Hugo de São Vitor

ANOTAÇÕES PRÉVIAS AO ESTUDO
DAS SAGRADAS ESCRITURAS

"Praenotatiunculae de Scripturis
et Scriptoribus Sacris"

- PL 175, 9-28 -


1. Distintividade das Escrituras a serem consideradas Sagradas.

O leitor das Sagradas Escrituras deverá aprender primeiramente como reconhecer quais são as Escrituras que devem ser dignamente honradas com o nome de Sagradas. Pois, de fato, alguns dos que ensinaram pelo espírito deste mundo deixaram escrito muitas coisas. A Lógica, a Matemática e a Física ensinam verdades, mas não são capazes de alcançar aquela verdade na qual se encontra a salvação da alma, sem a qual será inútil alcançar todas as demais verdades. Os filósofos pagãos também escreveram tratados sobre Ética, nos quais descreveram alguns membros das virtudes, truncados, porém, do corpo da bondade, pois os membros das virtudes não podem ter vida sem o corpo da caridade divina. Todas as virtudes formam um só corpo, cuja cabeça é a caridade, e os membros do corpo não podem viver se não são sensificados pela cabeça. Os escritos, pois, em que não é possível encontrar a verdade sem contaminação de erro, nem são capazes de restaurar a alma conduzindo-a ao verdadeiro conhecimento de Deus e ao amor, não são dignos de serem considerados sagrados. Somente são corretamente chamados de sagrados aqueles escritores que foram inspirados pelo Espírito de Deus e que, administrados por aqueles que falaram pelo Espírito de Deus, tornam o homem divino, restaurando-o à semelhança de Deus, instruindo-o ao seu conhecimento e exortando-o ao seu amor. Nestas Escrituras tudo o que é ensinado é a verdade; tudo o que é preceituado é a bondade; tudo o que é prometido é a felicidade. Pois Deus é verdade sem falácia, bondade sem malícia, felicidade sem miséria.

Se queres, pois, distinguir as Escrituras Sagradas das demais que não merecem este nome, distingue primeiro e considera diligentemente por uma reta consideração a própria matéria a respeito da qual e na qual versa a sua abordagem (1).

Duas são as obras de Deus nas quais se resume tudo o que foi feito. A primeira é a obra da criação, pela qual foram feitas as coisas que não existiam; a segunda é a obra da restauração, pela qual foram refeitas as coisas que haviam perecido. A obra da criação consiste na criação das coisas do mundo com todos os seus elementos. A obra da restauração é a Encarnação do Verbo com todos os seus mistérios, seja aqueles que o precederam desde o início dos séculos, seja aqueles que o seguiram até o fim do mundo.

A matéria das Sagradas Escrituras deve ser considerada também quanto a esta divisão; isto é, deves considerar aquilo de que tratam e o modo com que o tratam, para que pela matéria e pelo modo possas distingüi-las do restante dos demais livros que se escrevem. De fato, a matéria de todos os demais livros consiste nas obras da criação, enquanto que a matéria das Sagradas Escrituras consiste na obra da restauração. Esta é a primeira distinção a ser feita quanto à matéria de que tratam os livros e as escrituras diversas.

Além disto, os demais livros, se ensinam alguma verdade, não o fazem sem o contágio do erro; se parecem recomendar alguma bondade, ou ela vem mesclada com a malícia, de modo a não ser pura, ou pelo menos é sem o conhecimento e o amor de Deus, de modo a não ser perfeita (2).