SEGUNDA PARTE


CAPÍTULO VII

Havia desejado o santo abade permanecer toda a sua vida naquele lugarejo desconhecido dos homens; mas o Senhor o trouxe à luz para que repartisse ao mundo os tesouros e as graças que em sua cela havia alcançado. Foi necessário que dela saísse para reconciliar com a Igreja Romana os cismáticos, para convencer publicamente os hereges e para promover o bem e estabelecer a paz entre os católicos.

Levantou-se no tempo de São Bernardo, depois da morte de Honório, Sumo Pontífice, um perigoso cisma na Igreja porque um romano ilustre, chamado Pierleone, tomou com má fé o nome de Anacleto e usurpou a cadeira de São Pedro, opondo-se ao verdadeiro Pontífice, Inocêncio, o segundo deste nome. Houve grande escândalo e uma divisão muito perigosa na cristandade, porque no início não era possível distingüir-se tão facilmente qual dos dois deveria ser tido como legítimo sucessor de São Pedro e vigário geral do Senhor. Celebravam- se em várias partes sínodos nacionais sobre este artigo, e especialmente na França foi convocado um concilio na cidade de Etampes. E para poder, com maior luz e assistência do Espirito Santo, decidir uma dificuldade tão grande, pareceu bem ao rei de França e aos demais principais prelados que antes de tudo se chamasse ao Concílio o abade de Claraval, pelo grande conceito que todos tinham de sua sabedoria e santidade. Chamaram-no e o santo abade, obrigado pela obediência aos seus prelados e pela importância do assunto, veio cheio de tremor e temor, considerando a gravidade e o perigo do que haveria de ser tratado, embora tivesse tido grande consolação no caminho e ficado muito animado com uma visão e revelação do Senhor. Chegando ao local do Concílio, foi recebido como a um anjo do céu e, na primeira sessão, por consentimento e unanimidade gerais, determinou-se que fosse posta aquela controvérsia nas mãos de São Bernardo para que a determinasse e todos seguissem o seu parecer, coisa grandíssima e grande argumento da estima que todos tinham do espirito do Senhor que habitava e falava nele, ainda que ele próprio procurasse desculpar-se com sua modéstia, por parecer-lhe carga intolerável e além de suas forças. Finalmente, vencido pelos pedidos e pela autoridade daquela sagrada congregação, o aceitou, confiado tanto em Deus quanto desconfiado de si. E depois de haver invocado o favor do céu e feito todas as diligências para acertar, declarou Inocêncio como o sumo e verdadeiro Papa e pastor da Igreja, sem que houvesse em todo aquele concílio uma única pessoa que o contradissesse ou se opusesse a tal declaração; e com isto foi Inocêncio obedecido no reino de França. E porque o rei Henrique da Inglaterra se mostrava duro e de parecer contrário, o glorioso abade foi até ele, persuadindo-o a que se conformasse com o que se havia determinado na França, tomando sobre a sua consciência qualquer culpa que em fazê-lo pudesse haver, e o rei o fêz, e para honrar mais ao Pontífice veio à França, onde havia chegado como que fugindo da Itália. Inocêncio, o qual com grande alegria de todos o recebeu em Chartres e lhe deu a sua bênção apostólica.

Mas, porque na província de Gasgonha ainda durava o cisma pela ambição de Gerardo, bispo de Anguleme, o qual, favorecido por Guilherme, conde e príncipe poderoso, fazia grandes desaforos, o santo abade foi enviado pelo Papa para trazer o conde à razão e refrear a tirania do mau bispo. Foi São Bernardo à Gasgonha, falou ao conde Guilherme e procurou reconduzi-lo à obediência do verdadeiro pastor, o mesmo fazendo-o alguns bispos e pessoas religiosas; mas, ainda que ele se tivesse aproximado, nunca quis se conformar com que voltassem para suas igrejas os bispos que com tanta violência haviam sido afastados delas. Vendo o santo a obstinação do conde e que os meios humanos para nada adiantavam, recorrei aos divinos e fêz o que aqui direi. Foi à igreja, celebrou missa, tomou o santíssimo sacramento nas mãos sobre uma patena e saiu para onde estava o conde, o qual, por estar excomungado, não podia entrar na igreja e estava junto à porta, do lado de fora. Com o rosto inflamado, lançando chamas, com os olhos faiscando e uma voz terrível e espantosa, falou- lhe desta maneira:

"Nós te rogamos, e tu nos tens desprezado; todos estes servos de Deus te suplicaram, e tu não fizeste caso deles. Eis aqui o filho da Virgem, Cabeça e Senhor da Igreja que tu persegues, que vem à tua presença. Eis o teu juiz, para cujas mãos há de retornar a tua alma. Veremos se fazes caso dEle, se lhe voltas as costas, como o fizeste conosco".

Diante destas palavras tremeu o conde. Caíu ao chão, tornou a levantar-se. Voltou a cair de novo sem poder falar, soltando saliva e espumando pela boca, espantado e atônito. Finalmente, fêz tudo o que o santo mandou, e dispensou depois tão estreita amizade com ele, que com seus santos conselhos e doces palavras modificou-se de tal maneira que, deixando o Estado, retirou-se, fez penitência muito rigorosa e fêz-se santo, disto fazendo menção o Martirológio Romano no dia 11 de fevereiro. Quanto ao bispo Gerardo, este ficou obstinado em sua malícia, tendo sido encontrado pouco depois, pela manhã, morto em sua cama, sem confissão nem viático.

