|
|
"Saí de Babilônia,
fugi dos Caldeus".
|
|
Babilônia, gloriosa entre todos os reinos, ilustre na soberba dos
Caldeus, pelos delitos de seus cidadãos reduzida desde a antiguidade
à perpétua solidão, pelo sentido de seu nome, pelo orgulho cruel de
seus príncipes, e pela perversa vida de seus habitantes, significa o
mundo presente.
O mundo, efetivamente, tanto por causa da culpa como por causa da
pena, e também por causa de ambos, pode comparar-se
corretissimamente à perversa e ímpia Babilônia. Possui, no
sentido moral, ao modo de qualquer cidade, as suas portas, o seu
muro, as suas vias, os seus edifícios maiores e menores. A porta
pela qual nela se entra é o nascimento; o caminho pelo qual se a
atravessa é a mortalidade; a porta, pela qual se sai da mesma, é a
morte. Qualquer coisa que o miserável nascimento submeter, a infeliz
mortalidade a conduzirá toda consigo, e o que quer que a mortalidade
conduza, a insensível morte a devorará por completo. O seu muro é
todo o âmbito deste mundo, no qual entramos pelo nascimento, mas não
podemos dele sair senão pela morte. Entre ambas as portas, isto é,
entre o nascimento pela qual entramos e a morte pala qual saímos, há
o caminho, que é a mortalidade, pelo qual passamos todos os dias, as
horas e os momentos, submetidos e fustigados pela sua corruptibilidade
e pela sua penalidade, até que, segundo o arbítrio do juiz interior
e eterno, depois do mérito, alcancemos o prêmio.
As vias desta Babilônia espiritual são os sete vícios principais.
Tais vias são compridas e largas; compridas pelo longo costume,
largas pela dissoluta licenciosidade. A primeira via é a soberba, a
segunda a inveja, a terceira a ira, a quarta a acédia, a quinta a
avareza, a sexta a gula, e a sétima é a luxúria.
A soberba, por uma parte, ou em um de seus lados, possui a
elevação do coração, e no outro a ostentação da obra.
Interiormente, de fato, temos a soberba; exteriormente, a
jactância. A soberba consiste na elevação do coração, a
jactância na ostentação da obra. A soberba reside mais no oculto
diante de Deus, a jactância mais no manifesto diante do próximo.
Para construir esta via o demônio colocou a primeira pedra, quando
quis
|
"subir ao céu,
exaltar seu trono
acima dos astros de Deus,
sentar-se sobre o monte da aliança,
ao lado do aquilão,
sobrepujar a altura das nuvens
e ser semelhante ao Altíssimo".
|
|
Ele é, portanto, o rei desta Babilônia, e foi ele que então e
deste modo começou a edificar esta cidade e sua primeira via.
Em seguida vieram para ela os nossos primeiros pais, os quais, quando
buscaram pela soberba a casa da ciência comendo o fruto proibido,
edificaram a mesma via da cidade de Babilônia. Nesta via cada
orgulhoso constrói para si uma casa tanto mais elevada quanto de modo
se ensoberbecer entre os demais. O mesmo se deve entender dos demais
vícios, de tal modo que os que por primeiro os encontraram e
exercitaram, foram também os que por primeiro trabalharam na
edificação das vias de Babilônia. E quanto mais qualquer homem se
corrompe mais gravemente por algum vício, tanto mais sublime palácio
edifica para si em Babilônia.
Nesta primeira via, que é a soberba, vários são os aparatos,
vários são os ornamentos, e nela mais se busca o que pertence ao
louvor do que o que pertence ao prazer. Nela mais são desejadas as
coisas que dizem respeito à glória do mundo do que à concupiscência
da carne. Todas são ordenadas e ornamentadas como uma semelhança do
templo. Nela encontra-se a púrpura, o linho finíssimo, as vestes
inteiramente de seda, os tapetes do Egito, os ornamentos dos
calçados, as fivelas, os colares, os braceletes, as pulseiras, as
mitras, os discriminais, os pericélios, as murêmulas, os
perfumes, os brincos, os anéis, as gemas, as mutatórias, as
capas, os véus, os grampos, os espelhos, os suidones e os
teristres. Seus habitantes entram pomposamente, de cabeça erguida,
aprovando-se pelos acenos dos olhos, avançando com os pés em marcha
compassada. A terra está repleta com seus cavalos, e suas quadrigas
são inumeráveis.
