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Assim, ao lado da ciência moral, o Comentário ao VI da Ética
prescreve o estudo da lógica, da matemática e das ciências da
natureza como requisito para o estudo da metafísica, de cuja
perfeição se produz a contemplação.
O educador moderno estranhará neste currículo, apesar de totalmente
dirigido para a atividade da inteligência como objetivo final, a
importância incomum atribuída à ciência moral, mas a este respeito
já nos explicamos suficientemente no capítulo precedente.
Estranhará também a ausência de outras disciplinas comuns nas
escolas modernas, que historicamente começaram a ganhar importância
na pedagogia durante o Renascimento, como o estudo das línguas, da
literatura, da história, da geografia, das artes em geral; em
suma, a ausência do currículo humanista, introduzido pelo
Renascimento na pedagogia, embora este já tivesse suas origens nas
escolas de oradores da antiguidade clássica. O educador de hoje
estranhará esta ausência e talvez, num primeiro momento, poderá
atribuí-la a uma época em que a educação ainda estava em seus
estágios mais primitivos de desenvolvimento.
Tal ausência, entretanto, melhor examinada, não se deve a nenhum
primitivismo. Na época de Aristóteles, o autor do livro sobre o
qual Tomás de Aquino escreve o Comentário, já havia obras
clássicas de história, como as de Heródoto e de Tucídides, e de
literatura, como os poemas de Homero e muitas obras de dramaturgia, e
as artes em geral haviam já alcançado um grande estágio de
desenvolvimento entre os gregos. A geografia parece não ter feito
grandes progressos, mas mesmo assim os filósofos disto não se
queixaram, sendo que o poderiam ter feito, pois na República
Platão se queixou de que no campo da matemática a geometria plana
estava bem desenvolvida, mas nada se tinha feito ainda na
investigação da geometria no espaço, e isto, segundo ele, fazia
muita falta para a formação do sábio:
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"(Até o momento) não há nenhuma cidade
que estime devidamente os conhecimentos
(de geometria no espaço),
os quais, já por si difíceis,
são objeto de investigação pouco intensa.
Ademais, os que os investigam
necessitam de um diretor,
sem o qual não serão capazes de descobrir nada;
este diretor, porém, em primeiro lugar,
é difícil que exista e,
ainda supondo que existisse,
nas condições atuais
os que têm capacidade para investigar
(as questões de geometria no espaço)
não obedeceriam ao diretor,
movidos por sua presunção.
Mas se uma cidade inteira honrasse estas questões
e auxiliasse o diretor em sua tarefa,
os investigadores o obedeceriam e,
ao serem investigadas
de maneira constante e enérgica,
as questões (de geometria no espaço)
seriam elucidadas em sua natureza,
ao contrário do que acontece agora,
quando são desprezadas pelo vulgo
e até mesmo pelos que as investigam,
sem que se dêem conta
de sua (verdadeira) utilidade" (1).
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Segundo a interpretação que se deve dar à doutrina destes
filósofos, a ausência do estudo das línguas e da literatura e demais
disciplinas conhecidas como humanísticas entre os requisitos imediatos
para a contemplação não significa que tais disciplinas não possam ou
não devam ser aprendidas pelo aluno ou fazer parte do sistema
educacional. O que a ausência de mênção a elas significa é que
elas não são requisitos imediatos para a contemplação; como
preparação remota ou por motivos outros, poderiam ser incluídas no
currículo, mas não poderão ter a influência que, ao lado da
ciência moral, a lógica, a matemática e as ciências da natureza
terão na preparação do aluno para a contemplação.
A importância que tais disciplinas têm como preparação próxima à
sabedoria provém do fato de que a sabedoria diz respeito a coisas
maximamente universais e abstratas e estas disciplinas, ao contrário
das outras, tem em comum os graus de abstração mais elevados com que
elas tratam a realidade. Todas elas, de fato, fazem abstração,
pelo menos, da individualidade do objeto que consideram.
A lógica é uma preparação para o estudo de qualquer ciência. No
dizer de Tomás de Aquino, é
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"uma arte que dirige o próprio ato da razão,
com a qual o homem pode proceder neste ato
com ordem, facilidade e sem erro;
ela se relaciona ao próprio ato da razão
como à sua matéria própria" (2).
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As ciências da natureza, na qual, segundo a concepção dos
Comentários, estão compreendidas a Biologia e a Psicologia, se
ocupam com os seres naturais naquilo que eles têm de necessário,
abstração feita de suas individualidades. Na matemática, além da
individualidade, abstrai-se também da matéria sensível dos entes
naturais todos os acidentes, com exceção da quantidade. Estes
diversos graus de abstração são uma preparação para as
considerações da metafísica, em cujo objeto de estudo já não há
mais nenhuma característica material, os entes sendo considerados
apenas enquanto seres. Nada disso ocorre com as demais disciplinas do
currículo humanista, que não foram mencionadas no Comentário ao
VI da Ética justamente por possuírem um grau de abstração
mínimo; a História e a Geografia, por exemplo, consideram seus
objetos de estudo ainda envoltos em suas individualidades.
Ademais, o ser se converte com o verdadeiro, pois o verdadeiro, diz
Tomás de Aquino, é uma conveniência do ser ao intelecto (3);
à metafísica, portanto, tendo por objeto o ser enquanto ser e sua
causa primeira, cabe uma síntese de todo o inteligível. A
matemática e as ciências da natureza, na medida em que conduzem a uma
síntese do cosmos sensível, são também sob este outro aspecto uma
preparação para a metafísica.
Pela ordem crescente de abstração as ciências da natureza deveriam
vir antes da matemática; entretanto, o Comentário à Ética propõe
que a matemática venha antes das ciências da natureza. A razão
está em que a matemática, ainda que mais abstrata do que as ciências
da natureza, não requer experiência por parte do jovem, enquanto que
as ciências naturais sim; por causa disso a matemática deve ser
aprendida em primeiro lugar. Pelo mesma razão a ciência moral vem
depois das ciências naturais, pois ela necessita ainda de maior
experiência do que a necessária para as ciências naturais (4).
Referências
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(1) Platão: A República, L. VII, 528 b-c.
(2) In libros Posteriorum Analiticorum Expositio, Proêmio, 1.
(3) Quaestiones Disputatae de Veritate, Q. I a.1.
(4) In libros Ethicorum Expositio, L. VI, l. 7,
1211.
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