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Com Pitágoras, apesar do pouco que se sabe sobre ele, parece haver
um aprofundamento no modo como se entendeu a contemplação entre os
primeiros filósofos gregos.
Há vários indícios que fazem notar em Pitágoras um aprofundamento
em matéria de contemplação em relação aos primeiros
pré-socráticos. Pode-se perceber isto, em primeiro lugar, pelo
fato de que os primeiros pré-socráticos chamados naturalistas faziam
discípulos, mas não fundavam escolas formalmente constituídas;
Pitágoras, porém, foi o primeiro a fundar uma escola de filosofia.
Em segundo lugar, Pitágoras parece ter sido muitíssimo mais
exigente quanto à formação ética das pessoas como requisito para a
aceitação de um aluno, e, por conseqüência, para a
contemplação. Diz o filósofo neoplatônico Jâmblico que
Pitágoras,
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"quando já estava preparado
para instruir os seus discípulos,
não aceitava de imediato
o ingresso na escola dos jovens
que se aproximavam dela com essa intenção,
mas só depois de os haver testado
e haver chegado a uma conclusão sobre eles.
Em primeiro lugar,
perguntava-lhes de que modo se relacionavam
com os pais e parentes;
em seguida, observava se riam num momento impróprio,
se eram muito silenciosos ou falavam em demasia.
Além disso,
indagava a respeito de suas aspirações,
quem eram seus amigos
e o que faziam quando estavam juntos;
quais eram as principais atividades durante o dia
e o que os deixava alegres ou tristes.
Ele também observava a aparência,
a postura e o movimento dos seus corpos,
avaliando o caráter por meio de seus gestos,
interpretando as características psíquicas invisíveis
por meio de seus atributos físicos.
Quem quer que fosse testado dessa forma,
fazia questão de observar durante três anos,
período em que verificava a firmeza de caráter
e o amor que o jovem tinha pelo aprendizado.
Ele também queria ver se,
em sua opinião,
o candidato estava suficientemente preparado
para desprezar o sucesso mundano.
Depois submetia-os a um silêncio de cinco anos
com o propósito de observar seu autodomínio,
pois considerava que o ato de permanecer em silêncio
era o mais difícil nesta prática.
Se eles fossem considerados dignos
de compartilhar de suas idéias,
avaliados segundo seu modo de viver
e outras boas qualidades,
eram facilmente admitidos no círculo interno,
após os cinco anos de silêncio,
e podiam ouvir e ver Pitágoras" (17).
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Em terceiro lugar, Pitágoras dava uma altíssima importância para a
formação matemática como requisito para a filosofia, se bem que seus
mestres gregos, cita-se o exemplo de Tales de Mileto, já fossem
grandes matemáticos.
Mas em quarto, e o que é mais importante ressaltar aqui, ao
contrário dos restantes primeiros pré- socráticos, que diziam que o
princípio em que consistia a natureza era a água, o infinito, o ar,
o fogo, os átomos, as sementes invisíveis ou outro qualquer
elemento, os Pitagóricos afirmavam que os números eram os
princípios de todas as coisas (18); ou, pelo menos, segundo a
afirmação de Sexto Empírico,
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"eles sempre proclamavam a máxima
segundo a qual
tudo se assemelha aos números" (19).
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A interpretação desta afirmação tem sido objeto de amplas
controvérsias; desenvolveremos aqui uma interpretação baseada em uma
hipótese acenada por Abbagnano, mais interessados em primeiro lugar
na verdade da contemplação do que entrar na polêmica histórica sobre
Pitágoras. Comentando a afirmação dos pitagóricos de que os
números são os princípios de todas as coisas, N.Abbagnano faz a
seguinte afirmação:
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"Na realidade,
se os pré-socráticos naturalistas,
para explicarem a ordem do mundo,
recorriam a uma substância corpórea,
os pitagóricos consideram esta ordem mesma
como a substância do mundo" (20).
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Para entender, pois, esta afirmação segundo a qual os números eram
os princípios de todas as coisas, há que se lembrar da definição de
filósofo dada por Pitágoras, a do indivíduo que, nos Jogos
Olímpicos, não tem nenhum outro interesse senão contemplar o que
está acontecendo.
