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A fim de caracterizar a significação filosófica de LÚLIO,
menciono seis aspectos:
As inovações de LÚLIO repousavam sobre uma nova concepção
metodológica. Ele procurava a Ars, a qual deveria possibilitar uma
nova versão unitária de todas as ciências - da lógica, passando
pela retórica, até a jurisprudência e a medicina. Até então,
não tinha havido na Idade Média uma concepção científica tão
unitária e, simultaneamente, tão pragmática. LÚLIO queria uma
metodologia geral, uma via ad sciendum omnia [21] , que, de modo
fundamental, provasse e facilitasse todas as ciências. Além disso,
LÚLIO articulou um novo interesse no progresso; sua Ars,
enfatiza ele, em pouco tempo traria progressos, ampliaria nosso saber
ao infinito, tornaria "fácil" o que agora ainda parece "difícil"
[22] . O verdadeiro saber ou, até mesmo, a sua perfeição,
portanto, ainda não tinha sido alcançado, nem estava na posse dos
padres da igreja, mas representaria uma tarefa que, em curto tempo,
seria alcançável - esses pontos de vista constituíram uma ruptura
com a concepção clerical das ciências. Uma nova racionalidade,
quase mercantil, anuncia-se, antes de tudo, pela ênfase na
utilidade e perfectibilidade da nova Ars. "Novidade", para
LÚLIO, era uma recomendação, não mais uma objeção; sem
cessar acentua, antitradicionalmente, o "novo" de sua Ars.
LÚLIO procura uma filosofia fundamental que deveria ter seu lugar
antes da bifurcação da lógica e da metafísica. Na tradição
aristotélica, conceitos originários, ou "categorias", foram
tratados tanto na lógica quanto na metafísica. A vizinhança dessas
ciências permanece pouco clara, se bem que a "metafísica" também
se chamasse "primeira filosofia". A Ars de LÚLIO consistia na
unificação da lógica e da metafísica. Pretendia analisar
categorias, como a de "bondade" ou a de "ente", de modo mais
completo do que até então se fizera, e mais conseqüente no que diz
respeito a sua conexão interna. Os conceitos fundamentais de
"bondade", "ente", "um" foram, desde a antigüidade,
simultaneamente nomes de Deus. Assim os trata LÚLIO; salienta,
contudo, que seriam completamente conversíveis e constituiriam, a um
tempo, o conteúdo do conhecimento de Deus bem como o do conhecimento
do mundo e, além disso, seriam ao mesmo tempo as formas fundamentais
do conhecimento humano. Ou seja: nossa penetração compreensiva nos
nomes divinos revela-nos estruturas fundamentais do mundo e do
conhecimento humano. A lógica tradicional não queria ter nada que
ver com o Logos do mundo. Mas, dessa forma, a racionalidade do
mundo não poderia ser afirmada: as mesmas estruturas que, em Deus,
LÚLIO denomina "virtudes fundamentais" (dignitates), têm de
determinar a construção do mundo. A reforma da lógica que
LÚLIO empreende, para além de todas as diferenças históricas no
detalhe, redunda em que a lógica, como em Hegel, consistiria na
"apresentação de Deus tal como ele é em seu ser eterno, antes da
criação da natureza e de um espírito finito".[23]
Um aspecto especial da modernidade da Ars luliana reside na
matematização e mecanização das relações conceituais. LÚLIO
apresentou graficamente as relações das dignitates e também de outros
conceitos fundamentais; por exemplo, filosófico-naturais e
psicológicos, e inventou métodos para decidir sobre a verdade e a
falsidade de proposições, com auxílio de triångulos e quadrados
giratórios. Não o fez por mera brincadeira; via nisso um
instrumento para sua filosófica idéia missionária: a verdade da
Trindade e da Encarnação devia ser apresentada aos sarracenos com
auxílio de pequenas máquinas de pensar. Essa técnica não era
filosoficamente "neutra"; pressupunha a análise das dignitates e o
neoplatonismo a ela subjacente. Não se pode abstrair o novo
procedimento de LÚLIO desse contexto, aproximando-o
demasiadamente do moderno mundo da informática. Está fora de
questão que sua "calculatória" matematizava e operacionalizava
relações de pensamentos, embora tivesse caráter utilitário e já
não encontrasse mais aplicação nas obras do último período criativo
de LÚLIO. Não queria uma lógica puramente formal, mas material
= metafísica. Para sua calculatória, porém, criou uma linguagem
artificial, um sistema secundário de signos, no interior do qual se
devia proceder de modo puramente formal. LÚLIO excogitou figuras
móveis que, com razão, podem ser designadas como máquinas de
calcular e de pensar [24] . Em sua Dissertatio de arte
combinatoria, Leibniz partiu conscientemente de LÚLIO.
