4. O aborto nos Estados Unidos.

Nos Estados Unidos a primeira lei permissiva do aborto foi aprovada no Colorado em 1967. Entre 1967 e 1970 cerca de metade dos estados americanos legalizaram o aborto. Nenhum deles, porém, a pedido; o aborto somente seria legalmente concedido até um determinado estágio da gestação, geralmente em torno do primeiro trimestre da gravidez, e se preenchidas uma série de restrições legais, variáveis de estado para estado.

O primeiro estado a legalizar o aborto a pedido foi Nova York em 1970. Ali a lei passou a permitir o aborto em caso de risco de vida para a mãe em qualquer época da gestação e a pedido até o quinto mês da gravidez, não se exigindo sequer o domicílio da gestante em território estadual. Produziu-se com isto uma avalanche surpreendente de gestantes provenientes de vários outros estados americanos, principalmente dos da costa leste, à procura dos serviços de aborto de Nova York, as quais retornavam logo em seguida para os seus estados de origem. O fenômeno foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação e provocou intensa discussão não apenas em Nova York como em toda a nação. Quase dois anos depois os movimentos contra o aborto realizaram uma exposição de fetos de abortos tardios nas proximidades do Legislativo de modo que os políticos que haviam votado a lei do aborto não poderiam deixar de notar o evento. Aos que examinavam os espécimes da exposição era-lhes perguntado abertamente se, quando haviam aprovado a lei que liberalizava o aborto, tinham tido consciência de que o aborto significava aquilo que estavam vendo. A medida, do ponto de vista do resultado esperado, foi muito bem planejada. Por esta mesma época os médicos Neubardt e Schulman, professores de obstetrícia e praticantes do aborto legal em hospitais universitários e na rede municipal de Nova York comentavam que no segundo trimestre da gravidez a técnica utilizada para o aborto era a do envenenamento salino, que resultava na expulsão do feto íntegro, ao contrário dos métodos recomendados para o primeiro trimestre, que o retalhavam dentro do útero antes de extraí-lo:

"Os médicos descobrirão que por mais que procedam corretamente quando se realiza o aborto com solução salina", dizem estes professores, "não importa que se interne ou não a paciente, sempre suscitarão um clima de desproporcionada crítica, angústia e emotividade. Ninguém, nestes casos, quer ver ou mesmo tocar o feto. Por causa disso nós mesmos nos temos recusado a interromper as gestações que ultrapassaram a altura do umbigo, ainda que a lei do Estado de Nova York permita o aborto a pedido até a vigésima quarta semana da gestação. Estes abortos na prática só estão podendo ser obtidos em hospitais particulares que cobram honorários tão extraordinários que quase sugerem um clima de suborno por se realizar um trabalho desagradável. Como homem de ciência, o médico não deveria ter dificuldades em relação ao aborto de primeiro trimestre, porque a penetração casual do espermatozóide no óvulo dificilmente poderia ter conotações morais, mas a prática mostra que a sociedade ainda não resolveu o problema da moralidade do aborto durante o segundo trimestre".

Nesta época, portanto, em Nova York até mesmo o pessoal dos serviços médicos e os professores praticantes e defensores do aborto legal não se sentiam bem diante de um aborto de cinco meses. "Ninguém, nestes casos, quer ver ou mesmo tocar o feto", dizem os professores. Muito menos os políticos do Legislativo de Nova York, que só ocasionalmente haviam entrado em algum hospital e certamente não para trabalharem no serviço do aborto. Poucas semanas depois da exposição de fetos de abortos legais tardios, as conseqüências desta vieram à luz. O legislativo de Nova York revogava por unanimidade a lei do aborto a pedido. Nelson Rockfeller, porém, na época governador de Nova York, a quem a lei estadual conferia o direito do veto, usou desta prerrogativa para mantê-la e desta maneira a revogação do legislativo não surtiu efeitos jurídicos.

Fora do Estado, porém, a caso de Nova York repercutiu como um escândalo. Dali em diante, até 1973, com exceção da Flórida, todos os outros trinta e três estados americanos que ainda discutiam a matéria nos seus legislativos acabaram tomando posição votando contra o aborto, permitindo-o apenas no caso de ser necessário salvar a vida da mãe.

