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Num primeiro momento, Lúlio não alimentava nenhum projeto a
respeito da cruzada. Sua primeira obra sobre o tema, o Tractatus de
modo convertendi infideles, fora escrito pouco depois de 1291,
após a queda de São João de Acre sob o poder dos egípcios[5].
A conquista de São João de Acre foi uma hecatombe para o
Ocidente. Nos anos seguintes, caíram os últimos baluartes do reino
de Jerusalém: Tiro, Sidão, Tortosa, Beirute e os mosteiros de
Monte Carmelo e Haifa. Somente a pequena ilha fortificada de Ruad
permaneceu nas mãos dos Templários.
Depois desses acontecimentos de graves conseqüências para a
cristandade, Lúlio dedicou o Tractatus ao Papa Nicolau IV,
então empenhado na convocação da cruzada, dando-lhe a conhecer os
seus planos estratégicos. Todavia, assim como no Liber de fine
(1305), no Liber acquisitione Terrae Sanctae (1309) e em
outros pedidos dirigidos aos papas posteriores — Celestino V,
Bonifácio VIII e ao próprio Concílio de Vienne —, nessa obra
Lúlio encara as cruzadas apenas como um meio para atingir o principal
objetivo que guiava a sua frenética atividade: a conversão dos
infiéis. Admitia o domínio pela força apenas como meio de
possibilitar o diálogo. Somente o diálogo seria capaz de levar à
conversão. Lúlio sempre defendeu a capacidade da razão humana de
destruir os erros e de alcançar a verdade da fé cristã.
Lúlio defendia o bloqueio marítimo do Egito e a conquista de
Granada, ao sul da Espanha. Sem dúvida, eram estas e outras
idéias estratégicas semelhantes que interessava a Felipe IV, e
não as suas teorias sobre a conversão dos infiéis. O rei francês,
de personalidade enigmática, esperava poder utilizar o papado —
transferido após o acontecimento de Agnani (1302) para a
França — como um instrumento político. No começo do século
XIV, a coroa francesa já era a mais forte da cristandade e, com a
eleição de Clemente V para o papado em 1305, a política
francesa tornou-se ainda mais ousada. Assim, entre 1309 e
1311, o prestígio de Felipe IV alcança o seu ponto mais alto.
Entre 1270 e 1365, embora desejada em toda a Europa, não
houve nenhuma cruzada de importância. Assim, a cruzada era uma das
principais preocupações de quase todos os papas e monarcas da época.
A organização de uma cruzada era um empreendimento de imenso
prestígio. Por ocasião do Concílio de Vienne, em 1311,
tanto o papa Clemente V como Felipe IV já eram totalmente a favor
de uma cruzada geral. O próprio Felipe IV chegou a prometer
durante o Concílio que a empreenderia. Além do mais, a partir de
1299 e até 1308, com freqüência chegavam à França
notícias das vitórias dos tártaros sobre os muçulmanos que então
ocupavam a Síria e a Palestina. Até os khans tártaros chegaram ao
extremo de escrever a Felipe IV propondo-lhe alianças contra os
muçulmanos. Por tudo isso, Lúlio foi aderindo cada vez mais à
política francesa e mudando os seus planos estratégicos sobre a
cruzada.
Já em 1309, no seu Liber acquisitione Terrae Santae,
considerava como primeiro objetivo a conquista de Constantinopla,
antes mesmo da de Granada. Escreve assim o maiorquino: “É
necessário que ambos os impérios, o do Oriente e o do Ocidente, se
unifiquem para a conquista da Terra Santa, de tal modo que a cidade
de Constantinopla se submeta à Igreja romana, como uma filha à sua
mãe, e o cisma grego seja destruído. Destruído pela ciência,
pela inteligência e pela força da espada, tanto do venerável senhor
Carlos (de Valois) como do reverendo mestre do Hospital. Isso
será ainda mais fácil com os bens da Igreja, que dispõe com
sabedoria seus recursos... Com a conquista de Constantinopla, a
conquista da Terra Santa será mais fácil e cômoda, mas sem a
conquista da primeira, a da segunda será mais difícil e
demorada.”[6] Com a conquista de Constantinopla, seria cortado o
provimento de escravos que integram os exércitos do sultão egípcio,
e aberto o caminho por terra até a Armênia, a Antióquia e a
Síria. Caso o sultão o contra-atacasse na costa Síria, as
galeras cristãs poderiam hostilizá-lo em Alexandria. Uma vez
tomada a Síria, o Egito cairia facilmente nas mãos dos
cristãos.[7]
No Liber, Lúlio refere-se ao príncipe Carlos de Valois, irmão
menor de Felipe IV, que apoiava as aspirações deste último sobre
o império latino de Constantinopla. Além disso, Carlos tinha
feito diversas alianças com príncipes gregos, com o duque latino de
Atenas e com o rei da Armênia. Pactuou também, em 1308, com
o rei da Sérvia e contava com o apoio de Nápoles e, sobretudo, de
Veneza.
