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Na obra de Raimundo Lúlio ocorre algo que pode parecer chocante.
Num autor medieval dedicado inteiramente - quase se poderia dizer
monoliticamente - à pregação ad extra et ad intra da fé cristã,
encontramos uma falta surpreendente de referências ao aparato desta
fé. Talvez a melhor maneira de ver até que ponto esta situação é
anômala e inclusive dramática, é questionar-nos sobre o que saberia
um homem vindo de outra civilização a respeito da cristandade e da
cultura ocidental do século XIII se só tivesse tido acesso à
imensa maioria [1] da vasta produção do beato (a volta de 265
obras). Saberia, e isto com grande insistência, tudo o que se
poderia deduzir dos artigos da fé: a existência de um Deus ao mesmo
tempo unitário e trinitário, a Encarnação, a Virgem Maria, a
paixão e morte de Jesus Cristo, a ressurreição, etc. [2] Também
encontraria preceitos e orações cristãs como os dez mandamentos, os
sete sacramentos, os sete dons do Espírito Santo, o Pater noster,
[3]etc. De citações de autoridades, praticamente só encontraria as
três seguintes, que verá repetidas também com certa insistência:
(1) "podendo-se demonstrar a nossa fé, perder-se-ia o
mérito,[4](2) "se não credes, não entendereis"; [5]e (3)
"ama Deus teu senhor, com todo teu coração, com toda a tua alma,
com todo teu pensamento e todas as tuas forças",[6]sem poder descobrir
nem tão-somente que a primeira é de um papa (Gregório o
Grande), e as outras duas da Bíblia. Até poderia percorrer a
grande maioria das obras lulianas sem saber que existe algo como uma
Bíblia, nem autoridades doutrinais como os santos Padres. Já nem
falemos deste espesso bosque narrativo da história da fé e das vidas
dos santos que proporcionaram tantos exempla aos escritores da Idade
Média. Poderíamos percorrer igualmente a imensa maioria das obras
do beato sem encontrar referência alguma à cultura escrita que a
envolvia, e às questões que todos discutiam e comentavam nas obras
teológicas, filosóficas e literárias. Este visitante, após
assimilar tantas obras lulianas, talvez se encontraria um pouco
perplexo diante de algo tão ahistórico, abstrato, descontextualizado
e autoreferencial.[7] Em compensação -e é um fato que visto deste
ponto de vista chama poderosa atenção- este homem poderia reconstruir
bastante bem o funcionamento da sociedade contemporânea,[8]até melhor
que nas obras da grande maioria dos outros teólogos e filósofos de seu
tempo. Mas esta sociedade, por muitas cenas de família, de ricos
burgueses, de prelados, de cavalheiros, de prostitutas às portas das
cidades e dos mercados, de ermitões e de discussões perto do rio
Sena que tivesse, continuaria sendo uma sociedade sem textos e
praticamente sem tradições.
Para entender até que ponto esta situação é anômala, precisamos
situar-nos no contexto da Idade Média. No que diz respeito ao
pensamento e à literatura, poder-se-iam caracterizar os dois
séculos e meio que vão do 1050 ao 1300 como uma época de
retextualização, em quatro sentidos: (1) da transição de uma
sociedade quase completamente oral à outra na qual a palavra escrita
tinha um lugar privilegiado;[9] (2) da recuperação de textos,
sobre tudo de filosofia e ciência grega e árabe; e (3) da
produção de novos textos, e a formação, durante estes séculos,
de uma nova cultura européia, tanto literária como filosófica e
teológica; (4) e da organização de universidades como centros
codificadores das tarefas intelectuais e de formação de uma classe
clerical para a qual a escrita era a sua ferramenta profissional.[10]
Antes de seguir adiante, outros dois aspectos desta retextualização
medieval precisam ser comentados. O centro -e modelo- dos estudos
medievais era a teologia, dedicada a compreender e comentar a sacra
pagina, com a ajuda dos escritos dos santos Padres. Mas o fato de
conterem uma série de aparentes contradições impelia, não só a
técnicas características de interpretação, mas também a uma
progressiva fragmentação do estudo, e sobretudo da pedagogia, em
multidão de "questões" suscitadas por estas contradições
aparentes. Com a finalidade de apoiar e facilitar o seu estudo,
procuraram-se as "sentenças" dos santos Padres sobre cada uma
destas "questões", a mais famosa sendo a de Pedro Lombardo.
Destarte, no ensino predominaram não as leituras seqüenciais dos
textos básicos, mas as de florilégios e compilações não somente de
sentenças, mas também de receitas espirituais, de decisões
canônicas, de exempla para os pregadores, de vidas de santos,
etc.[11]Esta fragmentação pedagógica e intelectual acentuou-se
ainda mais com a formação universitária medieval básica, que
consistia, como se sabe, nas quaestiones disputatae.
