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Para entendermos o que é a pureza da fé devemos entender primeiro o
que é a pureza considerada em si mesma. Podemos nos valer para tanto
do Comentário ao Livro do Profeta Joel, escrito por Hugo de São
Vitor. Ao comentar o verso
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"Jerusalém será santa,
e os estrangeiros não tornarão mais
a passar por ela",
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ele anuncia que irá nos explicar o que é a santidade. Na realidade,
porém, em vez da santidade o que ele nos expõe é a essência da
pureza, tomando-a pela santidade, na medida em que a santidade
envolve necessariamente a pureza. Eis o que ele nos diz a respeito:
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"O próprio nome santidade",
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diz Hugo,
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"mostra de muitos modos
a sua virtude e a sua espécie:
santo em grego se diz AGHIOS,
nome composto de A e GHE.
GHE significa terra,
A significa sem.
De onde que é dito santo
o que é feito sem terra,
e se eleva da terra.
Santos eram aqueles de quem está escrito:
`Nossa conversação
está nos céus'.
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`Jerusalém', portanto,
`será santa',
diz Joel,
pela alma contemplativa,
pelos seus afetos celestes,
pelo seu senso espiritual,
por suas ações angélicas".
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"É dito santo o que é feito sem terra", diz este comentário a
Joel, "e se eleva da terra". Esta é a essência daquilo a que
chamamos de pureza. As coisas nobres são ditas puras quando não
contém mistura de substâncias estranhas. A água é pura quando não
contém barro nem sujeira, o ouro é puro quando não vem misturado com
outros metais. A nobreza da fé provém dela ser de coisas celestes;
a vida da fé será pura quando não vier misturada com as coisas da
terra.
No Comentário à Ética de Aristóteles Santo Tomás de Aquino
também nos diz, de outro modo, o que é a pureza. Ali encontramos
escrito:
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"A sabedoria é admirável pela sua pureza.
A pureza da sabedoria provém do fato
dela ser acerca de coisas imateriais".
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Nesta passagem Santo Tomás diz que a sabedoria é pura porque ela
diz respeito a coisas imateriais; ele associa, portanto, a pureza à
imaterialidade.
Ora, a vida da fé produz na alma do homem esta forma de pureza,
pois, conforme diz a Epístola aos Hebreus, ela diz respeito
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"às coisas que não se vêem".
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As coisas que não se vêem são as coisas imateriais, isto é, as
coisas do céu, que não se vêem com os olhos da carne porque são
inteiramente espirituais.
A fé é pura por ser de coisas que não se vêem não porque devido a
alguma circunstância estas coisas não puderam ser vistas, mas
porque, por sua própria natureza, estas coisas não poderiam ser
vistas pelos olhos da carne quaisquer que fossem as
circunstâncias.Neste sentido, não são os acontecimentos narrados
pelas Sagradas Escrituras que são o objeto principal da fé, isto
é, aquilo em que Deus quer que o homem principalmente creia e viva
desta fé; os fatos históricos narrados pelas Escrituras foram de
natureza tal que puderam ser vistos pelos olhos da carne, e se algum
homem não os viu não foi porque não poderia te-los visto, mas
apenas porque não estava ali presente quando aconteceram. Quando
Deus pede que tenhamos fé nestes fatos históricos não está pedindo
principalmente que acreditemos que eles aconteceram, mas que
acreditemos naquilo que neles havia de divino. Por exemplo, todos
sabemos que Jesus morreu na cruz; houve pessoas, como São Pedro,
que viram isto com os seus próprios olhos.
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"Como pôde, porém,
São Pedro ter tido fé na paixão de Cristo
se ele a viu com os seus próprios olhos
e a fé é de coisas que não se vêem?",
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pergunta Hugo de São Vitor. Ele mesmo, entretanto, nos responde
a esta pergunta:
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"O mérito de São Pedro não foi
o de ter visto a paixão de Cristo,
mas o de ter acreditado ser Deus
aquele homem que viu pendente na cruz";
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e acrescenta estas impressionantes palavras:
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"a fé sobre que se alicerça o edifício espiritual
é sempre de coisas que não se podem ver".
