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Conforme teremos a oportunidade de examinar, a
idéia de que a legalização da prática do aborto seja algo
importante ou desejável não apenas foi inteiramente estranha
para a cultura da civilização moderna e para praticamente a
totalidade das pessoas que nela viviam até o fim do século
XIX, como inclusive era vista como anti natural senão mesmo
impensável. Na primeira metade do século XX, com exceção dos
países comunistas, ainda era vista deste modo não só para a
esmagadora maioria da população como também para a sua elite
dirigente. A idéia de que fosse desejável ou mesmo se devesse
legalizar a prática do aborto, entretanto, irrompeu
inesperadamente em forma de avalanche entre as elites e as
massas do primeiro mundo e de alguns países da Àsia na
segunda metade do século XX.
Este trabalho constatou que este fato esteve muito
longe de se tratar de um fenômeno de mudança espontânea de
mentalidade tanto por parte do povo como das elites
dirigentes, para o qual nenhuma explicação pudesse ser dada
senão a própria natureza mutável do ser humano. Entre os
fatores que atuaram para produzir uma mudança tão repentina e
culturalmente inclusive muito pouco natural constatou-se uma
igualmente repentina reelaboração do modo de se equacionar o
que veio a ser conhecido como o problema demográfico levada a
efeito no início da segunda metade do século XX por um
segmento bastante especializado da elite pensante da
civilização ocidental.
A primeira vez na história em que o problema
demográfico foi ostensivamente colocado como uma das graves
questões a que a humanidade teria que encontrar resposta foi
por ocasião da publicação de um trabalho de Malthus no final
dos anos 1700. O modo de se equacionar o que seria o problema
demográfico, porém, mudou muitas vezes ao longo do tempo até
que no início da segunda metade do século XX irrompeu nos
meios especializados de um modo inteiramente inesperado e
segundo uma concepção até então desconhecida. Neste trabalho
não temos intenção de especular sobre a realidade deste
problema ou sobre o acerto das concepções que tratam a seu
respeito. Mas constatando que as concepções e as
controvérsias que os homens tiveram a este respeito tiveram
decisiva influência no modo de se considerar a problemática
do aborto, procuramos mostrar o modo com que se produziu a
concepção do problema demográfico que surgiu entre os
especialistas no início da segunda metade do século XX e
relacioná-lo com esta mesma problemática.
As origens remotas da preocupações demográficas da
civilização ocidental podem ser colocadas nas decisões do
Concílio de Trento, que teve lugar entre 1545 e 1563. O
Concílio deixou regras explícitas sobre a maneira de
registrar batismos, casamentos e enterros nas paróquias da
Igreja Católica. Estas disposições iriam fornecer o material
sobre o qual, mais tarde, os homens iniciariam suas
especulações sobre as questões populacionais.
Apesar das disposições do Concílio de Trento,
entretanto, consta que os registros sobre população mais
completos que houve na Europa antes do século dezenove são
provenientes dos países escandinavos, de tradição fortemente
luterana. Em 1748 uma lei sueca estipulou que o pastor de
cada paróquia deveria compilar todos os anos registros em que
constassem constar com detalhes dados relativos a
nascimentos, celebrações e dissoluções de casamentos, morte
por idade, sexo e causa, e o número de pessoas que morassem
em cada casa. Os registros paroquiais suecos formaram assim a
base de um registro nacional que deu origem à mais longa
série de registros demográficos do mundo moderno.
Por volta desta mesma época começaram as contagens
de população que são conhecidas atualmente pelo nome de
censos. Em 1666 foi contada a população do Canadá. Em 1690
foram contadas as casas da Inglaterra e do País de Gales.
Outro censo foi levado a efeito na Irlanda em 1703. Nos
Estados Unidos a Constituição estipulou que uma contagem
populacional deveria ser realizada dentro de três anos a
partir da primeira sessão do Congresso e em seguida de 10 em
10 anos; o primeiro censo se deu efetivamente em 1790. A
Inglaterra e o País de Gales iniciaram os censos regulares de
10 em 10 anos a partir de 1801.
O espalhamento do hábito de contagens regulares de
população foi acompanhado por um aumento de atenção para com
sistemas mais adequados de registros vitais. Um sistema
nacional de registros civis começou na Inglaterra e no País
de Gales em 1837 e em 1874 foi introduzida a obrigatoriedade
do registro dos principais acontecimentos da vida.
Com o aperfeiçoamento gradual da qualidade dos
dados fundamentais surgiu um crescente interesse pelo estudo
das questões populacionais. Em 1741 o pastor luterano Johann
Sussmilch publicou uma coleção e análise de estatísticas de
1000 paróquias de Brandenberg e diversas outras cidades da
Prússia, descobrindo que o número de batismos era maior do
que o número de enterros, concluindo daí a existência de um
aumento populacional. Estes estudos estatísticos das relações
entre nascimentos e mortes e de suas implicações sociais
ficaram sendo conhecidos como Aritmética Política. Elas eram,
entretanto, freqüentemente acompanhadas de diversas
especulações que deram origem, posteriormente, à economia
política. O trabalho de Sussmilch, por exemplo, além de
concluir a respeito da existência de uma tendência ao aumento
da população, era acompanhado de especulações sobre a taxa
máxima possível de crescimento e as relações entre esta taxa
e os recursos disponíveis.
Estudos como o de Sussmilch acabaram convergindo
para o famoso trabalho de Malthus intitulado "Ensaio sobre
os Princípios da População", publicado pela primeira vez em
1798. Este trabalho foi a origem da uma mudança radical no
modo com que se consideravam as questões populacionais até
aquela época. Até a publicação do Ensaio de Malthus as
questões populacionais não eram vistas como se constituindo
num problema, ou pelo menos não como um problema cuja
natureza proviesse da existência de um excesso de população.
Os estudos baseados nas estatísticas que começaram a estar
disponíveis para exame a partir da época compreendida entre
1600 e 1800, e que culminaram na obra de Malthus, esboçaram
conclusões bastante contrárias à maneira com que se
consideravam as questões demográficas neste mesmo período.
Quando Malthus publicou o livro dos Ensaios sobre os
Princípios da População, ele tinha consciência clara de
estar se opondo mais especificamente a dois modos de
pensamento que havia na época a respeito destas questões. O
primeiro derivava da prática política e econômica de seu
tempo, que era o Mercantilismo. O segundo provinha da
corrente filosófica denominada de Utopia Revolucionária,
tributária de uma outra corrente mais geral que dominava o
pensamento filosófico da época conhecida como Iluminismo.
Antes de examinar o trabalho de Malthus, pois, temos que
falar alguma coisa a respeito destas duas correntes que
formavam as concepções pré malthusianas dos problemas
populacionais.
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