O segundo aspecto da retextualização medieval radica em que, pela
sua origem no estudo da sacra pagina, ganhou um teor essencial de
"trabalhos de comentário". Basta olhar para a enorme produção de
comentários de São Tomás[12] sobre a Bíblia, Aristóteles,
Boécio e Pedro Lombardo, para entendermos a sua importância. Era
o único modo de absorver os textos novos e uni-los aos outros.
Essa retextualização conseguiu que o ensino universitário medieval
se baseasse exclusivamente nos auctores. Em gramática, Prisciano e
Donato; em retórica, Cícero; na dialética, Aristóteles,
Porfírio e Boecio; na medicina, Galeno, Constantino o Africano
e Avicena; em direito canônico, Graziano; em teologia, como
vimos, a Bíblia e os santos Padres reunidos nas Sentenças de
Pedro Lombardo. [13] Todavia, o que resulta difícil compreender ao
estudioso moderno, é que tipo de auctoritas possuíam aqueles
auctores. Em teoria, não podiam errar, nem contradizer-se, nem
seguir um plano defeituoso, nem estar em desacordo com outro. Digo
"em teoria" porque, de fato, em certos campos como a medicina,
existiam fortes discussões entre os seguidores de uma ou outra
autoridade, e muitos dos desentendimentos originavam-se justamente nos
temas das quaestiones disputatae universitárias. Mas a necessidade de
que dominasse uma autoridade era tão forte que os glosadores e os
comentadores por vezes tinham de fazer verdadeiros malabarismos na
exposição a fim de acomodar a letra do texto à verdade aceite, ou
para fazer concordar duas autoridades aparentemente
contraditórias.[14]Esta atitude impregnava toda a produção
filosófica e teológica medieval. Ser original, não tinha nenhum
valor;[15]os pensadores mais prestigiosos só buscavam o modo mais
adequado de unir suas auctoritates e resolver as quaestiones que a sua
leitura suscitava.
É justamente por este motivo que os textos escolásticos apresentam com
freqüência cadeias de citações de auctores a fim de justificar uma
ou outra postura. Era, portanto, um mundo intertextual num sentido
muito mais direto que o que aporta hoje a crítica moderna; estava,
com efeito, baseado na intertextualidade, que constituía a sua
justificação e razão de ser.
Visto isto, é claro que o contraste com Raimundo Lúlio não podia
ser mais chocante. Durante anos pensou-se -e neste verbo reflexivo
impessoal me incluo a mim mesmo- que Lúlio assim fazia para fugir das
táticas tradicionais da apologética, sobretudo da dominicana, que
imperava na Coroa de Aragão. Aqueles procedimentos, habituais na
época -Lúlio com toda certeza já o tinha percebido por ocasião da
famosa disputa de Barcelona de 1263, [16] e possivelmente pela
Pugio fidei de Ramón Martí, obra muito obsessionada em acabar com
cada auctoritas judia sobre cada questão[17]-, só levavam a
argumentações intermináveis sobre a interpretação dos textos. Ele
mesmo no-lo diz:
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"Iste liber factus fuit hac intentione, videlicet, ut Christianus
et Saracenus per rationes, non per authoritates, ad invicem
disputarent; nam authoritates calumniantur ratione diversarum
expositionum."[18]
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Em outra obra explica-se ainda mais claramente:
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"Moltes actoritats de sans pot hom applicar a aquestes probations que
nós entenem donar. E car neguna auctoritat vera no pot éser contra
raó necessària, per so no curam tractar en aquest tractat
d'auctoritats, com sia assò que auctoritats pusca hom espondre en
diverses maneres e aver d'éles diverses oppinions, per les quals se
multipliquen paraules e esdevé l'enteniment en confusió, adoncs com
los uns hòmens disputen ab los altres per auctoritats."[19]
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E, finalmente, a sua declaração mais lapidaria:
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"Disputar per auctoritats no ha repòs."[20]
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Como se pode apreciar, as três citações têm a ver com o
"disputar"; mas, mesmo limitando-nos ao campo da apologética,
resultam ser declarações programáticas bastante fortes e totalmente
fora de uso no seu tempo.[21]Nos capítulos sobre o mesmo tema do
Llibre de contemplació Lúlio chegou a dizer que com gente de
entendimento grosso é mais vantajoso discutir "ab auctoritats e ab
miracles de sants" ("com a ajuda da autoridade e dos milagres dos
santos") do que "ab raons ni ab arguments naturals" ("com razões
ou argumentos naturais"), dado que o homem "neci de gros enginy pus
prop és de fe que de raó." ("ignorante e de inteligência pesada
está mais perto da fé que da razão.")[22]
Contudo, esta oposição entre argumentos de autoridade e de razão,
tão desfavorável para os primeiros, parece esconder algo mais do que
uma simples tática no confronto com muçulmanos e judeus. Uma
passagem da Doutrina pueril pode dar-nos uma primeira pista:
No som en temps de miracles, cor la devoció era major de convertir lo
món en los Apòstols que no és ara en lo món en què som; ne rahons
fundades sobre actoritatz no reeben los infeels; donchs convinent és a
convertir los infeels lo Libre de demostracions e la Art de atrobar
veritat, la qual lus sia mostrada, per tal que ab ella los combata hom
lur intel(ligència, per ço que conègan e amen Déu.[23]
Esta equiparação -que poderia ser chamada metodológica- entre
milagres e autoridades, aparece reforçada numa passagem do
Blaquerna, onde a Fé explica que:
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Temps es vengut que no volen reebre auctoritats de sants, ni miracles
no són per los quals eren inluminats los innorants de mi e de ma ssor.
