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O ensinamento da verdade é acolhido segundo as disposições dos que
recebem a palavra. De fato, a palavra mostra a todos o que é bom e o
que é mau. Pois bem, quem é dócil àquilo que lhe é mostrado tem
a mente na luz, enquanto que quem tem a disposição contrária e não
aceita que a alma olhe para a luz da verdade permanece na obscuridade da
ignorância. Se a interpretação que demos ao conjunto da passagem
não estiver errada, então a interpretação dada a cada um dos
detalhes não lhe será totalmente oposta, pois a exegese de cada um
deles está compreendida no conjunto. Portanto, não há nada de
estranho em que o hebreu permanecesse incólume diante das pragas dos
egípcios, embora estivesse vivendo no meio desses estrangeiros, posto
que também agora é possível ver que sucede a mesma coisa. De fato,
estando divididos os homens nas grandes cidades entre doutrinas
contrárias, para uns a água do manancial da fé é potável e
límpida, e a conseguem mediante o ensinamento divino, enquanto a
água se torna sangue corrompido para aqueles que se converteram em
egípcios por causa de suas perversas opiniões (Ex 7, 20).
Muitas vezes os sofistas do erro rondam também a água dos hebreus
para converte-la em sangue com a contaminação da mentira, isto é,
para mostrar-nos que nossa doutrina não é como é, porem não
conseguem corromper totalmente a água, embora a superfície fique
avermelhada por causa do erro. Ainda que esteja caluniada pelos
inimigos, o hebreu bebe água verdadeira, sem prestar atenção à
aparência de erro. O mesmo cabe dizer da espécie de rãs (Ex 8,
1-6), ruidosa e maléfica, que se introduz sub- reptíciamente
nas casas, habitações e dispensas dos egípcios, sem chegar a tocar
a vida dos hebreus: sua vida é anfíbia, seu salto rasteiro; é
repugnante não só por seu aspecto como também pelo fedor de sua
pele. Os desastrosos frutos da maldade que surgem do coração sujo
dos homens como gerados no pântano, são certamente como uma espécie
de rãs. Estas rãs habitam as casas de quem se fez egípcio por
escolha de seu estilo de vida; se deixam ver às mesas, não abandonam
os leitos e se introduzem nas dispensas onde se guardam as coisas.
Considera a vida suja e desavergonhada, nascida de um verdadeiro limo
pantanoso, que, ao imita-lo, se assemelha à natureza irracional.
Falando com rigor, em seu estilo de vida, não pertence a nenhuma das
duas naturezas, pois é homem segundo sua natureza, porem se
transformou em besta por sua paixão. Por esta razão mostra em si
mesma aquele modo de vida anfíbio e ambíguo. E assim encontrarás
nessa vida os sinais desta praga, não só nos leitos, mas também nas
mesas, nas dispensas e em toda a casa. Um homem assim deixa, por
onde quer que vá, o rastro de sua vida dissoluta, de forma que todos
podem distinguir facilmente a vida do homem licencioso da vida do homem
puro, inclusive na decoração da casa. De fato, na casa do impuro,
sobre o reboco das paredes, encontra-se pinturas feitas com
habilidade, que, ao trazer à memória as formas da debilidade,
excitam ao prazer sensual e introduzem as paixões na alma através da
contemplação de coisas vergonhosas, enquanto que na casa do sábio,
pelo contrário, há todo o cuidado e cautela para manter a vista livre
de espetáculos obscenos. Do mesmo modo a mesa do sábio se encontra
limpa, enquanto que a do que se espoja em uma vida lodosa está suja
como as rãs, e transbordante de comidas. E assim se entrasses nas
dispensas, isto é, nas coisas ocultas e reservadas de sua vida,
encontrarias ali, nas intemperanças, um montão ainda maior de rãs.
A história diz que o bastão da virtude fez estas coisas contra os
egípcios. Não nos desconcertemos por esta forma de falar. Também
diz a história que o tirano foi endurecido por Deus (Ex 9, 12 e
Rm 9, 17- 18). Como seria digno de condenação aquele que
tivesse sido feito duro e refratário por uma força irresistível vinda
do alto? O divino Apóstolo diz a mesma coisa: Posto que não
tivessem por bem guardar o verdadeiro conhecimento de Deus, Deus os
entregou às paixões vergonhosas (Rm 1, 28 e 26), falando dos
pederastas e de quantos se envilecem com as diversas formas vergonhosas
e inconfessáveis da vida dissoluta. Porém, embora seja verdade que
a divina Escritura se expressa dizendo que Deus entregou às paixões
vergonhosas aqueles que se entregaram a elas, nem o Faraó se
endureceu por querer divino, nem a vida sórdida, própria das rãs,
é causada pela virtude. De fato, se a Divindade tivesse querido
isto, tal querer teria tido absolutamente a mesma força sobre todos,
de forma que jamais se poderia estabelecer diferença alguma entre
virtude e vício. Ao contrário, uns e outros, os que são dirigidos
pela virtude e os que caem no vício, vivem de formas diferentes, e
ninguém poderá, racionalmente, atribuir a uma fatalidade
estabelecida pelo querer divino estas diferenças no modo de viver, que
surgem exclusivamente da livre escolha de cada um.
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