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Em todos os lugares onde São Paulo pregou o Evangelho ele também
ensinou que sem a graça do Espírito Santo não seria possível ao
homem santificar-se e cumprir a lei divina, e também que a graça do
Espírito Santo se alcança pela vivência da virtude da fé.
A formulação tão simples desta doutrina, porém, esconde tanto a
sua complexidade quanto a sua profundidade. Esconde a sua complexidade
porque esta afirmação só é inteiramente verdadeira se forem supostos
diversos outros elementos que não são imediatamente evidentes nesta
formulação e que só poderão ser apresentados ao longo de todo o
texto deste livro. Esconde também a sua profundidade porque ela se
expressa de um modo tão singelo que se nos torna muito fácil passarmos
por ela com uma descuidada indiferença para nos concentrarmos em alguma
outra coisa menos importante, como se não estivéssemos tratando de
algo bastante fundamental.
Sob este segundo aspecto, esta propensão a não nos darmos conta da
importância que a fé desempenha no surgimento e no crescimento da vida
cristã foi um problema a que estiveram sujeitos também algumas das
primitivas comunidades pelas quais passou São Paulo. Quando o
apóstolo estava presente, seus ensinamentos eram entendidos e,
através do auxílio do Espírito Santo, os homens cresciam na
santidade e no conhecimento de Deus. Mas, depois que São Paulo
partia, estas mesmas comunidades se esqueciam dos fundamentos sobre que
repousava sua vida espiritual e passavam a dar a outras questões uma
importância desmerecida e bem diversa do que São Paulo havia
ensinado. Depois de algum tempo havia muitos nestas comunidades que
já não se lembravam de que o alicerce sobre o qual São Paulo lhes
havia mostrado como construir o edifício espiritual era a virtude da
fé e passavam a fundamentar a vida cristã na prática de preceitos
exteriores, como alguns preceitos da Lei de Moisés que, por terem
sido símbolos de verdades que se tornaram realidade com o advento de
Cristo, já não mais deveriam ser cumpridos pela sua prática
literal, mas pela própria fé no Cristo.
A importância que estas comunidades deram, nestas ocasiões, ao
cumprimento literal das leis de Moisés, foram, entretanto, apenas
ocasiões circunstanciais em que se manifestou uma tendência da
natureza humana, comum a todas as épocas, de se concentrar a prática
religiosa em algum preceito exterior, esquecendo que, conforme vimos
no texto sobre a Graça do Espírito Santo, Santo Tomás de
Aquino afirma na Summa Theologiae que a essência do Evangelho
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"é a graça do Espírito Santo",
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e que esta graça
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"nos é dada pela fé em Cristo".
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É por isso que, quando Paulo soube que os gálatas, entre os quais
ele havia pregado o Evangelho, estavam confundindo o que ele havia
ensinado, escreveu-lhes uma carta advertindo-os muito dura e
claramente. Esta carta é hoje o livro da Bíblia a que chamamos de
Epístola aos Gálatas.
São Paulo começa a Epístola aos Gálatas lembrando-lhes que ele
havia sido
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"enviado não por homens,
nem por intermédio de algum homem,
mas por mandado de Jesus Cristo",
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e dizendo-se
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"admirado de que tão depressa
vos tenhais passado daquele
que vos chamou pela graça de Cristo
para um Evangelho diferente".
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É então, mais adiante, que São Paulo faz aquela que talvez seja a
afirmação mais clara que existe em todas as Sagradas Escrituras de
que a graça do Espírito Santo se alcança através da fé:
diz São Paulo,
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"quem vos fascinou
para não obedecerdes à verdade,
a vós, ante cujos olhos
foi pintado ao vivo Jesus Cristo
cravado na cruz?
Só isto quero saber de vós:
recebestes o Espírito (Santo)
pelas obras da lei
ou pela submissão à fé?
Sois tão faltos de juízo que,
tendo começado pelo Espírito,
acabais agora na carne?
Tendes sofrido tanto
(por Cristo) em vão?
Se é que foi em vão!
