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"Qual é o bem de Deus,
e qual a sua beleza,
senão o trigo dos eleitos
e o vinho que gera virgens?"
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Estas coisas que o profeta nos diz devem ser consideradas não apenas
pela qualidade da palavra como também pela pessoa de quem fala. Em
outras palavras, no discurso de uma criança não devemos buscar senão
um entendimento pueril congruente com uma tal idade; mas nas palavras
de um sábio será necessário investigar algo de maior inteligência,
assim como buscamos, nas palavras dos anciãos, a gravidade dos
costumes. Deste modo, devemos crer que nas palavras que mencionamos
esteja contido algo de profundo, por causa da pessoa de quem fala,
isto é, Zacarias, entre os profetas não o menor, ao qual foram
revelados muitos e profundos arcanos dos segredos celestes, a quem foi
concedido, entre muitas outras coisas, ver sete olhos em uma pedra
única:
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"Eis a pedra que eu puz",
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diz, de fato, o Senhor por meio de Zacarias;
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"sobre esta pedra única
estão sete olhos;
eis que eu mesmo
a lavrarei com o cinzel,
diz o Senhor dos exércitos,
e eu num dia tirarei
a iniqüidade desta terra".
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Esta pedra única é Cristo, que é uma pedra preciosa, uma pedra
angular, e os sete olhos são os sete dons do Espírito Santo.
Por que, porém, demorar-se em recomendações para mostrar que algo
profundo está contido nas palavras acima, se é o próprio Espírito
Santo que falou em Zacarias? É isto, de fato, o que nos diz o
Apóstolo:
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"Deus falou outrora muitas vezes
e de muitos modos
a nossos pais pelos profetas".
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E também o Senhor, no Evangelho:
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"Não sereis vós a falar,
mas o Espírito de vosso Pai
é que falará em vós".
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Diz, portanto, o Espírito Santo por meio de Zacarias:
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"Qual é o bem de Deus,
e qual a sua beleza,
senão o trigo dos eleitos
e o vinho que gera virgens?"
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O trigo e o vinho não devem ser entendidos corporalmente, mas
espiritualmente. Pelo nome de trigo e de vinho entende-se a palavra
de Deus, e com muita propriedade. De fato, na comida e na bebida
temos uma refeição completa. No gênero da comida nada é mais útil
do que o pão, de onde que toda mesa que carece de pão é pobre. O
pão de trigo, porém, entre todos é o melhor. E, entre as bebidas
e os licores, o vinho é o mais eminente. Para que, portanto,
entendamos que pela palavra de Deus temos em nossa mente uma refeição
plena, está escrito "trigo e vinho", cuja fome é tanto mais
perigosa quanto melhor é a sua refeição:
diz a Escritura,
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"fome à terra, não de pão",
- nem de vinho -,
"mas de ouvir a palavra de Deus".
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Dizemos que este trigo é de Deus e é do homem. É de Deus,
porém, na medida em que Ele o dá; e é do homem, na medida em que
ele o recebe. É bem de Deus, porque foi dado por Deus; é bem
também do homem, porque é útil ao homem.
O que significa, porém, dizer que é "dos eleitos", como se não
fosse também dos réprobos? Porventura os maus, assim como os bons,
não ouvem, não lêem e não entendem também a palavra de Deus,
não explicam e replicam as Escrituras? Sim, é correto, assim
também o fazem. Mas não o fazem de modo semelhante. Os maus as
lêem para poderem ornamentar a sua linguagem, não para poderem compor
as suas vidas; buscam a sabedoria não por causa da sabedoria, mas
para prostituí-la por algum interesse, pelo louvor do homem ou pelo
dinheiro. Deste modo, como indignos da sabedoria, não a encontram
nem mesmo na própria verdade. Podem arranhar a casca externa de nosso
trigo, mas não alcançam a sua medula para se saciarem com o seu
miolo. Tampouco são conduzidos à própria verdade para que a
abracem, para que vejam
Não a vêem porque não a saboreiam, e não a saboreiam porque, não
estando livres de cuidados, não a buscam por si mesma. A sabedoria,
de fato,
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"não se encontra na terra
dos que vivem em suavidades,
e o mar diz que não está consigo",
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porque as mentes dos que se envolvem com os cuidados da concupiscência
não podem compreender a verdadeira sabedoria. Por isto mesmo nos
acrescenta ainda a própria sabedoria:
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"Os maus me buscarão
e não me encontrarão".
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Não me encontrarão, de fato, por estarem buscando o mal.
Corretamente, portanto, a palavra de Deus é o "trigo dos
eleitos". Somente estes se saciam do miolo do trigo e somente estes
se deliciam com a sua doçura. Somente estes, ainda, contemplam,
saboreiam e vêem
Somente estes anelam pela sua doçura, ao dizer:
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"Os meus olhos desfalecem em tua palavra,
dizendo:
`Quando me consolarás?'
Tornei-me como um odre
no meio do vinho,
não me esqueço das tuas justificações".
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Os olhos interiores do homem são a inteligência. Estes olhos tornam
o homem alheio ao mundo elevando-o a si mesmo acima de si próprio. É
assim que desfalecem, fazendo desfalecer o homem de si próprio segundo
aquilo que ele era. Neste desfalecimento que ocorre "na palavra de
Deus" o homem se torna como
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"um odre no meio do vinho".
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O odre, de fato, é feito da pele do animal morto, pelo que designa
a nossa natureza mortal, fria como um odre. O homem se torna "como
um odre no meio do vinho" quando, avidamente aplicado ao pasto da
palavra de Deus, mortifica de tal modo os vícios da carne e os
crucifica pelos cravos dos preceitos divinos que já não sente o fogo
da concupiscência carnal.
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