|
|
"Teme a Deus,
e observa os seus mandamentos,
este é todo o homem".
|
|
Caríssimos, nas divinas Escrituras encontramos muitas e excelentes
autoridades sobre o temor do Senhor. Está escrito, de fato:
|
"Bem aventurado o homem
que teme o Senhor".
|
|
|
"O princípio da sabedoria
é o temor do Senhor".
|
|
|
"Quem não possui este temor
não pode ser justo".
|
|
|
"Como é grande aquele que encontra
a sabedoria e a ciência!
Porém nenhum destes ultrapassa
aquele que teme o Senhor".
|
|
Chama-se sabedoria a cogitação das coisas celestes e divinas;
chama-se ciência, o das terrenas e humanas. Quando alguém encontra
uma ou outra destas coisas, é a Escritura quem nos diz deste homem
que ele é grande.
Consideremos, pois, o homem que encontra a ciência. Quando,
subindo das menores às maiores, encontramos alguém perito em
lógica, chamamo-lo de grande. Certamente se encontrássemos alguém
douto em gramática como Prisciano, em dialética como Aristóteles e
em retórica como Túlio, diríamos dele:
Se soubéssemos ser ele também douto em mecânica, diríamos
semelhantemente:
Se o víssemos igualmente erudito em aritmética, música, geometria
e astronomia como Boécio, ou como outros inventores ou transmissores
das artes, muito mais ainda clamaríamos:
Se, ademais, soubéssemos que ele também fosse sábio em ciência
natural como Hipócrates ou Galeno, e avançado na teórica secular
como Platão e Sócrates, clamaríamos inteiramente:
E se, além de tudo isto, também víssemos este homem douto na
ciência secular, peritíssimo pela sabedoria das divinas Escrituras,
conhecedor como São Jerônimo do Velho e do Novo Testamento pela
história, pela alegoria, pela tropologia e pela anagogia, eloqüente
no raciocínio como Santo Agostinho e na moralidade como São
Gregório e sábio, enfim, como Salomão, de todos os modos
proclamaríamos:
Todavia, irmãos, este homem não seria maior do que aquele que teme
ao Senhor. Grande é o homem que encontra a sabedoria e a ciência,
mas ele não está acima do homem que teme ao Senhor.
Entendemos por sabedoria aquele conhecimento que torna não só o homem
douto como também justo, e do qual está escrito:
|
"Bem aventurado o homem
que encontra a sabedoria".
|
|
Bem aventurado, de fato, o homem que encontra a sabedoria não apenas
pelo conhecimento, mas também pelo sabor da justiça, porque com tal
achado principia a saborear o bem interior. Mas se este que tivesse
encontrado a sabedoria fosse também belo como Absalão, forte como
Sansão, veloz como Asael, bom como Alexandre, rico como Creso,
poderoso como Otávio Augusto, longevo como Henoc, nenhuma destas
coisas ou mesmo todas elas juntas para nada lhe aproveitariam se ele
não temesse a Deus. Da beleza, de fato, está escrito:
|
"Falaz é a graça,
e vã a beleza;
a mulher que teme a Deus,
esta será louvada".
|
|
Quanto à sabedoria, à fortaleza e às riquezas, o Senhor, por
meio do profeta Jeremias, diz delas tais palavras:
|
"Não se glorie o sábio em sua sabedoria,
não se glorie o forte em sua fortaleza,
e não se glorie o rico em suas riquezas;
mas nisto se glorie quem se gloria,
em saber e conhecer a mim,
pois eu sou o Senhor que faço a misericórdia,
o julgamento, e a justiça na terra.
Estas coisas me agradam, diz o Senhor".
|
|
De muitas passagens das Escrituras depreendemos, de fato, o quão
inúteis e passageiras são todas as coisas que podem ser vistas no
mundo presente. Somente o homem que teme a Deus se apressa para a bem
aventurança se, todavia, o teme de tal modo que se afaste do mal e
faça o bem.
Há dois temores, o primeiro dos quais é o servil e o segundo o
filial. O servil é o dos servos e o filial é o dos filhos. O
servil possui medo, o filial possui amor. O servil procede do pecado
perpetrado, o filial do dom recebido. O servil procede do tormento a
ser sustentado, o filial do prêmio a ser recebido. O servil pertence
aos principiantes, o filial aos perfeitos.
Há também oito coisas pelas quais somos incentivados e formados no
temor de Deus. Pelas três primeiras somo-lo ao temor servil, pelas
três últimas ao temor filial, pelas duas intermediárias a ambos.
São estas a culpa, a sentença, a pena, a criatura, a Escritura,
a natureza, a graça e a glória. Pela culpa, pela sentença e pela
pena somos conduzidos ao temor servil. Pela natureza, pela graça e
pela glória ao temor filial. Pela criatura e pela Escritura a
ambos. O temor servil possui medo da pena. O temor filial possui
amor da justiça. O servil às vezes passa rapidamente; o filial,
que é dito santo, permanece pelos séculos dos séculos.
