A MANIFESTAÇÃO DO SER NA MENTE HUMANA

Os entes também podem ser na mente do homem[9]. Como concebia Lúlio o conhecimento?

Lúlio concebia o conhecer também como ato. Aristóteles já afirmara que na atividade de entender encontra-se o “arquétipo” da atualidade[10]. O homem, diz o maiorquino, é intelectivo e move seu entendimento para que “entenda no seu inteligível”[11]. Aparece aqui outra vez a tripartição do ato de conhecer posto pelo homem, ser intelectivo, em três correlativos —entender, entendido e inteligível— sem os quais o conhecer não teria lugar.

No ato de conhecer ocorre, pois, uma atualização do entendimento provocada, sem dúvida alguma pelas realidades que são objeto de conhecimento, mas também e sobretudo pelo próprio sujeito que conhece, dado que é quem move seu entendimento a entender. É justamente nessa atualização do entendimento que se manifestará o ser da coisa entendida. Onde? No próprio inteligível, nos diz o maiorquino.

A novidade neste tema vem indicada logo a seguir. Lúlio acrescenta que os diversos atos de conhecimento que realizamos estão sustentados por um entender substancial que está sempre em ato em nós. Essa afirmação é uma conseqüência de sua teoria das obras naturais próprias e apropriadas. Lúlio ensina que as substâncias têm uma ação própria e uma ação apropriada. A primeira é substancial e no sujeito em que ocorre converte-se em sua forma[12], a segunda, a ação acidental, converte-se em forma acidental. A ação substancial é contínua por essência[13], e sempre atual. A ação apropriada é acidental e artificial, move-se sempre da potência ao ato, e seu fim é a ação natural[14].

Aplicando esta teoria ao ato de entender, Lúlio dirá que o “objeto próprio” do intelecto, que se corresponde com o seu “ato próprio”, é entender sua própria inteligibilidade e intelectualidade. Este “objeto próprio” nutre-se do “objetos apropriados” de outros atos de entender, que são acidentais, externos e vizinhos. Não há “objeto próprio” sem “objeto apropriado”, esclarece; mas por outro lado, o objeto externo tem-se no objeto interno[15]. Finalmente, dizer que os “atos apropriados” naturais têm por fim os “atos próprios” significa afirmar que o intelecto não pode entender sua própria inteligibilidade e intelectualidade se não entende, ao mesmo tempo, as inteligibilidades externas a ele. E exemplifica com uma metáfora: “Como a luz da lâmpada vive do óleo, assim o objeto próprio vive do apropriado e dele extrai alimento e natureza apropriada.”[16]O entendimento só poderá ter consciência de si mesmo com os atos acidentais de conhecimento, que a filosofia clássica chamará de operações.

A novidade é importantíssima pois se declara que no homem existe um entender interior e primigênio mediante o qual se alcança o seu ato próprio, isto é, o seu ser. Temos todos, portanto, uma notícia permanentemente atual do nosso ser. Afirma-se assim no homem um nível mais interior de conhecimento, no qual terá lugar também a notícia do ser dos entes externos conhecidos e, principalmente, a notícia primordial do Ser Supremo, do qual todos dependemos. Essa nova instância de conhecimento, buscada durante séculos pela filosofia, adquirirá para alguns tanta importância, que chegarão a opinar que ela teria de ser o ponto de partida do filosofar e não a razão. No fundo, trata-se de um novo conhecimento desde a qual se julgará o conhecimento objetivo. Schelling, por exemplo, apontava para a necessidade de dar-se o que ele denominava “êxtase da razão”, isto é, um “situar-se fora de si”, mais exatamente, fora da razão, para que conhecimento humano pudesse instaurar-se no próprio Absoluto[17]. Leonardo Polo apresentará o método que denomina de “abandono do limite mental”, que nada mais é que um ir além do conhecimento objetivo próprio das operações intelectuais, situando-se em um conhecimento que descobre ser habitual em nós[18].

À medida, pois, que vamos realizando atos de conhecimento cresce também, segundo Lúlio, pelo ato substancial do entendimento, o conhecimento de nós próprios.  O conhecer realiza-se pois sempre em dois planos simultâneos e concomitantes: “O intelecto que entende algum objeto tem um duplo entender. Por um lado, entende o que é próprio de sua essência e de sua ação e paixão substancial; por outro, entende o adquirido mediante o hábito de ciência, relacionando-se com os objetos dos sentidos particulares e seus atos.”[19]

Impressiona a força com que Lúlio afirma a necessidade desse ato substancial do entendimento, sem o qual, diz ele, o homem não poderia existir. “Se na memória não houvesse um continuo lembrar, e no entendimento um continuo entender e na vontade um contínuo querer, as formas e as matérias espirituais da alma seria ociosas e não se poderiam ajustar entre si, pois as formas não teriam ação nem as matérias paixão. A alma não teria como informar o corpo, nem como dar-lhe o ser e a vida. Convém, pois que um radical lembrar, entender e amar estejam em contínuo ato, todo o tempo em que o homem é homem.”[20]Lúlio faz depender, pois, o próprio ser do homem desses atos radicais de lembrar, entender e amar que nutrem a sua própria substância, e cuja perfeição se acresce com ajuda de outros atos acidentais.

Note-se que, sem pretendê-lo chegamos a um tema bem atual. Sem esse radical lembrar, entender e querer, sempre contínuos no homem, este não existiria, nos diz o maiorquino. Ora, é justamente nesse nível interior e radical de conhecimento que tem lugar a primordial percepção do Ser Supremo, a consciência religiosa que aparece em todas as épocas da humanidade. Desvencilhando-nos desse nível de conhecimento, desvencilhamo-nos de Deus, mas então Lúlio nos avisa que também aniquilamos o homem. Pois bem, este passo já foi dado na modernidade: Foucault, um dos principais representantes do estruturalismo, substituiu o grito desesperado de Nietzshe, “Deus morreu”, pelo seu correspondente “o homem morreu”. E é Lúlio que nos explica o por quê.

Se, linhas acima, víamos que todas as perfeições e todos os entes eram sustentados por um ato de ser tridimensional[21], agora podemos acrescentar que esse ato de ser é sustentado e se aperfeiçoa pela “ações apropriadas” —que também são tridimensionais— que os entes realizam ao longo de sua vida

A medida que os entes manifestam seu ser ao homem através dos distintos atos humanos  de entender, a autoconsciência do homem se multiplica Em Lúlio, o abrir-se para fora, próprio do ato de entender, parece ter o sentido de um retornar para si, aperfeiçoando o próprio ser. Quanto mais se expandir para fora de si o ser do homem com seus atos apropriados de memória, conhecimento e amor, —desde que estes sejam também atos bons, grandes, etc.— mais intenso se torna seu próprio ato substancial de ser. Por outro lado, é a atividade interna de cada ente, por ser contínua e atual, que sustentará a externa, que é acidental e intermitente. Lulio, portanto, encara o tema do conhecimento desde uma perspectiva mais ampla do que a perspectiva da faculdade.

Tendo visto sucintamente, em primeiro lugar, como Lúlio fundamenta os entes nos seus atos próprios e, logo depois, como esses atos próprios se nutrem dos atos acidentais, mostraremos a continuação como, a partir dessa ótica, Lúlio entende o universo como o conjunto de todos os entes relacionados e hierarquizados segundo uma intensidade de atos.