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O simbolismo da Roda da Fortuna na arte medieval pode ser explicado
através da iluminura do Hortus Deliciarum[1], com seus quatro
estágios simbolizados pelos quatro personagens em torno da Roda:
regnabo (“eu devo reinar”: figura em cima, do lado esquerdo da
Roda, com o braço direito erguido), regno (“eu reino”: figura
em cima da roda, freqüentemente coroada, para significar o
reinado), reganvi (“eu reinei”: figura que está do lado direito
da roda, caindo da graça), sum sine regno (“eu não tenho
reino”: figura na base da roda que perdeu completamente os favores da
Fortuna. Esta pessoa é as vezes completamente jogada da roda ou
esmagada por esta, sem nenhuma chance de reinar de novo)[2].
Vista pelos antigos como deusa do acaso, a Roda da Fortuna na Idade
Média representava tanto a Roda da Vida, que elevava o homem até o
alto antes de deixá-lo cair de novo, como a Roda do Acaso, que
não parava nunca de rodar e indicava a mudança perpétua que
caracteriza a natureza humana[3].
Num mundo inseguro como o da Idade Média, onde os homens viviam em
constante perigo, com medo dos vivos e dos mortos, acreditava-se que
o destino dos homens, mesmo o dos reis e imperadores, era determinado
pela Fortuna. O termo parece ser uma evolução de duas diferentes
deusas antigas, provindas da cultura greco-romana, Fors (“a que
traz”, relacionada ao conceito de providência) e Fortuna (ligada
à fertilidade, à agricultura e às mulheres). Esta última tinha
traços similares à Tyche, deusa grega associada ao acaso e à
sorte. Em algum momento, a distinção entre Fors e Fortuna
diminuiu com a criação de uma única deusa, Fors (Fortuna),
herdando as noções de sorte, destino e acaso de suas predecessoras.
Existiam pelo menos três templos dedicados à deusa Fors em Roma e
um festival lhe era dedicado em 24 de junho[4]. Ela era
apresentada freqüentemente segurando uma cornucópia e um timão,
sobre uma esfera ou uma roda, e simbolizava seu poder sobre a vida das
pessoas que consideravam possuir fortuna se tivessem sorte ou
infortúnio[5].
O melhor exemplo desta representação na Idade Média se encontra
justamente no período de vida de Ramon Llull
(1232-1316)[6], na coleção de canções germânicas
profanas denominada Carmina Burana[7], uma estimulante exaltação
à natureza em forma de fortes tons primários, que possui uma canção
a respeito da Fortuna.
A obra Carmina Burana transmitiu, por tradição, a obra do
Arquipoeta (†c.1165), um latino anônimo, provavelmente da
Renânia, que foi patrocinado pelo arcebispo de Colônia e chanceler
de Frederico Barba-Ruiva, Reinaldo de Dassel. Sua obra mais
famosa, Confessio, expressou os paradoxos e o brilho do renascimento
cultural do século XII, com sua confiança na razão e na
natureza. Nela sobressaem-se vigorosos impactos rítmicos. Em duas
canções (CB 16, CB 17) lamenta-se a pouca estabilidade da
Fortuna, que com seu sobe-e-desce traz alegrias e desgraças para os
homens:
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“O FORTUNA” (CB 17)
I
O Fortuna,
velut luna
statu variabilis,
semper crescis
aut decrescis;
vita detestabilis
nunc obdurat
et tunc curat
ludo mentis aciem,
egestatem,
potestatem
dissolvit ut glaciem.
II
Sors immanis
et inanis,
rota tu volubilis,
status malus,
vana salus
semper dissolubilis,
obumbrata
et velata
michi quoque niteris;
nunc per ludum
dorsum nudum
fero tui sceleris.
III
Sors salutis
et virtutis
michi nunc contraria,
est affectus
et defectus
semper in angaria.
Hac in hora
sine mora
corde pulsum tangite;
quod per sortem
sternit fortem,
mecum omnes plangite!
I
Ó Fortuna
tal a Lua,
uma forma variável!
Sempre enchendo
Ou encolhendo:
Ó que vida execrável!
Pouco duras,
Quando curas
De nossa mente as mazelas;
A pobreza,
A riqueza,
Tu derretes ou congelas.
