17. Como se dá a justificação do pecador.

A Escritura afirma claramente que todos aqueles que creem são justificados pela fé a exemplo de Abraão, a quem ela chama de o pai de todos aqueles que crêem:

"Abraão creu em Deus",

diz a Escritura,

"e isto lhe foi tido em conta para a justiça. Portanto, ao que crê, a sua fé lhe é imputada como justiça, segundo o decreto da graça de Deus.

A Escritura diz que a fé foi imputada a Abraão como justiça para que fosse o pai de todos aqueles que creem, a quem a fé também lhes será imputada como justiça, se seguirem as pisadas da fé que teve nosso pai Abraão, que não hesitou com desconfiança perante a promessa de Deus, mas foi fortificado pela fé, plenamente convencido de que Deus é poderoso para cumprir tudo o que prometeu.

Não foi escrito somente por causa dele que a fé lhe foi imputada como justiça, mas também por nós, a quem será imputada, se crermos naquele que ressuscitou dos mortos Jesus Cristo Nosso Senhor, o qual foi entregue pelos nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação.

Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual temos acesso pela fé à sua graça e nos gloriamos na esperança da glória dos filhos de Deus".

Rom. 4, 3-25; 5, 1-2

Diante de tudo quanto expusemos até o momento, estamos em condições de compreender de que modo se dá a justificação do pecador pela fé.

A graça primeiramente dispõe o homem à justificação auxiliando-o, através da fé, a dirigir-se livremente a Deus, crendo ser verdade as coisas que Ele nos revelou e prometeu. Estes primeiros movimentos produzidos em nós pela graça através da fé não são ainda a justificação de que fala a Epístola aos Romanos, mas uma disposição inicial à mesma. A graça que a produz não é ainda uma qualidade estável infundida por Deus na própria alma, mas apenas um auxílio através do qual Deus convida e conforta interiormente o homem em seus movimentos da inteligência e da vontade. Através destes o homem passa a confiar na misericórdia divina e nos méritos da Redenção operada por Cristo e deste modo une-se a esta fé inicial a esperança dos bens celestes e o amor de caridade para com Deus.

Quando surge no homem a verdadeira caridade a graça se torna algo mais profundo do que a graça apenas suficiente para crer. Ela não é mais somente um auxílio ou um convite pelo qual o homem é confortado em seus movimentos da inteligência e vontade, mas uma qualidade estável infundida por Deus na alma daqueles a quem Ele ama. A justificação de que fala a Epístola aos Romanos só ocorre propriamente com o surgimento da caridade, pois a fé que justifica, diz o próprio São Paulo na Epístola aos Gálatas, é a fé que opera pela caridade (Gal. 5, 6), e naqueles em que a fé se une à caridade a graça, diz Tomás de Aquino, não é mais apenas um "instinto interior de Deus que convida", mas

"uma qualidade sobrenatural infundida por Deus na essência da alma daqueles a quem Ele ama, uma participação da natureza divina que passa a ser para o homem um princípio interno através do qual ele se move à consecução do bem eterno de modo fácil e conatural, uma luz e um esplendor da alma que é para ela uma qualidade própria, assim como a beleza o é para o corpo".

Junto com a caridade o homem é necessariamente movido ao arrependimento de seus pecados passados e deles é perdoado por Deus, mas o que chamamos de justificação não consiste apenas no perdão dos pecados, este perdão sendo conseqüência de uma verdadeira santificação e renovação do homem interior pelo recebimento voluntário da graça que move o homem à caridade, tornando-o amigo de Deus, participante de sua natureza, e co herdeiro de Cristo da vida eterna. Tal é a graça que habita na alma do homem justo.

A justificação, portanto, inicia-se por um movimento da inteligência e da vontade, inspirado pela graça divina, às vezes tão delicadamente que sequer nos damos conta do caráter sobrenatural deste fato. Sobrevindo a caridade, as graça se torna, além de uma luz que ilumina o homem, também uma luz própria da alma, e passa a manifestar-se em seu início predominantemente através do dom de temor do Senhor. Ao desenvolvimento da caridade estará ligado o desenvolvimento de todas as demais virtudes, mas ela própria, a caridade, necessitará, no início da vida espiritual, para o seu desenvolvimento, da condução da fé. A fé, portanto, no princípio, freqüentemente muito longo, da vida espiritual, não é apenas um pressuposto lógico para a vida da caridade que possa ser esquecido uma vez possuído; ao contrário, é uma virtude que deve desenvolver-se paralelamente à caridade e alimentá-la:

"No temor do Senhor",

diz o livro de Provérbios,

"há uma confiança cheia de fortaleza";

Pr. 14, 26

com o que a Escritura testemunha que se a fé não se desenvolve, o temor do Senhor não amadurece e não será possível ao homem passar aos dons que a disposição divina determinou que lhe devessem suceder.

Esta afirmação de Provérbios, porém, não vale apenas para o dom de temor do Senhor, mas também para os outros dons que se seguem a ele. Próximo do fim do desenvolvimento da vida espiritual, quando o exercício da fé se torna cada vez mais constante, a caridade, sem que por isso deixe de existir a fé e a esperança, passará a assumir mais completamente o papel de condutora da vida espiritual. Será então que os justos se dirigirão a Deus e lhe dirão:

"Põe-nos como um selo sobre o teu coração,

porque o amor é forte como a morte,

as suas lâmpadas são lâmpadas de fogo e de chamas.

As muitas águas não poderão extinguir o amor,

nem os rios terão força para o submergir.

Ainda que o homem dê todas as riquezas de sua casa pelo amor, ele as desprezará como um nada".

Cant. 8, 6-7

E também, como São Paulo:

"Quem nos separará, pois, do amor de Cristo?

Nem a tribulação, nem a angústia, nem a fome, nem a nudez, nem o perigo, nem a perseguição, nem a espada.

De todas estas coisas somos mais do que vencedores por aquele que nos amou.

Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus que está em Jesus Cristo nosso Senhor".

Rom. 8, 35-39