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À explicação que demos a respeito da natureza da caridade, para
maior compreensão do que seja ela mesma, convém acrescentar duas
observações a respeito de algumas de suas mais notáveis
conseqüências.
A primeira é que seria um absurdo se alguém pretendesse amar a Deus
com um amor tão profundo e entranhado como é a caridade e, ao mesmo
tempo, odiasse a alguém a quem Deus ama apaixonadamente como a um
filho.
Assim, portanto, a caridade para com Deus implica necessariamente no
amor para com todos os homens, aos quais Deus ama apaixonadamente como
a filhos, sem exceção alguma, ainda que sejam os maiores pecadores e
que tudo indique que, ao saírem desta vida, venham a perder as suas
almas.
Deus, observa Jesus Cristo,
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"fez nascer o Sol para todos,
indistintamente se fossem bons ou maus,
e manda a chuva sobre justos e injustos".
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Isto significa que Ele os ama a todos. O Sol que Ele fêz nascer
para todos é, além do Sol visível, o próprio Cristo,
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"a luz verdadeira que ilumina
todo o homem que vem a este mundo",
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e que se ofereceu na cruz
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"pelos nossos pecados,
e não somente pelos nossos,
mas também pelos de todo o mundo",
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indistintamente
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"se fossem bons ou maus",
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conforme disse acima o Evangelho de Mateus.
A chuva de que fala Mateus nesta mesma passagem é, além da chuva
visível, também o Espírito Santo que, segundo Provérbios,
procura fazer-se ouvir aos corações daqueles que o desprezam e que
nem se dão conta de que estão sendo por eles chamados,
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"desprezando seus conselhos
e não fazendo caso de suas repreensões".
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Deste Espírito Santo, de fato, conforme já vimos na introdução
deste livro, o livro de Provérbios afirma que
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"ensina em público,
nas praças levanta a sua voz,
grita às multidões,
faz ouvir as suas palavras
à entrada das portas da cidade".
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Deus, pois, dizia Jesus,
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"fêz nascer o Sol para todos,
indistintamente se fossem bons ou maus,
e manda a chuva sobre justos e injustos".
"Portanto",
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conclui Jesus,
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"amai os vossos inimigos,
fazei bem aos que vos odeiam,
e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem:
sede perfeitos,
como também vosso Pai celeste é perfeito".
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Amar a Deus com amor de caridade, implica, portanto, em amar a
todos os homens, indistintamente sem exceção, segundo a mesma
perspectiva com que Deus os ama.
Isto significa que seguir o segundo mandamento,
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"amarás ao próximo como a ti mesmo",
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não é mais do que uma extensão e uma conseqüência da vivência do
primeiro. Se alguém, portanto, em sua vida cotidiana, não possui
uma capacidade ilimitada de perdoar e de não guardar ódio e rancor
seja por quem for, e no entanto julga amar a Deus pelo amor de
caridade, este alguém está se iludindo a si próprio; na realidade,
ele sequer consegue se dar conta de qual seja o plano da perspectiva
divina.
Muito distante de nutrir algum desejo de vingança ou represália por
qualquer que seja o motivo, ainda que aparentemente justo, os homens
que amam a Deus pela caridade tendem a amar ao próximo de um modo tão
semelhante quanto possível ao qual Deus amaria os homens se Ele
estivesse no lugar daquele que o ama:
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"Aqueles que estão unidos ao Senhor
pela caridade",
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diz São Paulo,
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"são um só espírito com Ele".
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Eles fariam pelo próximo tudo aquilo que Deus faria se Deus fosse
eles.
Inventariam, em primeiro lugar, todos os meios possíveis ao seu
alcance para manifestar aos homens a extensão da loucura a que se
entregaram e o grau de consciência praticamente nulo que eles tem desta
sua situação. Se fosse preciso, dariam também suas vidas para
fazê-los acordar. Viveriam, em suma, como Jesus viveu, mesmo que
fossem simples carpinteiros. Direta ou indiretamente, a primeira
manifestação de seu amor ao próximo se daria soba forma do último
preceito que São Marcos nos diz ter sido dado por Jesus: "Ide",
disse Jesus, "e ensinai todos os povos; quem crer será salvo, quem
não crer será condenado"; ou melhor, explica mais claramente Jesus
em São João, "já está condenado" (Jo. 3, 18).
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"Eu desejaria que bem o soubésseis",
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escrevia Santo Antão em uma de suas cartas, ou em todas as suas
cartas,
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"meus queridos filhos no Senhor,
que por causa de nossa loucura
Ele tomou a libré da loucura,
por causa de nossa morte
Ele tomou a libré de um mortal,
e por nós sofreu tanto.
Que se abram os ouvidos de vosso coração
para que tomeis consciência de vossa miséria.
Que aquele que toma consciência de sua vergonha
logo se ponha a buscar a glória à qual é chamado;
que aquele que compreende a sua morte espiritual
bem depressa encontre o gosto pela vida eterna".
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É inconcebível que um homem que tenha escrito estas coisas pudesse ao
mesmo tempo ter sua vista tão estreita a ponto de ser incapaz de
perdoar quem quer que fosse. Ao contrário, Santo Antão amava os
homens na mesma perspectiva com que Deus também os ama, do mesmo modo
como Jesus nos ensinou no Evangelho ser o amor que Deus tem por
nós:
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"Foi em conseqüência
de nossos inúmeros pecados,
de nossas funestas revoltas,
de nossas paixões sensuais",
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continua Santo Antão,
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"que a Lei da Promessa se atenuou
e as faculdades de nossa alma se enfraqueceram.
Por causa da morte a que fomos precipitados,
tornou-se para nós impossível
atender a nosso verdadeiro título de glória:
nossa natureza espiritual.
O Criador então constatou
que a chaga se envenenava
e que era necessário recorrer a um médico;
Jesus, já Criador dos homens,
vem ainda curá-los.
Ele se entregou por todos nós;
nossos pecados causaram suas humilhações,
suas chagas, porém,
foram a nossa cura.
Ele nos reuniu de todos os lugares,
ressuscitando nossas almas,
perdoando nossos pecados,
ensinando-nos que somos membros uns dos outros".
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