Como foi dito mais acima, eram os planos estratégicos de Lúlio o
que empolgava o rei francês. Mas também é verdade que Lúlio sabia
que, sem a cooperação dos príncipes cristãos, nenhuma cruzada
seria possível. Por este motivo, e dado o fortalecimento da
política francesa, será em Felipe IV que irá depositar cada vez
mais as suas esperanças. Mesmo assim, Lúlio nunca descartou o
apoio da confederação catalano-aragonesa, o único poder capaz de
ameaçar seriamente a França. Lúlio tinha boas e antigas relações
com os reis da Catalunha e de Aragão e podia dirigir-se a eles em
catalão.[8]
Portanto, esta aproximação de Lúlio a Felipe não surpreende nem
um pouco. Mas mesmo do ponto de vista do mais elementar senso comum,
conforme observa Hillgarth, Lúlio também tinha de pedir ajuda ao
rei francês. O que realmente pode causar admiração ao leitor menos
avisado, é o extremo realismo que o filósofo maiorquino revela nesse
afaire. O historiador canadense demonstra a falta de fundamento da
fama de utópico com que às vezes se tem censurado o nosso autor.
Além do realismo dos planos estratégicos, os projetos de Lúlio
sobre a cruzada eram bem mais exeqüíveis do que os de P. Dubois, o
mais famoso advogado e propagandista da França daquele tempo.
Hillgarth explica que Dubois nunca morou fora da França, enquanto
Lúlio, em virtude de suas contínuas viagens, chegou a possuir um
bom conhecimento não só das possibilidades de uma cruzada na
península ibérica, mas também da situação no Oriente Próximo,
sobretudo depois da viagem ao Chipre e à Armênia em 1301-2.
Além disso, Lúlio mostrou-se extremamente prático na escolha dos
monarcas. Sem conceder fidelidade exclusiva a nenhum deles,
dirigiu-se em primeiro lugar aos reis da França e de Aragão e,
depois, aos das repúblicas marítimas de Veneza, de Pisa e de
Gênova e, certa vez, ao rei de Chipre. Nunca pediu patrocínio a
um rei romano, reconhecendo assim implicitamente a desintegração do
Império.
Admirável também é a flexibilidade com que o maiorquino soube
adaptar-se às sucessivas mudanças dos acontecimentos. Como vimos,
o desejo de uma cruzada contra Granada passou a interessar-lhe bem
menos assim que soube dos planos imperialistas do rei francês. Mas
nessa mudança também influiu o fato de que, em 1311, Jaime
II, de Aragão, ainda interessado na cruzada contra Granada,
quase desistiu da cruzada geral.
Sem dúvida alguma, deve-se atribuir o realismo do mestre maiorquino
ao seu modo prático de compreender a realidade. Como veremos, a
Arte teve grande influência na criação dos hábitos mentais que
guiavam as suas atitudes práticas.
Com relação à unificação das ordens militares, observa-se um
comportamento similar por parte do criador da Arte. Depois da queda
de São João de Acre, as crônicas da época e até algumas cartas
do papa Nicolau IV davam a entender que esse desastre se devia à
inimizade entre as ordens militares. “Muitos eram da opinião que,
se tivesse havido um bom entendimento entre os irmãos das casas do
Hospital, do Templo e os Teutônicos, e entre toda a gente, a
cidade não teria sido tomada. Por isso, o papa Nicolau IV
convocou diversos concílios provinciais a fim de deliberarem de que
modo se poderia ajudar aquela terra. Num concílio realizado em
Salzburg, elaborou-se uma mensagem endereçada ao papa sugerindo-lhe
que decretasse a unificação daquelas três ordens numa só, e o rei
dos romanos fosse chamado em socorro da Terra Santa.”[9]
A partir de então, essa idéia começa a aparecer nos escritos da
época e, como é natural, também nos de Lúlio. No seu Liber de
fine (1305), ele nos fala de um bellator rex, o rei que
governaria a nova ordem militar. É possível que Lúlio estivesse
pensando em Jaime II, de Aragão, pois, naquele encontro que teve
nesse mesmo ano com o papa Clemente e o rei Jaime, Lúlio pôde
presenciar como o rei oferecia incondicionalmente ao papa “a sua
pessoa, as suas terras e o seu tesouro”, para a organização de uma
cruzada contra os muçulmanos[10]. Com efeito, Lúlio ofereceu o
Liber a Jaime II e, depois, convenceu o rei a que o entregasse ao
papa.
