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No livro de Judite temos o exemplo de uma fé que não apenas se nos
mostra com as qualidades da firmeza e constância, mas que, além
disto, amadureceu pela experiência de sua própria vivência.
O livro nos conta uma história ocorrida pouco depois do retorno do
povo judeu do exílio da Babilônia. Sabemos disso porque, durante a
narrativa, um dos personagens, Aquior, diz a respeito dos judeus que
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"há poucos anos,
este povo foi levado cativo
para uma terra estranha
e há pouco tempo tornou-se a juntar
dos lugares para onde tinha sido disperso,
retomando a posse de suas montanhas,
assim como de Jerusalém,
onde tem o seu santuário".
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Percebe-se, no livro de Judite, a intenção de narrar uma
história cujos fatos são reais. Grande parte dos nomes das pessoas e
dos lugares, porém, são fictícios; alguns são tão claramente
impossíveis que o autor parece tê-los incluído propositalmente
apenas para deixar claro que, por algum motivo que nos é
desconhecido, quis ocultar os nomes verdadeiros.
A história de Judite se inicia quando Nabucodonosor, apresentado
como rei dos assírios reinando em Nínive, após vencer uma guerra
contra os medos, ensoberbeceu- se em seu coração e enviou o general
Holofernes para que
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"exterminasse todos os deuses da terra,
a fim de que só ele fosse chamado deus
pelas nações que fossem subjugadas
pelo poder de Holofernes".
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Na época em que ocorreram os fatos narrados no livro de Judite,
porém, Nabucodonosor, monarca nomeado em outros livros das Sagradas
Escrituras, já havia morrido há muito tempo; ele também não havia
sido rei dos assírios, mas dos babilônios, e a cidade de Nínive,
uma das maiores do mundo antigo, jazia em ruínas há pelo menos mais
de um século. Não foi, porém, por engano que o autor deste livro
nos apresentou este personagem impossível, porque qualquer judeu de
sua época que tivesse lido o livro, assim como qualquer pessoa de hoje
que tenha familiaridade com as Sagradas Escrituras, perceberia de
imediato a impossibilidade deste personagem tão claramente como hoje
qualquer brasileiro perceberia que Napoleão não poderia ser um
presidente do Brasil no século XX. Nabucodonosor, o suposto rei
dos assírios apresentado pelo livro de Judite, portanto, deve ser
algum poderoso rei persa que o autor, por algum motivo a nós
desconhecido, não quis identificar.
Os reis persas eram, nesta época, soberanos muito poderosos. Além
de dominarem todo o Oriente, foram o primeiro povo da história que
conseguiram derrotar e conquistar a civilização egípcia, que já
tinha, nesta época, três mil anos de existência, era uma das
principais potências do mundo antigo e estava situada em território
relativamente afastado e protegido das demais grandes potências da
época. Quando, portanto, o rei persa que o livro de Judite nos
apresenta como sendo Nabucodonosor enviou o general Holofernes para
que subjugasse todas as nações para que "só ele fosse chamado de
deus", não é motivo de espanto o terror que se apossou de todos os
povos:
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"Foi tão grande o medo que se apoderou
dos habitantes das cidades",
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diz o livro de Judite,
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"que as pessoas mais distantes,
à chegada de Holofernes,
saíam-lhe ao encontro
juntamente com os povos,
recebendo-o com coroas e com archotes,
dançando ao som dos tambores e das flautas.
Todavia, nem mesmo fazendo isto
puderam abrandar a ferocidade daquele coração,
porque este lhes destruía não apenas as suas cidades,
como também os seus bosques sagrados",
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isto é, os seus lugares de culto (Jd. 3, 9-12). Tal foi a
reação de todos os povos diante das tropas do rei persa. Qualquer
tentativa de defesa era manifestamente impossível; só lhes restava
ajoelharem-se diante do inimigo, beijarem-lhe os pés e esperarem que
não destruísse mais do que aquilo a que já se havia proposto.
