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Ainda que sobre a mística arca de Moisés muitas coisas tenham sido
escritas para nossa utilidade, restam, todavia, muitas ainda que
podem ser escritas também para nossa utilidade. O que esta arca
significa segundo o sentido alegórico, como ela designa a Cristo,
já no-lo foi explicado pelos doutores que viveram antes de nós e
tratado pelas mais perspicazes inteligências. Não julgo, porém,
incorrer na incúria da temeridade se tratarmos de outras coisas nesta
mesma matéria segundo, porém, o sentido moral.
Todavia, para que a cuidadosa investigação de nossa matéria se
torne mais doce, examinemos o que aquele insigne entre os profetas
pensa sobre aquela a quem ele chama de `a arca da santificação':
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"Levanta-te, Senhor,
para o lugar do teu repouso,
tu e a arca de tua santificação".
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Se crermos, de fato, e com razão, em Moisés, saberemos que
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"Todo aquele que a tocar,
será santificado".
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Muito gostaria, pois, saber o que seria esta arca que pode santificar
os que dela se aproximam, para que, merecidamente, possa ser dita
arca da santificação. Da sabedoria não duvido que ela seja aquela
que vence a malícia, conforme está escrito:
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"À luz sucede a noite,
mas a malícia nada pode
contra a sabedoria".
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Sei também que todos os que alcançaram a salvação o fizeram, desde
o início, pela sabedoria, conforme também está escrito:
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"Porque pela sabedoria é que foram salvos
todos os que te agradaram, Senhor,
desde o princípio".
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Consta, também, que ninguém poderá agradar a Deus se não estiver
com ele a sabedoria:
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"Ainda que alguém seja perfeito
entre os filhos dos homens,
se estiver ausente dele
a tua sabedoria, Senhor,
será considerado como um nada".
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Quem duvida que pertença à santificação que o homem seja purificado
de toda a sua imundícia, que a sua mente seja lavada de toda a
malícia e iniquidade? Estas coisas são, de fato, as que mancham o
homem. E, conforme penso, esta mesma purificação é a
santificação.
Quando, porém, o Senhor preceituou a Moisés sobre a construção
do tabernáculo, antes dr tudo o mais instruíu-o sobre como fabricar
a arca, para que, com isto, entendesse que tudo o resto deveria ser
feito por causa dela. Penso que ninguém duvida que de todas as coisas
que o tabernáculo da aliança continha a arca era a principal e a mais
importante. Aquele, portanto, que investiga que graça poderá
significar este sacrário, não terá dificuldade em concluir, de tudo
isto, qual seja aquela graça que é a mais digna entre todas, a menos
que duvide que Maria tenha "escolhido a melhor parte" (Luc. 10,
42). O que é, porém, esta melhor parte que Maria escolheu,
senão a contemplação, pela qual vemos
Maria, de fato, ouvindo, entendia a suma sabedoria de Deus que se
escondia na carne e que os olhos da carne não podiam ver. E
entendendo-a, também a via, de onde que, deste modo, sentando-se
aos pés do Senhor e ouvindo-o, entregava-se à contemplação da
suma verdade. Esta é a parte que nunca será tirada aos eleitos e aos
perfeitos. Esta é a ocupação que jamais terá fim, pois a
contemplação da verdade se inicia neste mundo e será celebrada na
contínua perpetuidade futura. Pela contemplação da verdade o homem
é ensinado para a justiça e consumado para a glória.
Vede, portanto, quão corretamente entendemos que aquele sacrário
fosse a graça da contemplação, preferível a todas as demais coisas
existentes no tabernáculo de Deus por uma certa sua dignidade. Que
graça singular! Quão singularmente deve ser preferida entre todas,
esta graça pela qual no presente somos santificados e no futuro seremos
bem- aventurados!
Se, portanto, pela arca da santificação corretamente entendermos a
graça da contemplação, merecidamente aquele que a recebe haverá de
esperar ser por ela não apenas purificado, como também santificado.
Sem dúvida, não há nada que purifique o coração do homem de todo
o amor mundano e também nada há que tanto inflame a alma ao amor das
coisas celestes como esta graça. Ela é a que purifica, ela é a que
santifica, para que pela assídua contemplação da verdade se torne
puro pelo desprezo do mundo e santo pelo amor de Deus.
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