8. Levanta-se o problema da fome.

O problema da fome, com os contornos com que é atualmente conhecido pela opinião pública, não surgiu espontaneamente na mente das pessoas como se se tratasse de alguma coisa evidente, apesar de ser esta a impressão que muitos tem a este respeito. A maioria das pessoas que discutem sobre o problema da fome jamais teve um contato pessoal direto com o mesmo. O que ocorreu para que o tema passasse a fazer parte de suas preocupações foi terem sido elas atingidas não pelo problema em si mesmo, mas por uma das mais hábeis propagandas que já se fizeram na história, desencadeada pela FAO no início da década de 1960.

Se não se pode censurar a iniciativa de promover tais propagandas quando elas são conforme com a realidade, não se deve, por outro lado, esconder que as preocupações que as pessoas atingidas por ela passam a manifestar são mais o resultado de uma veiculação artificialmente induzida de idéias do que o fruto de um amadurecimento real do relacionamento entre os homens. Se não fosse assim, seria inconcebível que ao mesmo tempo em que se luta pela redução da mortalidade infantil se promova também o reconhecimento do direito ao aborto; que enquanto se luta contra as diversas formas de discriminação de direitos, aprova-se o aborto em casos de estupro em que simplesmente se ignora o direito à vida de um ser humano não por algo que ele possa ser pessoalmente culpado, mas por causa de um crime sexual cometido por terceiras pessoas antes mesmo dele ter sido concebido. Cada época submetida a este processo de propaganda tem freqüentemente a impressão de que certas idéias de que não se ouviam falar até recentemente se tornaram óbvias porque a humanidade teria passado recentemente por um processo de evolução muito rápida de que a principal protagonista é a geração presente; na verdade, porém, o que aconteceu foi que certas idéias, elaboradas por um número muito reduzido de pessoas, encontraram razões para serem veiculadas pelos meios de comunicação. Foi assim que ocorreu com o problema da fome, o que acabou por ter repercussões inesperadas no problema do aborto.

Entre 1950 e 1958 a produção de alimentos nas regiões subdesenvolvidas aumentou em torno de 3,5% ao ano. Depois de 1958, esta produção passou a crescer a uma taxa ainda menor, e a produção de alimentos per capita tinha principiado a declinar. A deterioração era devida tanto ao declínio da taxa de crescimento da produção como ao aumento da taxa de crescimento da população. A situação era particularmente crítica na América Latina e no Extremo Oriente.

O esforço subseqüentemente feito para divulgar este quadro foi obra em grande parte devida a B. R. Sen, o diretor geral da FAO desde 1956 e ex funcionário público da Índia onde ele havia assistido pessoalmente, na província de Bengala, em 1943, uma fome que tinha dizimado entre 1,5 e 3 milhões de seus conterrâneos. Sen deslocou a ênfase que era dada sobre as possibilidades teóricas de aumentar a população mundial de alimentos para aquela de se colocar a atenção primária nas inadequações existentes nos suprimentos alimentares e nos padrões de alimentação.

A FAO lançou em 1959 a Campanha pela Libertação da Fome. De acordo com as estimativas preparadas em conexão com a campanha, mais de metade da população mundial sofria de fome, desnutrição ou ambos. Não obstante os esforços que vinham sendo feitos desde a Segunda Guerra Mundial, a quantidade de alimentos disponíveis por pessoa estava apenas a uma fração mínima acima dos já inadequados padrões do pré guerra. Além disso, a maior parte do crescimento havido na produção alimentar estava localizada nos países desenvolvidos. De fato, na maioria dos países do mundo a produção de alimentos não estava conseguindo acompanhar o crescimento populacional e os níveis de consumo tinham sido mantidos através da importação maciça de alimentos. Antes da segunda guerra mundial os países menos desenvolvidos da Àsia, Àfrica e América Latina eram exportadores líquidos de cereais para as partes industrializadas do mundo. Em 1950 eles tinham se tornado importadores líquidos. E esta dependência estava aumentando continuamente.

Foram estimadas as taxas de aumento da produção de alimentos necessárias para manter os padrões alimentares da época ou para melhorá-los até um nível mais razoável. Quando estas taxas requeridas foram comparadas com o que se tinha obtido na década precedente, elas se mostravam praticamente sem esperanças de viabilidade prática.

Sen achava que os esforços para aumentar a produção de alimentos tinham, portanto, que ser acompanhados por uma série de medidas para deter o crescimento populacional. E, embora a política populacional não fosse responsabilidade da FAO, ela devia colocar em pauta que o crescimento da produção alimentícia não acompanhava o crescimento populacional, e que as implicações deste fato deveriam ser discutidas.

Várias vezes nos anos seguintes o problema do controle da natalidade foi mencionado nas sessões e nos congressos da FAO. A abertura da Conferência da FAO de 1961 foi feita, a convite, pelo próprio John Rockfeller III, onde ele lamentou o fato de que a natureza controversa do controle da natalidade tornava os países relutantes até mesmo em investigarem a sua situação demográfica, declarando que o crescimento populacional era "secundário apenas ao controle das armas atômicas como supremo problema dos nossos dias".

Finalmente, encorajado pelo impacto da campanha e pela crescente evidência que as atitudes sobre a questão populacional eram menos rígidas, Sen arremessou-se a si próprio como uma bandeira pelo controle populacional. A ocasião que ele escolheu para inaugurar esta posição foi caracteristicamente arrojada, nada menos do que o Congresso Eucarístico Internacional de Bombaim, que contava com a presença de Paulo VI. Discursando no Congresso Eucarístico em novembro de 1964, depois de ter descrito as cenas aterradoras da fome, Sen perguntou:

"Podemos nós esquivar-nos do conceito de planejamento familiar quando a alternativa é a fome e a morte? Esta é uma questão para a qual nós esperamos uma orientação dos maiores líderes espirituais e morais do mundo".

Seis meses depois Sen discursou perante a Comissão Populacional da ONU sobre o mesmo tema. A partir de então, com incrível audácia e habilidade, Sen entrou em diálogo com o Vaticano. Citava as encíclicas do Magistério da Igreja em discursos perante a IPPF e, quando a encíclica Populorum Progressio de Paulo VI foi finalmente divulgada, fêz tamanhos elogios na imprensa a respeito do seu parágrafo 37 que se referia ao problema demográfico, que muitos se perguntaram seriamente se a FAO não tinha tido participação na elaboração do documento.