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Em agosto de 1997, em Erfurt, na Alemanha, realizou-se o X
Congresso da SIEPM (Societé Internationale pour l’Étude de
la Philosophie Médiévale). Inscreveram-se para o evento mais de
600 especialistas, provenientes de quase 50 países. Imagine-se
a Babel que se instalou, pelo fato de haver 6 línguas oficiais
(latim, alemão, espanhol, francês, inglês e italiano),
sabendo-se que são raros os que dominam todas essas línguas; e nem
sempre um russo é de todo compreensível em seu francês, ou um
japonês é tão fluente em seu alemão, ou um brasileiro em seu
inglês. Mas os problemas de comunicação não empanaram o
Congresso; pelo contrário, deram-lhe o brilho da universalidade.
Dos presentes, uma centena eram meus conhecidos. Sei deles no quê
são especialistas, que obras escreveram, em que instituição
trabalham. De quase todos conheço também alguns dados pessoais.
Assim, uma professora é sacerdote da Igreja Episcopaliana dos
Estados Unidos; um respeitado pesquisador italiano é ateu confesso,
como ateus são também diversos alemães; há marxistas convictos;
há freiras católicas e evangélicas; vários são padres católicos;
os livre-pensadores também se fazem presentes; os nórdicos são
todos, ou quase todos, evangélicos luteranos; dos países árabes
provêm pesquisadores de fé muçulmana; há judeus; entre os
japoneses, a maioria segue religiões orientais; gregos, russos e
búlgaros são ortodoxos. Dos países latinos, a maior parte são
católicos, alguns não tão praticantes.
Talvez alguém, ao ler o parágrafo acima, venha a dizer: “Mas que
interessa a vida particular dos indivíduos? O importante não são as
convicções pessoais, pois cada um tem as suas; importante é que
alguém seja competente em sua área de pesquisa. E por mais ressalvas
e distinções que se façam, por mais que se apele para teorias
hermenêuticas, por mais que se fale no modo pessoal de achegar-se a
um problema, há sempre um mínimo de objetivo, que é a condição de
possibilidade de toda a comunicação. Assim, por exemplo, um frade
dominicano, um pesquisador islâmico e um ateu podem tratar da noção
de pessoa, ou do problema da existência de Deus, em Tomás de
Aquino, Duns Scotus e Ockham, sem que suas convições religiosas
interfiram no estudo”. Concordo plenamente com a observação e por
ela pautei meu trabalho. Por isso, interessei-me pela competência
acadêmica dos colegas, independentemente de suas convicções
ideológicas, religiosas ou políticas. Aliás, quando me disseram,
numa livraria católica de Roma, que não vendiam a Storia della
Filosofia Medievale de Cesare Vasoli, porque ele era comunista,
fiquei abalado, não tanto pelo fato de a livraria não lhe vender a
obra, mas por jamais haver percebido ressaibos de marxismo naquele
volume, que considero dos melhores textos sobre o tema.
Mas nem sempre foi assim. Ou melhor: até há poucos anos não era
assim.
A história dos estudos de Filosofia Medieval não é tão longa, e
pode ser relativamente bem datada. O Renascimento, a Reforma e o
Iluminismo voltaram-se conscientemente contra a Idade Média.
Este, principalmente, partiu de um preconceito: era necessário
deixar de lado tudo o que foi escrito como Filosofia, entre a
Antigüidade e os tempos modernos. É célebre o dito de que entre o
fechamento da Academia Platônica por Justiniano, em 529, e o
“Discurso sobre o Método”, de Descartes, em 1637, existe um
vazio de 1.108 anos. A afirmação pode parecer estranha para o
leitor moderno, mas foi no espírito dela que se fundou Curso de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP, na década de 30: no esquema do célebre Sprung über
das Mittelalter (o salto por sobre a Idade Média), passava-se de
Proclo a Descartes com a maior naturalidade. Transcorreu meio
século antes que se criasse a cadeira de Filosofia Medieval na mais
renomada instituição de ensino superior do Brasil.
Como se explica este fenômeno? A meu modo de ver, trata-se de um
caso multifacetado, cuja análise pormenorizada ultrapassaria os
limites da presente introdução. Resumidamente, pode-se dizer que o
pensamento escolástico, após 1350, perdeu muito de seu vigor.
Homens como Alberto Magno, Tomás de Aquino, Rogério Bacon,
Boaventura, Pedro Olivi, João Duns Scotus, Mestre Eckhart,
Dante Aligheri, Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham
encheram o século que medeia entre 1250 e 1350. Aqueles que
os seguiram não tiveram o mesmo fôlego, sendo que muitos, apegados
à escola de algum destes mestres, tornaram-se meros repetidores.
Era de esperar que o Renascimento pedisse ares novos também à
Filosofia, embora deva-se admitir que, com relação a essa, ele
foi muito contundente nas críticas, mas paupérrimo em novas idéias.
Já a Reforma, defrontando-se com a via moderna, pregava um retorno
à Palavra divina, relegando como querelas de um pensamento decadente
o que provinha dos debates acadêmicos da época. O Iluminismo, por
sua vez, principalmente o francês, marcadamente anti-eclesiástico,
buscava uma Filosofia das luzes, que ignorasse o mundo de trevas que a
precedera[1].
