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No início dos "Mistérios da Fé Cristã", Hugo de São
Vítor afirma que o assunto de que tratam todas as Sagradas
Escrituras é a obra da restauração humana.
Pode-se dizer que o mesmo é o assunto destas aulas, já que elas
versam sobre as Sagradas Escrituras. Nós as iniciamos com a
questão da queda do homem, da inabilidade que os homens manifestam em
compreenderem a extensão desta queda e avaliar imparcialmente seu
próprio estado:
dizem as Escrituras,
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"e estão privados da glória de Deus;
não há quem entenda,
não há quem busque a Deus,
todos se transviaram,
todos se corromperam".
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Estas expressões, e outras similares, se aplicam a toda a
humanidade, mas os homens agem, quando as ouvem, como se elas se
aplicassem apenas aos outros. Diante do que a natureza e a graça
divina lhes têm preparado, e pelo qual eles não se interessam, isto
faz com que todo o seu agir se assemelhe, objetivamente falando, ao de
loucos, entregues ao pecado, às paixões da carne, ao egoísmo, ao
orgulho inteiramente destituído de fundamento, que os torna cada vez
mais cegos para os verdadeiros motivos pelos quais foram criados e os
impede de alcançar aquilo que é a autêntica felicidade. Ainda que
se lhes explique tudo isto com detalhes e ainda que eles o entendam,
já estão tão condicionados ao seu louco modo de proceder que,
segundo diz a Epístola de São Tiago,
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"podem ser comparados
a um homem que contempla num espelho
seu verdadeiro rosto;
apenas se contemplou,
tendo-se retirado,
logo esqueceu-se como era".
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O homem neste estado persevera em rebaixar-se continuamente a si
mesmo, lutando com todas as suas forças por objetivos baixíssimos que
são procurados, na maioria das vezes, de forma passional e
incoerente, como se se tratassem dos maiores bens para a sua vida:
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"Não só caíram na ignorância do bem",
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diz a Escritura,
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"como deixaram ainda aos homens
uma lembrança de sua loucura".
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Tal é o estado do homem decaído, uma enfermidade, diz Santo
Antão,
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"que é dor para os santos
e causa das lágrimas e dos gemidos
que oferecem por nós
diante do Criador do Universo",
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mas que, para nossa confusão, nos é freqüentemente motivo para
fazer festa e pular de alegria.
Que Deus não nos formou para isto, até uma simples observação um
pouco mais atenta da natureza humana facilmente o demonstraria. Em sua
bondade, o Criador quis nos tirar deste estado lastimável; vendo,
porém, que sequer conseguíamos perceber os seus sinais que Ele
espalhou abundantemente na natureza e inclusive em nós mesmos,
inspirou as Sagradas Escrituras e enviou aos homens o Cristo para que
os ensinasse e sofresse por eles. Ele nos pede encarecidamente, ainda
que não possamos entender claramente o alcance e a importância do seu
pedido, que renunciemos a todos os objetivos que tão cegamente
formamos para a nossa vida e aos quais tão fortemente nos agarramos, e
passemos a viver apenas para amar a Deus e ao próximo. Ele nos pede
isso porque nos ama e quer o nosso próprio bem. Se fizéssemos ambas
estas coisas, aos poucos ficaríamos curados, e tanto, que sequer
acreditaríamos se nos contassem.
Mas o Cristo sabia que o homem não poderia decidir-se a estas coisas
apenas pelo esforço de sua própria vontade; para isto dependeria
também e principalmente da graça do Espírito Santo. Ele morreu
por nós para que, ressuscitando, pudesse distribuir a graça entre os
homens mais copiosamente ainda do que a providência havia determinado
antes da queda do homem. Ele deseja, de fato, através do seu
Espírito, ressuscitar-nos juntamente com Ele, e nos aponta a fé
como o caminho para nos aproximarmos de sua graça. Este foi o assunto
deste presente livro, em que mostramos que o Espírito Santo,
necessário para o homem desprender-se das coisas da terra e buscar as
do alto, é concedido ao homem através da fé.
Mas eis que, agora, depois de termos aprendido isto, acabamos de
explicar que a fé, através da qual se alcança a graça, também
não depende apenas da vontade do homem, mas principalmente do próprio
Espírito Santo. Esta afirmação nos coloca então o problema de
saber, já que para alcançar a fé não basta apenas o simples querer
do homem, o que o homem pode fazer para obtê-la.
Indicaremos a seguir três caminhos para se alcançar a fé. Na
primeira leitura, diante do que já dissemos, parecerá que os dois
primeiros caminhos são secundários e até desprovidos de razão, e
que o único realmente necessário e eficaz seja o terceiro. Mais
adiante, porém, mostraremos o verdadeiro motivo pelo qual os dois
primeiros são importantes e necessários, embora o mais importante de
todos seja inegavelmente o terceiro. Será preciso, pois, praticar a
todos para alcançar a fé, e, através dela, a graça do Espírito
Santo.
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