Ora, a contemplação leva facilmente à percepção de que a natureza
à nossa volta, apesar de não ser inteligente, parece participar da
mesma espécie de racionalidade do espírito humano. Nada ela faz por
acaso, tudo parece ter uma finalidade. Basta observar o corpo
humano, as plantas, os diversos animais, a interdependência entre
eles e deles para com o resto do mundo e dos corpos celestes. Se esta
ordem e estes fins foram ou não foram escolhidos inteligentemente,
não importa. Mas tudo se passa como se o tivesse sido, pois se o
tivesse sido, possivelmente não teria sido feito melhor. A natureza
parece se comportar tal qual uma obra de arte feita por uma
inteligência que soube combinar milhares de elementos na medida mais
engenhosa possível. Os desenvolvimentos modernos da Física, da
Química e da Biologia, longe de desmentir este fato, não fazem
mais do que confirmá-lo mais profundamente. É assim, por exemplo,
que lemos na introdução do tratado de Bioquímica de Lehninger, o
mais famoso livro existente na atualidade sobre o assunto:
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"Cada parte componente
de um organismo vivo
parece ter um objetivo
ou uma função específica.
Isto é verdade não só
em relação a estruturas macroscópicas visíveis
como asas, olhos, flores ou folhas,
mas também com referência
às estruturas intra celulares,
como o núcleo e a membrana celular.
Além disso,
os compostos químicos
individualizados na célula,
tais como os lipídeos,
as proteínas e os ácidos nucleicos,
também apresentam funções específicas.
Nos organismos vivos
é bastante válido perguntar
qual seria a função
de uma determinada molécula" (21).
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Não só os órgãos, diz Lehninger, mas qualquer substância
química encontrada no corpo humano ou em qualquer ser vivo, ainda que
seja em seus mínimos traços, nunca está ali sem sentido. Podemos
perguntar por que está ali. E quando descobrimos o porquê,
verificamos o quanto a natureza conhecia o corpo daquele animal e como
solucionou um problema intrincadíssimo de Química para o qual talvez
o cientista sequer saberia o que fazer.
Quem, ademais, ao ver uma laranja com atenção filosófica, não
tem a impressão de estar diante de algo que foi feito propositalmente
para ser comido? Ou diante de uma rosa, não tem a impressão de
estar diante de algo que foi feito propositalmente para ser visto?
Vamos abstrair de nossa discussão se foi uma inteligência, o acaso
ou a evolução que fêz tudo isto. O fato é que, independentemente
de como isto aconteceu, à observação do filósofo, a natureza
parece se comportar com a racionalidade e a estética do tipo que se
encontram nas obras de arte da inteligência humana, apenas em um grau
de complexidade e beleza muito acima da capacidade de criação e
coordenação de nossas mentes.
Ora, quando analisamos uma obra de arte humana, uma música, por
exemplo, embora a música seja feita de vibrações sonoras, não é
correto dizer que estas vibrações sonoras ou o tipo de material da
corda do violino seja a verdadeira essência da música. A essência
daquela música está em uma mensagem que não é materialmente
identificável; sua beleza está nas harmonias e nas proporções que
ela apresenta, não no ar em que o som vibra ou no material de que é
feito o instrumento.
Ora, o filósofo contempla e aprende a contemplar a natureza de um
modo que se parece muito mais com alguém encantado uma sinfonia do que
com o modo como os nossos cientistas analisam os dados de laboratório
sobre a natureza. Os filósofos faziam da natureza a música da
inteligência, porque de fato ela se comporta como se tal o fosse.
Pareceu-lhes que alguém quiz tocar com ela uma música que só um
verdadeiro homem poderia ouvir.
É assim que parece que provavelmente Pitágoras discordou das
primeiras posições dos pré-socráticos, e quando afirmou que os
números são a essência da natureza, e não a água, o fogo, ou,
por extensão, os prótons, os nêutrons, os elétrons, as
radiações eletromagnéticas, ou os campos de força gravitacional e
elétrico, queria dizer com isso que se a natureza se comporta ao modo
da racionalidade da mente humana, é a sua própria ordem que é sua
essência, e não o material de que ela possa ser feita.
Referências
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(17) Jâmblico: Vida de Pitágoras.
(18) Abbagnano, Nicolas: o. c.; pg. 22.
(19) Sexto Empírico: Adversus Matematicos.
(20) Abbagnano, Nicolas: o. c., pg. 22.
(21) Lehninger, Albert L.: Bioquímica; São Paulo,
Edgard Blucher, 1976; vol. 1, pg. 1.
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