Nenhum dos povos por onde passou o general Holofernes reagiu de
maneira diversa, tal era a evidência da superioridade do poder militar
dos persas.
Só a reação dos judeus foi diferente. Eles temiam, diz o livro de
Judite, que Holofernes fizesse à
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"cidade de Jerusalém
e ao templo do Senhor
o que havia feito às outras cidades
e aos seus templos".
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Tamanha era a convicção do povo judeu que o Deus de Israel era o
Deus verdadeiro que decidiram prepararem-se para uma guerra
impossível. Ao contrário de todas as nações, os judeus
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"ocuparam então os cumes dos montes,
cercaram as suas aldeias de muros
e fizeram provisões de trigo,
preparando-se para a guerra".
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O sumo sacerdote Eliaquim não era de opinião diversa. Ele
percorria as cidades de Israel exortando o povo à fé.
Recordava-lhes como exemplo a fé que havia animado Moisés,
dizendo-lhes:
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"Sabei que o Senhor ouvirá as vossas súplicas,
se permanecerdes constantes nos jejuns
e nas orações diante do Senhor.
Lembrai-vos de Moisés,
servo do Senhor, o qual,
não combatendo com ferro,
mas suplicando com santas orações,
destroçou Amalec,
que confiava na sua força, no seu poder, no seu exército,
nos seus escudos, nos seus carros e cavaleiros.
Assim sucederá a todos os inimigos de Israel,
se vós permanecerdes
nesta obra que começastes".
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Se esta atitude ainda é capaz de causar espanto para nós, homens de
hoje, tão distantes no tempo da realidade daqueles acontecimentos,
quanto mais não o terá sido para o próprio general Holofernes, ao
ouvir que um povo militarmente insignificante se preparava para resistir
ao seu exército. Ele admirou-se, dizem as Escrituras, e em
seguida
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"encheu-se de furor,
e inflamou-se com grande cólera".
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Não podia acreditar que um povo tão pequeno tivesse a ousadia de
pretender guerrear contra o seu exército.
continua a Escritura,
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"mandou suas tropas
marcharem contra Betúlia",
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uma cidade cujo nome provavelmente também é fictício, mas que
ocupava uma posição estratégica no caminho para Jerusalém.
Bastou, porém, que as tropas de Holofernes se aproximassem de
Betúlia,
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"cento e vinte mil combatentes a pé,
vinte e dois mil cavaleiros,
sem contar os homens aptos para a guerra
e toda a juventude que tinha levado,
à força, das províncias e das cidades",
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e a cercassem durante 20 dias para que ficasse claro que a fé dos
habitantes daquela cidade era do mesmo gênero daquela que animava São
Pedro antes do dia de Pentecostes. "Caminhando sobre as águas do
mar ao encontro de Jesus", diz o Evangelho de Mateus, "e
percebendo a força do vento, Pedro teve medo e começou a afundar.
Jesus então o repreendeu:
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`Homem de pouca fé,
por que duvidaste?'
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Esta fé, diz também Jesus,
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"é como uma semente
plantada em lugar pedregoso,
onde não há muita terra.
Logo nasce,
porque não tem profundidade de terra;
mas, saindo o Sol,
queima-se,
e porque não tem raíz,
seca.
Estes são aqueles
que ouvem a palavra
e logo a recebem com gosto;
mas eles não tem raízes.
Crêem durante algum tempo,
mas no momento da provação voltam atrás".
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Mt. 13, 5-6; 13, 20;
Lucas 8, 13
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Assim se mostrou ser a fé dos betulienses. Eles creram em Deus,
mas as raízes desta fé não foram suficientemente profundas. Vinte
dias depois de iniciado o cerco de Betúlia pelas tropas de
Holofernes, "que havia decidido vencê-los sem combate" (Jd.
7, 9),
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"esgotaram-se as cisternas
e os depósitos de água
para todos os moradores de Betúlia,
de maneira que não havia mais,
dentro da cidade,
com que matar a sede".
