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O lúdico, tão necessário para a vida e para a convivência humana,
adquire na teologia de Tomás um significado antropológico ainda mais
profundo. Ele se baseia especialmente em duas sentenças bíblicas,
que, na tradução de que ele dispõe, têm as seguintes
formulações:
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"Cum eo eram cuncta componens et delectabar per singulos dies ludens
coram eo omni tempore, ludens in orbe terrarum et deliciae meae esse
cum filiis hominum"
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(Com Ele estava eu, compondo tudo, e eu me deleitava em cada um dos
dias, brincando diante dEle o tempo todo, brincando no orbe da terra
e as minhas delícias são estar com os filhos dos homens)
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"Praecurre prior in domum tuam, et illuc advocare et illic lude, et
age conceptiones tuas"
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(Corre para tua casa, e lá recolhe-te e brinca e realiza tuas
concepções) [38] .
Para Tomás, o brincar é coisa séria. Para ele, é o próprio
Logos, o Verbum, o Filho, a Inteligência Criadora de Deus,
quem profere as palavras de Prov. 8, 30:
A própria Sabedoria fala em Prov. 8, 30 : “Com Ele estava
eu etc.. ”. E esse atributo encontra-se especialmente no Filho,
enquanto imagem de Deus invisível e por cuja Forma tudo foi formado
(...), pois como diz João I, 3: “Tudo foi criado por
Ele” [39] .
Nesses versículos encontram-se os fundamentos da criação divina e
da possibilidade de conhecimento humano da realidade. Antes de mais
nada, Tomás sabe que não é por acaso que o evangelho de João
emprega o vocábulo grego Logos (razão) para designar a segunda
pessoa da Santíssima Trindade: o Logos é não só imagem do Pai,
mas também princípio da Criação, que é, portanto, obra
inteligente de Deus: "estruturação por dentro", projeto, design
das formas da realidade, feito por Deus por meio de seu Verbo, o
Logos.
Assim, para Tomás, a criação é também um "falar" de Deus,
do Verbum [40] (razão, razão materializada em palavra): as
coisas criadas são, porque são pensadas e "proferidas" por Deus:
e por isso são cognoscíveis pela inteligência humana [41] .
Nesse sentido encontramos aquela feliz formulação do teólogo alemão
Romano Guardini, que afirma o "caráter verbal" (Wortcharakter)
de todas as coisas criadas. Ou, em sentença quase poética de
Tomás: "as criaturas são palavras". "Assim como a palavra
audível manifesta a palavra interior [42] , assim também a
criatura manifesta a concepção divina (...); as criaturas são
como palavras que manifestam o Verbo de Deus" (In Sent.I d.
27, 2, 2 ad 3).
Esse entender a Criação como pensamento de Deus, "fala" de
Deus, foi muito bem expresso em uma aguda sentença de Sartre (ainda
que para negá-la): "Não há natureza humana porque não há Deus
para a conceber [43] ". E, como vimos, essa mesma palabra -
conceptio - é essencial na interpretação de Tomás.
Como num brinquedo ou jogo, o Verbum compõe (componens) a
articulação intelectual das diversas partes e diversos momentos da
criação. Pois o ato criador de Deus não é um mero "dar o ser",
mas um "dar o ser" que é design, projeto intelectual do Verbo
[44] : “(Qualquer criatura...) Por ter uma certa forma e
espécie representa o Verbo, porque a obra procede da concepção de
quem a projetou” (I, 45,8).
A criação como “brinquedo de composição” liga-se também ao modo
como Tomás - seguindo, aliás, uma tradição patrística - encara
as três obras [45] dos seis dias [46] : criação
(propriamente dita, opus creatus, no primeiro dia); distinção
(opus distinctionis, no segundo e terceiro dias) e ornamento (opus
ornatus, quarto, quinto e sexto dias) [47] . Para ele,
seguindo Agostinho, as três obras do relato dos seis dias do início
da Bíblia são obra do Verbo [48] .