A Filosofia Escolástica, no decorrer dos séculos, foi perdendo
força mesmo dentro da Igreja, na medida em que as novas teorias da
Física, bem como o Racionalismo, o Empirismo, o Sensismo e
outras correntes filosóficas passavam a ocupar um espaço sempre maior
nos manuais eclesiásticos. O que dela sobreviveu, nas escolas
católicas, não foi tanto como Filosofia, mas como repetição ou
partido: tomistas e scotistas, por exemplo, digladiavam-se
defendendo as idéias de seus patronos, e quanto melhor os defendiam,
mais os traíam, esquecendo-se de que a verdadeira Filosofia não
consiste na repetição, nem na dissecação anatômica do texto, mas
em “captar conceptualmente seu mundo”, como diria Hegel; ou,
segundo o dito de Tomás de Aquino: “O estudo da Filosofia não
consiste em saber o que outros disseram, mas em procurar a verdade das
coisas”. Alguns pensadores de valor, como Tomás de Vio
Caietano, João de Santo Tomás e Pedro Fonseca, foram mais ou
menos ignorados pelos pósteros. Francisco Suárez e Francisco
Vitória encontraram seu lugar na História como fundadores do
Direito Internacional, não como escolásticos. Por muitos anos
pensou-se mesmo que a Filosofia Moderna surgiu quase que de si
mesma, sem dever nada aos séculos que a precederam[2]. Só há
poucos anos os estudiosos dedicaram-se a um estudo
histórico-genético, a fins de descobrir quanto e por quais caminhos
o pensamento moderno é devedor do pensamento medieval[3].
Tais constatações são, porém, recentes. Durante cerca de 400
anos, acreditou-se que a Idade Média era um estágio
definitivamente superado na história da humanidade. Ela interessava
apenas à Igreja Católica que, parecia, mantinha-se tão
retrógrada quanto o passado que defendia.
Foi o romantismo que, por primeiro, percebeu que a Idade Média
constituía chave de compreensão da cultura ocidental e, por isso,
começou a apreciá-la com outros olhos. O movimento teve seu eixo na
França, onde o eclético V. Cousin, que já publicara em 1838
as Ouvrages inédits d’Abélard, lançou, entre 1849 e
1859, os dois volumes de Petri Abelardi opera. A.
Jourdain[4], F. Ozanan[5], X. Rousselot[6], Ch.
Rémusat[7], Ch. Jourdain[8], entre outros, e E. Renan,
com seu clássico Averroès et l’averroïsme (1852), foram
alguns dos pioneiros.
No decorrer deste período formaram-se, aos poucos, algo assim como
duas escolas históricas, que prosseguiram separadas por cerca de um
século. De um lado, a escola racionalista, herdeira do movimento
laico, principalmente nas universidades; de outro lado, a escola
católica, acoplada, em grande parte, à redescoberta de Tomás de
Aquino. A formação anti-clerical e, em alguns casos, mesmo
anti-cristã dos primeiros, levou-os a considerar a Filosofia
Medieval como produto de uma civilização com a qual antipatizavam e,
por isso, negavam mesmo qualquer valor filosófico ao pensamento
medieval, no qual viam apenas importância histórica e cultural; a
formação católica dos segundos, em contraposição, fez com que,
muitas vezes, tomassem o pensamento medieval como modelo atemporal de
trabalho filosófico. É compreensível que, a partir de tais
posições, o diálogo entre os dois grupos fosse difícil.
Entre os racionalistas cabe citar, em primeiro lugar, o mais célebre
deles: J. B. Hauréau. Voltaireano e livre-pensador, homem de
grande cultura, trabalhando no gabinete de manuscritos da Biblioteca
Nacional de Paris, publicou, entre outros escritos, a Histoire de
la philosophie scolastique (3 vol. 1872-1880), obra que
conserva validade até hoje. A seu modo de ver, a história da
escolástica é a história da luta da razão, a fim de emancipar-se
da fé, cabendo um lugar preponderante aos nominalistas, como
precursores do racionalismo moderno.
Na Alemanha, nesta época, C. Prant, no melhor estilo ra-
cionalista, lançava, em 4 volumes, a Geschichte der Logik im
Abendlande (1855-1870). Trata-se de outro texto de
fundamental importância, principalmente para o estudo da lógica
medieval, da qual o autor não percebeu e não podia perceber todo o
alcance, nos três volumes a ela dedicados, pois faltavam-lhe os
conhecimentos teóricos que só os estudos mais recentes de Lógica
alcançaram. Uma observação de F. van Steenberghen[9] sobre
esta obra, coloca-a corretamente no quadro das disputas ideológicas
do tempo: “Considerando-se a antipatia que ele manifesta com
relação aos escolásticos, cabe perguntar por que empregou tanto
tempo para retirá-los do esquecimento”. Tal como J. B.
Hauréau, também C. Prantl concorda com V. Cousin, julgando
que o grande problema dos medievais foi a querela dos universais.
F. Picavet representa um passo de aproximação entre as duas
correntes. Em suas obras principais, Esquisse d’une histoire
générale et comparée des philosophies médiévales (1905) e
Essais sur l’histoire générale et comparée des théologies et des
philosophies médiévales (1913), insiste não somente em afirmar
que a Idade Média possui um interesse fundamental para a história
das idéias e da Filosofia e que há verdadeiros filósofos naquele
período, como também no fato de que o pensamento medieval é complexo
e diversificado (motivo pelo qual fala em “Filosofias medievais”).
Contudo, preso a esquemas comteanos, vê a Filosofia Medieval como
pertencente ao estágio teológico da humanidade e, por isso, julga
que o principal inspirador dela, ao contrário do que se dizia, não
foi Aristóteles, e sim Plotino. Com isso, porém, acentua, na
Idade Média, o elemento de continuidade, não somente com relação
à Filosofia Antiga, mas também com relação à Moderna.
Empenhado em encontrar espaço acadêmico para seus estudos, F.