E per ço cor les gents requeren rahons e demonstracions necessàries,
vayg a mon frare, qui es poderós, per la virtut de Déu, a provar
los .xiiii. articles.-
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Respòs Blaquerna dién que fe hi perdria sos mèrits si(l enteniment
demostrava los articles per los quals fe ha inluminament a creure contre
enteniment. Mas Fe dix a Blaquerna que no era cosa cuvinent que la
principal rahó per què hom vol convertir los infeels, sia per ço que
la fe, ne sia occasió de major mèrit. - Ans cové que sia
secundària entenció, e que la principal entenció sia que Déus sia
conegut e amat...[24]
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Temos nestas linhas um nexo de idéias que pode começar a esclarecer
as coisas. De um lado, milagres e autoridades pertencem ao campo da
fé, com a qual o homem pode ter um mérito maior, como explica
Blaquerna numa paráfrase da primeira das três citações que repete
insistentemente.[25] Por outro, contamos com as "razões", que
permitem que Deus seja conhecido e amado. Nesta oposição entre fé
e razão, o conteúdo da fé é denominado, na terminologia típica
luliana, uma "segunda intenção", enquanto que será a razão a que
permitirá conhecer e amar a Deus, e portanto alcançar a "primeira
intenção". Confesso que esta declaração me surpreendeu quando a
li pela primeira vez. Mas logo percebi que esta é uma postura
doutrinal amplamente discutida e defendida por Raimundo Lúlio.
Explica-a em muitas obras, mas talvez a sua declaração mais clara a
encontramos numa Disputació que escreveu sobre as Sentenças de
Pedro Lombardo,[26]onde se lê que "Homo principaliter no sit
creatus ad se, nec per consequens ad habendum meritum per fidem, imo
principaliter est creatus ad intelligendum, diligendum et recolendum
Deum."[27]Esta vertente, em certa maneira egoísta da fé (quer
dizer, que leva o homem a se preocupar apenas com a sua própria
salvação), é bem apresentada no Livro do amigo e do Amado:
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[L'amic dix a l'amat] que fortment se maravellava de les gents,
qui tan poch l'amaven, e(l coneixien e(l honraven... E(l Amat
li respòs dient que ell havia pres molt gran engan en ço que havia
creat home per ço que(n fos amat, conegut, honrat. E de mill
hòmens, los çent lo temien e(l amaven tant solament; e de los
çent, los -xc- lo temien per ço que no(ls donàs pena, e los
-x- l'amaven per ço que(lls donàs gloria. E no era quaix
qui(l'amàs per sa bonea e sa nobilitat. [28]
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Este conhecido trecho lembra a história da santa mulher muçulmana,
Rabi'a, que passeava com um tronco na mão e um balde de água na
outra, a fim de queimar o Paraíso e extinguir os fogos do inferno,
para que a humanidade amasse a Deus desinteressadamente.
Aqui conviria fazer um pequeno inciso para explicar que esta postura do
beato nada tem a ver com um racionalismo que começasse por opor a fé
à razão, para depois inclinar-se em favor da segunda. Lúlio
insistiu sempre em que ambas devem ajudar-se mutuamente, e que muito
embora a razão seja a ferramenta principal para alcançar a "primeira
intenção", de fato nenhuma das duas poderia subir até as esferas
divinas sem a outra. Por isso, a passagem antes citada do Blaquerna
termina dizendo:
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... e que enteniment pusca husar de sa virtut per ço que jo(n sia
major e en pus alt grau. Cor aytant con l'enteniment pot pujar més
ha enssús per entendre los articles, d'aytant pusch yo sobre puyar
més a enssús sobre l'enteniment, e creu ço que ell no pot
entendre.
