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[1] Texto da prova pública de erudição para o concurso de
Professor Titular - História da Educação, Depto. de
Filosofia e Ciências da Educação - Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, dezembro de 2000. De acordo com a
tradição do Departamento, desde sua fundação, os estudos de
História de Educação são integrados aos de Filosofia. Assim,
após uma breve exposição e discussão da prática do lúdico na
pedagogia medieval, examinamos o pensamento de Tomás de Aquino, que
explicita e articula fundamentos filosóficos dessa prática.
Naturalmente, o pensamento de Tomás, como aliás é típico do
pensamento medieval, não é puramente filosófico, mas sim - em
profunda e espontânea interpenetração - filosófico-teológico.
Só muito tardiamente surgirá a pretensão de uma filosofia alheia à
Teologia. O afã de Voraussetzungslosigkeit, de uma asséptica
independência da Teologia, é impensável para pensadores como
Tomás. Para o tema da “filosofia cristã”, remetemos a Josef
Pieper "O caráter problemático de uma filosofia não-cristã"
(in Oriente & Ocidente: Filosofia e Arte, São Paulo,
DLOFFLCHUSP, 1994, trad. de Gabriele Greggersen e
L. Jean Lauand).
[2] Passe a generalização, afinal “época” é sempre
Žpov–, uma suspensão, um subtrair à diferença.
[3] Antecipando pontos que desenvolveremos depois, consideremos
que o homem medieval recebe do cristianismo um vivo sentido de
mistério, uma humildade anti-racionalista (não anti-racional,
anti-racionalista!) que está na própria base do senso de humor.
Pois o riso pressupõe o reconhecimento e aceitação da condição de
criatura, de que o homem não é Deus, do mistério do ser, da
não-pretensão de ter o mundo absoluta e ferreamente compreendido e
dominado pela razão humana. O racionalismo, pelo contrário, é
sério; leva-se demasiadamente a sério e, por isto mesmo, é tenso
e não sabe sorrir. O homem medieval brinca porque acredita vivamente
naquela maravilhosa concepção bíblica – que discutiremos
detalhadamente - que associa a Sabedoria divina à obra da
Criação: quando Deus criou o mundo e fez brotar as águas das
fontes, assentou os montes, fez a terra e os campos, traçou o
horizonte, firmou as nuvens no alto, impôs regras ao mar e assentou
os fundamentos da terra "ali estava eu (a Sabedoria divina) com
Ele, brincando (ludens) diante dEle o tempo todo, brincando
(ludens) no orbe da terra e as minhas delícias são estar com os
filhos dos homens " (Prov. 8, 30-31).
[4] Ele mesmo, aliás, um profundo conhecedor de Tomás: sua
laurea em Filosofia foi com a tese: Il problema estetico in Tommaso
d'Aquino, Milano, Bompiani, 1970 - English Translation:
The Aesthetics of Thomas Aquinas, Cambridge: Harvard U.P.,
1988. E em seu mais recente livro, chega a afirmar: “Quando me
vejo assim tão perdido diante de questões de doutrina, recorro à
única pessoa em quem confio, que é Tomás de Aquino” Eco,
Umberto – Martini, Carlo Maria Em que crêem os que não crêem,
Rio de Janeiro, Record, 2000, p. 50.
[5] Eco, Umberto O Nome da Rosa, São Paulo, Nova
Fronteira, 1983. O livro, como se sabe, teve um destino
curioso: foi comprado por todos, lido por alguns, compreendido por
muito poucos...
[6] Naturalmente, a preocupação de Eco, não é tanto com a
teologia medieval, mas com a cultura e a política contemporâneas.
[7] Para o relativo caráter secundário do lúdico em
Aristóteles, veja-se o cap. II.2 “Las indicaciones de
Aristóteles” de Yepes, Ricardo La región de lo lúdico -
reflexión sobre el fin y la forma del juego; Pamplona, Cuadernos de
Anuario Filosófico, 1996.
[8] Limitar-me-ei a citar publicações de obras por mim
traduzidas e que discuto em cursos na FEUSP.
