O CONCEITO DE NATUREZA EM LÚLIO E SUA APLICAÇÃO SER HUMANO

Esteve Jaulent*


INTRODUÇÃO

A segunda metade do século XX certamente ficará conhecida pelos cultivadores da metafísica como a época em que, pela primeira vez na história da filosofia, se começou a pensar no ser humano como possuidor de um estatuto óntico diferenciado.

Karol Wojtila, em seu profundo estudo The Acting Person[1], muito embora não tivesse a intenção de desenvolver uma concepção metafísica completa do homem, mostra a pessoa humana sob uma perspectiva bem particular: sua investigação centra-se na pessoa humana enquanto se integra e manifesta a si mesma por meio da ação. O leitor percebe uma clara tentativa de tratar a pessoa humana de forma diferente de como o faz a metafísica clássica. Contudo, como se explica na advertência final[2], este aspecto da integração da pessoa na ação apenas nos aproxima a uma especial condição óntica do homem, mas não a explica suficientemente; e conclui afirmando que a visão do homem que se obtém após a leitura de sua obra parece confirmar, suficientemente, que sua condição óntica não supera os limites de sua contingência. Isto é, que o homem, ao fim e ao cabo, é um ser. O futuro Papa, portanto, apenas anuncia um estatuto óntico diferenciado do homem, mas não o define nem o descreve.

Leonardo Polo também desenvolve o tema em sua antropologia transcendental. Segundo esse autor, a essência do homem não é intracósmica, não se assemelha à essência do universo[3], se entendermos esta, segundo a tese aristotélica, como a unidade de ordem realizada pelas substâncias que o compõem. Polo explica que o universo como um todo obedece a uma ordem interna, a ordem da causa final. Esse seria o sentido do telos aristotélico. Pois bem, conforme a antropologia aristotélica, o homem é uma substância natural, uma substância vivente, superior, é verdade, às outras substâncias, mas que integra o cosmos junto com elas. A antropologia do Estagirita pára por ai, e o homem resta um ente intracósmico.

Polo vai mais longe, ao afirmar que o homem não está unificado pelo fim do universo, pela unidade de ordem do universo, negando-lhe, por esse motivo, sua condição de ente intracósmico. "O homem pertence ao universo? Não. A interpretação da antropologia como filosofia segunda é rigorosamente a consideração do homem como ser intracósmico, pertencente ao universo. Essa é uma convicção grega, e nela encontra-se a ruptura entre a filosofia cristã e a filosofia grega. A filosofia cristã pode assumir a filosofia grega, mas o que lhe é muito difícil de aceitar é que o homem seja um ser que se explique como pertencente ao universo. Por exemplo, a idéia de que a alma humana é diretamente criada por Deus, tese da filosofia medieval cristã, tira a alma do universo: porque, se tem de ser diretamente criada por Deus, já não a podemos considerar incluída na criação do universo."[4] O homem é superior ao universo, explica Polo, porque é uma natureza que se dá a si própria a sua perfeição. O que aperfeiçoa o universo é a causa final, que é extrínseca às substâncias que o compõem. Porém, no caso do homem não é assim. A perfeição do homem é intrínseca: o homem é uma substância capaz de autoperfeição.

Por tratar-se de um ato de ser superior, portador de uma transcendentalidade na qual o ser se converte com o entender e o amar pessoal, Polo confere à essência humana um estatuto superior ao da essência do universo. A essência humana, segundo ele, é aberta, admitindo um crescimento irrestrito. Sempre pode ir além.

Surge, desse modo, uma nova ciência - a antropologia transcendental - legalmente distinta da metafísica, porque seu objeto de estudo, a pessoa humana, é um ser transcendentalmente diferente. A antropologia transcendental não é uma ontologia regional, não estuda o homem como um ente particular ao lado de todos os outros entes, mas como exercendo um ato de ser todo especial, o ato de ser humano.

Talvez essa nova ciência defendida por Polo não chegue a se concretizar, mas não resta dúvida que suas idéias abrem novos caminhos e permitem posicionar devidamente muitos temas humanos. A intelecção, o amor e a liberdade humanos ganham, nessa nova perspectiva, a transcendentalidade que certamente lhes corresponde. Enfim, surge um panorama completamente novo, diante do qual, como diz Salvador Piá[5], é difícil ficar indiferente.

Foi precisamente a consideração dessas novas idéias que gerou o presente artigo, mostrando que o filósofo maiorquino Raimundo Lúlio foi também precursor nesses temas. Lúlio (1232-1316) lutou toda a sua vida para tornar conhecido um novo método de ver a realidade, um novo método de pensar -a sua Arte-, no qual o ser humano também aparece sob um estatuto óntico diferenciado.

Estas breves linhas têm o objetivo de mostrar alguns pontos que sinalizam qual era a concepção luliana do homem, baseando-se, principalmente, em duas obras: o Libre de home [6]e o Libre de Ànima racional[7]-além, obviamente, de considerar a metodologia implícita na Ars generalis ultima[8]. Porém, antes será necessário adentrar-se no conceito clássico de natureza, ver como o filósofo maiorquino o utiliza e o aplica ao ser humano.