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Por ser espiritual, o ser do homem só poderá aperfeiçoar-se
mediante atos que intensifiquem e condensem cada vez mais a atualidade
do seu próprio ser. Em outras palavras, mediante atos livres de
conhecimento e de amor que elevem o nível de sua bondade.
E aqui radica o característico da realista moral tomista. Saber se
convém ou não realizar um ato, não é uma questão de pura
inteligência, mas dependerá da disposição de toda a pessoa humana
com relação a seu fim objetivo. Tomás de Aquino não se cansa de
repetir que só ao homem bom as ações boas parecem-lhe tais. Ao
homem habituado ao mal, porém, a conduta boa parece-lhe má e a
conduta má parece-lhe boa. E para conseguir essa boa disposição
com relação aos fins da vida, são necessárias as virtudes ou
hábitos bons, autêntico patrimônio espiritual da pessoa, que
retificam tanto as potências espirituais quanto as afetivas.
Dado o domínio que a vontade tem sobre o juízo da inteligência
prática, os juízos sobre as condutas concretas serão adequados
somente se a vontade estiver retificada e orientada para o bem. Como
as ações concretas são únicas e irrepetíveis -contingentes-, a
inteligência não terminaria nunca sua deliberação ao tentar
conhecê-las. Somente sob a pressão da vontade -que quer uma
determinada conduta -, a inteligência formulará seu último juízo
prático, apresentando como bom o que a vontade deseja.
Ora, para se conseguir essa retificação da vontade para o bem
torna-se necessário possuir uma sensibilidade também bem disposta.
Educar a sensibilidade, embora possa custar um grande esforço, é
sempre possível[40], pois os sentimentos humanos, na medida em que
são atos de uma sensibilidade humana -isto é, penetrada de razão
-, serão sempre atos voluntários ou atos procedentes de hábitos
voluntários.
Será por intermédio das imagens e fantasias, resultado dos hábitos
e dos costumes, que a sensibilidade influirá sobre o juízo prático
da inteligência, arrastando também a vontade. O mecanismo é
fartamente conhecido. As coisas e os comportamentos conhecem-se nas
idéias que o entendimento forma deles, idéias que surgem das imagens
que por sua vez vêm sempre envolvidas num caldo emocional. Quando se
trata de conhecimentos sobre o ser das coisas -saber, por exemplo,
quanto perfazem dois mais dois-, a inteligência dificilmente erra,
porque o resultado dessa soma, além de seguir uma regra geral com
validade universal, não interfere nos interesses atuais, aqui e
agora, da pessoa que calcula. Mas quando se trata do dever ser, de
algo a ser feito, de uma conduta, o juízo que a inteligência deve
proferir é um juízo prático, para o aqui e o agora, que sempre
interfere nos interesses atuais. A inteligência acabará omitindo
qualquer outro pensamento a respeito do dever, e julgará bom o que a
vontade lhe apresentar como tal[41], embora objetivamente não o seja.
Freqüentemente, é o impacto emocional que impulsa o surgimento do
conteúdo conceitual[42].
Portanto, para realizar o bem conveniente à própria pessoa,
exige-se a unificação da mesma; somente assim haverá condições
vitais para compreender o bem a ser feito, e vontade e paixão em
fazê-lo. Só essa unificação possibilitará a unificação da
moral objetiva com a subjetiva[43], fazendo que o que pareça bom ao
homem bom, seja objetivamente bom.
Uma moral como a tomista, fundamentada no ato de ser, permite
compreender como é que se alcança essa unificação. Nela, o
fundamento metafísico do dever é o próprio esse e não, como nas
morais tocadas de essencialismo, Deus-legislador[44].
Sempre que o pensamento ocidental abandonou a ótica do ser,
perdeu-se a unidade do ente e fragmentou-se o homem e o seu operar.
Como a origem do ser se encontra na livre criação divina, uma vez
perdida a perspectiva do ser, perde-se também a sua origem e
busca-se, tanto o devir como o aperfeiçoamento do ente na causalidade
extrínseca, isto é, fora do ser.
O pensamento formalista moderno tende a buscar a estabilidade do ente
- aquela estabilidade necessária que as coisas devem ter para poderem
ser objeto de conhecimento- no domínio da essência. Naturalmente,
também a encontra, porque as essências são postas pelo esse
concreto, mas não é lá onde deve buscar-se a verdade do ente
-aquela parte de verdade transcendental das coisas que é acessível ao
homem- e sim no ato de ser do ente. O que o homem, no conceito,
capta da verdade das coisas é só uma parte da verdade total, que
permanece oculta no secreto de Deus. Mas o formalismo,
indevidamente, confere a essa verdade parcial uma necessidade total e
substitui a própria coisa por ela. O pensamento torna-se assim
caminho do ser[45].
Na medida em que a pessoa humana ainda não se "tornou o que ele
é", como dizia Píndaro, existe a possibilidade de, desde a sua
concreta fragmentação, perder-se nesse caminho para o ser através
do pensamento e acabar confundindo "aquilo que se deve ser" com
"aquilo que se quer ou se sente".
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