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Como pode a história estabelecer uma lei contrária à razão?
Considerando a interpretação espiritual, não será mais razoável
crer que isto sucede como figura e que, através do que foi dito, o
Legislador quis propor um ensinamento? O ensinamento é este: que
quem se empenha na luta da virtude contra o vício deve faze-lo
desaparecer em seus primeiros brotos. De fato, com a destruição dos
primeiros brotos, se destroi também o que lhes segue em
continuação, como nos ensina o Senhor no Evangelho, ordenando
quase com as mesmas palavras destruir os primogênitos dos vícios
egípcios; exorta-nos assim a cortar a concupiscência e a ira (Mt
5, 22 e 28), e a não ter medo nem da sujidade do adultério,
nem da mancha do homicídio, pois nenhum destes males tem consistência
por si mesmo, mas que é a cólera que leva a cabo o homicídio e o
desejo é que conduz ao adultério. Precisamente porque aquele que
engendra o mal, antes do adultério produziu o desejo e antes do crime
produziu a cólera, quem destroi o primogênito destroi totalmente a
descendência que segue o primogênito, do mesmo modo que quem golpeou
a cabeça da serpente matou com o mesmo golpe o corpo que rasteja
atrás. Porem isto não poderia acontecer se previamente não tivessem
sido borrifadas as ombreiras das portas com aquele sangue que afugenta o
Exterminador (Ex 12, 23). E se queremos captar com maior
exatidão o sentido de quanto se diz, a história no-lo insinua
através destas coisas: através da morte do primogênito e através da
proteção da entrada com o sangue. Ali, com efeito, se destroi o
primeiro movimento do mal e aqui mesmo, pelo verdadeiro cordeiro, se
afasta a primeira entrada do mal em nós. Pois uma vez que o
exterminador esteja dentro, não o expulsaremos com um simples
pensamento; vigiemos com a Lei, para que nem se quer comece a entrar
em nós. A vigilância e a segurança consistem em sinalizar com o
sangue do cordeiro o montante e as ombreiras da entrada (Ex 12,
22). A Escritura nos explica estas coisas da alma com figuras;
também a ciência profana as intuiu ao distinguir a alma em seu aspecto
racional, concupiscível e irascível. Deles - diz - o irascível e
o concupiscível estão abaixo, sustentando cada um a parte racional da
alma, e assim a parte racional, tendo subjugadas as outras duas, as
governa e, por sua vez, é sustentada por elas: é impulsionada ao
valor pelo apetite irascível e é elevada pelo apetite concupiscível
à participação no bem. Enquanto a alma se encontra estabilizada
nesta disposição, estando segura por pensamentos virtuosos como se
fossem cavilhas, dá-se uma cooperação para o bem de todas as
faculdades entre si: a parte racional dá segurança por si mesma às
partes que lhe estão submetidas e, por sua vez, recebe o mesmo
benefício da parte delas. Porem se a ordem for invertida e o que
está acima passar par baixo, caindo para a parte em que é pisada, a
razão fará subir sobre si as disposições concupiscível e
irascível, e então, o exterminador entrará no interior, sem que se
oponha a ele nenhum repúdio proveniente do sangue, isto é, sem que a
fé em Cristo ajude no combate àqueles que se encontram nestas
disposições. Manda borrifar com sangue primeiro o montante, e
besuntar depois as ombreiras de um lado e outro. Como poderia alguém
untar primeiro o que está acima, se não estivesse em cima? Não
estranhes se estes dois episódios - a morte dos primogênitos e a
aspersão do sangue - não acontecem igualmente aos israelitas, e não
repudies, por causa disto, nossa consideração a respeito da
destruição do mal, como se estivesse fora da verdade. Interpretamos
a diferença entre os nomes hebreu de egípcio como a diferença entre a
virtude e o vício. Se, pois, o sentido espiritual sugere entender o
israelita como o bom, não seria coerente que alguém tentasse matar as
primícias dos frutos da virtude, mas aquelas cuja destruição é mais
útil que sua conservação. Assim pois, coerentemente, aprendemos
com Deus que é necessário destruir as primícias da estirpe
egípcia, para que seja destroçado o mal, aniquilado com a
destruição de seus primeiros brotos. Esta interpretação está de
acordo com a história. A proteção dos filhos dos israelitas tem
lugar por meio da aspersão do sangue para que o bem chegue à
plenitude; por outro lado, aquele que ao amadurecer haveria de
constituir o povo egípcio, este é destruído antes que chegue à
plenitude no mal. O que segue está de acordo com a interpretação
espiritual que propusemos, acomodando-se ao sentido do discurso.