[9] Cfr. Nunes, Ruy A. C. História da Educação na
Idade Média, São Paulo, EPU-Edusp, pp. 10 e ss. e
Pernoud, R. Idade Média - o que não nos ensinaram, Rio de
Janeiro, Agir, 1979, pp. 17 e ss.
[10] "Tanto os artesãos como os tocadores de música são
pessoas ignaras, operários mecânicos, que não sabem A nem B, e
que jamais foram instruídos e, além disto, não têm língua
fecunda, nem linguagem própria, nem sequer os acentos da pronúncia
decentes... estas pessoas não letradas, de condição infame, como
um marceneiro, um sargento, um tapeceiro, um vendedor de peixes,
estão a representar os Atos dos Apóstolos..." cit. por Pernoud
Idade Média - o que não nos ensinaram, Rio de Janeiro, Agir,
1979, pp. 46-47.
[11] Cit. por Pieper, Scholastik, München, DTV,
1981, p. 20.
[12] Trato desse projeto pedagógico de Boécio, nos
capítulos dedicados a esse educador em meus livros: Cultura e
Educação na Idade Média (seleção, trad. e estudos
introd.), S. Paulo, Martins Fontes, Coleção
Clássicos-Educação, 1998; e Educação, Teatro e
Matemática Medievais, S. Paulo, Perspectiva, 2a. ed.,
1990, ampliada com novos textos e estudos.
[13] Naturalmente, a escolástica, no sentido fundacional
boeciano, deve ser entendida como aprendizagem pouco original dos
rudimentos de saberes, que só séculos depois terão condições de
florescer. É a chama-piloto que, só no séc. XII, receberá
combustível para dar lugar a um renascimento: da escola monástica
passar-se-á à universidade; dos livros de Sentenças, às
Sumas.
[14] Scholastik, cap. V.
[15] Huizinga, J. Homo Ludens, São Paulo,
Perspectiva- Edusp, 1971, p. 85.
[16] Epístola 101, in PL 100, 314, C.
[17] Os dois próximos textos citados encontram-se em Lauand
(org.) Educação, Teatro e Matemática Medievais, S.
Paulo, Perspectiva, 2a. ed., 1990.
[18] Ao próprio Alcuíno é atribuída uma coletânea de divertidos
problemas "para aguçar a inteligência dos jovens".
[19] Cito pela tradução das anedotas da Disciplina Clericalis que
se encontra em Lauand, L. J. (org.) Cultura e Educação na
Idade Média, São Paulo, Martins Fontes, 1998.
[20] O senhor de Maimundo ordenou-lhe, certa noite, que fosse
fechar a porta. Maimundo - que, oprimido pela preguiça, nem podia
se levantar - respondeu que a porta já estava fechada.
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Ao alvorecer, disse-lhe o senhor:
- Maimundo, vai abrir a porta.
- Como eu sabia que o senhor havia de querê-la aberta hoje, nem
cheguei a fechá-la ontem.
O senhor, percebendo que, por preguiça, não a tinha fechado,
disse-lhe:
- Levanta-te e faz o que tens de fazer, pois é dia e o sol já
está a pino.
- Se o sol já está a pino, então dá-me de comer - respondeu
Maimundo.
- Servo mau, nem amanheceu e já queres comer?
- Bom, se não amanheceu, então deixa-me continuar dormindo.
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[21] Cito pela tradução que está em Lauand, L. J. “O
xadrez na Idade Média”, São Paulo, Perspectiva-Edusp,
1988.
[22] São Paulo, referindo-se à fé, diz: "Presentemente
vemos de modo confuso como por um espelho em enigmas (in aenigmate);
mas então veremos face a face" (I Cor 13, 12). E na
Hierarquia Eclesiástica do Pseudo-Dionísio Areopagita
reencontramos a metáfora do enigma: nos mistérios da revelação e da
Liturgia - Hierarquia Eclesiástica. 2, 3, 1; 3, 3, 3 e
5, 1, 2.
[23] S. Sticca "Hrotswitha's 'Dulcitius' and Christian
Symbolism" Mediaeval Studies 32 (1970), pp.
108-127, cit. por Ferruccio Bertini Il teatro di Rosvita,
Genova, Tilgher, 1979, p.62.
[24] Cfr. Lauand (org.) Idade Média: Cultura
Popular, São Paulo, FFLCH-Edix, 1995.
