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Pode-se mostrar que a felicidade humana consiste na operação da
sabedoria porque a felicidade tem que ser aquela operação que supera
todas as demais pela razão do bem: tem que ser, em outras palavras,
a operação ótima do homem. Mas, por um lado, o intelecto, a
potência que realiza a especulação da sabedoria, é aquilo que há
de ótimo no homem; por outro, o objeto da sabedoria, conforme
veremos depois melhor, é o objeto ótimo entre todos os objetos do
conhecimento (56).
Ademais, um dos requisitos da felicidade é que seja, tanto quanto
possível nesta vida, contínua e permanente. Mas entre todas as
operações humanas, aquela em que o homem pode perseverar de modo mais
contínuo e permanente é a especulação da sabedoria. A razão disto
é que em qualquer operação é necessário haver interrupção por
causa do trabalho e da fadiga que elas acarretam; o trabalho e a
fadiga, porém, acontecem em nossas operações por causa da
passibilidade do corpo, que durante a operação é alterado e removido
de sua disposição natural. Ora, na especulação da sabedoria a
inteligência se utiliza minimamente do corpo, de onde se segue um
trabalho e fadiga mínimos, e a máxima possibilidade de continuidade e
permanência (57).
Ademais, a especulação da sabedoria é deleitabilíssima, por sua
pureza e firmeza: ela é pura pela imaterialidade de seu objeto, é
firme pela imutabilidade de seu objeto (58). Ora, se bem que
nenhuma deleitação, qualquer que seja, possa ser fim último da
vontade humana, ela deve, no entanto, necessariamente, ser algo
concomitante ao mesmo (59). Isto porque a deleitação é um
repouso da vontade em algum bem conveniente à sua natureza, assim como
o desejo é uma inclinação da vontade à obtenção de um bem que lhe
é conveniente (60). Ora, para cada ser dotado de inteligência,
as operações que lhe são convenientes segundo a natureza ou a virtude
serão apreendidas pela inteligência como bem; serão, portanto,
apetecidas pela vontade e, pela mesma razão, ao serem alcançadas, a
vontade repousará nelas, o que é a deleitação (61). De onde
que se segue que a deleitação não pode ser um fim intencionado pela
vontade, mas algo concomitante ao objeto desejado e alcançado por ela
(62). Mas a vontade repousará maximamente no seu fim último,
por este ser apreendido pela inteligência como seu bem máximo,
desejável por si, sem ordenar-se a outro e ao qual todos se ordenam.
De onde se conclui que a máxima deleitação encontrada na
contemplação da sabedoria proveniente de sua pureza e firmeza é sinal
de que este deve ser o fim último da vontade do homem.
Ademais, a contemplação da sabedoria é a operação que possui a
maior suficiência entre as operações do homem. Ora, foi mostrado
acima que uma das características que deve ter o fim último da vontade
do homem é que ele seja suficiente por si mesmo, sem o que não
poderia ser um bem perfeito (63). Mas esta suficiência por si
mesmo é encontrada em grau máximo na especulação da sabedoria, para
a qual o homem não necessita senão das coisas que são a todos
necessárias para a vida comum. De fato, para as operações da vida
civil o homem virtuoso necessita de muitas outras coisas: o homem justo
necessitará daqueles aos quais deverá agir com justiça, das coisas
com que opere a justiça, etc.. O mesmo se pode dizer das virtudes
militares e políticas, como a virtude da fortaleza e as demais
virtudes morais. Não ocorre assim com o sábio, o qual pode
especular a verdade mesmo que exista somente segundo si mesmo, porque a
contemplação da verdade é uma operação inteiramente intrínseca que
não se dirige ao exterior e tanto mais poderá alguém especular acerca
da verdade existindo sozinho quanto mais for perfeito na sabedoria.
Isto, entretanto, acrescenta Santo Tomás, não se diz porque a
sociedade não ajude à contemplação, mas porque, embora o sábio
possa ser ajudado pelos outros, todavia entre todos é o que mais a si
é suficiente para a sua operação própria. Esta é uma outra
evidência de que o fim último do homem é maximamente encontrado na
operação da sabedoria (64).
Ademais, conforme já se tinha concluído anteriormente, a felicidade
do homem deve ser algo que seja desejável por si de tal maneira que de
nenhum modo seja desejado por causa de outro; isto aparece somente na
especulação da sabedoria, que é amada por causa de si mesmo e não
por causa de mais nenhum outro. De fato, nada se acrescenta ao homem
pela contemplação da verdade, além da própria verdade. Nas demais
operações exteriores, porém, sempre o homem adquire algo a mais por
causa de sua operação, ainda que seja honra e graça diante dos
homens, o que não é adquirido pelo sábio em sua contemplação a
não ser circunstancialmente, na medida em que possa vir a comunicar a
verdade contemplada aos outros (65). Portanto, o não ser
ordenável a nenhum outro bem é outro indício de que a felicidade
humana deve consistir na operação da contemplação.
Finalmente, a felicidade consiste num certo repouso, pois diz-se que
alguém repousa quando não lhe resta mais nada para agir, o que ocorre
quando já alcançou o seu fim. Não há repouso, porém, nas
operações das virtudes práticas, das quais as principais são
aquelas que consistem nas coisas políticas que ordenam o bem comum e
nas coisas da guerra, pela qual se defende o bem comum. Não há
repouso nas operações da guerra, porque ninguém prepararia uma
guerra somente para guerrear, o que seria repousar nas coisas da
guerra. Não há repouso, também, nas coisas políticas, porque os
homens pretendem adquirir a felicidade através da vida política, mas
sempre de tal maneira que tal felicidade seja outra coisa que não a
própria vida política; esta outra coisa é a felicidade
especulativa, à qual a vida política se ordena na medida em que pela
paz, estabelecida e conservada pelas virtudes políticas, é dada ao
homem a faculdade de contemplar a verdade. Se, portanto, as maiores
virtudes morais são as políticas e as da guerra, tanto pela beleza,
porque são as mais honoráveis, quanto pela magnitude, porque são
acerca do bem máximo, que é o bem comum, e tais operações não
possuem repouso em si mesmo, sendo feitas para se ordenarem a outros
bens, não sendo desejáveis por si mesmas, não poderá consistir
nelas a perfeita felicidade. Mas a operação do intelecto dita
especulativa difere destas outras operações porque nela o homem
repousa por causa dela mesma, não desejando nenhum outro fim além
dela própria. Assim, portanto, fica evidente que a perfeita
felicidade do homem consiste na contemplação do intelecto (66).
Referências
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(56) In libros Ethicorum Expositio, L. X, l. 10,
2087. (57) Idem, L. X, l. 10, 2088-89.
(58) Idem, L. X, l. 10, 2090-1.
(59) Summa contra Gentiles, III, C. 26. (60) Idem,
loc. cit..
(61) Summa Theologiae, IIa IIae, Q.180 a.7.
(62) Summa contra Gentiles, III, 26.
(63) Ver acima, ítem II, 3.
(64) In libros Ethicorum Expositio, L. X, l. 10,
2093-96. (65) Idem, L. X, l. 10, 2097.
(66) Idem, L. X, l. 11, 2098-2104.
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