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Ainda que tenhamos citado S. Gregório de Nissa e Hugo de S.
Vitor, é, entretanto, em S. Tomás de Aquino onde podemos
encontrar a interpretação mais profunda das bem aventuranças,
principalmente das finais que se referem à contemplação. Para isto
S. Tomás de Aquino lançou raízes profundas em uma passagem do
livro de Isaías, o maior dos profetas do Antigo Testamento, que
descreveu o Messias que haveria de vir como alguém repleto dos dons do
Espírito Santo.
A passagem em que Isaías descreve o futuro Messias, o Cristo que
haveria de vir seis séculos mais tarde, como alguém repleto do
Espírito Santo, é a seguinte:
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"Despontará um rebento da raiz de Jessé,
e uma flor brotará de sua raiz.
Sobre ele repousará o espírito do Senhor,
espírito de sabedoria
e entendimento,
espírito de conselho
e fortaleza,
espírito de ciência
e de piedade,
e estará ele repleto do espírito
de temor do Senhor".
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Jessé, citado no início desta profecia, era o pai de Davi, de
cuja descendência nasceu Jesus. O profeta Isaías, embora
antecedesse o Cristo de seis séculos, foi posterior a Davi por cerca
de três séculos. O rebento e a flor que brotarão da raiz de
Jessé, são, portanto, o próprio Jesus, que descendia da
linhagem de Davi e, portanto, da raiz de Jessé.
Para entender o restante da profecia, na qual se diz que sobre o
Cristo repousaria o espírito do Senhor, deve-se explicar,
primeiramente, que segundo a doutrina cristã e o próprio S. Tomás
de Aquino, o Cristo era verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Embora
fosse uma só pessoa, isto é, a pessoa do Verbo de Deus ou a
segunda pessoa da Santíssima Trindade, havia em Cristo duas
naturezas perfeitas, a natureza divina e a natureza humana (78).
Disto se segue que tudo aquilo que pertence à natureza humana era
possuído por Cristo, assim como tudo aquilo que pertence à natureza
divina. De onde que em Cristo havia, além da divindade, um corpo
verdadeiro (79), e uma alma humana (80), dotada de
inteligência humana (81). A divindade, portanto, não
substituía no Cristo a alma humana, fazendo as suas vezes; se assim
fosse, o Cristo não seria verdadeiro homem, pois a natureza humana
é tal que é necessariamente dotada de uma alma intelectiva, e esta é
o principal que há no homem. Cristo, portanto, além da
inteligência divina, infinita por natureza, possuía também uma
inteligência humana, finita, porém mais perfeita do que a de
qualquer outra criatura (82); como conseqüência, possuía
também duas vontades, uma divina e outra humana (83), ambas
perfeitamente concordes entre si (84).
Segue-se ainda desta doutrina que o Cristo possuía em sua alma
humana a mesma graça que é concedida por Deus aos homens,
possuída, porém, em sua plenitude (85); podia, portanto, pelo
mesma razão, receber o Espírito Santo e ser movido
perfeitissimamente por Ele (86). A Sagrada Escritura afirma
isto não apenas porque assim foi profetizado por Isaías, mas porque
assim também o Evangelho de São Lucas, por exemplo, descreve o
Cristo:
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"Então Jesus,
cheio do Espírito Santo,
retirou-se do Jordão,
e foi conduzido pelo Espírito ao deserto,
onde esteve durante quarenta dias,
sendo tentado pelo demônio".
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Assim, quando Isaías profetizou e descreveu o Espírito Santo de
que estava repleto a alma de Cristo, estava descrevendo, na
realidade, a plenitude da graça do Espírito Santo que pode ser
recebida pela natureza humana, recebida de fato pelo Cristo. Os
diversos espíritos de que fala Isaías, o espírito de sabedoria e
inteligência, o de conselho e fortaleza, o de ciência e piedade, e
o de temor do Senhor, são os diversos modos pelos quais o Espírito
Santo move a alma humana, aos quais correspondem certos hábitos
infundidos por Deus na alma humana, que a tradição cristã passou a
denominar de dons do Espírito Santo, pelos quais o homem se dispõe
a seguir com docilidade os movimentos do Espírito Santo.
