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O pensamento e a obra de Ramón Llull nos permitem analisar a visão
cristã da cavalaria peninsular diretamente envolvida no contato direto
com o "outro": o muçulmano. Ao inserir-se numa proposta
missionária de conversão - e portanto muito mais próximo do
"inimigo" - Llull trouxe importantes contribuições à visão
cristã da cavalaria. Sua obra Libro del Orden de Caballería foi
fruto desse envolvimento. Embora contra as cruzadas desde o começo -
era considerado um pacifista[1] - Ramón Llull no fim de sua vida
aceitou a luta armada contra o infiel como uma forma de impor o
diálogo.
Ramón Llull nasceu entre os anos 1232 e 1235, em Maiorca.
De família nobre, foi pajem e cavaleiro de Jaime I, o
Conquistador[2], e senescal e mordomo de seu filho, o infante D.
Jaime de Maiorca[3]. Casou-se antes de 1257 com Blanca
Picany, tendo dois filhos, Domingos e Madalena[4]. Ao
contrário do que se costuma pensar, não existe nenhuma prova
documental que Llull tenha aderido a qualquer ordem religiosa. Na
verdade, Llull foi um pensador leigo. Contudo, a iconografia
posterior o franciscanizou[5].
A forte presença moura e judia em Maiorca contribuiu para o sentido
missionário de sua obra. Em 1265, aos trinta anos, quatro
aparições de Jesus crucificado levaram-no a dedicar-se à
conversão de todos os infiéis. Até então, sua vida era voltada
para a corte, as poesias trovadorescas e a vida mundana: "Apesar da
ajuda que recebi dos anjos e das pregações dos religiosos (...)
cheguei a ser o pior dos homens e o maior pecador desta cidade e de
todas as redondezas." [6]
Ramón Llull nasceu quando Maiorca estava sendo conquistada aos
mouros por Jaime I. A presença da Ordem do Hospital em Maiorca
- auxiliou a campanha de Reconquista cristã, recebendo como prêmio
a repartição da ilha[7]- provavelmente influenciou o espírito de
conversão expansionista do pensamento de Llull. Em sua obra
Disputatio clerici et Raymundi phantastici, ele nos conta:
"Fui um homem casado, pai de família, numa boa situação de
fortuna, lascivo e mundano. A tudo isso renunciei de bom grado, a
fim de poder honrar a Deus, servir ao bem público e exaltar nossa
santa fé. Aprendi árabe; fui várias vezes pregar entre os
sarracenos. Detido, encarcerado e flagelado pela fé, trabalhei
cinco anos para comover os chefes da Igreja e os príncipes cristãos
em favor do bem público. Agora estou velho, agora estou pobre, mas
não mudei de idéia e perseverarei na mesma, se o Senhor me
permitir, até a morte." [8]
Seus esforços resultaram na fundação, por Jaime II, de um
colégio em Miramar, em 1276, onde os missionários cristãos
podiam enfronhar-se nos mistérios da língua árabe. Não se sabe a
duração do Colégio de Miramar. Especialistas especulam que a
crise espiritual sofrida pelo filósofo em 1293 foi devida ao
fechamento do Colégio. De qualquer forma, a partir de então, aos
sessenta anos, Llull fez viagens à África e Ásia para pregar
(esteve na Berberia, Tartária, Abissínia, Chipre e Rodes -
sede internacional da Ordem do Hospital desde 1308).
Pregou ainda na Universidade de Paris e no Concílio de Vienne (no
Delphinado, na França) de 1311 - 1312, onde foi decidida
a supressão da Ordem do Templo. Morreu em 1315, apedrejado
até a morte por muçulmanos em Bougie (norte da África) [9].
Mais tarde, difundiu-se uma lenda que dizia que teria expirado numa
barca de mercadores catalães que o haviam pegado em Túnis para
reconduzi-lo à terra natal. A lenda também propagou sua imagem como
a de um alquimista e mago, o que não se confirma com o estudo de suas
obras[10].
Ramón Llull foi um escritor prolífico. Sobreviveram quase
trezentas de suas obras; poesia, misticismo, filosofia e
teologia[11]. Boa parte de seus escritos do final de sua vida
inserem-se dentro da perspectiva da ideologia cruzadística cristã
(Liber de fine, 1305 e Liber de acquisitione terrae sanctae,
1309) e suas conexões com o maravilhoso (Libre des meravelles -
ca. 1288) [12].