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o que Lúlio explica com a bela imagem do azeite da fé que flutua por
sobre a água do entendimento, e quanto mais sobe a segunda, ainda
mais subirá a primeira. [29]
Se nesse trecho é o entendimento que ajuda a fé, Lúlio apresenta a
situação inversa antes do já citado trecho da Disputació sobre les
Sentències de Pere Llombar: "Fides est instrumentum et juvamentum
ut intellectus intelligat Articulos, ut legitur: 'nisi
credideritis, non intelligetis'".[30]
A maneira como funcionam os mecanismos dessa mútua ajuda é um tema
que não nos corresponde discutir agora. Basta que lembremos que o
homem é criado principalmente para usar as três potências de sua alma
para entender, amar e recordar a Deus.[31]
Retomando o fio dos nossos argumentos, vimos como Lúlio na sua
pregação ad extra, isto é, sob a rubrica da "disputació", opõe
autoridades à razão. Vejamos agora como se comporta com relação à
pregação ad intra. Aqui a situação é tanto ou mais dramática.
Os sermões da Idade Média (como hoje em dia) vinham construídos
sobre citações bíblicas. Lúlio não desconhecia o fato, porque no
prólogo do seu Llibre de virtuts e de pecats afirma que "A tot
sermó pertany tema de la sacra Scriptura."[32] Todavia, esta
afirmação nos vem dada numa obra que contém 136 sermões, nenhum
dos quais é construído sobre um tema bíblico! Como faz para
resolver tal contradição? Simplesmente dizendo a seguir que o seu
thema é o preceito geral dado por Deus a Moisés, a terceira das
três frases citadas no início deste artigo: "Ama a Deus teu senhor
com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu
pensamento e todas as tuas forças."[33] Logo a seguir esclarece que
"aquest manament es general a tots particulars manaments, e per ço
d'aquest manament entenem culir les temes d'aquest libre." (este
mandamento é geral e inclui todos os mandamentos particulares, e por
isso dele extraímos os temas deste livro.) E é este "manament" ou
"precepte"[34] que justifica a antes denominada "primera
entenció", e conseqüentemente abre a porta à razão.[35] Quando
Lúlio fala de razão, refere-se à sua Arte, que é a sua maneira
de estruturá-la e apresentá-la, o que lhe permite escapar dos
themata habituais dos sermões, e construir o Llibre de virtuts e de
pecats com os mecanismos combinatórios, aqui aplicados exclusivamente
às virtudes e aos vícios.[36] Destarte está seguindo a linha já
traçada no Blaquerna, onde nos tinha explicado que
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A preycar era útil cosa provar per ranons naturals la manera segons la
qual vertuts e vicis són contraris, ni com una virtut se concorda ab
altra e um vici ab altre, ni per qual natura pot hom mortificar un
viçi ab una virtut o ab dues, ni com una virtut pot hom vivificar ab
altre; e aquesta manera és en la Art abrevyada d'atrobar veritat.
[37]
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Lúlio, numa outra obra, opõe claramente esta pregação per moralem
philosophiam à outra, per authoritates, e questiona qual das duas é
a melhor. A resposta, que não toma partido por nenhuma das duas, é
que "són dues les terres en les quals es sembra la predicació: en
una brota la intel(ligència, i en l'altra la creença."[38]
Todavia, na Ars generalis ultima oferece outra resposta, mais
contundente. Diz que o pregador deve atuar deste modo na sua
pregação, "perquè per tals coses, l'enteniment dels que
l'escolten és més ferm per entendre que per creure autoritats dels
sants, puix que en creure l'enteniment opera fora del seu acte
natural, que és l'entendre."[39] Em outra obra explica a
afirmação de que a teologia é ciência em dois sentidos, "un
apropiat, segons la fe donada per Déu, i la propia, perquè a
l'enteniment no és propi creure, sinó entendre."[40] Novamente
opõe fé e entendimento, pondo este último como "primeira
intenção".
Antes de abandonarmos o tema da pregação luliana, precisamos
mencionar - só de passagem, pois a sua discussão a fundo exigiria
outro artigo - os únicos contraexemplos notáveis à ausência de
themata. São os sermões do Liber de praedicatione ou Ars magna
praedicationis de 1304 e o Liber praedicationis contra Judaeos de
1305.[41] Como demonstrou um estudo recente, este fato teve sua
justificação numa nova técnica com a qual o beato intenta "reduir"
ou "aplicar" as citações bíblicas às suas razões necessárias,
"perquè les autoritats no són contra la raó, quan són
veres..."(dado que as autoridades não são contrárias à razão
quando são verdadeiras...) [42] Mais tarde, no Llibre de virtuts
e de pecats, em seqüência à passagem citada acima, afirma que "als
sermons qui(s contenen en est libre poden esser aplicats tots sermons
qui sien de la sacra Scriptura culits."[43] Assim encontrou um modo
simples de subordinar as themata homiléticas aos seus procedimentos
artísticos.
