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Um tema que se tornou polêmico nos tempos do maiorquino foi o das
potências da alma. Opinavam alguns que a inteligência, a vontade e
a memória não constituíam parte da substância racional, mas seriam
apenas potências acidentais. A Ars luliana demonstra
incontestavelmente que o entendimento, a memória e a vontade são
partes substanciais da alma. Se não fossem da essência da alma,
"Deus non est materialiter intelligibile, diligibile, nec aliquid
perfectum"[47].
Lúlio dirá que os diversos atos de conhecimento, lembrança e amor,
que o homem realiza, são sustentados por um entender, um lembrar e um
amar substanciais que se encontram sempre em ato no homem. Esta
afirmação é conseqüência de sua teoria das obras naturais e
apropriadas exposta acima. Lúlio atribui às substâncias uma
atividade própria e outra apropriada. A primeira é habitual; a
segunda tem como finalidade a primeira.
Assim, por exemplo, o objeto próprio do entendimento - que se
corresponde com seu ato próprio - é entender sua inteligibilidade e
intelectualidade. Como a alma racional, por ser criada, vive vida
espiritual e não depende de outras partes corruptíveis, o
entendimento não cresce nem se multiplica por seus atos
apropriados[48] e poderia viver de sua vida ou atividade natural
própria, que consiste em entender-se.
A novidade é importante, pois se declara que existe no homem um
entender interior e primigênio, por meio do qual tem notícia de seu
ato próprio, isto é, de seu ser. Lúlio afirma que existe no homem
um nível interior de conhecimento, no qual tem lugar também a
notícia dos atos de ser dos entes que conhece e, sobretudo, a
notícia primordial do Ser Supremo, do qual todos dependem. Essa
nova instância de conhecimento, procurada durante séculos pela
filosofia, terá tanta importância que deveria ser para alguns o ponto
de partida do filosofar. No fundo, trata-se de um conhecimento pelo
qual se julga o conhecimento objetivo das operações de conhecer.
Schelling, por exemplo, indicava a necessidade daquilo que denominava
"êxtase da razão", isto é, o "situar-se fora de si mesmo" ou,
mais exatamente, fora da razão, para o conhecimento humano poder
alcançar o Absoluto[49].
Por outro lado, ao afirmar que o fim dos outros atos de conhecer,
mediante os quais se conhecem os outros seres, é sempre esta atividade
própria do entendimento mediante a qual o entendimento se autoconhece,
Lúlio destaca a dimensão existencial do conhecer humano, cujo fim é
sempre a própria pessoa.
Algo semelhante ocorre com os atos próprios da memória e da vontade.
Repare-se que a atividade substancial se converte com a própria
substância. São hábitos substanciais, sempre em ato, e podem
aumentar constantemente no homem. Mais ainda, sem eles, o homem não
poderia existir. Impressiona a forma como Lúlio afirma isso: "Se
não houvesse na memória um contínuo lembrar, e, no entendimento,
um contínuo entender, e, na vontade, um contínuo querer, as formas
e as matérias espirituais da alma seriam ociosas e não teriam como se
ajustar, e dado que as formas não teriam ação nem as matérias,
paixão, sem esse radical lembrar, entender e querer, a alma não
teria como informar o corpo nem com que dar-lhe o ser e a vida, e não
se poderia ajustar nem coligar com ele. Convém, pois, que os
radicais lembrar, entender e querer estejam em contínuo ato todo o
tempo em que o homem é homem"[50]. Lúlio faz depender o
próprio ser do homem desses atos radicais de entender, lembrar e
amar, que alimentam a sua própria substância e a aperfeiçoam. Caso
pudéssemos libertar-nos deles, aniquilaríamos o homem
Essa concepção luliana da natureza humana abre perspectivas
extraordinárias. Distingue claramente, pela autoconsciência, o
homem do animal. Aponta a origem da consciência religiosa, que
aparece em todas as épocas da humanidade. E mostra as infinitas
possibilidades de crescimento do ser humano.
* Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio
(Ramon Llull)
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