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Lúlio aprofunda e avança com relação ao estado da doutrina a
respeito dos conceitos clássicos de ser, essência e natureza.
Segundo o maiorquino, todo ente é constituído de princípios
transcendentes, uns absolutos e outros relativos, ativos - as
Dignidades -, que se contraem dum modo natural, de acordo com a
medida dada pela própria essência[22], para desse modo constituir
o ser daquele ente concreto. Em Lúlio, portanto, também se
encontra a distinção real entre essência e ser.
As Dignidades esclarecem em que consiste a perfeição do ato de ser:
elas são ativas e, como todos os atos, têm seus três correlativos
"ato", "potência" e "objeto", sem os quais nenhum ato seria
possível[23]. Não existe o "entender" sem o "inteligível" e
o "entendido", o mesmo ocorrendo com todos os outros atos, quer
sejam atos constitutivos das diversas substâncias, quer os atos
realizados por elas uma vez já constituídas. Em Deus - Ato puro
de ser -, esses princípios transcendentes apresentam-se numa
modalidade divina, infinita, conversíveis cada um deles com a
Essência divina, a qual também é conversível com o Ser divino.
Isso não ocorre nas criaturas, pois nelas não se dá a
identificação entre ser e essência, uma vez que o ser se contrai em
seus princípios segundo a positividade da própria essência. Como
Lúlio explica isso?
As essências de cada ente, informa o Doutor Iluminado,
"contraem-se no seu sujeito natural e coessencial consigo mesmo,
graças à sua natureza; e esse mesmo sujeito é reduzido, ou
contraído, ao seu ato natural, também por sua natureza"[24].
Essa descrição é muito rica. Sua novidade radica em que o ser é
apresentado como atividade formalizada. De fato, parece que deve ser
assim, pois os atos sempre ocorrem diferenciados internamente. Se
"pensar", "escutar" e "ver" são atos, eles o são pelo ato de
ser, e é este, o ser, o ato que em primeiro lugar deve estar
diferenciado. Não se deve pensar o ser como se fosse uma energia
absolutamente indeterminada. O ser é um oceano de perfeições porque
engloba todas elas[25], ou seja, engloba as Dignidades.
As Dignidades contraem-se ao constituir o ente finito. É a
essência que indica as dimensões e a mistura - "mixtio" - dos
princípios transcendentes que se dá no ente concreto. A essência
é, por si mesma, algo abstrato - "consideratum", "consirada"
-, todavia, por sua natureza, se torna concreta no ente. A
essência está também constituída pelos princípios transcendentes,
mas considerados em abstrato. Explica o maiorquino que é devido à
natureza da essência, que esses princípios se contraem no ente
concreto, surgindo, desse modo, nesse ente concreto, as diferenças
concretas entre os princípios. É, pois, graças à natureza da
essência, que o ser do ente é estável.
Segundo Lúlio, a natureza situa-se entre o ser e a
essência[26]. O conceito de natureza era tão importante para o
maiorquino que foi selecionado na sua Logica nova para exemplificar
como se aplica o método das dez perguntas gerais, seguido na Ars.
Lá se diz que a natureza é ativa e que não pode haver natureza sem
ato próprio. Explica-se que é pela natureza que o ser e a essência
participam entre si; que, graças aos seus correlativos, a natureza
pode relacionar-se com outros entes que não são de seu gênero;
que, no sujeito onde radica, é o seu agente natural ativo, podendo
"naturar"; mas que é também potência passiva, sendo receptiva dos
outros entes que nela são "naturados"; que a natureza, no sujeito
em que é, tem seu ser e seus princípios, dos quais é; e seu
sujeito tem tal natureza, enquanto é por ela "naturado". Enfim,
inúmeras respostas às perguntas "de que?, por quê?, quanta?,
qual?, quando?, onde?, de que modo?, com quê?", que o breve
espaço a que têm direito estas linhas não permite expor.
Contudo, para finalizarmos esta parte, convém ainda fazer duas
observações. Em primeiro lugar, que a natureza, segundo o
maiorquino, é do suposto no qual existe, o qual atua naturalmente por
ela, movendo-se e repousando no seu ser e no seu agir por entre coisas
naturais. Doutrina essa que coincide com a clássica.
Em segundo lugar, destacar a importante teoria luliana sobre as obras
naturais próprias e apropriadas. Como se disse anteriormente, o
suposto é reduzido, ou contraído, pela natureza, ao seu ato
natural. Lúlio insiste muito em que as substâncias possuem uma
atividade própria e outra apropriada. A primeira é substancial e se
converte, no sujeito onde tem lugar, com a sua forma[27]; a
segunda, chamada "ação acidental", converte-se com a forma
acidental. A ação substancial é essencialmente contínua[28] e
sempre atual. A ação apropriada é acidental e artificial, move-se
sempre da potência ao ato, e sua finalidade é a ação
natural[29]. Obviamente, essas noções serão fundamentais na
explicação da natureza humana.
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