Concluindo, Raimundo Lúlio, quer na pregação ad extra, quer na
ad intra, troca as auctoritates pela razão, e até mesmo quando cita
alguma, é porque encontrou uma maneira de aplicar-lhe as suas
razões. E as suas razões - e isto o conhecemos bem pois sempre o
repete - encontram-se sempre na Arte, num subconjunto da Arte, ou
se derivam dela. É nesse aspecto que a obra do beato se diferencia dos
outros intentos realizados na Idade Média para provar mais
racionalmente a existência de Deus ou de alguns ou de todos os artigos
da Fé. Se começa - sobretudo no Llibre de contemplació - com o
fidens quaerens intellectum de Santo Anselmo, logo se afasta dele,
não no sentido de abandonar esta procura, que de fato nunca
abandonará, mas no de integrar esta busca num sistema autônomo e
muito mais geral. O mesmo poderia dizer-se da distância entre o
sistema luliano e o notável De arte catlholicae fidei de Nicolau de
Amiens,[44] que foi citado como seu possível precursor,[45] ou as
Regulae de sacra theologia de Alà de Lilla.[46] O beato
propõe-nos uma ciência das ciências, um mecanismo em torno do qual
possamos agrupar, estudar e explicar todos os outros conhecimentos.
Além disso, sempre o faz olhando para dentro, isto é, fazendo
referência ao coração artístico de sua obra. Não quer que nos
distraiamos olhando a través da janela para a paisagem dos outros
pensadores; repete-nos uma e outra vez que a solução se encontra
aqui mesmo, neste cômodo isolado do mundo exterior, mas dentro do
qual encontraremos todas as ferramentas intelectuais (e espirituais)
que precisamos. Desta maneira propõe-nos um sistema que poderíamos
chamar endoreferencial, em vez de um outro exoreferencial, como era
costume na época. Quer dizer, um sistema baseado numa
intertextualidade interior.
Contudo, torna-se necessário que nos perguntemos o que pretende com
tal programa. Penso que podemos descartar, por motivos evidentes, o
motivo do egoísmo. Penso também que é preciso pôr de lado a
inocência do principiante, cuja originalidade provém do
desconhecimento do que acontece à sua volta. Talvez aconteceu-lhe
algo parecido na sua primeira viagem a Paris, onde esbarrou de um modo
muito desagradável, como narra a Vida coetanea, com "el
comportament dels escolars" e "la fragilitat de l'enteniment
humà."[47] Todavia, já na segunda viagem, vai preparado para
convencer o mundo universitário. Nestes dois anos de 1297 a
1299 escreve três obras com a finalidade de demonstrar que a sua
Arte pode-se aplicar na resolução das questões que se discutiam:
eram a Declaratio Raymundi per modum dialogi edita que tratava dos
219 artigos condenados pelo bispo de Paris em 1277, a já
citada Disputació sobre les Sentències de Pere Llombard, que
tratava das questões em que se fundamentava o ensino na Faculdade de
Teologia, e o Liber super quaestiones Magistri Thomae
Attrebatensis, que sempre me pareceu uma espécie de teste que impôs
ao seu novo discípulo, Tomás le Myésier, para verificar se o
sistema luliano era capaz de manter-se em pé na capital intelectual da
Europa. [48] Ao mesmo tempo escreveu outras três obras para
demonstrar a aplicabilidade do seu sistema às ciências, talvez com a
finalidade de convencer a Faculdade das Artes: eram o Tractat
d'astronomia, o De quadratura e triangulatura de cercle e o Liber de
geometria nova et compendiosa. Também produziu uma nova versão do
seu sistema para fundamentá-lo completamente: a Ars compendiosa (ou
Brevis practica Tabulae generalis).[49]
Revisando novamente a segunda destas obras, a Disputació sobre les
Sentències de Pere Llombard, penso que podemos esclarecer o intuito
do beato. No prólogo da obra, diz-se que "Ramon, mentres que
estudiava a Paris i considerava l'estat pervers del món, es dolia
fortment, principalment del fet que ell, amb l'Art general que Déu
li havia donat a fi d'il(luminar les tenebres d'aquest món, encara
no havia pogut moure el govern de l'Església de Crist, tal com
volia." Perto do rio Sena encontrou um ermitão, estudante de
teologia, que se queixava pelas dúvidas e dificuldades que encontrava
nas questões das Sentències de Pere Llombard que estava lendo.
