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"Uma só vez falou Deus", porque gerou um só Verbo pelo qual fêz
todas as coisas. Este Verbo é a sua palavra. Uma só, portanto,
é a palavra de Deus, porque um só é o Verbo de Deus, e
verdadeiramente um só, por ser um só de um só, não contendo
múltiplas sentenças, mas consumando-se em uma só e simples
palavra.
Qual o motivo por que, porém, se diz no Salmo:
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"Para que te manifestes justo
nas tuas palavras";
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assim como também, em outro lugar:
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"Vivifica-me, para que eu guarde
as tuas palavras"?
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Se, de fato, cremos verdadeiramente que a palavra de Deus é uma
só, como a Sagrada Escritura nos fala de suas muitas palavras?
Deve-se saber, porém, que de um modo fala Deus pela boca dos
homens, e de outro por si mesmo. Que Deus fale entre os homens por
meio dos homens, disto no-lo testemunham quase todas as Escrituras do
Velho e do Novo Testamento. Deus, portanto, fala pelos homens e
fala por si; muitas palavras pelos homens, uma só por si mesmo. Mas
em todas as palavras que Ele proferiu pelas bocas dos homens estava
presente esta única palavra, e todas eram uma única nesta única, as
quais sem esta não poderiam ter sido proferidas em nenhum tempo ou
lugar.
Examinemos, portanto, este grande mistério.
O Verbo de Deus, revestido de carne humana, apareceu uma só vez de
modo visível, e agora, todos os dias, Ele mesmo, feito voz
humana, vem até nós. E embora se faça conhecer diversamente aos
homens pela carne ou pela voz humana, todavia a voz do Verbo deve ser
entendida de uma certa forma hoje como outrora têve que sê-lo a carne
de Deus. Os maus e os incrédulos puderam não somente ver, como
também matar a humanidade de Cristo; ainda hoje ouvem exteriormente
todos os dias a palavra de Deus e a desprezam. E assim como aqueles
não teriam ousado matar o homem se tivessem podido conhecer a Deus,
assim também estes nunca repeliriam as palavras divinas ouvidas se
pudessem experimentar por um sabor interior a virtude delas.
"A palavra de Deus" , portanto, "é viva" (Heb. 4, 12),
porque nela está a vida. No que possui de exterior atinge o ouvido,
mas no que possui de interior vivifica o coração. Naquilo que
alcança os ouvidos encontra-se algo que inspira o coração. O que
é exterior passa, mas o que é interior não recebe mutabilidade. O
que é exterior é explicado pela seqüência das palavras, o que é
interior é ditado pela verdade incomutável. Por causa disto é que
foi dito:
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"O céu e a terra passarão,
mas minhas palavras não passarão".
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Não passarão, de fato, ali onde nada tiverem de transitório.
Pois assim como em muitas palavras a única palavra não fica
dividida, assim também na única palavra as muitas palavras não
sofrem variação.
Explicadas assim brevemente estas coisas sobre a palavra de Deus,
examinemos agora as palavras da Epístola:
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"A palavra de Deus é viva,
eficaz, e mais penetrante
do que toda a espada de dois gumes.
Chega até à divisão da alma e do espírito,
das junturas e das medulas,
e discerne os pensamentos
e as intenções do coração.
Diante dela não há nenhuma criatura invisível;
todas as coisas estão a nú e a descoberto
para os seus olhos,
para quem é palavra para nós.
Tendo nós, pois, um grande pontífice,
que penetrou os ceús,
Jesus, Filho de Deus,
retenhamos a profissão da fé.
Porque não temos um pontífice que não possa
compadecer-se de nossas enfermidades,
mas que foi tentado em tudo à nossa semelhança,
exceto no pecado.
Aproximemo-nos, portanto,
com confiança do trono de sua graça,
para que alcancemos misericórdia
e encontremos graça no auxílio oportuno.
Pois todo pontífice promovido entre os homens
é constituído a favor dos homens
nas coisas que são para Deus,
para que ofereça oblações
e sacrifícios pelos pecados;
que possa compadecer-se
por aqueles que ignoram e erram,
porque também ele está cercado de enfermidade.
Por isso deve,
tanto pelo povo como por si mesmo,
oferecer pelos pecados.
Nem ninguém toma para si esta honra,
senão o que é chamado por Deus, como Aarão.
Assim também Cristo não se glorificou a si mesmo,
para que se fizesse pontífice,
mas Aquele que lhe disse:
`Tu és meu Filho,
eu hoje te gerei'".