LÚLIO tematiza, sob nova forma, a relacionalidade da realidade.
A filosofia européia, desde ARISTÓTELES, tinha
interpretado a "relação" como sendo algo insignificante junto à
subståncia. Na doutrina especulativa da Trindade, contrariamente,
AGOSTINHO e João ERIÚGENA deixaram para trás essa
minimização da "relação". LÚLIO criou a doutrina dos assim
chamados "correlativos" e inventou uma terminologia pertinente a ela:
a bondade perfeita não é uma coisa estática, mas a unidade dos
seguintes três momentos: a essência, que é capaz de tornar o outro
bom - bonificativum; o outro (objeto), que pode ser tornado bom -
bonificabile; a união ativa de ambos os momentos - bonificare.
Nenhum momento pode ser pensado isoladamente, nem - para usar nossa
linguagem - o sujeito nem o objeto nem a ação. Nenhum momento é
secundário; isolando-os do contexto criam-se problemas insolúveis;
a filosofia torna-se, por sua própria culpa, "difícil". O
originário é a unidade. Não precisamos procurar transição
alguma; a transição é a realidade. A realidade é, em si,
essencialmente (não acidentalmente) relacional. Mas não devemos
atualizar essa teoria de LÚLIO: ela devia fornecer o lastro
comprovativo para a Trindade. Contudo, não devia possuir apenas uma
significação teológica interna. A memória, o entendimento e a
vontade deviam apresentar essa estrutura (como em
AGOSTINHO), mas também o conhecimento sensível. A
doutrina dos correlativos luliana consistiu, assim, em um novo olhar
sobre o mundo, não apenas em uma peça apologética de gabinete.
A Ars deveria conduzir à paz religiosa. Várias vezes, LÚLIO
elaborou literariamente o motivo do diálogo filosófico entre
religiões, fazendo falar os representantes de diferentes religiões
sobre a verdade de sua fé. Considerava a fanática autoconfiança dos
crentes o principal obstáculo ao entendimento. Esse motivo chegaria
ao mundo do humanismo e a LESSING por meio da obra De pace
fidei, de Nicolau de CUSA (1453). Mas, também aqui, nos
devemos proteger de modernizações: o "ecumenismo" de LÚLIO
consiste na argumentativa conversão dos outros a um cristianismo
conciliado com a razão. Nos últimos anos de vida, de fato,
LÚLIO falou em favor das cruzadas; advertindo apenas que, antes,
se deveriam fazer tentativas intelectuais de convencimento, por
intermédio de cristãos abnegados e isentos de violência, formados na
Ars e familiarizados com as línguas e livros dos não-cristãos.
Nessa medida, LÚLIO permanece um inovador e um pensador que
esperava da filosofia um proveito real e geral, ou seja, o
entendimento acerca da religião. Nesse entendimento, LÚLIO
queria demonstrar a verdade do cristianismo; queria tornar
compreensíveis, enquanto verdades racionais, a Trindade e a
Encarnação, doutrinas centrais do cristianismo. Queria uma
filosofia do cristianismo, o que, tanto segundo o ponto de vista dos
averroístas quanto do de Tomás de Aquino, era impossível. A
fé, para os averroístas, nada tinha que ver com a ciência; segundo
Tomás, a fé era suscetível de uma plausibilidade ulterior e uma
sistematização secundária, mas não admitia nenhuma prova.
Contudo, João ERIUGENA e ANSELMO de Canterbury, do
mesmo modo que LÚLIO, queriam fornecer provas estritas. A fé,
para eles, tinha uma prioridade psicológico-factual, mas não
argumentativa (lógica). É importante ver com que argumentos
LÚLIO pensava demonstrar os Mistérios que, segundo o ponto de
vista de outros, deviam ser indemonstráveis ou, mesmo, irracionais.
