A NATUREZA HUMANA

Antes de mais nada, convém recordar que Lúlio não apenas confere um estatuto diferenciado ao homem, mas a nove sujeitos distintos - Deus, os anjos, os corpos celestes, o homem, o mundo sensível, o mundo vegetal, o mundo dos elementos e o mundo artificial -, nos quais, nas suas palavras, "está implicado tudo o que é"[30]. Não se trata, portanto, de uma classificação segundo as categorias predicamentais, mas segundo o grau de participação no ser e resultante das Dignidades.

Lúlio explica o ser humano dizendo que se trata de um todo constituído por três partes. A primeira é formada pelos correlativos ativos da alma e do corpo, que se reagrupam e ajustam uns aos outros, constituindo a "forma comum" do homem. A segunda, é formada pelos correlativos passivos da alma e do corpo que, reagrupando-se e ajustando-se, constituirão a "matéria comum" do homem. Finalmente, do agrupamento e ajustamento de todos os atos da alma e do corpo, resulta a terceira parte, um "ato comum", por meio do qual e no qual e com o qual a matéria e a forma se conectam, resultando da união dos três - ato, matéria e forma - o homem. Sem este ato, não haveria nem matéria nem forma. Dessa maneira, surge o homem pelo ato de ser: o homem radica no "sou". "E en així home està en lo som", diz Lúlio[31].

Observe-se que as três partes em conjunto constituem o "ser" do homem. Não se está falando da essência, mas do ato de ser humano. No lulismo, todo ato é tridimensional e, desde suas primeiras obras, Lúlio significou essas três dimensões do ser com os termos "forma", "matéria" e "conexão". Em 1300, ano em que escreveu o Libre de Home, ainda utilizava esses termos que, poucos anos depois, foram substituídos por outros: os termos "potência", "objeto" e "ato"[32]. Portanto, não se deve confundir a "forma comum" de homem, aqui referida, com a alma, nem a "matéria comum" com o corpo. São a forma e a matéria comum do homem as que, ao coligarem-se pelo ato, originam o homem. Lúlio estudará separadamente a alma em muitas de suas obras, especialmente no Libre d'Ànima racional, e o corpo, no Libre de Home, explicando em quê consiste cada uma dessas outras partes do homem.

E qual será esse "ato comum" sem o qual o homem deixa de ser homem? Pois o ato conjunto de "entender, querer, lembrar, elementar e vegetar, sentir e imaginar, sem o quais o homem não seria conexo substancialmente"[33]. Não resta dúvida de que, de acordo com isso, fica bem mais fácil de compreender que o homem desaparece não só quando se destrói o seu soma, mas também quando deixa de amar ou de pensar.

Lúlio explica a natureza humana pela "forma comum" e a "matéria comum" do homem[34]. A primeira agrupa, como se viu, os correlativos ativos do corpo e da alma, e a segunda os correlativos passivos também de ambos. Por conseguinte, para entender bem a natureza humana, será necessário estudar o corpo e a alma humanos que se conectam justamente pelo "ato comum" que origina o homem.

No corpo humano têm parte todas as criaturas corporais. Por causa disso, Deus criou a alma racional para que, unida ao corpo humano, originasse o homem e nele todas as criaturas corporais alcançassem o fim para que foram criadas[35]. A natureza humana, portanto, é a única que reúne em si mesma tudo quanto é criado e, graças a ela, as criaturas corporais podem alcançar seu fim em Deus e nEle repousar.

Está implícito nesse argumento que Deus criou as substâncias corporais para Si próprio e portanto que Ele é o fim das mesmas. Todavia, para que este fim se realize, torna-se necessário que exista um ente que com seu entendimento conheça tanto as coisas corporais como o próprio Deus, e que ao mesmo tempo esteja unido a um corpo. Esse ente é o homem, instrumento para o fim e o repouso das criaturas corporais.

Segundo esta doutrina, o mundo foi criado para ser "pensado" pelo homem. Tudo é inteligível e nada é supérfluo, desde a menor molécula do corpo humano até a ínfima partícula material. Lúlio faz retornar o mundo criado para Deus através do homem e é a favor de uma salvação que se leva a termo segundo dimensões humanas, incluindo a completa restauração do aspecto corporal e terreno do homem.

