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A Epístola aos Romanos, sendo o mais importante dos escritos de
São Paulo, foi objeto de muitos comentários ao longo da tradição
cristã. O primeiro comentário à Epístola aos Romanos de que se
tem notícia, e que ainda existe, foi escrito por volta do ano
230, ainda na época das perseguições movidas pelo Império
Romano aos cristãos. Seu autor morreu vítima das torturas recebidas
por sua decisão de permanecer firme à fé cristã, muitos anos depois
que seu pai, outro mártir da fé, tivesse sido decapitado pelas
autoridades romanas por recusar-se a renegar a Cristo.
O autor do primeiro Comentário à Epístola aos Romanos deixou-nos
também uma multidão de outros escritos a respeito das coisas
sagradas. Seu nome era Orígenes, e foi, em vida, um exemplo da
prática das virtudes cristãs, de amor ao estudo das Sagradas
Escrituras e de dedicação ao ensino da palavra de Deus. Eusébio
de Cesaréia, um bispo dos anos 300, deixou-nos um testemunho
muito eloqüente da fé que animava este homem já desde os primeiros
anos de sua infância:
diz Eusébio de Cesaréia,
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"havia-se exercitado desde criança
nas Escrituras divinas,
e havia lançado fundamentos
nada pequenos para os ensinamentos da fé.
Havia-se entusiasmado por estas coisas sem medida,
pois seu pai,
antes que o menino iniciasse os estudos
que eram comuns a todos os povos de origem grega,
aproveitava toda ocasião para induzí-lo
aos estudos sagrados.
Estes não desagradaram ao menino,
antes, ao contrário,
empenhou-se neles com tão grande ardor até que,
não contentando-se com os sentidos
simples e óbvios das Sagradas Escrituras,
já desde aquela época buscava
alguma coisa mais profunda,
chegando a colocar seu pai em apuros,
perguntando-lhe o que queria significar
o sentido da Escritura divinamente inspirada.
O pai aparentava desaprovação
diante destas perguntas,
exortando-o a não indagar nada
que excedesse as possibilidades de sua idade,
nem que estivesse mais além
do sentido evidente,
mas em seu íntimo se regozijava enormemente
e louvava e agradecia a Deus,
o autor de todo o bem,
por te-lo feito digno de ser pai
de um filho como aquele.
Conta-se que muitas vezes,
colocando-se o seu pai junto ao menino
enquanto dormia,
abria-lhe a camisa que lhe cobria o peito e,
como se dentro dele habitasse um espírito divino,
o beijava com reverência
e se considerava feliz por ser pai de tal filho.
Quando depois se acendeu com maior violência
a fogueira da perseguição
e sendo inumeráveis os que alcançavam
a coroa do martírio,
seu pai também foi preso,
foi tal a paixão do martírio
que se apoderou de Orígenes,
então ainda criança,
que ardia por lançar-se
junto com o pai ao encontro dos perigos
e arrojar-se à luta.
Pouco faltou que a morte
se lhe acercasse ainda criança,
se não tivesse sido o zelo de sua mãe,
que se interpôs como obstáculo.
Ela primeiramente lhe pediu com palavras,
exortando-o a ter consideração por sua mãe;
mas, quando via que nada conseguia
com seus rogos,
vibrando como estava a criança
pelo desejo do martírio
ao saber que seu pai havia sido preso,
escondeu-lhe todas as suas roupas,
obrigando-o, assim,
a permanecer dentro de casa.
Mas ele, não podendo fazer outra coisa
e sendo-lhe impossível dar sossego
a um zelo que excedia a capacidade de sua idade,
enviou ao seu pai uma carta sobre o martírio,
muito vibrante,
em que o animava dizendo-lhe textualmente:
`Tende cuidado, meu pai,
não seja que por nossa causa
mudes de parecer'.
Que isto fique gravado por escrito",
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conclui Eusébio de Cesaréia,
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"como o primeiro indício
da agudeza de engenho do menino Orígenes
e de sua nobilíssima disposição
para com a religião".
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Mais tarde, já adulto, quando o Império Romano passou a perseguir
de modo principal não mais aqueles que se diziam cristãos, mas
aqueles que se dedicavam ao ensino da doutrina cristã, Orígenes
aceitou o cargo de coordenar o ensino da catequese na cidade de
Alexandria, que era na época a segunda cidade do Império Romano.
diz Eusébio de Cesaréia,
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"encorajava a maioria de seus alunos
a um zelo semelhante ao seu,
tanto que muitas pessoas de destaque,
inclusive dentre os filósofos,
tão sinceramente recebiam dele
no fundo de sua alma a fé na palavra divina que,
sobrevindo a perseguição,
ofereciam suas vidas como mártires".