II
Bruta sorte,
És de morte:
Tua roda é volúvel,
Benfazeja,
Malfazeja,
Toda sorte é dissolúvel.
Disfarçada
De boa fada,
Minha ruína sempre queres;
Simulando
Estar brincando,
Minhas costas nuas feres.
III
Gozar saúde,
Mostrar virtude:
Isto escapa a minha sina;
Opulento
Ou pulguento
O azar me arruína.
Chegou a hora,
Convém agora,
O alaúde dedilhar;
A pouca sorte
Do homem forte
Devemos todos lamentar.[8]
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Símbolo da mutação, das alternâncias da vida cotidiana, esta
imagem percorreu toda a Idade Média, que a recebeu como herança de
Boécio[9]. Este paper trata da imagem da Fortuna em Boécio,
na obra Consolatio Philosophiae, e de como Ramon Llull utiliza esta
metáfora para criticar os novos valores sociais dos burgueses citadinos
do século XIII.
O tema da Fortuna percorre toda a Consolatio Philosophiae (524)
— depois da Bíblia e da Regra de São Bento, a obra mais lida na
Idade Média. As circunstâncias da redação da obra explicam o
destaque dado ao tema, pois Boécio a escreveu na prisão, após ter
caído em desgraça e sido preso por motivos políticos. Na época, a
Itália era governada pelo rei godo Teodorico, que era
ariano[10], que, num primeiro momento, desejou demonstrar
tolerância religiosa com os católicos, nomeando elementos da
aristocracia romana, como Boécio, para cargos no governo. Porém,
mais tarde, Boécio defendeu publicamente Albino, um senador romano
acusado de conspirar com Bizâncio contra o rei godo, e foi tido
também por traidor. Desde 522 Mestre de Ofícios de Teodorico,
Boécio foi então preso (524) e levado de Ravena para Pavia.
Para Teodorico, este era um sinal que a aristocracia romana o estava
traindo. Com um sádico requinte de crueldade, Teodorico determinou
que os juízes do processo de Boécio fossem os mesmos senadores
romanos que haviam sido fiadores em sua defesa de Albino[11].
A Consolatio, genial diálogo em forma socrática, mostra-se ainda
mais interessante pelas circunstâncias de sua redação, pois foi
escrita entre uma sessão e outra de tortura, quando uma correia de
couro era apertada em torno do crânio do filósofo, fazendo saltar os
globos oculares das órbitas, fato registrado numa crônica anônima de
Ravena — e confirmado pela Historia Secreta de Procópio[12].
No texto de Boécio, o próprio autor também menciona os efeitos
da tortura, como por exemplo uma perda passageira da memória[13].
Graças às visitas de seu sogro Símaco[14], conseguiu fazer
chegar o original à posteridade.
Na Consolatio, Boécio conversa com a Filosofia, e lamenta a sua
sorte, mostrando-lhe durante boa parte do diálogo, a malévola e
enganosa Fortuna[15], que trata cruelmente os homens, sem se
importar com as acusações a um inocente[16]. Por causa dela, os
homens erram em seus julgamentos, pois, ao invés de analisar os
méritos das ações passadas, só vêem os caprichos da Fortuna e
acreditam que esse é o desejo natural dos acontecimentos:
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Mas gostaria apenas de dizer que o fardo mais pesado com que a Fortuna
possa afligir alguém é este: que as olhos do povo estaja sendo
justamente castigado quem na verdade é inocente[17].
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No entanto, a Filosofia repreende Boécio:
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Pensas que a Fortuna mudou a teu respeito? Enganas-te. Ela sempre
tem os mesmos procedimentos e o mesmo caráter. E, quanto a ti, ela
permanece fiel em sua inconstância. Ela era a mesma quando te
lisonjeava, ou quando fazia de ti seu joguete prometendo-te miragens
[...] seus jogos são funestos [...] e é precisamente essa
faculdade de passar de um extremo ao outro que caracteriza a Fortuna
que deve fazer com que a desprezemos, sem temê-la ou
desejá-la[18].