Contudo, a verdadeira disposição do rei, bem como a sua oposição
à dissolução da ordem dos Templários, ficariam mais claras
posteriormente. Mesmo depois de o concílio de Vienne tê-la
suprimido e ter destinado os seus bens à ordem do Hospital, Jaime
II opôs-se obstinadamente a essa transferência. Por outro lado,
nessa época Felipe IV sonhava em renunciar ao seu reino a fim de
dirigir uma ordem militar e tornar-se rei de Jerusalém.[11]
Naturalmente, os Templários sempre se opuseram à sua dissolução.
Este conjunto de forças teve como resultado uma luta feroz do rei
francês contra a ordem. Essa luta, alimentada ainda pela
contrapropaganda organizada pelo monarca, culminaria no surpreendente
ataque armado de 13 de outubro de 1307, efetuado, é claro, sem
o conhecimento nem o consentimento do papa.
Contudo, Lúlio não interveio diretamente nem na perseguição nem
na supressão dos Templários e, embora desejasse a unificação das
ordens — fato que sem dúvida contribuiu para distanciá-lo de Jaime
II, de Aragão —, soube manter-se o mais tempo possível à
margem das controvérsias. Além disso, quando ouviu falar pela
primeira vez da detenção dos templários, encontrava-se em Pisa,
aonde se recuperava de um naufrágio que sofreu após ter sido expulso
de território muçulmano. Portanto, demorou a tomar conhecimento dos
acontecimentos.
Todavia, a propaganda urdida pelo rei francês contra a ordem ia
surtindo efeito e até os cronistas estrangeiros da época, com raras
exceções, convenceram-se de que as acusações propaladas contra os
templários eram verdadeiras. Lúlio acabou acreditando sinceramente
nos crimes da ordem[12] e, no Liber de acquisitione Terrae
Sanctae (1309), devido a uma “orribilis revelatio” a causa da
qual “periclitatur navicula sancti Petri”, acabou aceitando a sua
destruição. Até hoje, ninguém investigou a fundo essa “horrível
revelação” que teria posto a Igreja em perigo.
Lúlio jamais abandonou o ideal de converter os infiéis. No fim de
sua vida, concentrou-se ainda mais nos mesmos temas que caracterizaram
os seus primeiros escritos: o diálogo e a controvérsia. No Liber
de participatione christianorum et saracenorum, escrito em Maiorca em
julho de 1312, já não se refere em nenhum momento à cruzada.
Solicita, isto sim, que o rei cristão de Sicília e o rei
muçulmano da Tunísia organizem a ida de cristãos instruídos e
conhecedores do árabe ao norte da África e de sábios muçulmanos à
Sicília para debaterem o tema da fé. Abrindo certa vez o seu
coração, declara: “Divulgando esse modo de agir por todo o mundo,
talvez possa haver paz entre cristãos e sarracenos, em vez de os
cristãos destruírem os sarracenos e estes os cristãos.”[13]
Inúmeras vezes, Lúlio deu a entender a sua disposição de ir
pessoalmente em missão ao mundo islâmico. Com efeito, contava-se
entre aqueles “cristãos instruídos e conhecedores da língua árabe”
a que se referia no Liber. Apesar do pouco sucesso que teve nas duas
ocasiões anteriores — na Tunísia em 1292 e em Bugia em 1307
—, agora, em 1313, com quase oitenta e dois anos de idade e
após ter lavrado o seu testamento em 26 de abril, em Maiorca,
Lúlio parte para Messina onde ficará um ano e escreverá outros
trinta e oito opúsculos. Em 4 de novembro de 1314, já se
encontrava na Tunísia. Sua última obra escrita nesta cidade, o
Liber de maiori fine intellectus, amoris et honoris, traz a data de
dezembro de 1315. Nela, Lúlio continua discutindo racionalmente
com os muçulmanos acerca da Santíssima Trindade.
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