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A morte, tão desejada por Lúlio desde a sua conversão,
alcançou-o entre dezembro de 1315 e março de 1316, por volta
dos oitenta e quatro anos. Alguns autores contam que morreu num
navio, de volta à sua amada ilha. Todavia, a única coisa que se
pode afirmar com certeza é que seu corpo está enterrado na igreja de
São Francisco, na cidade de Palma de Maiorca.
No século XV, quase duzentos anos depois, Lúlio começou a ser
considerado um mártir. Por volta de 1500, a fama de mártir
igualou-se à de sábio, mas sem eclipsá-la. Até o momento,
porém, não foi encontrado nenhum documento que testemunhasse uma
morte imediata, merecida ao defender a fé. Mateu Malferit, o
primeiro autor do século XV a escrever sobre o martírio de Lúlio,
parece ter confundido a sua última missão africana com a que teve
lugar em 1307 em Bugia, onde o nosso filósofo quase morreu
apedrejado.[14]
Tendo em conta que o martírio supõe sempre um ato da própria
vontade, pode-se realmente considerar Lúlio um mártir? Torna-se
mais fácil responder à essa pergunta, quando se leva em conta o que
diz S. Bernardo em seu sermão[15] sobre as três solenidades que
se seguem ao Natal: S. Estêvão, que morreu apedrejado; S.
João Evangelista, que foi exilado na ilha de Patmos e que, embora
não tenha sofrido crueldades no próprio corpo, tornou-se verdadeiro
mártir, e os Santos Inocentes, as crianças que Herodes mandou
matar.
S. Bernardo esclarece que cada um desses casos corresponde a uma
espécie de martírio: no de S. Estêvão, concorrem o ato e a
vontade; no do apóstolo S. João, apenas a vontade, ou seja, o
consentimento sem que se tenha consumado o martírio; e no dos
Inocentes, o ato sem a vontade. Acrescenta ainda que Estêvão é
mártir reconhecido como tal pelos homens; João, mártir aos olhos
dos anjos, que podem contemplar as secretas aspirações de sua alma.
E os Inocentes? Responde S. Bernardo: “São vossos mártires,
meu Deus, pois vossa graça lhes deu essa singular prerrogativa, cujo
mérito e razão nem os anjos nem os homens conseguem descobrir.”
A antropologia luliana enfatiza a unificação das capacidades
cognoscitivas e volitivas — a ponto de afirmar que o homem se constitui
por meio de um ato comum de suas potências —, concluindo ser tanto
mais perfeito um ato de conhecimento quanto mais se combinar com atos de
confiança e de amor à verdade conhecida. Lúlio fundamentou muito
bem a união entre pensamento e vida, e o fato de o homem pensar sempre
em conseqüência do que ele é, aparece com muita clareza nos seus
textos.
O martírio não é um ato isolado na vida da pessoa. No martírio,
o mártir nada mais faz que pôr em evidência um conhecimento e um amor
a uma verdade que já se encontram no íntimo da sua alma.
Conhecimento e amor que falam muito alto e que, no martírio, sem
necessidade de argumentações discursivas, revelam-se verdadeiros e
convincentes. Um conhecimento e um amor que deram sentido à vida e à
obra do mártir.
Portanto, se examinarmos à luz destas idéias a vida e obra de
Lúlio, sem dúvida alguma concluiremos que nosso mestre merece ser
incluído no segundo grupo de mártires de que fala S. Bernardo.
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