7. Diferença entre a concepção da natureza na Cosmologia Grega e na Física Moderna.

À primeira vista a exposição apresentada poderá parecer óbvia para uns e ingênua para outros. No entanto, escondida sob a sua aparente simplicidade, já nestes primeiros conceitos encontra-se uma concepção da natureza e do real radicalmente diversa da que deriva das ciências experimentais ou, se quisermos ser mais precisos, da que deriva do pressuposto de que só seria real aquilo que pode ser identificado pelos métodos das ciências experimentais.

Para compreender melhor o alcance desta afirmação, consideremos em primeiro lugar a matéria primeira. Segundo Aristóteles, a matéria primeira não só não pode ser identificada pelos sentidos humanos ou por instrumentos de laboratório, como inclusive até pela inteligência ela só pode ser conhecida indiretamente, através de analogias.

Que a matéria primeira não possa ser identificada pelos sentidos humanos ou por instrumentos de laboratório deveria ser algo já claro. Se não fosse assim, para ser identificada por estes recursos a matéria primeira teria que possuir alguma determinação. No entanto, segundo nossa linha de raciocínio, a matéria primeira é algo inteiramente indeterminado. Não poderia, portanto, ser identificada nem pelos sentidos, nem por instrumentos.

No entanto, mais ainda do que isso, o fato de que ser algo inteiramente indeterminado faz com que a matéria primeira também não possa ser conhecida, enquanto tal, nem sequer por uma abstração da inteligência. Por sua total indeterminação, a matéria primeira somente pode ser conhecida, ainda que por uma concepção puramente intelectual, por meio de analogias. De fato, se fosse possível existir na inteligência uma representação da matéria primeira enquanto tal, isto já seria para ela uma determinação e, portanto, o que teria sido concebido no intelecto não poderia ser, por isso mesmo, a matéria primeira.

Consideremos em seguida a forma substancial. Segundo Aristóteles, assim como a matéria primeira, tampouco a forma substancial pode ser identificada pelos cinco sentidos ou por instrumentos de laboratório. Por mais perfeitos que possam vir a ser, instrumentos de laboratório são, em sua essência, apenas extensões dos cinco sentidos do homem. Os olhos, por exemplo, são instrumentos que detectam ondas eletromagnéticas na faixa de freqüência a que chamamos de luz visível; os aparelhos de raios X, as antenas de rádio, as antenas de televisão e as de microondas, os filmes fotográficos sensíveis às freqüências do infra vermelho e do ultra violeta, todos estes são instrumentos que captam ondas eletromagnéticas em faixas de freqüências mais amplas do que as já captadas pelos olhos; são, portanto, em sua essência, uma extensão do sentido da visão. Neste mesmo sentido o termômetro é uma extensão do sentido do tato e o peagâmetro, o instrumento usado para medir com precisão a acidez das soluções aquosas, é uma extensão do sentido do gosto. Segundo Aristóteles nem os sentidos humanos nem nenhum destes instrumentos são capazes de captar a forma substancial. Ao contrário da matéria primeira, porém, a forma substancial pode ser conhecida pelo trabalho da inteligência. Mesmo não podendo ser identificada por intrumentos, ela existe e é algo real. O que os sentidos e os instrumentos captam são as demais formas que se acrescentam ao composto de matéria primeira e forma substancial, as quais são as formas ditas acidentais, como a cor, a temperatura, o tamanho, o lugar e outros.

Ora, é uma afronta aos que cultivam as ciências experimentais afirmar que a estrutura básica que dá a realidade aos entes sejam entidades puramente inteligíveis e que, por isso mesmo, jamais poderão cair sob o domínio destas ciências. Os que trabalham com as ciências experimentais tendem a negar ou, pelo menos, a não reconhecer a realidade do que não pode ser identificado pelo método experimental. No entanto, segundo a cosmologia grega, não apenas existem entidades deste tipo como inclusive são as entidades mais fundamentais da natureza e da realidade. Nada mais poderia existir se elas não existissem.

