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Tendo, pois, estado algum tempo esta luz divina e resplandecente
escondida, quis o Senhor colocá-la no candelabro para que iluminasse
a todos os de sua casa, e inspirou o abade Estevão para que
edificasse um mosteiro em Claraval e que o seu abade fosse São
Bernardo, que era ainda jovem e de pouca saúde e não acostumado a
tratar com seculares em semelhantes ocupações.
Claraval era um lugar próximo ao rio Alba, no território de
Langres, antigo covil de ladrões e de salteadores. Chamavam-no de
Vale dos Absintos, seja porque ali havia muitos, seja pela amargura
dos que caiam nas mãos dos ladrões. Aqui se fez o novo mosteiro,
que foi como que a primeira colônia e povoação que saiu de Cister.
São Bernardo procurou o quanto pode não ser superior de ninguém,
mas sujeito a todos; no fim, porém, curvou a cabeça à
obediência, considerando especialmente que para lá não se dirigia a
passeio, mas a trabalho. O mosteiro não tinha fundação, a casa
era muito fria, estreita e mal acondicionada, de modo que os padres
que à fundaram passaram por grandes necessidades, fome, sede, frio e
falta de roupas. A comida era de folhas de faia cozidas; o pão, de
cevada e milho; tão áspero, que um religioso que foi hóspede levou
consigo um daqueles pães para mostrá-lo como milagre, julgando como
tal que os que o comessem pudessem viver.
O procurador da casa era Gerardo, irmão do santo, o qual, vendo a
extrema pobreza que os religiosos padeciam e não encontrando maneira de
remediá-la, foi até são Bernardo e lhe expos as necessidades do
convento e que, pelo menos, seriam necessárias onze libras de soldo
para sustentar o convento e não perecessem os monges. Animou o santo
ao procurador, seu irmão, e feita a oração, logo bateu à porta
uma mulher que, deitando-se aos seus pés, entregou-lhes uma esmola
de doze libras, suplicando que encomendassem seu marido à Deus, por
estar gravemente doente. Agradeceu o santo a esmola e disse à mulher
que, voltando para casa, encontraria curado o seu marido, como
realmente o achou ao chegar. Aproveitando-se deste fato, o abade
repreendeu suavemente a pusilanimidade do procurador e aqueles
religiosas aprenderam a confiar em Deus, que nunca desampara aos que
realmente O servem.
Tinha-se São Bernardo por indigno de que Deus se servisse dele
para a salvação das almas, mas a grande caridade que ardia em seu
peito o fazia esquecer-se de sua indignidade e dava-lhe grandes
ânsias de buscar e procurar a salvação de seus próximos. Pôs-se
uma noite a considerar isto na oração, e teve uma visão em que
parecia- lhe que de todas as partes, por aqueles montes, vinha um
grandíssimo número de homens, de diversos estados e hábitos, e que
baixavam ao vale onde estava seu mosteiro, de modo que não caberia
toda aquela gente naquele lugar. O significado da visão foi
manifestado pelos fatos na multiplicação dos religiosos que militaram
sob este grande patriarca e dos muitos e ricos mosteiros que em tantos
lugares se fundaram pela sua mão. Entre os que vieram tomar o
hábito, para maior consolação de São Bernardo, um dos primeiros
foi Tescelin, seu pai, que fazendo-se filho e irmão em espírito
daquele que havia engendrado segundo a carne, entrou no mosteiro e
concluíu santamente sua peregrinação. A irmã, a única que
permanecia no mundo, casada com um homem rico e entregue às galas e
pompas da terra, tendo chegado ao mosteiro muito enfeitada e
acompanhada para ver seus irmãos, ficou confusa quando soube que não
a queriam ver; ouvindo as palavras de vida que lhe disse São
Bernardo que, vencido pelos prantos e lágrimas que derramava, acabou
saindo para vê-la, transformou-se e de tal maneira que converteu
todo o cuidado que antes punha em embelezar e enfeitar seu corpo para
embelezar a sua alma e enriquece-la com obras de penitência e de
piedade, e isto com tão grande fervor que seu próprio marido, ao fim
de dois anos, concedeu-lhe licença para entrar no convento das monjas
de Villeto e consagrar-se ao Senhor, onde perseverou santamente e
entregou seu espirito a Deus.
Mas não deve causar tanta admiração que Deus Nosso Senhor
trouxesse tantos homens de tão diferentes estados e condições para
que O servissem em um gênero de vida tão rigoroso e perfeito sob a
regra e instituição de São Bernardo, quanto o modo raro e
maravilhoso com que os trazia pela intercessão e pelas orações do
próprio santo.