Aquele, pois,
que vos dá o seu Espírito
e que opera milagres entre vós,
o faz porventura pelas obras da lei
ou pela submissão à fé?"
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Esta passagem revela, já na primeira leitura, o ensino claro de
São Paulo segundo o qual é pela fé que os homens recebem o
Espírito Santo.
Um exame mais cuidadoso, porém, mostra que na realidade São Paulo
está fazendo mais do que isso. Ele não está apenas ensinando uma
doutrina, mas ele está chamando os próprios gálatas para servirem de
testemunhas da verdade que ele está lhes lembrando. A presença do
Espírito Santo e os milagres que através dele eram operados haviam
sido tão manifestos entre os gálatas que Paulo, em vez de apenas
lhes propor uma verdade, pede em vez disso que eles se lembrem que foi
pela fé que isto havia ocorrido, e que, lembrando-se bem disto,
não o esquecessem mais. Ele podia fazer isto porque o Espírito
Santo havia se manifestado, através da fé, de modo tão evidente
entre aqueles cristãos, que este fato não podia dar margem a
dúvidas.
A manifestação evidente da presença do Espírito Santo entre os
primeiros cristãos através da fé e da pregação dos apóstolos é
algo tão copiosamente atestado nos Atos dos Apóstolos e em diversas
epístolas de São Paulo que levou alguns estudiosos a pensarem que se
tratasse de uma graça especial concedida apenas à Igreja dos
primeiros tempos. Esta opinião foi favorecida pelas expressões
utilizadas por alguns importantes comentadores das Sagradas
Escrituras, que podiam ser facilmente entendidas segundo uma
interpretação incorreta. É o caso, por exemplo, do Comentário à
Epístola aos Gálatas escrito por Santo Agostinho, em que o
autor, ao fazer suas considerações sobre esta passagem do terceiro
capítulo da epístola que acabamos de examinar, escreveu que
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"naquele tempo,
no início da pregação da fé,
a presença do Espírito Santo
manifestava-se entre os fiéis
também através de milagres visíveis,
conforme nos atesta o segundo capítulo
dos Atos dos Apóstolos".
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Estas palavras, de fato, parecem sugerir que a manifestações mais
evidentes da presença do Espírito Santo fossem acontecimentos
específicos do "início da pregação da fé".
No Comentário à Epístola aos Gálatas escrito por Santo Tomás
de Aquino tal interpretação desta passagem da carta de São Paulo
parece ser ainda mais claramente expressa. De fato, diz ali Santo
Tomás de Aquino:
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"Na primitiva Igreja, por disposição divina,
para que se propagasse e crescesse a fé em Cristo,
logo em seguida à pregação da fé pelos apóstolos,
manifestavam-se sobre os ouvintes
sinais evidentes da (presença) do Espírito Santo.
Assim é que os Atos dos Apóstolos
dizem de São Pedro:
`Pedro ainda estava falando estas palavras
quando sobre eles desceu o Espírito Santo'.
Aqui também,
(no terceiro capítulo de Gálatas),
a epístola mostra que por ocasião da pregação de Paulo
os fiéis receberam o Espírito Santo de modo manifesto".
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Tal como no Comentário aos Gálatas de Santo Agostinho, e mais
ainda, esta passagem do Comentário aos Gálatas de Santo Tomás
parece sugerir que a manifestação evidente da presença do Espírito
Santo entre os fiéis seria uma graça especial reservada, por
disposição divina,
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"à Igreja primitiva,
para que se propagasse e crescesse
a fé em Cristo".
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Na realidade, o que havia de especial na Igreja primitiva em
relação à graça do Espírito Santo não era o fato de que o
Espírito Santo se manifestasse de forma evidente entre os fiéis,
mas sim que Ele se manifestasse de forma evidente logo em seguida à
pregação da fé. Não é este, de fato, o modo ordinário com que
o Espírito Santo se manifesta no curso da vida espiritual:
diz o livro de Provérbios,
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"é como a luz da aurora,
que vai clareando até o pleno dia".
