BOÉCIO E RAMON LLULL: A RODA DA FORTUNA, PRINCÍPIO E FIM DOS HOMENS

Ricardo da Costa / Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória

Adriana Zierer / Universidade Federal Fluminense, Niterói

La Roue de la Fortune. Calque de Miniatures de l’Hortus Deliciarum  de Herrade de Landsberg. Paris: Bibliothèque Nationale de France (Dept. Estampes Ad 144 a)


BOÉCIO E RAMON LLULL: A RODA DA FORTUNA, PRINCÍPIO E FIM DOS HOMENS

O simbolismo da Roda da Fortuna na arte medieval pode ser explicado através da iluminura do Hortus Deliciarum[1], com seus quatro estágios simbolizados pelos quatro personagens em torno da Roda: regnabo (“eu devo reinar”: figura em cima, do lado esquerdo da Roda, com o braço direito erguido), regno (“eu reino”: figura em cima da roda, freqüentemente coroada, para significar o reinado), reganvi (“eu reinei”: figura que está do lado direito da roda, caindo da  graça), sum sine regno (“eu não tenho reino”: figura na base da roda que perdeu completamente os favores da Fortuna. Esta pessoa é as vezes completamente jogada da roda ou esmagada por esta, sem nenhuma chance de reinar de novo)[2].

Vista pelos antigos como deusa do acaso, a Roda da Fortuna na Idade Média representava tanto a Roda da Vida, que elevava o homem até o alto antes de deixá-lo cair de novo, como a Roda do Acaso, que não parava nunca de rodar e indicava a mudança perpétua que caracteriza a natureza humana[3].

Num mundo inseguro como o da Idade Média, onde os homens viviam em constante perigo, com medo dos vivos e dos mortos, acreditava-se que o destino dos homens, mesmo o dos reis e imperadores, era determinado pela Fortuna. O termo parece ser uma evolução de duas diferentes deusas antigas, provindas da cultura greco-romana, Fors (“a que traz”, relacionada ao conceito de providência) e Fortuna (ligada à fertilidade, à agricultura e às mulheres). Esta última tinha traços similares à Tyche, deusa grega associada ao acaso e à sorte. Em algum momento, a distinção entre Fors e Fortuna diminuiu com a criação de uma única deusa, Fors (Fortuna), herdando as noções de sorte, destino e acaso de suas predecessoras. Existiam pelo menos três templos dedicados à deusa Fors em Roma e um festival lhe era dedicado em 24 de junho[4]. Ela era apresentada freqüentemente segurando uma cornucópia e um timão, sobre uma esfera ou uma roda, e simbolizava seu poder sobre a vida das pessoas que consideravam possuir fortuna se tivessem sorte ou infortúnio[5].

O melhor exemplo desta representação na Idade Média se encontra justamente no período de vida de Ramon Llull (1232-1316)[6], na coleção de canções germânicas profanas denominada Carmina Burana[7], uma estimulante exaltação à natureza em forma de fortes tons primários, que possui uma canção a respeito da Fortuna.

A obra Carmina Burana transmitiu, por tradição, a obra do Arquipoeta (†c.1165), um latino anônimo, provavelmente da Renânia, que foi patrocinado pelo arcebispo de Colônia e chanceler de Frederico Barba-Ruiva, Reinaldo de Dassel. Sua obra mais famosa, Confessio, expressou os paradoxos e o brilho do renascimento cultural do século XII, com sua confiança na razão e na natureza. Nela sobressaem-se vigorosos impactos rítmicos. Em duas canções (CB 16, CB 17) lamenta-se a pouca estabilidade da Fortuna, que com seu sobe-e-desce traz alegrias e desgraças para os homens:

“O FORTUNA” (CB 17)

I

O Fortuna, 
velut luna      
statu variabilis,
semper crescis
aut decrescis;
vita detestabilis
nunc obdurat
et tunc curat
ludo mentis aciem,
egestatem,
potestatem
dissolvit ut glaciem.

II

Sors immanis
et inanis,
rota tu volubilis,
status malus,
vana salus
semper dissolubilis,
obumbrata
et velata
michi quoque niteris;
nunc per ludum
dorsum nudum
fero tui sceleris.

