CAPÍTULO 16

O Espírito Santo, porém, não cuidou apenas das coisas que foram escritas até o advento de Cristo mas, como um só e mesmo Espírito procedente de um só Deus, fêz também o mesmo nos evangelistas e apóstolos. Também aquelas narrações que inspirou por meio destes foram tecidas pela arte de sua sabedoria que expusemos acima.

Também nelas misturou coisas nada pequenas pelas quais, interpolada ou interrompida pela sua impossibilidade a ordem histórica da narrativa, dobrasse e chamasse a intenção do leitor ao exame da inteligência interior.

Mas, para que o que dizemos seja conhecido pelos próprias coisas, consultemos as próprias passagens das Escrituras.

A quem, pergunto, que tenha senso, parecerá ser dito coerentemente que o primeiro, o segundo e o terceiro dia, nos quais se nomeiam tardes e manhãs, foram sem Sol, sem Lua e sem estrelas, e o primeiro dia sem céu?

Quem será encontrado tão idiota que julgue que Deus, como um homem qualquer do campo, tenha plantado árvores no paraíso, no Éden voltadas para o Oriente, e nele tenha plantado a árvore da vida, isto é, uma árvore visível e palpável, e de tal maneira que alguém comendo desta árvore com seus dentes corporais alcançasse a vida e, comendo de outra árvore, obtivesse a ciência do bem e do mal?

Quando se diz que Deus caminhava no paraíso após o meio dia, e que Adão se escondia debaixo da árvore, não tenho dúvida de que com isto a Escritura profere uma expressão figurativa, na qual se indicam certos mistérios.

Caim, tendo-se retirado da face de Deus (Gen. 4, 16) manifestamente induz o leitor prudente a que se pergunte o que é a face de Deus, e como alguém poderá retirar-se dela.

Para não ampliar a obra que temos em mãos mais do que o justo, será muito fácil, para quem o quiser, reunir das santas escrituras muitas coisas que, apesar de terem sido escritas como fatos, não podem ser cridas competente e razoavelmente que se tenham realizado segundo a história.

Este modo de escrever pode ser encontrado abundante e copiosamente também nos livros evangélicos, quando se diz, por exemplo, que o demônio transportou Jesus para um elevado monte (Mt. 4, 8) para que dali lhe mostrasse todos os reinos do mundo e a sua glória. Como parecerá que tenha se podido fazer com que Jesus tivesse sido conduzido pelo demônio a um alto monte, ou também que se lhe tivesse sido mostrado aos seus olhos carnais, junto a um só monte, todos os reinos do mundo, isto é, o reino dos Persas, dos Scítios e dos Índios, ou também como os seus reis são glorificados pelos homens? Muitíssimas outras coisas semelhantes a estas encontrará no Evangelho quem o ler mais atentamente, e poderá notar que nestas narrativas que parecem enunciadas segundo a letra, há inseridas e simultaneamente tecidas coisas que a história não recebe, mas que, todavia, possuem uma inteligência espiritual.