OS PROBLEMAS ENFRENTADOS POR LÚLIO EM PARIS: A CRUZADA E A LUTA CONTRA O AVERROÍSMO

Esteve Jaulent


A CRUZADA E A LUTA CONTRA O AVERROÍSMO

As duas obras que o leitor tem nas mãos, o Liber natalis pueri parvuli Chrisi Iesu e o Liber lamentationis Philosophiae, foram escritas por Lúlio durante a sua última estada em Paris — do outono de 1309 até o fim de setembro de 1311. Além dessas duas, escreveu outras vinte e oito obras de diferentes dimensões. Se sempre fora um autor prolífero, nessa época o filósofo maiorquino se encontrava num dos melhores períodos da sua vida.

Lúlio já tinha estado na capital da intelectualidade européia em três ocasiões: a primeira, entre 1287 e 1289. Como observa o historiador canadense Hillgarth[1], essa foi a sua primeira aparição no cenário político europeu. Isso porque, desde a sua conversão vinte anos antes, a atividade de Lúlio limitara-se ao Reino de Maiorca, ou seja, a ilha de Maiorca e as cidades continentais de Montpelier e Perpignan.

A segunda estada teve lugar dez anos depois, em 1297, estendendo-se até 1299. Houve também uma curta passagem por Paris, considerada duvidosa por alguns historiadores, em 1306.

Sua última estadia em Paris terminou em 1311. Lúlio dirigiu-se a Vienne do Delfinado a fim de participar do Concílio Ecumênico que generosamente[2] aprovaria algumas de suas pedidos. Nunca mais voltou à capital da França.

Mas o que teria levado o nosso autor a Paris? Quais eram as preocupações e os projetos que ocupavam a sua mente ao longo desses quase vinte e cinco anos em que, em quatro ocasiões distintas, viveu no Reino da França? Sem dúvida, Lúlio continuava interessado em conseguir de reis e Papas a fundação de escolas de idiomas. Nelas, o árabe e outras línguas orientais seriam ensinadas a futuros missionários leigos que, com a ajuda de sua Arte, deveriam convencer mestres e doutores das outras religiões.

Preocupava-lhe também a organização da cruzada para a reconquista dos lugares santos que tinham sido dominados pelos muçulmanos. A unificação das Ordens militares — a dos Templários, a dos Teutônicos e a Ordem do Hospital —, que facilitaria essa cruzada, era também outro desejo de Lúlio.

Por outro lado, não se pode esquecer o problema do averroísmo que, sobretudo no tempo da sua última estada na capital francesa, começava a dominar a Universidade de Paris.

Finalmente, sua obsessão permanente: voltar a apresentar aos mestres parisienses a sua Arte, o novo sistema lógico, recebido numa inspiração divina, que permite a quem está pensando manter-se em permanente contato com a realidade. Na sua opinião, a Arte era o único método capaz de retificar os novos rumos tomados pela reflexão filosófica.

Lúlio tinha abandonado definitivamente a vida frívola e mundana em 1263, aos trinta anos de idade, quando já era homem casado e com dois filhos. Naquela ocasião, formulou três importantes propósitos: devotar a sua vida à conversão dos infiéis, sofrer o martírio pelo amor de Cristo e escrever o melhor livro do mundo contra os erros das outras religiões.

Como se vê, esses três propósitos constituem as linhas de ação de uma só determinação: o abandono definitivo do mundo para consagrar-se exclusivamente ao serviço do Senhor. Assim o resume o autor da Vida coetânea: "a sua consciência dizia-lhe que aquelas aparições não pretendiam outra coisa a não ser que abandonasse de imediato o mundo a fim de dedicar-se integralmente ao serviço do Senhor Jesus Cristo"[3]. Esses propósitos, que o acompanhariam a vida toda, também estavam presentes nos seus tempos de Paris.

Contudo, motivos mais circunstanciais também pesaram nestas viagens. Em 1285, Jaime II (1243-1311), rei de Maiorca e amigo de Lúlio, como resultado de uma aliança com Felipe IV, o Belo, contra o próprio irmão Pedro III, de Catalunha e Aragão, perdeu o domínio das ilhas Baleares. É possível que Lúlio, sempre à procura de um protetor poderoso que o pudesse ajudar na consecução de seus objetivos, preferisse Felipe IV, da França, a Alfonso III, que foi rei de Aragão de 1285, ano da morte do seu pai, Pedro III, até 1291. Alfonso III era inimigo político do seu irmão, rei de Sicília desde 1285, também chamado Jaime II, o grande protetor de Lúlio, que devolveu o reinado de Maiorca ao seu tio Jaime II em 1295.

Porém, o certo é que Lúlio se viu forçado a abandonar a sua ilha e a viver viajando pelo continente, sobretudo a Montpelier, no sul da França, cidade onde Jaime II fixara sua corte. Nas suas idas a Paris, Lúlio procurou cativar o interesse da corte francesa para seus projetos práticos, em primeiro lugar o da fundação das escolas de línguas orientais. De fato, Felipe IV recebeu-o em cada uma das suas três visitas principais, além de se terem encontrado em outras ocasiões, por exemplo em 1305, em Lião, quando ambos assistiram à coroação do Papa Clemente V, e em Poitiers três anos depois.[4]