[25] “G.K. Chesterton once observed that when a typesetter
substitutes 'comic' for 'cosmic' he is not really too much in
error” (cit. por Jonathan Williams
http://www.%20jargonbooks.com/%20broughton.html”.
[26] Citarei Tomás pelo texto latino da edição eletrônica
de Roberto Busa Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in
CD-ROM. Milano, Editoria Elettronica Editel, 1992.
[27] Nesse sentido, já no marco inicial da cultura da Idade
Média - o ano 529 - coincidem dois fatos emblemáticos: o
fechamento da Academia de Atenas por decreto imperial (desde então
não haverá lugar para a cultura pagã) e a fundação, por Bento de
Núrsia, do mosteiro de Monte Cassino (e o período que vai do
século VI ao século XI será conhecido como era beneditina).
[28] Cfr. a já citada Scholastik, caps. VII a IX.
[29] Em latim, a palabra iocus tende a ser mais empregada para
brincadeiras verbais: piadas, enigmas etc. Ioca monachorum, por
exemplo, é o título que designa as coleções de charadas, enigmas e
brincadeiras verbais dos monges nos mosteiros medievais. A forma
inglesa joke, conserva essa ênfase no verbal. Já ludus - da qual
se originaram as nossas: aludir, deludir, desiludir, eludir,
iludir, ineludível, interlúdio, ludâmbulo, ludibriar, lúdico,
prelúdio etc.- refere-se mais ao brincar não verbal: por ação.
No entanto, no século XIII iocus e ludus empregam-se
freqüentemente como sinônimas. Assim, por exemplo, diz Tomás:
"As palavras ou ações - nas quais se busca só a diversão
chamam-se lúdicas ou jocosas", "A diversão acontece por
brincadeiras (ludicra) de palavra e de ação (verba et facta)"
(II-II, 168, 2, c).
[30] Cfr. p. ex. o Prólogo da parte II da Suma
Teológica.
[31] É o que significa por exemplo a caracterização, tantas
vezes por ele repetida, da virtude como ultimum potentiae.
[32] É interessante observar que assim como a palavra refeição
indica um "re-fazer-se" das forças físicas, assim também pelo
recreio, há uma "re-criação" das forças da alma.
[33] Suma Teológica, prólogo.
[34] Diz Tomás: “A largura é uma dimensão da magnitude
dos corpos e só metaforicamente se aplica às disposições da alma.
‘Dilatação’ indica uma extensão, uma ampliação de capacidade,
e se aplica à ‘deleitação’ (Tomás joga com as palavras
dilatatio-delectatio) com relação a dois aspectos. Um provém da
capacidade de apreender que se volta para um bem que lhe convém e por
tal apreensão o homem percebe que adquiriu uma certa perfeição que é
grandeza espiritual: e por isso se diz que pela deleitação sua
inteligência cresceu, houve uma dilatação. O segundo aspecto diz
respeito à capacidade apetitiva que assente ao objeto desejado e
repousa nele como que abrindo-se a ele para captá-lo mais
intimamente. E assim se dilata o afeto humano pela deleitação, como
que entregando-se para acolher interiormente o que é agradável"
(I-II, 33, 1).
[35] ibidem, I-II, 37, 2, ad 2.
[36] Non posset vivere homo in societate… sine delectatione,
quia sicut Philosophus dicit, in VIII Ethic.: “Nullus potest
per diem morari cum tristi, neque cum non delectabili”. Et ideo homo
tenetur ex quodam debito naturali honestatis ut homo aliis
delectabiliter convivat... ibidem, II-II, 114, 2 ad 1.
[37] "Aristóteles mostra o que é o termo médio da virtude no
brincar. E diz que aqueles que se portam convenientemente no que diz
respeito ao brincar são chamados eutrapeli, que significa "os que bem
convertem", porque convertem em riso, de modo conveniente e
versátil, as coisas que se dizem ou fazem" (854). Cito pela
minha tradução em Cultura e Educação na Idade Média, S.
Paulo, Martins Fontes, Coleção Clássicos-Educação,
1998, p. 292.
