|
O fato de que o investigador do vôo das aves, que mencionamos,
praticava a magia é atestada pelo relato quando diz que tinha o poder
de fazer vaticínios na mão e de consultar através das aves e, antes
disso, que havia conhecido pelo zurro da jumenta o concernente à
rivalidade que tinha diante. A Escritura apresentou o zurro da
jumenta como uma palavra articulada, porque ele habitualmente
consultava com uma força diabólica as vozes dos animais. Mostra-nos
com isto que quem está enredado com este engano dos demônios chega
inclusive a tomar como uma palavra racional o ensinamento que encontra
na observação dos sons dos irracionais. Ao escuta-la, compreendeu
por aquelas mesmas coisas em que havia errado, que era invencível a
força contra a qual o haviam alugado. Também na narração
evangélica a turba de demônios chamada legião (Mc 5, 9 e Lc
8, 30), se prepara para se opor ao poder do Senhor. Porem
quando se aproxima Aquele que tem o poder sobre todas as coisas, a
horda proclama seu poder excelso e não oculta a verdade: que este é a
força divina, e que em tempo vindouro infligirá o castigo aos
pecadores. Pois diz a voz dos demônios: Sabemos quem és: o Santo
de Deus, e que vieste antes do tempo a atormentar-nos (Mc 1,
24; 5, 7 e Lc 4, 34-35). Isto é o que sucedeu também
então: o poder demoníaco que acompanhava o mago ensinou a Balaan que
o povo era invencível e invulnerável. Harmonizando este relato com
as coisas que já explicamos, dizemos que quem quer maldizer os que
vivem na virtude não pode pronunciar nenhuma palavra hostil nem
discordante, mas converte sua maldição em benção. Isto significa
que a afronta da difamação não alcança os que vivem na virtude.
Com efeito, como pode ser caluniado de avareza aquele que não possui
nada? Como será reprochado de libertino aquele que vive só levando
uma vida de anacoreta? De cólera aquele que é manso? De orgulho
aquele que é humilde? Ou como se dirigirá qualquer outra critica
àqueles que são conhecidos pelo contrário, que têm por finalidade
apresentar uma vida inacessível à critica a fim de que, como diz o
Apóstolo, nosso adversário se envergonhe não tendo nada que dizer
(Tt 2, 8)? Por esta razão disse a voz de quem havia sido feito
vir para maldizer: como maldiria àquele que não maldiz o Senhor?
(Nm 23, 8), isto é, como acusarei quem não oferece matéria
de acusação, já que, por olhar sempre para Deus, leva uma vida
inacessível ao pecado? Apesar de haver falado isto, o inventor da
maldade não cessa em absoluto seu projeto contra os que tentava, mas
muda a insídia para sua forma mais antiga de tentar, tentando atrair a
natureza para o mal outra vez por meio do prazer. Com efeito, o
prazer é apresentado por todo vício como isca que arrasta facilmente
as almas sensuais a cair no anzol da perdição. É sobre tudo por meio
do prazer impuro que a natureza é arrastada para o mal sem que se
controle. É o mesmo que sucede agora. Com efeito, aqueles que
haviam prevalecido sobre as armas, que haviam demonstrado que todo
ataque de ferro era mais débil que sua própria força, e que com seu
poder haviam feito fugir o exército dos inimigos, estes foram feridos
pelos dardos femininos através do prazer. E os que haviam sido mais
fortes que os varões se converteram em vencidos pelas mulheres. Com
efeito, logo que vieram às mulheres que punham ante eles suas
próprias formas em vez de armas, imediatamente esqueceram o ímpeto de
seu valor, apagando seu ardor no prazer. Eles estavam em uma
situação na qual era natural deixar-se levar à união proibida com
estrangeiros. Com efeito, a vizinhança com o mal já era um
afastamento da ajuda do bem. Imediatamente a Divindade se levantou em
cólera contra eles. Porem o zeloso Finéias não esperou que o
pecado fosse purificado por uma decisão do alto, mas ele mesmo se
converteu em juiz e verdugo (Nm 25, 1-9). Enchendo-se de ira
contra quem se havia deixado levar pela paixão, fez as vezes de
sacerdote purificando o pecado com sangue: não com o sangue de algum
animal inocente, que não tivera parte na imundície da intemperança,
mas com o dos que se haviam unido entre si no pecado. Sua lança
deteve o movimento da justiça divina ao atravessar de um só golpe os
corpos dos dois, mesclando com a morte o prazer dos pecadores.
Parece-me que o relato propõe aos homens um ensinamento útil à
alma. Através dele aprendemos que, sendo muitas as paixões que se
opõem à razão do homem, nenhuma outra paixão tem tanto poder contra
nós que possa igualar a enfermidade do prazer. Pois o fato de que
aqueles israelitas, que unidos se haviam mostrado mais fortes que a
cavalaria egípcia, haviam superado os amalecitas, haviam parecido
temíveis ante o povo que lhes era vizinho e depois destas coisas haviam
vencido a falange dos madianitas, hajam caído na escravidão da
paixão quando viram as mulheres estrangeiras, mostra bem - como
dissemos - que a voluptuosidade é para nós um inimigo difícil de
combater e de vencer. Tendo vencido imediatamente, só com seu
comparecimento, a homens impetuosos com as armas, a voluptuosidade
levantou contra eles a bandeira da desonra, publicando sua infâmia à
luz do sol. Pois mostrou que os homens, por sua causa, converteram
em animais os que o impulso bestial e irracional à impureza convenceu a
que esquecessem de sua natureza humana, a ponto de não encobrir sua
impiedade, mas gloriar-se com a infâmia de sua paixão e adornar-se
com a imundície da vergonha, chafurdando como porcos na lama da
impureza, abertamente, à vista dos demais. Que lição tiraremos
deste relato? Que sabedores de quanta força para o mal tem a
enfermidade da voluptuosidade, mantenhamos nossa vida o mais afastada
possível desta vizinhança, de forma que esta enfermidade, que é
como um fogo que com sua proximidade acende a chama perversa, não
tenha nenhum acesso a nós. Isto é o que ensina Salomão na
Sabedoria ao dizer que não se deve pisar a brasa com o pé descalço e
que não se deve introduzir fogo no seio (Pr 6, 27-28), pois
está em nosso poder permanecer livres de paixão contanto que nos
mantenhamos longe de avivar o fogo. Porem se, ao contrário,
chegarmos a tocar este fogo ardente, penetrará em nosso seio o fogo da
concupiscência, e então se seguirá a queimadura para o pé e a
ruína para o seio.
|
|