Lúlio ofereceu-se para ajudá-lo com uma "certa Art general que
Déu m'ha mostrat en una muntanya, amb la qual, de bon grat, per a
l'honor de Déu i la teva pau, intentaré resoldre les teves
qüestions."[50] Por duas vezes, pois, afirma que a Arte é um dom
de Deus. Trata-se de uma afirmação que repete em muitas obras, e
que representa um dos momentos chave da Vida coetanea.[51] É evidente
que para Raimundo Lúlio, o fato deveria ter uma importância
decisiva, mas para nós, no século XX, soa a algo comprometido,
desconcertante. Hoje, ser iluminado, não é bem visto. O termo
até carrega certas conotações de desaforado ou endoidecido, e com
Raimundo Lúlio, que em alguns círculos ainda continua sofrendo
dessa reputação, a questão torna-se ainda mais vital. Todavia,
se quisermos compreender o papel social, espiritual, pedagógico e
apologético de Raimundo Lúlio no mundo de seu tempo, não podemos
esquecer este fator, sem qualquer nervosismo pelas possíveis
conotações de hoje.
Considerado assim, é lógico que numa sociedade como a cristã ou a
muçulmana da Idade Média, como a da Índia de hoje, a iluminação
era não apenas bem vista, senão que até tendia a fazer do receptor
um objeto de veneração, uma personagem cujo ensinamento teria
garantias de uma espiritualidade e sabedoria superiores. Para tornar
essa idéia mais compreensível no mundo acadêmico de hoje, ser
iluminado naquela época era como hoje possuir a mais elevada
titulação possível, o que tornava o iluminado uma nova auctoritas.
Mas a iluminação de Lúlio (falamos agora da iluminação de Randa
e não da visão do Cristo crucificado que produziu a sua conversão
nove anos antes) não consistiu numa visão divina ou numa experiência
mística de união extática, senão que produziu-se quando "de sobte
el Senyor il(lustrà la seva ment, donant-li da forma i manera de
fer el llibre[...] contra els errors dels infeels." Em
conseqüência disso, "començà a ordenar i escriure aquell llibre,
que primer anomenà Art major i més tard Art general. Sota aqueixa
Art escrigué després molts de llibres [...] en els quals
explicava extensament els principis generals, aplicant-los als més
específics."[52] Como fica bem claro, o que recebe na iluminação
não consiste em algum tipo de consagração pessoal, mas numa "forma
i manera" (ou "forma i mètode"- formam et modum), quer dizer, a
Arte, da qual ele será apenas o transmissor, ao plasmá-la e
modificá-la num conjunto de livros de diferentes títulos. Esta
escala de valores fica ainda mais evidente na crise de Gênova, onde,
perante a necessidade de decidir entre a própria salvação (com os
dominicanos) ou a da Arte (com os franciscanos), prefere salvar a
"Art que li havia estat revelada a honor de Déu i a la salvació de
molts."[53] Desta maneira, no caso de Lúlio, a auctoritas residia
na Arte, não na sua pessoa.
Com o intuito de compreender melhor como era interpretado isto entre
"les mentalités" da época, e na questão da auctor-auctoritas que
já estudamos, dispomos de um interessante mecanismo que nos permite
comparar a atitude de Lúlio com a de seus contemporâneos. No
século XIII espalhou-se um novo estilo nos prólogos aos
comentários dos auctors, baseado nas quatro causas
aristotélicas.[54] O auctor era apresentado como a "causa
eficiente" da obra que se comentava; o conteúdo - o substrato da
obra - constituía a "causa material"; o seu estilo literário,
seus métodos ou procedimentos, e a estrutura da obra estudavam-se sob
a rubrica da "causa formal"; enquanto que a finalidade última da
obra, o motivo pelo qual fora escrita, o benefício que se podia obter
com ela, considerava-se a "causa final".[55]
Ora, no prólogo da Lectura super figuras Artis demonstrativae, que
é de fato um comentário sobre uma de suas próprias obras, Raimundo
Lúlio nos diz que:
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Com les altres ciències, l'Art té un causa quadruple, és a dir,
l'autor, la forma, la matéria i el fi. L'autor es podria dir que
és Déu, a la magnificència del qual l'Art està dedicada,
mentres que l'autor immediat és un home vil i pecaminós que no té
importància. La matèria són les figures i termes de l'Art
mateixa. La forma es troba en el descens de l'universal cap als
particulars, el qual descens consisteix en el discurs ordenat dels
actes de l'ànima per mitjà de la mescla dels triangles de la Figura
T en el termes de les altres figures. Aqueixa mescla ordenada dóna
lloc al resultat desitjat, que és la necessària afirmació de la
veritat o la negació de la falsedat. Això deim que és el fi
d'aquesta Art. [56]
