CAPÍTULO 9

A palavra `assomaton', isto é, `incorpóreo', é inusitada e desconhecida não somente para muitos outros, como também para nossas Escrituras. Se alguém no-la quiser apontar no livro que se chama "A Doutrina de Pedro", onde o Salvador parece dizer aos discípulos:

"Não sou um demônio incorpóreo",

deve-se-lhe responder, em primeiro lugar, que este livro não é tido como pertencente aos livros da Igreja, e deve- se-lhe mostrar que esta escritura não é nem de Pedro nem de qualquer outro que tivesse sido inspirado pelo Espírito de Deus. Mas, ainda que isto concedêssemos, o sentido da palavra `incorpóreo' neste texto não é o mesmo que se depreende dos escritos dos autores gregos e gentios, quando os filósofos disputam sobre a natureza incorpórea. Neste livro fala-se de demônio incorpóreo no sentido em que, qualquer que seja o hábito ou o invólucro do corpo do demônio, ele certamente não é semelhante a este nosso corpo grosseiro e visível. Devemos ler o que está dito segundo o sentido de quem compôs esta escritura, que é se um corpo como o que possuem os demônios é naturalmente sutil e como uma tênue aura, e por isso mesmo considerado ou dito incorpóreo por muitos, ou se se trata de um corpo sólido e palpável. De fato, segundo o costume dos homens, tudo o que for daquele modo é chamado pelos mais simples e imperitos de incorpóreo, como quando dizem que este ar que respiramos é incorpóreo, por não ser um corpo que possa ser apalpado e guardado, ou que possa oferecer resistência a quem o empurre.

Investigaremos, porém, se a própria realidade que os filósofos gregos chamam de `assomaton', isto é, `incorpóreo', se encontra nas Sagradas Escrituras com outro nome. Deve-se investigar, também, como o próprio Deus deve ser entendido, se corpóreo e dotado de alguma forma, ou se possuidor de outra natureza que não a dos corpos, o que também em nossa pregação não é manifestamente assinalado. O mesmo também deve ser investigado de Cristo e do Espírito Santo, mas não de toda alma e de toda criatura racional.