V. RAMÓN LLULL (1235 - 1315) E O MODELO CAVALEIRESCO IBÉRICO INSERIDO NA MENTALIDADE CRUZADÍSTICA


V. RAMÓN LLULL (1235 - 1315) E O MODELO CAVALEIRESCO IBÉRICO INSERIDO NA MENTALIDADE CRUZADÍSTICA

O pensamento e a obra de Ramón Llull nos permitem analisar a visão cristã da cavalaria peninsular diretamente envolvida no contato direto com o "outro": o muçulmano. Ao inserir-se numa proposta missionária de conversão - e portanto muito mais próximo do "inimigo" - Llull trouxe importantes contribuições à visão cristã da cavalaria. Sua obra Libro del Orden de Caballería foi fruto desse envolvimento. Embora contra as cruzadas desde o começo - era considerado um pacifista[1] - Ramón Llull no fim de sua vida aceitou a luta armada contra o infiel como uma forma de impor o diálogo.

Ramón Llull nasceu entre os anos 1232 e 1235, em Maiorca. De família nobre, foi pajem e cavaleiro de Jaime I, o Conquistador[2], e senescal e mordomo de seu filho, o infante D. Jaime de Maiorca[3]. Casou-se antes de 1257 com Blanca Picany, tendo dois filhos, Domingos e Madalena[4]. Ao contrário do que se costuma pensar, não existe nenhuma prova documental que Llull tenha aderido a qualquer ordem religiosa. Na verdade, Llull foi um pensador leigo. Contudo, a iconografia posterior o franciscanizou[5].

A forte presença moura e judia em Maiorca contribuiu para o sentido missionário de sua obra. Em 1265, aos trinta anos, quatro aparições de Jesus crucificado levaram-no a dedicar-se à conversão de todos os infiéis. Até então, sua vida era voltada para a corte, as poesias trovadorescas e a vida mundana: "Apesar da ajuda que recebi dos anjos e das pregações dos religiosos (...) cheguei a ser o pior dos homens e o maior pecador desta cidade e de todas as redondezas." [6]

Ramón Llull nasceu quando Maiorca estava sendo conquistada aos mouros por Jaime I. A presença da Ordem do Hospital em Maiorca - auxiliou a campanha de Reconquista cristã, recebendo como prêmio a repartição da ilha[7]- provavelmente influenciou o espírito de conversão expansionista do pensamento de Llull. Em sua obra Disputatio clerici et Raymundi phantastici, ele nos conta:

"Fui um homem casado, pai de família, numa boa situação de fortuna, lascivo e mundano. A tudo isso renunciei de bom grado, a fim de poder honrar a Deus, servir ao bem público e exaltar nossa santa fé. Aprendi árabe; fui várias vezes pregar entre os sarracenos. Detido, encarcerado e flagelado pela fé, trabalhei cinco anos para comover os chefes da Igreja e os príncipes cristãos em favor do bem público. Agora estou velho, agora estou pobre, mas não mudei de idéia e perseverarei na mesma, se o Senhor me permitir, até a morte." [8]

Seus esforços resultaram na fundação, por Jaime II, de um colégio em Miramar, em 1276, onde os missionários cristãos podiam enfronhar-se nos mistérios da língua árabe. Não se sabe a duração do Colégio de Miramar. Especialistas especulam que a crise espiritual sofrida pelo filósofo em 1293 foi devida ao fechamento do Colégio. De qualquer forma, a partir de então, aos sessenta anos, Llull fez viagens à África e Ásia para pregar (esteve na Berberia, Tartária, Abissínia, Chipre e Rodes - sede internacional da Ordem do Hospital desde 1308).

Pregou ainda na Universidade de Paris e no Concílio de Vienne (no Delphinado, na França) de 1311 - 1312, onde foi decidida a supressão da Ordem do Templo. Morreu em 1315, apedrejado até a morte por muçulmanos em Bougie (norte da África) [9]. Mais tarde, difundiu-se uma lenda que dizia que teria expirado numa barca de mercadores catalães que o haviam pegado em Túnis para reconduzi-lo à terra natal. A lenda também propagou sua imagem como a de um alquimista e mago, o que não se confirma com o estudo de suas obras[10].

