e ao natural de cada um; e tudo isto nascia de sua grande caridade e do desejo que tinha de ganhar almas para o Senhor. Era também efeito desta caridade a compaixão e a dor que sentia pelos pecados e faltas de seus próximos, e especialmente dos que tinha aos seus cuidados. Porque, ainda que fosse tão amoroso conforme dissemos, não deixava de admoestar e repreender como pai, secreta e publicamente, ao que cometia alguma falta, e de adotar todos os meios possíveis para corrigí-lo. E quando isto não bastava, cortava-o como um membro podre e o afastava de sua congregação. Porém quando a isto o obrigava a necessidade, ficava tão afligido e transpassado pela dor, que não haverá mãe alguma que assim sinta a morte corporal de seu filho como ele sentia a espiritual de qualquer um dos seus. Tais eram as entranhas do verdadeiro imitador de Cristo poque era muito compassivo e muito brando, e sofria-lhe o coração ver quem quer que fosse triste ou desconsolado.

Não é para admirar-se que com os homens fosse tão brando aquele que com os próprios animais era tão humano, porque algumas vezes, indo pela estrada, acontecia-lhe ver alguma lebre sendo perseguida pelos cães ou alguma ave que fugia do gavião, e ele, movido de compaixão, os abençoava para livrá-los, declarando aos caçadores, como de fato sucedia, que em vão os seguiriam. Deste forno tão inflamado de caridade saía o ouro fino da paciência firme e constante que teve São Bernardo, a qual manifestou claramente nas continuas tribulações e enfermidades que padeceu desde o principio de sua bem-aventurada conversão até o ultimo momento de sua vida, que não foi senão uma morte prolixa. Mas também pode-se ver que a mesma caridade e amor do Senhor dava-lhe forças para que, quando surgia uma grave necessidade ou coisa de seu serviço, estando como estava fraco, debilitado e consumido, pela divina providência parecia que recobrava novas forças e novo vigor para trabalhar e nela ocupar-se.

Também também sua paciência em algumas coisas graves de honra, de bens e de sua pessoa que se lhe ofereceram. Escreveu certa vez o servo do Senhor a um bispo, que era conselheiro do rei, pedindo-lhe que o avisasse sobre certas coisas que iam mal encaminhadas. Respondeu-lhe o bispo com irritação, tratando-o de néscio e atrevido, e o santo abade voltou a escrever-lhe com tanta submissão e humildade que o confundiu e fêz com que se tornasse grande amigo.

Enviou-lhe um rico abade seiscentos marcos de prata como esmola para que os gastasse em beneficio de sua Ordem. Foram roubados no caminho, e quando o soube, disse:

"Bendito seja Deus,
que nos livrou de tão grande peso".

Tendo-se-lhe tirado, por engano ou por força, dez mosteiros ou os lugares onde haviam de ser construídos, permaneceu muito sereno, sem querer jamais pleitear com os que lhe haviam feito aquele agravo. Um religioso de outra religião, pouco estável em sua vocação, havendo lido algumas obras muito espirituais de São Bernardo, foi a Claraval e pediu com grande urgência que o recebesse entre seus monges; e como o santo não o concedesse, julgando que era melhor que perseverasse onde havia começado, saindo o pobre homem de si, levantou a mão e deu um bofetão ao santo abade com tanta força, que logo se inchou sua bochecha; e ele o defendeu e o ajudou para que não lhe fizessem mal algum, antes, para que o acomodassem e o tratassem bem.