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“Não está totalmente errado o tipógrafo quando troca ‘cósmico’
por ‘cômico”’
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III.1. A base ético-antropológica do ludus
Voltemo-nos agora para o alcance e o significado do lúdico em Tomás
[26] . Como dizíamos, se há uma marca característica da
cultura medieval é precisamente o fato de que toda a cultura, na
época, era pensada em termos religiosos: a religião como o "tema
transversal", por excelência e radicalmente [27] .
Quando no século XII, ocorre a redescoberta de Aristóteles (ou
do “Aristóteles arabizado”) no Ocidente a cristandade medieval é
confrontada, pela primeira vez, com uma completa visão-de-mundo
elaborada à margem do cristianismo. A divisão que este fato produz
entre os eruditos é fácil de prever: surgem, por assim dizer, dois
partidos: o daqueles que se aferram ao enfoque tradicional,
"espiritualista" e, por outro lado, o daqueles que se fascinam com a
investigação natural - à margem da Bíblia - propiciada pelo
referencial aristotélico. Tomás - junto com Alberto Magno -
está no meio, sofrendo incompreensões por parte dos dois bandos,
enfrentando o desafio de harmonizar a teologia bíblica com a plena
aceitação da realidade natural, a partir de Aristóteles...
[28]
O tratamento dado ao brincar, é bastante representativo dessa postura
de Tomás: por um lado, ele segue a antropologia da Ética a
Nicômaco nos dois breves estudos que tematicamente ele dedicou ao
tema: os artigos 2 a 4 da questão 168 da II-II da Suma
Teológica e o Comentário à Ética de Aristóteles IV, 16.
Seu ponto de vista em ambos é antropológico e ético: o papel do
lúdico na vida humana, a necessidade de brincar, as virtudes e os
vícios no brincar. Por outro lado, em outras obras (e de modo não
sistemático) guiado pela Bíblia, aprofunda de modo inesperado e
radical no papel do lúdico na constituição do ser.
O ludus de que Tomás trata na Suma e na Ética é sobretudo - o
brincar do adulto (embora se aplique também ao brincar das
crianças). É uma virtude moral que leva a ter graça, bom humor,
jovialidade e leveza no falar e no agir, para tornar o convívio humano
descontraído, acolhedor, divertido e agradável (ainda que possam se
incluir nesse conceito de brincar também as brincadeiras propriamente
ditas). Ao falarmos do lúdico, note-se que nos escritos de Tomás
ludus e iocus são praticamente sinônimas [29] .
O papel que o lúdico adquire na ética de Tomás decorre de sua
própria concepção de moral: a moral é o ser do homem [30] ,
doutrina sobre o que o homem é e está chamado a ser. A moral é um
processo de auto-realização do homem [31] ; um processo levado a
cabo livre e responsavelmente e que incide sobre o nível mais
fundamental, o do ser-homem:
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"Quando porém se trata da moral, a ação humana é vista como
afetando não a um aspecto particular mas à totalidade do ser do
homem... ela diz respeito ao que se é enquanto homem" (I-II,
21, 2 ad 2).
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A moral, assim entendida, pressupõe conhecimento sobre a natureza
humana (e, em última instância, a Deus, como seu autor). A
forma imperativa dos mandamentos ("Farás x...", "Não farás
y..."), na verdade, expressa enunciados sobre a natureza humana:
"O homem é um ser tal que sua realização requer x e é
incompatível com y". E numa sentença só à primeira vista
surpreendente: "As virtudes nos aperfeiçoam para que possamos seguir
devidamente nossas inclinações naturais" (II-II,
108,2).
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