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"A palavra de Deus é viva", porque não muda. Eficaz, porque
não falha. Penetrante, porque não se engana. Não muda no que
promete, não falha no que realiza, não se engana no julgamento.
Sua promessa não morre pelo esquecimento nem muda pela intenção.
Sua obra não é vencida pela dificuldade. Seu julgamento não é
enganado pela ambigüidade. Promete com veracidade, age com
fortaleza, discerne com sutileza. A palavra de Deus é viva para que
creiamos, eficaz para que esperemos, penetrante para que temamos. É
viva nos preceitos e nas proibições, eficaz nas promessas e nas
ameaças, penetrante nos julgamentos e nas condenações. Como,
porém, a verdade de suas promessas e a onipotência de suas obras deve
ser antes crida do que discutida, consideremos qual seja a sutilidade
dos seus julgamentos.
"A palavra de Deus", diz o Apóstolo, "é mais penetrante do que
a espada de dois gumes" . Espada de dois gumes é aquela que corta de
ambos os lados, a qual, ao cravar-se, penetra abrindo caminho para
si cortando de ambos os lados; embora esta não corte senão a carne,
a palavra de Deus corta de ambos os lados porque pode
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"perder na geena de fogo
tanto a alma como o corpo".
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Pode entender-se também que a palavra de Deus corta os julgamentos
de ambos os lados porque julga, divide e discerne a ambos.
Segue-se:
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"Chega até a divisão
da alma e do espírito".
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Em cada homem há três coisas: a carne, o espírito e a mente. À
carne pertence a deleitação, ao espírito o pensamento, à mente o
discernimento. A deleitação é a serpente, o pensamento é Eva, e
o discernimento Adão. Na deleitação há a concupiscência da
superficialidade, no pensamento a providência da necessidade, no
discernimento a sentença da verdade. A deleitação, sob a
aparência da necessidade, precipita a providência à superfluidade.
A providência, pela compaixão do que é inferior, desvia a razão
da sentença da verdade.
A primeira divisão é entre a serpente e Eva, isto é, entre a
carnalidade, -ou animalidade, palavra que vem do latim `anima',
que significa alma-, e o espírito; entre a deleitação e o
pensamento, entre a superfluidade e a necessidade. A segunda divisão
é entre Eva e Adão, entre o pensamento e a intenção ou
discernimento, entre a prudência da carne e a sentença da verdade.
A palavra de Deus como que divide entre a alma e o espírito, quando
o discurso sagrado nos mostra a repugnância que há entre os desejos
carnais e espirituais.
Segue-se:
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"das junturas
e das medulas".
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Isto é, a palavra de Deus chega também até a divisão das junturas
e das medulas. O que, porém, devemos entender por junturas e
medulas no-lo é explicado quando logo a seguir se acrescenta:
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"e discerne os pensamentos
e as intenções do coração".
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As junturas são os pensamentos, as medulas são as intenções. Em
primeiro lugar, externamente, estão as obras, assim como também
está a pele; depois vem a deleitação, assim como a carne; em
seguida os pensamentos, como os ossos; finalmente as intenções,
como a medula. Assim como a pele cobre a carne, assim também as
obras cobrem a deleitação; e assim como os ossos sustentam a carne,
assim também os pensamentos alimentam os desejos; e assim como as
medulas são internas aos ossos, assim também as intenções se
escondem nos pensamentos. Os pensamentos são chamados de junturas,
porque de um certo modo os desejos se ligam entre si da mesma maneira
como as junturas ligam as articulações dos membros. A juntura é,
efetivamente, um vínculo, algo intermediário que une duas
extremidades. Semelhantemente os pensamentos, nascendo dos desejos e
de certo modo gerando os desejos, alimentando uns e gerando outros,
ligam-nos entre si. Como que unem os seguintes aos precedentes,
porque tanto estes produzem-se daqueles como aqueles produzem-se
destes.
Que os desejos geram os pensamentos não poderá ser coisa desconhecida
por quem quer que se conheça a si mesmo, porque certamente dirigimos
nosso pensamento com mais freqüência ao que desejamos com maior amor.
De onde que também o Senhor nos diz no Evangelho:
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"Onde está o teu tesouro,
ali está também o teu coração",
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como se dissesse: "Onde está o teu desejo, ali está também o teu
coração", isto é, "onde está o teu desejo, ali também está o
teu pensamento".
