CAPÍTULO 9

A causa do entendimento errôneo de todas estas coisas por parte daqueles a quem mencionamos acima não é outra senão que a Sagrada Escritura não é por eles entendida segundo o sentido espiritual, mas segundo o som da letra. Por isso nos esforçaremos em demonstrar, segundo a pequenez do nosso sentir, aos que crêem que as Sagradas Escrituras não foram compostas por palavras humanas, mas redigidas por inspiração do Espírito Santo e transmitidas e confiadas a nós por vontade de Deus Pai pelo seu Filho unigênito Jesus Cristo, o que a nós parece ser a reta via dos que observam a inteligência, aquela regra e disciplina transmitida por Jesus Cristo aos apóstolos os quais, por sucessão, a transmitiram também aos seus pósteros que haveriam de ensinar a santa Igreja.

Todos, conforme penso, até mesmo os mais simples dos fiéis, crêem que há certas dispensações místicas assinaladas pela Sagrada Escritura. Quais sejam estas, porém, ou o que são, quem possuir reta mente e não for oprimido pelo vício da jactância será religiosamente obrigado a confessar ignorá-lo.

Se alguém, por exemplo, nos questionar sobre as filhas de Ló, que contra o direito se aproximaram carnalmente do pai, ou sobre as duas esposas de Abraão, ou sobre as duas irmãs que se casaram com Jacó, ou sobre as duas servas que lhes aumentaram a numerosidade dos filhos, o que mais poderá ser respondido senão que estas coisas são certos sacramentos e formas de coisas espirituais, que nós todavia ignoramos quais sejam?

Quando lemos sobre a construção do tabernáculo, temos como certo também que estas coisas que são escritas são figuras de outras coisas ocultas. Adaptar, porém, cada uma ao seu modo e abrir e dissertar sobre cada uma delas, considero ser coisa imensamente difícil, para não dizer impossível.

Todavia, conforme disse, é algo que não escapa até mesmo da inteligência comum que aquela descrição é repleta de mistérios. Todas aquelas narrativas que parecem terem sido escritas sobre núpcias, sobre procriação de filhos, sobre guerras diversas ou quaisquer outras histórias, que outra coisa devemos crer que sejam senão formas e figuras de coisas ocultas e sagradas? Todavia, devido ao fato de que os homens usam de tão pouca aplicação para exercitar o engenho e que, antes que aprendam, já consideram que sabem, decorre que nunca começam a saber. No entanto, se não faltar o estudo nem o mestre, e se estas coisas forem buscadas como divinas, isto é, religiosa e piamente, com autêntica esperança de que muitas sejam abertas pelo Deus que revela, ainda que para o entendimento humano sejam imensamente difíceis e ocultas, talvez quem assim as busque facilmente encontrará o que é lícito buscar.