Picavet fundou, em 1896, a Société pour l’étude de la
scolastique médiévale. Em 1888 havia conseguido a instituição
de uma cátedra para o estudo das relações entre a Teologia cristã e
a Filosofia, sendo ele o primeiro titular; e, em 1906, na
Sorbonne, viu criado, na Faculdade de Letras, o Cours d’histoire
des philo- sophies médiévales, tornando-se o primeiro titular e
mantendo-se no cargo até o ano de sua morte, em 1921, sendo
então substituído por E. Gilson.
Entre os demais historiadores racionalistas, onde há vultos como L.
Brunschvicg, L. Gauthier e K. Vorländer, cabe citar, sem
dúvida, E. Bréhier. Um artigo seu, de 1931, intitulado Y
a-t-il une philosophie chrétienne?[10] Desencadeou uma
polêmica que, por longos anos, agitou os especialistas. Em 1938
publicou a importante La philosophie au moyen âge. Segundo ele,
houve, na Idade Média, um grande esforço intelectual, mas o
cristianismo, que é um anúncio de salvação, de caráter moral e
prático, não é uma doutrina especulativa. Trata-se, pois, de
duas realidades heterogêneas, que seguiram seus próprios caminhos,
independentes uma da outra e a Filosofia seguiu o seu, por vezes,
apesar do cristianismo, que no período medieval a paralisou, devido
ao controle exercido pela Igreja sobre a cultura. O único contributo
da Filosofia medieval foi o do esforço doloroso de emancipação da
inteligência[11].
- Do lado católico, a renovação que se anunciava na Igreja, na
segunda metade do século XIX, fez-se sentir também entre os
filósofos e os historiadores da Filosofia. O racionalismo prosseguia
no caminho de laicização da sociedade, mas não se pode dizer que ele
constituísse um corpo doutrinário delimitado, ou que se houvesse
institucionalizado. Com a Igreja Católica acontecia algo
diferente: em seu projeto de renovação, ela traçou diretivas de
estudo canonicamente institucionalizadas. Isso fez com que pesquisas,
trabalhos, publicações encontrassem formas de continuidade que
perpassaram decênios.
Deve ser levado em conta, quando se fala do surgimento dos estudos
medievais na Igreja Católica, que eles tiveram, quase sempre, um
cunho eminentemente reacionário, na medida em que foram promovidos
para combater não apenas as filosofias que pareciam opor-se ao
Cristianismo, mas também toda e qualquer tentativa de aproximar-se
delas, de dialogar com elas, de incorporar à Teologia ou ao debate
filosófico o que pareciam ter de válido.
Propostas de atualização filosófica ou política foram condenadas,
quase sempre, a partir de um ponto de vista teológico de forte
caráter conservador. Assim, na França, H. F. Lamennais
(1782-1854), de idéias tradicionalistas, criticando os
excessos da Revolução, mas também o que não se podia mais
sustentar na Igreja, defendeu a abertura para um mundo diferente, com
valores democráticos, no qual participassem as grandes massas
trabalhadoras, e onde, de direito e de fato, houvesse separação
entre Igreja e Estado. O resultado foi sua condenação por Roma em
1832 e 1834[12].
Na Alemanha, G. Hermes (1775-1831), partindo do
princípio que a Filosofia tradicional estava superada, procurou
incorporar a Crítica da razão pura de Kant em seu trabalho
teológico. A condenação, por parte de Roma, veio post-mortem,
em 1835, sendo confirmada depois, pela Constituição Dogmática
do Vaticano I, em 1870. Na Áustria, A. Günther
(1783-1863), intelectual de nível, que debateu o
pensamento de Hegel, Feuerbach e Marx, tentou incorporar Hegel à
Teologia Católica, sendo condenado em 1857. Na Alemanha,
J. Frohschhammer (1821-1893), procurou o mesmo com
Fichte, sendo condenado em 1862.
Na Itália, V. Gioberti (1801-1852), defensor da
reaproximação entre a cultura moderna e o catolicismo, foi condenado
por ontologismo em 1849 e 1852. Algo semelhante aconteceu com
o bispo Antônio Rosmini-Serbati (1797-1855), também
aberto aos novos tempos, com os quais deseja reconciliar a Igreja.
Coube-lhe igualmente a sorte de, post mortem, em 1887, ter 40
teses pinçadas de suas obras e condenadas.
Por trás da maioria destas condenações esteve o jesuíta J.
Kleutgen (1811-1883), durante longos anos residente em
Roma, onde trabalhou como prefeito de estudos da Universidade
Gregoriana e assessor do Santo Ofício. Foi presença importante na
Constituição Dogmática do Vaticano I e, provavelmente, na
elaboração da encíclica Aeterni Patris. Suas obras Theologie der
Vorzeit vertheidigt (3 vol. 1853-1870) e Philosophie der
Vorzeit vertheidigt (2 vol. 1860-1863), marcos
importantes para o desenvolvimento dos estudos medievais, são modelo
daquela visão conservadora, que mede o pensamento moderno por padrões
escolásticos[13].
Não deixa de ser interessante que os autores condenados por Roma e
aqui mencionados foram sacerdotes católicos de vida exemplar. H.
F. Lamennais, por exemplo - considerado, junto com K. Marx, o
maior visionário do século XIX -, renunciou até ao título
nobiliárquico para estar mais próximo aos pobres. A. Rosmini,
fundador de uma congregação religiosa, encontra-se em processo de
beatificação. Todos eles, sintomaticamente, tinham duas coisas em
comum: a convicção de que era necessário dialogar com o pensamento
de seu tempo e a certeza de que o Ancien Régime pertencia
definitivamente ao passado. O que a eles se opôs, acima de tudo,
não foi a ortodoxia católica que se sentiu ameaçada; foi a falta de
sentido histórico dos que os condenaram. Para estes, as verdades
eternas, tão bem estudadas pelos escolásticos, possuíam uma
validade acima de qualquer época e o que delas discordasse sabia a
erro. Havia, portanto, uma lógica interna na recusa que o mundo
moderno fazia do ressurgir da Escolástica, e alguns decênios
haveriam de transcorrer, antes que os dois lados se aproximassem.
