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Charles Lohr foi um dos primeiros a perceber que Lúlio teria
introduzido um conceito peculiar de ser: o ser produtivo[61]. Com
efeito, o dinamismo intrínseco ao ser, examinado na primeira parte
deste trabalho, é considerado por Lúlio produtivo, até o extremo
de afirmar que as perfeições que cumulam o ser nunca estão ociosas;
sempre estão ativas e produzem. Se a bondade não produz o bem, não
é bondade. Se a unidade não unifica, não é unidade, e assim
sucessivamente.
Não resta dúvida de que Lúlio usa o termo esse para designar o ato
de ser real. Freqüentemente, usa expressões tais como "esse in
esse" e "habere esse"[62]. No Llibre de Contemplació diz:
"... est certe rationabile, quod nos, qui scimus, quod Tu sis in
esse, laetemur in tuo esse, qui est in esse et non in privatione
(...) Nam hom debet laetari, quia ipse est in esse, et non est
privatus ipso esse; igitur nos, qui sumus certi quod simus in esse,
laetabimur; nam quinque sensus nobis demonstram esse, in quo
sumus..."[63]
Lúlio concebe o ser constituído por princípios ou propriedades
generalíssimos -bondade, grandeza, eternidade, poder. pensamento,
vontade, etc.-, nos quais se inclui tudo o que é. Em Deus,
esses princípios assumem uma modalidade superlativa e são chamados de
Dignidades. Cada Dignidade é conversível com a essência divina.
Deus, por conseguinte, é o Supremo Esse, o único entre todos os
seres com nobreza e perfeição suficientes para ser eternamente e
infinitamente por Si e para Si.
Estes princípios são causativos. Assim, por exemplo, a bondade
divina causa as bondades extrínsecas, a grandeza divina e a eternidade
divinas as grandezas e durações extrínsecas. E assim com os outros
princípios[64]. Todos os entes criados existem por esses
princípios.
Insiste o filósofo catalão na causalidade intrínseca, ao explicar
que as bondades, as grandezas extrínsecas, e todos os outros
princípios que constituem o ser dos entes finitos têm suas ações e
paixões ordenadas naturalmente pelos princípios supremos. Isto
significa que o ser de cada ente depende de causas intrínsecas
diretamente dependentes das supremas[65].
Causa de todos os seres, Deus se reconhece bom ao produzir as
bondades finitas, pois é bom que o bem criado entenda e ame e lembre
de Deus. Por isso criou a inteligência, a vontade e a memória no
anjo e na alma racional[66].
A estrutura dinâmica do ato de ser é, pois, produtiva. O ser é o
ato -o ato do ente-, natural do ente, mediante o qual se sustenta
sua essência, tornando-a concreta. Todavia, trata-se também aqui
de um movimento entendido em sentido amplo, de um dinamismo necessário
para o ente ser o que é. Sem dúvida alguma, fala-nos Lúlio
daquela estabilidade do ser que Tomás de Aquino já descobrira.
Chega a afirmar que, nesse ato, a essência concreta se encontra em
repouso: "In quo quidem actu (natura) est in quiete"[67]
O ente finito pode ser de três modos: em Deus, na alma humana e em
si. As idéias em Deus, porém, não são seres reais, pois não
podem ser um com o infinito Esse divino, nem sequer parte dEle[68].
É o pensamento divino que delimita a essência do ente finito. Deus
pensa o geral e o particular. Portanto, no seu Pensamento se
encontra o fundamento da possibilidade de cada ente finito, isto é, a
essência de cada ente singular[69]. Essa essência, que em si mesma
é abstrata, torna-se concreta no ente concreto, por conta dos
princípios generalíssimos do ser[70].
Então, cabe perguntar qual será a relação entre essentia e ens.
Lúlio coerentemente dirá que a essência se converte com a entidade
-a propriedade do ente pela qual o ente é ente e produz e opera o
ente. Mas também o esse se converte com o ente. Está claro que
está-se referindo já à essência singularizada no ente concreto.