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Torna-se necessário prevenir a tendência natural do leitor moderno a
tomar as afirmações da autoria divina da Arte, e do caráter "vil e
pecaminoso" do "autor imediato" "que não tem qualquer
importância", como figuras literárias, e a segunda afirmação como
originada simplesmente pela modéstia do beato. Na sua opinião, como
vimos, a Arte era realmente um dom de Deus, e a diferencia abismal
entre a perfeição do autor real e a sua própria imperfeição era um
fato indiscutível. Assim sendo, neste texto apenas nos transmite a
sua visão de sua própria realidade. E, de acordo com a importância
que, como vimos antes, o povo medieval outorgava às auctoritates, o
fato de posicionar-se como transmissor de uma obra do auctor divino
condiciona de modo fundamental quer a visão de seu próprio papel,
quer a visão que dele podiam ter seus contemporâneos. As suas
pretensões, como vimos, iam além da conversão dos infiéis (embora
esta continuasse ocupando o centro de sua missão vital); incluíam
também a pregação ad intra, a reforma da cristandade e inclusive -
como acabamos de ver na discussão havida junto ao rio Sena sobre as
Sentències de Pere Llombard - a introdução de seus métodos
artísticos na Universidade de Paris. Lúlio sabe perfeitamente que
isso não será fácil,[57] mas persiste, e no final consegue ver
aprovada a sua Arte (na forma da Ars brevis) por quarenta mestres e
bacharéis das faculdades de Artes e Medicina. Concluem que "dicta
Ars seu scientia erat bona, utilis et necessaria," e que nela
puderam encontrar muitos elementos para a sustentação da fé.[58]
Van Steenberghen comentou, há mais de vinte anos, que "la chose
n'a rien de surprenant: Lull était un viellard sympathique et
respectable, mais un autodidacte et un original; son enseignement
n'était adapté ni aux cadres, ni au programme de la Faculté des
arts,"[59] mas penso que o beato estava bem consciente disso. Até
porque faz dizer ao ermitão, no fim da já tão citada Disputació
sobre les Sentències de Pere Llombard, "Ramon, me explicaste
muitas coisas boas e novas, coisas que nunca ouvira antes. Mas, dado
que tens uma maneira (modum) diferente do utilizado pelos modernos
mestres e eu estou habituado nos temas científicos à sua maneira, e
em alguns aspectos me educaram contra as tuas opiniões, e não estou
ainda acostumado nem habituado aos teus argumentos, proponho-me
habituar-me a eles com diligência, e, conforme o sistema que me
trouxeste, fazê-los concordar com os princípios da tua Arte."[60]
Por isso, parece-me que Raimundo Lúlio sabia perfeitamente que
não conseguiria reformar o ensino nas faculdades parisienses;
intentava apenas formar um grupo de discípulos ou de pessoas, dentro
das faculdades, interessadas no estudo de suas obras. É importante
salientar também que não buscava discípulos para reuni-los à sua
volta, como fez Abelardo, mas para que estudassem a sua Arte.
Neste sentido, é significativo que no fim da obra aprovada, a Ars
brevis, Lúlio, como já fizera em outros trabalhos, explica como se
deve ensinar a Arte. Primeiro deve-se decorar o alfabeto, as
figuras, as definições, as regras e a tabela, e depois, que o
artista "declar bé lo text als escolans raonablement, e no(s lic ab
les autoritats dels altres."[61] Portanto, poderíamos dizer que o
que Raimundo Lúlio parece ter conseguido na sua última estadia em
Paris foi que um grupo de mestres e bacharéis, após o exame de sua
Arte, a aprovassem como sendo uma espécie de auctoritas paralela.
Com isto podemos dar mais um passo interpretativo em frente, e falar
da relação - desejada ou real - entre Raimundo Lúlio e seu
público. O historiador canadense, Brian Stock, ao estudar a seita
dos valdenses do fim do século XII em Lião, mostra que se tratava
de um movimento reformista baseado nas interpretações bíblicas do
fundador, Pedro Valdo. Stock, portanto, descreve a seita como uma
"comunidade textual."[62] As diferenças entre esta seita populista
e os lulistas de um século e meio mais tarde são quase tantas como as
semelhanças, contudo penso que o conceito de Stock pode ajudar-nos a
compreender os objetivos do beato e certos movimentos lulistas
posteriores. Se entendemos "comunidade textual" no sentido mais
amplo de um grupo de pessoas que centra as suas idéias fixas,
intelectuais e espirituais, na interpretação ou no estudo de um grupo
definido de textos, talvez nos aproximemos do que Lúlio intentava
fazer. Em vez de propor uma nova interpretação do texto
sagrado,[63]como era corrente entre as seitas mais ou menos
heterodoxas, Raimundo Lúlio propunha como objeto de estudo uma nova
auctoritas: a Arte que Deus lhe dera.