A segunda via de Babilônia, que é a inveja, vive da aflição e do
desespero por reputar-se haver caído na mais terrível pobreza. Seus
moradores, embora possuam bens, observando aqueles que na via anterior
os excedem em pompa, riqueza e glória, consideram-se os mais pobres
e destituídos de felicidade dentre todos os homens. No meio desta
avenida construída por um lado pela própria diminuição e por outro
pelo aumento alheio, os invejosos gemem e definham inconsolavelmente,
torturando-se e contorcendo-se de dor como se estivessem em trabalho
de parto. O tormento daqueles que percorrem esta via, de fato, está
entre a própria diminuição e o aumento alheio, ou entre a própria
ignomínia e a glória do outro. Seu príncipe é o demônio, pois,
conforme está escrito,
|
"pela inveja do demônio
entrou no mundo a morte",
|
|
mas ela possui muitos outros cidadãos, todos perdidos, como Caim,
os escribas e os fariseus e os príncipes dos sacerdotes, os quais
Pilatos sabia haverem traído a Cristo pela inveja.
A terceira via da cidade réproba é a ira. Por um de seus lados
corre a ira leve e passageira, do outro o ódio, isto é, a ira grave
e contínua. Aqui verás a palha, ali a trave. Para esta miserável
via concorrem todos os ímpetos de todas as tempestades. Nela se
agitam os turbilhões das dissensões, soa o fragor das ameaças,
tremem os ventos das contendas, cai a chuva pesada e o granizo das
perseguições, lampejam os raios das armas, ressoam os trovões das
feridas e dos homicídios.
A quarta via da nefanda cidade é a acédia. Ela possui de um lado a
tristeza, do outro o desespero. Ela é mais horrenda e mais
amplamente temível do que todas as outras. Embora seja grave pecar,
todavia é mais grave cair irracionalmente na tristeza e é muito mais
grave ainda precipitar-se no desespero pela tristeza. O primeiro que
para si construíu uma casa nesta via foi Caim, quando disse:
|
"Minha iniqüidade é grande demais
para que mereça ser perdoada".
|
|
Também Judas, o pior dos negociantes, construíu uma casa para si
nesta mesma via quando, desesperando-se do perdão, enforcou-se no
laço. De sua habitação o salmista pediu para ser libertado quando
disse:
|
"Não me afoguem as ondas das águas,
nem me absorva o abismo,
nem a boca do poço se feche sobre mim".
|
|
A quinta via é a avareza. Ela é constituída, por uma parte, pela
cobiça, e por outra pela tenacidade. Embora seja repleta de prata e
ouro e não haja término para os seus tesouros, não pode todavia
produzir saciedade, porque o avarento, no que diz respeito ao ardor de
sua sede,
|
"jamais se fartará do dinheiro".
|
|
Ao contrário, quanto mais adquirir, tanto mais cobiçará possuir.
De onde o conhecido provérbio:
|
"Cresce o amor do dinheiro,
tanto quanto cresce a própria riqueza".
|
|
Nesta via possui uma casa ilustre aquele rico avarento, sepultado no
inferno, de que nos fala o décimo sexto capítulo do Evangelho de
São Lucas.