Outra passagem ilustrativa da desorientação de Tomás, suscitada
pelas deficiências de tradução é aquela em que Aristóteles para
ilustrar a diferença entre a atitude viciosa e a virtuosa contrapõe as
antigas às novas comédias. Diz o original aristotélico: "Para os
antigos autores cômicos era a obscenidade o que provocava o riso; para
os novos, é antes a insinuação, o que constitui um progresso".
Já na tradução de que Tomás se vale não há tal contraposição e
o Aquinate entende "suspeita" onde o original diz "insinuação".
Daí sua afirmação, interessante, mas que nada tem que ver com o
texto aristotélico: "E (Aristóteles) diz que tal critério é
especialmente manifesto quando consideramos os diálogos tanto nas
antigas como nas novas comédias. Porque se em algum lugar nessas
narrações ocorria alguma fala torpe, isso gerava em alguns a irrisão
enquanto tais torpezas se convertiam em riso. Para outros, porém,
gerava a suspeita, enquanto suspeitavam que aqueles que falavam
torpezas possuíam algum mal no coração" (859), ed. cit.,
p. 294.
[38] Se Tomás escrevesse hoje, seguiria a Nova Vulgata, de
1986, que oferece as seguintes versões: "Cum eo eram ut
artifex: delectatio eius per singulos dies ludens coram eo omni
tempore, ludens in orbe terrarum et deliciae meae esse cum filiis
hominum" (Prov. 8, 30-31). E "Praecurre autem prior in
domum tuam, et illuc advocare et illic lude, et age conceptiones
tuas" (Eclo. 32, 15-16).
Já para este último versículo, a Bíblia de Jerusalém apresenta
a tradução: “Corre para casa e não vagueies. Lá diverte-te,
faze o que te aprouver, mas não peques falando com insolência”.E
para o versículo de Provérbios: “Eu estava junto com ele como o
mestre-de-obras, eu era o seu encanto todos os dias, todo o tempo
brincava em sua presença: brincava na superfície da terra, e me
alegrava com os homens”.
[39] Et ipsa sapientia loquitur, Prov. 8, 30: ‘Cum eo
eram cuncta componens...’. Hoc etiam spe-cialiter Filio
attributum invenitur, inquantum est imago Dei invisibilis, ad cujus
formam omnia formata sunt: unde Col. 1, 15: qui est imago Dei
invisibilis, primogenitus omnis creaturae, quoniam in ipso condita
sunt universa; et Joan. 1, 3: omnia per Ipsum facta sunt. (In
I. Sent.)
[40] Em seu Comentário ao Evangelho de João, Tomás até
discute a conveniência de traduzir Logos por Ratio e não por
Verbum. Esta última forma parece-lhe melhor, pois se ambas indicam
pensamento, Verbum enfatiza a "materialização" do pensamento (em
criação/palavra). Sua resposta é: "Ratio propriamente designa
o conceito da mente, enfatizando aquilo que está na mente (mesmo que
não venha a se materializar), enquanto verbum é o pensamento que faz
referência ao exterior. Por isso - como o evangelista ao dizer
Logos não só indicava a existência do Filho no Pai, mas também a
potência operativa do Filho pela qual 'por Ele todas las coisas
foram criadas'- os antigos traduziram Logos por Verbum (que
enfatiza a referência ao exterior) e não por ratio, que só sugere o
conceito na mente" (Super Io. I,1,32).
[41] Não é por acaso que Tomás considera que
"inteligência" é intus-legere ("ler dentro"): a ratio do
conceito na mente é a ratio "lida" no íntimo da realidade.
[42] O conceito, a idéia.
[43] Sartre, Jean-Paul O Existencialismo é um
Humanismo, in Os Pensadores (vol. XLV Sartre-Heidegger).
São Paulo, Abril, 1973, p. 11.
[44] “Deus Pater operatus est creaturam per suum Verbum”,
"Deus Pai opera a Criação pelo seu Verbo,...”(I, 45,
6).
[45] “Na recapitulação da obra divina, diz Gn 2,1:
‘Assim perfizeram-se os céus e a terra com todos seus ornamentos’.
