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Antes de examinarmos como se adquire a fé, será necessário explicar
o que ela é. A este respeito diz a Epístola aos Hebreus:
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"Sem fé é impossível agradar a Deus,
pois é necessário
que aquele que se aproxima de Deus
creia que Ele existe
e que recompensa
aqueles que o procuram".
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Nesta passagem da Epístola aos Hebreus encontramos uma primeira
definição do que é a fé. Fé significa, nas palavras de São
Paulo, crer que
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"Deus existe
e que recompensa
aqueles que o procuram".
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São palavras simples e singelas, mas que ainda assim merecem uma
pequena explicação.
A recompensa para aqueles que O procuram, de que fala São Paulo,
é a vida eterna. Crer que Deus recompensa aqueles que o procuram
significa crer que existe a vida eterna, preparada para aqueles que
buscam a Deus.
Crer que Deus existe, a outra parte da expressão usada por São
Paulo, significa crer que existe um ser que possui todas as qualidades
que a Sagrada Escritura atribui a Deus, isto é, que existe um ser
inteiramente espiritual a que chamamos de Deus, o qual, apenas por
causa de sua própria natureza, ao contrário de todas as criaturas,
existe necessariamente desde toda a eternidade, sem princípio nem
fim; que possui vida e felicidade em plenitude inconcebível, dotado
de inteligência e bondade infinitas; que criou do nada o céu e a
terra e todas as coisas, visíveis e invisíveis, inclusive a nós,
homens, a quem Ele ama e quer torná-los participantes de sua
natureza e de sua própria felicidade se estes o buscarem, tornando-os
seus filhos adotivos e herdeiros do céu, céu que nada mais é do que
uma expressão para designar ao próprio Deus em sua felicidade,
inteligência e bondade, enquanto fonte da verdadeira e plena
felicidade do homem.
Fé significa saber que Deus nos ensinou estas coisas e, precisamente
por causa dEle no-lo ter ensinado, aceitar voluntariamente tudo isto
como verdade tão certa que não deixe mais possibilidade alguma de
dúvida. Viver da fé significa que este conhecimento, em sua
firmeza, estende seus efeitos a todas as faculdades da psicologia
humana e se torna presente na maioria ou mesmo em todas as
circunstâncias da vida do homem.
Desta primeira explicação pode-se perceber que a fé é, em sua
natureza, uma forma de conhecimento. A mesma epístola aos Hebreus
atesta que a fé é uma forma de conhecimento quando diz:
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"Pela fé conhecemos
que o mundo foi formado
pela palavra de Deus,
de modo que as coisas visíveis
não provieram das coisas sensíveis".
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É justamente por ser uma forma de conhecimento que a fé é capaz de
produzir uma transformação profunda no homem. Pelo conhecimento o
homem pode ver coisas que os olhos da carne e os sentidos do corpo são
inteiramente incapazes de ver ou alcançar, e isto lhe permite agir a
partir de um plano de apreciação mais elevado e mais rico do que
aquele em que vivem os homens que não vêem em cada coisa mais do que
vêem os olhos do corpo.