III

Sors salutis
et virtutis
michi nunc contraria,
est affectus
et defectus
semper in angaria.
Hac in hora
sine mora
corde pulsum tangite;
quod per sortem 
sternit fortem,
mecum omnes plangite!

I

Ó Fortuna
tal a Lua,
uma forma variável!
Sempre enchendo
Ou encolhendo:
Ó que vida execrável!
Pouco duras,
Quando curas
De nossa mente as mazelas;
A pobreza,
A riqueza,
Tu derretes ou congelas.

II

Bruta sorte,
És de morte:
Tua roda é volúvel,
Benfazeja,
Malfazeja,
Toda sorte é dissolúvel.
Disfarçada
De boa fada,
Minha ruína sempre queres;
Simulando
Estar brincando,
Minhas costas nuas feres.

III

Gozar saúde,
Mostrar virtude:
Isto escapa a minha sina;
Opulento
Ou pulguento
O azar me arruína.
Chegou a hora,
Convém agora,
O alaúde dedilhar;
A pouca sorte
Do homem forte
Devemos todos lamentar.[8]

Símbolo da mutação, das alternâncias da vida cotidiana, esta imagem percorreu toda a Idade Média, que a recebeu como herança de Boécio[9]. Este paper trata da imagem da Fortuna em Boécio, na obra Consolatio Philosophiae, e de como Ramon Llull utiliza esta metáfora para criticar os novos valores sociais dos burgueses citadinos do século XIII.

*

O tema da Fortuna percorre toda a Consolatio Philosophiae (524) — depois da Bíblia e da Regra de São Bento, a obra mais lida na Idade Média. As circunstâncias da redação da obra explicam o destaque dado ao tema, pois Boécio a escreveu na prisão, após ter caído em desgraça e sido preso por motivos políticos. Na época, a Itália era governada pelo rei godo Teodorico, que era ariano[10], que, num primeiro momento, desejou demonstrar tolerância religiosa com os católicos, nomeando elementos da aristocracia romana, como Boécio, para cargos no governo. Porém, mais tarde, Boécio defendeu publicamente Albino, um senador romano acusado de conspirar com Bizâncio contra o rei godo, e foi tido também por traidor. Desde 522 Mestre de Ofícios de Teodorico, Boécio foi então preso (524) e levado de Ravena para Pavia. Para Teodorico, este era um sinal que a aristocracia romana o estava traindo. Com um sádico requinte de crueldade, Teodorico determinou que os juízes do processo de Boécio fossem os mesmos senadores romanos que haviam sido fiadores em sua defesa de Albino[11].

A Consolatio, genial diálogo em forma socrática, mostra-se ainda mais interessante pelas circunstâncias de sua redação, pois foi escrita entre uma sessão e outra de tortura, quando uma correia de couro era apertada em torno do crânio do filósofo, fazendo saltar os globos oculares das órbitas, fato registrado numa crônica anônima de Ravena — e confirmado pela Historia Secreta de Procópio[12]. No texto de Boécio, o próprio autor também menciona  os efeitos da tortura, como por exemplo uma perda passageira da memória[13]. Graças às visitas de seu sogro Símaco[14], conseguiu fazer chegar o original à posteridade.

Na Consolatio, Boécio conversa com a Filosofia, e lamenta a sua sorte, mostrando-lhe durante boa parte do diálogo, a malévola e enganosa Fortuna[15], que trata cruelmente os homens, sem se importar com as acusações a um inocente[16]. Por causa dela, os homens erram em seus julgamentos, pois, ao invés de analisar os méritos das ações passadas, só vêem os caprichos da Fortuna e acreditam que esse é o desejo natural dos acontecimentos:

Mas gostaria apenas de dizer que o fardo mais pesado com que a Fortuna possa afligir alguém é este: que as olhos do povo estaja sendo justamente castigado quem na verdade é inocente[17].

No entanto, a Filosofia repreende Boécio:

Pensas que a Fortuna mudou a teu respeito? Enganas-te. Ela sempre tem os mesmos procedimentos e o mesmo caráter. E, quanto a ti, ela permanece fiel em sua inconstância. Ela era a mesma quando te lisonjeava, ou quando fazia de ti seu joguete prometendo-te miragens [...] seus jogos são funestos [...] e é precisamente essa faculdade de passar de um extremo ao outro que caracteriza a Fortuna que deve fazer com que a desprezemos, sem temê-la ou desejá-la[18].