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O modo ordinário pelo qual o Espírito Santo se manifesta no
decorrer da vida espiritual é gradativo e segue a seqüência da
manifestação dos sete dons do Espírito Santo exposta no texto sobre
a sua Graça; inicia-se pelo dom do temor do Senhor e, passando
pelo de piedade, ciência, fortaleza e conselho, alcança o de
entendimento e sabedoria. Sua manifestação só principia a se fazer
clara quando surge o dom de entendimento e só alcança plena luz com o
dom de sabedoria. Assim, seguindo a comparação de Provérbios, os
dias dos cinco primeiros dons podem ser comparados à noite, o dia do
dom de entendimento à aurora e o de sabedoria à luz do meio dia. As
pessoas que atravessam os cinco primeiros dias destes dons, embora a
graça do Espírito Santo atue verdadeiramente sobre eles, tem
muitíssima dificuldade em discernir entre aquilo que neles provém do
Espírito Santo e aquilo que provém da simples psicologia humana;
são como pessoas que conhecem o caminho, mas caminham de noite. Uma
distinção mais clara, mas ainda não muito nítida, começa a ser
possível quando o homem começa a caminhar sob a influência do dom de
entendimento; estes começam a ser capazes de discernir a atuação do
Espírito Santo da atuação ordinária da psicologia humana ao
considerarem a retrospectiva de suas vidas, sua vida presente e também
ao considerarem a vida dos outros que passam pelos mesmos caminhos.
Mas este discernimento só se torna verdadeiramente nítido quando
desponta o dom de sabedoria.
Nos escritos de Hugo de São Vítor encontramos uma belíssima
descrição da gradualidade da atuação do Espírito Santo na vida
espiritual. No Tratado dos Três Dias Hugo explica que
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"Todo o curso interior da vida espiritual
se distingue pelos três dias de uma luz invisível,
que são o dia do temor,
o dia da verdade e o dia do amor".
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Pela explicação que Hugo nos dá a seguir, percebe-se que ele
agrupou os dias em que se manifestam predominantemente os cinco
primeiros dons do Espírito Santo num único dia que ele chama
genericamente de dia do temor, que o que ele chama de dia da verdade
corresponde ao dom de entendimento e o dia do amor é a manifestação
do dom de sabedoria:
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"Foi a estes dias que se referiu o salmista",
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diz Hugo de São Vitor,
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"quando cantou:
`anunciai dia após dia
a sua salvação'.
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O primeiro dia é o dia do temor;
vem depois o outro dia,
o dia da verdade,
e dizemos que vem,
e não que o sucede,
porque o anterior não cessa.
Eis, então, já dois dias;
o mesmo ocorre com o dia terceiro,
com o dia do amor,
pois vindo este,
também não expulsa os anteriores.
Os homens compreenderam,
em primeiro lugar,
terem caído sob o jugo do pecado
ao ter-lhes sido dada a lei,
tendo daí começado
a temer a Deus como juiz
por conhecerem suas iniqüidades.
Temê-lo já era conhece-lo,
porque de maneira alguma poderiam temê-lo
se dele nada conhecessem.
Este conhecimento já era alguma luz;
já era dia, mas não era dia claro,
escurecido que estava pelas trevas do pecado.
Veio então o dia da verdade,
que iluminaria a claridade do dia anterior,
e que não tiraria o temor,
mas o mudaria para melhor.
Mas esta claridade não será ainda plena
até que o amor não se acrescente à verdade.
O dia da verdade, assim,
clarifica o dia do temor e o dia da verdade,
até que o amor se torne perfeito
e toda a verdade seja perfeitamente manifestada".
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Este é o modo gradual com que ordinariamente se manifesta a graça do
Espírito Santo no desenvolvimento da vida cristã.
Mas, em ciscunstâncias as mais diversas, e pelas causas que muitas
vezes apenas Deus conhece, o Espírito Santo pode se manifestar
também extraordinariamente de um modo evidente e imediato. Isto não
significa que esta manifestação evidente e imediata tenha que
corresponder ao que já descrevemos como sendo os dons de entendimento e
sabedoria, e também não se trata de uma ocorrência restrita aos
primeiros tempos do cristianismo. No texto sobre a Graça do
Espírito Santo já tivemos a oportunidade de examinar um caso
semelhante ocorrido no ano de 1831 no interior das florestas geladas
da Rússia, quando o Espírito Santo se manifestou em Nicolas
Motovilov assim que o monge Serafim havia esboçado uma prece em seu
coração:
de fato,
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"a oração do homem justo",
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diz a Epístola de São Tiago (Tg. 5, 16).
