O AGIR DO HOMEM.

O operar humano é dividido por Lúlio em obras naturais e artificiais [51], sendo que neste trabalho interessa deter-nos apenas nas primeiras.

Deve destacar-se na concepção do filósofo maiorquino o caráter unitário de todo o agir humano. Lúlio considera obras naturais tanto os atos que provêm das formas ou perfeições que constituem o homem, quanto os atos que provêm de suas potências operativas. Com relação aos primeiros, cabe dizer que Lúlio concebe como um ato a conexão das formas e das matérias naturais que constituem o homem -já relacionadas acima: vegetar, sentir, imaginar, entender e amar...- por considerá-los como atos primeiros, isto é, realizados sem deliberação nem escolha por parte do homem. Os outros atos naturais originam-se nos anteriores, e são sempre acidentais. Por exemplo, a cólera, que aquece o homem e lhe faz sentir sede, ou o ato do homem que se aquece a si próprio antes de uma corrida; a transformação dos alimentos em carne humana; ver as cores; o imaginar coisas, que denomina "imaginar segundo", por ser já elegível, distinto portanto do primeiro imaginar radical que consiste na relação do objeto pensado com a coisa pensada; e o mesmo diz do entender e do querer[52].

Dois são os motivos pelos quais o homem realiza obras naturais, diz Lúlio: pela sua essência e pelo seu fim. Nem a forma nem a matéria substanciais do homem poderiam ser o que são sem tais obras naturais, sem as quais a forma não teria ação nem a matéria paixão e, assim, a forma não seria forma, e a matéria não seria matéria.

Convém ainda que haja obras naturais por razão do fim. Neste ponto, Lúlio aplica sua conhecida[53] doutrina da tridimensionalidade do ente. Como é sabido, a estrutura do ente, segundo o maiorquino, vem formada pora potência, objeto e ato. A potência é capacidade de atuar ou operar. O objeto, o termo ad quem da potência. A tensão entre potência e objeto resolve-se pelo ato, que, unindo a potência de ser com seu objeto, constitui o ente real, fazendo-o ser aquilo que é [54]. Destarte, entende-se que não existiria o homem concreto se não existissem os atos de vegetar, imaginar, sentir, entender... Os atos naturais são, pois, o fim natural do próprio homem; e não pode ser de outro modo, pois então o homem alcançaria seu fim natural nas realizações externas a si, o que é impossível[55].

Será, pois, pela alma espiritual que o homem alcançará o seu fim. Por ela, o homem ganha virtudes ou vícios, e com eles méritos para o bem ou para o mal.

A memória, o entendimento e a vontade habituam-se a entender as coisas intelectuais, pondo-se em movimento pelas coisas sensíveis[56]. Lúlio descreve no seu Llibre de Contemplació o modo como o conhecimento humano se ergue do sensível para o intelectual, e deste, de degrau em degrau, para planos intelectuais mais altos, sempre numa presença constante do Ser supremo, criador do ser finito e concreto. Amplamente comentado por muitos foi seu afã de buscar nas operações do homem, inclusive nas mais espirituais, e principalmente nos seus princípios, tudo quanto o aproxima dos outros seres sensíveis, numa visão ao mesmo tempo filosófica e mística, que relaciona tudo com Deus, e que torna Lúlio um dos autores espirituais medievais que mais se prestaria a uma análise paradoxalmente materialista[57].

Através da vontade e do seu querer livre, o homem pode torcer a sua inteligência e dirigi-la na direção daquilo que ama. Se ama seu fim, paulatinamente verá reforçar-se a concordância interna que existe entre as suas potências, inclinando-se cada vez mais ao fim para o qual foi criado. Assim fazendo, seu entendimento será bom e produzirá um saber igualmente bom, que multiplicará as boas obras.

Se, pelo contrário, o homem se habitua a considerar apenas os bens sensíveis, aos poucos, entretido no que é passageiro e material, verá intoxicar-se sua capacidade intelectual, pois "tão grande é a conjunção que existe entre os sentidos corporais e o conhecimento intelectual... que o uso do sensível feito pelos sentidos corporais é, naquele instante, desvio e bloqueio do conhecimento intelectual.[58]"

A capacidade humana de penetrar a realidade, compreendendo-a, é, pois, algo muito volátil. Ao perder-se a integridade interior, deteriora-se a capacidade intelectual e, muitas vezes, pensando acreditar numa verdade, acreditará numa falsidade; querendo fazer o bem, fará o mal.

O homem alcançará sua plenitude ou perfeição própria "na medida em que, tendo Deus colocado nele algo de sua semelhança, quiser usar dessa semelhança[59]". Isto é, na medida em que atualiza seu ser e se torna o que é. E realiza esta plenitude por meio das virtudes, ou "costumes bons" como Lúlio as denomina.

Novamente ressalta neste ponto a unidade do sujeito humano no seu operar, segundo a visão luliana. Proclama-se que as virtudes trazem sempre consigo a submissão da sensibilidade. "Quando as virtudes se encontram no homem, elas provêm e derivam da potência racional que usa de sua capacidade, desde que tenha submetida a si a potência sensitiva[60]", enfatizando deste modo a necessidade das virtudes integrarem o sensível e o intelectual, com o que se elimina de vez qualquer moral desencarnada e abstrata.

Mas essa unidade é um efeito do esse luliano.