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Nós já examinamos, e voltaremos a fazê-lo mais adiante com mais
profundidade, a insistência com que o Novo Testamento fala a
respeito da fé, e de modo especial, as Epístolas de São Paulo,
a tal ponto que a muitos ele parece, embora erroneamente, não saber
falar de outra coisa:
diz São Paulo, e este é, de fato, um dos pontos centrais de seus
ensinamentos, incansavelmente repetido, sob muitas formas, centenas
de vezes em suas apenas catorze cartas.
Vez ou outra, porém, São Paulo nos lembra que a caridade é mais
importante do que a fé. Na maioria destas poucas vezes, em
comparação com o número das em que ele nos fala da fé, o faz de
passagem e apenas circunstancialmente. O número de vezes em que São
Paulo toca neste assunto da supremacia da caridade é assustadoramente
menor do que a quantidade incontável de ocasiões em que ele nos ensina
e insiste sobre a importância e o papel da fé.
Assim é que, na Epístola aos Gálatas, quase em seu final,
quando ele diz que
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"é do Espírito Santo
que aguardamos a esperança da justiça,
pela fé",
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repentinamente São Paulo se lembra de acrescentar que a fé de que
ele está falando, e da qual ele sempre está falando,
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"é a fé que opera pela caridade".
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No capítulo treze da Primeira Epístola aos Coríntios, que não
é o seu escrito mais importante, numa passagem bastante diversa do
estilo geral como São Paulo se expressa nas suas cartas, o
Apóstolo faz um grande elogio à caridade, e afirma que
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"se tivesse toda a fé,
até o ponto de transportar os montes,
mas não tivesse caridade,
não seria nada".
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No fim deste capítulo São Paulo redige uma conclusão que, para um
leitor que se estivesse efetivamente se esforçando em compreender seus
ensinamentos, não deixaria de surpreender. Em vez da Epístola
repetir que o
como sempre, de uma forma ou de outra, ele sempre faz, em vez disso
São Paulo diz o seguinte:
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"Agora, pois, permanecem",
(como coisas necessárias para todos),
"estas três coisas:
a fé, a esperança e a caridade.
A maior delas, porém,
é a caridade".
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Ora, pode-se perguntar e com razão: se a fé sem a caridade de nada
vale, se a caridade é maior do que a fé, por que São Paulo
insiste tanto na fé em vez de fazê-lo com a caridade? Por que ele
não diz que o justo vive do amor, em vez de dizer que o justo vive da
fé? Por que na Epístola aos Romanos, o mais importante dos
escritos de São Paulo, que examinaremos logo a seguir, ele mesmo
apresenta a fé como sendo o ponto central de seus ensinamentos, em vez
de fazê-lo com a caridade? Não havia declarado Jesus que a
caridade era o maior de todos os mandamentos? No entanto, São
Paulo parece se esquecer disso e, embora admita uma vez ou outra que a
caridade é maior do que a fé, parece na prática ensinar e
comportar-se como se estivesse ensinando o contrário.
Trata-se de uma questão delicadíssima, mas de cujo entendimento
depende inclusive uma maior facilidade para o progresso da vida
espiritual.
Na realidade, para os santos que alcançaram a plena estatura da
filiação divina, aquela vida inteiramente regida pelo Espírito
Santo através do dom de sabedoria, é mais correto dizer que eles
vivem do amor do que da fé. Mas não é assim que se inicia a vida
espiritual. A vida espiritual não se inicia sem a presença tanto da
fé, como da esperança e da caridade. Mas no início é a fé que
conduz a esperança e a caridade. Sem o solo fértil da fé, nem a
esperança nem a caridade podem crescer. Para que a caridade possa
crescer até habitar em nós como aquele fogo invisível que Jesus veio
acender sobre a terra, é preciso construir para ela uma casa para a
fé. Quando, depois de uma vida em que ela foi guiada pela fé, a
caridade tiver produzido toda uma floração de virtudes, às quais se
acrescentam a vida de oração, a reflexão e o estudo das Sagradas
Escrituras e da ciência que dela deriva, e a fé vai se tornando cada
vez mais constante e ficando sempre mais evidente que tal homem vive da
fé, aos poucos a relação entre a fé e a caridade começa a se
inverter. Até este momento era principalmente a fé que conduzia a
esperança e a caridade e por isso era necessário insistir muito sobre
a fé, tal como o faz São Paulo, embora a vida da alma proviesse
realmente mais da caridade do que da fé. Daqui para a frente,
porém, é a caridade que gradualmente passa a se tornar condutora da
fé a que está unida. Quando isto ocorre, anuncia-se aos poucos a
entrada no regime do dom de sabedoria; em vez da caridade alimentar-se
da fé, como vinha acontecendo até o momento, a caridade toma a
condução da fé e passa a introduzir a fé num modo superior de
vivência, aquilo que Jesus chamava de "a verdade", que, embora
não seja o próprio Deus, é a mais alta compreensão possível na
terra das coisas divinas. O homem já não vive propriamente da fé,
mas do amor e, através dele, da verdade, que é a própria fé
transportada, através do amor, a um plano superior de vivência.
Santo Agostinho toca magistralmente neste assunto no início de seu
Comentário ao Evangelho de São João, quando diz que há uma
passagem do Salmo 71 que se aplica ao Apóstolo São João, o
autor do Evangelho de que Agostinho está iniciando o comentário:
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"Recebam as montanhas
paz para o teu povo",
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diz o salmista,
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"e as colinas a justiça".
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São João Evangelista, diz Agostinho,
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"é uma daquelas montanhas
a respeito das quais foi escrito:
`Recebam as montanhas
paz para o teu povo,
e as colinas a justiça'.
As montanhas",
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continua Agostinho,
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"são as almas elevadas;
as colinas são as almas pequenas.
As montanhas recebem a paz
para que as colinas possam receber a justiça. O que é, porém,
a justiça que recebem as colinas?
É a fé,
pois o justo, diz a Escritura,
vive da fé.
As almas menores não receberiam a fé
se as maiores,
que são ditas serem as montanhas,
não fossem iluminadas pela própria Sabedoria,
para que pudessem levar às menores
aquilo de que são capazes de receber,
e assim viverem as colinas da fé,
porque as montanhas alcançam a paz".
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Mas as Epístolas de São Paulo, expressões do amor de caridade
que vivia no Apóstolo, não foram escritas, como o foi, por
exemplo, o Cântico dos Cânticos, para as montanhas, mas para as
colinas. São Paulo quer, através de suas cartas, que as colinas
cheguem a se transformar em montanhas. Para isso, porém, é preciso
que elas aprendam a viver da fé. Por isso é que ele insiste tanto
sobre a fé. Sem a profundidade da vivência da fé, a caridade não
pode crescer até atingir a vida do dom de sabedoria. São Paulo
deixou escapar isto em uma carta que ele escreveu não a uma
comunidade, mas a um seu amigo íntimo. Na Primeira Carta a
Timóteo ele afirma, logo no início, que tudo o que ele ensinou
sobre a fé tinha por fim fazer surgir a vida da caridade:
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"Recomendei-te, Timóteo,
que ficasses em Éfeso",
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escreve São Paulo,
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"para que admoestasses alguns
a que não ensinassem doutrinas diversas
do que nós mesmos ensinamos,
as quais servem mais para suscitar questões
do que para aquela edificação de Deus,
que se fundamenta sobre a fé.
Ora, o fim dos preceitos"
(que demos sobre a fé)
"é a caridade que nasce de um coração puro,
de uma boa consciência
e de uma fé sincera".
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