O impulso maior para os estudos medievais dentro da Igreja Católica
proveio, sem dúvida, da encíclica Aeterni Patris, de Leão
XIII, em 1879. Esta carta apostólica, para cuja correta
compreensão deve-se lê-la em seu tempo, captou o que se esboçava
no renascimento do tomismo, por obra de autores como J. Kleutgen,
H. D. Lacordaire, G. Sanseverino, M. Liberatore e L.
Taparelli. Numa Igreja que se encontrava na defensiva, ante os
“erros” dos tempos modernos – Criticismo, Idealismo,
Positivismo, Ecletismo, Evolucionismo, Marxismo – o papa, como
se pode compreender, apelava para a restauração da escolástica, e
principalmente para o estudo do tomismo, com claro interesse
apologético: defender a fé contra os ataques das novas Filosofias.
Contudo, do texto promanaram algumas idéias que marcariam os
historiadores e os pensadores católicos daí por diante: a separação
entre Filosofia e Teologia; a subordinação, para o crente, da
Filosofia ante a Teologia; a importância do conhecimento aprofundado
do pensamento medieval, principalmente de Tomás de Aquino e, acima
de tudo, o significado do estudo da Filosofia para a Igreja.
A conclamação pontifícia encontrou um eco maior do que talvez até o
próprio papa poderia esperar. É impossível sintetizar em poucas
linhas o que foi a renovação católica, cabendo aqui,
tão-somente, apresentar alguns resultados[14].
Em Roma, as diversas universidades religiosas, especialmente a
Gregoriana, sob a direção dos jesuítas, tornaram-se centros de
estudos do pensamento medieval e de formação do clero de todo o
mundo, numa linha tomista um tanto conservadora.
Em Paris, já em 1875, por determinação do episcopado,
Mons. M. D’Hulst havia fundado o Instituto Católico, o qual
transformou-se no grande catalizador da renovação católica da
França, país fortemente marcado pelo laicismo da Revolução
Francesa. Os dominicanos de Le Saulchoir, tendo à frente P.
Mandonnet, fundaram Bibliotèque thomiste e o Bulletin thomiste
(1921). Antes, em 1893, em Friburgo na Suíça, havia
sido fundada a Revue thomiste, por T. Coconnier, juntamente com
P. Mandonnet. E. Gilson, de sua parte, fundou os Archives
d’histoire doctrinale et litteraire du moyen-age (1926) e a
coleção Études de philosophie médiévale (1930).
Em Lovaina, sob a direção bem mais aberta de P. D. Mercier,
mais tarde nomeado cardeal, criava-se, em 1882, uma cátedra de
Filosofia Medieval, que, em 1894, transformou-se no Instituto
Superior de Filosofia. Neste mesmo ano lançou-se a Révue
néo-scholastique de philosophie, chamada mais tarde de Revue
philosophique de Louvain. M. de Wulf e F. van Steenberghen são
dois entre os nomes mais eminentes daquela universidade belga.
Em München, o centro de estudos medievais contou com professores
renomados, como G. v. Hertling, C. Baeumker e M. Grabmann.
C. Baeumker foi o idealizador e primeiro diretor da coleção
Beiträge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters
(Münster, 1891 s. Ao assumir a direção, M. Grabmann
acrescentou, und der Theologie, após Philosophie). De fundação
mais recente (1950), mas de grande relevância, é o
Thomas-Institut da Universidade de Köln, organizado por J.
Koch e dirigido, durante longos anos, por A. Zimmermann. Entre
as edições do instituto encontra-se a coleção Miscellanea
Mediaevalia.
Por obra de A. Gemelli, fundava-se, em Milão, em 1921, a
Università del Sacro Cuore, o mais renomado centro de estudos de
Filosofia Medieval da Itália, cuja principal publicação é a
Rivista neo-scolastica di Filosofia.
Alguns anos depois, em 1929, surgiu no Canadá o Instituto
Pontifício de Toronto, sob a direção de E. Gilson, tendo como
órgão divulgador de pesquisas a revista Mediaeval Studies. Em
1931, fundou-se o Instituto Pontifício de Ottawa, sob a
direção de D.-M. Chenu. Nos Estados Unidos, em 1925,
criou-se a Mediaeval Academy of America, em Cambridge (Mass).
Em 1943, os franciscanos fundaram a Universidade Saint
Bonaventure, com nomes como os de Ph. Boehner, A. Wolter e G.
Gàl. Já antes, a Catholic University of America, em
Washington, tornara-se reconhecida instituição católica de ensino
superior, com importantes estudos sobre o pensamento cristão
medieval[15].
As universidades de Münster, Freiburg, Lille, Tolosa,
Salamanca, Barcelona, Madrid, Breslau, Varsóvia, Cracóvia,
Nijmegen, Firenze, Padova, Oxford, Cambridge, entre outras,
foram também grandes centros difusores do pensamento medieval.
- No início dos estudos de Filosofia Medieval, percebeu-se com
clareza que era necessário, antes de mais nada, um longo trabalho
técnico interdisciplinar, tal como já fora realizado com o pensamento
antigo. As edições não eram seguras; atribuíam-se a um autor
textos que não pertenciam a ele; os arquivos possuíam milhares de
manuscritos, quase todos inéditos; de pensadores importantes, como
Síger de Brabante, Boécio de Dácia, Nicolau de Autrecourt,
Witelo, conhecia-se pouco mais que o nome; não muito mais se sabia
da maioria dos pensadores árabes e judeus; lendas e apologias
desvirtuavam a memória dos mortos; falhas cronológicas misturavam
fatos; ignorava-se quase tudo sobre a organização dos estudos na
universidade medieval; a Faculdade de Artes era uma ilustre
desconhecida; das traduções de gregos e árabes para o latim não se
possuía nenhum estudo científico, etc.