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Vinte dias antes Eliaquim lhes havia recordado que nenhuma força
humana é capaz de vencer aqueles que crêem no Senhor. "Deus
combaterá por vós", havia-lhes dito muito tempo antes Josué, e
"um só de vós porá em fuga mil homens dos inimigos", se
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"tiverdes um grandíssimo cuidado
em amar o Senhor vosso Deus,
em andar em todos os seus caminhos,
observar os seus mandamentos,
estar unidos a Ele,
e o servir de todo o coração
e de toda a vossa alma".
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Mas agora, diante do espectro da sede, ninguém via mais como isto
seria possível e nem acreditava mais nestas palavras. Ao contrário,
chamaram Ozias, o governador da cidade, e lhe disseram:
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"Deus seja o juiz entre nós e ti,
porque tu nos trouxeste estes males,
não querendo tratar a paz com os assírios.
Agora, pois, manda ajuntar
a todos os que há na cidade,
para que todos nos rendamos voluntariamente
ao exército de Holofernes".
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Ozias, o governador da cidade, também não estava mais certo se
naquela situação ainda se poderia confiar em Deus. Quando o povo,
já "cansado de clamores e de prantos" (Jd. 7, 22), ficou
alguns momentos em silêncio, Ozias aproveitou para propor-lhes uma
experiência:
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"Tende bom ânimo, irmãos,
e por estes cinco dias
esperemos a misericórdia do Senhor.
Talvez se aplaque a sua ira
e dê glória ao seu nome.
Mas se, passados estes cinco dias,
não nos vier socorro,
faremos o que vós dissestes".
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É visível, nestas passagens, que o livro de Judite quer tratar,
mais do que sobre a questão da natureza da fé, sobre a questão da
experiência da vida da fé, claramente evidenciada nas atitudes dos
betulienses. A fé dois betulienses era aquela fé sem raízes de que
Jesus fala na parábola do semeador, que como uma semente plantada em
lugares pedregosos, sobrevindo o calor causticante da provação,
queima e seca, porque não tem raízes. O livro de Judite quer nos
mostrar o contraste entre esta fé sem raízes, uma fé que se
desenvolveu muito rapidamente ou tão desatentamente que não teve tempo
ou atenção para fazer a experiência de si mesmo, e a fé de
Judite, que por ter provavelmente já longamente vivido da fé, não
apenas cria que Deus auxilia aqueles que o buscam, mas também havia
experimentado de que modo Deus faz isto. Não era o modo como os
betulienses esperavam que fosse.
A Escritura nos ensina que a providência divina ampara de um modo
especial aqueles que vivem da fé. Diz, de fato, o livro de
Provérbios:
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"Tem confiança no Senhor
de todo o teu coração,
e não te estribes
na tua prudência.
Pensa nEle
em todos os teus caminhos,
e Ele mesmo
dirigirá os teus passos".
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E também acrescenta o Eclesiástico:
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"Confia em Deus
e ele te protegerá;
ai, porém,
dos fracos de coração,
que não confiam em Deus,
e que por isso não serão
protegidos por Ele".
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Santo Tomás de Aquino, como se estivesse comentando estas
passagens, nos mostra nas Quaestiones Disputatae de Veritate que os
homens bons estão inseridos dentro de uma ordem da providência divina
que difere essencialmente do modo como se ordenam todos os demais
entes:
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"Tanto mais nobremente algo é colocado
sob a ordem da providência",
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diz Tomás de Aquino,
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"quanto mais próximo estiver
do primeiro princípio, que é Deus.
Entre todas as criaturas,
são as substâncias espirituais
as que mais se aproximam do primeiro princípio,
de onde que são ditas terem sido assinaladas
pela sua imagem,
e por isto obtiveram da divina providência
que não apenas sejam provistas,
mas também que provejam,
sendo esta a causa pela qual
as substâncias espirituais podem eleger os seus atos,
e não as demais criaturas,
que são somente provistas,
sem que possam prover.
