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Os aficionados pelas corridas de cavalos, embora aqueles a quem apoiam
nos esforços das corridas não se descuidem um instante em suas
tentativas de ser velozes, nas arquibancadas e envolvendo com os olhos
todo o certame, gritam no desejo de os ver triunfar, e com os gritos
incitam ao cocheiro e aos cavalos – ao menos assim o crêem - a um
impulso mais forte; dobram os joelhos ao mesmo tempo que os cavalos e
estendem as mãos para a frente, agitando-as como um chicote. Não
atuam assim porque estas coisas causem a vitória, mas pelo interesse
que sentem pelos participantes, que os leva a mostrar sua preferência
com a palavra e com o gesto. Algo semelhante me parece acontecer
contigo, o mais estimado dos amigos e irmãos: enquanto no estádio
das virtudes te empenhas valentemente na competição divina e avanças
com passos ágeis e rápidos para a recompensa do chamado que vem de
cima, te animo com minhas palavras, e te apresso, e te exorto a
aumentar o esforço para ser mais veloz. Atuo assim não como quem se
deixa levar por um impulso irrefletido, mas como quem proporciona a um
filho querido tudo o que lhe é grato. Como na carta que me enviaste
recentemente me pedes um conselho para a vida perfeita, me pareceu
conveniente te propor com minhas palavras algo que talvez só te será
útil se se converter para ti em um exemplo eficaz de obediência. Com
efeito, se eu, que estou colocado no lugar de pai para tantas almas,
considero conveniente a meus cabelos brancos aceder ao pedido de tua
juventude virtuosa, tanto mais conveniente será que se reforce em ti a
disposição à docilidade, agora que a tua juventude tem sido
instruída por mim a uma obediência voluntária. E já basta deste
tema. Iniciemos já o assunto proposto, tomando a Deus como guia de
nosso discurso. Pediste-me, meu querido, que te trace um esboço de
qual é a vida perfeita, com a intenção evidente de aplicar a tua
própria vida – se o que procuras se encontra em minha resposta – a
graça indicada por minhas palavras. Sinto-me igualmente incapaz
destas coisas: confesso que se encontra acima de minhas forças tanto o
definir com palavras em que consiste a perfeição, como o mostrar em
minha vida o que o espirito entende dela. Talvez não só eu, mas
também muitos dos grandes e avançados na virtude confessarão que uma
coisa assim também não é alcançável para eles. Explicarei com a
maior clareza o que estou tentando dizer, para não parecer,
dizendo-o com as palavras do Salmo, que tenho temor onde não deve
haver temor (Sal 13, 5). Em todas as coisas pertencentes à
ordem sensível, a perfeição está circunscrita por alguns limites,
como sucede com a quantidade contínua ou descontínua. Com efeito,
tudo aquilo que se pode medir quantitativamente se encontra em limites
bem definidos, e alguém que considere um pedaço ou o número dez sabe
bem que, para essas coisas, a perfeição consiste em ter um começo e
um fim. Por outro lado, com relação à virtude, aprendemos com o
Apóstolo que o único limite de perfeição consiste em não ter
limite. Aquele divino Apóstolo, grande e elevado de pensamento,
correndo sempre pelo caminho da virtude, jamais cessou de se lançar
para a frente, pois lhe parecia perigoso deter-se na corrida. Por
que? Porque todo o bem, pela própria natureza, carece de limites,
e só é limitado pela presença de seu contrário, como a vida é
limitada pela morte e a luz pelas trevas; em geral, tudo aquilo que é
bem tem seu fim naquilo que é considerado o oposto do bem. Assim como
o fim da vida é o começo da morte, assim também o deter-se na
corrida pela virtude é o princípio da corrida ao vício.
Por este motivo, não nos enganava nosso raciocínio ao dizer que, no
que diz respeito à virtude, é impossível uma definição da
perfeição, já que demonstramos que tudo que se encontra demarcado
por alguns limites não é virtude. E como eu disse que para aqueles
que vão atras da virtude é impossível alcançar a perfeição,
esclarecerei meu pensamento com relação a esta questão. O Bem em
sentido primeiro e próprio, aquele cuja essência é a Bondade, esse
mesmo é a Divindade. Esta é chamada com propriedade – e é
realmente – tudo aquilo que implica sua essência. Como já foi
demonstrado que a virtude não tem mais limite alem do vício, e foi
demonstrado também que na Divindade não cabe o que é contrário,
conclui-se consequentemente que a natureza divina é infinita e
ilimitada. Portanto, quem busca a verdadeira virtude não busca outra
coisa senão Deus, já que Ele é a virtude perfeita. Com efeito,
a participação do Bem por natureza é completamente desejável para
quem o conhece, e, alem disso, o Bem é ilimitado; segue-se,
pois, necessariamente que o desejo de quem busca participar dele é
coextensivo com aquilo que é ilimitado, e não se detém jamais.
