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No martirológio romano, dentre a série imensa de milhares que deram
por Cristo a sua vida, encontramos o seguinte relato: "Em Roma,
Santo Inácio, Bispo e Mártir, foi o segundo sucessor do
Apóstolo São Pedro na Cátedra de Antioquia; durante a
perseguição de Trajano foi condenado a ser devorado pelas feras e
levado algemado para Roma. Ali, por ordem de Trajano,foi submetido
perante o Senado aos castigos mais cruéis e depois jogado aos leões.
Devorado pelas feras, foi uma vítima pelo Cristo".
Assim são os mártires do cristianismo. As crueldades não lhe
causam temor, suportam os maiores castigos e se gloriam de serem dignos
de morrer por Cristo. O martírio para êles é vida, e derramar o
sangue pela fé é recompensa que vem coroar uma vida de heroísmo.
Enumerando algumas figuras heróicas da gesta dos Mártires
Cristãos, evocamos e engrandecemos a multidão das outras não menos
heróicas, mesmo as mais anônimas, as mais obscuras, desde as mais
altas figuras dos bispos e dos padres, até o menor do escravos, que
com a mesma firmeza e ânsia pela glória do céu se deixaram
martirizar.
Santo Inácio, bispo de Antioquia, se coloca entre os heróis da
primitiva Igreja. Governando a Igreja de Antioquia, onde a semente
cristã se desenvolvera de maneia admirável, foi Inácio vítima do
ódio anticristão que se manifestara violento nas perseguições
oficiais do Império Romano. Natural da Síria, é uma das grandes
figuras dos tempos apostólicos, tendo sido discípulo dos Apóstolos
e mais tarde sucessor de São Pedro em Antioquia, que, depois de
Roma, era a mais importante cidade do velho mundo.
Governava Roma o Imperador Trajano, soldado garboso, de porte
varonil, que, inimigo do luxo, fizera a pé sua entrada na capital
romana, sob os entusiásticos aplausos do povo que o sabia capaz de
continuar a grandeza do Império.
Grande administrador, defensor do direito e da justiça, mareou,
porém, o brilho de sua glória, maculou sua memória pelo
desregramento dos costumes e a perseguição que moveu contra os
cristãos, seus melhores súditos. A Plínio, legado imperial da
Bitínia, que pessoalmente examinou a conduta dos cristãos e
escrevera ao Imperador, comunicando-lhe nenhuma falta nêles
encontrar, responde o Imperador com palavras que bem assinalam o seu
caráter: "Não convém dar buscas aos cristãos, mas acusados e
examinados, devem ser condenados à morte, caso não abandonem o
cristianismo." "Sentença estranha", vai dizer Tertuliano,
"Proíbe procurar os cristãos, reconhecendo implicitamente sua
inocência, e por outro lado ordena que sejam punidos por simples
denúncia". Êste é o amor de justiça dos príncipes mais decantados
da Roma pagã.
Acusado e condenado em Antioquia, foi Inácio levado a Roma,
escoltado por soldados. Sua vigem foi um caminho para o martírio, e
por onde passava, era festivamene recebido pelos cristãos. Escreve
durante a viagem as sete cartas, a Smirna, a Filadélfia, a
Policarpo, aos efésios, magnesianos, tralianos e romanos. Nelas
expande o seu amor a Cristo, o seu desejo de ser unido a êle e seu
zêlo pela salvação das almas. São suas cartas um dos mais
preciosos documentos da Igreja antiga, em que se manifesta conhecedor
da sua Constituição, grande administrador e notável místico com
admiráveis meditações sôbre Cristo e a vida espiritual. A carta
aos romanos em que demonstra seu intenso desejo de morrer por Cristo,
é no dizer de Renan "Uma das jóias da literatura primitiva
cristã".
Não precisam os documentos a data de seu martírio. Certamente,
quando das comemorações da vitória de Trajano sôbre os Dácios.
Em todo o esplendor do ouro e do mármore já se levantara o Coliseu.
Festas estrondosas se realizavam em Roma. Durante vários dias os
anfiteatros regorgitavam e mais de dez mil gladiadores foram
sacrificados e com êles umas onze mil feras. Das Províncias vieram
os atletas. Os Governadores de países longínquos enviaram feras,
prisioneiros e criminosos para a Metrópole, onde nas disputas na
arena representavam dantescos espetáculos aos olhos dos vaidosos
espectadores que constituíam a corrupta sociedade romana.
Ao penetrar o santo homem na capital do império, olhares sedentos de
sangue se digiram a êle e pedem a sua morte. É o Pastor que dá a
vida pelas suas ovelhas, que morre, para que as ovelhas tenham vida.
Ei-lo na arena do majestoso Coliseu. Abrem-se os gradis e as feras
se lançam sequiosas de sangue sôbre os milhares que se espalham na
arena. Os olhos de Inácio se voltam para Deus, tranqüilos. Ao
ouvir o rugido dos leões, exclama: "Eu sou o trigo do Cristo;
pelos dentes das feras hei de ser triturado, para me tornar pão
purificado." A sociedade romana, ébria de poder, riquezas e
prazeres, sacia seus olhares no anfiteatro, onde um pobre velho é
atirado às feras.
Momentos após, poucos vestígios de sangue na branca areia marcaram o
lugar, onde o mártir expirou, e donde sua alma se elevou para o reino
da glória.
Alguns cristãos penetram na arena do anfiteatro, agora deserta, para
retirar e guardar alguns poucos pedaços de ossos, que constituem as
santas relíquias do Bispo de Antioquia.
Dêle se conservam estas santas relíquias e as mais belas lições de
vida e virtudes. Em suas cartas exorta os fiéis à vida de
concórdia, união e obediência na comunidade cristã: "Onde está
o bispo, escreveu êle, deve estar o povo, da mesma forma que se
diz: onde está Cristo, está a Igreja".
De suas cartas extraímos trechos encantadores: "Só Um Jesus
Cristo e não existe ninguém melhor do que Êle" (Carta aos
Magnesianos, Cap.7).
"Um cristão não tem direito ilimitado sôbre si mesmo; seu tempo
pertence a Deus" (a S. Policarpo, cap. 7).
"É belo morrer a êste mundo para Deus, para ressurgir para Ele"
(aos Romanos, cap. 12).
A história dêste Bispo, herói do cristianismo, Mártir de sua
fé, empolga pela bravura e coragem de um gigante da fé e do amor de
Deus, que tomba na arena do dever, triturado antes pelas feras que
macularam a história do Império Romano do que pelas feras selvagens
que o abateram na arena do Coliseu, glória da arte de Roma, e
orgulho dos milhares de mártires que aí tombaram pela Igreja e por
Cristo.
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