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De modo diverso, o essencialismo acentua a importância da essência
no ente, e considera o ser -que os essencialistas denominam de
existência- como um mero estado da essência[8]. A essência, nessa
visão essencialista, seria o ser possível, e a existência, o ser
real, e o passo de um estado a outro realizar-se-ia de uma só vez,
por meio da causalidade eficiente extrínseca da criação. Já se
tornaram clássicas suas expressões essentia in potencia e essentia in
actu, que revelam a origem formalista do essencialismo. Com efeito,
o essencialismo encaixa-se na linha platônico-aviceniana que atribui
à essência a origem dos graus de ser que encontramos nos entes.
Essa desvirtuação do esse -que em si é um ato e por tanto um
princípio metafísico, causa eficiente intrínseca- realizada pelo
essencialismo, ao convertê-lo num resultado -o fato de ser real-
sem nenhuma influência na estrutura íntima de cada ente, torna
difícil a compreensão de muitos aspectos da metafísica. Para o tema
da moral, que é o que interessa nestas linhas, é suficiente dizer
que na perspectiva essencialista não se consegue compreender
adequadamente nem a operatividade do ente nem a essência do
conhecimento e de seu correlato, o amor.
Para demonstrar esta última afirmação, tenha-se em conta o
seguinte:
De onde a potência operativa receberia a atualidade para operar?
Como explicaria uma metafísica essencialista os atos dos entes?
Apenas se compreenderia a operação, se esta fosse semelhante a uma
nova essência posta na existência pela causalidade eficiente
extrínseca.
O essencialismo, ao atualizar a essência apenas "por fora", acaba
fragmentando a realidade do ente em partes que só consegue manter
articuladas pela causalidade eficiente extrínseca: Deus, que dá a
"existência" à essência e também aos atos das potências
operativas.
Com relação ao problema do conhecimento, o essencialismo, ao pôr a
realidade no domínio da essência, situa lá também a verdade.
Confere assim primazia à verdade sobre o ser; mas faz consistir a
verdade na objetividade e coerência dos conceitos apreendidos pelo
entendimento. Para o essencialismo -por mais que este insista em
afirmar que a verdade se baseia no ser- o ser do juízo é um ser
recebido da razão. Vê-se assim, de novo, a necessidade que o
essencialismo tem de apelar continuamente para a causalidade eficiente
extrínseca: se antes utilizava-se esta para explicar a composição
do ente real, agora, de novo, é a causalidade eficiente extrínseca
da razão que dá o "ser copulativo" ao juízo verdadeiro[9].
Esta postura conduz necessariamente a afirmar que o ente é ente por
ser verdadeiro, isto é -pois nessa opinião é a mesma coisa-, por
ser apto para ser entendido. Define-se assim o ente a partir do
conceito, que é dizer que se conhece o que as coisas são a partir de
sua verdade, quando o que ocorre de fato é que se conhece a verdade
quando conhecemos o que as coisas são[10].
Ora, essa concepção essencialista da verdade invalida o conhecimento
das coisas singulares pois este só é possível através dos
princípios, numericamente unos, das mesmas[11]. O conhecimento das
coisas singulares seria impossível se seus princípios fossem apenas
unos por espécie, e é justamente isto o que faz o essencialismo ao
dar primazia à verdade sobre o ser.
Isto posto, só resta um caminho para uma metafísica essencialista
explicar o conhecimento: a intuição.
Com relação ao tema que aqui nos interessa -o do conhecimento da
moralidade dos atos humanos, que são concretos e irrepetíveis- o
essencialismo, ao considerar a perfeição que impregna o ato moral
como algo sempre superior ao que pode ser dado na existência
empírica, se apresenta incapaz de captar o dever ser no ser. A lei
moral, no essencialismo, postula a harmonia do nosso agir com a nossa
essência, mas habita numa ordem ideal. E como para fazer o bem é
preciso conhecer essa lei moral, o essencialismo apela para uma suposta
-e impossível para o homem[12]- intuição intelectual[13].
Reencontra-se assim novamente a tendência essencialista a solucionar
os problemas através da causalidade eficiente extrínseca. Neste
caso, a tomar o pensamento por uma luz vinda de fora, de um mundo
puramente inteligível, de um Entendimento Puro e Separado. Mas,
como bem diz Gilson, então seria melhor dizer que este Entendimento
pensa em nós do que dizer que nós pensamos[14].
O essencialismo chega assim a um passo de dissolver o conceito de
moral, ou ao menos a reduzi-la à constituição pela inteligência
prática de uma norma objetiva mediante a qual se deverá ordenar toda a
atividade livre do homem. A fragmentação do homem que o
essencialismo implica, unida a esta concepção excessivamente
formalista da moral, faze com que não se dê a devida importância à
necessidade que o homem tem de retificar sua vontade e sua afetividade,
não apenas para ajustar seus atos à regra moral concreta, mas
sobretudo para conhecê-la, pois, para o homem as condutas lhe
parecem boas ou más segundo aquilo que ele é. Com dizia
Aristóteles, qualis unusquisque est, talis finis videtur ei.
Julgamos dos fins propostos segundo a nossa própria disposição
perante os mesmos.
Por isso, sem dúvida alguma, pretender fundamentar a moral numa
metafísica essencialista só poderá alimentar a cisão entre
pensamento e vida no homem, e, necessariamente, reduzir a moral a uma
casuística.
Além do mais, se a função da existência fosse apenas pôr a
essência fora do nada, movendo-a de um estado de pura possibilidade
para um estado de realidade, ela não poderia admitir graus e, por
conseguinte, só caberia pensar num aperfeiçoamento do ser pelo lado
da essência. Então, "tornar-se o que uma pessoa é" só poderia
ser interpretado como tornar-se mais homem.
O essencialismo vem sendo amplamente atacado pelos filósofos do ser
que, caracterizando positivamente a relação entre ato de ser e
essência, no ente, como uma relação de ato e potência, vão
demonstrando aos poucos as suas contradições.
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