Portanto, é impossível alcançar a perfeição, pois, como já
dissemos, a perfeição não está circunscrita por nenhum limite; o
único limite da virtude é o ilimitado. E como poderá alguém chegar
ao limite prefixado, se este limite não existe? Porem o fato de
havermos demonstrado que o que buscamos é totalmente inatingível,
não justifica que se possa descuidar do preceito do Senhor, que diz:
Sede perfeitos, como é perfeito vosso Pai celeste. Com efeito,
aqueles que têm bom senso julgam grande ganância não carecer de uma
parte dos bens verdadeiros, ainda que seja impossível alcança-los de
forma completa. Deve-se portanto, por todo ardor em não estar
privado da perfeição possível e, em conseqüência, em alcançar
dela tanto quanto sejamos capazes de receber em nosso interior. Talvez
a perfeição da natureza humana consista em estar sempre dispostos a
conseguir um maior bem. Parece-me oportuno tomar a Escritura como
guia nesta questão. De fato, a voz de Deus diz por meio da profecia
de Isaías: Lançai os olhos para Abraão vosso pai, e para Sara
que vos deu à luz (Is 51,2). A palavra divina faz esta
exortação àqueles que erram longe da virtude, para que assim como os
navegantes que se desviaram de sua rota para o porto corrigem-se de seu
erro graças a um sinal que se lhes faz visível – vendo um sinal de
fogo posto no alto ou em cima de um monte – assim também aqueles que
erram no mar da vida levados por uma mente sem timoneiro, se dirijam
novamente ao porto da vontade divina seguindo o exemplo de Abraão e
Sara. A natureza humana se divide em feminino e masculino, e a
escolha entre virtude e vicio se apresenta igualmente ante ambos os
sexos. Por esta razão, a palavra divina oferece o exemplo de virtude
correspondente a cada uma das partes, para que, olhando cada uma para
o que lhe é afim – os homens para Abraão e a outra parte para Sara
– as duas se encaminhem para a vida virtuosa com exemplos que lhe sejam
próximos. Também será suficiente para nós a lembrança de um
destes personagens ilustres por sua vida, para faze- lo desempenhar o
papel de guia, e mostrar assim como é possível que a alma chegue ao
porto seguro da virtude, onde já não estará exposta de nenhuma forma
às tempestades da vida, e onde não correrá o risco de cair no abismo
do vicio por causa dos sucessivos embates das ondas das paixões.
Talvez a história destes homens ilustres tenha sido escrita
detalhadamente para isto: para que a vida dos que vêm depois se dirija
para o bem imitando as coisas que foram feitas precedentemente com
retidão. Talvez alguém diga: se eu não sou caldeu como sabemos que
foi Abraão, nem fui criado pela filha do Egípcio como conta a
história de Moisés, nem tenho nada em comum na forma de viver com
nenhum destes homens de outros tempos, como conformarei minha vida com
a de um deles, se não tenho como imitar a alguém que me é tão
afastado em sua forma de viver? Respondemos que não pensamos que ser
caldeu seja vicio ou virtude, nem que ninguém se encontre afastado da
vida virtuosa por viver no Egito ou habitar na Babilônia. Pelo
contrário, nem Deus se faz conhecer somente na Judéia daqueles que
são dignos, nem Sião, entendido em sentido literal, é a casa de
Deus (Sal 75, 2-3). Portanto, teremos necessidade de uma
interpretação mais sutil e de um olhar mais agudo para discernir
sempre, a partir da história, de que caldeus ou egípcios havemos de
nos distanciar e de que cativeiro da Babilônia devemos escapar para
conseguir a vida bem-aventurada. Daqui para a frente, em nosso
discurso, tomamos Moisés como modelo de vida. Em primeiro lugar,
recorreremos rapidamente sua vida, conforme a conhecemos pela divina
Escritura; depois buscaremos o significado espiritual correspondente
à história, para receber um ensinamento sobre a virtude. Assim
conheceremos em que consiste para os homens a vida perfeita.
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