Muitos dos primeiros santos padres do Cristianismo, assim como o
próprio Novo Testamento, costumavam o mais das vezes chamar a todos
os dons do Espírito Santo apenas de Espírito Santo; disto já
demos um exemplo poucas linhas atrás na passagem de Lucas em que o
evangelista narra Jesus cheio do Espírito Santo ser conduzido por
ele ao deserto; já tínhamos citado também algumas passagens das
cartas de Santo Antão em que ele se refere apenas ao Espírito
Santo como
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"aquele fogo invisível
que consome nossas impurezas
e devolve nosso espírito
à sua pureza original",
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ou ainda
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"aquele grande fogo invisível
que desce sobre nós
vindo do Céu";
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e também à passagem de S. Diádoco, em que ele nos fala dos dons
do Espírito Santo apenas como
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"aquele incêndio
que nos move
à caridade divina".
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Santo Tomás de Aquino também assim às vezes procede,
referindo-se apenas ao Espírito Santo ou à graça do Espírito
Santo. Mas em muitas outras passagens de seus escritos, apoiando-se
como em sua raiz nesta profecia de Isaías e seguindo uma outra linha
de argumentação que daí derivou desenvolvida principalmente pelos
teólogos da Idade Média, desdobra a graça do Espírito Santo nos
sete dons de que fala Isaías.
São quatro os lugares em que S. Tomás de Aquino trata dos dons do
Espírito Santo.
Tratou primeiramente deles no Comentário ao Livro de Isaías,
quando no capítulo 11 aborda a profecia que já citamos.
Depois tratou deles novamente no Comentário ao Terceiro Livro das
Sentenças de Pedro Lombardo, um teólogo famoso da Idade Média,
ex aluno de Hugo de S. Vitor, para quem tinha sido encaminhado por
intermédio de S. Bernardo; na distinção 34 do Terceiro Livro
das Sentenças Pedro Lombardo tratava dos dons do Espírito Santo
em geral e do dom de temor em particular, e na distinção 35 do
mesmo livro analisava mais cuidadosamente os de sabedoria, entendimento
e ciência.
Tratou também S. Tomás de Aquino dos dons do Espírito Santo na
Prima Secundae da Summa Theologiae, próximo ao fim de sua carreira
docente. Nesta Prima Secundae da Summa S. Tomás fala dos dons
do Espírito Santo naquilo que eles tem de comum entre si.
Finalmente, na Secunda Secundae da Summa, em que sua doutrina
sobre o assunto alcança a maior profundidade, Tomás trata de cada um
destes dons em separado.
Os dons do Espírito Santo, dizia já S. Tomás de Aquino no
Comentário a Isaías, não são virtudes:
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"são hábitos mais elevados,
dados por Deus para auxílio das virtudes,
aos quais chamamos de dons
porque excedem o modo da operação humana" (87).
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Os dons do Espírito Santo, pois, não são virtudes; tal como as
virtudes, são também hábitos, mas são hábitos mais elevados do
que as virtudes. Em que precisamente diferem, porém, os dons das
virtudes, S. Tomás o explicou com toda a precisão na Summa
Theologiae:
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"Para distinguir os dons das virtudes,
devemos seguir o modo de falar
das Sagradas Escrituras,
que deles nos fala não pelo nome de dons,
mas pelo nome de espíritos,
conforme disse Isaías:
`Repousará sobre ele
o espírito de sabedoria
e de entendimento'.
Por estas palavras
dá-se a entender manifestamente
que os sete dons são enumerados
na medida em que estão em nós
por inspiração divina.
Ora, inspiração significa um certo movimento
proveniente do que é externo.
Deve-se considerar, pois,
que há no homem dois princípios moventes:
o primeiro é interior,
isto é, a razão;
o segundo é exterior,
e é Deus.
Tudo, porém, que é movido,
deve ser proporcionado ao motor;
e a disposição pela qual o móvel
se dispõe a ser bem movido pelo motor
é a perfeição do móvel.
Quanto mais elevado for o movente,
portanto,
tanto mais será necessário
que o móvel lhe seja proporcionado
por uma disposição mais perfeita,
assim como vemos que o discípulo
deve ser mais perfeitamente disposto
para que possa entender uma doutrina
mais elevada do mestre.
Ora, é manifesto que as virtudes humanas
aperfeiçoam o homem
na medida em que ele,
por natureza, é movido pela razão
àquilo que age,
tanto interiormente como exteriormente.
É necessário, portanto,
que haja perfeições mais altas no homem
segundo as quais haja nele disposições
a ser movido divinamente.
