|
Discorremos até aqui sobre o que é a humildade examinando-a em si
mesmo, procurando deduzir o que ela seja partindo de considerações de
sua própria essência, à luz das indicações que nos foram deixadas
como linhas mestras nos escritos de Hugo de S. Vitor. Dissemos que
é uma disposição da mente proveniente da consciência de sermos uma
criatura e não um deus. Se esta disposição é verdadeiramente
habitual, algo que não surge apenas quando pensamos no assunto de modo
abstrato, afastados da interferência de nossos sentimentos, de nossas
ações ou mesmo de outras considerações teóricas que poderiam
contradizê-la, de modo que não apenas saibamos ser criatura nestes
momentos especiais, mas continuamos conscientes de sê-lo em todas as
circunstâncias de nossa vida e de modo que nossas ações, sentimentos
e demais pensamentos não só sejam coerentes com esta consciência mas
também derivem dela, então podemos dizer que somos humildes.
Considerada em si mesmo, portanto, a humildade não é algo que se
pratique mediante a obediência a determinadas regras de conduta. Ela
não consiste em algum determinado modo de agir, mas é, em sua
essência, apenas a posse habitual da clara consciência de sermos uma
criatura e das conseqüências que isto implica. A humildade não é,
em sua essência, uma regra de conduta ou um hábito de conduta, mas a
consciência permanente de uma verdade.
A consciência desta verdade, porém, irá se manifestar de uma
inumerável multiplicidade de maneiras conforme o meio ou as
circunstâncias em que o indivíduo que a possui vier a se encontrar.
As manifestações da humildade são, pois, impossíveis de serem
enumeradas porque são tão infinitas quantas são as circunstâncias
possíveis do agir e do viver dos homens. Ela se manifesta de modo
diverso no cientista, em sua constante procura pela verdade
científica; no juiz, ao dever sentenciar com autoridade sobre a
aplicação da lei, ou em um advogado, ao aceitar a defesa de seu
cliente; no professor, ao ter que posicionar-se sobre como e para
onde estará conduzindo seus alunos; no médico, de cujo proceder
depende a vida e a morte dos que lhe são confiados; no sacerdote,
diretamente imerso no sagrado; na mãe de família, que tem diante de
si a lhe exigir uma resposta, na pessoa de seus filhos, uma realidade
muito mais complexa do que a que lhe seria apresentada por qualquer
outro estranho e adulto. A humildade também se manifestará de modo
diverso no cristão, diante do qual a graça e a Revelação
descortinam realidades mais profundas do que as que podem ser
apreendidas apenas pela luz natural da razão. Diante de todas estas
circunstâncias podemos nos posicionar agindo como se fossemos dotados
de atributos divinos ou com a clara consciência de sermos apenas uma
criatura finita, inferior aos deuses, igual a nossos semelhantes,
carentes de virtude e conhecimento, e também da graça.
Sejam quais forem, porém, as realidades específicas com que
qualquer homem possa se defrontar, ele não poderá, todavia,
esquivar-se de ter que responder com uma posição pessoal sobre como
irá se colocar diante de Deus, ou pelo menos diante do cosmos que lhe
revela a existência de uma ordem superior a sim próprio dentro da qual
ele está inserido; diante do seu semelhante, por ser impossível que
um homem passe uma vida sem ter convivido com outros homens; e diante
de si mesmo. Daí as três manifestações mínimas e necessárias da
humildade a que nos referimos anteriormente, o reconhecimento e a
reverência para com o sagrado ou o superior a si próprio, o respeito
para com o próximo reconhecido incondicionalmente como um igual, e a
consciência da própria indigência da graça, virtude e conhecimento
que conduz ao desejo profundo de aprender.
Queremos agora mostrar que esta doutrina sobre a natureza da humildade
e do seu caráter de princípio da virtude e do aprendizado, deduzido
por um exame da humildade considerada em si mesma, pode também ser
deduzido ou encontrado nos ensinamentos contidos nas Sagradas
Escrituras.
|
|