Para superar tais dificuldades, o dominicano H. Denifle e o
jesuíta F. Ehrle (depois cardeal), radicados em Roma,
fundaram, em 1885, o Archiv für Literatur- und
Kirchengeschichte des Mit-telalters.
Anos antes iniciara-se um outro capítulo da recuperação
histórico-literária: o das edições críticas. Ao constatar que
se encontrava esgotada, há decênios, a obra de Tomás de Aquino,
na edição preparada por ordem do papa Pio V (daí o nome de editio
piana), Leão XIII ordenou aos dominicanos – e colocou-lhes
recursos à disposição – que providenciassem uma nova edição.
Surgiu assim a editio leonina, um trabalho de fôlego, cujo primeiro
volume veio a lume em 1880 e que prossegue até hoje. Os
franciscanos, no período entre 1882 e 1902, lançaram os 10
volumes da Opera omnia de São Boaventura, o primeiro autor medieval
a ter uma edição crítica, tida a até hoje como modelar. Depois,
publicaram, entre outros de seus confrades, a Summa e as Quaestiones
antequam esset frater de Alexandre de Hales e, desde terceira década
do século, sob a direção de E. Longpré e, depois, de C.
Balić, entregaram-se ao difícil projeto de preparar a
edição crítica de Duns Scotus. Seus colegas americanos de Saint
Boaventure, a partir de 1963, publicaram, em 17 volumes, a
Opera theologica e a Opera philosophica de Guilherme de
Ockham[16]. O Instituto Filosófico de Louvain, sob a
direção de M. De Wulf, tomou a si o encargo de editar, em 15
volumes, Les philosophes belges. Em trabalho individual, que se
estendeu por décadas, o monge alemão, F. S. Schmitt, publicou
a Opera omnia de santo Anselmo (Seckau/Edimburg,
1938-1961). A arquidiocese de Köln, por sua vez,
responsabilizou-se pela edição da Opera omnia de Alberto Magno,
estando já publicados cerca da metade dos 40 volumes previstos.
Sociedades leigas também se voltaram para este difícil trabalho,
como no caso da edição da obra de Mestre Eckhart, financiada pela
Deutsche Forschungsgemeinschaft, desde 1936, e da de Nicolau de
Cusa, patrocinada pela Academia de Ciências de Heidelberg, desde
1939. De Raimundo Lúlio, a obra latina é editada pela
Universidade de Freiburg, enquanto a catalã fica a cargo da
Universidade de Mallorca. Em data mais recente, em Copenhagen
iniciou-se a publicação do Corpus Philosophorum Danicorum Medii
Aevi, e na Alemanha o Corpus Philosophorum Teutonicorum Medii
Aevi. Nas últimas décadas, graças principalmente aos meios
eletrônicos, as edições de pensadores medievais multiplicaram-se e
são levadas a cabo tanto por iniciativa eclesiástica, como por
interesse da comunidade acadêmica.
E. Gilson, historiador e filósofo, merece menção especial. É
considerado, com justiça, como o principal medievalista do século
XX, quer pela amplidão e quantidade de suas obras, quer pelas teses
de que defendeu e pelos caminhos que abriu. Ao doutorar-se, em
1913, sobre La liberté chez Descartes et la théologie e Index
scolatico-cartésien, acabou descobrindo a Idade Média. No mesmo
ano obteve vaga como professor em Lille. Em 1919 foi nomeado
professor em Strassbourg e, em 1921, ele, católico praticante,
assumiu a cátedra de História da Filosofia Medieval na Sorbonne,
sucedendo a F. Picavet. Espírito perspicaz, julgou possível
conciliar as teses católicas com as racionalistas. Se, com os
primeiros, afirmava que a Idade Média produziu verdadeiros
filósofos e verdadeira Filosofia, contudo, com os segundos, admitia
que tal Filosofia tinha traços particulares, porque marcada pela
influência decisiva do Cristianismo. Mas aqui separa-se novamente
dos racionalistas, ao julgar de modo positivo tal influência.