Mas as criaturas às quais
a possibilidade de proverem foi comunicada
não são fins de suas providências,
mas se ordenam elas próprias a outros fins,
a saber, a Deus,
de onde que são ordenadas por Deus
na medida em que tomam da retidão divina
a retidão de sua providência.
A divina providência, portanto,
se estende aos homens de dois modos.
De um primeiro modo,
na medida em que eles próprios
são provistos por Deus.
De um segundo modo,
na medida em que eles próprios
se fazem providentes de seus atos.
Falhando, pois, ao proverem,
ou observando a retidão ao fazê-lo,
os homens são ditos bons ou maus.
Pelo fato de que são provistos por Deus,
a eles são oferecidos bens ou males;
e na medida em que eles de modo diverso
se acham no provirem,
de modos diversos também
são provistos por Deus.
Se observam a reta ordem ao proverem,
neles a divina providência observa uma reta ordem
condizente com a dignidade humana,
a saber, que nada a eles aconteça
que não se converta em bem para eles
e que tudo o que a eles provenha os promova ao bem,
segundo está escrito na Epístola aos Romanos:
`Todas as coisas cooperam para o bem
daqueles que amam a Deus'.
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Se, porém, ao proverem,
não observam a ordem que é condizente
com a criatura racional,
mas proveem segundo o modo dos animais brutos,
a divina providência os ordenará
segundo a ordem que compete aos animais brutos,
isto é, de tal maneira que as coisas
que neles são boas ou más
não se ordenem para o bem deles próprios,
mas para o bem dos outros,
segundo o que diz o Salmo 48:
`O homem,
estando em honra,
não compreendeu;
foi comparado aos jumentos ignorantes,
e tornou-se semelhante a eles'.
De tudo isto é evidente
que a providência divina governa os bons
de um modo mais alto do que os maus:
os maus, de fato,
na medida em que se retiram
de uma determinada ordem da providência,
não fazendo a vontade de Deus,
caem sob uma outra ordem,
isto é, sendo feito deles as divina vontade;
mas os bons quanto a ambas estas coisas
estão sob a reta ordem da providência".
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Quaest. Disputatae de Veritate
Quaestio 5, a.5, a.7
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Estas palavras de Santo Tomás de Aquino, e muitas outras de que
estão repletas os textos dos santos, via de regra provêm de pessoas
que têm a experiência do que dizem. São testemunhos de homens que
experimentaram, em grau maior ou menor, por terem vivido por longo
tempo a vida da fé, de que modo devem ser entendidas as palavras de
Jesus quando nos exortava a buscar em primeiro lugar o Reino de
Deus, prometendo-nos que tudo o resto nos seria acrescentado (Mt.
6, 33). A experiência mostra que, ao contrário do que parece
sugerir à primeira vista tal promessa, a provação não tarda a se
aproximar dos que crêem, conforme nos ensina o Eclesiástico:
diz o Eclesiástico,
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"quando entrares no serviço de Deus,
persevera firme na justiça e no temor,
e prepara a tua alma para a provação.
Humilha o teu coração e tem paciência,
inclina o teu ouvido
e recebe as palavras de sabedoria,
e não te apresses no tempo da prova,
porque no fogo se prova
o ouro e a prata,
e os homens amados por Deus
são provados no cadinho da humilhação".
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Ocorre, porém, que mais tarde, se é verdade que o homem busca em
primeiro lugar o reino de Deus, começa a ficar sempre mais claro que
as provações parecem vir propositalmente para poderem ser vencidas
através da virtude da fé e para que, vencendo-as justamente deste
modo, o homem possa aprender a viver ainda mais profundamente da fé.