Prescreve-se, com efeito, que se converta em nosso alimento o corpo
daquele do qual fluiu este sangue que, mostrado nos montantes das
portas, afasta o exterminador dos primogênitos dos egípcios. A
atitude dos que levam à boca esta comida há de ser sóbria e conforme
com pessoas que têm pressa, não como a que se vê naqueles que se
divertem em banquetes, cujas mãos estão soltas, as vestes sem
cingir, os pés livres de calçados de viagem. Aqui tudo é o
oposto. Os pés estão aprisionados nos sapatos, o cinturão cinge as
pregas da túnica aos rins e, na mão, o bastão que defende dos cães
(Ex 12, 11). E neste atavio, a comida é posta diante deles
sem nenhuma preparação complicada, mas elaborada apressadamente sobre
o fogo, de forma improvisada. Os convidados a devoram rapidamente, a
toda pressa, até que todo o corpo do animal tenha sido consumido.
Comem tudo o que é comestível em redor dos ossos, porem não tocam
no que está dentro, pois é proibido romper os ossos deste animal. O
que sobra de comida é consumido pelo fogo (Ex 12, 9-10 e Nm
9, 12). De tudo isto se depreende com clareza que a Escritura
está visando um significado mais elevado, já que a Lei não nos
ensina o modo de comer, para estas coisas é suficiente guia a
natureza, a qual colocou em nós o apetite, mas através disto quer
significar outra coisa. De fato, que tem a ver com a virtude ou o
vício a comida ser apresentada de uma forma ou de outra, com a cintura
cingida ou sem cingir, descalços os pés ou com os sapatos, tendo o
bastão na mão ou o havendo deixado? Resulta claro, ao contrário,
o que significa simbolicamente a preparação do aparato de viagem.
Convida-nos diretamente a que reconheçamos que na vida presente
estamos de passagem, como caminhantes, impelidos desde o nascimento
até à morte pela mesma necessidade das coisas. E que é necessário
que as mãos, os pés e tudo o demais estejam preparados para esta
saída a fim de ter segurança no caminho. Para que não sejamos
feridos nos pés desprotegidos e descalços pelos espinhos desta vida,
os espinhos poderiam ser os pecados, protejamo-los com a defesa dos
sapatos. Isto é a vida casta e austera, que quebra e dobra por si
mesma as pontas dos espinhos, e evita que o mal penetre dentro de nós
com um começo pequeno e imperceptível. Uma túnica que flutua solta
sobre os pés e que se enreda entre as pernas seria um estorvo para quem
anda corajosamente por este caminho, segundo Deus. Neste contexto,
poderíamos entender a túnica como a relaxação prazenteira nos
cuidados desta vida a qual uma mente sábia, convertendo-se em
cinturão do caminhante, reduz e aperta. Que o cinturão é a
temperança, se atesta pelo lugar ao qual cinge. O bastão que
defende das feras é a palavra da esperança, com a qual sustentamos a
alma em suas fadigas e afugentamos os que ladram. O alimento para nós
preparado no fogo comparo com a fé cálida e ardente que acolhemos sem
demora, de que comemos quanto de comestível está à mão do que
come, enquanto deixamos de lado, sem buscar e sem espiar
curiosamente, a doutrina que está velada em conceitos duros e
dificilmente assimiláveis, entregando ao fogo um alimento semelhante.
Para explicar os símbolos utilizados em relação a isto, dizemos o
seguinte: alguns dos ensinamentos divinos têm um sentido exeqüível;
não convém recebe-los preguiçosamente nem de má vontade, mas
saciar- nos, como famintos impelidos pelo apetite, dos ensinamentos
que estão diante de nós, de forma que o alimento se converta em
robustecimento para nossa saúde. Outros ensinamentos são obscuros,
como o indagar qual é a substância de Deus, ou o que existia antes
da criação, ou o que há alem das aparências, ou que necessidade
marca os acontecimentos, e todas as coisas deste estilo que são
investigadas pelos curiosos; é necessário deixar que estas coisas só
sejam conhecidas pelo Espírito Santo, que penetra as profundidades
de Deus, como diz o Apóstolo (1Co 2, 10). Com efeito,
ninguém que esteja familiarizado com a Escritura ignora que nela o
Espírito freqüentemente é lembrado e é designado como fogo. Somos
levados a esta interpretação pela advertência da Sabedoria: Não
especules sobre o que te ultrapassa (Eclo 3, 22), isto é, não
rompas os ossos do ensinamento, pois não te é necessário o que está
escondido (Eclo 3, 23).
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