Essas idéias surgem já em sua primeira obra como professor: Le
Thomisme. Introduction au système de saint Thomas d’Aquin
(Strassbourg,1919). Nela afirma que Tomás de Aquino e Duns
Scotus, para mencionar apenas dois nomes, são filósofos de primeiro
plano e produziram uma verdadeira Filosofia. Ao mesmo tempo,
porém, observa, que o que eles possuem de mais pessoal em Filosofia
é o que se encontra na obra teológica, pois Tomás de Aquino - a
quem se atém – não escreveu nenhuma obra onde sistematize seu
pensamento filosófico, que deve ser procurado dentro dos textos
teológicos. Pouco depois, em Études de philosophie médiévale
(Strassbourg, 1921), acentuava a importância de Tomás de
Aquino, como o primeiro pensador que, na história do cristianismo,
restaurou a idéia de uma Filosofia autônoma. No ano seguinte
publicou um pequeno volume, La philosophie au moyen âge. De Scot
Érigène à Guillaume d’Occam (Paris, 1922)[17], onde,
criticando as teses racionalistas, afirma de que a história da
Filosofia Medieval é, no mais fundo de si mesma, a história do
movimento racionalista. Passados dois anos, lança La philosophie de
saint Bonaventure (Paris, 1924), no qual mostra como, ao lado
da Filosofia autônoma de Tomás, que se deixa controlar
extrinsecamente pela fé, existe na Idade Média uma Filosofia
heterônoma, como a de Boaventura, que se constrói deliberadamente
sob a influência intrínseca da fé. Gilson julga válidos ambos os
modos de trabalhar, e vê na diversidade o enriquecimento do
patrimônio cristão. O décimo-quinto centenário da morte de santo
Agostinho serviu-lhe como ocasião para, após estudar Boaventura,
lançar o importante texto Introduction à l’étude de saint Agustin
(Paris, 1929), onde novamente acentuou as características
próprias de um modo cristão de fazer Filosofia. Passadas mais de
duas décadas, foi a vez de lançar outra monografia monumental: Jean
Duns Scot (Paris, 1952). Nesta obra confirma novamente o que
F. Picavet e C. Baeumker haviam expressado, isto é, que não se
pode falar em “Filosofia Medieval”, no singular, e sim em
“Filosofias Medievais”, no plural. A base da argumentação para
tanto continua a mesma: se pensadores que possuem uma mesma fé
produzem teologias tão diferentes, é porque possuem filosofias
diferentes. E nestas filosofias, igualmente ortodoxas, que não se
deixam reduzir uma à outra, é preciso fazer uma escolha. No caso,
a escolha de E. Gilson foi clara: preferiu o “existencialismo” de
Tomás de Aquino ao “essencialismo” de Duns Scotus, sem negar,
porém, que outros, por motivos igualmente válidos, poderiam fazer a
escolha inversa.
Na década de 30, eclodiu então o debate já mencionado acima, e
E. Gilson viu-se atacado pelos dois grupos. De um lado, E.
Bréhier, recusando ver nos medievais o que se poderia chamar de
“filósofos puros”, por deixarem determinar seu pensamento a partir
de um elemento extra-filosófico, que é o dado da fé. De outro
lado, P. Mandonnet, dizendo que, na obra de E. Gilson, não
houvera uma separação suficiente entre Filosofia e Teologia, no que
se refere a Tomás de Aquino. Boa parte da intelectualidade francesa
envolveu-se nessa polêmica que conheceu réplicas e tréplicas, em
cujo final, porém, as posições haviam-se nuanceado e, em alguns
pontos, estavam também mais próximas. Pessoalmente, sou de
opinião que o mais importante texto de E. Gilson é L’esprit de la
philosophie médiévale (Paris, 1932), fruto das
Gifford-Lectures. Nele, acima de qualquer polêmica, expõe seu
pensamento, ao mostrar a gênese e o desenvolvimento, desde a
patrística até o final da Idade Média, dos principais temas das
Filosofias cristãs, que as caracterizam como verdadeira Filosofia,
diferente da grega.
Personalidade ímpar, E. Gilson soube aproveitar com maestria o que
lhe pareceu válido em outros pensadores; como ninguém soube montar
grandes sínteses, mais que qualquer outro promoveu os estudos
medievais no século XX. Contudo, embora aberto ao pensamento
moderno, permaneceu preso à visão católica mais tradicional de
considerar a Filosofia Medieval dentro do esquema
alvorecer/meio-dia/pôr-do-sol.
A polêmica de 1930 mostrou, entre outras coisas, que também o
lado católico não era tão monolítico como se poderia imaginar. E
quanto mais se pesquisava, quanto mais se editavam textos, quanto mais
se formavam novos pesquisadores (muito deles de proveniência
não-eclesiástica e mesmo não-católica), mais as fronteiras iam
desaparecendo. Para tanto contribuíram, e muito, os congressos
especializados do após-guerra.[18] Somem-se a isso as mudanças
que o mundo sofreu no século XX, com a amarga experiência de
ditaduras, guerras, genocídios, guerra-fria, com a experiência do
ecumenismo, da criação das Nações Unidas e a proclamação dos
direitos humanos, e tem-se, em parte, a explicação do que acontece
hoje em encontros de Filosofia Medieval, como o de Erfurt: modos
diferentes de pensar, de interpretar fatos, de analisar o conteúdo de
textos, convicções religiosas ou políticas, proveniência
acadêmica não representam mais divisores de águas. Aliás, as
múltiplas clivagens fazem com que o mesmo indivíduo pertença a grupos
diferentes, o que dificulta facciosismos e sectarismos com os quais a
ciência pouco tem a ver.
Um olhar retrospectivo sobre mais de um século de trabalho constata,
com facilidade, que boa parte dos estudos não foram propriamente
Filosofia, mas História, Literatura, Paleografia, requisitos
indispensáveis para o trabalho filosófico. Mostra também que a
renovação promovida pela Igreja, em seus primórdios, era muito
mais de caráter teológico que filosófico, embora as duas áreas, na
forma medieval de trabalho, não se deixem separar facilmente.
Além disso, no que se refere à Filosofia propriamente dita,
desenvolveram-se duas tendências divergentes. A primeira delas
considerou a Escolástica como normativa e, conseqüentemente, tomou
a Filosofia Medieval como philosophia perennis, isto é, como um
saber atemporal, pelo qual se mede a maior ou menor validade das demais
filosofias. Com isso, a Filosofia Medieval não é colocada dentro
da moldura maior da História da Filosofia, mas repristinada,
valendo como uma “condutora confiável e orientadora”[19]. Se
analisada de perto esta posição, percebe-se que ela relativiza a
pesquisa filosófica, tomando-a como parte de uma programa maior (no
caso, o da Igreja Católica) ou, como diz W. Kluxen, para ela
“o trabalho erudito é primeiramente serviço em favor da
Igreja”[20]. Com isso, facilmente canoniza-se (transforma-se
em cânon) um pensador, e por ele avaliam-se os demais. Foi o que
aconteceu, muitas vezes, com Tomás de Aquino, que extraído de seu
contexto histórico, passou a ser estudado como sendo a própria
Filosofia (não muito diferente do modo como os marxistas leram K.
