TERCEIRA PARTE

Raimundo Lúlio, além de numerosos capítulos contidos em obras mais gerais e enciclopédicas, escreveu diversos livros dedicados ao ser humano, seus constitutivos, suas potências e sentidos[46], porém sempre tendo em vista o homem existente concreto. A sua moral agrada justamente por isso, pelo sabor e o realismo que reflete.

No proêmio do livro oitavo do Libre de Meravelles, dedicado ao homem, introduz o tema da moral: "Félix andou longamente por uma estrada que não o conduziu a lugar algum que o maravilhasse, até que finalmente encontrou num campo de relva umas ovelhas que estavam sendo mortas e comidas por lobos. Perto daquele prado, na sua cabana, havia um pastor deitado na cama. Não queria levantar-se pois o tempo era ruim; chovia e fazia frio. Perto do local onde o pastor estava um cachorro lutava com um lobo, e o cão latia fortemente a fim de acordar o pastor para que o ajudasse contra aquele lobo e contra o outro que matava as ovelhas

. Maravilhou-se muito Félix com o pastor, tão preguiçoso e vagabundo, que não ajudava o cachorro nem se incomodava pelas ovelhas que o outro lobo devorava (...) 'Admira-me esse cachorro, que não tendo inteligência conhece e cumpre com seu ofício, enquanto tu, pastor, não cumpres com o que te foi mandado.' Tais palavras e muitas outras dirigiu Félix ao pastor, o qual desprezava tudo quanto Félix lhe dizia, e o tinha por louco e o injuriava, até que começou a ameaçá-lo orgulhosamente de tal modo que Félix teve medo de que o matasse."[47]