Por outro lado, que os pensamentos gerem os desejos, é algo que
no-lo é mostrado pelo salmista, quando diz:
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"Em minha meditação
acendeu-se o fogo",
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porque o pensamento da coisa que a alma considera com freqüência
inflama mais fortemente o coração ao seu amor. Convenientemente,
portanto, pelas medulas, que são as coisas mais secretas e escondidas
no corpo, entendemos as intenções, as quais são como que as medulas
dos nossos pensamentos, porque no pensamento do coração oculta-se a
intenção do pensamento. A qual, quando a discutimos com sutileza,
como que penetramos ao interior dos ossos. É manifesto, portanto,
que corretamente os pensamentos são ditos junturas e as intenções
são ditas medulas. Falta investigar como a palavra de Deus chega
até a divisão das mesmas.
A primeira divisão é entre a alma e o espírito, isto é, entre os
prazeres carnais e espirituais. A segunda divisão é entre as
junturas, isto é, os pensamentos carnais e espirituais.
Primeiramente, de fato, distinguem-se os prazeres, isto é, se a
alma é movida pelo bom ou mau desejo. Esta distinção é a primeira
porque mais facilmente julgamos os nossos desejos. Em seguida temos o
discernimento dos pensamentos, que são mais ocultos e são
compreendidos com mais dificuldade. De fato, como dos maus desejos
às vezes se originam bons pensamentos e, por outro lado, de bons
desejos às vezes se produzem maus pensamentos, não é fácil
distinguir ou discutir a qualidade dos pensamentos, porque é preciso
julgá-los não apenas a partir dos desejos precedentes dos quais se
originaram, como também a partir dos subseqüentes que estes geraram.
Mas, para que se entenda mais abertamente como dos maus desejos nascem
os bons pensamentos, e como dos bons desejos os maus pensamentos,
utilizemo-nos de exemplo.
Não há ninguém que ignore que seja mau o desejo de roubar. Mas às
vezes do desejo de roubar nasce o desejo de matar, e freqüentemente do
desejo de matar nasce o horror do homicídio. Quando, portanto, do
mau desejo surge um pensamento que produz um bom afeto, é como se em
uma má raiz o enxerto de um renovo bom produzisse um fruto doce.
Semelhantemente, do bom desejo às vezes nasce o mau pensamento, como
quando ao abominarmos a má inclinação da carne pode acontecer que
comecemos a pensar na torpeza da concupiscência carnal e deste mesmo
nosso pensamento nos inflamemos à deleitação ilícita, como se uma
água, jorrando inicialmente de uma fonte pura, tivesse corrido
gradativamente para uma torpeza desprezível.
Às vezes, porém, os pensamentos tanto são produzidos de bons
desejos como também geram bons desejos, ou, tendo tido origem nos
maus, semelhantemente produzem outros maus.
Nesta ambigüidade, por ser mais difícil discernir a verdade,
coloca-se corretamente a divisão das junturas, isto é, dos
pensamentos bons e maus, como coisa de maior perplexidade e
dificuldade, depois da divisão da alma e do espírito, isto é, das
vontades carnais e espirituais.
Finalmente, sabendo-se que o discernimento das intenções é mais
secreto do que todas estas coisas, merecidamente acrescenta-se no
final também a divisão das medulas.
Em todas estas coisas a palavra de Deus penetra pelo seu julgamento,
porque aquele que pela sua sabedoria discerne inteligindo sutilmente a
interioridade de nossos segredos, iluminando-nos externamente pela sua
doutrina no-las faz compreender para nossa utilidade.
Porque, portanto, "a palavra de Deus é viva", creiamos que ela
nos promete o que é verdadeiro; porque é "eficaz", esperemos que
cumpra as suas promessas; por ser penetrante e não poder enganar-se,
arrependamo-nos de tê-la ofendido e daqui para a frente temamos
tornar a ofendê-la. Ela, efetivamente, intelige as nossas
vontades, vê nossos pensamentos, e compreende nossas intenções.
Segue-se:
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"Diante dela não há
nenhuma criatura invisível".
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O olho de Deus apreende o que é distante, por estar presente em todo
lugar; o que é interior, por estar em todas as coisas; o que é
sutil, por ser perspicaz, e o que há de maior, porque nEle estão
todas as coisas. Segue ainda, dizendo:
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"Todas as coisas estão a nú
para seus olhos",
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porque nEle estão todas as coisas, e
porque Ele está em todas as coisas. "Nenhuma criatura", isto é,
nenhuma ação, pensamento ou intenção humana.