Marx). Aliás, foi neste espírito que se publicou a Aeterni
Patris, e nele, já no final do milênio, ainda foi elaborada a
Fides et ratio. Em fins do século XIX, esta visão, que era a
visão oficial da Igreja a respeito da Filosofia escolástica, foi
tão estreita, a ponto de os editores da obra de S. Boaventura, em
vez de ressaltarem a originalidade e a importância dos escritos deste
autor, sentirem-se obrigados a procurar, de todas as formas, mostrar
que ele em nada discordava da ortodoxia de Tomás de Aquino.
Uma segunda corrente, da qual C. Baeumker foi o mais expressivo
entre os pioneiros, considerou a escolástica não como uma síntese,
mas como um patrimônio, vendo a unidade deste período como
“pluralidade diferenciada de um processo vivo”[21]; conhecê-la
a fundo, então, adquiria importância como condição para
incorporá-la no debate filosófico contemporâneo, momento crucial em
que a erudição histórica transforma-se em verdadeira Filosofia.
Resumindo e simplificando: se para o primeiro grupo estuda-se a
Filosofia Medieval para, a partir dela, questionar a
Contemporânea; para o segundo, estuda-se a Filosofia Medieval
para incorporá-la aos debates da Contemporânea. Para estes,
então, a leitura de um autor atual, como L. Wittgenstein, que
pouco conheceu do pensamento medieval, “pode constituir-se em uma
propedêutica à leitura de Tomás de Aquino”[22]. Este modo de
trabalho foi seguido com êxito por filósofos como P.
Geach[23], E. Anscombe[24] e A. Kenny[25].
Aliás, os lógicos e analíticos ingleses e norte-americanos
voltam-se sempre mais para seus antecessores do medioevo, que deixaram
importantes contribuições a respeito da suposição, da
reduplicação, das antinomias, dos sofismas, dos verbos modais, dos
verbos cognitivos, etc.
A volta às fontes e o estudo aprofundado delas refletiu-se, como
não poderia deixar de ser, no surgimento de muitos filósofos e
teólogos de valor, que ao relerem e atualizarem o pensamento medieval
entraram, em grau maior ou menor, em frutífero diálogo com o seu
tempo. Qualquer tentativa de nomear os mais importantes dentre eles
será incompleta e cometerá injustiças; mesmo assim, cabe citar,
além dos já mencionados, entre outros, A. D. Sertillanges,
R. Garrigou-Lagrange, M. Bondel, E. Mounier, Ch.
Boyer, J. Maritain, H. De Lubac, J. Y. Calvez, Y.
Congar, J. Maréchal, E. Przywara, F. von Brentano,
F.-J. von Rintelen, Edith Stein, J. B. Lotz, R.
Guardini, K. Rahner, Max Müller, E. W. Platzeck, H.
Maier, J. Ratzinger, H. U. von Balthasar, J. B. Metz,
E. Coreth, L. Honnefelder, B. Lonergan, A. Masnovo, A.
Gemelli, A. Maier, A. Ghisalberti, G. Piaia, F.
Bottin. Nas fontes medievais abeberaram-se também alguns dos
principais pensadores brasileiros, como M. T. L. Penido, L.
Franca, A. A. Lima, H. C. de Lima Vaz, C. R. Cirne
Lima, E. Stein, U. Zilles, M. A. de Oliveira. Diversos
destes autores, como se percebe, não podem ser relacionados pura e
simplesmente com o pensamento medieval e, menos ainda, ser chamados de
neo-escolásticos. De fato, a partir de uma formação profundamente
enraizada nos clássicos medievais, são muito mais filósofos
contemporâneos que medievalistas. Isto vale para estrangeiros tanto
como para brasileiros.
Mas, o que é mesmo Idade Média? O que é Filosofia Medieval?
Depois de tudo o que foi dito até aqui, talvez pareça estranha a
pergunta. Mas não é. Tanto não é que os principais historiadores
do período, nos últimos tempos, têm-se debruçado sobre ela e nem
sempre encontraram a resposta que esperavam.
Aqueles, a quem chamamos de medievais, jamais se consideraram
medievais; como é, pois, que nós os chamamos de medievais?
Sabe-se que a expressão Media aetas provém da área das artes e foi
aplicada à história, em geral, por C. Keller (Cellarius) em
fins do século XVII.
Aceitando-se simplesmente a expressão, torna-se necessário
introduzir uma periodização na História e – o que nos interessa –
na Filosofia, e então divide-se esta em antiga, medieval, moderna
e contempoânea. Mas como delimitar cada uma delas? Como indicar,
no caso, os termini a quo e ad quem, isto é, quando começa e quando
termina a Filosofia Medieval? Pode-se dizer que começa e termina
com a Idade Média; depois, tomam-se fatos extrínsecos à
Filosofia a fim de delimitá-la[26]. Por exemplo: começa com a
queda de Roma, em 476 e acaba com a queda de Constantinopla, em
1453. Inúmeras outras datas podem ser propostas, tanto para o
início como para o fim do período. Assim, por exemplo, a morte de
Marco Aurélio, em 180, ou o saque de Roma por Alarico, em
410; a descoberta da América em 1492, ou a Reforma de
Lutero, com a fixação das teses, em 1517, e assim por diante.
