DEUS LUDENS - O LÚDICO NO PENSAMENTO DE TOMÁS DE AQUINO E NA PEDAGOGIA MEDIEVAL [1]

L. Jean Lauand
jeanlaua@usp.br
Universidade de São Paulo

Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae

O brincar é necessário para (levar uma) a vida humana

Tomás de Aquino, Suma Teológica II-II,
168, 3, ad 3


I - Razões do Lúdico na Pedagogia Medieval

“No mercado de Olinda,
que é um mercado pobre,
há mais alegria do que em toda a Suíça!”

Julián Marías
Entr. a J. Lauand, in Videtur 8, 2000
http://www.hottopos.com/videtur8/entrevista.htm

Deus brinca. Deus cria, brincando. E o homem deve brincar para levar uma vida humana, como também é no brincar que encontra a razão mais profunda do mistério da realidade, que é porque é “brincada” por Deus. Bastaria enunciar essas teses - como veremos, fundamentalíssimas na filosofia do principal pensador medieval, Tomás de Aquino - para reparar imediatamente que entre os diferentes preconceitos que ainda há contra a Idade Média, um dos mais injustos é aquele que a concebe como uma época que teria ignorado (ou mesmo combatido...) - o riso e o brincar.

Naturalmente, não se trata só de Tomás de Aquino; a verdade é que o “homem da época” [2] é muito sensível ao lúdico, convive com o riso, e cultiva a piada e o brincar [3] . Tomás, por sua vez, situa o lúdico nos próprios fundamentos da realidade e no ato criador da Sabedoria divina.

Assim, diante do panegírico do brincar feito por Tomás - e diante da prática do lúdico em toda a educação medieval - torna-se difícil compreender como um erudito do porte de Umberto Eco [4] possa ter querido situar no centro da trama de seu O Nome da Rosa [5] , o impedimento “medieval” da leitura de um tratado de Aristóteles sobre o riso (e no romance S. Tomás é citado como autoridade respeitada não só pelo abade - p. 48 -, mas também pelo fanático bibliotecário Jorge - p. 158 - , para quem o riso é o pior dos males e está disposto a matar para obstruir o acesso a um livro de Aristóteles sobre o tema - pp. 529 e ss.) [6] . É difícil compreender o empenho de proibir essa leitura de Aristóteles, quando o próprio Aquinate - já solenemente canonizado antes de 1327, ano em que se dá a ação do romance - vai muito mais longe do que o Estagirita [7] no elogio do lúdico...

Antes de entrarmos em diálogo com a filosofia da educação de Tomás, apresentemos alguns significativos exemplos [8] do lúdico na Pedagogia Medieval: educadores e educadoras; monges e reis; os eruditos e o povo; na educação formal e informal, freqüentemente o lúdico está informando a prática educativa. Tal fato, afinal - ao contrário do preconceito que nos é imposto -, não é de estranhar: a própria decadência cultural, que marca, desde o início, a Idade Média encurta as distâncias - tão acentuadas em outras épocas (sobretudo no Renascimento) -, entre as culturas chamadas erudita e popular.

Assim, um primeiro fator que nos ajuda na compreensão dessa valorização medieval da cultura popular (e do lúdico...) está na própria situação em que surge a Idade Média: com a queda do Império Romano no Ocidente e a instalação dos reinos bárbaros, a cultura erudita sofreu um sério abalo. E é em função da valorização exclusiva da cultura erudita que são cunhadas as próprias expressões “Idade Média” e “Renascimento”, carregadas de valores e fruto da narcisista historiografia renascentista [9] . Em ambos os casos manifesta-se a auto-apreciação de uma época que pretende fazer “renascer” (ou, em alguns casos, imitar servilmente...) a erudição clássica depois de uma época "média" de mil anos. De fato, a Idade Média não tem, nem de longe, a erudição clássica; mas valoriza e fomenta a cultura popular. E é a partir do Renascimento, como faz notar Regine Pernoud, que encontramos até mesmo proibições legais da cultura popular: como as sentenças de 1542 do Parlamento, proibindo o teatro popular - de tradição medieval - precisamente por ser popular [10] .

A primeira característica essencial da Idade Média é - para tomar as clássicas expressões de Hegel [11] - diese Entzweiung, dies Gedoppelte, a dualidade bárbaro-romana. O bárbaro - ainda ontem não só analfabeto, mas ágrafo - instala-se hoje, triunfante, no espaço do extinto Império Romano no Ocidente...

É nessa situação - aparentemente desesperadora - que um dos mais geniais educadores de todos os tempos, Boécio, o “último romano e primeiro escolástico” (na consagrada fórmula de Martin Grabmann), cria seu projeto pedagógico - o único cabível para a Primeira Idade Média - que consiste em manter acesa uma pequena chama-piloto, apresentando aos novos povos traduções de precários resumos da ciência e da cultura clássicas. Esse projeto pode-se sintetizar na sentença do começo do livro II do Ars Geometrica: “Quamvis succincte tamen sunt dicta”, embora resumida e precariamente, aí estão traduzidos os fundamentos da cultura antiga... [12] .

Outros educadores (Cassiodoro, Beda, Isidoro, Alcuíno...) seguiram o paradigma boeciano - succincte tamen... - e, bem ou mal, a cultura antiga foi de algum modo preservada, até haver condições, no século XII, de um “renascimento” [13] .

Outro aspecto pouco lembrado e que guarda relação com o lúdico é o fato - específico da época - de a Idade Média ser, em diversos sentidos, jovem. A juventude e a velhice não se predicam só das pessoas singulares, mas também das épocas e regiões. Pieper faz notar [14] que a média de idade dos grandes autores da época - passe o trocadilho, estamos falando de lúdico - “a idade média na Idade Média”, está entre 20 e 30 anos: "Nada mais inexato do que imaginar monges de barba branca, afastados do mundo em sua cela, caligrafando sutis tratados em pergaminhos" (op. cit. p.71).

É também por esse caráter jovem dos novos povos que a Idade Média cultiva o lúdico. Embora referindo-se ao lúdico em sentido muito mais amplo de que o nosso brincar, cabe aqui a conclusão de Huizinga em seu clássico Homo Ludens: “À medida que uma civilização vai se tornando mais complexa e vai se ampliando e revestindo-se de formas mais variadas e que as técnicas de produção e a própria vida social vão se organizando de maneira mais perfeita, o velho solo cultural vai sendo gradualmente coberto por uma nova camada de idéias, sistemas de pensamento e conhecimento; doutrinas, regras e regulamentos; normas morais e convenções que perderam já toda e qualquer relação direta com o [lúdico] jogo [Spiel]” [15]