Há um olho que é exterior e não interior, como o olho da carne;
outro que, em relação a certas coisas, é interior e, em relação
a outras, é exterior, como o olho do coração; e outro ainda que é
somente interior e não exterior, como o olho de Deus. O olho da
carne vê somente o que há de exterior nos corpos, e o olho da mente o
que há de exterior no coração; o olho de Deus vê o interior.
Para o olho da carne o olho do coração é interior, para o olho de
Deus é exterior. E assim como o olho da carne não apreende o que
apreende o olho do coração, assim também o olho do coração não
apreende o que apreende o olho de Deus. Mas o olho de Deus apreende
o que apreende o olho do coração. Portanto o olho da carne somente
apreende o que há de exterior nos corpos; o olho do coração o
exterior e o interior dos corpos, mas somente o exterior dos
corações; enquanto que o olho de Deus apreende simultaneamente o
exterior e o interior, não somente dos corpos, mas também dos
corações. Portanto,
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"Diante dela não há
nenhuma criatura invisível;
todas as coisas estão
a nú e a descoberto
para os seus olhos".
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De nossos olhos se ocultam freqüentemente até mesmo as coisas que
são visíveis; as que são invisíveis estão fechadas. A ação é
visível, a intenção é invisível. Mas as ações dos homens,
ainda que em sua natureza sejam visíveis, de muitos modos se ocultam
aos nossos olhos para que não sejam vistas. A intenção, porém,
não pode ser vista, mesmo que a própria ação seja vista.
Portanto, aos olhos de Deus todas as coisas estão a nú, porque
Ele vê todas as ações dos homens, onde quer que sejam feitas; pois
não há trevas, e não há sombra de morte nem onde se possam esconder
aqueles que operam o mal; como tampouco não há cobertura que nos
oculte, nem véu que nos proteja, nem paredes que nos fechem, nem
escuridão que nos esconda de seus olhos. Portanto,
|
"todas as coisas
estão a nú para seus olhos",
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|
porque Ele vê tudo o que se faz;
porque Ele vê com que intenção são feitas.
Segue-se:
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"Para quem é
palavra para nós".
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"Todas as coisas estão a nú e a descoberto para seus olhos, para
quem é palavra para nós", isto é, para Deus ou para sua palavra,
que "é", "será", ou "deve ser" palavra para nós. Primeiro a
palavra de Deus se faz para nós; depois, a nossa palavra para
Deus. De duas maneiras se faz a palavra de Deus para nós,
interiormente e exteriormente. Interiormente pela aspiração,
exteriormente pela pregação. Faz-se por sua vez, de duas maneiras
por aspiração: pela natureza e pela graça. Pela natureza, quando
às criaturas aspira o conhecimento do bem; pela graça, quando aos
restaurados sugere o amor do bem. De duas maneiras também faz-se a
nossa palavra para Ele: ou consultando a razão, ou dela prestando
contas. Se agora não quisermos voluntariamente consultar a razão
para o que fizermos, mais tarde necessariamente dela prestaremos
contas, conforme se diz no Apocalipse que
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"Foram abertos os livros,
e foi aberto outro livro,
que é o da vida,
e foram julgados os mortos
pelas coisas que estavam escritas
nos livros".
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Os livros são os corações dos homens, o livro da vida é a
sabedoria de Deus. Os livros são abertos quando são manifestados os
segredos dos corações; o livro da vida é aberto quando, por uma luz
interior, torna-se evidente para cada um tudo o que deve ser feito.
E os mortos são julgados pelas coisas que estão nestes livros, não
pelas que estão no livro, porque os pecadores serão julgados pelas
suas obras. Nossos livros foram escritos conforme o livro de Deus,
porque nossos corações foram criados à semelhança da sabedoria de
Deus, conforme dizem as Escrituras:
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"Assinalada está sobre nós
a luz do teu rosto, ó Senhor".
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Nossos livros devem ainda ser escritos segundo o exemplar do livro da
vida, conforme diz o Apóstolo:
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"Admoesto-vos,
como a meus filhos caríssimos,
sede imitadores de Cristo".
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Ainda que não tenham sido assim escritos, devem, pelo menos, assim
ser corrigidos. Comparemos, pois, nossos livros com este livro para
que, se alguém os possuir diversamente, sejam corrigidos, para que
não aconteça que naquela última averiguação, se alguns forem
encontrados possuindo-os diferentes, sejam reprovados. A expressão
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"Para quem
é palavra para nós"
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pode, portanto, assim entender-se: "para quem", isto é, "para
a palavra", que é "palavra para nós".
