|
Perguntávamos no início destas linhas, não sem uma ponta de
estranheza, de que maneira a verdade ou falsidade de uma proposição
poderia vir a ser definida pelas condições subjetivas de quem a
formula. Agora, após termos visto que o ato humano de conhecer é
sustentado pelo ato interno substancial de conhecimento, sem o qual o
homem não poderia subsistir, nos resulta bem mais fácil entender o
mecanismo da regra B.
Acabamos de ver como o universo luliano está constituído por um
conjunto de atos, concomitantes e hierarquizados, o mais intenso dos
quais é o Ato puro de Deus, que sustenta todos os outros, inclusive
os atos de conhecimento postos pelo homem. É nestes atos de
conhecimento que os outros entes manifestam ao homem seu ser,
atualizando seu entendimento e tornando-o verdadeiro entendimento, e
possibilitando desta maneira seu aperfeiçoamento. Num ato de
conhecimento devemos considerar, portanto, três elementos: o ente
que está sendo conhecido, o entendimento em ato de conhecer e a
enunciação, pelo entendimento, da verdade conhecida. O processo é
pois o seguinte:
os entes,
|
1) pela mistura e congeminação dos princípios generalíssimos
tornam-se atuais e susceptíveis de serem conhecidos pelo homem;
2) ao serem conhecidos, atualizam o entendimento humano tornado-o
verdadeiro. Lúlio esclarece que o entender é um ato que, muito
embora vise atingir o modo de ser do ente conhecido[25], tem lugar
no interior do sujeito cognoscente[26]e portanto convirá que haja a
maior proporção possível entre o modo de ser do ente conhecido e o
ato de seu conhecimento[27];
3) o ato de conhecimento é expressivo, isto quer dizer que o
entendimento conhece ao expressar aquilo que conhece. Assim sendo, a
verdade expressada pelo entendimento dependerá da verdade do próprio
entendimento.
|
|
Na Ars brevis encontramos uma formulação sintética da regra B.
Diz assim: “a regra B tem três espécies, a saber, a dúvida, a
afirmação e a negação; de modo que o entendimento no começo deve
supor que ambas as partes são possíveis e não aceite o acreditar,
que por natureza não é seu ato, mas o entender. E assim opte pela
parte com a qual o entendimento tem maior relação, pois é
necessário que aquela seja a verdadeira.”[28]
O artista que aplica a Ars constrói inumeráveis proposições que
irá contrastar com certas máximas que ele mesmo elaborou com ajuda da
própria Ars. As proposições que respeitarem as máximas e as
condições do entendimento deverão ser aceitas como verdadeiras, as
que não, devem ser eliminadas. Isto é feito mediante a regra B.
Em primeiro lugar, as proposições se examinam na sua forma
afirmativa e negativa, e se supõe que ambas são possíveis, para
não constranger o ato do entendimento que no começo deve permanecer
totalmente indeterminado. É a primeira espécie da regra B, a
dúvida. Logo após, deve-se escolher a afirmativa ou a negativa,
optando por aquela com a qual o entendimento tem maior relação. Que
significa isto?
Simplesmente, deve-se escolher a proposição que produza maior
congruência entre o que se afirma e o ato de afirmá-lo; com outras
palavras, o que se afirma é um ser, portanto um ato, e a afirmação
do entendimento é outro ato; os dois atos têm de ser congruentes.
Tenha-se em conta que se por um ato de conhecimento o homem nutre seu
próprio ser —uma vez que o ser da coisa conhecida atualiza o
entendimento humano—, deve-se poder afirmar que quanto mais elevado
for o grau de ser da realidade conhecida que se apresenta como objeto ao
entendimento, tanto mais poderá atualizá-lo, tanto maior será a
verdade que manifesta, e tanto mais contribuirá à manifestação da
perfeição universal.
Além disso, deverá haver uma proporção entre a capacidade
cognoscitiva do homem e o objeto que se forma nela. À abertura da
inteligência à totalidade do real deve necessariamente corresponder um
modo perfeito, e de alguma forma ilimitado, de posse daquela mistura
de princípios generalíssimos que determina o grau de ser de cada
ente. Ou, o que é a mesma coisa, quanto mais perfeito for o homem
na posse desses princípios, mais capaz será de conhecer a verdade
particular dos entes.
Por esse motivo a regra B indica que se deve escolher sempre como mais
verdadeira a proposição cuja verdade mais atualize o entendimento que
a formula. Na Ars generalis ultima, versão definitiva e mais
extensa de sua Arte, Lúlio nos explica os motivos porque se deva
proceder assim.
O ato próprio do entendimento é entender e não acreditar;
portanto, desde o começo, quando se está na frente de uma
proposição para decidirmos sobre a sua veracidade ou falsidade, a
postura do entendimento deve ser a mais racional possível e longe por
conseguinte de qualquer atitude fideísta. Consegue-se isto admitindo
desde o começo que tanto a proposição afirmativa como a negativa
podem ser possíveis. Desta maneira o entendimento não se torna
obstinado nem tem porque aderir —já antes de começar a entender—, a
qualquer uma das proposições; assim sendo, o entendimento
encontra-se preparado para sua função investigativa e, livre de
preconceitos, poderá descobrir qual das duas, a negativa ou a
afirmativa, é a verdadeira.
E como fará isso? Concedendo sempre que a verdadeira é aquela cuja
conclusão se lembra com maior facilidade, é mais inteligível e a
mais amável. Para tanto, ajudar-se-á com os princípios e suas
definições, e com as outras nove regras. Lúlio esclarece que
devemos entender por “aquela que se lembra com mais facilidade e que é
mais amável” a que tem maior inteligibilidade, não a menor, pois
quando escolhemos a proposição afirmativa ou a negativa menos
lembrável e menos amável, tal escolha não pertence ao gênero da
filosofia ou da ciência, senão mais bem ao gênero da fé e da
credulidade. Quando todavia se escolhe a proposição mais
inteligível, com uma inteligibilidade equivalente à sua amabilidade e
lembrabilidade, gera-se então ciência verdadeira e necessária, na
qual o entendimento verdadeiramente atinge o objeto e descansa.[29]
E evidente que para se conhecer quando nosso entendimento estaria no
seu mais alto grau de inteligibilidade é preciso superar o limite
próprio ao conhecimento objetivo. No lulismo é necessário que se
conheçam adequadamente as potências, seus objetos e seus atos, para
poder-se julgar o próprio conhecimento objetivo[30].
Devemos concluir portanto que as proposições que se produziram com
ajuda da Ars são aceites ou rejeitadas, conforme a regra B, a
partir deste outro conhecimento habitual que temos do próprio
entendimento e de seu ato de conhecer.
|
|