Podemos entender isto considerando a atitude de homens diversos diante
de uma vítima de uma doença muito grave. O homem comum, diante de
um doente nestas condições, conduzirá toda a sua atenção ao que
lhe mostram os olhos da carne e apreendem os sentidos do corpo;
julgará, a partir do que vê neste plano, estar diante de um quadro
talvez horroroso, triste e repugnante, e ficará agradecido se puder
nunca mais voltar a ver-se diante de uma situação como esta. Já um
médico de profundos conhecimentos, ao contemplar o doente, fará
pouco caso do que os olhos lhe mostram enquanto olhos; pouco o
transtornará a gravidade aparente do caso e conduzirá toda a sua
atenção ao conhecimento médico de que é rica a sua inteligência;
embora de fato esteja vendo e cuidando do paciente, os olhos de sua
alma estarão contemplando, através deste paciente, uma forma de
conhecimento a que chamamos de ciência médica. Por causa disso, em
vez de julgar estar diante de um quadro que qualquer outro homem
chamaria de horroroso, dirá ao seu colega médico que está lidando
com um caso interessantíssimo e que apreciará toda a oportunidade de
voltar a estudá-lo em ocasiões similares. O padrão de seu
comportamento diante do paciente diferirá também muitíssimo daquele
do homem comum. Para qualquer pessoa que puder observar o verdadeiro
médico, haverá sinais evidentes de que ele estará agindo, naquelas
circunstâncias, mesmo em seus gestos não diretamente relacionados com
o exercício da arte médica, a partir de um plano superior de
apreciação que suscita admiração pela beleza do domínio que ele tem
diante da situação enfrentada. Se isto, porém, ocorre, em boa
parte se deve ao fato de que ele é capaz de ver, em todos aqueles
eventos, muita coisa que os outros não podem ver.
Assim também ocorre com a fé, mas com muitas diferenças que não
existem no exemplo da ciência médica.
A primeira destas diferenças é que o médico só age a partir deste
plano superior de apreciação no momento em que ele cuida de um
paciente de sua especialidade e no que diz respeito à sua doença;
fora disto, em todas as demais circunstâncias e aspectos de sua vida,
o médico tende a agir no plano dos olhos do corpo ou muito próximo a
ele, tal como o comum das pessoas. O conhecimento da fé, ao
contrário, quando existe, tende a se estender a todas as
possibilidades do agir humano e através dele o homem vive
permanentemente num plano superior de apreciação, com todas as
conseqüências que daí decorrem. Para estes, diz Hugo de S.
Vítor,
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"todo o mundo sensível
é como um livro escrito por Deus,
e cada uma das criaturas
são figuras instituídas
para a manifestação da sabedoria
do Deus invisível.
Assim como um analfabeto
que abrisse um livro
veria as figuras
mas não reconheceria as letras,
assim também é o homem animal
que não percebe as coisas que são de Deus:
nas criaturas visíveis vê externamente a espécie,
mas não lhes compreende internamente a razão.
O homem espiritual, porém,
considera externamente a beleza da obra,
e concebe internamente quão admirável
é a sabedoria do Criador,
como se em um só e mesmo livro
um destes homens louvasse a cor e a forma das figuras
e o outro louvasse o sentido e o significado".
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Pode-se dar um exemplo concreto do que significam estas palavras de
Hugo de S. Vitor na vida de Santa Clara de Assis.
Santa Clara viveu em uma época em que as viagens, principalmente
para as pessoas pobres, tinham que ser feitas a pé e em que ladrões e
malfeitores se organizavam em bandos permanentes, sem que existisse uma
polícia organizada para patrulhar as estradas. Havia, portanto,
condições muito precárias de segurança para se empreender uma
viagem. Como seria de se esperar nestas ocasiões, sempre que as
irmãs de seu mosteiro tivessem que partir para algum lugar distante,
Santa Clara nunca deixava de lhes dar importantes recomendações.
Que recomendações seriam estas?
Se não fosse Santa Clara, estas recomendações certamente seriam
avisos tais como:
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Cuidado para não atravessarem lugares desertos quando se aproximar o
cair da noite!
Procurem não conversar com pessoas estranhas ou suspeitas!
Não carreguem dinheiro, pois será maior o perigo de serem
assaltadas!
Rezem bastante, para poderem evitar os perigos da estrada!
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Qualquer pessoa que estivesse sinceramente preocupada com o bem estar
de suas irmãs de partida para uma viagem nas condições daquela época
não esqueceria de lhes dar muitas recomendações deste tipo. Não
era este, porém, o caso de Santa Clara.