Os argumentos para a Trindade resultaram-se da doutrina dos
correlativos, mas não apenas dela; em todo caso, não em todos os
estágios da evolução de LÚLIO. Seu discurso proferido na
Tunísia, no outono de 1292, diante de eruditos
islåmicos,[25] nos fornece um primeiro lance de olhos sobre suas
razões probatórias.
Um sábio não aceita toda fé casual e autoritariamente transmitida,
mas apenas a que atribui à Deus a maior bondade, sabedoria, força,
verdade e perfeição. Aceitável é a fé que contenha o conceito
mais puro e rico de Deus.
Os atributos mencionados não têm apenas de ser atribuídos a Deus,
mas têm de ser pensados no modo mais conseqüente possível, como
objetivamente equivalentes: o bem de Deus não pode, portanto, de
nenhuma forma vir a ser representado, por exemplo, sem sua força ou
sem sua sabedoria. Todos os atributos devem ser pensados em plena
concordåncia (concordia).
Todo atributo deve ser pensado em seus três momentos essencialmente
necessários, ou seja, a bondade como a unidade de bonificativum -
bonificabile - bonificare. LÚLIO exprime-se assim: nenhum
desses atributos pode vir a ser pensado como otiose, ocioso,
gratuito, vazio [26] ; se assim se fizesse, resultaria uma
desigualdade, uma desarmonia entre eles. Na realidade, Deus tem de
ser assim, como o pensamento conseqüente o postula. A Trindade
significa que a deidade realiza, eternamente e em plena igualdade,
esses momentos interiores.
Mais notável é o argumento de LÚLIO para a Encarnação: entre
o fundamento do mundo (Deus) e o fundamentado (mundo) tem de
existir a máxima união possível. Verdadeira é a religião que não
abandone criador e criatura, dualisticamente, frente a frente, mas
que conceba Deus também como a união desses opostos. A
Encarnação é a suprema união da causa com o efeito; somente ela
completa, como terceiro passo, o que a criação do mundo começa.
LÚLIO, então, teve de atribuir ao homem um papel determinante
para o universo e para a relação de Deus com o mundo. Se Deus não
se tivesse tornado homem, não realizaria o mais perfeito, mais rico
conceito de Deus. Deus "tinha" de vir a ser homem, se é que o
mundo devesse caminhar, em supremo grau, de modo razoável. A
Encarnação é racional, segundo LÚLIO, porque Deus não se
decidiu por ela por acaso - por exemplo, para reparar os pecados -,
mas, se cabe exprimir-se assim, para expressar, tão harmoniosamente
quanto possível, sua própria natureza correlativa. O fato de Deus
tornar-se homem é, segundo LÚLIO, nesse sentido, uma
correspondência "racional em supremo grau" de fundamento e
fundamentado, uma enorme promoção do homem. Por meio da
Encarnação, ele vem a ser o cumprimento do sentido da constituição
do mundo, a consumação da natureza interior da deidade ou, decerto,
dos sinais dessa completude; na dicção de LÚLIO: Est ergo
incarnatio, in qua natura humana est maximata et plenissimata,
existens signum maximitatis et plenissimitatis naturae divinae
[27] .
Recentemente, passou-se a acentuar o aspecto religioso, o teológico
e, também freqüentemente, o aspecto místico de LÚLIO. Com
isso, ignora-se com freqüência sua nova consciência metodológica e
o interesse pelo empírico, pela reforma da filosofia e das ciências.
Considera-se sua polêmica contra ARISTÓTELES e
AVERRÓIS uma decisão teológica, enquanto, de fato,
LÚLIO censurava em ARISTÓTELES uma falta do
intellectus, a qual se via na obrigação de demonstrar [28] .
Ignora-se seu novo conceito de natureza: segundo ele, a natureza é
uma penetração recíproca dos "princípios relativos"
diferença - concordåncia - contrariedade
origem (principium) - meio - fim (finis)
ser-maior (maioritas) - igualdade (aequalitas) - ser-menor
(minoritas).
Natureza como sobreposição ou penetração gradativa da trama de
relações.
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