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A Filosofia então se coloca no papel da Fortuna para que Boécio
compreenda melhor sua sorte. Neste momento, o autor se vale da
metáfora da Roda para explicar o sentido do movimento da Fortuna:
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E quanto a mim, é o desejo sempre insatisfeito dos homens que
pretende me obrigar a fazer prova de uma constância incompatível com
minha própria natureza! Minha natureza, o jogo interminável que
jogo é este: virar a Roda [da Fortuna] incessantemente, ter
prazer em fazer descer o que está no alto e erguer o que está
embaixo: Sobe se tiveres vontade, mas com uma condição: que não
consideres injusto descer, quando assim ditares as regras do jogo.
Ignoravas mesmo a minha maneira de agir?[19]
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Por esse motivo, a Fortuna propicia aos homens um jogo, um grande
espetáculo[20]. Pois esse é o sentido da vida, um teatro, o
teatro da vida[21]. Vive-se uma grande peça, onde se
desenvolvem tumultuadas e violentas relações pessoais que perpassavam
a prática social.
Esta visão de mundo foi igualmente recuperada na Idade Média. Por
exemplo, a arte de Brueghel (1525?-1569) retratou a
cultura rural medieval e, especialmente, o sentido da teatralidade da
existência humana: a vida se desenvolve em diferentes cenários, onde
diversos personagens atuam seus múltiplos papéis
existenciais[22]. Trata-se de um testemunho que une o real, o
fantástico, o cotidiano vivido e o imaginário temido. Um depoimento
angustiado, mórbido, dilacerante, pessimista. Um famoso cartaz da
época anunciava o teatro do mundo: “Theatrvm orbis terracvm”.
Pois todos atuam num cenário e giram como os rádios de uma roda.
Sempre foi assim e a roda seguirá girando eternamente[23].
Esse prisma via a vida como um ritual, cheio de significação
teológica, mística e carismática. Essa espécie de encenação
comandava o real através do imaginário: é o que Georges Balandier
chamou de teatrocracia, o conjunto de todas as manifestações da
existência social, o tribunal teatral[24]. A Roda da Fortuna
apenas ressaltava este tipo específico de farsa que organizava os
poderes constitutivos e as ações sociais.
Por esses motivos, a Filosofia de Boécio afirma que os homens não
devem procurar nada na Fortuna, pois não há nada nela que mereça
ser procurado. Não há nada nela que seja intrinsecamente bom, já
que ela beneficia pessoas más e não é capaz de tornar bom aquele que
a ela se associa[25].
Em contrapartida, a Filosofia mostra a Boécio que a Fortuna é
benéfica aos seres humanos, pois esclarece a eles quando se desmascara
e mostra seus métodos de ação. Ela possui, assim, duas faces:
uma, sedutora e atraente, caprichosa e flutuante, quando mente com
sua aparência de felicidade; outra, comedida e sincera, pois mostra
os verdadeiros amigos, distinguindo a franqueza da hipocrisia.
Assim, a Fortuna comporta uma parte de bem e uma parte de
mal[26]. Uma engana, a outra instrui[27]. Pois a amizade é
o tesouro mais sagrado que existe, pois os amigos são dados pela
virtude e não pela Fortuna[28].
Apesar do momento adverso pelo qual estava passando, o autor, ao
longo da obra, mostrou possuir uma visão positiva acerca do universo:
o mundo caminha para o bem e aqueles que estão desprovidos da Fortuna
fugaz deste mundo (luxo, riquezas, poder) estão livres se
mantiverem-se bons e virtuosos. Desta forma, toda a injustiça
sofrida por Boécio é atenuada pelo sentimento de que atingirá o
verdadeiro bem (Deus) na eternidade[29]. Boécio também
explica porque motivo a Fortuna é inconstante. Como o desejo pela
boa fortuna avilta os homens, a Providência Divina envia males,
misturados com bens, para que os bons não se corrompam ou para
reforçar as virtudes[30]. Aos maus é deixado o livre-arbítrio
para escolherem o bem, graças ao poder que muitas vezes possuem em
suas mãos (como por exemplo, o rei Teodorico), mas se persistirem
no mal serão mais tarde punidos pelo Juiz Supremo, Deus, por toda
a eternidade.