É isto o que nos diz o livro da Sabedoria:
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"Foi a Sabedoria que conduziu
o homem justo por caminhos direitos,
lhe mostrou o Reino de Deus,
defendeu-o dos enganadores,
e meteu-o num duro combate,
para que vencesse,
e soubesse que,
de todas as coisas,
a mais poderosa é a Sabedoria".
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E também:
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"A criatura, servindo a ti,
seu Criador,
torna-se violenta
para atormentar os injustos,
e torna-se mais benigna para fazer o bem
àqueles que em ti confiam,
para que saibam os teus filhos,
a quem amaste, Senhor,
que não são os frutos naturais
que sustentam os homens,
mas que é a tua palavra que conserva
aqueles que crêem em ti".
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É por isso que o Eclesiástico, após ter pedido ao homem preparar a
"sua alma para a provação", acrescenta logo em seguida:
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"Vós,
os que temeis o Senhor,
amai-O,
e os vossos corações
serão iluminados".
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As Sagradas Escrituras estão repletas de exemplos concretos destes
ensinamentos.
Nos vinte primeiros capítulos do Êxodo elas nos narram como Deus
havia libertado os judeus do Egito com prodígios tão extraordinários
que eles praticamente nada tiveram que fazer senão admirar como Deus
tudo fazia e a tudo provia. Mas, depois que alcançaram a liberdade
através da passagem do Mar Vermelho, Deus pediu-lhes que
lutassem, em condições de evidente inferioridade, para conquistarem
a terra prometida. Esta conquista é a narrada no livro de Josué.
Comparando-se, porém, as narrativas de Êxodo e de Josué, vem
naturalmente a pergunta: que necessidade havia de se lutar? Deus que
havia feito tudo na libertação do Egito, uma nação muito mais
poderosa, não poderia fazê-lo novamente na conquista da terra
prometida, em vez de fazer passar o povo judeu pelo medo e pela
angústia de enfrentar inimigos mais poderosos do que ele? Mas se nos
lembrarmos das palavras que Josué nos deixou próximo ao término de
sua vida, teremos que concluir que isto não ocorria senão para dar
ocasião aos israelitas de aprenderem a viver da fé e a crescerem
nela.
Dentro da própria narrativa de Êxodo encontramos novamente exemplos
deste modo de agir da providência.
Quando os judeus estavam no cativeiro, Deus havia transformado as
águas dos rios do Egito em sangue (Ex. 7, 14- 25), para
que o Faraó libertasse o povo escolhido. Mas Faraó não cedeu.
Seguiu-se então a praga das rãs (Ex. 7, 26-29; 8, 1-
11), e Faraó novamente não cedeu. Seguiu-se a praga dos
mosquitos (Ex. 8, 12-15), e Faraó ainda não cedeu.
Quatro novas pragas mais adiante, e Faraó ainda não cedia, não
obstante os sinais evidentes que manifestavam a origem divina destes
prodígios. Deus então anunciou a Moisés a oitava praga, pela qual
as terras do Egito seriam infestadas, à sua ordem, por uma
extraordinária horda de gafanhotos. Moisés já antevia que Faraó
continuaria não cedendo e que se trata, portanto, de um esforço
aparentemente inútil. Mas era evidente também para Moisés que
Deus, que tinha o poder de realizar todos aqueles prodígios,
poderia, se o quisesse, dizer apenas uma só palavra e mudar o
coração de Faraó. Por que, então, não o fazia? É possível
que Moisés tenha feito esta pergunta, apenas em seu íntimo ou
diretamente para Deus. Se o fêz de fato, as Escrituras não o
dizem. Contudo, quando Deus anunciou a oitava praga, explicou
também a Moisés porque procedia daquele modo, como se Moisés o
tivesse perguntado ou como se o próprio Deus se estivesse antecipando
à pergunta. É claro que Deus poderia dizer uma só palavra e mudar o
coração de Faraó, mas, se procedia diversamente, Deus disse que
assim o fazia,
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"operando todos estes sinais,
para que tu, Moisés,
possas narrar a teu filho,
e ao filho do teu filho,
quão grandes coisas
o Senhor fêz entre os egípcios
e que prodígios operou no meio deles,
para que conheçais
que eu sou o Senhor".
