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Recordando brevemente a doutrina tradicional sobre a pessoa, deve-se
dizer que, quando existe de uma maneira completa, uma substância
particular é chamada de hipóstase, suposto ou subsistência
concreta. A mão ou o pé, por exemplo, embora sejam substâncias
particulares, como não subsistem por si mas existem num ser mais
completo, não são supostos. Pois bem, ao suposto convém existir
sempre nalguma natureza, e, se essa natureza é a natureza racional,
o suposto é chamado de pessoa. Como diz S. Tomás[15], a
"pessoa acresce ao suposto uma natureza determinada, a natureza
racional".
Á pessoa são atribuídas as operações e as propriedades da essência
e tudo quanto pertence à natureza. Por exemplo, este homem é uma
pessoa porque supõe tudo o que pertence ao homem que, por
conseguinte, se predicará deste homem.
Porém, deve-se levar em conta que, embora exista a idéia ou
conceito de pessoa, é preciso ter cautela com a definição de
pessoa, pela simples razão de que a noção de pessoa não é uma
espécie. Como é sabido, as definições realizam-se acrescentando
ao gênero uma diferença específica, o que não pode ser feito no
caso da pessoa, pois ela não é uma espécie do gênero indivíduo.
Justamente por isso, S. Tomás ampliou a definição de pessoa dada
por Boécio - substância individual de natureza racional -,
entendendo pelo termo substância não o gênero predicamental
substância, mas o ente concreto individual subsistente[16].
Se a definição expressa sempre a essência de uma espécie, a
noção de pessoa não poderá ser definida, pelo simples motivo de
não ser uma espécie. Conseqüentemente, não deve ser incluída em
nenhum dos modos do ente predicamental. Se a pessoa fosse incluída
nalgum deles, não se estaria concebendo a pessoa segundo a sua
própria razão de ser[17]. Do ponto de vista do ser, cada pessoa
constitui um grau de perfeição na participação do ser. O ato de
ser de cada pessoa é, pois, o seu constitutivo metafísico assim como
a origem e raiz de todas as propriedades e perfeições
pessoais[18]. O nome pessoa é, pois, quase um nome próprio.
É nesse ponto que começa a aparecer o estatuto especial da pessoa
humana. Cada pessoa é um existente concreto, do qual se sabe que
existe numa natureza racional concreta, natureza que, por sua vez, é
um resultado do ato de ser da pessoa e que não possui a razão de
espécie. Portanto, convém que cada pessoa seja concebida como
diretamente participante do ser. Desse modo, seus limites, no ser e
no operar, não são fixados por uma suposta "espécie pessoa" mas,
exclusivamente, pela natureza racional na qual subsistem. Daí a
importância de compreender-se bem essa natureza.
De modo diverso ao dos entes que não são pessoas - que participam do
ser na medida indicada por sua essência; classificam-se, justamente
por essa medida, num dos modos do ente predicamental, e se
aperfeiçoam também segundo a sua essência, isto é, segundo aquilo
que são -, as pessoas aperfeiçoam-se constantemente, segundo os
parâmetros de sua natureza racional e exclusivamente por causa disso,
adquirindo a perfeição dos outros entes, tornando-se possível até
que, numa única pessoa, se concentre toda a perfeição do
universo[19]. Realizam essa possibilidade por meio de seus atos de
conhecimento e de amor.
Para um bom entendimento da noção de natureza, torna-se necessário
advertir que dentro do tomismo existem diversas posturas
filosóficas[20] com relação ao ente, o que em muitos casos pode
conduzir a conclusões quase contrárias em diversos temas. Essas
correntes poderiam ser classificadas em dois grandes grupos: as
essencialistas e as filosofias denominadas do ser, estas últimas
interpretando, segundo parece, mais fielmente o pensamento do próprio
S. Tomás.
Mais aristotélicos que os partidários da filosofia do ser, os
essencialistas concedem, na constituição do ente, um maior peso à
essência do que ao ser. Isso os obriga a atribuir mais importância
aos conteúdos abstratos que ao ente concreto. Pode-se dizer que os
essencialistas contemplam tudo mediante o conceito, uma vez que na sua
opinião a clareza conceitual é mais importante que a realidade em si.
Obviamente, isso não deixa de ter conseqüências em diversos
campos. Na teoria do conhecimento, por exemplo, o juízo
verdadeiro, expressão de um entendimento verdadeiro, é mais
importante que o próprio entendimento verdadeiro. Ainda nesse campo,
é fácil encontrar essencialistas defendendo a existência de um
conceito de ser. Em metafísica - o campo do presente trabalho -,
tendem a fixar as naturezas dentro de dimensões imóveis, desse modo
justificando mais facilmente um valor universal das leis. Muitas
outras conseqüências poderiam ser apontadas, todavia, para o que diz
respeito a estas linhas, vale constatar apenas que, na teologia, os
essencialistas separam a ordem natural da sobrenatural de forma
absoluta, devido justamente à sua tendência a considerar todas as
coisas por intermédio de seus conceitos. E, de fato, os conceitos
separam o que na ordem real se encontra unido.
De modo diverso, as filosofias do ser ressaltam o ser "dentro" do
ente. De fato, dão um passo à frente em relação a Aristóteles,
pois o Estagirita não chegou a afirmar claramente a distinção entre
ato de ser e essência, devido a que utilizou sua teoria do ato e da
potência para explicar o movimento, mas não para explicar a estrutura
do ente. Sob a luz das filosofias do ser, visualiza-se melhor essa
distinção real. Além do mais, as filosofias do ser privilegiam o
concreto sobre o abstrato. Têm mais presente que antes de o
entendimento expressar uma verdade por meio de um juízo, essa verdade
já se encontra no entendimento, embora não o saibamos. Portanto,
segundo essas filosofias, a verdade, após uma simples apreensão e
antes do juízo, já se encontra materialmente no entendimento que,
por essa razão, é chamado de verdadeiro. As conseqüências desse
modo de ver as coisas são realmente importantes. Em teoria do
conhecimento enfatiza-se a autoconsciência: uma notícia do ser da
própria pessoa que conhece, durante o ato de conhecer. Ainda nesse
campo, se bem se considere que os universais são reais, lembra-se
insistentemente que lhes foi conferida a sua universalidade por um ato
do entendimento e, assim, privilegia-se claramente o concreto sobre o
abstrato. Em metafísica, a transcendência de Deus, ato puro de
ser, resulta mais evidente, pois as criaturas serão sempre compostas
de ato de ser e de potência. Devido a que o ser, e não a
essência, é o princípio que fundamenta o ente, encontra-se também
mais facilidade em admitir flexibilidade às naturezas, uma vez que
estas são as substâncias consideradas como princípio das
operações. Em teologia, a separação absoluta entre a ordem
sobrenatural e a natural desaparece, pois se admite uma abertura da
razão para a ordem sobrenatural.[21]
Uma vez revistos os conceitos clássicos de natureza, pessoa e tendo
advertido sobre os diferentes modos de enfocá-los, podemos agora
apresentar o pensamento de Raimundo Lúlio sobre o conceito de
natureza humana.
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