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O Espírito Santo, porém, não cuidou apenas das coisas que foram
escritas até o advento de Cristo mas, como um só e mesmo Espírito
procedente de um só Deus, fêz também o mesmo nos evangelistas e
apóstolos. Também aquelas narrações que inspirou por meio destes
foram tecidas pela arte de sua sabedoria que expusemos acima.
Também nelas misturou coisas nada pequenas pelas quais, interpolada
ou interrompida pela sua impossibilidade a ordem histórica da
narrativa, dobrasse e chamasse a intenção do leitor ao exame da
inteligência interior.
Mas, para que o que dizemos seja conhecido pelos próprias coisas,
consultemos as próprias passagens das Escrituras.
A quem, pergunto, que tenha senso, parecerá ser dito coerentemente
que o primeiro, o segundo e o terceiro dia, nos quais se nomeiam
tardes e manhãs, foram sem Sol, sem Lua e sem estrelas, e o
primeiro dia sem céu?
Quem será encontrado tão idiota que julgue que Deus, como um homem
qualquer do campo, tenha plantado árvores no paraíso, no Éden
voltadas para o Oriente, e nele tenha plantado a árvore da vida,
isto é, uma árvore visível e palpável, e de tal maneira que
alguém comendo desta árvore com seus dentes corporais alcançasse a
vida e, comendo de outra árvore, obtivesse a ciência do bem e do
mal?
Quando se diz que Deus caminhava no paraíso após o meio dia, e que
Adão se escondia debaixo da árvore, não tenho dúvida de que com
isto a Escritura profere uma expressão figurativa, na qual se indicam
certos mistérios.
Caim, tendo-se retirado da face de Deus (Gen. 4, 16)
manifestamente induz o leitor prudente a que se pergunte o que é a face
de Deus, e como alguém poderá retirar-se dela.
Para não ampliar a obra que temos em mãos mais do que o justo, será
muito fácil, para quem o quiser, reunir das santas escrituras muitas
coisas que, apesar de terem sido escritas como fatos, não podem ser
cridas competente e razoavelmente que se tenham realizado segundo a
história.
Este modo de escrever pode ser encontrado abundante e copiosamente
também nos livros evangélicos, quando se diz, por exemplo, que o
demônio transportou Jesus para um elevado monte (Mt. 4, 8) para
que dali lhe mostrasse todos os reinos do mundo e a sua glória. Como
parecerá que tenha se podido fazer com que Jesus tivesse sido
conduzido pelo demônio a um alto monte, ou também que se lhe tivesse
sido mostrado aos seus olhos carnais, junto a um só monte, todos os
reinos do mundo, isto é, o reino dos Persas, dos Scítios e dos
Índios, ou também como os seus reis são glorificados pelos homens?
Muitíssimas outras coisas semelhantes a estas encontrará no
Evangelho quem o ler mais atentamente, e poderá notar que nestas
narrativas que parecem enunciadas segundo a letra, há inseridas e
simultaneamente tecidas coisas que a história não recebe, mas que,
todavia, possuem uma inteligência espiritual.
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