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“No mercado de Olinda,
que é um mercado pobre,
há mais alegria do que em toda a Suíça!”
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Julián Marías
Entr. a J. Lauand, in Videtur 8, 2000
http://www.hottopos.com/videtur8/entrevista.htm
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Deus brinca. Deus cria, brincando. E o homem deve brincar para
levar uma vida humana, como também é no brincar que encontra a razão
mais profunda do mistério da realidade, que é porque é “brincada”
por Deus. Bastaria enunciar essas teses - como veremos,
fundamentalíssimas na filosofia do principal pensador medieval,
Tomás de Aquino - para reparar imediatamente que entre os diferentes
preconceitos que ainda há contra a Idade Média, um dos mais
injustos é aquele que a concebe como uma época que teria ignorado (ou
mesmo combatido...) - o riso e o brincar.
Naturalmente, não se trata só de Tomás de Aquino; a verdade é
que o “homem da época” [2] é muito sensível ao lúdico, convive
com o riso, e cultiva a piada e o brincar [3] . Tomás, por sua
vez, situa o lúdico nos próprios fundamentos da realidade e no ato
criador da Sabedoria divina.
Assim, diante do panegírico do brincar feito por Tomás - e diante
da prática do lúdico em toda a educação medieval - torna-se
difícil compreender como um erudito do porte de Umberto Eco [4]
possa ter querido situar no centro da trama de seu O Nome da Rosa
[5] , o impedimento “medieval” da leitura de um tratado de
Aristóteles sobre o riso (e no romance S. Tomás é citado como
autoridade respeitada não só pelo abade - p. 48 -, mas também
pelo fanático bibliotecário Jorge - p. 158 - , para quem o
riso é o pior dos males e está disposto a matar para obstruir o acesso
a um livro de Aristóteles sobre o tema - pp. 529 e ss.) [6]
. É difícil compreender o empenho de proibir essa leitura de
Aristóteles, quando o próprio Aquinate - já solenemente
canonizado antes de 1327, ano em que se dá a ação do romance -
vai muito mais longe do que o Estagirita [7] no elogio do
lúdico...
Antes de entrarmos em diálogo com a filosofia da educação de
Tomás, apresentemos alguns significativos exemplos [8] do lúdico
na Pedagogia Medieval: educadores e educadoras; monges e reis; os
eruditos e o povo; na educação formal e informal, freqüentemente o
lúdico está informando a prática educativa. Tal fato, afinal - ao
contrário do preconceito que nos é imposto -, não é de estranhar:
a própria decadência cultural, que marca, desde o início, a Idade
Média encurta as distâncias - tão acentuadas em outras épocas
(sobretudo no Renascimento) -, entre as culturas chamadas erudita e
popular.
Assim, um primeiro fator que nos ajuda na compreensão dessa
valorização medieval da cultura popular (e do lúdico...) está
na própria situação em que surge a Idade Média: com a queda do
Império Romano no Ocidente e a instalação dos reinos bárbaros, a
cultura erudita sofreu um sério abalo. E é em função da
valorização exclusiva da cultura erudita que são cunhadas as
próprias expressões “Idade Média” e “Renascimento”,
carregadas de valores e fruto da narcisista historiografia renascentista
[9] . Em ambos os casos manifesta-se a auto-apreciação de uma
época que pretende fazer “renascer” (ou, em alguns casos, imitar
servilmente...) a erudição clássica depois de uma época
"média" de mil anos. De fato, a Idade Média não tem, nem de
longe, a erudição clássica; mas valoriza e fomenta a cultura
popular. E é a partir do Renascimento, como faz notar Regine
Pernoud, que encontramos até mesmo proibições legais da cultura
popular: como as sentenças de 1542 do Parlamento, proibindo o
teatro popular - de tradição medieval - precisamente por ser popular
[10] .
A primeira característica essencial da Idade Média é - para tomar
as clássicas expressões de Hegel [11] - diese Entzweiung, dies
Gedoppelte, a dualidade bárbaro-romana. O bárbaro - ainda ontem
não só analfabeto, mas ágrafo - instala-se hoje, triunfante, no
espaço do extinto Império Romano no Ocidente...
É nessa situação - aparentemente desesperadora - que um dos mais
geniais educadores de todos os tempos, Boécio, o “último romano e
primeiro escolástico” (na consagrada fórmula de Martin
Grabmann), cria seu projeto pedagógico - o único cabível para a
Primeira Idade Média - que consiste em manter acesa uma pequena
chama-piloto, apresentando aos novos povos traduções de precários
resumos da ciência e da cultura clássicas. Esse projeto pode-se
sintetizar na sentença do começo do livro II do Ars Geometrica:
“Quamvis succincte tamen sunt dicta”, embora resumida e
precariamente, aí estão traduzidos os fundamentos da cultura
antiga... [12] .
Outros educadores (Cassiodoro, Beda, Isidoro, Alcuíno...)
seguiram o paradigma boeciano - succincte tamen... - e, bem ou
mal, a cultura antiga foi de algum modo preservada, até haver
condições, no século XII, de um “renascimento” [13] .
Outro aspecto pouco lembrado e que guarda relação com o lúdico é o
fato - específico da época - de a Idade Média ser, em diversos
sentidos, jovem. A juventude e a velhice não se predicam só das
pessoas singulares, mas também das épocas e regiões. Pieper faz
notar [14] que a média de idade dos grandes autores da época -
passe o trocadilho, estamos falando de lúdico - “a idade média na
Idade Média”, está entre 20 e 30 anos: "Nada mais inexato
do que imaginar monges de barba branca, afastados do mundo em sua
cela, caligrafando sutis tratados em pergaminhos" (op. cit.
p.71).
É também por esse caráter jovem dos novos povos que a Idade Média
cultiva o lúdico. Embora referindo-se ao lúdico em sentido muito
mais amplo de que o nosso brincar, cabe aqui a conclusão de Huizinga
em seu clássico Homo Ludens: “À medida que uma civilização vai
se tornando mais complexa e vai se ampliando e revestindo-se de formas
mais variadas e que as técnicas de produção e a própria vida social
vão se organizando de maneira mais perfeita, o velho solo cultural vai
sendo gradualmente coberto por uma nova camada de idéias, sistemas de
pensamento e conhecimento; doutrinas, regras e regulamentos; normas
morais e convenções que perderam já toda e qualquer relação direta
com o [lúdico] jogo [Spiel]” [15]
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