Aí surge logo uma objeção: que tem que ver a Filosofia com a queda
de Roma ou de Constantinopla? O que estes fatos tiveram de
importante para o pensamento? A resposta, dizendo que não se pode
pensar a história da Filosofia fora de seu contexto histórico – com
o que todos concordam -, não convence de todo, ainda mais se a
cisão entre períodos for acentuada, pois ninguém, de fato, foi
deitar na Antigüidade e, na manhã seguinte, acordou na Idade
Média.
A alternativa de se colocar um “fato filosófico” – na qual eu mesmo
acreditei[27], aceitando a argumentação de J. Pieper[28]
- também não leva a nada. De fato, dizer, por exemplo, que o
projeto boeciano de tradução dos clássicos gregos, de um lado, e a
obra de Nicolau de Cusa, de outro, são as datas limites da
Filosofia Medieval, acaba caindo nas mesmas aporias da fixação de
uma data histórica extra-filosófica.
A proposta de se considerar um longo período como ocaso de uma época
e prenúncio de outra, tal como apresentada por J. Huizinga em texto
célebre[29] mostra-se falha. De modo semelhante, H.
Blumenberg, em obra que marcou época[30], tomando os tempos
modernos como caracterizados pela subjetividade, viu a passagem para
esta no período que medeia entre Nicolau de Cusa e Giordano Bruno;
entretanto, J. Goldstein, em livo recente[31], mostra que já
se encontra em Ockham o que Blumenberg considera como característica
da modernidade.
Menos consistente ainda é a definição que toma as expressões
“Filosofia Medieval”e “Filosofia Cristã” como sinônimos, o
que excluiria o pensamento árabe e judeu e, em contra-partida,
deveria incluir no período nomes como os de Malebranche, Leibniz e
Blondel[32].
Há, porém, um outro problema a ser considerado. Quando falamos em
Filosofia Medieval e em Idade Média, estamos, na realidade,
absolutizando o modo ocidental-cristão de ler a História, de
delimitar a Filosofia. Erigimos nosso tempo em “tempo
universal”[33] e com isso perdemos algo de importante: a noção
de pluralidade dos tempos. Assim, por exemplo, quando os árabes
expandiram-se para o Oriente, no século VII, encontraram não
só cristãos gregos, expulsos do império bizantino, que mantinham
suas escolas filosóficas; encontraram também filósofos pagãos,
remanescentes da Academia de Atenas. Ora, a definição ocidental
de Filosofia Medieval não cabe nem àqueles árabes, nem aos
cristãos orientais, e menos ainda àqueles filósofos gregos pagãos.
Sem dúvida, é possível escrever uma História da Filosofia, ou
uma História geral, do ponto de vista ocidental-cristão – e muitos
assim o fizeram -, como é possível escrevê-la do ponto de vista
árabe. Isto quer dizer que há tempos diversos,
interpenetrando-se, correndo paralelos, mas também fazendo com que
aqueles que os vivem interpretem a história, a cultura, o mundo, de
modo diferente. A chegada do ano 2.000, para citar apenas um
caso, será motivo de grandes festividades no Ocidente. Mas que
significa a véspera do terceiro milênio para os judeus, que estão
comemorando o ano 5.760 de seu calendário? Ou para os
muçulmanos, que celebram o ano 1.420 da Hégira?
Se, para o historiador A. De Libera, há uma leitura colonialista
da História quando se transpõe o tempo de uma civilização para
outras civilizações, para o filósofo E. Bloch há um engano que
pode trazer sérias conseqüências, quando julgamos que dentro da
mesma civilização, e até mesmo dentro da mesma classe, os tempos
corram simultâneos. Ao refletir sobre sua época, procurando a causa
do fracasso da revolução comunista na Alemanha, após 1918, e a
da ascensão fulminante do nazismo, E. Bloch cunhou o termo
Ungleichzeitigkeit der Zeiten (a não-simultaneidade dos
tempos)[34]. Através de tal conceito, julgou poder compreender
e explicar, em parte, a Alemanha e a Berlim da República de
Weimar: Num mesmo país, numa mesma sociedade, observou ele,
coexistem não só classes diferentes - o que todos concedem -, mas
também, dentro da mesma classe, há indivíduos vivendo cada um seu
tempo específico, vivendo a história dentro dos ritmos básicos de
sua classe, mas também dentro dos tempos latentes, que geralmente
sequer são pesquisados. Por isso, o apelo dos movimentos sociais foi
ouvido por cada indivíduo segundo o tempo histórico em que se
situava, e não necessariamente no sentido em que foi formulado pelas
lideranças. Então, para pessoas presas a tempos míticos, o apelo
revolucionário serviu para colocar em ação os sonhos tribais, os
mitos do sangue, da raça e da pátria, não os ideais de humanidade.
Ora, se podemos dizer que existe uma não-si-multaneidade dos tempos
dentro de um mesmo país, o que não deveremos dizer então quando o
estudo se volta a comparar países, culturas ou civilizações
diferentes? O fato de todos estarem vivendo simultaneamente no mundo
não significa que seus tempos também são simultâneos.
Retornando ao tema da delimitação do conceito de Filosofia
Medieval, vê-se, pois, que aquilo que costumeiramente chamamos de
Idade Média é, na realidade, um conceito carente de precisão
científica. Não existe o ‘tipicamente medieval’, não existe
forma de delimitar Idade Média e Filosofia Medieval que não caia
em aporia. Daí a sugestão do Prof. L. M. de Rijk, de que se
tome “Filosofia Medieval” como uma delimitação referente
simplesmente à divisão do trabalho acadêmico, dizendo-se então que
ela estuda a Filosofia que se produziu no período que vai, por
exemplo, do ano 500 ao ano 1.500[35].
Porto Alegre, 25 de outubro de 1999.
Luis Alberto De Boni
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