Ramón Llull foi um escritor prolífico. Sobreviveram quase trezentas de suas obras; poesia, misticismo, filosofia e teologia[11]. Boa parte de seus escritos do final de sua vida inserem-se dentro da perspectiva da ideologia cruzadística cristã (Liber de fine, 1305 e Liber de acquisitione terrae sanctae, 1309) e suas conexões com o maravilhoso (Libre des meravelles - ca. 1288) [12].

No entanto, a filosofia luliana num todo é realista, não-aristotélica (por esse motivo aproveitada no Renascimento) e progressista - por exemplo, Llull foi um pioneiro na tentativa de organizar um sistema de arbitragem nas discussões internacionais[13]. Em sua época, alguns filósofos (Duns Scott, Guilherme de Ockham e os averroístas) tentavam libertar-se dos estreitos vínculos da metafísica e da teologia. Llull colocou não só a lógica, mas toda sua filosofia novamente a serviço da religião.

Declarando-se imaginativo (phantasticus) e iluminado (doctor iluminatus), Llull propagou um método apologético que deveria difundir a conversão dos infiéis[14]. Sua obra mais famosa, Ars Generalis sive Magnis (1308), descreve como estabelecer a verdade essencial[15]. Dessa forma, Llull considerava-se um procurador dos infiéis. Sua arte deveria ser um instrumento argumentativo de conversão para judeus e muçulmanos[16].

Podemos dividir seu pensamento nesta questão em duas fases. Na primeira, que compreende quase toda sua vida, Llull defendia a evangelização dos infiéis através do amor e do diálogo. Uma realização da inteligência a partir dos homens cultos de outras religiões. A partir do século XIV, no fim de sua vida, o fracasso do esforço missionário pacífico levou-o a defender o uso da força[17]. Esta perspectiva se insere no quadro histórico ibérico da época, de expansão e conquista militar cristã, fase final da Reconquista. Logo, possui um espírito de cruzada ibérica (tardio em relação ao resto da Europa), expansão ultramarina (idéia que precede em quase um século as navegações portuguesas) e sentido civilizacional cristão (que permeia toda sua obra).

No tratado Liber de fine (1305), preocupado com possíveis fracassos militares na dispersão das forças cruzadas em várias frentes de batalha, propôs que a cristandade concentrasse seus efetivos na expulsão dos mouros de Granada e num bloqueio econômico e militar ao Egito. No Liber de acquisitione terrae sanctae (1309) retornou à pregação da cruzada, considerando a viabilidade da tomada de Constantinopla simultaneamente a uma operação contra Granada[18].

Em sua estratégia cruzadística, o papel desempenhado pelas ordens militares era fundamental. A grande questão de seu tempo a respeito das ordens foi a supressão do Templo decidida por Clemente V, e o destino dos bens templários espalhados por toda Europa. Llull sugeriu ao papa a fusão das ordens numa só, a exemplo de Pedro Dubois[19]. Na idéia de um controle maior sobre as ordens, também pensou numa espécie de "independência restrita" no mediterråneo leste, área de maior atrito entre templários e hospitalários, principalmente[20].

De qualquer forma, para Ramón Llull o papel dos monges guerreiros era o de protagonista do teatro da guerra cruzada na Península. Os atributos considerados por Llull essenciais para a consecução da cruzada eram a caridade (caritas) e o poder (potestas)[21], ambos intrinsecamente ligados à ideologia cruzadística monástico-militar[22].

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O conteúdo de sua Ars é, basicamente, a exposição deste método argumentativo[23]. O sistema combinatório de que Llull faz uso utiliza um simbolismo visual (esquemas, letras, cores, figuras geométricas), em que foi dado um importante passo a caminho das operações intelectuais baseadas num mecanicismo de fundo matemático[24]. Além disso, Llull inaugurou o catalão literário, fazendo um pioneiro uso do vernáculo romånico para seus escritos[25]. Sua obra teve grande repercussão até meados dos século XVIII, e o lulismo penetrou também em Portugal, juntamente com outras correntes filosóficas, como o averroísmo e o escotismo[26]. Registramos algumas obras de Llull na biblioteca alcobacense, em letra gótica miúda do século XV, além de referências no Leal Conselheiro de D. Duarte[27]. Todavia, não teve o mesmo eco entre os filósofos[28].