A LUTA CONTRA O AVERROÍSMO

Costuma-se chamar de “realismo” à postura filosófica que tenta explicar as coisas com base no real, em oposição ao “idealismo”, cujo ponto de partida é o pensamento do real. Com toda a certeza, Lúlio deveria ser chamado não só de “realista” mas de “filósofo da realidade”, pois o seu realismo não se esgota no ponto de partida, mas mantém-se ao longo de todo o desenvolvimento da reflexão.

Como é sabido, Aristóteles percebeu o caráter ativo da realidade. Sua noção de substância incorpora esta importante descoberta: ser substância é ser em ato. O ato é o primordial na substância; o que a unifica. Por isso, a substância — representada no juízo pelo sujeito — tem mais atualidade que o predicado, o qual significa a essência, ou seja, o que a substância é. Contudo, prosseguindo a sua reflexão a fim de lançar luz sobre os constitutivos da substância real, concreta, o Estagirita não se manteve na observação atenta da realidade e, aferrando-se ao pensado, encontrou os constitutivos do real na matéria e na forma da essência, significada na proposição judicativa. Ocorre, porém, que a essência expressa no juízo é a essência pensada, abstrata, e, portanto, também serão abstratas, e não reais, as noções de matéria e de forma que para Aristóteles constituem a substância. Em outras palavras, a atenção foi deslocada da atualidade da substância concreta para a menor atualidade do pensamento.[16]

Esse desvio impedirá que se veja a prioridade do ato na substância; pois, quando aparece constituída pela matéria e pela forma, a substância resulta já algo derivado. Se não se leva isso em conta, o aristotelismo pode dar margem a que se entenda a realidade a partir do pensamento, ou seja, a partir das idéias ou dos conceitos, o que no fundo seria aproximá-lo do platonismo. O objeto dos conceitos é sempre algo cristalizado pelo pensamento e, por isso, não é capaz de modo algum de revelar a atualidade, bem mais profunda, do ente concreto fora da mente. O racionalismo que impregnou boa parte da filosofia moderna é fruto desse equívoco.

Lúlio é, sem dúvida, aristotélico. Na Pars antecedens do compêndio de filosofia luliana que redigiu em 1325, Le Myésier relacionou diversas obras, de autoridades bem conhecidas na época, sobre lógica, física, metafísica e ética. Dentre outras, menciona a Metafísica, os Tópicos e o De anima de Aristóteles, além da Abbreviatio de João Quidort, um resumo dos oitos livros da Física do Estagirita, explicando ter incluído esse conjunto de textos no compêndio porque “são pressupostos da Arte de Raimundo; pois tendo um bom conhecimento do filósofo (Aristóteles) e nele se baseando, se alguém for inteligente e diligente, poderá com muita rapidez dominar a Arte de Raimundo”.[17] Entretanto, o pensamento luliano evita o equívoco a que nos acabamos de referir, isto é, de interpretar o real a partir do pensamento. Isso porque procura manter-se na consideração observação do ato de ser, que é o verdadeiro constitutivo das coisas.

A Arte luliana nada mais é do que um método para transcendermos o objeto do conhecimento e, assim, distanciarmo-nos do nosso próprio ato de entender, atingindo dessa maneira o que está apenas implícito nele, ou seja, o real. Com efeito, na realidade de qualquer coisa há muito mais do que o nosso ato de conhecimento pode encontrar, pois em nosso pensamento se encontra apenas a espécie da coisa e não a coisa mesma. Quem utiliza a Arte, sempre se mantém no real, atingido de modo indireto, e julga com base nele todos os outros atos de conhecimento.

Aqui, não cabe tentar explicar em que consiste esse modo indireto de atingirmos o real. Por ora, basta dizer que Lúlio vincula o ser do homem a uma forma de entender habitual que, ajudado por um lembrar e por um amar também habituais, obtém uma notícia de si mesmo e do ser dos outros entes — inclusive do ser divino. Isso lhe permite transcender os seus outros atos de conhecimento objetivo, e aceitá-los ou rejeitá-los.

Com a ajuda da Arte, o artista — assim se chama quem emprega a Arte — critica as proposições com as quais nossa razão expressa as verdades conhecidas. Contudo, não perde o seu vínculo com o entendimento que se tem por verdadeiro, em razão do cumprimento de certas precondições estabelecidas previamente ao relacioná-lo com as outras faculdades. O objetivo da Arte? Manter-se sempre em contato com a realidade atual da coisa conhecida, evitando perder-se entre os argumentos vazios de uma razão desligada do entendimento, ou seja, desligada da verdade. Afinal de contas, é no entendimento que a verdade se encontra.

Portanto, a gnoseologia luliana afirma claramente que a verdade das coisas não só existe, mas também pode ser encontrada pelo homem com ajuda de seu entendimento. E a explicação disso é a verdade ser uma propriedade do real. O ente é inteligível e, portanto, verdadeiro.

Ora, recém-chegado a Paris, em novembro de 1309, Lúlio dá-se conta da dimensão alcançada por uma nova corrente filosófica que se tinha instalado na universidade parisiense, sobretudo na Faculdade das Artes. A bem dizer, Lúlio intuiu o racionalismo que iria envolver a reflexão filosófica nos séculos posteriores. Com efeito, a filosofia moderna começou nesse início do século XIV com a vulgarização de uma nova concepção sobre o conhecimento humano, que desvincula a razão do entendimento verdadeiro. No fundo, trata-se de uma maneira perversa de entender o ente.