Estas perfeições são chamadas de dons,
não apenas porque são infundidos no homem
por Deus,
mas também porque, por meio deles,
o homem se dispõe a tornar-se prontamente móvel
pela inspiração divina,
(e por isto são chamados também de espíritos).
Por isto é que se diz
que os dons aperfeiçoam o homem
para atos mais elevados
do que os atos das virtudes" (89).
"Os dons do Espírito Santo são, portanto,
perfeições do homem
pelas quais o homem é disposto
a seguir bem o instinto do Espírito Santo.
As virtudes morais são hábitos
que aperfeiçoam as potências apetitivas
na medida em que elas participam
de algum modo da razão,
por ser-lhes natural serem movidas
pelo império da razão.
Portanto, os dons do Espírito Santo
estão para o homem
por comparação ao Espírito Santo
assim como as virtudes morais
estão para com as potências apetitivas
por comparação à razão.
As virtudes morais são hábitos
pelos quais as potências apetitivas
se dispõem à pronta obediência da razão;
os dons do Espírito Santo são hábitos
pelos quais o homem é aperfeiçoado
para prontamente obedecer ao Espírito Santo" (90).
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Ora, ocorre que a palavra latina para bem aventurança é beatitudo,
o que significa felicidade; de onde que a tradução mais literal das
bem aventuranças seria:"Felizes os pobres de espírito, felizes os
mansos, felizes os que choram, etc.".
Mas, diz Tomás de Aquino, segundo Aristóteles a felicidade nada
mais é do que a operação segundo a virtude (91); ora, estas
operações são justamente as que se seguem aos dons do Espírito
Santo, infundidos por Deus no homem para auxiliar o modo humano
imperfeito da operação das virtudes; portanto, conclui Tomás,
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"a operação procedente da virtude,
aperfeiçoada pelos dons do Espírito Santo,
é corretamente chamada de bem aventurança" (92),
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seguindo-se daí que as bem aventuranças enumeradas por Cristo são,
na verdade, operações perfeitíssimas,
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"que excedem o modo da operação humana" (93),
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produzidos por inspiração do Espírito Santo no homem tornado capaz
de segui-la pelos hábitos dos dons do Espírito Santo.
A cada bem aventurança, pois, S. Tomás de Aquino associa um dom
do Espírito Santo; e desta relação entre uma coisa e outra surgiu
talvez a mais clara das interpretações das bem aventuranças que já
se conseguiu até hoje.
À primeira das bem aventuranças, a dos pobres em espírito, S.
Tomás de Aquino associa o dom do temor do Senhor; começando por
aí, alcança as duas últimas bem aventuranças, as que aqui nos
interessam particularmente, às quais ele associa os dons mais
elevados, o dom de entendimento e de sabedoria. Ele afirma que as
duas últimas bem aventuranças se referem à vida contemplativa
(94) e à sexta, a dos puros de coração que verão a Deus,
associa o dom de entendimento (95); à sétima, a dos pacíficos
que serão chamados filhos de Deus, associa o dom de sabedoria
(96). A descrição que ele faz, portanto, dos modos diversos de
ação do Espírito Santo na alma que correspondem aos dons de
entendimento e de sabedoria, corresponde à diferença dos modos de
contemplação referentes à sexta e à sétima bem aventurança.
Vamos, a seguir, tratar de cada um deles em separado.
Referências X. 13
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(78) Summa Theologiae, IIIa,.Q.2 a.2; IIIa, Q.2 a.4.
(79) Idem, IIIa, Q.5 a.1. (80) Idem, IIIa,
Q.5 a.3. (81) Idem, IIIa, Q.5 a.4. (82)
Idem, IIIa, Q.10 a.4. (83) Idem, IIIa, Q.18
a.1. (84) Idem, IIIa, Q.18 a.6. (85) Idem,
IIIa, Q.7,a.9. (86) Idem, IIIa, Q.7 a.5.
(87) In Isaiam Prophetam Expositio, C. 11.
(89) Summa Theologiae, Ia IIae, Q.68 a.1.
(90) Idem, Ia IIae, Q.68 a.3.
(91) In Isaiam Prophetam Expositio, C. 11.
(92) Idem, loc. cit.. (93) Idem, loc. cit..
(94) Summa Theologiae, Ia IIae, Q.69 a.3.
(95) Idem, IIa IIae, Q.8 a.7. (96) Idem, IIa
IIae, Q.45 a.6.
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