A Filosofia então se coloca no papel da Fortuna para que Boécio compreenda melhor sua sorte. Neste momento, o autor se vale da metáfora da Roda para explicar o sentido do movimento da Fortuna:

E quanto a mim, é o desejo sempre insatisfeito dos homens que pretende me obrigar a fazer prova de uma constância incompatível com minha própria natureza! Minha natureza, o jogo interminável que jogo é este: virar a Roda [da Fortuna] incessantemente, ter prazer em fazer descer o que está no alto e erguer o que está embaixo: Sobe se tiveres vontade, mas com uma condição: que não consideres injusto descer, quando assim ditares as regras do jogo. Ignoravas mesmo a minha maneira de agir?[19]

Por esse motivo, a Fortuna propicia aos homens um jogo, um grande espetáculo[20]. Pois esse é o sentido da vida, um teatro, o teatro da vida[21]. Vive-se uma grande peça, onde se desenvolvem tumultuadas e violentas relações pessoais que perpassavam a prática social.

Esta visão de mundo foi igualmente recuperada na Idade Média. Por exemplo, a arte de Brueghel (1525?-1569) retratou a cultura rural medieval e, especialmente, o sentido da teatralidade da existência humana: a vida se desenvolve em diferentes cenários, onde diversos personagens atuam seus múltiplos papéis existenciais[22]. Trata-se de um testemunho que une o real, o fantástico, o cotidiano vivido e o imaginário temido. Um depoimento angustiado, mórbido, dilacerante, pessimista. Um famoso cartaz da época anunciava o teatro do mundo: “Theatrvm orbis terracvm”. Pois todos atuam num cenário e giram como os rádios de uma roda. Sempre foi assim e a roda seguirá girando eternamente[23].

Esse prisma via a vida como um ritual, cheio de significação teológica, mística e carismática. Essa espécie de encenação comandava o real através do imaginário: é o que Georges Balandier chamou de teatrocracia, o conjunto de todas as manifestações da existência social, o tribunal teatral[24]. A Roda da Fortuna apenas ressaltava este tipo específico de farsa que organizava os poderes constitutivos e as ações sociais.

Por esses motivos, a Filosofia de Boécio afirma que os homens não devem procurar nada na Fortuna, pois não há nada nela que mereça ser procurado. Não há nada nela que seja intrinsecamente bom, já que ela beneficia pessoas más e não é capaz de tornar bom aquele que a ela se associa[25].

Em contrapartida, a Filosofia mostra a Boécio que a Fortuna é benéfica aos seres humanos, pois esclarece a eles quando se desmascara e mostra seus métodos de ação. Ela possui, assim, duas faces: uma, sedutora e atraente, caprichosa e flutuante, quando mente com sua aparência de felicidade; outra, comedida e sincera, pois mostra os verdadeiros amigos, distinguindo a franqueza da hipocrisia. Assim, a Fortuna comporta uma parte de bem e uma parte de mal[26]. Uma engana, a outra instrui[27]. Pois a amizade é o tesouro mais sagrado que existe, pois os amigos são dados pela virtude e não pela Fortuna[28].

Apesar do momento adverso pelo qual estava passando, o autor, ao longo da obra, mostrou possuir uma visão positiva acerca do universo: o mundo caminha para o bem e aqueles que estão desprovidos da Fortuna fugaz deste mundo (luxo, riquezas, poder) estão livres se mantiverem-se bons e virtuosos. Desta forma, toda a injustiça sofrida por Boécio é atenuada pelo sentimento de que atingirá o verdadeiro bem (Deus) na eternidade[29]. Boécio também explica porque motivo a Fortuna é inconstante. Como o desejo pela boa fortuna avilta os homens, a Providência Divina envia males, misturados com bens, para que os bons não se corrompam ou para reforçar as virtudes[30]. Aos maus é deixado o livre-arbítrio para escolherem o bem, graças ao poder que muitas vezes possuem em suas mãos (como por exemplo, o rei Teodorico), mas se persistirem no mal serão mais tarde punidos pelo Juiz Supremo, Deus, por toda a eternidade.