Certa vez veio uma quadrilha de jovens cavaleiros, bizarros e
galhardos, para ver o santo abade, de quem a fama publicava grandes
coisas. Era tempo de Quaresma, e eles, com o ardor da juventude,
buscaram um lugar ali, próximo à igreja, para correrem,
exercitarem-se nas armas e se entreterem. Pediu-lhes o santo que
não o fizessem, mas não quiseram. Mandou então que lhes levassem
cerveja e, abençoando-a primeiro, deu-a para que bebessem. Mal
haviam saído do mosteiro quando, movidos por um novo espírito que
vinha do céu, começaram a tratar entre si sobre a vaidade do mundo,
seus enganos e perigos, e de tal maneira se inflamaram no desejo da
perfeição que logo, sem demora, todos juntos, com um só ânimo e
uma só vontade, voltaram ao mosteiro e com muita humildade pediram
para que nele fossem admitidos, onde com grande fortaleza e
paciência, passando por muitos trabalhos, perseveraram gloriosamente
na religião.
Foi esta mudança verdadeiramente proveniente da destra do
Altíssimo, mas não o foram menos outras, entre as quais a de um
clérigo chamado Marcelino que, indo em nome do arcebispo, seu
senhor, receber São Bernardo que vinha a Mogúncia, dizendo-lhe
quem era e quem o enviava, o santo parou e, pondo os olhos nele,
disse-lhe:
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"Outro Senhor maior vos enviou
e quer se servir de vós".
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E ainda que a princípio o clérigo contradissesse e estivesse alheio e
muito além de tal pensamento, no fim se rendeu e em companhia de
muitos homens doutos e honrados veio até o mosteiro de Claraval para
pedir o hábito.
E não é de menor admiração o que sucedeu com Henrique, irmão
carnal do rei de França; antes, é tão maior quanto mais alta era a
dignidade da pessoa com quem ocorreu. Havia vindo este príncipe a
Claraval para tratar com o santo abade de alguns negócios de
importância. Quando os havia terminado, pediu para que se juntassem
todos os monges para despedir-se deles e encomendar-se às suas
orações. Assim se fez, e logo disse-lhe o santo que tinha
esperança de que não morreria no estado em que estava no presente,
senão que rapidamente entenderia por experiência o quanto era eficaz a
intercessão que havia pedido àqueles servos de Deus. Cumpriu-se
aquela profecia, de maneira que no próprio dia determinou-se
Henrique a seguir as pegadas de Cristo Nosso senhor e morrer na cruz
da santa religião. Sentiu a mudança de seu senhor toda a sua
família, que o chorava em vida por morto. Porém, entre os demais
criados, havia um que se chamava André, o qual teve tão estranho
sentimento, que saiu como que fora de si e, frenético com a cólera,
começou a dizer blasfêmias e graves injúrias contra o santo abade,
como se se tratasse de um charlatão ou de um falso profeta. Rogou o
príncipe ao santo que o acalmasse e que e pusesse nele maior cuidado do
que nos outros para convertê-lo ao Senhor, ao que São Bernardo
lhe disse:
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"Deixai-o agora,
pois está muito amargo
e cego com a paixão,
e considerai-o como vosso".
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E como a Henrique, com esta nova esperança, lhe crescesse mais o
desejo e tornasse a pedir ao bem-aventurado padre que lhe falasse, o
santo lhe respondeu com um rosto severo:
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"Não já vos disse que é vosso?"
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Ouviram esta argumentação todos os presentes e o próprio André, o
qual, mais obstinado e furioso do que antes, balançando a cabeça,
dizia dentro de si, como depois o confessou:
"Agora sim conheço que és falso profeta,
porque jamais acontecerá o que dizes".
Partiu no dia seguinte muito furioso, lançando maldições ao abade e
suplicando a Deus que se abrisse a terra para que tragasse aquele
mosteiro. Mas naquela mesma noite, estando na pousada, sentiu tão
grandes aguilhões ou impulsos e movimentos interiores, que logo
levantou-se da cama sem esperar o dia e voltou a Claraval para pedir
com grande humildade que lhe fosse concedido receber o hábito, para
admiração e consolo dos que ali estavam e sabiam sobre o que havia se
passado.
Em outro caminho que fez São Bernardo a Flandres, ganhou para o
Senhor alguns nobres e letrados flamengos, que o seguiram e voltaram
com ele para a Borgonha. E em Chalons, cidade da Champanhe de
França, estendendo as redes da pregação, colheu uma grande
quantidade de excelentes homens, e cada dia se via entrar pelas portas
de seu mosteiro muitos que, movidos pela fama do santo e desenganados
da vaidade e dos embustes do mundo, vinham para imitar a Cristo sob
tão valoroso capitão.
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