SEGUNDA PARTE

INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS


CAPÍTULO 1.

Moisés nasceu precisamente quando o tirano havia ordenado matar os varões (Ex 1, 16). Como o imitaremos com nossa livre escolha as circunstâncias do nascimento deste homem? Não está em nosso poder – dirá seguramente alguém – comparar aquele ilustre nascimento com nosso nascimento. Não obstante, não é difícil começar a imitação por aquilo que parece mis inacessível. Pois quem desconhece que todo o ser que está sujeito à mudança nunca permanece idêntico a si mesmo, mas que continuamente passa de um estado a outro, pois a mudança sempre se opera para melhor ou para pior? Apliquemos isto ao nosso assunto. O feminino da vida, aquele que o tirano quer que sobreviva, é a índole material e passional a que é conduzida, ao escorregar, a natureza humana; por outro lado, o renovo varonil é o impetuoso e forte da virtude, que é hostil ao tirano e que a este resulta suspeito de rebelião contra seu poder. É necessário que aquele que é submetido a mudança seja de algum modo gerado constantemente, pois na natureza mutável não há nada que permaneça totalmente idêntico a si mesmo. Alem disso, ser gerado deste modo não provem de um impulso exterior, à semelhança dos que geram corporalmente o que não prevêem, senão que este nascimento tem lugar por nossa livre escolha. Somos, de certa forma, nossos pais: geramos a nós mesmos de acordo com o que queremos ser. Mediante a livre escolha, nos adaptamos ao modelo que escolhemos: varão ou fêmea, virtude ou vicio. Por esta razão, apesar da hostilidade e do desgosto do tirano, nos é possível chegar à luz com um nascimento mais nobre, e ser contemplados com agrado pelos pais deste parto formoso, estes pais da virtude seriam os pensamentos, e permanecer na vida mesmo que isto seja contrário à intenção do tirano. Se partindo da história colocássemos mais em evidência seu sentido íntimo, o discurso ensinaria isto: que no começo da vida virtuosa se encontra o nascer que provoca tristeza ao inimigo, referindo-me a esta forma de nascimento em que o livre arbítrio faz o papel de parteira. Pois ninguém causa tristeza ao inimigo se não mostra já, em si mesmo, sinais que dão testemunho de sua vitória sobre ele. Pertence exclusivamente ao livre arbítrio dar a luz a este rebento varonil e virtuoso e mante-lo com alimentos convenientes, assim como também prover a que se salve incólume da água. Aqueles que entregam seus filhos ao tirano, os expõem nus e sem proteção à corrente. Chamo corrente à vida agitada com sucessivas paixões; o que cai nesta corrente, afundando, submerge nela e se afoga. Os sábios e providentes pensamentos, que são os pais deste filho varão, quando a necessidade da vida os obriga a depositar seu bem descendente nas ondas da vida, protegem aquele que põem na corrente em uma cesta para que não se afunde. Essa cesta, tecida com fibras diversas, é a educação, tecida por sua vez com diversas disciplinas; sobre as ondas da vida, ela manterá flutuando aquele que leva (Ex 2, 3). Graças a ela, este não vagueará muito na agitação das águas, levado de um lado para outro pelo movimento das ondas, mas tendo chegado à estabilidade da terra firme, isto é, tendo saído da agitação da vida, será empurrado para o estável pelo impulso mesmo das águas. A experiência também nos ensina isto: que a instabilidade e mudança constante dos negócios deixam longe de si aqueles que não estão imersos nos enganos humanos, considerando uma carga inútil os que lhes são nocivos por sua virtude. Quem conseguir permanecer fora destas coisas, que imite Moisés e não evite lágrimas, embora se encontre protegido em uma arca. As lágrimas, com efeito, são proteção segura para os que se salvam através da virtude. E se a mulher sem filhos e estéril, que é filha do rei, penso que ela representa propriamente a sabedoria pagã, fazendo passar por seu o recém-nascido, tenta ser chamada mãe deste, a palavra aceita que não se recuse o parentesco desta pretendida mãe contanto que se considere nela o imperfeito da idade. Porem quem corre para cima, para o alto – como sabemos de Moisés – experimenta a vergonha de ser chamado filho de quem é estéril por natureza. A cultura pagã é verdadeiramente estéril, sempre grávida, porem sem jamais dar a luz em um parto. Pois após seus grandes períodos de gravidez, que fruto pode mostrar a filosofia que seja digno de tais e tantos esforços? Acaso não são todos vazios e imaturos, abortados antes de chegar à luz do conhecimento de Deus, podendo haver chegado talvez a homens se não tivessem estado completamente fechados no sentido de uma sabedoria estéril?