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Vimos que o objetivo da ciência moral é o de levar as virtudes à
excelência; nem todas as virtudes, porém, são objeto da ciência
moral. Algumas estão acima dela; outras, consideradas em si
mesmas, nada têm a ver com ela.
Para entender, portanto, o que é a ciência moral, devemos
determinar qual é o âmbito das virtudes e quais dizem respeito à
ciência moral.
Com esta finalidade o Comentário à Ética propõe primeiramente uma
divisão da alma em três partes. A primeira é inteiramente
irracional; a segunda é irracional em si mesma, embora
participativamente já seja racional; a terceira é inteiramente
racional.
A parte da alma inteiramente irracional é aquela que se assemelha à
alma das plantas; é aquela que é causa da alimentação e do
crescimento. Esta primeira parte da alma não é própria do homem,
mas comum a todos os seres vivos (8). Ela é dita totalmente
irracional porque de nenhum modo se comunica com a razão, não
obedecendo às ordens da razão de nenhum modo (9).
A parte da alma que em si mesma é irracional, mas que participa da
razão, é a concupiscência e toda força apetitiva em geral, como o
irascível e a vontade. As forças apetitivas participam de alguma
maneira da razão porque elas podem obedecer à razão; elas
participam, todavia, não de toda a razão humana; elas participam
apenas da razão prática, que está para com as forças apetitivas
como um pai que manda ou um amigo que aconselha; da razão especulativa
as forças apetitivas não participam (10).
Finalmente, a parte da alma que é inteiramente racional é o
intelecto, que se divide em especulativo ou científico , a quem cabe
especular os entes necessários, e o prático ou raciocinativo, a quem
cabe especular os entes contingentes. O intelecto especulativo pode
ser chamado também de científico porque a ciência se refere aos entes
necessários cujos princípios não podem ser de outra maneira do que
são; o intelecto prático pode ser chamado de raciocinativo na medida
em que nós tomamos conselho do contingente e não do necessário, e o
conselho é um modo de raciocínio.
Embora Aristóteles tenha dividido o intelecto em especulativo e
prático, S. Tomás nota que enquanto tal o intelecto é um só e
não há divisão nele. A justificativa para esta divisão do
intelecto em especulativo e prático está em que existem duas maneiras
de se conhecer o contingente: segundo razões universais e na medida em
que ele é algo individual. Na medida em que o contingente é
conhecido segundo razões universais, seu conhecimento pertence à
mesma parte do intelecto à qual pertence o conhecimento do
necessário, isto é, ao intelecto especulativo. Quando o
contingente é tomado segundo algo que tem de particular, o intelecto,
que considerado em si mesmo tem por objeto conceitos abstratos de
natureza universal, necessita, para conhecê-los enquanto
indivíduos, do recurso à parte sensitiva da alma; é neste sentido
que se diz que o intelecto prático difere do intelecto especulativo
(11).
Segundo esta divisão tripartida da alma, à parte inteiramente
irracional não corresponde virtude alguma.
Às partes da alma que são racionais por participação, embora só
participem do intelecto prático, correspondem as virtudes morais;
são exemplos de virtudes morais a fortaleza, a temperança e a
justiça.
Às partes da alma que são racionais por essência correspondem as
virtudes intelectuais. No intelecto especulativo são exemplos de
virtudes intelectuais as ciências, a sabedoria, e a virtude
denominada intelecto, que apreende a evidência dos primeiros
princípios das demonstrações. A ciência e o intelecto existem,
são adquiridas ou deixam de existir no homem independentemente das
virtudes morais. Quanto à sabedoria, que é a maior das virtudes
intelectuais, sua relação para com as virtudes morais é diferente;
embora no livro VI da Ética Aristóteles e S. Tomás afirmem que
a sabedoria considerada em si mesma independe das virtudes morais, do
conjunto da obra de ambos conclui-se que ela de fato não pode ser
alcançada sem o prévio exercício, levado até à excelência, das
virtudes morais e da prudência.
No intelecto prático temos duas outras virtudes: a arte e a
prudência.
A arte é independente das virtudes morais; a prudência, ao
contrário, conforme veremos bem mais adiante, é totalmente
inoperante na ausência das virtudes morais (12).
Virtudes morais e intelectuais diferem entre si, ademais, não apenas
pelo sujeito, mas também pelo modo como se originam no homem.
De modo geral as virtudes intelectuais surgem e aumentam no homem pela
doutrina, isto é, sendo aprendidas de outros. Este é o modo
ordinário de como surgem e progridem as virtudes intelectuais na
sociedade humana; entretanto, como no aprendizado não se pode
proceder até o infinito, será necessário que muitas coisas sejam
conhecidas pelos homens através de descobertas pessoais. Como,
porém, os conhecimentos resultantes de descobertas pessoais tem origem
no sentido, pois o exercício repetido das faculdades sensitivas dá
origem à experiência de que surge o conhecimento, deve-se concluir
daí que a virtude intelectual, em sua primeira origem, necessita da
experiência de longo tempo (13).
Já a virtude moral têm origem pelo costume das obras (14). Como
a virtude moral está na parte apetitiva da alma, implicando em uma
inclinação a algo apetecível, ela tem origem no costume que se
converte em natureza (15). As virtudes morais são adquiridas pelo
fato de operarmos segundo a virtude. Da freqüente operação do
apetite segue-se uma certa inclinação a modo de natureza: operando o
que é justo e moderado, os homens se tornam justos e moderados
(16). As virtudes morais se produzem em nós pelo fato de que,
agindo repetidas vezes segundo a razão, a forma da força da razão
imprime-se na força apetitiva, e esta impressão nada mais é do que
a virtude moral (17).
Dividimos, assim, as virtudes em morais e intelectuais; explicamos
quais são as virtudes intelectuais, como dependem cada uma de modo
diverso das virtudes morais e o modo como ambas se adquirem. Dito
isto, podemos agora especificar quais são as virtudes que são objeto
da ciência moral.
Na ciência moral consideram-se todas as virtudes morais e mais a
virtude intelectual da prudência, a qual não se dá senão
conjuntamente com as virtudes morais.
As demais virtudes intelectuais não são consideradas na ciência
moral por motivos diversos.
A ciência, a arte e o intelecto, consideradas em si mesmas, são
independentes das virtudes morais: não necessitam das virtudes morais
nem para operarem nem para serem adquiridas.
A sabedoria está fora do domínio da ciência moral por outros
motivos. Embora pressuponha as virtudes morais para poder ser
adquirida, é algo que está situada para além das ciências morais.
Referências
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(8) In libros Ethicorum Expositio, L. I, l. 20, 231;
L. I, l. 20, 233.
(9) Idem, L. I, l. 20, 240. (10) Idem, L. I,
l. 20, 240. (11) Idem, L. VI, l. 1, 1123.
(12) Idem, L. I, l. 20, 243. (13) Idem, L.
II, l. 1, 246. (14) Idem, L. II, l. 1, 247.
(15) Idem, L. II, l. 1, 249. (16) Idem, L.
II, l. 1, 250. (17) Idem, L. II, l. 1, 249.
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