Mas o fato de que no início do Cristianismo,
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"por disposição divina,
para que se propagasse e crescesse
a fé em Cristo",
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no dizer de Tomás de Aquino, o Espírito Santo se manifestasse de
modo evidente logo após a pregação dos apóstolos, através da fé
dos ouvintes, não remove a validade do ensinamento da Epístola aos
Gálatas de que a graça do Espírito Santo se alcança através da
fé. Ao contrário, é coisa certa e verificável pela experiência
de todos os autênticos cristãos que pela fé todos os que crêem
verdadeiramente recebem o Espírito Santo. A menos, porém, que
por uma circunstância especial a providência divina determine
diversamente, todos aqueles que crêem, no sentido em que será
explicado neste e no livro seguinte, recebem infalivelmente o
Espírito Santo sob a forma do dom de temor, cujos primeiros efeitos
se fazem sentir em uma maior facilidade em discernir entre o bem e o
mal, em reconhecer o pecado, no auxílio para combatê-lo e para
vencê-lo, e em uma maior delicadeza de consciência. Estes
primeiros efeitos são bem perceptíveis para quem passa por eles.
Freqüentemente implicam em uma mudança percebida como bem distinta de
todo tipo de mudança de que já se teve experiência. Muitas vezes a
realidade desta mudança é nítida também para os que convivem com a
pessoa que passa por ela, embora seja muito difícil para estes
perceberem nesta transformação algo mais do que apenas um fenômeno de
psicologia natural. No entanto, apesar da dificuldade da
distinção, trata-se de uma ocorrência de caráter autenticamente
sobrenatural:
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"É pelos frutos
que se conhece a árvore",
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diz Jesus;
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"não se colhem uvas dos espinheiros,
nem figos de um cardo.
Do mesmo modo,
toda árvore boa dá bons frutos,
mas a árvore má dá maus frutos".
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Não obstante a aparente dificuldade da distinção entre os primeiros
dons do Espírito Santo e as transformação psicológicas da vida
ordinária, o dom de temor que vem pela fé é o início do fio de uma
longa meada que, para os que tiverem a coragem de percorrê-la,
conduz aos dons de entendimento e de sabedoria, cujo caráter
sobrenatural já é límpido e cristalino para todos. É daqueles que
são movidos por estes dons que Jesus dizia:
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"Vós sois a luz do mundo.
Não se pode esconder uma cidade
situada sobre um monte,
nem se acende uma lâmpada
para colocá-la debaixo de uma mesa,
mas no candelabro,
e assim ela brilha
para todos os que estão na casa.
Assim também brilhe a vossa luz
diante dos homens,
para que,
vendo as vossas boas obras,
glorifiquem o vosso Pai que está nos céus".
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E também S. Pedro:
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"Sois uma estirpe eleita,
sacerdócio real,
gente santa,
para tornardes conhecidos
os prodígios dAquele
que vos chamou das trevas
para a luz admirável".
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A explicação disto tudo encontra-se resumida, em poucas palavras,
numa passagem das obras de S. Dionísio Areopagita:
diz Dionísio Areopagita na Hierarquia Eclesiástica,
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"em sua bem aventurança
que transcende a todas as coisas,
por razões incompreensíveis para nós,
mas evidentes para si,
decidiu dar-nos a salvação.
Esta salvação somente é possível
por uma deificação,
que consiste em tornarmo-nos
semelhantes a Deus
e a nos unirmos a Ele
tanto quanto nos é possível".
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Ora, esta salvação e esta deificação se inicia pelo dom de temor
que, conforme ensina São Paulo na Epístola aos Gálatas, é
recebida através da fé. É o que veremos em seguida ter sido ensinado
também por Jesus nos Evangelhos.
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