A alma racional existe, e Lúlio demonstra isso de diversas maneiras. "Somente o homem realiza ações contra a natureza, pois nenhum animal irracional se mata, enquanto alguns homens se suicidam (...) Convém, pois, que haja no homem alguma substância mais alta que a substância dos irracionais e que não seja da essência corporal pois, se o fosse, obedeceria à natureza e aos modos dos irracionais. Chamamos a essa substância alma racional."[36]

Como Lúlio é realista, só compreende a natureza humana por meio das modalidades de sua experiência vital. De acordo com seu modo habitual de proceder, sempre parte do ser para explicar a coisa. Assim, esse realismo leva-o a afirmar que a alma humana é criada, o que demonstra de dez formas diferentes. A primeira razão que apresenta é o fato de a alma humana ser livre. Se fosse gerada, explica, não teria liberdade, pois se dirigiria para seus objetos de uma maneira natural e não livre, semelhante aos olhos que, naturalmente, atingem as cores. Diferencia-se, pois, da alma sensitiva animal, que é gerada e ganha sua natureza dos genitores[37].

Lúlio pensa que tudo quanto é natural se origina por geração e se corrompe. A natureza fornece ao ente natural, e a seus atos, certos limites ou termos, além dos quais não pode ir e dentro dos quais encontra repouso. Os poderes da natureza são, pois, limitados. Além disso, todo ente natural se corrompe.

Mas isso não se aplica à alma humana. Se a alma humana fosse gerada, nasceria de corrupção e envelheceria, pois nenhuma coisa gerada na terra pode nascer e ser sem levar-se em conta a corrupção dos outros entes dos quais é. Curvando-se ao seu realismo, Lúlio explica que a alma racional é criada porque não envelhece, nem é afetada pela velhice do corpo, o que se pode constatar ao ver que o homem sábio, velho, tem mais ciência do que quando jovem.[38].

O maiorquino tira inúmeras conseqüências disso. Afirma que a alma racional é mais pelo seu fim que pela sua essência[39], explicando-o da seguinte maneira: algo é por essência quando é pelos seus princípios naturais; todavia, como a alma racional é criada, o seu fim é Deus, que está acima de seus princípios naturais, e só em Deus encontrará repouso.

O fim é um dos princípios transcendentes que constituem o ser de todas as coisas. Ora , o fim da alma a que se refere Lúlio, quando afirma que "a alma é mais pelo seu fim que pela sua essência", é o fim de Deus. Deus criou a alma para que o homem O conhecesse e O amasse. Assim sendo, se a alma fosse mais pelo que é que pelo seu fim, seu ser seria mais nobre que o ato[40] de amar e conhecer Deus. Mas isso é impossível, pois nenhuma substancia que provenha do nada pode encontrar repouso em si mesma. A alma racional é, conclui o maiorquino, principalmente por razão do fim de Deus e não por razão de si mesma, tal como o martelo, que é pelo fim do prego e não por seu próprio fim[41].

Por ser mais pelo fim que por si mesma, a alma é eterna[42], e é conservada[43] por esse fim, e não pode deixar de ser, assim como o copo de vinho que um homem sustenta com sua mão para beber. Enquanto queira beber, isto é, estando conforme o fim, o copo não pode cair; embora, por ser algo pesado, possa cair ao chão por si mesmo[44].

Por não ter seu fim neste mundo, este não a pode satisfazer; coisa comprovada pelo fato de que constantemente o homem deseja entender mais, amar mais e lembrar mais o que já entende, ama e recorda. Se a alma racional fosse gerada, seus atos teriam limite e encontrariam repouso dentro desses limites e dentro dos poderes que os primeiros pais lhe tivessem conferido[45].

Finalmente, lembra que é pela alma que a natureza humana é mais nobre que a animal. Por isso, a natureza atua com maior força no corpo humano que no corpo dos animais -"natura ha major virtut en cors humà que en cors bestial"[46]. Muitas conseqüências poderiam ser tiradas ainda dessa racionalidade que impregna também todos os movimentos corporais do homem e todos seus sentimentos.