A situação permaneceu neste impasse quando em janeiro de 1973 uma jovem do Texas, a quem havia sido negado o aborto por causa de sua idade gestacional haver ultrapassado o limite fixado na lei estadual, recorreu à Suprema Corte de Justiça. O papel deste tribunal, nos Estados Unidos, é o de assegurar o cumprimento da Constituição. Jane Roe, a jovem que recorreu à Suprema Corte, portanto, estava alegando a inconstitucionalidade da lei que a proibia de abortar após determinado prazo.

Nos anos que precederam este julgamento conhecido como o caso Roe versus Wade, houve muitas tentativas de se argumentar pela inconstitucionalidade das leis contra o aborto nos Estados Unidos. Num anteprojeto redigido por Roy Lucas apresentado diante da Escola de Direito da Universidade de Nova York em 1968 lia-se que:

"Ainda que na polêmica a respeito do aborto entrem em jogo interesses os mais diversos, a questão parece se enquadrar definitivamente dentro da marca já clássica da ingerência governamental da liberdade individual. Sob este ponto de vista, pode ser resolvida em termos constitucionais".

Em outro julgamento havido na Califórnia em 5 de setembro de 1969, o magistrado Raymond Peters declarou na sentença que permitir o aborto apenas quando "fosse necessário para salvar a vida da mãe" seria uma definição tão vaga que se tornaria inconstitucional, violando a noção da carta magna de que todo cidadão tem direito a um processo judicial eqüitativo.

Mais tarde, em 21 de abril de 1971 a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou diante de um recurso movido contra uma sentença do Tribunal do Distrito de Colúmbia que

"seria muito anômalo que uma legislação autorizasse abortos necessários para salvar a vida ou a saúde da gestante mas que, em seguida, pretenda que um médico, sob pena de um a dez anos de cadeia, assuma a responsabilidade de provar diante da lei que o aborto que ele realizou entrou nesta categoria. Não se pode crer que o Congresso tivesse tido a intenção de exigir que nestes casos o médico provasse a sua inocência".

Era evidente que, do ponto de vista legal, enquanto no início da década de setenta, devido principalmente à repercussões negativas do aborto a pedido em Nova York, a justiça estadual nos Estados Unidos parecia começar a inclinar-se decididamente contra a prática do aborto, estava-se preparando, no âmbito da justiça federal, um movimento exatamente oposto. Assim, quando foi dada a sentença do julgamento Roe versus Wade, em 23 de janeiro de 1973, a Suprema Corte de Justiça, com base na décima quarta emenda à Constituição Federal declarou que

"a personalidade legal não existe nos Estados Unidos antes do nascimento".

A décima quarta emenda, que foi a base desta sentença, havia sido votada mais de um século antes, no ano de 1868, logo após o término da Guerra Civil, para complementar a décima terceira emenda de 1865, que declarava extinta a escravatura nos Estados Unidos. Para tornar a décima terceira emenda mais clara, a décima quarta tinha como um de seus principais propósitos declarar que os negros eram cidadãos americanos, e se expressava neste sentido da seguinte maneira:

"Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos são cidadãos dos Estados Unidos. Nenhum estado poderá aprovar nenhuma lei que restrinja os previlégios dos cidadãos dos Estados Unidos".

Um século mais tarde, a Suprema Corte de Justiça, considerando que o feto não pode evidentemente ser nem nascido nem naturalizado, concluíu que este nào poderia também ser cidadão americano, e o texto da décima quarta emenda, primitivamente idealizado para consolidar a libertação dos escravos na América, serviu de base para declarar a inconstitucionalidade de qualquer lei estadual que proibisse o aborto até o momento do nascimento. A Suprema Corte declarou textualmente que o aborto deveria ser permitido até o momento do nascimento, quando o médico assim o julgasse necessário, conforme ele entendesse, para a saúde da mãe,

"considerada esta à luz de todos os fatores, emocionais, psicológicos e familiares que fossem importantes para o bem estar da paciente",

o que tornou na prática legal o aborto a pedido até o momento do nascimento em todo o território nacional, como continua até hoje, quando em 1994 estávamos revisando este estudo elaborado em 1978.