A UNIFICAÇÃO UNIVERSAL PELO ATO

As afirmações de que não se pode dar nenhum ato sem a presença simultânea de seus três correlativos e de que os entes finitos concretos são reais pelo seu ato de ser tridimensional, têm validade universal. Portanto, os entes, no lulismo, serão ativos, isto é, são e aperfeiçoam-se por atos. Ora, os atos que dão lugar a essa atividade são tais pela especial combinação dos princípios generalíssimos que, em cada ente, vem determinada pela própria essência.  Dai o poder-se afirmar que os entes não só estão relacionados entre si, mas que essa relação está hierarquizada segundo o grau de intensidade dos atos que os constituem, isto é, segundo a maior o menor aproximação do Ato puro de Deus.

A perfeição, pois, radica no ser. Ja foi visto linhas acima que a perfeição que cada ente adquire com sua atividade repercute no seu próprio ser. É sempre, porém, um perfeição concreta. Mais ainda, também a perfeição última a qual tende todo ente, será sempre algo concreto, nunca uma essência abstrata ou um puro ato de ser. Da mesma maneira, a tendência de toda a realidade existente parece consistir, no lulismo, mais na ordenação a “uma atividade concreta global”, segundo as distintas naturezas, do que numa “tendência a um modo de atividade indicado pelas essências”. No lulismo, definitivamente, a ação segue ao ser.

Atividades concomitantes hierarquizadas, eis o universo luliano. Em outras palavras, perfeições concomitantes hierarquizadas, porque ato é perfeição. Poucas linhas mais embaixo, após dizer que "convém que um radical lembrar, entender e amar estejam em contínuo ato, todo o tempo em que o homem é homem”[22], Lúlio aplicará ao próprio Deus a idéia de que é a atividade interna de cada ente  que o sustenta e promove todo seu atuar externo. Dirá assim o mestre maiorquino: “isto que dissemos do entendimento convém que seja verdadeiro para que um poder geral possa num inteligível geral e num entender geral ter muitas obras particulares por razão dos objetos.”[23]

Não se trata de expor aqui a concepção luliana da criação, mas este breve inciso que Lúlio nos deixou sobre o Criador no interessante Libre de home, justamente no capítulo em que se explica onde se encontram as obras naturais do homem, vem a ser como que um resumo, ou melhor uma conseqüência, da maneira como ele entende a criação: um poder absoluto, Deus, Ato puro de entender, que sustenta "tudo", entendendo-se por este "tudo" o conjunto dos atos particulares que constituem o ser e o atuar dos diversos entes que existiram, existem e existirão. A mistura de princípios que se dá nos entes criados determina o grau de ser de cada ente, mas Deus sustenta tudo "no seu próprio inteligível geral" porque nEle têm origem as essências abstratas dos atos concretos, substanciais ou acidentais, que constituem os entes que com sua libérrima vontade decidiu criar. A criação, segundo o lulismo, consiste, pois, num único ato de Deus pelo qual dá o ser, e mantém nele, a todos os gêneros, espécies e indivíduos, cada um no seu tempo e lugar.

Alcança-se assim, desde a perspectiva do ato, uma unificação do mundo do pensamento e do mundo real, isto é, do abstrato e do concreto. Tudo depende de Deus pois, pela intensidade de seu conhecimento, é o princípio de todas as essências que se sustentam nos diversos atos, quer substanciais, quer acidentais. Não só depende dEle a específica combinação de princípios generalíssimos, ou Dignidades, que constituem o ser dos entes, incluído o homem, senão também todos os atos que os entes realizam ao longo de sua vida.

O conhecer humano é duplamente sustentado por Deus, uma vez que, como víamos linhas acima, se por um lado os atos naturais de conhecimento apropriado são sustentados pelos atos naturais de conhecimento substancial e próprio, os quais são obviamente sustentados por Deus, por outro, também o ser dos entes conhecidos, que se manifesta ao homem em cada ato de conhecimento, é sustentado por Deus.

Cada ente, segundo o lulismo, aperfeiçoa-se a si próprio pela sua atividade, conseguindo-se assim aumentar a perfeição concreta do universo até atingir-se aquela “atividade concreta global” que acabamos de mencionar. Contudo, este estado final de atividade é alcançado através do homem,  pois ele é o fim de todas as criaturas, ao integrar em si mesmo o corporal e o espiritual. O ser humano é um “microcosmos” [24]e com seus atos de conhecimento dá sentido à toda a criação. Se quanto mais perfeita é a atividade das criaturas irracionais, tanto mais se reflete nelas a verdade divina, quanto mais perfeita seja a atividade desse “microcosmos” humano, tanto mais a verdade divina não só se refletirá nele, mas nele se manifestará; pois a contemplará não só em suas semelhanças, mas em si mesmo, como objeto de seus atos de conhecimento, sendo, desta maneira, a verdade dos seres que conhece uma participação na Verdade eterna. Ora, o homem é tanto mais capaz de conhecer a verdade dos entes quanto mais se possui a si mesmo, quanto mais perfeito é em seu ser.

E assim voltamos à regra B da Ars.