Nessas palavras, podem-se distinguir três obras: a obra da
criação, que produziu os céus e a terra, porém informes; a obra
da distinção, que perfez os céus e a terra (...) e a estas duas
deve-se ajuntar a obra de ornamento. Ornamento difere de perfazer,
pois a perfeição do céu e da terra parece referir-se à sua
constituição intrínseca, enquanto o ornamento refere-se a coisas
que lhes são distintas: tal como um homem, que se perfaz pelas suas
próprias partes e formas e é ornamentado pelas vestes ou coisas do
gênero. (...) Assim, é próprio da obra de ornamento a
produção de coisas que se movem tanto no céu como na terra” (Summa
Th. I, 70, 1). In recapitulatione divinorum operum,
Scriptura sic dicit, igitur perfecti sunt caeli et terra, et omnis
ornatus eorum. In quibus verbis triplex opus intelligi potest,
scilicet opus creationis, per quod caelum et terra producta leguntur,
sed informia. Et opus distinctionis, per quod caelum et terra sunt
perfecta, sive per formas substantiales attributas materiae omnino
informi, ut Augustinus vult; sive quantum ad convenientem decorem et
ordinem, ut alii sancti dicunt. Et his duobus operibus additur
ornatus. Et differt ornatus a perfectione. nam perfectio caeli et
terrae ad ea pertinere videtur quae caelo et terrae sunt intrinseca,
ornatus vero ad ea quae sunt a caelo et terra distincta. Sicut homo
perficitur per proprias partes et formas, ornatur autem per
vestimenta, vel aliquid huiusmodi. Distinctio autem aliquorum maxime
manifestatur per motum localem, quo ab invicem separantur. Et ideo ad
opus ornatus pertinet productio illarum rerum quae habent motum in caelo
et in terra.
[46] Cfr. John F. McCarthy “The First Four Days
According To St. Thomas”, Living Tradition, November
1993, No. 49, Ponce,
http://www.rtforum.org/lt/lt49.html.
[47] Considerandum est de creatura corporali. In cuius
productione tria opera scriptura commemorat, scilicet opus creationis,
cum dicitur: “In principio creavit Deus caelum et terram, etc.”;
opus distinctionis, cum dicitur: “Divisit lucem a tenebris, et
aquas quae sunt supra firmamentum, ab aquis quae sunt sub
firmamento”; et opus ornatus, 10 cum dicit: “Fiant luminaria in
firmamento etc.” (I, 65, prol.)
[48] “A pessoa do Filho é mencionada tanto na criação das
coisas como em sua distinção e ornamento, mas de modos diferentes.
A distinção e o ornamento perrtencem à formação das coisas. E
tal como a formação das obras de arte dá-se pela forma artística
que está na mente do artista, que podemos chamar de verbo
inteligível, assim tambéma formação das criaturas dá-se pelo
Verbo de Deus. E é por isso que as obras de distinção e de
ornamento remetem ao Verbo. Já na obra da criação o Filho é
mencionado como princípio, quando se diz (Gn 1, 1): ‘No
Princípio, criou Deus...’” (I, 74, 3 ad 1).
[49] No Comentario ao Evangelho de João (cp 1, lc 2),
Tomás explica que se trata de ação do Pai pelo Verbum: "Quia
enim evangelista dixerat ‘omnia per Ipsum facta sunt’, posset
intelligi Patrem excludi ab omni causalitate; ideo consequenter addit
‘et sine ipso factum est nihil’. Quasi dicat: sic per eum facta
sunt omnia, ut tamen Pater cum eo omnia fecerit. Nam tantum valet
sine eo, ac si dicatur non solus; ut sit sensus: non ipse solus est
per quem facta sunt omnia, sed ipse est alius, sine quo factum est
nihil. Quasi dicat sine ipso, cum alio operante, scilicet Patre,
factum est nihil; iuxta illud prov. viii: cum eo eram cuncta
componens".
[50] "Illud quo aliquid cognoscitur quocumque modo, dicitur
lux. Unumquodque autem cognoscitur per suam formam, et secundum quod
est actu. unde quantum habet de forma et actu, tantum habet de luce
(...) est, inquantum habet de entitate et luce". Tomás diz no
De veritate (I,2): res naturalis inter duos intellectus
constituta est - a realidade natural está situada entre dois
cognoscentes: o intellectus divinus - mensurans e non mensuratum - e
o intellectus humanus: mensuratum, que recebe sua “medida” das
coisas que, por sua vez, receberam sua “medida” do Verbo.
