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No Evangelho segundo S. Marcos, quando um estudioso da Lei de
Moisés perguntou a Jesus qual fosse o maior de todos os mandamentos,
Jesus sequer parou para pensar; apesar de tanto ele insistir sobre a
necessidade da fé, insistência manifestada de um modo todo especial
no mesmo Evangelho de S. Marcos, respondeu que o maior de todos os
mandamentos não era o da fé, mas o da caridade para com Deus:
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"Amarás o Senhor teu Deus
de todo o teu coração,
com toda a tua alma,
com toda a tua mente,
com todas as tuas forças".
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"Este é o maior e o primeiro mandamento", diz ainda Jesus (Mt.
22, 38).
A caridade é a mais excelente entre todas as virtudes, diz também
Tomás de Aquino (36); assim como a fé, a caridade tem também
a Deus como objeto, que se estende também ao próximo (37);
mas, ao contrário da fé, cujo ato está no intelecto (38), a
caridade está na vontade como em seu sujeito (39).
Ora, já mostramos que a fé é um conhecimento que alcança seu
objeto movido pela vontade; seria de se esperar, portanto, que a
presença da caridade no vontade venha a ter uma considerável
influência no ato da fé, fazendo-a crescer mais intensamente. De
fato, isto assim é, primeiramente, pela coincidência dos objetos da
fé e da caridade e pela intensidade da caridade.
A fé tem a Deus por objeto, e é movida pela vontade; a caridade
tem também a Deus por objeto, e é aquela virtude pela qual a vontade
se move ao amor de Deus "com todas as suas forças". Pelo
mandamento da caridade a Escritura
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"Não apenas preceituou
que amássemos a Deus,
nem que amássemos apenas a Deus,
mas que o amássemos o quanto pudéssemos.
A tua possibilidade
será a tua medida" (40).
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Assim também, na primitiva regra franciscana, S.Francisco de
Assis exortava seus primeiros irmãos a
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"que todos removam todos os obstáculos
e posterguem todos os cuidados e solicitudes,
para, com o melhor de suas forças,
servir, amar, adorar e honrar
de coração reto e mente pura
o Senhor nosso Deus,
pois é isso o que Ele deseja sem medida" (41).
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Pode-se daqui concluir que se a vontade, animada pela virtude da
caridade, se move para Deus de um modo tão intenso, isto fará com
que a fé, virtude pela qual a inteligência alcança a Deus, mas que
também é movida para tanto pela vontade, cresça até à
excelência.
Este é um dos motivos porque a Sagrada Escritura afirma que
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"a fé opera pela caridade",
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e também que
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"a fé, sem as obras
(da caridade),
é morta".
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A fé, diz Tomás de Aquino, vive pela caridade (42), e,
através dela, torna-se uma realidade perfeita (43). Ao que
acrescenta Hugo de S. Vitor que não há mais de uma fé, uma morta
e outra viva, mas, ao contrário,
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"não são duas,
mas a mesma aumentada,
pelo que diz o Evangelho de São Lucas:
`Aumentai a nossa fé' ".
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Há, entretanto, uma outra razão para que a fé se torne, através
da caridade, uma realidade perfeita. De fato, diz Tomás de Aquino
que a caridade não é apenas amor, mas um modo especial de amor, um
amor que possui natureza de amizade:
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"A amizade é um amor com benevolência,
isto é,
um amor pelo qual amamos alguém
querendo-lhe o bem.
Se não queremos o bem das coisas amadas,
mas é o bem delas que queremos para nós,
como quando dizemos que alguém ama o vinho,
este não é um amor de amizade,
mas de concupiscência.
É ridículo, de fato,
dizer que alguém tenha amizade
para com o vinho.
Porém, nem mesmo apenas a benevolência
é suficiente para a natureza da amizade;
requer-se também o amor mútuo,
porque o amigo é para o amigo,
outro amigo.
