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A determinação que foi feita da justiça até aqui não esgota todo o
conteúdo desta virtude. Pertence à natureza da justiça o
ordenamento das ações humanas ao outro; ora, este outro pode ser
tomado na medida em que pela virtude da justiça ordenamos nossas
ações a alguma ou algumas pessoas singularmente consideradas, tal
como foi feito até aqui, ou na medida em que ordenamos nossas ações
ao próprio bem comum; em ambos os casos estamos diante da virtude da
justiça, mas a primeira é a justiça dita particular, enquanto que a
segunda é a justiça dita legal (111), pois nas formas corretas
de governo cabe às leis declararem o que pertence ao bem comum
(112).
Ora, na medida em que ordena as ações humanas ao bem comum, este
segundo modo da justiça, a virtude da justiça legal, inclui todas as
demais virtudes morais (113). Pois o bem de qualquer virtude,
seja que ordene o homem a si mesmo, seja que ordene o homem a outras
pessoas singulares, pode ser referido ao bem comum, ao qual se ordena
a justiça legal. Isto acontece porque aqueles que estão em uma
comunidade se comparam à comunidade como a parte ao todo. Como a
parte, aquilo que ela é, o é do todo, qualquer bem da parte é
ordenável ao todo; os atos de todas as virtudes, portanto, mesmo
aquelas que ordenam o homem em relação a si mesmo, são ordenáveis
ao bem comum, e neste sentido pertencem à justiça legal que é, por
isso mesmo, uma virtude geral (114).
Embora na justiça legal estejam incluídas todas as demais virtudes,
ela não é a mesma coisa que o conjunto de todas as demais virtudes.
A justiça legal está para com todas as virtudes do modo como uma
causa universal está para com todos os seus efeitos, assim como o Sol
está para com todos os corpos que são iluminados por sua força. De
fato, a justiça legal ordena os atos de todas as outras virtudes a um
determinado fim; deste modo, ela inclui todas as demais virtudes,
qualquer virtude podendo ser dita justiça legal na medida em que se
ordena ao bem comum, e, não obstante, ela é também uma virtude
especial segundo a sua essência (115).
Somente a justiça pode ser uma virtude geral, e não a fortaleza ou a
temperança, porque a temperança e a fortaleza estão no apetite
sensível, que são por natureza forças apetitivas de bens
particulares, assim como a apreensão sensível, que é cognoscitiva
do que é particular, enquanto que a justiça está no apetite
intelectivo que é a vontade, o qual, ao contrário dos sentidos,
pode-se referir ao bem universal, que é apreensão do intelecto
(116).
Quando tratamos da justiça particular, afirmamos que ela tinha
preeminência entre todas as virtudes morais não apenas por estar na
vontade mas também porque as demais virtudes aperfeiçoam o homem
segundo o seu bem próprio, enquanto que a justiça aperfeiçoa o homem
por comparação a outro; ora, ser perfeito por comparação a outro,
diz o Comentário à Ética, é melhor do que ser perfeito somente
segundo si mesmo (117).
Mas pela mesma razão é manifesto que a justiça legal é a mais
brilhante entre todas as virtudes morais, mais ainda do que a justiça
particular, não só porque a justiça particular é acerca das coisas
exteriores segundo as quais se dá a comunicação entre os homens
enquanto que a justiça legal é universalmente acerca de toda a
matéria moral, qualquer que seja o modo pelo qual alguém possa ser
dito virtuoso acerca de algo (118), mas também na medida em que o
bem comum tem primazia sobre o bem singular de uma pessoa (119).
Pr causa disso é que diz o Filósofo que a justiça legal é
excelentíssima entre todas as virtudes, reportando-se a um provérbio
segundo o qual
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"nem a brilhantíssima estrela vespertina,
nem a brilhantíssima estrela matutina
fulgem assim como a justiça" (120).
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Referências
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(104) In libros Ethicorum Expositio, L. V, l. 15, 1075.
(105) Idem, L. V, l. 6, 955.
(106) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 60 a.1.
(107) In libros Ethicorum Expositio, L. V, l. 6, 955.
(108) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 60 a.1.
(109) Idem, IIa IIae, Q. 58 a.12. (110) Idem,
IIa IIae, Q. 58 a.12 ad 3.
(111) In libros Ethicorum Expositio, L. V, l. 3, 918.
(112) Idem, L. V, l. 2, 902-903. (113)
Idem, L. V, l. 2, 911.
(114) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 58 a.5.
(115) Idem, IIa IIae, Q. 58 a.6. (116) Idem,
IIa IIae, Q. 58 a.5 ad 2.
(117) In libros Ethicorum Expositio, L. V, l. 2, 906.
(118) Idem, L. V, l. 3, 919.
(119) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 58 a.12.
(120) In libros Ethicorum Expositio, L. V, l. 2,
906.
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