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Tem se dito nestas linhas que é pelo seu ato de ser que o ente
participa do ser. E logo a seguir, já se afirmava que o ser é ato,
de por si infinitamente pleno. Convém, pois, guardar essa
distinção. Ser, não é idêntico a ato de ser. Ser é mais
amplo. A essência, por exemplo, também é, mas é possibilidade.
As filosofias do ser dizem que é pelo ato de ser que os entes têm
realidade, isto é, participam do ser.
Poder-se-ia perguntar agora: qual é o conteúdo do ser? O que se
encontra no ser como tal, não como ato de ser de um ente finito, mas
enquanto ser? É o mesmo que desejar saber em que consiste o seu
núcleo íntimo, sua perfeição.
Na tentativa de responder a estas perguntas, Heinrich Beck, a
partir da obra de Tomás de Aquino, apresenta[5] um caminho que,
começando pela operação -ato segundo-, se remonta ao ato primeiro
do ente, o ato de ser, para chegar finalmente ao ato imóvel de ser.
Sua investigação começa, porém, a partir de uma forma de
operação não primitiva, mas derivada e posterior, que possa assim
cair sob os nossos sentidos: a mobilidade física dos corpos. Mas a
mobilidade entendida não como mudança de lugar, mas como movimento do
ser: o trânsito temporal de um estado de ser a outro: de um certo
grau potencial de ser para um grau mais atual.
Vê-se assim, por analogia entre o ato segundo e o ato primeiro, que
este último comporta também movimento, num sentido mais geral e
supra-temporal. Se o movimento em sentido próprio -que expressa um
trânsito temporal-, é o ato do que é imperfeito, o ato do ente
enquanto se encontra em potência, o movimento, em sentido geral,
seria o ato do perfeito. E quanto mais perfeito for o ser, mais
espiritual será seu ato e mais concentrado em si seu movimento.
De qualquer maneira, a natureza do ato expressa-se por ambas as
formas de movimento e, portanto, pode-se dizer que a atualidade,
enquanto tal, comporta uma analogia do movimento. O conceito de ato
é análogo ao de movimento. Ora, como a operação brota do ser e
nele se baseia, é lógico relacionar o conceito de ser com o
movimento.
Costuma-se chamar de perfeição a esse movimento característico da
atualidade do ser. Quanto mais atualidade um ente tiver, maior
movimento terá e maior perfeição: sua maior atualidade consistirá
num obrar mais em si mesmo e, ao mesmo tempo, num estar mais
perfeitamente em si.
Em outras palavras, é preciso ver a perfeição contida no ser como
algo sempre atual, algo que se atualiza, se realiza. Em Deus, como
pura operação subsistente; no ser finito, como uma realização e
atualização do ente, dentro dos limites da essência.
Portanto, essa perfeição de por si infinita que tem o ser não é
algo estático mas dinâmico, e nesse dinamismo pode-se ainda
vislumbrar uma certa estruturação ou ordenação transcendental.
Dentre todas as propriedades que caracterizam esse dinamismo,
principalmente duas, por terem caráter operativo, revelam da melhor
maneira o conteúdo do ser em seu aspecto universal: o ser verdadeiroe
o ser bom[6]. Ser verdadeiro é ser cognoscível[7], e ser bom é ser
apetecível. O autêntico dinamismo -movimento perfeito- do ser do
homem, por exemplo, tem que ser algo cognoscível e apetecível pela
sua pessoa. E tudo quanto possa enriquecer o ser do homem tem de ser
primeiro conhecido, isto é, encontrar-se na alma -não segundo o
seu ser próprio, mas segundo o ser espiritual da alma-, e depois
amado, isto é, a alma deverá inclinar-se a ele segundo esse ser
espiritual que o conhecido tem nela. Há, portanto, no ser do homem
um movimento circular de conhecimento e amor -do ente objetivado para o
espírito e do espírito para o ente objetivado-, e tanto mais
perfeito será o ser quanto mais conhecimento e amor comporte.
Todavia, esse movimento circular não é característico apenas do ser
do homem, mas de todo ser, dentro dos limites da essência. Deus,
ato puro de ser, é o próprio ato vital do conhecer e do amar. Por
outro lado, embora o conhecimento, na acepção estrita do termo, se
encontre só no mundo espiritual, pode-se ampliar a sua noção
considerando a ação do ente material também como um certo
conhecimento, na medida em que de alguma maneira nela se combinam o
agente e o paciente. E o mesmo pode dizer-se do amor. Agostinho,
após dizer-nos que o azeite colocado sob a água, situa-se sobre
ela, e que derramada esta em cima do azeite, submerge-se debaixo,
cada corpo tendendo assim para o seu lugar pelo seu peso, afirma: meu
peso é o amor. Pode-se denominar também de "amor" a inclinação
que revelam todos os seres quando se dirigem para o seu fim.
Conclui-se, portanto, que a estrutura e a forma interna do ser é um
movimento baseado na verdade e na bondade do ente. O ser se revela
nesse movimento, que expressa assim sua natureza ou índole
transcendental. Trata-se, é claro, de um movimento entendido em
sentido análogo, do ato do perfeito. A atualidade do ser vem a
significar como que um embalo circular em si mesmo, que é justamente o
que dá estabilidade e firmeza aos entes. Aquilo pelo qual subsistem.
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