Aqueles que se acostumaram a pensar sobre a estrutura da realidade com base apenas nas categorias das ciências experimentais certamente terão dificuldade em compreender como entidades que não poderão jamais ser vistas nem detectadas por nenhuma experiência de laboratório possam não apenas ser reais, como também ser o próprio fundamento de toda a realidade. Para os que se defrontam com esta dificuldade, embora todo o raciocínio anteriormente feito seja suficiente para demonstrar tais afirmações, poderá ser útil oferecer uma evidência adicional.

Já vimos que a forma substancial, cuja existência é um desafio à pretensão de que o método das ciências experimentais seja capaz de abarcar a totalidade da realidade, confere à matéria primeira essência e existência, isto é, uma primeira determinação e o ser em ato. Ambas estas coisas, essência e existência, são reais e são puramente inteligíveis, impossíveis de serem detectadas pelos sentidos e por instrumentos de laboratório. Deixemos a questão da essência para mais tarde e vamos deter-nos a considerar a do ser em ato, ou existência.

A existência dos entes, conferida pela forma substancial, é algo de que ninguém duvida. Trata-se de uma realidade manifesta. Temos assim novamente uma realidade da qual ninguém duvida e que, no entanto, não pode ser detectada nem pelos sentidos, nem por nenhum instrumento de laboratório, mas que não por isso deixa de ser real.

Para sermos mais claros, consideremos de que modo apreendemos a existência dos entes.

Examinando o funcionamento do sentido da vista, será fácil perceber que ele não apreende a existência dos entes, mas apenas acidentes, como as suas cores e os seus formatos. O sentido da vista não garante que a pessoa que estamos vendo seja um ser efetivamente existente. Poderá trata-se de um sonho, de um holograma ou de uma alucinação. O que os olhos vêem é apenas a côr desta pessoa, não a sua existência. O mesmo pode ser dito do ouvido; por este sentido pode-se ouvir o som que algo produz, mas não a existência deste algo. Não há nenhum sentido que possa garantir que as coisas às quais atribuímos o que vemos e ouvimos não sejam um sonho destituído de existência real.

No entanto, nós sabemos que os entes que nos cercam existem e que esta existência é uma realidade. Não o sabemos, porém, por causa dos sentidos, nem dos instrumentos de laboratório, que não ultrapassam os limites essenciais dos sentidos. A consciência do real é a conseqüência de um longo trabalho de abstração da inteligência. Nós temos consciência de que as coisas existem porque em algum momento do nosso desenvolvimento a experiência sensorial tornou-se suficientemente rica e a inteligência tornou-se suficientemente madura para que esta última, por abstração, se tivesse tornado capaz de apreender o que é ser real e, por oposição, a diferença entre isto e o que é não ser real. A partir do momento em que a inteligência se tornou capaz de apreender abstratamente o que é ser em ato, torna-se também possível que no homem surja a consciência de que alguma coisa seja real. Esta consciência ocorre quando as informações que chegam ao homem pelos sentidos são confrontadas com outras anteriores e a rica coerência destes dados obriga a inteligência a explicá-los atribuindo às coisas vistas e ouvidas a realidade do ser em ato que ela já se havia tornado capaz de apreender. Por este motivo, a experiência da consciência da realidade não é uma experiência sensorial, mas uma experiência essencialmente intelectiva, abstraída e sobreposta aos dados dos sentidos. Somente um ser dotado de inteligência pode possuí-la. Nunca uma máquina irá possuí-la, nem um instrumento de laboratório, nem um computador. Por mais elaborados que sejam, o grau de consciência da realidade de todos estes instrumentos é e será sempre exatamente nulo. Os sentidos e os instrumentos de laboratório nunca passam das formas acidentais.

Este raciocínio mostra que há algo, como é o caso da existência dos entes que nos circundam, cuja realidade é tão óbvia, e que, não obstante isso, não pode e não poderá nunca ser apreendido nem pelos sentidos nem por instrumentos. Trata-se de uma realidade fundamental, sem a qual as formas acidentais não poderiam existir, mas que, no entanto, está além das possibilidades das ciências experimentais, além dos sentidos e dos instrumentos, e possui uma natureza puramente intelegível. Este exemplo permite um vislumbre do quanto o conceito de realidade subjacente à Física de Aristóteles é bastante diverso do conceito de realidade pressuposto como subjacente às ciências experimentais.