Ora, esta mútua benevolência
se fundamenta sobre alguma comunicação.
Como há alguma comunicação
entre Deus e o homem
na medida em que Deus quer nos comunicar
a sua própria felicidade,
é necessário que sobre esta comunicação
se estabeleça alguma amizade.
O amor fundamentado sobre esta comunicação
é que é dito ser a caridade" (45).
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Isto significa que o amor de caridade não é apenas aquele pelo qual o
homem cumpre o mandamento de amar a Deus com todo o seu coração, com
toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com todas as suas
forças, mas este mesmo amor pressupõe o amor pelo qual o homem é
amado primeiro por Deus. De fato, assim se encontra escrito na
Epístola de S. João:
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"Nisto consiste a caridade:
não fomos nós que amamos a Deus,
mas Ele que nos amou primeiro".
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Ora, diz Tomás de Aquino, há uma diferença entre o amor de Deus
e o amor dos homens:
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"A vontade do homem é movida
pelo bem pré existente nas coisas,
de onde que o amor do homem
não causa totalmente a bondade da coisa,
mas a pressupõe em parte ou mesmo totalmente.
No caso do amor de Deus, porém,
como todo bem da criatura provém
da própria vontade divina,
do amor de Deus que quer o bem da criatura
procede o bem existente nas criaturas.
Deste modo, há o amor geral de Deus
por todas as criaturas,
segundo o qual Ele ama a todas as coisas que existem,
conforme diz o Livro da Sabedoria (Sab. 11,25).
Segundo este amor
Deus concede às coisas criadas o ser natural.
Outro é o amor especial segundo o qual
Deus traz a criatura racional
acima da condição de sua natureza
à participação do bem divino;
segundo este amor
Deus quer o bem eterno da criatura,
que é o próprio Deus.
Como efeito deste amor algo sobrenatural
é acrescentado no homem
proveniente de Deus" (46).
"Porque não é conveniente
que Deus proveja menos
àqueles que Ele ama
para a aquisição do bem sobrenatural
do que às criaturas que Ele ama
apenas para conduzí-las à aquisição do bem natural.
Às criaturas naturais, porém,
providenciou de modo que não apenas
as movesse aos seus atos naturais,
mas também lhes concedesse formas e virtudes
que fossem princípios dos seus atos
para que se inclinassem por si mesmas a tais movimentos,
de tal maneira que os movimentos
pelos quais as criaturas são movidas por Deus
se lhes tornem fáceis e conaturais,
segundo diz o Livro da Sabedoria:
"Dispôs a tudo com suavidade".
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Muito mais infundirá Deus
algumas formas
ou qualidades sobrenaturais
àqueles que Ele move
para conseguir o bem sobrenatural e eterno,
segundo as quais sejam movidas
suave e prontamente por Deus
para alcançar o bem eterno" (47).
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Esta forma ou qualidade sobrenatural infundida por Deus na alma
daqueles a quem Ele ama, aos quais , segundo o Evangelho de João,
Jesus diz:
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"Não fostes vós que me escolhestes,
mas eu que vos escolhi;
não mais vos chamo de servos,
mas de amigos",
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não é mais, diz Tomás de Aquino,"um auxílio divino pelo qual a
alma é movida por Deus a conhecer, querer ou operar algo" (48),
"mas um dom habitual infundido por Deus na alma" (49). "É uma
luz da alma" (50), "um esplendor da alma, que lhe é uma
qualidade, assim como a beleza o é para o corpo" (51),"uma
participação da natureza divina" (52), infundida por Deus não
na inteligência nem na vontade, mas na própria "essência da alma"
(53), pela qual a própria "natureza da alma participa, segundo
uma certa semelhança, da natureza divina, por uma certa regeneração
ou nova criação" (54). Por conseguinte, diz Tomás de
Aquino, a caridade, "que é uma certa amizade entre Deus e o homem
fundamentada sobre a comunicação da felicidade eterna, excede as
faculdades da natureza" (55), e pressupõe esta graça que não é
mais, como no caso da fé, apenas um movimento da inteligência ou da
vontade, mas este esplendor da participação da natureza divina
infundida na essência da alma.