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Para quem bastava dizer uma só palavra e com isto mudar o coração de
Faraó, anunciar uma oitava e devastadora praga depois das sete que
já se tinham mostrado inteiramente inúteis parecia uma atitude
incompreensível e até uma fonte de angústia e apreensão para o povo
judeu, o suposto beneficiário das mesmas. Mas Deus procedia assim
para o nosso bem; Ele queria ensinar-nos a, contemplando aqueles
prodígios, remontar a atenção de nossa alma para uma outra
realidade. Desejava, através daqueles eventos visíveis, que
aprendêssemos a conhecê-lo melhor e pudéssemos, através do
conhecimento da fé, nos aproximar dele. E é assim que Ele ainda
age, não apenas com o povo judeu ao ter saído do Egito, mas com
todos aqueles que se propõem a empreender a sua busca:
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"Se pudéssemos ver os fios sutis
com que a providência divina urde
a tela de nossa vida",
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diz uma irmãzinha missionária que quis ocultar-se no anonimato,
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"apoderar-se-iam de nós
sentimentos de gratidão e amor
para com nosso bom pai celestial e,
deixando nas suas mãos todo o cuidado
sobre o nosso futuro,
contentar-nos-íamos de ser
a pequena lançadeira
que doce e calmamente
desliza entre os fios da urdidura divina".
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Tal como Deus havia ensinado a Moisés, a experiência também
ensinou a esta irmãzinha que a providência lhe dispunha os
acontecimentos de sua vida para que, também através deles,
aprendesse a deixar de avaliar a realidade através das sugestões da
carne e passasse a contemplar com os olhos da alma outras realidades bem
mais profundas.
Nada disso, porém, haviam ainda aprendido os betulienses. Quiseram
confiar em Deus, mas ignoravam que Deus mais quereria, ao ver suas
boas disposições, aumentar-lhes a fé do que dar-lhes o descanso
que julgavam merecer. Por isto, quando Deus lhes respondeu de acordo
com a sua fé, não entenderam e se desesperaram. Não sabiam mais o
que fazer, pois não tinham tido verdadeira experiência destas
coisas. Eram marinheiros de primeira viagem, e logo na primeira
tinham se deparado com uma tempestade a enfrentar. Com o navio estava
tudo certo; o problema era a inexperiência da tripulação.
A sorte da cidade era que nela havia alguém que já vivia da fé há
muito tempo, uma senhora chamada Judite, viúva há três anos e
meio. Após a morte do marido, diz a Escritura,
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"no andar superior de sua casa
havia feito para si um quarto retirado,
no qual se conservava recolhida
junto com as suas criadas;
trazia um cilício sobre os seus rins,
jejuava todos os dias de sua vida,
exceto nos sábados,
nos primeiros dias de cada mês
e nas festas de Israel.
Era de belíssimo aspecto
e estimadíssima por todos,
porque tinha muito temor de Deus,
e não havia ninguém que dissesse dela
uma palavra de desfavor".
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Desta descrição depreende-se já estarmos diante de uma vida
seriamente dedicada a Deus desde a juventude. "Estimadíssima por
todos, sem que houvesse ninguém que dissesse dela uma palavra de
desfavor", mostra que a sua fé não era recente, por ter sido já
provada por muitos; "porque tinha muito temor de Deus" denota a
profundidade dos dons do Espírito Santo; o "quarto retirado" e a
prática do "jejum todos os dias de sua vida" são instrumentos
auxiliares de uma vida séria de oração, que é, conforme veremos,
o principal meio de se obter a fé. Uma pessoa assim, com certeza,
teria que reagir muito diversamente diante do cerco do general
Holofernes.