A sexta via é a gula, da qual uma parte é a voracidade, e outra
parte a ebriedade. O Senhor nos proíbe a moradia nesta avenida onde
nos diz:
|
"Velai, pois, sobre vós,
para que não suceda que os vossos corações
se tornem pesados com as demasias
do comer e do beber".
|
|
E também o Apóstolo, onde nos diz:
|
"Caminhemos, pois, como de dia,
honestamente, não em glutonaria,
nem na embriaguez".
|
|
Naquela parte, que é a voracidade, estão todos os tipos de pães,
que se fazem pela arte do padeiro, e os demais manjares que se fazem
pela arte culinária, os diversos gêneros de carnes de quadrúpedes e
de aves, de peixes de mar e de rios, a pimenta, o cominho e os
diversos ingredientes para a elaboração de sabores e condimentos. Na
outra parte, que é a ebriedade, estão os vinhos de variadas cores,
sabores, forças e odores, elaborados com diversas ervas e aromas,
para terem com que se ocupar
|
"os que se levantam pela manhã
para se entregarem à embriaguez,
e para beberem até à tarde",
|
|
cuja impudência o mesmo profeta de quem são estas palavras recrimina
em outro lugar, dizendo:
|
"Também estes, por causa do vinho,
perderam o entendimento,
e por causa da embriaguez,
andaram sem rumo.
O sacerdote e o profeta perderam o juízo
por causa da embriaguez,
foram absorvidos pelo vinho.
Enganaram-se pela embriaguez,
não reconheceram o vidente,
ignoraram a justiça.
Todas as suas mesas se encheram
de vômito e de asquerosidade,
de modo que já não havia mais lugar".
|
|
E novamente, o mesmo profeta, falando na pessoa destes:
|
"Vinde, bebamos vinho,
enchamo-nos até à embriaguez e,
como hoje, assim faremos amanhã,
e ainda muito mais".
|
|
E se tais foram os profetas, os sacerdotes e os sábios do povo, que
são chamados pelo mesmo profeta de cães impudentíssimos, não
conhecendo a saciedade, como imaginais que terá sido o povo promíscuo
e ignorante? O Apóstolo Paulo, falando também dos gulosos, diz:
|
"Muitos,
de quem muitas vezes vos falei
e também agora falo com lágrimas,
procedem como inimigos da cruz de Cristo;
o fim deles é a perdição,
o deus deles é o ventre,
e fazem consistir a sua glória
na sua própria confusão,
comprazendo-se somente nas coisas terrenas".
|
|
A sétima via de Babilônia é a luxúria. Esta possui, de uma
parte, a imundície do pensamento, e de outra, a imundície da
ação. Esta é a última e a ínfima de todas as vias de
Babilônia. Para ela parecem confluir as imundícies de toda a cidade
e, todavia, por causa da correnteza de suas águas, não pode
saciar- se. Dizem, de fato, as Sagradas Escrituras, que
|
"Insaciável é a boca do útero".
|
|
Muitas outras coisas, irmãos caríssimos, poderiam ser ditas a
respeito de tudo isto, as quais, todavia, será necessário omitir.
Todo dia, ordinariamente, temos outras coisas para fazer, não tendo
à nossa disposição todo o tempo para escrever. As coisas que
superarem nossa possibilidade ser-vos-ão deixadas para serem
investigadas e recolhidas por vós.
E agora, caríssimos, tenhamos por horrendas e abomináveis as vias
de Babilônia, e detestemos suas habitações, isto é, todos os
delitos da vida mundana:
|
"Saiamos de Babilônia,
fujamos dos Caldeus,
voltemos a Jerusalém".