[51] Ave Palavra, 2a. ed. Rio de Janeiro, José
Olympio, 1978, pp. 94 e ss.
[52] Speculum, cp. 23. Cito pela edição eletrônica da
Brepols - Cetedoc Library of Christian Latin Texts, Universitas
Catholica Lovaniensis, 1994.
[53] O próprio Tomás só o menciona no comentário a Boécio
(exceção feita ao Super Evangelium Matthei cp 13, lc 13,
onde considera o fato de que Cristo explica as parábolas
reservadamente aos apóstolos e, citando nosso versículo, comenta:
“si velimus secreta investigare, debemus in secretum intrare”).
[54] A esse respeito, veja-se o tópico 3.2
“Contemplação” de minha tese de doutoramento O que é uma
Universidade, São Paulo, Perspectiva-Edusp, 1987. Cfr.
também Rosa, Antonio Donato Paulo O papel da contemplação na
educação segundo os escritos filosóficos de Santo Tomás de
Aquino; dissertação de mestrado, FEUSP, São Paulo,
1993.
[55] Praecurre prior in domum tuam, et illuc advocare et illic
lude, et age conceptiones tuas. (Eccli. 32, 15 - 16).
Habet hoc privilegium sapientiae studium, quod operi suo prosequendo
magis ipsa sibi sufficiat. In exterioribus enim operibus indiget homo
plurimorum auxilio; sed in contemplatione sapientiae tanto aliquis
efficacius operatur, quanto magis solitarius secum commoratur. Et
ideo sapiens in verbis propositis hominem ad seipsum revocat, dicens:
"Praecurre prior in domum tuam", idest ad mentem tuam ab
exterioribus sollicite redeas, antequam ab alio occupetur, per cuius
sollicitudinem distrahatur: Unde dicitur Sap. 8: "Intrans in
domum meam, conquiescam cum illa", idest cum sapientia. Sicut autem
requiritur ad contemplationem sapientiae quod mentem suamaliquis
praeoccupet, ut totam domum suam contemplatione sapientiae impleat,
ita etiam requiritur quod ipse totus per intentionem interius adsit, ne
scilicet eius intentio ad diversa trahatur: et ideo subdit: "et illuc
advocare", idest totam intentionem tuam ibi congrega. sic igitur
interiore domo totaliter evacuata, et homine totaliter per intentionem
in ea existente, quid agendum sit exponit subdens, "et illic lude".
Ubi considerandum est, quod sapientiae contemplatio convenienter ludo
comparatur, propter duo quae est in ludo invenire. primo quidem, quia
ludus delectabilis est, et contemplatio sapientiae maximam
delectationem habet: unde Eccli. 36 xxiv, dicitur ex ore
sapientiae: "Spiritus meus super mel dulcis". Secundo, quia
operationes ludi non ordinantur ad aliud, sed propter se quaeruntur.
Et hoc idem competit in delectationibus sapientiae. contingit enim
quandoque quod aliquis apud seipsum delectatur in consideratione eorum
quae concupiscit, vel quae agere proponit. Sed haec delectatio
ordinatur ad aliquid exterius, ad quod nititur pervenire; quod si
deficiat vel tardetur, delectationi huiusmodi adiungitur non minor
afflictio, secundum illud Prov. xiv: "risus dolore miscebitur".
Sed delectatio contemplationis sapientiae in seipsa habet delectationis
causam: unde nullam anxietatem patitur, quasi expectans aliquid quod
desit. propter quod dicitur Sap. viii: "non habet amaritudinem
conversatio illius, nec taedium convictus illius", scilicet
sapientiae. Et ideo divina sapientia suam delectationem ludo
comparat, Prov. viii: "delectabar per singulos dies, ludens coram
eo..." ut per diversos dies, diversarum veritatum considerationes
intelligantur. Unde et hic subditur: "et illic age conceptiones
tuas", per quas scilicet homo cognitionem accipit veritatis. (In
Boet. de Hebd. Lc-).
