III.2. LUDUS E EDUCAÇÃO NA SUMA E NA ÉTICA

Na Suma Teológica, Tomás, sem a preocupação de glosar, trata do brincar mais livremente do que o faz no Comentário à Ética.

A afirmação central da valorização do brincar encontra-se no ad 3 do artigo 3 da q. 168 da II-II: Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae, o brincar é necessário para a vida humana (e para uma vida humana). A razão dessa afirmação (como sempre, o ser do homem) a encontraremos desenvolvida no artigo 2 (da mesma q. 168): Tomás afirma que assim como o homem precisa de repouso corporal para restabelecer-se pois, sendo suas forças físicas limitadas, não pode trabalhar continuamente; assim também precisa de repouso para a alma, o que é proporcionado pela brincadeira [32] .

Esta “re-creação” pelo brincar - e a afirmação de Tomás (ainda na q. 168) pode parecer surpreendente à primeira vista - é tanto mais necessária para o intelectual e para o contemplativo que são os que, por assim dizer, mais "desgastam" as forças da alma, arrancando-a do sensível. E "sendo os bens sensíveis conaturais ao homem" as atividades racionais mais requerem o brincar.

Daí decorrem importantes conseqüências para a Filosofia da Educação: o ensino não pode ser aborrecido e enfadonho: o fastidium é um grave obstáculo para a aprendizagem [33] .

Em outro lugar da Suma Teológica, no tratado sobre as paixões, Tomás -jogando com as palavras - analisa um interessante efeito da alegria e do prazer (delectatio) na atividade humana: o efeito que ele chama metaforicamente de dilatação (dilatatio): que amplia a capacidade de aprender tanto em sua dimensão intelectual quanto na da vontade (o que designaríamos hoje por motivação): delectatio/dilatatio, a deleitação produz uma dilatação essencial para a aprendizagem [34] . E, reciprocamente, a tristeza e o fastio produzem um estreitamento, um bloqueio, ou, para usar a metáfora de Tomás, um peso (aggravatio animi), também para a aprendizagem [35] . Por isso em II-II, 168, 2 ad 1, Tomás recomenda o uso didático de brincadeiras e piadas: para descanso dos ouvintes ou alunos.

Não é de estranhar, portanto, que, tratando do relacionamento humano, Tomás chegue - com um realismo prosaico - a afirmar a necessidade ética de um trato divertido e agradável, baseado no fato (empírico) tão simples de que: nullus potest per diem morari cum tristi, neque cum non delectabili [36] - ninguém agüenta um dia sequer com uma pessoa aborrecida e desagradável.

Daí que exista uma virtude do brincar: a eutrapelia. E há também vícios por excesso e por falta: as brincadeiras ofensivas e inadequadas, por um lado, e, por outro, a dureza e a incapacidade de brincar (também um pecado).

Basicamente as mesmas teses da Suma reaparecem no comentário de Tomás aos pontos da Ética a Nicômaco que Aristóteles dedica à virtude do brincar. O comentário do Aquinate é cerca de três vezes mais volumoso do que o original aristotélico (1127 b 30 - 1128 b 10) e segue passo a passo a tradução de que Tomás dispunha. Tal tradução, se bem que muito boa para os padrões da época, é obscura em certas passagens, como naquela em que se dá a própria interpretação da palavra eutrapelia. Aristóteles quando se vale do vocábulo eutrapelia está comparando essa virtude da alma à agilidade como qualidade do corpo: "o bem voltar-se" corporal, com flexibilidade e desembaraço. Já o significado que a tradução deu a eutrapelus, bene vertente, sugere a Tomás a errônea (mas feliz...) interpretação "aquele que bem converte", aquele que “converte” adequadamente em riso as incidências do quotidiano [37] . Também na Ética, Tomás retoma os temas do brincar como virtude e os pecados por excesso e por falta: “853 - Aqueles que não querem dizer algo engraçado e se irritam com os que o dizem, na medida em que assim se agastam, tornam-se como que duros e rústicos, não se deixando abrandar pelo prazer do brincar”.