Aquilo que os seus olhos de carne viam não chamavam a atenção de
Clara mais do que o estritamente necessário. Os olhos de sua alma,
porém, estavam inteiramente voltados para realidades que os olhos do
corpo não são capazes de perceber. Não é de se admirar,
portanto, que as recomendações de viagem de Santa Clara fossem tão
diferentes das que seriam de se esperar do comum dos homens. Uma das
testemunhas ouvidas em seu processo de canonização, de fato, nos
deixou relatado que
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"Quando ela enviava as irmãs em viagem,
ou quando as mandava fazer
algum serviço fora do mosteiro,
suas recomendações eram que,
sempre que vissem
alguma árvore linda e com flores,
não se esquecessem de louvar a Deus".
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Também Hugo de S. Vitor, no Sexto Livro do Didascalicon, em
uma das poucas passagens em que fala de si mesmo, diz que em sua
juventude apreciava muito passar longas horas da noite contemplando as
estrelas do céu. Que via ele, porém, no céu estrelado? Com
certeza não era o brilho das estrelas o que chamava a sua atenção,
por mais belo que fosse, naquela época em que não havia poluição
ambiental nem luzes na cidade. Seus olhos contemplavam as estrelas,
mas a atenção de sua alma ia muito mais longe:
dizia Hugo,
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"que potência não era necessária
para fazer com que algo existisse?
Que sentido poderá compreender
quanto virtude não haverá
no se fazer do nada
ainda que seja uma única coisa,
e ainda que seja a mínima de todas?
Se, portanto,
há tanta potência no se fazer do nada
uma só coisa,
ainda que pequena,
como não se poderá compreender
quão grande deveremos estimar
a potência que criou
tamanha multidão de seres?
Quantos são?
De que tamanho é esta multidão?
O número de estrelas do céu,
a areia do mar,
o pó da terra,
as gotas da chuva,
as penas das aves,
as escamas dos peixes,
os pelos dos animais,
a grama dos campos,
as folhas e os frutos das árvores,
e os números inumeráveis
dos demais inumeráveis.
Mas teria aquele que tudo fêz,
feito pequenas todas as coisas?
Teria sido ele incapaz de fazer simultaneamente
a multidão e a grandeza das coisas?
Qual é, porém,
a magnitude desta grandeza?
Mede a corpulência das montanhas,
o curso dos rios,
o espaço dos campos,
a altura do céu,
a profundidade do abismo.
Admira,
pois não o és capaz;
mas justamente não o sendo capaz
que melhor te admirarás.
Quisera eu poder discernir
todas estas coisas
com tanta delicadeza,
poder narrá-las com tanta competência
quanto posso ardentemente amá-las!
É para mim uma doçura
e uma alegria imensa
tratar com freqüência destas coisas e admirar,
clamando junto com o salmista:
`Quão magníficas, Senhor,
são as tuas obras;
mais profundos, porém,
são os teus pensamentos'".
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Tal é a vivência da fé na alma dos homens.
Nos escritos de Santo Tomás de Aquino encontramos algo que é como
que um resumo para todos estes exemplos. Santo Tomás diz que todo
conhecimento parte de princípios que só podem ser conhecidos de dois
modos, ou pela luz natural da inteligência, ou por alguma ciência
superior. A fé é um modo de conhecimento do segundo tipo; seus
princípios só podem ser conhecidos à luz da ciência superior que há
em Deus e nos santos do paraíso, e ela é, por este motivo, como
que uma participação da ciência divina na alma humana.
A fé também é, segundo diz São Paulo,
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"A substância das coisas que se esperam,
a demonstração das coisas que não se vêem".
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"As coisas que se esperam" são o paraíso, a recompensa que Deus
prepara para aqueles que o buscam. "A substância das coisas que se
esperam" é já contemplar na terra aquilo que se verá no céu. "As
coisas que não se vêem" são Deus em sua existência e em todos os
seus atributos. "A demonstração das coisas que não se vêem" é
já poder vê-las com os olhos da alma com a mesma firmeza como se já
tivessem sido demonstradas.
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