De fato, "tendo Judite sabido que o governador da cidade havia
prometido entregar a cidade dali a cinco dias" (Jd. 8, 9), caso
não viesse uma resposta de Deus, mandou chamar os anciãos de
Betúlia e lhes disse:
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"Que palavra é essa,
com a qual concordou Ozias,
de entregar a cidade aos assírios,
se dentro de cinco dias
não vos viesse socorro?
Quem sois vós,
que assim provocais o Senhor?
Não é esta uma palavra
que excite a sua misericórdia,
mas antes provoca a sua ira,
acende o seu furor.
Vós fixastes prazo à misericórdia do Senhor,
e ao vosso arbítrio lhe assinalastes o dia".
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Estas são palavras de quem certamente já havia experimentado que se
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"tiverdes fé como um grão de mostarda,
direis a este monte:
`Muda-te daqui para ali',
e ele se mudará,
e nada vos será impossível".
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Judite sabia o que era a fé, e conhecia a resposta de Deus à fé;
sabia que os judeus tinham entrado em luta contra Holofernes apenas com
a arma da fé; sabia também que o que os betulienses faziam agora não
provinha da fé, mas do abandono da fé. Estavam, pois,
inteiramente desprotegidos, sem a única defesa com que contavam.
continua Judite,
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"como vós sois os anciãos do povo de Deus,
e de vós depende a sua vida,
com vossas palavras animai os seus corações,
para que se lembrem que nossos pais
foram tentados a fim de que se visse
se verdadeiramente serviam ao seu Deus.
Devem recordar-se como nosso pai Abraão foi tentado,
e como, depois de provado por meio de muitas tribulações,
chegou a ser o amigo de Deus.
Assim Isaac, assim Jacó,
assim Moisés
e todos os que agradaram a Deus,
passaram por muitas tribulações
e permaneceram fiéis.
Aqueles, porém,
que não aceitam as provas
com o temor do Senhor,
que mostraram a sua impaciência
e irromperam com injuriosas murmurações
contra o Senhor
foram feridos de morte".
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Tratava-se, sem dúvida, não de um castigo, mas de uma
oportunidade que Deus dava àqueles que tinham resolvido trilhar o
caminho da fé para aprenderem a se libertar da pressão dos julgamentos
que procedem dos sentidos da carne e desfrutarem da liberdade de agir à
luz de realidades que somente podem ser apreendidas por outros canais.
É isto o que acrescenta Judite:
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"Creiamos que estes flagelos do Senhor,
com que, como seus servos,
somos castigados,
nos vieram para nossa emenda,
e não para nossa perdição".
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O livro conta então como esta mulher, sem auxílio de nenhuma arma,
apenas revestida da virtude da fé, pediu que se lhe abrissem as portas
da cidade e dirigiu-se sozinha ao acampamento inimigo. Alguns dias
mais tarde, o exército persa batia em retirada para nunca mais
retornar. Antes de sair de Betúlia, porém, Judite retirou-se e
pronunciou em particular uma oração, na qual se percebe claramente
como ela apreciava aqueles acontecimentos inteiramente à luz de uma
outra realidade. Talvez sejam estas as palavras mais belas e mais
profundas deste livro:
diz Judite,
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"operaste as maravilhas dos tempos antigos,
determinaste que umas se sucedessem às outras,
e fêz-se sempre o que quiseste.
Todos os teus caminhos estão preparados,
e fundaste os teus juízos na tua providência".
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Esta é a mesma fé da irmãzinha anônima que admirava os fios sutis
com que a providência urde a tela de nossa vida, e se contentava em
ser a pequena lançadeira que doce e calmamente desliza entre os fios da
urdidura divina.
Como Judite conseguiu sozinha derrotar um exército cuja força não
tinha rival militar sobre toda a face da terra são fatos inteiramente
secundários que o leitor poderá verificar pessoalmente nas Sagradas
Escrituras. A verdadeira lição do livro de Judite é sobre a
natureza da vivência da virtude da fé que ele nos ensina.
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