NO PONTO DE INTERSEÇÃO DOS MUNDOS

Já foi indicado que, para a filosofia da Idade Média, Paris não era o único centro; apenas em nossas exposições é que passou a sê-lo. Maiorca aparece, então, como uma zona periférica. Mas lancemos um olhar sobre o atlas histórico; as Baleares foram, desde 1229, a região preferencial de expansão do Reino de Aragão/Catalunha. O rei Jaime I estava diante da missão de integrar grandes regiões de população islåmica em um estado e em uma civilização, para os quais o cristianismo ainda determinava a forma de vida social e política. O problema da "conversão" não se referia apenas à religiosidade individual, e não se podia tratar os habitantes islåmicos de Maiorca como Carlos Magno "convertera" os saxões. Ao lado do Islã, havia o Judaísmo, imenso nas suas finanças e na sua cultura, sem o qual não se poderia assegurar nem a administração econômica das regiões conquistadas, nem o fornecimento de medicamentos. Uma filosofia da religião instruída na filosofia árabe e no neoplatonismo tornaram os líderes das comunidades judaicas aptos a formarem uma vanguarda econômica, política e cultural (Moses Maimônides; Cabala). Em meio a essa situação, entre 1232 e 1235, nasce LÚLIO. Sendo filho de um companheiro de armas do rei, cresce nos altos escalões; podemos representá-lo como ministro (senescal). As grandes realidades políticas encontravam-se, pois, à sua frente: a filosofia tinha de ser útil para a conversão dos árabes e dos judeus, a fim de promover a paz e a unidade da humanidade.

LÚLIO, que falava com prazer de si mesmo, assim se descrevia ao alcançar idade avançada: "Fui casado, tive filhos, era razoavelmente rico, voluptuoso e mundano. Abdiquei de tudo, de livre e espontånea vontade, para cuidar da glória de Deus e do bem comum (bonum publicum) e promover a fé cristã. Aprendi árabe; mudei-me várias vezes, para pregar aos sarracenos; por causa da fé, fui detido, encarcerado, espancado. Durante 45 anos, empenhei-me por persuadir a igreja e os príncipes cristãos em favor do bem comum (bonum publicum). Agora estou velho, agora sou pobre, mas ainda vivo na mesma intenção."[11]

O bonum publicum foi o Leitmotiv de uma inquieta vida de andarilho entre Maiorca, Paris e Montpellier, entre a África (especialmente Tunísia) e Jerusalém. Uma "conversão" como a de um monge, mas para um caminho individual. Reforma da vida, da filosofia e da ciência em seu todo, com vista às divergências existentes nas bases religiosas da civilização medieval. A Vita coetanea, ditada pelo quase octogenário LÚLIO, informa-nos sobre essas particularidades, embora não se trate de uma autobiografia moderna mas do estilo tradicional de uma história de conversão (conversio).[12]