Preocupado com isso, um mês após a sua chegada, Lúlio escreve em dezembro de 1309 o Liber de perversione entis removenda, justamente sobre o ente inteligível. Nessa obra, ensina como eliminar do ente inteligível toda interpretação inconveniente segundo a qual o inteligível possa não ser verdadeiro e, vice-versa, que o verdadeiro possa não ser inteligível.[18] Em outras palavras, o erro é incompatível com a realidade. Se algo é de uma determinada maneira, não se pode demonstrar filosoficamente que não o seja. É claro que isso tinha uma aplicação bem definida em teologia. Alguns mestres da Faculdade das Artes diziam que, por serem crentes, acreditavam nas verdades da fé católica, embora não fosse possível aceitá-las segundo o modo natural de entender. Dessa forma, separavam o conteúdo da fé e o do entendimento em duas instância distintas.[19]

Logo a seguir, Lúlio desencadeará uma agressiva e infatigável campanha, ensinando a sua Arte, discutindo com mestres e alunos em sua casa e nas ruas da cidade e, sobretudo, escrevendo diversos opúsculos sobre o tema. Em maio de 1310, o Liber de modo naturali intelligendi; em julho, o Liber reprobationis aliquorum errorum Averrois; em outubro, o Liber de possibili et impossibili; em novembro, o Liber de fallacias, quas non credunt facere aliqui, qui credunt esse philosophantes, contra purissimum actum Dei e a famosa Disputatio Raimundi et Averroistae, em que, pela primeira vez, chama de averroístas aos partidários dessas idéias. No ano seguinte, Lúlio escreverá as duas obras que constam deste volume, o Liber natalis pueri parvuli Christi Iesu, em janeiro, e o Liber lamentationis philosophiae, em fevereiro, além de redigir os opúsculos Liber de divina unitate et pluralitate, o Liber contradictionis, o Liber de syllogismis contradictionis, os Sermones contra errores Averrois, o Liber de efficiente et effectu e o Liber de ente, quod simpliciter est per se et propter se existens et agens. Atividade espantosa, que assusta mais ainda se nos lembrarmos de que o nosso filósofo beirava então os oitenta anos de idade.

Além disso, dedicará sete dessas obras ao rei Felipe IV, e o Liber reprobationis aliquorum errorum Averrois, simultaneamente a Felipe IV e ao papa Clemente V, pedindo a ambos que façam cópias do livro “a fim de que, dado serem doutores da fé cristã, possam com este livro extirpar pela raiz os erros contra a santa fé católica”.[20] Como se vê, Lúlio apelou ao poder constituído, solicitando-lhe apoio para a sua luta contra o averroísmo. Em junho de 1310, também dirigiu a sua Supplicatio à Faculdade de Teologia, advertindo-a do perigo dessas doutrinas. No Liber de ente, Lúlio dirigiu-se diretamente ao papa e aos padres do Concílio de Vienne.

Lúlio passou a utilizar a Arte no combate contra as doutrinas averroístas, o que revela quanto as considerava perniciosas. Se a princípio, a Arte tinha a finalidade de argumentar contra os erros dos judeus e dos muçulmanos, agora Lúlio vislumbra uma nova função para ela: um método apropriado para discutir com os seus adversários averroístas. A partir de então, Lúlio passará a relacionar os erros dos averroístas entre os dos judeus, muçulmanos e pagãos.

O núcleo de seu ataque consistia em demonstrar a contradição em que incorriam os que afirmavam a irracionalidade da fé cristã. Na Disputatio, Raimundo dispara contra o averroísta: “Tens de ser repreendido, pois ignoras e finges que és de fato inteligente, como mais acima falei. Contudo, digo-te que caíste em contradição, pois, se pela reflexão filosófica, verdadeiramente entendes que a fé católica é impossível, é necessário que ela o seja; e, portanto, não tens necessidade de acreditar que ela seja verdadeira. Mas se não o crês, não és nem católico nem cristão.”[21] Encontraremos muitos outros trechos onde se insiste nessa contradição.

Nos seus ataques, Lúlio baseava-se numa concepção particular de ente.[22] O seu modo de conceber a realidade acarreta uma noção de conhecimento que explica satisfatoriamente a maneira pela qual o homem alcança a verdade. Devido à união que existe entre a alma e o corpo, os averroístas acreditavam que a imaginação forçaria muitas vezes o entendimento, a memória e a vontade, respectivamente, a entender, a querer e a recordar o que sentimos ou imaginamos em detrimento da razão, e, por esse motivo, consideravam que as conclusões da razão não podem discordar daquilo que aparece aos sentidos. Contrariamente, Lúlio sempre insistirá na possibilidade de o homem, embora seja um ente finito, poder conhecer, pelo menos parcialmente, as verdades espirituais. Para tanto, bastará ter presente essa sua finitude e transcender seus atos de conhecimento. Assim, podem-se chegar a descobrir “verdades absolutas, conhecidas como veríssimas, e cuja verdade, por ser necessária, não pode ser refutada. Mediante essas verdades excelentes, obtêm-se outras, ocultas e ignotas, assim como o segredo de muitas coisas... como se prova na Arte”.[23]

A maior parte da obras dos principais averroístas daqueles anos, João de Jandum e Marsílio de Pádua, só foi publicada após a morte de Felipe IV[24], o que pode indicar que talvez o rei acolhesse os pedidos de Raimundo.