[56] Por exemplo, em II-II, 175, 4, diz que para
conhecer as coisas altíssimas de Deus é necessário que tota mentis
intentio illuc advocetur.
[57] Certamente, diz Tomás, alguém pode encontrar prazer em
atividades que têm fim fora de si mesmas, mas, neste caso, quando
esta meta exterior falha ou tarda, ajunta-se a aflição ao prazer, o
que nunca ocorre com a contemplação da sabedoria...
[58] Deus é feliz e suas delícias são estar con os filhos dos
homens. Isto impede qualquer interpretação do brincar de Deus na
Criação como uma piada de mau gosto, no sentido de Macbeth (Ato
V): "(Life) it is a tale told by an idiot, full of sound and
fury, signifying nothing". Aliás, num outro comentário importante
a Prov. 8, 30-31, “as minhas delícias são estar com os
filhos dos homens”, Tomás diz que Deus ama as criaturas,
especialmente o homem, a quem comunica o ser e a graça, para
fazê-lo partícipe de Sua felicidade (Super Ev. Io. 15,
2).
[59] Domenico de Masi, em entrevista a “Roda Viva”,
janeiro de 1999, citado por Gilberto de Mello Kujawski “A
sociedade do lazer e seu profeta” O Estado de S. Paulo,
25-2-99, p. 2. A citação vem a propósito do conhecido
caso dos prêmios Nobel da Escola de Biologia de Cambridge, que
descobriram o DNA. “Os cientistas produziram diversos desenhos da
possível estrutura do DNA, a priori, sem base experimental. Na
hora de testar aqueles desenhos surgiu a questão: qual deles? A
resposta foi: o mais belo. Testou-se o desenho mais formoso e
elegante. E não é que deu certo? O esquema do DNA era aquele
mesmo” art. cit. Cfr. o cap. “A Escola de Biologia de
Cambridge” D. de Masi A Emoção e a Regra, Rio de Janeiro,
José Olympio, 1997. Ainda a propósito do Logos Ludens e da
ciência, meu amigo (e colega de direção editorial) Dr. Wilson
Miguel Salvagnini - professor da EPUSP-Química, que orientou
a primeira tese sobre água de coco na USP -, sabendo destas minhas
pesquisas, comentou-me o seguinte: “A água de coco como que
manifesta uma inteligência e um propósito: trata-se de um liqüído
que - além de agradável – é espantosamente isotônico, estéril e
contém sais e açúcares, tudo como que ‘sob medida’ para a
necessidade humana: a tal ponto que pode ser, por exemplo, até
tomada por lactentes e é perfeitamente injetável intravenosamente!”
Cfr. P. ex. Dupaigne, P. “Un jus de fruit peu ordinaire:
l'eau de coco”. Fruits, v. 26, n. 9, pp. 625 e ss. E
poderíamos acrescentar: não haverá algo de lúdico - lembremos do
cósmico/cômico de Chesterton - em esconder esse valioso liqüído
num coco, no alto de um coqueiro?!
[60] A esse aspecto do pensamento de Tomás, Pieper dedicou
sua obra - de tão sugestivo título - Unaustrinkbares Licht. Um
parágrafo, a título de resumo: “Temos certamente a potência de
conhecimento das coisas, contudo não nos é possível conhecer
formalmente a sua verdade; conhecemos a imagem imitativa
(Nachbild), mas não a sua correspondência ao arquétipo
(Urbild): a relação existente entre o ser-pensado
(Erdachtsein) e o seu projeto” Pieper, J. “Luz Inabarcável
- o Elemento Negativo na Filosofia de Tomás de Aquino”, cito
pela tradução de G. Greggersen em Convenit 1, Salamanca, Ed.
Arvo, 2000,
http://www.%20hottopos.com/convenit/jp1.htm#(*). Para
o tema do mistério, veja-se o capítulo correspondente em Lauand O
que é uma Universidade, São Paulo, Perspectiva-Edusp,
1987.
[61] Veja-se também, por exemplo,
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“Rebrinco”:
“(...) Ia chamar Letícia pra brincar.
Medo que eu tinha era não ter mistério”.
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[62] Cfr. p. ex. Pieper Scholastik, München, DTV,
1978, cap. XI.
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