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Se no Comentário às Sentenças, Tomás fala do Deus Ludens,
comentando passo a passo Prov. 8, 30-31; no Comentário ao
De hebdomadibus de Boécio ele apresenta uma interpretação mais
sugestiva do mesmo tema, desta vez aplicada ao homem e a propósito de
Eclesiástico 32, 15-16, que é posto precisamente como
epígrafe de seu livro e objeto de todo o “Prólogo”. Tomás
interpretará de modo originalíssimo este “Brinca e realiza as tuas
concepções...” (com aquele sem-cerimonioso modo medieval, a que
já aludimos, de interpretar não literalmente a Bíblia).
Aparentemente este versículo é um conselho moral bíblico a mais
(assim o entende Agostinho no Speculum [52] ); um conselho
secundário, que passou quase inteiramente despercebido aos autores
anteriores (e também aos posteriores...) ao Aquinate [53] .
Um conselho que, como vimos, a Bíblia de Jerusalém, traduz pela
anódina fórmula: “Corre para casa e não vagueies. Lá
diverte-te, faze o que te aprouver, mas não peques falando com
insolência”.
Tomás, porém, vê nesse versículo um convite ao homem a exercer
seu conhecimento, seguindo - a seu modo - os padrões lúdicos de
Deus. Seu Prólogo fundamenta todo um programa pedagógico, que
aponta para o fim por excelência [54] da educação: a
contemplatio (palavra que, como se sabe, traduz a theoria grega).
Acompanhemos Tomás em seu Prólogo [55] , desde a epígrafe:
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"Praecurre prior in domum tuam, et illuc advocare et illic lude, et
age conceptiones tuas"
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“Corre para tua casa, e lá recolhe-te, brinca e ‘age’ tuas
concepções” (Ecclo 32, 15). Tomás começa dizendo que a
aplicação à Sabedoria tem o privilégio da auto-suficiência: ao
contrário das obras exteriores, não depende senão de si mesma: tudo
que o homem necessita para aplicar-se à sabedoria é recolher-se em
si mesmo. Daí que o Sábio (o autor do Eclesiástico), diga:
“Corre para tua casa”. Trata-se de um convite (cfr. nota 50)
à fecundidade da solidão e do silêncio, ao recolhimento, a entrar
em si mesmo, solicitamente (daí o “Corre”) e afastando toda a
distração e os cuidados alheios à sabedoria.
“Recolhe-te”. Com a palavra advocare, Tomás quer reforçar -
como em tantas outras passagens [56] em que emprega esse vocábulo
- o recolhimento de quem foi chamado, convocado para outra parte, a
serena concentração - que se abre à contemplação intelectual da
realidade, da maravilha da Criação.
“Brinca” – Além das duas razões que aponta em I Sent. - o
brincar é deleitável e as ações do brincar não se dirigem a um fim
extrínseco -, aqui, Tomás acrescenta que no brincar há puro
prazer [57] , sem mistura de dor: daí a comparação com a
felicidade de Deus [58] . E é por isso que diz - juntando as
duas passagens chave - que Prov. 8 afirma: “eu me deleitava em
cada um dos dias, brincando diante dEle o tempo todo”.
A conclusão de Tomás é de uma densidade insuperável: “A divina
sabedoria fala em ‘diversos dias’ indicando as considerações das
diversas verdades. E por isso ajunta ‘Realiza as tuas
concepções’, concepções pelas quais o homem acolhe a verdade”.
Infelizmente, Tomás não diz como concebe essa imitação do Logos
divino pela inteligência humana.
Tomás não diz como se dá este “lude et age conceptiones tuas”
(brinca e realiza tuas descobertas); seja como for trata-se de um
convite ao homem - com sua limitada inteligência - a entrar no jogo
do Verbum (na Suma I, 37, 1, diz que verbum é vocábulo ad
significandum processum intellectualis conceptionis, “para significar
o processo intelectual de concepção”), a descobrir sua peças, seu
sentido: a "lógica lúdica" do Logos Ludens. Certamente,
trata-se da contemplação da sabedoria (o que inclui a contemplação
“terrena”, da maravilha da criação), mas, nada impede que
estendamos este convite ao exercício racional-lúdico a outros
campos: num tempo como o nosso em que alguns antevêem o fim da
sociedade do trabalho, o fim da burocracia, o fim da racionalidade sem
imaginação, Domenico de Masi, o profeta da sociedade do lazer -
não por acaso napolitano; Tomás também era da região de Nápoles
- nos vem anunciar “a importância do espírito lúdico, sem o qual
não se constrói a ciência” [59] .
Afirmar o Logos Ludens é afirmar a contemplatio - os deleites do
conhecimento que têm um fim em si -, contemplação que é
formalmente fim da educação proposta por Tomás. Mas o
reconhecimento do Logos Ludens traz consigo também o sentido do
mistério: mistério, que se dá não por falta mas por excesso de
luz. A criação é excesso de luz e nunca pode ser plenamente
compreendida pelo homem: daí que a busca da verdade - da que Tomás
em famosa questão de Quodlibet afirma ser a mais veemente força no
homem - conviva com a despretensão de compreender cabalmente sequer a
essência de uma mosca (como o Aquinate afirma no começo do
Comentário ao Credo) [60] .
Isto é, o brincar do homem que busca o conhecimento deve significar
também o reconhecimento desta nota essencial na visão-de-mundo de
Tomás: o mistério.
Nesse sentido, Adélia Prado - que melhor do que ninguém sabe de
Criação - reafirma, em diversas de suas poesias, a ligação do
lúdico com o mistério:
Cartonagem
A prima hábil, com tesoura e papel, pariu a mágica:
emendadas, brincando de roda, 'as neguinhas da Guiné'.
Minha alma, do sortilégio do brinquedo, garimpou:
eu podia viver sem nenhum susto.
A vida se confirmava em seu mistério.
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Poesia Reunida, São Paulo,
Siciliano, 1991, p. 111 [61]
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A partir da estrutura dual de um Logos Ludens, compreende-se a
dualidade fundamental do conhecimento humano: conhecemos, mas no claro
escuro do mistério, particularmente no que se refere ao alcance do
pensamento humano em relação aos arcanos de Deus: nEle não há uma
liberdade compatível com a contradição de um Ockham, - personagem
referencial de frei Guilherme de Baskerville, o herói de O Nome da
Rosa – nem tampouco as férreas "rationes necessariae" de um
Anselmo de Canterbury [62] .
À rosa da qual nada resta a não ser o nome “stat rosa pristina
nomine...” e a um Deus - “Gott ist ein lautes Nichts” - que
é um sonoro nada, sentenças com que se fecha o romance de Eco,
contrapõem-se a rosa de Tomás e a de Julieta, que, também ela,
fala do nome da rosa:
What’s in a name? That which we call a rose
By any other name would smell as sweet.
Se a rosa tivesse outro nome, deixaria de ser aquilo que é?
Deixaria de ser luz e fonte de luz, do Verbum Ludens de Deus (Jo
1,4)?
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