20. Análise de um projeto de lei britânico.

Durante a década de 50 foram propostos na Inglaterra vários projetos de lei para a legalização do aborto. Todos pretendiam a obtenção de concessões progressivas, nenhum propunha o aborto de forma ampla e liberal e, mesmo assim, os proponentes destes projetos não tinham grandes esperanças de obter sequer as pequenas legalizações que propunham. Os fatos confirmaram a expectativa, e nenhum destes projetos foi aprovado. Na realidade, os objetivos que os que propunham estes projetos buscavam não eram as suas aprovações, mas a criação contínua de polêmica, o que efetivamente conseguiram. Vamos, a seguir. para fins de exemplo, examinar um entre estes projetos que foram apresentados ao Parlamento Britânico durante a década de 50.

Em 1952 um distinto advogado, Dr. Glanville Williams, membro da ALRA, esboçou um projeto de lei aparentemente simples e modesto para transformar a decisão dos tribunais acerca do caso Bourne em uma lei formal. Deve- se notar, entretanto, que devido à organização do sistema jurídico britânico, a decisão tomada pelo judiciário ao julgar o caso Bourne, mesmo sem uma lei explícita, já possuía força de lei. Sua legalização, portanto, não passaria de uma formalidade jurídica. E se bem que mesmo nestas condições o projeto de lei acabou não sendo aprovado pelo Parlamento, a análise interna do projeto revela peculiaridades interessantes.

O projeto estava redigido com as seguintes palavras:

"Para a remoção de quaisquer dúvidas, será acrescentada a seguinte provisão à seção 58 da Lei contra as Agressões à Pessoa de 1861:

`Fica previsto que

A. Nenhuma pessoa será considerada incriminada por agressão nos termos desta seção a menos que seja provado que o ato cometido não foi realizado em boa fé com o propósito de preservar a vida da mãe;

B. Nenhum praticante médico registrado que tenha agido com a opinião concordante de um segundo praticante médico registrado será incriminado por agressão nos termos desta seção a menos que seja provado que o ato cometido não tenha sido realizado em boa fé com o propósito de prevenir danos à mãe no corpo e na saúde'".

Este projeto de lei, embora aparentemente simples, assim que estudado mais detidamente, levanta um grande número de questões e perplexidades jurídicas. A análise seguinte é devida a Germain Grisez.

Primeiramente deve-se notar que a segunda parte do texto do projeto, onde se trata do aborto para preservar a mãe no corpo e na saúde, fala-se explicitamente em praticante médico registrado. Entretanto, a primeira parte do texto do projeto, onde se trata da permissão para induzir o aborto com a finalidade de preservar a vida da gestante, o agente que induz o aborto não é nomeado como sendo um médico, mas apenas como uma pessoa inespecificada. Teria sido esta redação conseqüência de uma falta de cuidado ou um ponto de partida para permitir uma posterior ampliação para outros tipos de aborto sem a necessidade de pessoal médico?

Além disso, a jurisprudência originada pelo caso Bourne havia sido, a rigor, uma decisão de apenas uma cláusula, subentendendo o termo "para o único propósito de preservar a vida da mãe" uma interpretação mais ampla. Por que aqui a decisão foi proposta em dois ítens? Seria esta uma tentativa de se introduzir novos termos com posteriores possibilidades adicionais de elasticidade?

Da mesma forma, o termo único, da expressão "com o único propósito de preservar a vida da mãe", proveniente do julgamento de Borne, foi cuidadosamente omitido. Teria sido este outro descuido?

Perplexidades semelhantes podem ser levantadas quando se considera o texto do projeto de lei ao se referir aos danos causados à mãe "no corpo e na saúde". Aparentemente estes dois termos caem em uma redundância, mas, quando considerados mais atentamente, o termo saúde parece sugerir algo mais do que saúde corporal. Mesmo que uma nova lei posterior não explicitasse em termos mais amplos o significado de "saúde", seria muito simples provocar um outro caso Bourne para que os magistrados interpretassem este termo com maior elasticidade, abrindo novos caminhos para a legislação.

Desta maneira, este projeto de lei se revela na realidade uma armadilha muito engenhosa. Propondo algo que aparentava um simples reconhecimento formal de uma prática a esta altura já não mais ilegal, na verdade estaria-se obtendo uma permissão para estender ainda mais a prática do aborto. Seria, pois, inverossímil, se não se soubesse ter ocorrido de fato, que durante os debates parlamentares um dos proponentes do projeto assim se pronunciou a este respeito:

"Devo tornar claro que não é o objetivo dos proponentes deste projeto de lei estender a prática do aborto. Muito pelo contrário. Seu objetivo é confiná-lo nos casos em que, segundo o ponto de vista dos médicos competentes, ele seja do interesse da saúde da mãe e para a prevenção dos danos ao seu corpo".