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Mas não é apenas pela ordenação das paixões a partir das quais se
originam os movimentos da fantasia que a virtude praticada até à
excelência predispõe à contemplação.
Se assim fosse, a perfeita indiferença diante de todas as coisas,
inclusive diante das virtudes, ainda que não ordenasse as paixões,
pelo menos as acalmaria e com isto se obteria o mesmo resultado. A
prática da virtude seria, neste caso, apenas um meio circunstancial
para se dispor à sabedoria.
Para entender porque é indispensável a prática das virtudes, é
preciso considerar que a simples cessação ou disciplina do movimento
da fantasia não produz a contemplação, apenas remove um obstáculo.
Para produzir a contemplação é necessário também desenvolver o ato
da inteligência.
Ora, o ato da inteligência na contemplação da sabedoria é algo de
maximamente abstrato e universal. Na medida, porém, em que o homem
é conduzido pelas paixões, não somente possui uma imaginação
descontrolada, mas também está maximamente disposto à apreensão do
que é particular, que é aquilo que os sentidos, em que estão as
paixões, é capaz de apreender. As virtudes, porém,
principalmente a da justiça e, mais ainda, a da justiça legal, que
ordena todas as virtudes ao bem comum, inclusive as virtudes que dizem
respeito às paixões, ao contrário, dispõem o homem para a
apreensão de bens que são mais universais do que os apreendidos pelas
paixões.
Ademais, a prática da justiça, a maior das virtudes morais, embora
ela se refira às operações e não às paixões de modo direto, por
força das circunstâncias obriga, entretanto, o homem a não seguir
as paixões, não agindo sobre as mesmas diretamente, como as demais
virtudes, mas pela apreensão de um bem universal que se sobrepõe ao
bem singular apreendido pela paixão.
Ora, o bem universal só pode ser apreendido pelo intelecto;
entretanto, como o intelecto pressupõe o sentido, ele é, no tempo,
o último que se aperfeiçoa no homem. De onde que, antes de possuir
um intelecto plenamente desenvolvido, o homem se relaciona no início
de sua vida com o mundo exterior pelos sentidos e pelas paixões,
movimentos do apetite sensível. À medida em que o intelecto começa a
ganhar força, se junto a ele se desenvolvem as virtudes morais e
especialmente a da justiça, ele se vê obrigado a substituir o
movimento das paixões, que dizem respeito ao singular e que dominam
toda a vida inicial do homem, pelas inclinações da virtude que seguem
apreensões mais universais do intelecto.
A prática da justiça, portanto, mais ainda se levada até à
excelência, torna no homem conatural a consideração da inteligência
e a ação da vontade acerca de objetos muito mais amplos do que os dos
estreitos horizontes das paixões. Isto significa que a prática das
virtudes produz hábitos que predispõem à contemplação da sabedoria
quanto à sua própria natureza, e não apenas circunstancialmente pelo
repouso das paixões.
Daí porque as pessoas virtuosas, maximamente as justas, podem, por
analogia, compreender com mais prontidão o significado das coisas que
são ditas pelos que têm experiência da vida contemplativa. Seja,
por exemplo, o dito do profeta Isaías:
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"Tanto quanto os céus
estão elevados acima da terra,
assim se acham elevados
os caminhos de Deus
acima dos caminhos dos homens,
e os seus pensamentos
acima dos pensamentos dos homens".
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O céu é um símbolo da inteligência conaturalíssimo a todos os
homens; não só porque o céu está no alto, assim como também a
cabeça está no alto, mas também porque quanto mais alto subimos,
mais coisas se tornam visíveis, de modo que, se alguém pudesse subir
até o céu, a tudo veria. Neste sentido, o céu é o símbolo da
inteligência, que é maximamente universal entre as potências
apreensivas do homem; e é também o símbolo das coisas divinas, pois
a inteligência é o que há de divino no homem. Ora, o texto de
Isaías diz que os caminhos de Deus distam dos caminhos dos homens
tanto quanto o céu dista da terra. Para o homem que tem experiência
quase que somente das paixões, que dizem respeito ao singular, isso
pouca coisa quererá dizer; mas o homem que vive da justiça, que diz
respeito ao bem universal, e que conseguiu substituir a apreensão dos
sentidos pela apreensão deste bem universal como motor de suas
ações, ele percebe pela experiência que entre a sua vida anterior e
a presente existe a mesma distância que vai entre o céu e a terra;
por analogia ele pode perceber o que significa o caminho da sabedoria
distar do caminho da justiça pela mesma distância, e, por meio desta
apreensão, pode dispor-se à entrada na vida contemplativa. É por
causa deste fenômeno que o Evangelho, ao tratar das virtudes
contemplativas, às quais se refere a sexta bem aventurança
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"Bem aventurados os puros de coração,
porque verão (contemplarão) a Deus".
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e às quais se refere também a sétima bem aventurança, precede-as
imediatamente pela quinta, que trata da misericórdia:
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"Bem aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia".
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como se a misericórdia, uma virtude que muito se assemelha à
justiça, fosse o predisponente imediato das virtudes contemplativas.
Os misericordiosos, de fato, são aqueles que praticam a
misericórdia não pelo prazer de fazer o bem, ou por possuírem um
excedente de dinheiro, ou por terem alcançado um cargo público, mas
por serem obrigados a isto pela percepção da preeminência e da
universalidade do bem comum sobre o bem singular apreendido pelas
paixões (164).
Uma observação final faz-se necessária. Na introdução a este
trabalho dissemos que ele versaria sobre a contemplação vista em
perspectiva filosófica, e que somente faríamos considerações
teológicas no último capítulo; ademais, dissemos que entendemos por
argumentação filosófica aquela em que não fosse necessário invocar
um princípio somente cognoscível pela revelação para justificar suas
conclusões. Cremos não ter desrespeitado esta intenção ao citar
Isaías e as bem aventuranças, porque, embora sejam estes textos da
Revelação contida nas Sagradas Escrituras, com estas citações
não quisemos demonstrar a validade de nenhum argumento, mas apenas dar
um exemplo para tornar mais claro um argumento já exposto.
Referências
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(164) Marrou, H. I.: História da Educação na
Antiguidade; São Paulo, Herder-EDUSP, 1969; IIa.
parte, C. XI, pgs. 323-328.
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