Lúlio usa o termo converter num sentido lógico, e portanto não
significa igualdade real. De fato, Lúlio demonstra a diferença
real entre a essência e o ente, pondo a essência no nível conceitual
e o esse no nível do concreto[71]. "Natura est essentia, in suo
naturali concreto sustentata.[72]"
Finalmente, resta dizer que deve-se atribuir ao ato de ser de cada
ente a unidade de todo o seu atuar. No caso do homem, Lúlio dirá
que se produz uma concordância natural entre suas potências quando
estas se aplicam a seus objetos correspondentes, e acrescenta que a
própria realidade que envolve o homem ganha também uma nova
concordância quando se torna objeto sensível, imaginável e racional
do mesmo através de suas potências. Sendo os atos destas potências
simultâneos, os objetos das potências inferiores tornam-se
instrumento das superiores. O sensível é instrumento do
imaginável, e este do inteligível.
Contudo, quando o homem atua contra o fim para o qual foi criado,
quebra-se a ordem nas potências, nos seus atos e nos seus objetos,
que assim deixam de ser instrumentos adequados para uma boa
intelecção[73].
Vê-se, portanto, que até mesmo a descoberta pelo homem da
moralidade de uma ação concreta poderá vir a ser prejudicada de
acordo com sua disposição em relação aos seus fins. Neste ponto
Lúlio, como fez Tomás, seguiu Aristóteles[74].
Conclusão. Pretendeu-se com esta Nota mostrar que se Lúlio
concebeu o dinamismo e a produção como propriedades intrínsecas ao
ser, tal concepção tem pouco ou nada a ver com as filosofias da
ação, onde o movimento se concebe anterior ao ser. Ocorre que, do
ponto de vista essencialista -e não poucas vezes essa foi a ótica
utilizada por alguns estudiosos do filósofo maiorquino-, Lúlio
torna-se incompreensível, pois nunca se admitiria que a essência já
constituída ente fosse conversível logicamente com o ser.
Além do mais, como os essencialistas põem a realidade no domínio da
essência, e Lúlio faz originar toda a atividade do ente nos
princípios do ser, são levados a concluir que Lúlio defendeu um
movimento que se realiza sem sujeito, isto é, a primazia da ação.
Em Lúlio, todavia, sempre há um sujeito que se move, e justamente
por mover-se, e por mover-se de tal maneira, é que é tal sujeito.
Redescobre-se, assim, em Lúlio a causalidade intrínseca que
origina a autonomia dos entes temporais, e ao mesmo tempo não se perde
nunca a sua ligação com o Supremo Ser, Deus-Criador.
O filósofo catalão é realista, e atribui a origem do conteúdo dos
entes finitos à mente divina. Consciente da incognoscibilidade que
isto acarreta, desenvolverá ao longo de sua vida uma técnica -as
sucessivas Ars- para subsidiar o homem na sua procura da verdade dos
entes. Essa técnica tem sido chamada de lógica realista, porque
consiste fundamentalmente numa combinatória dos princípios ou
perfeições que se encontram em Deus de um modo divino e infinito,
e, nas criaturas, finito e limitado. Por meio da analogia entre
todos os seres, Lúlio, mediante uma série de perguntas e de
regras, combina na sua Ars as respostas, sempre voltando aos seres
concretos -embora possam ser de distintos graus de entidade-, para
colher exemplos que ajudem o entendimento a concluir.
Esta Nota, cujo conteúdo teve de ser necessariamente sintético,
quis apenas apresentar rapidamente os pontos nucleares em que se
entrelaçam a metafísica e a moral. Tomara a sua última parte possa
servir de roteiro para desenvolvimentos mais amplos e matizados.
Muitos já aprenderam do enfoque luliano, mas ninguém ainda seguiu o
filósofo catalão até as últimas conseqüências.
Esteve Jaulent - Centro de Extensão Universitária - São
Paulo
Publicado em: IDADE MÉDIA: ÉTICA E POLÍTICA,
Organizador: Luis Alberto de Boni, Edipucrs, 2a. ed. Porto
Alegre, 1996
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