Ora, continua S, Tomás, "aquilo que excede as possibilidades da
natureza não pode ser nem natural nem adquirido pelas potências
naturais, porque os efeitos naturais não transcendem a sua causa. De
onde que a caridade não pode existir em nós apenas em virtude da
natureza, nem adquirida pelas forças naturais, mas infundida em
nós" (56) por Deus.
diz ainda S. Tomás,
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"tem em si próprio
a maior prova
de ser amado por Deus,
porque ninguém pode amar a Deus
se Deus não o amar primeiro,
pois o próprio amor pelo qual
nós amamos a Deus
é causado em nós
pelo amor com que Deus nos ama" (57).
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Ora, tudo isto tem conseqüências notáveis sobre a fé; pois,
conforme dissemos, a fé não é apenas movida pela vontade, mas
também pela graça. Mas a graça que a fé, considerada apenas em si
mesma, pressupõe, é tão somente um movimento da inteligência ou da
vontade; a graça, porém, que a caridade pressupõe, é uma
participação da natureza divina infundida na própria essência da
alma. A caridade, portanto, não apenas faz a fé viver movendo mais
intensamente a vontade para Deus, mas trazendo a alma para uma vida da
graça que apenas a fé não conseguiria alcançar. Por isso é que
diz São Paulo na primeira epístola aos Coríntios:
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"Ainda que eu tivesse toda a fé,
a ponto de transportar as montanhas,
se não tivesse a caridade,
eu nada seria".
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Esta passagem é particularmente notável porque parece admitir a
possibilidade da existência de uma fé suficientemente grande a ponto
de operar prodígios; no entanto, destituída da caridade para com
Deus que se estende também ao próximo, a Sagrada Escritura afirma
que esta fé de nada vale. "É como o bronze que soa, ou como o
címbalo que tange" (I Cor. 13,1), diz S. Paulo na mesma
passagem, isto é, algo que embora faça barulho ou mesmo que tenha
uma sonoridade melodiosa que encante os ouvidos, seu conteúdo não
condiz com o que aparenta, não passando de uma casca de metal.
Referências X. 8
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(36) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 23 a.6.
(37) Idem, IIa IIae, Q. 24 a.1. (38) Idem, IIa
IIae, Q.4 a.2. (39) Idem, IIa IIae, Q.24 a.1.
(40) Hugo de S. Vitor: De Sacramentis Fidei
Christianae;L. II, p. XII, c. 9; PL 176, 535.
(41) S.Francisco de Assis: Regra Primitiva dos Frades
Menores; C. 23; Madrid, BAC, 19XX; pg. 109.
(42) Summa Theologiae, IIa IIae, Q.3 a.4.
(43) Idem, IIa IIae, Q.3 a.3.
(44) Hugo de S. Vitor: Summa Sententiarum; Tr. 1, c.
2; PL 176, 45.
(45) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 23 a. 1.
(46) Idem, Ia IIae, Q.110 a.1. (47) Idem, Ia
IIae, Q.110 a.2. (48) Idem, loc. cit.. (49)
Idem, loc. cit.. (50) Idem, Ia IIae, Q.110 a.1 sed
contra. (51) Idem, Ia IIae, Q.110 a.2 sed contra.
(52) Idem, Ia IIae, Q.110 a.3. (53) Idem, Ia
IIae, Q.110 a.4. (54) Idem, loc. cit.. (55)
Idem, IIa IIae, Q.24 a.2. (56) Idem, loc. cit..
(57) Embora saibamos que esta passagem é de S. Tomás por a
termos lido vários anos atrás, não foi possível, no momento em que
era redigido o presente trabalho, localizar sua procedência.
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