Depois disto, persuadiu São Bernardo ao Imperador Lotário, que na cidade de Lièje havia se encontrado com o Papa, que deixasse uma vã e ambiciosa pretensão que tinha de recobrar a investidura dos bispados que havia sido retirada ao Imperador Henrique, seu predecessor. Voltou o Papa à Itália, tendo resolvido os assuntos de França e celebrado um concilio em Reims, e quis passar pela Borgonha para visitar Claraval e ser hóspede do santo abade naquele mosteiro, onde viviam seus monges mais como anjos do céu que como homens vestidos com um saco de carne. Ali teve o Sumo Pontífice grande consolação pelo que viu. Saíram os monges em procissão, não com evangelhos dourados nem com cruz de prata, que não havia, mas com cruz de madeira e pobres ornamentos; com tanta devoção, porém, e tanta modéstia, que o Papa, os cardeais e os bispos não puderam conter as lágrimas. O Papa comeu no refeitório, e toda a comida consistiu em alface e legumes, e como grande regalo houve um pouco de suco de frutas, e para o Papa um peixe que com só muita dificuldade se pôde achar.

Na Itália as coisas estavam ainda tumultuadas, e para acalmá-las convocou o Pontífice outro concílio na cidade de Pisa, no qual, entre outras coisas, Anacleto foi declarado excomungado, assistindo sempre São Bernardo a todos os assuntos que ali se tratavam, não somente como ajudante e participante, como também, de certo modo, na qualidade de árbitro e ministro principal do Papa. Concluído este, foi o servo do Senhor à cidade de Milão, que estava separada do verdadeiro Sumo Pontífice, unindo-a sob a sua obediência.

Foram com o santo para Milão dois cardeais legados `a latere': Guido, bispo de Pisa, e Mateus, bispo albanês e, por vontade de São Bernardo, também Gofredo, bispo carnotense, grande amigo seu e homem de grande prudência e autoridade. Quando estavam a sete milhas de Milão saíu toda a cidade para recebê-los, eclesiásticos e seculares, ricos e pobres, cavaleiros e oficiais e, sem repararem nos cardeais que vinham com ele, lançavam-se aos seus pés, beijando-os e considerando ser grande felicidade poderem vê-lo, ouvi-lo, falar-lhe e cortar-lhe de seu pobre hábito pedaços de pano como relíquias, com as quais curavam-se muitos enfermos; e por mais que o santo repreendesse ao povo pela honra que lhe faziam e o exortava a honrarem e reverenciarem àqueles prelados que, por serem cardeais da santa Igreja Romana e legados do Vigário de Cristo, eram dignos de toda veneração, não houve remédio e assim, com este aplauso e regozijo e multidão de gente, entrou em Milão. Dali voltou à Claraval guiado sempre pela mão do Senhor,com extraordinário regozijo de todos os seus filhos e satisfação de sua alma; porque pensava que se haviam acabado os trabalhos daqueles assuntos complicados e distrações, e que podia naquele lugar repousar e cuidar de seu aproveitamento com maior sossego. Mas não sucedeu conforme pensava, porque o Papa, achando-se ainda cercado de trabalhos por toda a parte e pressionado por Rogério, rei da Sicília, o qual favorecia o anti- papa, ordenou-lhe que se dirigisse de novo a Roma, porque não encontrava quem melhor o pudesse ajudar do que São Bernardo, como a experiência o havia ensinado. Obedeceu o grande servo do Senhor como verdadeiro filho da obediência. Foi Roma, e dali a encontrar-se com o rei, e conduziu a muitos para a obediência de Inocêncio, inclusive ao próprio Pedro de Pisa, famoso jurista que representava os interesses de Anacleto, convencendo também o rei Rogério tão manifestamente que ele não podia mais alegar ignorância. Este, porém, cego pela paixão e cobiçando os bens da Igreja que havia usurpado, não quis fazer demonstração pública, como São Bernardo o aconselhava. Mas, pelas orações do santo abade, Deus deteve o cisma e os males que dele resultavam com a morte do falso pontífice Anacleto, o qual, assaltado por uma pestilenta enfermidade que durou três dias, impenitente, passou desta vida para dar conta na outra ao eterno juiz dos danos que com sua ambição e tirania havia causado à Igreja. Logo que morreu Anacleto os de seu partido elegeram-lhe outro sucessor; mas este, com menor conselho, se dirigiu à noite até São Bernardo e, largadas as insígnias de sumo pontífice que havia tomado, conduzindo consigo o próprio santo, lançou-se aos pés do verdadeiro pontífice Inocêncio, pelo qual foi benignamente recebido. E com isto se acabou aquele cisma tão longo e tão lastimoso, dando todos, depois do Senhor, a honra e o louvor deste final tão desejado ao santo abade que, havendo gastado sete anos nesta empreitada, pôde concluí-la com o favor do céu.