|
|
"Saiamos", abandonando nossa maldade; "fujamos", pelo
arrependimento; "voltemos", pelo bem viver. Na aversão ou descida
de Jerusalém a Babilônia produz-se em primeiro lugar a tentação;
em segundo, a deleitação; em terceiro, o consentimento; em
quarto, a obra; em quinto, o costume; em sexto, o desespero. Pela
tentação somos movidos; pela deleitação descemos, ou melhor,
caímos; pelo consentimento entramos pelas portas de Babilônia; pela
obra nela construímos uma habitação para nós; pelo costume somos
conduzidos à servidão; pelo desespero somos jogados no cárcere e
acorrentados pelos grilhões. No retorno, porém, de Babilônia
para Jerusalém, temos em primeiro lugar o anseio de Deus pelo
conhecimento do pecado; em segundo a compunção do coração; em
terceiro a confissão da boca; em quarto a satisfação da
penitência; em quinto o exercício da virtude; em sexto a exibição
da boa obra. E deve-se notar que se diz:
Melhor, de fato, vencemos certos pecados, principalmente os que nos
são doces, fugindo do que resistindo. De onde que o Apóstolo diz
da fornicação:
Isto também o declarou o mensageiro que veio até Heli, quando
disse:
|
"Eu sou o que venho da batalha,
e eu, o que fugi hoje do combate".
|
|
Melhor é, efetivamente, fugir e salvar a vida do que sucumbir na
guerra. Saiamos, pois, irmãos, e fujamos. Curto e fácil é o
caminho que vai de Jerusalém para Babilônia, e, ao contrário, e
admirável para ser dito, grande e difícil é o caminho que vai de
Babilônia para Jerusalém. Fácil é, na verdade, cair do bem
para o mal, da virtude para o vício, do espírito para a carne; mas
não ressurgimos de modo igualmente fácil das coisas inferiores para as
superiores, oprimidos pelo corpo que se corrompe e sufoca a alma.
|
"Fácil é descer o Averno.
Subí-lo, porém, novamente,
alcançar-lhe as alturas,
transpô-lo até os seus ventos mais elevados,
eis o trabalho,
eis a dificuldade".
|
|
Facil e rapidamente caímos pela culpa, porque o espírito e a carne
são vizinhos por uma grande fronteira; porém, depois que pecamos,
oprimidos pelo costume do pecado, é com dificuldade que nos levantamos
pela justiça. De onde que se diz corretamente que este retorno
espiritual é uma longa, árdua e difícil subida. Daqui também
procede o que nos diz o Salvador:
|
"Estreita é a porta,
e apertado é o caminho
que conduz à vida".
|
|
Se, pois, estamos no caminho do retorno pelo arrependimento, ou na
própria Jerusalém pela boa e perfeita consciência,
|
"guardemos o que temos,
para que ninguém nos tome
a nossa coroa".
|
|
Se, pois, "estamos de pé", acrescenta o Apóstolo, "vigiemos
para que não caiamos", suspeitando sempre das ciladas e das
incursões dos nossos inimigos, os quais, embora nos deportem e nos
oprimam, nos pedem que
|
"cantemos os cânticos de Sião".
|
|
Diz a sentença de Jeremias que
|
"Nossos perseguidores são mais velozes
do que as águias do céu,
perseguiram-nos sobre os montes
e armaram-nos ciladas no deserto".
|
|
Tornam-se águias do céu os prelados da Igreja, quando voam
sublimemente em direção aos bens celestes e contemplam os raios da
suprema claridade. Os montes designam a altitude da contemplação.
O deserto significa o segredo da vida espiritual. Mas os nossos
perseguidores são mais velozes do que as águias do céu, porque os
espíritos cruéis persistem em nos perseguir com maior fortaleza do que
freqüentemente nossos prelados em nos defender. E ainda que subamos
às alturas da suprema contemplação, ou nos apartemos para o segredo
de nossa vida interior, nem assim cessarão de nos perseguir e jamais
desistirão de nos espreitar. Portanto, caríssimos, é necessário
que caminhemos não apenas com fortaleza, como também com sabedoria;
contra a perseguição devemos ser fortes, contra as ciladas devemos
ser sábios. Se caminharmos forte e sabiamente, escaparemos do
inimigo e chegaremos a salvo em Sião, onde encontraremos a alegria
eterna em Cristo.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, Nosso
Senhor, que é, sobre todas as coisas, Deus, bendito por todos os
séculos.
Amén.
|
|