Pela culpa somos conduzidos ao temor servil mediante a consideração
da sentença divina; pela sentença somos conduzidos ao temor mediante
a consideração da pena que se lhe há de seguir. Quando tememos ser
punidos pela pena, tememos também ser julgados pela sentença; e
quando tememos ser julgados pela sentença, somos tomados de horror
pela culpa que é a causa destes males. Nos condenados, de fato, o
peso da sentença e a miséria da pena que se lhe há de seguir serão
conforme a magnitude da culpa. Deste modo
|
"Um abismo chama outro abismo,
no fragor de tuas cataratas,
ó Senhor".
|
|
O abismo da culpa chama o abismo da sentença, e o abismo da sentença
chama o abismo da pena. E isto,
|
"no fragor de tuas cataratas,
ó Senhor",
|
|
isto é, no testemunho dos teus pregadores. Quão profundos, quão
largos, quão horrendos são estes abismos! Sua profundidade é
constituída pela sua grandeza, sua largura é constituída pela sua
multidão, e o seu horror é constituído pela contemplação de
ambos. Tememos a pena por causa de si própria, mas quão poucos são
os que pousam os seus olhos na contemplação do temor, e quão grande
é a multidão dos que os dirigem aos espetáculos da vaidade! Dos
primeiros está escrito:
|
"O coração dos sábios está
onde se encontra a tristeza".
|
|
Quanto aos segundos, porém, está também escrito:
|
"o coração dos insensatos,
onde se encontra a alegria".
|
|
Pelas três últimas, a natureza, a graça e a glória, formamo-
nos no temor filial. O temor filial consiste em não querer ofender a
quem amamos por causa da glória, assim como o temor servil consiste em
não ousar ofender, por causa da pena, àquele a quem se teme.
Somos chamados ao temor filial pela natureza quando consideramos a
dignidade de nossa natureza e, com grande amor, tememos ofender a
Deus pela culpa, a Ele que dignou-se por amor imprimir em nós sua
imagem e semelhança. Grande é a honra, grande é a dignidade da
condição humana em cuja natureza foi posta a forma da divindade
criadora.
A este mesmo temor filial somos também conduzidos pela consideração
da graça quando, ponderando o que a nós, homens ímpios e sem
mérito, é concedido pela graça, recusamo- nos a provocar a ira
divina pelo pecado.
Mas também somos conduzidos a este temor pela glória futura que em
nós será revelada quando, ouvindo o que nos é prometido,
|
"o que o olho não viu,
nem o ouvido ouviu,
nem entrou no coração do homem",
|
|
já tememos, por um imenso amor, ofender a quem tanto nos quis
prometer e pode dar.
Pelas duas intermediárias, a criatura e a Escritura, somos algumas
vezes conduzidos a ambos os temores.
Pela criatura somos conduzidos ao temor servil quando, considerando a
sua magnitude, tememos a majestade imensa do Criador. Não ignoramos
que o Onipotente possa aplicar uma pena se nos encontrar transgressores
de sua lei. Ao mesmo temor servil somos também conduzidos pela
Escritura quando, nela freqüentemente ouvindo as advertências
divinas, tememos transgredir os preceitos de Deus.
Alcançamos o temor filial pela criatura quando, contemplando a
grandeza da construção deste mundo, julgamos quão admirável,
louvável e amável seja o seu Criador, digno de ser temido por amor.
Pela Escritura também alcançamos este casto temor quando, lendo
nela as divinas promessas que transcendem todo o mérito humano,
tememos ofender ao que as promete.
Há, pois, oito coisas pelas quais subimos ao temor de Deus.
Iniciando pelas menores e finalizando pelas maiores, são elas a
culpa, a sentença, a pena, a criatura, a Escritura, a natureza,
a graça e a glória.
Temamos a Deus, caríssimos, cada qual segundo aquilo que vir em si
mesmo. Se estivermos no mal, corrijamos o erro; se estivermos no
bem, melhoremos o que já tivermos iniciado e observemos os seus
mandamentos. Quais são estes mandamentos?
|
"O amor de Deus e do próximo".
|
|
Quanto devemos amar a Deus?
Quanto devemos amar ao próximo?
|
"Como a nós mesmos,
pelo benefício, pela palavra,
pelo voto".
|
|
O benefício consiste na boa obra, a palavra no são conselho, o voto
no piedoso desejo.
Temamos, portanto, a Deus, e observemos os seus mandamentos. Por
meio destes caminha-se para a glória, sem estes caminha-se para a
pena. Este é, diz o Eclesiastes,
Se todo o homem é quem teme a Deus e observa os seus mandamentos,
consta não ser homem aquele que não o faz.
Se, de fato, há quem conheça a Deus e conheça os seus
mandamentos, mas não o teme nem os observa, este é um desprezador,
e mais deverá ser dito demônio do que homem. Se, porém, ele não
conhece a Deus e não conhece os seus mandamentos, é um cego, e mais
deverá ser dito animal do que homem. Se, entretanto, conhece e teme
a Deus e guarda os seus mandamentos, será verdadeiramente homem,
digno de ser chamado por tal nome.
Temamos, portanto, irmãos caríssimos, o Senhor, e observemos os
seus mandamentos. Esta é a via pela qual se alcança a pátria
suprema. E que para tanto venha em nosso auxílio Jesus Cristo,
nosso Senhor, o qual vive e reina.
|
|