Veremos agora como a Fortuna se apresenta na obra do filósofo Ramon
Llull e de como se aproxima do pensamento de Boécio.
Na sua Ars, na hora de fazer aplicações, Ramon Llull define cem
formas abstratas, que ele chama generalíssimas. Na forma 61,
Ramon trata da fortuna e do afortunado:
A fortuna é acidente, e por isso encontra-se fora da segunda
espécie da regra C. E é um hábito, com o qual a pessoa afortunada
se dispõe acidentalmente para aquela boa fortuna; como o caminhante
que, indo em peregrinação, encontra ouro ao acaso. A própria
fortuna é, sem dúvida, pela segunda espécie da regra D; e tem ser
no sujeito no qual se encontra, pela quarta espécie da regra C. E
é o que é pela terceira espécie da regra D; e encontra-se fora do
princípio, do meio e do fim, da concordância e da contrariedade.
Não se encontra, contudo, fora da menoridade e maioridade. E neste
passo, o entendimento conhece que a fortuna tem pouco de “ser”
enquanto a consideramos em si mesma, mas tem muito “ser” enquanto a
consideramos em relação ao afortunado[31].
Para Ramon, a fortuna é um acidente, portanto não é substância.
Em seu sistema de pensamento, Llull faz dez perguntas para saber de
modo completo o que são as coisas. Ele chama estas perguntas de
regras. Na segunda regra, chamada de C, pergunta sobre a essência
das coisas. Por sua vez, esta questão desdobra-se em quatro
espécies. Na segunda espécie, Ramon se pergunta o que a coisa tem
em si mesma essencialmente e naturalmente, coisa sem a qual não
poderia ser. Aí então encontra-se a fortuna. Como ela é
acidental no sujeito, encontra-se então fora da segunda espécie da
regra C. A fortuna para Ramon é um hábito, hábito esse com o
qual a pessoa afortunada se dispõe acidentalmente para aquela boa
fortuna.
O exemplo que Ramon dá é o do peregrino, que em sua caminhada
encontra ouro. Então afirma que a fortuna é pela segunda espécie da
regra D. Enquanto a regra C pergunta sobre a essência das coisas,
a regra D pergunta pela materialidade da coisa. Desdobra-se em três
espécies; a segunda espécie pergunta “de que é algo feito ou
constituído?”. Por exemplo, o prego é constituído de ferro e o
homem de corpo e alma.
De que então é constituída a materialidade da fortuna? Ramon passa
por essa questão, relacionando o sujeito à quarta espécie da regra
C — que pergunta pelo “que tem uma coisa na outra” (por exemplo, o
entendimento, no objeto que contempla, se pode ter pecado).
Por esta quarta espécie da regra C vê-se que a fortuna está no
sujeito que tem a sorte de tê-la. Ela está no sujeito sem que ele
queira, por isso ele é pessoa afortunada. A terceira espécie da
regra D pergunta “de quem é?” a coisa, como por exemplo, “o
reino é do rei?”, ou “o acidente é da substância?”. No caso
da fortuna, esta não existiria sem a pessoa afortunada, pois, para
Ramon, ela não existe em si mesma.
Neste aspecto, Ramon não se vale da fortuna em si; pelo
contrário, transfere o centro da atenção para a pessoa afortunada:
é nela que o filósofo encontra o principio, meio, fim, a
concordância e a contrariedade. Na fortuna, Ramon vê os
princípios relativos da maioridade e menoridade. Existiriam então
fortunas maiores e menores[32].
Esta explicação de Llull nos parece ligada à noção corrente
acerca da Fortuna que provinha da Antigüidade e que Boécio mostra
na Consolatio como algo inconstante, fugaz e incontrolável aos
humanos.