A idéia de formar uma comunidade textual - ou diversas comunidades
textuais - originava-se, como se sabe, do próprio beato, com o
desejo expresso no fim da Vita coetanea e no seu testamento do ano
1313, de deixar depósitos de livros em Paris, Gênova e
Mallorca como centros de propagação da Arte. A história do
sucesso, ou do fracasso, de grupos de lulistas nestes e noutros
centros (como Valência, Barcelona e Pádua) durante os dois
séculos posteriores à morte do beato, faz parte da história do
lulismo. No entanto, o que parece inegável é a existência, nas
gerações posteriores, de grupos de lullisti que se dedicavam ao
estudo de uma ars lulliana. Assim os via o inquisidor Nicolau
Eimeric na sua raiva persecutória, e assim os devia ver Jean Gerson
em Paris quando fez decretar que se deixasse de ensinar aquela famosa
ars.
Porque, como mostrou Brian Stock, querer estabelecer comunidades
textuais paralelas às estruturas oficiais da Igreja era perigoso,
mesmo tendo em conta que Lúlio não queria opor-se à Igreja.
Propor a formação de uma comunidade textual, que não se apoiasse em
nenhum outro auctor fora Deus através da mensagem da ars, e querer
assim "mostrar ciència al poble", comportava grandes riscos.[64]
Em primeiro lugar, tal empresa, pela sua auto-suficiência e pela
sua proposta de métodos alternativos,[65] não apenas formava uma
comunidade intelectualmente e espiritualmente isolada da sociedade bien
pensant, senão que pela sua atitude aberta ou implicitamente crítica
dos poderes públicos e da Igreja, naturalmente iria suscitar a
oposição destes estamentos.[66]
Além do mais, o fato de uma comunidade não querer apoiar-se nas
auctoritates consagradas, e se voltasse para as próprias
interpretações ou textos, sempre suscitou suspicácias por ser algo
que podia escapar do controle clerical. Como comentou o inquisidor
dominicano, Étienne de Bourbon, que nos conta a vida do fundador dos
já referidos valdenses, a sua missão officium apostolorum
usurpavit.[67] O fato de que a maioria dessas comunidades textuais
medievais se dedicasse, de uma forma ou outra, a "mostrar ciència al
poble", apenas servia para tornar o fato ainda mais suspeito. E não
citar nem a sagrada Escritura, nem seus próprios mestres, é
inaceitável para o outro inquisidor, Eimeric.[68] Este queixa-se
também de que os lulistas "não querem acreditar nos mestres em
teologia, canonistas, legistas, prelados, cardeais, nem até no
nosso senyor santíssimo, o Papa." Uma comunidade textual também
chocava com outra estrutura social da Idade Média, a
profissionalização e institucionalização do ensino e do estudo da
filosofia e teologia.[69] Esta nova classe clerical, como era de se
esperar, mostrava ter pouca paciência com os de fora que se
entremetiam em temas para os quais achavam que não estavam preparados.
Étienne de Bourbon já acusava os valdenses de serem gente idiote et
illiterati,[70] e Eimeric dizia que Lúlio era ignarus et scientia
imperitus.[71] Eimeric, ao final de sua vida, queixava-se
amargamente pelo fato de que a oposição que encontrara nas suas
campanhas contra este homem phantasticus et begardus, viera não de
gramáticos, dialéticos, físicos, filósofos, geómetras,
músicos, aritméticos, astrônomos, astrólogos, matemáticos ou
teólogos, nem também de duques, governadores, condes, barões ou
marqueses, mas de comerciantes, sapateiros, cordoeiros, alfaiates,
pisoeiros, marceneiros, ferreiros, prateiros, tecelões,
taberneiros e farmacêuticos.[72]
Mas o lulismo seguiria o seu caminho com uma lógica inexorável. O
primeiro passo fora a criação de um sistema endoreferencial, que
excluía citações de autoridades anteriores. A auctoritas deste
sistema residia numa Arte recebida de Deus, em redor da qual o autor
(imediato) praticava uma espécie de intertextualidade interior. O
segundo passo consistiu na formação de comunidades textuais que se
dedicassem ao estudo e à propagação deste conjunto de obras, que
quando não excluíam totalmente os textos consagrados, os utilizavam
paralelamente com os lulianos.[73] O terceiro passo foi o exílio,
realizado pelo establishment, destas comunidades suspeitosamente
independentes e dificilmente controláveis. Até mesmo, quando
Lefèvre d'Étaples e Charles de Bouvelles, no começo do século
XVI, quiseram reformar ou combater o establishment escolástico
medieval, utilizaram como instrumento este idiota et illiteratus que
já se havia oposto a ele dois séculos antes. É com a imagem desta
oposição, agora vista como positiva, que Raimundo Lúlio volta a
entrar nos caminhos mais cêntricos do pensamento europeu.[74] E
durante todo esse século e o seguinte o beato não deixará de ser
visto como uma figura alternativa.
Anthony Bonner
Vice-reitor da Maioricensis Schola Lullistica.
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