Trata-se de um valioso documento sobre a atmosfera espiritual, em torno de 1310, sobre a personalidade de LÚLIO e sobre a situação de Maiorca, entre sarracenos e antigas regiões cristãs. Mostra o fim prático-político da filosofia de LÚLIO. Além disso, o próprio LÚLIO acentua que sua Ars teria origem divina e estava destinada a superar a miséria de seu tempo. Ele estiliza os seguintes episódios como especialmente importantes: sua hesitação entre a forma de vida trovadoresca e a vocação cristã; a origem divina da Ars; a baldada tentativa de convencer a cúria; seu medo ante a viagem à Tunísia [13] ; suas ponderações sobre se devia ingressar na Ordem Terceira dos franciscanos ou na dos dominicanos [14] ; sua missão na Tunísia, no alto verão de 1292 [15] . A Vita mostra um LÚLIO mundano, apaixonado que, como os trovadores, escreve poemas de amor, mas que, aos 31 anos, experimenta dramaticamente a contradição entre o estilo de vida palaciano e a ética monástico-cristã, "aterroriza-se" com isso e decide deixar o "mundo", isto é, abandonar poder, casamento e riqueza. Mas o objetivo de LÚLIO não era meramente individual: queria converter os sarracenos, que, "em sua multiplicidade, cercam os cristãos por todos os lados"[16] . Mesmo sem saber como devia concebê-lo, LÚLIO decide escrever "o melhor livro do mundo contra os erros dos infiéis"[17] . Antes de tudo, percebe que tinha primeiro de aprender árabe, mas também aqui não pensou apenas em uma solução individual. Já em sua "conversão" ocorrera-lhe a idéia de que tinha de persuadir Papas e príncipes a instituírem escolas de idiomas, nas quais fossem ensinadas as línguas dos infiéis [18] . Estes seriam, daí em diante, seus três objetivos, que perseguiria nos cinqüenta anos seguintes de sua vida: 1. não temer nem mesmo a morte, a fim de converter os infiéis; 2. escrever um livro que conduzisse os infiéis ao cristianismo; 3. persuadir autoridades eclesiásticas e seculares a fundar escolas de línguas.

Primeiro, LÚLIO lançou-se ao estudo: aprendeu a "gramática"; comprou um sarraceno, para que lhe ensinasse árabe. Queria ir para Paris a fim de estudar, mas Raimundo de PENYAFORT o convenceu de que devia permanecer em Maiorca. Um passo difícil: a pátria intelectual de LÚLIO foi a zona de miscigenação arábico-catalã, não a cultura escolástica parisiense. Apesar de todas as tentativas de aproximação, LÚLIO continuou sendo para a escolástica parisiense um outsider. LÚLIO vinha dedicando-se há nove anos a seus estudos privados - estava, agora, com 40 anos -, quando lhe ocorreu a idéia de sua Ars. A Vita descreve esse processo, ocorrido sobre o monte Randa, como uma iluminação religiosa [19] . Segue-se um intensivo desdobramento da Ars; contínuas viagens para conquistar papas e príncipes para as escolas de idiomas; visitas a Paris, que LÚLIO sinteticamente caracteriza dizendo que lá teria experimentado "a fragilidade do intelecto humano".[20] Por causa disso, simplificou sua Ars.

Resultam, então, as seguintes fases:

Os últimos dos nove anos de estudo privado, antes da descoberta da Ars, portanto cerca de 1272-74. Estudo intensivo da lógica, especialmente a de Al-Gazali. Surge, nessa época, o Libre de contemplació en Déu (catalão); neoplatonismo agostiniano como pano de fundo.

Concepção da Ars e primeiras desilusões em Paris. A Ars tinha, então, 16 princípios; a apresentação matemática era essencial. A partir de mais ou menos 1274, LÚLIO modificaria essa concepção várias vezes.

Por causa das "fraquezas do intelecto humano", LÚLIO simplifica a Ars e reduz o número dos princípios e figuras. A algebrização das relações dos pensamentos fica para trás. Essa terceira fase dura de mais ou menos 1290 até 1308. Obras importantes: Ars inventiva veritatis (1290), Ars brevis e Ars ultima (1308-15). A desilusão com a filosofia universitária expressa-se no Arbre de Filosofia D'Amor. O interesse na própria pessoa e o exercício de crescente resignação evidenciam-se no Cant de Ramon e no Desconhort.

As obras da maturidade, 1308-15, servem, em parte, para influenciar o Concílio de Vienne (1311), no qual LÚLIO obtém um sucesso parcial (aprovação das escolas de idiomas). Em Paris polemiza contra o averroísmo. Este representava, sem dúvida, um poderoso movimento. Seu programa de separar a fé e o saber ia de encontro ao empenho de LÚLIO por sua unificação. Pertencem também aos últimos anos a Vita coetanea e a Disputatio Petri et Raymundi phantastici, que servem à defesa da Ars e à interpretação da obra de sua vida.