MOISÉS

Unir-se a Deus sem interrupção e ficar-lhe inseparavelmente unido pela contemplação, como dizeis, é impossível ao homem na fragilidade da carne.

Mas precisamos de saber onde devemos ter fixa a intenção da nossa mente e para qual objetivo reconduzir constantemente o olhar da nossa alma. Se a mente puder guardá-la, alegre-se; se se deixar distrair, deplore e suspire.

E saiba que decaiu do bem supremo, todas as vezes que se surpreender esquecida daquela contemplação. Julgue ser uma prostituição todo afastamento, ainda que momentâneo, da contemplação do Cristo. Quando, pois, o nosso olhar se desviar dele um pouco, voltemos de novo para ele os olhos do coração e reapliquemos como em linha reta a força da mente.

Tudo, na verdade, se tem na profundeza da alma. Se daí foi expulso o demônio, e se os vícios não mais aí reinam, conseqüentemente se funda em nós o reino de Deus, como diz o Evangelista:

"O reino de Deus não virá de modo visível. Não dirão: ei-lo aqui ou ali. Em verdade, eu vos digo, o reino de Deus está dentro de vós".

Lc. 17, 20-21

Ora, dentro de nós não pode existir senão o conhecimento ou a ignorância da verdade e o amor dos vícios, pelos quais preparamos em nosso coração um reino para o demônio ou para o Cristo. O Apóstolo, por sua vez, assim descreve a qualidade desse reino:

"O reino de Deus não é comida ou bebida, mas justiça, paz e alegria no Espirito Santo"

Rom. 14, 17

Se, portanto, o reino de Deus está dentro de nós, e se ele é justiça, paz e alegria, quem mora nessas virtudes, está, sem dúvida, no reino de Deus. E, pelo contrário, quem vive na injustiça, na discórdia e na tristeza que produz a morte, está no reino do demônio, no inferno e na morte, pois é por esses indícios que se discerne o reino de Deus ou do diabo.

E, de fato, se, elevando o olhar da mente, considerarmos aquele estado em que vivem as potências celestes que estão verdadeiramente no reino celeste, como é que devemos julgá-lo, senão a perpétua e continua alegria? Que é, pois, mais próprio e mais conveniente à verdadeira bem-aventurança, do que a tranquilidade constante e a alegria eterna?

E para aprenderdes com maior certeza que assim é como dizemos, não por minha conjetura, mas pela autoridade mesma do Senhor, escuta-o descrevendo claramente a natureza e o estado daquele mundo:

"Eis que eu crio novos céus e uma nova terra; as coisas antigas não serão mais lembradas, nem subirão mais ao coração. Mas gozareis de uma alegria e exultação eterna no que eu criar".

Is. 65, 17-18

E ainda:

"Nela se encontrarão o gozo e a alegria, ação de graças e cantos de louvor. E isto será de mês a mês, de sábado a sábado".

Is. 51, 3; 66, 23

E mais uma vez:

"A alegria e a exultação eles terão, a dor e o gemido fugirão".

Is. 35, 10

Se desejais conhecer com clareza ainda maior o que são a vida e a cidade dos santos, prestai atenção ao que diz a voz do Senhor, falando a Jerusalém:

"Eu te darei por visita a paz e como autoridade a justiça.

Não se ouvirá mais falar de iniqüidade em tua terra, nem de devastações e de ruínas em tuas fronteiras, e a salvação cobrirá teus muros e o louvor as tuas portas.

Para ti não haverá mais o sol para luzir durante o dia, nem o esplendor da lua te iluminará, pois o próprio Senhor será a tua luz eterna, e Deus a tua glória. Teu sol não se porá, e a tua lua não diminuirá, e terminarão os dias do teu luto".

Is. 60, 17-20

Por isto o santo Apóstolo não declara que qualquer alegria, de um modo geral e simplesmente, seja o reino de Deus, mas somente aquela que é no espirito, como ele assinala e específica (Rom. 14, 17). Ele sabe que existe uma outra alegria, que é censurável, da qual se diz:

"Este mundo se alegrará".

Jo. 16, 20

E ainda:

"Ai de vós que rides, porque chorareis".

Lc. 6, 25

O reino dos céus, sem dúvida, deve ser entendido em três sentidos. Ou que os céus, isto é, os santos, hão de reinar sobre os outros homens submetidos a eles, conforme esta palavra:

"Tu governarás cinco cidades, e tu a dez",

Lc. 19, 17-19

e esta outra dirigida aos discípulos:

"Assentai-vos-eis sobre doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel".

I Cor. 15, 28

Outro sentido é que os próprios céus tornar-se-ão o reino de Cristo, quando tudo lhe for submetido e Deus começar a "ser tudo em todos" (I Cor. 15, 28). Ou, enfim, que os santos reinarão nos céus com o Senhor.

Por este motivo, saiba cada um desde agora, enquanto se acha neste corpo, que lhe caberá aquele lugar e ministério do qual na vida presente ele se mostrar um membro devotado. E não duvide, também, que no século ele terá a mesma sorte daquele cujo serviço e companhia tiver agora preferido. É a sentença do Senhor que diz:

"Se alguém me quer servir, me siga, e onde eu estou, lá estará o meu ministro".

Jo. 12, 26

Quanto à contemplação de Deus, esta pode entender-se de muitos modos.

Pois Deus, nós o conhecemos não só pela admiração da sua essência incompreensível, que ainda se acha escondida na esperança da promessa, mas também pela grandeza das suas criaturas, ou se consideramos a sua justiça ou do auxílio cotidiano da sua providência. Assim é quando repassamos, de mente muito pura, tudo o que ele fez por seus santos ao longo de cada geração. É quando admiramos, de coração a tremer, a força com que governa, modera e rege todas as coisas, bem como a imensidade da sua ciência e o seu olhar ao qual não escapa nem o segredo dos corações. Ou quando pensamos que o numero das areias e das ondas do mar ele contou e conhece. E quando contemplamos, cheios de estupefação, que são presentes ao seu conhecimento as gotas das chuvas, os dias e as horas dos séculos, o passado e o futuro. E quando vemos, num transporte de admiração, a inefável clemência com que suporta, sem que a sua longanimidade se canse, os crimes inumeráveis cometidos a cada momento diante dos seus olhos. E a vocação a que nos chamou, pela graça da sua misericórdia e sem quaisquer méritos precedentes. E ainda quantas ocasiões de salvação ele concede aos que vai adotar como filhos!

Pois ele nos fez nascer de tal modo que, desde o berço, a sua graça e o conhecimento da sua lei nos fossem dados. E, vencendo em nós ele próprio o adversário, ao preço apenas do consentimento da nossa boa vontade, nos agracia com a eterna bem-aventurança e prêmios sem salvar, o plano de sua incarnação, e dilatar entre os povos as maravilhas dos seus méritos.

São, aliás, inumeráveis outras contemplações do mesmo gênero, que podem nascer em nossas faculdades, segundo a qualidade da nossa vida e a pureza do coração, e nas quais Deus é visto ou possuído em puras intuições. Ninguém, no entanto, as poderia reter perpetuamente, se nele ainda vive algo dos afetos carnais. Porque

"não poderás ver a minha face",

diz o Senhor,

"nenhum homem pode me ver e viver",

Ex. 33, 20

Isto é, para este mundo e as afeições terrenas.