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Summa Sententiarum
L. I, c. 2
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É precisamente nisto que consiste a grandeza da fé e toda a sua
pureza. A fé obriga a alma a se habituar à contemplação de objetos
que estão além das possibilidades dos sentidos, elevando as
faculdades do conhecimento humano a planos cada vez mais nobres.
Não é, pois, por um simples capricho ou pelo prazer de testar
continuamente o homem que Deus pede para que ele creia e viva da fé no
que ele não pode ver, acrescentando, conforme vimos anteriormente,
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"que se ele se afastar,
não lhe será mais de seu agrado".
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Ao contrário, Ele deseja com isso elevar a nossa alma a uma
extraordinária pureza, aquela da qual o próprio Jesus disse:
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"Bem aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus".
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Ele faz isto, portanto, para o nosso próprio bem, conforme mais
adiante o atesta também a Epístola aos Hebreus:
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"Nossos pais nos educaram
segundo a sua própria conveniência;
Deus, porém,
o faz para o nosso bem,
para nos comunicar
a sua santidade".
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Se o homem pudesse, portanto, ver com os olhos da carne as coisas que
são objeto da fé, supondo que com isso tudo lhe seria mais fácil,
em vez disto ajudar o homem, faria, ao contrário, com que perdesse
toda a pureza que a fé é capaz de trazer às faculdades do
conhecimento, destruindo-lhe com isso os próprios alicerces sobre que
se fundamentam as possibilidades de seu crescimento espiritual.
A vida da fé produz inicialmente a pureza nas faculdades do
conhecimento. À medida, porém, em que progride a vida espiritual,
ela passa a estender seus efeitos a todas as demais faculdades da alma.
Das faculdades do conhecimento ela passa a atuar sobre o afeto, e
posteriormente alcança também o próprio agir do homem. Na Summa
Theologiae Santo Tomás explica como isto ocorre:
que no início causa a pureza da inteligência, se estende depois
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"também ao coração,
porque as coisas que estão na inteligência
são princípios das coisas que estão no afeto,
na medida em que o bem do intelecto move o afeto;
de onde que a purificação do coração
é um efeito da fé.
Por isso é que diz São Pedro,
nos Atos dos Apóstolos,
falando aos judeus a respeito dos pagãos:
`Deus não fêz distinção alguma
entre judeus e gregos;
antes, purificou o coração de todos
pela fé'".
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A pureza causada pela fé no conhecimento, deste modo, extravasa e se
estende também ao coração. Mas ela não pára aí. Á medida em
que o homem cresce na fé, ela estende suas raízes ao seu próprio
agir. Quem nos menciona este fato é S. Diádoco, bispo de Fócia
no século V, que fêz a este respeito uma das afirmações mais
impressionantes que já apareceram sobre a fé. A fé, dizem as
Escrituras, diz respeito às coisas que não se vêem; mas S.
Diádoco, como um daqueles justos que vivem pela fé, percebeu pela
sua experiência pessoal uma conseqüência que não estava
imediatamente contida nesta expressão; de fato, diz São Diádoco,
não apenas a fé é das coisas que não se vêem, mas, mais ainda,
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"a fé ensina a desprezar
as coisas que se vêem";
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isto é, a pureza causada pela fé se estende já integralmente a todo
o agir do homem, não mais apenas à mente e ao coração. Na
Epístola aos Filipenses e na IIa. aos Coríntios São Paulo já
havia escrito coisas semelhantes:
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"Tudo aquilo
que eu considerava como lucro
antes de minha conversão",
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diz São Paulo,
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"tudo isto agora eu tenho como perda
diante do eminente conhecimento de Jesus Cristo,
e as considero como esterco,
para ganhar a Cristo e ser encontrado nele,
através da justiça que nasce da fé em Jesus Cristo,
a justiça que vem de Deus pela fé.
Esqueço-me do que fica para trás
e avanço para as coisas que estão diante,
prosseguindo para a meta
e para o prêmio da soberana vocação de Deus
em Jesus Cristo.
Embora em nós o homem exterior
vá caminhando para a sua ruína,
o homem interior se renova de dia a dia,
pois não olhamos para as coisas que se vêem,
mas para as que não se vêem,
não para as passageiras,
mas para as eternas".
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Fil. 3, 7-15
II Cor. 4, 16-18
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