Veremos agora como a Fortuna se apresenta na obra do filósofo Ramon Llull e de como se aproxima do pensamento de Boécio.

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Na sua Ars, na hora de fazer aplicações, Ramon Llull define cem formas abstratas, que ele chama generalíssimas. Na forma 61, Ramon trata da fortuna e do afortunado:

A fortuna é acidente, e por isso encontra-se fora da segunda espécie da regra C. E é um hábito, com o qual a pessoa afortunada se dispõe acidentalmente para aquela boa fortuna; como o caminhante que, indo em peregrinação, encontra ouro ao acaso. A própria fortuna é, sem dúvida, pela segunda espécie da regra D; e tem ser no sujeito no qual se encontra, pela quarta espécie da regra C. E é o que é pela terceira espécie da regra D; e encontra-se fora do princípio, do meio e do fim, da concordância e da contrariedade. Não se encontra, contudo, fora da menoridade e maioridade. E neste passo, o entendimento conhece que a fortuna tem pouco de “ser” enquanto a consideramos em si mesma, mas tem muito “ser” enquanto a consideramos em relação ao afortunado[31].

Para Ramon, a fortuna é um acidente, portanto não é substância. Em seu sistema de pensamento, Llull faz dez perguntas para saber de modo completo o que são as coisas. Ele chama estas perguntas de regras. Na segunda regra, chamada de C, pergunta sobre a essência das coisas. Por sua vez, esta questão desdobra-se em quatro espécies. Na segunda espécie, Ramon se pergunta o que a coisa tem em si mesma essencialmente e naturalmente, coisa sem a qual não poderia ser. Aí então encontra-se a fortuna. Como ela é acidental no sujeito, encontra-se então fora da segunda espécie da regra C. A fortuna para Ramon é um hábito, hábito esse com o qual a pessoa afortunada se dispõe acidentalmente para aquela boa fortuna.

O exemplo que Ramon dá é o do peregrino, que em sua caminhada encontra ouro. Então afirma que a fortuna é pela segunda espécie da regra D. Enquanto a regra C pergunta sobre a essência das coisas, a regra D pergunta pela materialidade da coisa. Desdobra-se em três espécies; a segunda espécie pergunta “de que é algo feito ou constituído?”. Por exemplo, o prego é constituído de ferro e o homem de corpo e alma.

De que então é constituída a materialidade da fortuna? Ramon passa por essa questão, relacionando o sujeito à quarta espécie da regra C — que pergunta pelo “que tem uma coisa na outra” (por exemplo, o entendimento, no objeto que contempla, se pode ter pecado).

Por esta quarta espécie da regra C vê-se que a fortuna está no sujeito que tem a sorte de tê-la. Ela está no sujeito sem que ele queira, por isso ele é pessoa afortunada. A terceira espécie da regra D pergunta “de quem é?” a coisa, como por exemplo, “o reino é do rei?”, ou “o acidente é da substância?”. No caso da fortuna, esta não existiria sem a pessoa afortunada, pois, para Ramon, ela não existe em si mesma.

Neste aspecto, Ramon não se vale da fortuna em si; pelo contrário, transfere o centro da atenção para a pessoa afortunada: é nela que o filósofo encontra o principio, meio, fim, a concordância e a contrariedade. Na fortuna, Ramon vê os princípios relativos da maioridade e menoridade. Existiriam então fortunas maiores e menores[32].

Esta explicação de Llull nos parece ligada à noção corrente acerca da Fortuna que provinha da Antigüidade e que Boécio mostra na Consolatio como algo inconstante, fugaz e incontrolável aos humanos.