Tomás - como, aliás, toda a tradição medieval - tem um
extraordinário desembaraço em interpretar a Bíblia. As palavras
com que se abrem os livros sagrados “No princípio...” são
entendidas por ele pessoalmente - na pessoa do Verbo - e não
adverbialmente: “no começo”... Essa atitude dá-lhe, como
veremos, inesperadas possibilidades exegéticas. Comecemos, seguindo
sua análise - em Comentário às Sentenças I- do já tantas vezes
citado versículo de Provérbios: “Com Ele estava eu, compondo
tudo, e eu me deleitava em cada um dos dias, brincando diante dEle o
tempo todo...”
“Com Ele estava eu, compondo tudo” - O Verbo estava junto ao
Pai (em outro lugar, Tomás explica [49] que esse “Com Ele
estava eu, compondo tudo” significa que o Verbo estava com Ele
(Deus Pai) como princípio da Criação.
"Eu me deleitava", delectabar, compartilhando a glória do Pai.
"Delectabar, consors paternae gloriae" (In I Sent. d.2 q.1
a.5 ex).
"Brincando", ludens, a sabedoria de Deus cria brincando, pois é
próprio da sabedoria o ócio da contemplação, tal como se dá nas
atividades do brincar, que não se buscam por um fim que lhes é
extrínseco, mas pelo prazer que dão por si mesmas (In I Sent.
d.2 q.1 a.5 ex).
“Em cada um dos dias”. É precisamente quando comenta o “per
singulos dies”, “em cada um dos dias”, que o pensamento de Tomás
atinge sua máxima profundidade. Dia tem dois significados: 1) a
diversidade da obra do Verbo, conhecimento criador, que opera algo
novo em cada um dos dias da Criação, mas também: 2) o dia como
luz, luz conhecedora, inscrita na criatura, que “repassa” sua
luminosidade para o conhecimento do homem. Quanto a este último
sentido, lemos no Comentário a I Tim 6, 3: "Tudo o que é
conhecido chama-se luz. Mas qualquer ente é conhecido por seu ato,
sua forma: daí que o que o ente tem de ato, tem de luz (...) e o
que tem de ser, tem de luz" [50] .
Juntando os dois significados de “dia”, Tomás diz que o Verbo
fala “em cada um dos dias” por causa de suas diversas ações na obra
dos seis dias: a concepção das diversas “razões” das criaturas,
que de per si são trevas, mas em Deus são luz: “Per singulos
dies, quantum ad rationes creaturarum quae in Deo sunt lux, quamvis
creaturae in seipsis sint tenebrae” (In I Sent. d.2 q.1 a.5
ex).
Essa luz do design do Verbo embutida no ser da criatura (ou melhor:
que é o próprio ser da criatura!) é, como dizíamos, o que a
torna cognoscível para o intelecto humano. Assim não é descabido
que a inteligência humana tente captar também o senso lúdico do
Verbum. Na já citada I, q. 70 (da Summa), Tomás vai
associando a obra de ornamentação aos elementos mencionados na
Criação: no quarto dia são produzidas as luminárias, ornamento do
céu; no quinto, as aves e os peixes (que ornamentam o ar e a
água); e no sexto, os animais, para a terra.
Se bem que o pecado do homem afetou a criação irracional,
aventuremo-nos - neste breve parêntese - a adivinhar o senso lúdico
na criação dos animais, que ornamentam a terra. É o que faz
Guimarães Rosa em uma enigmática sentença de sua visita ao
Zoológico [51] : após contemplar toda a cômica variedade (“O
cômico no avestruz: tão cavalar e incozinhável...”; “O
macaco: homem desregulado. O homem: vice-versa; ou idem”; “O
dromedário apesar-de. O camelo além-de. A girafa,
sobretudo”), desfere a “adivinha”: “O macaco está para o homem
assim como o homem está para x”. Ao que poderíamos ajuntar: o
homem está para x assim como x para y...
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