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Tudo isto fica mais claro quando vemos a descrição que Jacó Burckhardt faz do
humanista da Renascença. Não é possível que fosse isto o que Quintiliano entendia
como sendo o homem bom que ele desejava formar.
Conforme vimos, J. Burckhardt diz que a educação das cortes ficou totalmente a cargo
dos humanistas, em boa parte porque eles encontraram as cortes como um lugar natural
para eles. Mesmo os mais insignificantes déspotas da Romanha, diz Burckhardt, não
podiam dispensar um ou dois homens de letras em suas cortes.
Por que? Porque além da educação dos príncipes, continua Burckhardt, havia dois
motivos para a presença dos humanistas nas cortes, a correspondência do Estado, isto
é, todo o trabalho de secretariado dos negócios do déspota renascentista, e os
discursos em ocasiões públicas e solenes. Não apenas o secretariado exigia um
latinista competente, mas inversamente, apenas o humanista, naquela época, tinha a
competência, o conhecimento e a habilidade necessárias para ser o secretário do
déspota. Desta maneira, os maiores homens no campo dos estudos durante os anos
1400 devotaram grande parte de suas vidas no serviço do Estado.
Par o déspota, a posição social do humanista era completamente indiferente. O que se
desejava era o mais pleno talento humanista cultivado. Apesar disso, porém, continua
Burckhardt, os humanistas não formavam uma classe, tinham um sentido mínimo de
seus interesses comuns, e não tinham o mínimo respeito entre eles próprios.
Todos os meios possíveis eram cogitados para se derrubarem uns aos outros. Das
discussões literárias eles passavam com uma estonteante rapidez para os piores
vitupérios. Não satisfeitos em refutar, eles passavam a anular o oponente. O resultado
é que, na prática, a vida do humanista se tornava uma guerra contínua.
A carreira do humanista era, ademais, de regra, de tal tipo que apenas os
temperamentos mais fortes poderiam passar por ela.
O primeiro perigo vinha, em alguns casos, dos próprios pais, que desejavam
transformar uma criança precoce em um milagre de erudição, tendo em vista sua futura
posição em uma classe que então estava chegando ao auge. O jovem humanista era
então mergulhado em uma vida de excitamentos e de vicissitudes, na qual se sucediam
estudos exaustivos, tutorados, secretariados, professorados, ofícios diversos em casas
de príncipes, inimizades mortais e perigos, luxúria e mendigagem, admirações
ilimitadas assim como desprezos ilimitados confusamente seguidos uns aos outros, nos
quais a cultura mais sólida era freqüentemente posta de lado por uma superficial falta
de pudor.
Mas o pior de tudo era que a posição do humanista era quase incompatível com uma
residência fixa, ou porque ele próprio era obrigado a fazer freqüentes mudanças de
residência para poder sobreviver, ou porque o seu próprio temperamento se alterava
com o tempo de tal forma que não conseguia mais viver feliz em um mesmo lugar
durante muito tempo. Ele simplesmente se cansava das pessoas e não podia mais ter
paz entre as inimizades que ele próprio criava e cultivava, enquanto que as pessoas,
por seu lado, estavam a exigir dele sempre alguma coisa nova. Acrescente-se a isto o
efeito mortal de uma vida de excessiva licenciosidade, tão geral que, ainda que o
humanista se comportasse de um modo diferente, sempre era o pior que se pensava
dele, e uma total indiferença quanto às leis morais tais como reconhecidas pelos
outros.
Homens assim dificilmente poderiam ser concebidos sem um orgulho desordenado. Na
verdade, eles necessitavam deste orgulho ainda que fosse apenas para manterem suas
cabeças acima do nível da água, e eram confirmados nele pela admiração que,
alternada com o ódio, havia no tratamento que recebiam do mundo que os rodeava.
Eles foram os mais marcantes exemplos e vítimas de uma desenfreada subjetividade.
O historiador Geraldo, contemporâneo dos humanistas, continua Burckhardt, levantou
contra eles uma série de graves acusações. Entre elas estão a cólera, a vaidade, a
obstinação, a auto adoração, a vida privada dissoluta, imoralidades de todos os tipos,
heresia, ateísmo, o hábito de falar sem convicção, influências sinistras nos governos,
ausência de gratidão para com os mestres, adulação dos poderosos, os quais primeiro
lhes davam uma amostra de seus favores para depois deixá-los na miséria.
Tudo isto que acabamos de citar é a descrição que existe na obra de J. Burckhardt do
caráter geral dos humanistas da Renascença. Tais foram os primeiros frutos da
educação dita humanista.
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