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Sua fama crescia tanto e
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"era tão grande o número
dos que se aproximavam dele
por causa dos ensinamentos divinos",
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continua Eusébio,
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"que ele se via obrigado,
para evitar as autoridades romanas,
a mudar constantemente o local de suas aulas;
não o fazia, porém,
porque tivesse medo de ser preso,
já que levava pessoalmente auxílio e conforto
a todos aqueles que por causa da fé cristã,
fossem ou não seus alunos,
tivessem sido presos pelos romanos,
expondo-se assim constantemente ao perigo
dele próprio ser preso e executado".
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Apesar disso, porém, as autoridades romanas não conseguiram
apanhá-lo senão depois dos seus sessenta anos de idade.
relata ainda Eusébio de Cesaréia,
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"não somente Orígenes assistia
aos presos pela fé
quando estes estavam no cárcere
e quando eram julgados,
até à sentença final,
como também depois disto,
quando os santos mártires eram conduzidos
até à morte,
com muitíssima ousadia
e expondo-se aos mesmos perigos.
Tanto assim que muitas vezes,
por ter-se aproximado resolutamente
e se atrevido a saudar aos mártires
com um beijo,
faltou pouco para que a multidão dos pagãos
que se achava ao redor,
enfurecida,
não o apedrejasse.
Todas as vezes, porém,
com a ajuda da dextra divina,
escapava milagrosamente.
Esta mesma e celestial graça
o foi guardando em outras ocasiões,
impossível de dizer quantas,
quando se conspirava contra ele
por causa do seu excesso de zelo
e da ousadia em favor da doutrina de Cristo.
Dia após dia a perseguição contra ele
se acendia tanto que em toda a cidade
não havia mais lugar para ele:
mudava de casa em casa,
e de todas as partes era constantemente expulso
por causa do grande número dos que dele se aproximavam
por causa dos ensinamentos divinos".
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Tal foi o exemplo que nos foi legado pelo autor do primeiro
Comentário à Epístola aos Romanos de que a história tem
notícia. Infelizmente, por motivos que até hoje ninguém conseguiu
explicar satisfatoriamente, apesar da seriedade de seu caráter e de
seus escritos, Orígenes cometeu neles alguns erros de
interpretação, os quais, apesar de poucos, são tão elementares
que nenhum teólogo de qualquer época teria sido capaz de cometer. A
história parece ser clara no sentido de que, a este respeito,
Orígenes jamais teve a intenção de enganar. Talvez isto tenha
ocorrido devido à dificuldade que havia, naquela época de
perseguições, em comunicar-se com outras pessoas a respeito destes
assuntos; de fato, apesar do caráter elementar de alguns destes
erros, durante a vida de Orígenes ninguém nunca o acusou a este
respeito, e estes erros só começaram a ser notados após o término
das perseguições, quando Orígenes já não mais vivia. O próprio
Orígenes, ademais, repetia incansavelmente a responsabilidade com
que enfrentava as questões referentes ao estudo e ao ensino, afirmando
inúmeras vezes que era pecado muito mais grave ensinar o erro do que
praticá-lo.
Depois de Orígenes, quase todos os teólogos importantes do
cristianismo nos deixaram comentários às cartas de São Paulo, e,
em particular, à Carta aos Romanos. Santo Tomás de Aquino,
Hugo de São Vitor e São João Crisóstomo comentaram todas as
cartas de São Paulo. Ricardo de São Vítor nos deixou um escrito
mais breve em que, em vez de comentar cada uma das cartas de São
Paulo, trata das principais questões levantadas simultaneamente pelo
conjunto das epístolas paulinas. Santo Agostinho comentou apenas a
Carta aos Romanos e aos Gálatas.
De todos estes comentários o mais extenso e o mais complexo é o de
Orígenes; os mais perfeitos quanto à técnica expositiva são os de
Santo Tomás de Aquino. Mas do ponto de vista do conteúdo nenhum
supera outro; todos são insubstituíveis e contém ensinamentos
preciosos que em vão se procurariam em algum outro lugar. Temos desta
afirmação exemplo no Comentário à Epístola aos Romanos de Santo
Agostinho, de que vamos examinar a seguir algumas passagens. Quanto
à técnica expositiva, este é o pior de todos os comentários que já
se escreveram à Epístola aos Romanos; ele não passa de um
amontoado desordenado de notas e observações sobre passagens isoladas
da Epístola aos Romanos de que um dia, se tivesse tido tempo,
Santo Agostinho iria se servir para escrever um comentário no
verdadeiro sentido da palavra. No entanto, logo no início deste
trabalho, aparentemente tão mal feito, encontramos uma meia página
com uma das exposições mais curtas e mais lúcidas que já apareceram
sobre a doutrina que São Paulo expõe na Epístola aos Romanos.
Esta meia página, tirada das colunas 2065 e 2066 do
trigésimo quinto volume da Patrologia Latina de Migne, é o texto
que iremos ler em seguida.
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