Pode-se entender também, pela expressão
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"para quem
é palavra para nós",
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que falamos a Cristo de nós para que Ele fale ao Pai por nós,
porque Ele é "pontífice" (Heb. 4, 14) para que ofereça a
Deus os votos do povo, e é "grande pontífice" (Heb. 4,
14), grande segundo a divindade, porque é "Filho de Deus"
(Heb. 4, 14), e grande segundo a humanidade, porque "penetra
os céus" (Heb. 4, 14).
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"Aproximemo-nos, portanto,
com confiança do trono de sua graça",
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isto é, do trono em que Cristo reina pela graça. Reina de dois
modos, porque nEle não há malícia que possa impedir o efeito da
graça que Ele deseja, como também nem em nós há miséria que o
possa. "Aproximemo-nos, portanto, com confiança" , porque,
sendo constituído pontífice, pertence ao seu ofício que ore por
nós; sendo justo, pertence ao seu mérito que impetre; e porque,
finalmente, tendo sido por nossa causa
|
"cercado de enfermidade",
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compadece-se com liberalidade.
Foi constituído, porque o foi por Deus. De fato, não foi Ele
que se constituíu, mas Deus que o glorificou, dizendo:
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"Tu és o meu Filho,
hoje te gerei".
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Quando no Batismo isto foi dito sobre Cristo (Luc. 3, 22),
Ele foi como que eleito ao pontificado; quando isto foi dito no monte
(Luc. 9, 35), Ele foi como que ordenado pontífice e revestido
de glória. Uma terceira vez ainda uma voz do céu veio até Ele,
dizendo
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"Eu o glorifiquei,
e o glorificarei novamente",
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aprovando-O e confirmando-O em sua dignidade, assim como também
Aarão foi provado e confirmado por Deus após a sua ordenação, por
haver alguns invejosos que desprezavam o seu sacerdócio. No monte
recebeu as vestes da glória como ordenação; na ressurreição
revestiu-se delas para oferecer por nós preces a Deus.
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"Pois todo pontífice
promovido entre os homens
é constituído a favor dos homens
nas coisas que são para Deus,
para que ofereça oblações
e sacrifícios pelos pecados".
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Dupla deve ser a promoção daqueles que são constituídos, a saber,
que sejam primeiro promovidos interiormente pela graça à excelência
da virtude, para que depois sejam exteriormente chamados à excelência
da dignidade. Alguns são promovidos interiormente, mas não
exteriormente, como ocorre com os bons súditos; outros são
promovidos exteriormente sem tê-los sido interiormente, como ocorre
com os maus prelados; outros ainda tanto externa quanto internamente,
como os bons prelados; enquanto que outros nem externa nem
internamente, como os maus súditos.
Segue-se:
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"É constituído a favor dos homens
nas coisas que são para Deus".
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Está escrito no Evangelho:
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"Dai a César
as coisas que são de César,
e a Deus
as que são de Deus".
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Assim como César tem os seus prefeitos junto ao povo para exigir as
coisas que são de César, assim também Deus tem os seus prefeitos
junto ao seu povo, que lhe requerem as coisas que são de Deus. E
assim como os prefeitos de César gozam da legação do povo para
interceder junto a César, e da legação de César para que ordenem
ao povo, assim também os prefeitos de Deus, isto é, as prelados da
Igreja, gozam da legação do povo para que roguem a Deus, ou da
legação de Deus para que ordenem ao povo. Uma coisa, de fato, é
o ofício do prelado na medida em que é legado do povo para Deus e
outra na medida em que é legado de Deus para o povo. Naquele ofício
pelo qual é legado do povo diante de Deus, deve mostrar devoção
para que possa aplacá-lo pelas oblações, pelo sacrifício
espiritual e pelas preces. Neste ofício pelo qual é legado de Deus
para o povo, pertence-lhe ensinar os ignorantes e corrigir os
pecadores. Do ofício pelo qual é legado do povo para Deus, está
escrito que
|
"oferece oblações
e sacrifícios pelos pecados".
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Do ofício pelo qual é legado de Deus para o povo, está escrito que
|
"pode compadecer-se
por aqueles que ignoram e erram,
porque também ele
está cercado de enfermidade".
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Há alguns que se conhecem estar na enfermidade, mas não se
consideram cercados pela enfermidade, que são, a saber, aqueles que
consideram-se fortes em algumas de suas ações. Aqueles, porém,
que se vêem enfermos em todas as suas coisas estão, quanto à sua
reputação, cercados de enfermidade por todos os lados.
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