Num outro exemplo, o filósofo catalão compara a Roda da Fortuna
aos grupos sociais da época, especialmente aos usurários, a quem
critica. Tal como Boécio, mostra que as glórias deste mundo são
fugazes e que o burguês que peca pela avareza e pela cobiça do lucro
será mais tarde punido por Deus. Na Doctrina Pueril
(1274-1276)[33] — uma das primeiras obras pedagógicas
na Idade Média em língua vulgar e um dos primeiros livros escritos
para as crianças[34] — Ramon usa a metáfora da Roda da Fortuna
para mostrar que os homens se movem em seus diversos ofícios:
Assim como a roda que se move dando voltas, filho, os homens que
estão em seus mesteres acima ditos se movem [lavradores, ferreiros,
mercadores, sapateiros, etc.]. Logo, aqueles que estão no mais
baixo ofício em honramento, desejam subir a cada dia, tanto que
estejam no lugar da roda soberana, na qual estão os burgueses. E
porque a roda se vai a girar e a inclinar até abaixo, convém que
ofício de burguês caia abaixo[35].
Os homens que estão abaixo na Roda aspiram subir até o topo e por
isso a Roda se move[36]. Além de mostrar a intensa mobilidade
social da sociedade medieval de meados do século XIII, esta é,
sem dúvida, uma crítica do autor aos novos valores sociais dos
burgueses. Na Idade Média, burguês era o habitante da cidade
não-clérigo, não-nobre e não-estrangeiro, que exercia
determinadas atividades que lhe garantiam uma relativa independência,
estando ligado a duas categorias de citadinos, os maiores e mediocres,
de acordo com os textos da época[37].
É importante lembrar que a atividade mercantil era em princípio
condenada pela Igreja, que era contrária a toda atividade relacionada
ao empréstimo de dinheiro a juros (usura). Exemplos da Bíblia
convergiam para esta condenação, como no Levítico: “se o teu
irmão achar-se em dificuldade [...] não lhe emprestarás
dinheiro a juros, nem lhe darás alimento para receber usura
[...]”[38], e o Decreto de Graciano, obra eclesiástica do
século XII, afirmava que “O mercador nunca pode agradar a Deus
— ou dificilmente”.[39]
Para Ramon os burgueses são avaros. Citadinos, eles valorizam a
riqueza e a ambição pessoal em detrimento do senso de justiça e da
comunidade medieval. Jeffrey Richards já avaliou a crescente
mobilidade social que ocorria no ocidente medieval a partir do século
XII:
A avareza, subproduto do retorno a uma economia de dinheiro, se
manifestou através de um grande aumento do roubo e da simonia, de uma
hostilidade crescente contra os judeus e de uma preocupação tanto dos
pregadores quanto dos satiristas com o amor excessivo pelo dinheiro. A
ambição foi estimulada pela mobilidade social crescente, mais
notadamente pela ascensão de profissionais alfabetizados e
especializados em cálculo (advogados, administradores,
escreventes). No século XII, ela tornou-se, pela primeira
vez, um tema nos sermões dos pregadores[40].
Por esse motivo, o direito só deve existir para Llull porque falta
ao homem o amor a Deus, já que todo aquele que ama a Deus ama a
justiça[41]. Assim, a justiça luliana visava a proporção, a
cada um o que é seu de direito, e através dela o príncipe cumpriria
uma das finalidades de seu ofício. Na mundo terrestre, o príncipe
seria o responsável pela harmonia da sociedade, devendo cada
indivíduo voltar-se para as virtudes para aproximar a alma do bom
caminho a ser trilhado na outra vida.
Como vimos, para Ramon Llull e Boécio, o que importa é o mérito
pessoal do cristão no caminho para a sua salvação e não o apego aos
bens materiais, passageiros, inconstantes e pouco duráveis. Daí a
importância do exemplo da Roda da Fortuna, que mostra aos homens a
fugacidade do tempo terrestre em oposição ao tempo divino. A figura
do burguês na Doutrina Pueril está em consonância com o tirano de
Boécio: ambos preocupam-se com as falsas glórias da Fortuna
(luxo, bens, poder) ao invés de preocuparem-se com as verdadeiras
virtudes, os valores espirituais, como, por exemplo a bondade, que
aproximam os humanos de Deus, o verdadeiro bem. Embora não saibamos
com clareza se Ramon leu a obra de Boécio, a tradição desta
perpassou todo o período medieval, e parece-nos que para ambos os
autores, todas as falsas glórias do mundo terrestre serão um dia
julgadas pelo Juiz Supremo, e os que estavam no alto da Roda,
poderão cair ao inferno, ao passo que as almas dos bons viverão na
eterna bem-aventurança, ao lado de Deus.
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