Num outro exemplo, o filósofo catalão compara a Roda da Fortuna aos grupos sociais da época, especialmente aos usurários, a quem critica. Tal como Boécio, mostra que as glórias deste mundo são fugazes e que o burguês que peca pela avareza e pela cobiça do lucro será mais tarde punido por Deus. Na Doctrina Pueril (1274-1276)[33] — uma das primeiras obras pedagógicas na Idade Média em língua vulgar e um dos primeiros livros escritos para as crianças[34] — Ramon usa a metáfora da Roda da Fortuna para mostrar que os homens se movem em seus diversos ofícios:

Assim como a roda que se move dando voltas, filho, os homens que estão em seus mesteres acima ditos se movem [lavradores, ferreiros, mercadores, sapateiros, etc.]. Logo, aqueles que estão no mais baixo ofício em honramento, desejam subir a cada dia, tanto que estejam no lugar da roda soberana, na qual estão os burgueses. E porque a roda se vai a girar e a inclinar até abaixo, convém que ofício de burguês caia abaixo[35].

Os homens que estão abaixo na Roda aspiram subir até o topo e por isso a Roda se move[36]. Além de mostrar a intensa mobilidade social da sociedade medieval de meados do século XIII, esta é, sem dúvida, uma crítica do autor aos novos valores sociais dos burgueses. Na Idade Média, burguês era o habitante da cidade não-clérigo, não-nobre e não-estrangeiro, que exercia determinadas atividades que lhe garantiam uma relativa independência, estando ligado a duas categorias de citadinos, os maiores e mediocres, de acordo com os textos da época[37].

É importante lembrar que a atividade mercantil era em princípio condenada pela Igreja, que era contrária a toda atividade relacionada ao empréstimo de dinheiro a juros (usura). Exemplos da Bíblia convergiam para esta condenação, como no Levítico: “se o teu irmão achar-se em dificuldade [...] não lhe emprestarás dinheiro a juros, nem lhe darás alimento para receber usura [...]”[38], e o Decreto de Graciano, obra eclesiástica do século XII, afirmava que “O mercador nunca pode agradar a Deus — ou dificilmente”.[39]

Para Ramon os burgueses são avaros. Citadinos, eles valorizam a riqueza e a ambição pessoal em detrimento do senso de justiça e da comunidade medieval. Jeffrey Richards já avaliou a crescente mobilidade social que ocorria no ocidente medieval a partir do século XII:

A avareza, subproduto do retorno a uma economia de dinheiro, se manifestou através de um grande aumento do roubo e da simonia, de uma hostilidade crescente contra os judeus e de uma preocupação tanto dos pregadores quanto dos satiristas com o amor excessivo pelo dinheiro. A ambição foi estimulada pela mobilidade social crescente, mais notadamente pela ascensão de profissionais alfabetizados e especializados em cálculo (advogados, administradores, escreventes). No século XII, ela tornou-se, pela primeira vez, um tema nos sermões dos pregadores[40].

Por esse motivo, o direito só deve existir para Llull porque falta ao homem o amor a Deus, já que todo aquele que ama a Deus ama a justiça[41]. Assim, a justiça luliana visava a proporção, a cada um o que é seu de direito, e através dela o príncipe cumpriria uma das finalidades de seu ofício. Na mundo terrestre, o príncipe seria o responsável pela harmonia da sociedade, devendo cada  indivíduo voltar-se para as virtudes para aproximar a alma do bom caminho a ser trilhado na outra vida.

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Como vimos, para Ramon Llull e Boécio, o que importa é o mérito pessoal do cristão no caminho para a sua salvação e não o apego aos bens materiais, passageiros, inconstantes e pouco duráveis. Daí a importância do exemplo da Roda da Fortuna, que mostra aos homens a fugacidade do tempo terrestre em oposição ao tempo divino. A figura do burguês na Doutrina Pueril está em consonância com o tirano de Boécio: ambos preocupam-se com as falsas glórias da Fortuna (luxo, bens, poder) ao invés de preocuparem-se com as verdadeiras virtudes, os valores espirituais, como, por exemplo a bondade, que aproximam os humanos de Deus, o verdadeiro bem. Embora não saibamos com clareza se Ramon leu a obra de Boécio, a tradição desta perpassou todo o período medieval, e parece-nos que para ambos os autores, todas as falsas glórias do mundo terrestre serão um dia julgadas pelo Juiz Supremo, e os que estavam no alto da Roda, poderão cair ao inferno, ao passo que as almas dos bons viverão na eterna bem-aventurança, ao lado de Deus.