No entanto, a filosofia luliana num todo é realista,
não-aristotélica (por esse motivo aproveitada no Renascimento) e
progressista - por exemplo, Llull foi um pioneiro na tentativa de
organizar um sistema de arbitragem nas discussões
internacionais[13]. Em sua época, alguns filósofos (Duns
Scott, Guilherme de Ockham e os averroístas) tentavam libertar-se
dos estreitos vínculos da metafísica e da teologia. Llull colocou
não só a lógica, mas toda sua filosofia novamente a serviço da
religião.
Declarando-se imaginativo (phantasticus) e iluminado (doctor
iluminatus), Llull propagou um método apologético que deveria
difundir a conversão dos infiéis[14]. Sua obra mais famosa,
Ars Generalis sive Magnis (1308), descreve como estabelecer a
verdade essencial[15]. Dessa forma, Llull considerava-se um
procurador dos infiéis. Sua arte deveria ser um instrumento
argumentativo de conversão para judeus e muçulmanos[16].
Podemos dividir seu pensamento nesta questão em duas fases. Na
primeira, que compreende quase toda sua vida, Llull defendia a
evangelização dos infiéis através do amor e do diálogo. Uma
realização da inteligência a partir dos homens cultos de outras
religiões. A partir do século XIV, no fim de sua vida, o
fracasso do esforço missionário pacífico levou-o a defender o uso da
força[17]. Esta perspectiva se insere no quadro histórico
ibérico da época, de expansão e conquista militar cristã, fase
final da Reconquista. Logo, possui um espírito de cruzada ibérica
(tardio em relação ao resto da Europa), expansão ultramarina
(idéia que precede em quase um século as navegações portuguesas) e
sentido civilizacional cristão (que permeia toda sua obra).
No tratado Liber de fine (1305), preocupado com possíveis
fracassos militares na dispersão das forças cruzadas em várias
frentes de batalha, propôs que a cristandade concentrasse seus
efetivos na expulsão dos mouros de Granada e num bloqueio econômico e
militar ao Egito. No Liber de acquisitione terrae sanctae
(1309) retornou à pregação da cruzada, considerando a
viabilidade da tomada de Constantinopla simultaneamente a uma
operação contra Granada[18].
Em sua estratégia cruzadística, o papel desempenhado pelas ordens
militares era fundamental. A grande questão de seu tempo a respeito
das ordens foi a supressão do Templo decidida por Clemente V, e o
destino dos bens templários espalhados por toda Europa. Llull
sugeriu ao papa a fusão das ordens numa só, a exemplo de Pedro
Dubois[19]. Na idéia de um controle maior sobre as ordens,
também pensou numa espécie de "independência restrita" no
mediterråneo leste, área de maior atrito entre templários e
hospitalários, principalmente[20].
De qualquer forma, para Ramón Llull o papel dos monges guerreiros
era o de protagonista do teatro da guerra cruzada na Península. Os
atributos considerados por Llull essenciais para a consecução da
cruzada eram a caridade (caritas) e o poder (potestas)[21],
ambos intrinsecamente ligados à ideologia cruzadística
monástico-militar[22].
O conteúdo de sua Ars é, basicamente, a exposição deste método
argumentativo[23]. O sistema combinatório de que Llull faz uso
utiliza um simbolismo visual (esquemas, letras, cores, figuras
geométricas), em que foi dado um importante passo a caminho das
operações intelectuais baseadas num mecanicismo de fundo
matemático[24]. Além disso, Llull inaugurou o catalão
literário, fazendo um pioneiro uso do vernáculo romånico para seus
escritos[25]. Sua obra teve grande repercussão até meados dos
século XVIII, e o lulismo penetrou também em Portugal,
juntamente com outras correntes filosóficas, como o averroísmo e o
escotismo[26]. Registramos algumas obras de Llull na biblioteca
alcobacense, em letra gótica miúda do século XV, além de
referências no Leal Conselheiro de D. Duarte[27]. Todavia,
não teve o mesmo eco entre os filósofos[28].
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