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Para tentarmos ter um vislumbre do que procuramos dizer, vamos considerar o ato mais
trivial de qualquer estudante, o ato de vir à escola.
Antes de vir à escola, para retemperar nossas forças e não sentir o incômodo de
assistir à aula com fome, jantamos em nossas casas. Este simples ato já é por si como
que um verdadeiro milagre. Quando tomamos o alimento, a natureza teve que elaborar
um sistema digestivo bastante complexo para ser capaz de digerir precisamente
aqueles alimentos que curiosamente são os que ela mesmo oferece a todos
abundantemente. Recolher estes alimentos esparsos pelo mundo para produzir uma
simples janta seria uma tarefa penosíssima, mas tudo isto, naquele momento, já tinha
sido providenciado. Centenas de pessoas haviam estudado agricultura, haviam
plantado nos lugares mais diversos cada um dos alimentos utilizados em nossa janta,
outra multidão os colheu, centenas de homens os transportaram, outros os conservaram
e outros finalmente se especializaram em saber vendê-los, deixando-os localizados em
lugares de fácil acesso para que nós os adquiríssemos. Assim, naquele momento, um
mundo imenso de pessoas na verdade estava se preocupando conosco, e a própria
natureza também, que sabiamente preparava as chuvas para a lavoura e fornecia ao
nosso corpo as enzimas necessárias à digestão justamente daqueles alimentos que ela
própria produzia. Nós, porém, ali sentados, não prestamos atenção a nada disso. Só
queríamos sair correndo para não chegar atrasados à escola.
Quando saímos de casa, outra coisa não menos fantástica! Alguém tinha construído um
elevador para nosso uso, tinha-o instalado exatamente no local onde era necessário
para o nosso pronto e imediato transporte e estava bombeando energia elétrica de
muito longe para que ele funcionasse com apenas um aperto de nosso dedo. A rua
estava calçada. Outras pessoas, sabe-se lá quantas, também tinham se preocupado com
isso. A rua estava calçada para nós passarmos e asfaltada também para fazer com que
um ônibus pudesse trafegar para nossa comodidade. Sem que o pedíssemos, não
apenas um ônibus, mas os mais diversos ônibus passavam regularmente à nossa
disposição para nos levar não a um só lugar, mas a qualquer lugar que quiséssemos.
Para isto, outras milhares de pessoas tiveram que estudar mecânica, projetar os ônibus,
construir os ônibus, vender os ônibus, manter os ônibus, dirigir os ônibus, explorar
petróleo, refinar petróleo, transportar gasolina, educar motoristas, educar o trânsito,
sinalizar o trânsito, e não só tinham feito isto como o continuavam fazendo
ininterruptamente para que pudéssemos tomar o ônibus naquele momento ou a qualquer
momento. O Sol se punha. Fazia séculos que o Sol brilhava todos os dias para que
pudéssemos enxergar todas estas coisas, mas o que é incrível, porém, é que nós não
percebemos ou pensamos nisto um só momento. Estávamos preocupados, como
sempre, com um pequenino problema pessoal que era infinitamente menor do que tudo
isto, teoricamente muito menos capaz de chamar a atenção de qualquer inteligência
sadiamente desperta, mas que na verdade era o que estava tirando nossa atenção
daquele espetáculo fantástico fazendo-nos temer um simples atraso pessoal. Como é
possível que para a maioria das pessoas uma coisa tão pequena impeça a percepção
destas coisas pelo período inteiro de uma vida humana?
Mas, chegando à escola, não paramos para pensar também que não estávamos
chegando sozinhos a esta nobre instituição. Para que pudéssemos aprender alguma
coisa, todo este aparato fenomenal que nos permitiu chegar à escola foi igualmente
mobilizado para trazer dos lugares mais diversos dezenas ou centenas de outras
pessoas para fazerem funcionar a escola normalmente enquanto pudéssemos estudar
tranqüilamente. O nosso pequeno objetivo de nos dirigirmos à escola assim encontrava
resposta num aparato de escala mundial, mas nem nós, nem nenhum dos funcionários da
escola pensava nisto. Pensavam cada um deles apenas no salário que iam receber no
fim do mês.
Como nós também não pensávamos no que acontecia à nossa volta, subimos as escadas
correndo. Encontramos então não apenas um corpo de funcionários, mas também um
corpo de professores que estavam sendo preparados desde a sua infância, recrutados
das mais diversas cidades e educados por milhares de outros professores para que
pudessem acumular um vasto conhecimento e tudo isto, enfim, para dar aquela aula de
quarenta e cinco minutos às vinte horas. Como é possível que um tão vasto complexo
de forças naturais, que estamos descrevendo em sua mais ínfima parte, pudesse estar
tão milimetricamente ajustado para um objetivo tão pequeno e para um aluno que,
afinal de contas, o que fêz em toda a sua vida para merecer semelhante coisa? Quem
não é capaz de entrever a admirável beleza que existe por detrás de tudo isso e o
admirável sono em que vivemos no nosso quotidiano?
Não se deve rir, portanto, dos pré-socráticos quando diziam que haviam feito da
contemplação da natureza a razão de suas vidas.
Qualquer um, se tentar fazer o mesmo ainda que por breves momentos, perceberá que o
quadro que começamos a pintar é mais assombroso ainda do que o que dele pudemos
mostrar. E para completá-lo, como um arremate deste imenso espetáculo, a natureza
finalmente produziu um ser capaz de tomar consciência de tudo isto, como se esta
natureza estivesse querendo se elevar acima dela própria e admirar-se a si mesma. Os
protagonistas deste ponto máximo do espetáculo natural eram, assim precisamente
aqueles filósofos pré-socráticos que, ao que parece, cumpriam talvez o objetivo final
da natureza e estavam provavelmente muito mais conscientes do seu lugar no mundo do
que muitos de nós talvez poderiam jamais ter estado.
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