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A Igreja que vinha sofrendo as mais tirânicas perseguições,
oficialmente decretadas pelos imperadores romanos, e que escreveu em
sua história as mais belas páginas do heroísmo e fidelidade de seus
membros, pôde experimentar algum tempo de tranqüilidade no govêrno
de Cômodo.
Embora realizasse êle um reinado de orgias, fôsse ávido de
sensações violentas, como as que ofereciam as lutas na arena, das
quais participava sempre, Cômodo, o Hércules, título que lhe
dera o senado, não perseguiu os cristãos. Ao contrário, concedeu
anistia àqueles que se encontravam encerrados nas masmorras dos
palácios.
Foi na época da Anarquia militar, em que o poder supremo esteve à
mercê dos caprichos dos soldados, que surgiu a figura do africano
Séptimo Severo, que a princípio, mostrando-se calmo e clemente,
subitamente se transformou em grande perseguidor dos cristãos,
estendendo sua tirania a todo o império, às províncias das
Gálias, da Ásia e África, onde sangrentas páginas se ajuntaram ao
doloroso capítulo da história cristã.
Modelos exemplares de fé e heroísmo se inscreveram na galeria já
gloriosa de nobres figuras do cristianismo primitivo, e dentre êles os
nomes de Perpétua e Felicidade, duas jovens mães, dignas de louvor
e admiração pela constância e firmeza imperturbável na fé.
Deus quis unir no mesmo sacrifício duas mães, ambas muito jovens,
descendendo uma de família nobre, e outra uma pobre escrava. Diante
dêle todos são iguais, capazes de heroísmo, o nobre e o escravo, e
as maiores riquezas se encontram na alma e são os tesouros
espirituais.
O ambiente na África, de modo especial após a ordem de Séptimo
Severo, era muito hostil aos cristãos. Hilariano, que exercia o
cargo interino de Governador da Província, por morte do procônsul,
queria a sua promoção e para agradar ao Imperador cumpriu à risca a
sua ordem, sem nenhum sentimento de humanidade ou clemência.
Dias terríveis viveram os cristãos nas prisões de Cartago,
amontoados em redutos escuros, onde tudo era insuportável aos
sentidos. Habituada à nobreza, Perpétua, que se fizera batizar no
cárcere, pois era catecúmena, valorizava o seu sofrimento, até que
à custa de dinheiro, dois diáconos, Tertius e Pomponius,
obtiveram mais humanidade dos guardas para com aquelas pobres
criaturas, e os cristãos foram colocados em melhores lugares, onde
mais fresco era o ar.
Ao lado dos sofrimentos materiais, a tortura da dor de seus pais e
parentes. O velho pai que conseguiu penetrar na prisão tudo fêz para
demovê-la da fé e desejo do martírio. Suplica-lhe que se
compadeça dêle e não envergonhe a sua velhice perante a sociedade;
lembra-lhe o amor e desvêlo com que sempre a distinguiu.
Momentos terríveis para o coração de Perpétua, ao ver seu pai
prostrado aos seus pés, beijando-lhe as mãos, e suplicando-lhe que
abandone a sua fé por êle, pela sua querida mãe e pelo seu
filhinho.
No entanto, a fôrça da graça de Deus, grande na alma de
Perpétua, fêz com que ela afastasse o pai, renunciasse às suas
súplicas, para consagrar sua vida a Deus pelo martírio.
Nada foi capaz de quebrar a resistência da jovem mãe: nem as
súplicas do pai, nem as ameaças de suplícios terríveis.
E as duas jovens, Perpétua e Felicidade, baldados os esforços em
demovê-las de suas idéias, foram condenadas às feras.
Felicidade chegara ao oitavo mês de gravidez. As leis romanas
proibiam a execução de mulheres em semelhantes circunstâncias, e ela
temia que fôsse adiado o seu suplício.
Entregaram-se ela e todos os cristãos prisioneiros à oração e
Deus ouviu as suas preces. Felicidade prematuramente deu à luz uma
criança.
No dia marcado, apresentam-se com semblantes alegres, dispostas a
tudo por amor a Cristo, de quem jamais se afastariam. Recusaram as
túnicas das cerimônias pagãs com que tentaram vesti-las. Passando
diante de Hilariano, disseram-lhe: "Tu nos condenaste, pois
saibas que Deus te julgará".
Na arena de Cartago, as feras se lançam contra os cristãos.
Perpétua e Felicidade, cobertas com pequeno agasalho, foram
atiradas a uma vaca brava; esta as derrubou, mas não as matou.
Vendo Perpétua que o pequeno pano que lhe deram para se resguardar da
nudez se havia rasgado, apertou-o como pôde, ajeitou os cabelos,
para que não parecesse estar triste e abatida. Os algozes não se
atreveram a atirá-las mais às feras. Deveriam ser transpassadas
pela espada. Por fim, caíram as duas jovens sob os golpes dos
verdugos.
Perpétua, ferida no flanco, com uma horrível chaga, toma a mão do
assassino inexperiente e coloca a ponta da espada sôbre a própria
garganta.
Assim, morreram as duas jovens mães, engrandecendo o valor da mulher
no cristianismo primitivo.
A narrativa desta bela história a encontramos nas atas autênticas do
martírio destas santas, redigidas em parte por Perpétua, em
linguagem simples, sincera e elegante, e em parte, as páginas da
narrativa do suplício, por testemunhas de vista, talvez Tertuliano,
pela semelhança de estilo. Estão estas atas entre os trechos mais
belos da literatura cristã antiga.
Os nomes das mártires figuram no Cânon da Missa, prova de quanto a
Igreja primitiva as considerava.
E permanece para sempre a lembrança da fé e heroísmo destas duas
jovens criaturas, uma nobre, outra escrava.
Em ambas a grandeza da maternidade a humana e a espiritual, gerando
seus filhos para a vida e fazendo com que suas vidas se frutifiquem no
heroísmo de sua imolação na arena sagrada pelo sangue dos mártires.
Filhos de mães heróicas, mães dignas de sua missão e da grandeza e
mistério do próprio nome de Mãe!
A lembrança destas jovens mães despertem nos corações maternos a
coragem e heroísmo para os deveres e encargos do lar. Cada mãe seja
uma Mártir que cada dia se imole um pouco na arena do trabalho e do
sacrifício. Sòmente assim se considerem dignas de sua alta e
misteriosa missão na sociedade.
"As testemunhas dos fatos do martírio das Santas Perpétua e
Felicidade, escreve o redator dos Atos dos Mártires,
lembrarse-ão da glória do Senhor, e aquêles que dêles tiverem
conhecimento, por esta narrativa estarão em comunhão com os santos
mártires e, por intermédio dêles, com Jesus Cristo Nosso
Senhor, para quem são a honra e glória".
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