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A segunda metade do século XX certamente ficará conhecida pelos
cultivadores da metafísica como a época em que, pela primeira vez na
história da filosofia, se começou a pensar no ser humano como
possuidor de um estatuto óntico diferenciado.
Karol Wojtila, em seu profundo estudo The Acting Person[1],
muito embora não tivesse a intenção de desenvolver uma concepção
metafísica completa do homem, mostra a pessoa humana sob uma
perspectiva bem particular: sua investigação centra-se na pessoa
humana enquanto se integra e manifesta a si mesma por meio da ação.
O leitor percebe uma clara tentativa de tratar a pessoa humana de forma
diferente de como o faz a metafísica clássica. Contudo, como se
explica na advertência final[2], este aspecto da integração da
pessoa na ação apenas nos aproxima a uma especial condição óntica
do homem, mas não a explica suficientemente; e conclui afirmando que
a visão do homem que se obtém após a leitura de sua obra parece
confirmar, suficientemente, que sua condição óntica não supera os
limites de sua contingência. Isto é, que o homem, ao fim e ao
cabo, é um ser. O futuro Papa, portanto, apenas anuncia um
estatuto óntico diferenciado do homem, mas não o define nem o
descreve.
Leonardo Polo também desenvolve o tema em sua antropologia
transcendental. Segundo esse autor, a essência do homem não é
intracósmica, não se assemelha à essência do universo[3], se
entendermos esta, segundo a tese aristotélica, como a unidade de
ordem realizada pelas substâncias que o compõem. Polo explica que o
universo como um todo obedece a uma ordem interna, a ordem da causa
final. Esse seria o sentido do telos aristotélico. Pois bem,
conforme a antropologia aristotélica, o homem é uma substância
natural, uma substância vivente, superior, é verdade, às outras
substâncias, mas que integra o cosmos junto com elas. A antropologia
do Estagirita pára por ai, e o homem resta um ente intracósmico.
Polo vai mais longe, ao afirmar que o homem não está unificado pelo
fim do universo, pela unidade de ordem do universo, negando-lhe, por
esse motivo, sua condição de ente intracósmico. "O homem pertence
ao universo? Não. A interpretação da antropologia como filosofia
segunda é rigorosamente a consideração do homem como ser
intracósmico, pertencente ao universo. Essa é uma convicção
grega, e nela encontra-se a ruptura entre a filosofia cristã e a
filosofia grega. A filosofia cristã pode assumir a filosofia grega,
mas o que lhe é muito difícil de aceitar é que o homem seja um ser
que se explique como pertencente ao universo. Por exemplo, a idéia
de que a alma humana é diretamente criada por Deus, tese da filosofia
medieval cristã, tira a alma do universo: porque, se tem de ser
diretamente criada por Deus, já não a podemos considerar incluída
na criação do universo."[4] O homem é superior ao universo,
explica Polo, porque é uma natureza que se dá a si própria a sua
perfeição. O que aperfeiçoa o universo é a causa final, que é
extrínseca às substâncias que o compõem. Porém, no caso do homem
não é assim. A perfeição do homem é intrínseca: o homem é uma
substância capaz de autoperfeição.
Por tratar-se de um ato de ser superior, portador de uma
transcendentalidade na qual o ser se converte com o entender e o amar
pessoal, Polo confere à essência humana um estatuto superior ao da
essência do universo. A essência humana, segundo ele, é aberta,
admitindo um crescimento irrestrito. Sempre pode ir além.
Surge, desse modo, uma nova ciência - a antropologia transcendental
- legalmente distinta da metafísica, porque seu objeto de estudo, a
pessoa humana, é um ser transcendentalmente diferente. A
antropologia transcendental não é uma ontologia regional, não estuda
o homem como um ente particular ao lado de todos os outros entes, mas
como exercendo um ato de ser todo especial, o ato de ser humano.
Talvez essa nova ciência defendida por Polo não chegue a se
concretizar, mas não resta dúvida que suas idéias abrem novos
caminhos e permitem posicionar devidamente muitos temas humanos. A
intelecção, o amor e a liberdade humanos ganham, nessa nova
perspectiva, a transcendentalidade que certamente lhes corresponde.
Enfim, surge um panorama completamente novo, diante do qual, como
diz Salvador Piá[5], é difícil ficar indiferente.
Foi precisamente a consideração dessas novas idéias que gerou o
presente artigo, mostrando que o filósofo maiorquino Raimundo Lúlio
foi também precursor nesses temas. Lúlio (1232-1316)
lutou toda a sua vida para tornar conhecido um novo método de ver a
realidade, um novo método de pensar -a sua Arte-, no qual o ser
humano também aparece sob um estatuto óntico diferenciado.
Estas breves linhas têm o objetivo de mostrar alguns pontos que
sinalizam qual era a concepção luliana do homem, baseando-se,
principalmente, em duas obras: o Libre de home [6]e o Libre de
Ànima racional[7]-além, obviamente, de considerar a metodologia
implícita na Ars generalis ultima[8]. Porém, antes será
necessário adentrar-se no conceito clássico de natureza, ver como o
filósofo maiorquino o utiliza e o aplica ao ser humano.
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