|
Moisés rechaça o parentesco aparente com a rainha dos egípcios.
Faz-se vingador do hebreu. Translada-se a uma vida solitária no
deserto, não turbada pelo contato com os homens. Pastoreia ali em si
mesmo o rebanho de animais domados. Vê o esplendor da luz. Torna
leve sua subida à luz despojando-se do calçado. Conduz à liberdade
seus parentes e compatriotas. Vê afundar-se o inimigo, carregado
pelas ondas. Permanece sob a nuvem. Sacia a sede com a pedra.
Recolhe pão do céu. Depois, com a elevação das mãos, vence o
estrangeiro. Ouve a trombeta. Entra nas trevas. Penetra nas
estâncias inacessíveis do tabernáculo não feito por mão de homem.
Aprende as coisas inefáveis do sacerdócio divino. Destroi o
ídolo. Aplaca Deus. Restabelece a lei quebrada pela maldade dos
judeus. Resplandece pela glória e, alçado por estas elevações,
ainda arde em desejos, e não se sacia de ter mais; ainda tem sede
daquele de que foi completamente saciado, e pede obte-lo como se nunca
o tivesse obtido, suplicando a Deus que se revele a ele, não na
forma em que ele é capaz de participar dela, mas tal qual Ele é.
Este sentimento me parece próprio de uma alma possuída pela paixão
do amor à beleza essencial: a esperança não cessa de atrair a partir
da beleza que se viu até à que está mais alem, acendendo sempre no
que já conseguiu o desejo do que ainda está por conseguir. De onde
se conclui que o amante apaixonado da Beleza, recebendo sempre as
coisas visíveis como imagem do que deseja, aspira saciar-se com o
modelo original desta imagem. E isto é o que quer a súplica audaz
que ultrapassa o limite do desejo: gozar da beleza, não através de
espelhos e reflexos, mas face a face (1Co 13,12). A palavra
divina admite a petição mesmo tempo que a repudia, mostrando em
poucas palavras um abismo incomensurável de conhecimento. Com
efeito, a magnanimidade de Deus concede a Moisés saciar o desejo,
porem não lhe promete nenhum repouso nem fartura desse desejo. Pois
não se teria mostrado a si mesmo a seu servo se a visão houvesse sido
tal que detivesse o desejo do que via, pois nisto consiste ver
verdadeiramente a Deus: em que quem o vê não se sacia jamais em seu
desejo. Por isso diz: Não poderás ver meu rosto. Com efeito,
nenhum homem verá meu rosto e seguirá vivendo (Ex 33, 20). O
relato diz isto não como se o mostrar-se convertesse Deus em causa de
morte para quem o visse. Como poderia a face da vida converter-se
jamais em causa de morte para quem se acercasse dela? A menos que,
posto que Deus é por essência o que dá a vida, e posto que um
traço essencial do conhecimento da natureza divina é o de estar acima
de todo o conhecimento, quem pensar que Deus é alguma das coisas
agora conhecida, esse não tem vida, pois se desviou do ser dos seres
a ponto de, com uma fantasia fora da razão, se pensar que existe.
Pois o que verdadeiramente existe é a vida verdadeira. E isto é
inacessível ao conhecimento. Se pois a natureza que dá a vida
transcende todo o conhecimento, aquilo que é abarcado pelo
conhecimento certamente não é a vida. O que não é a vida não tem
uma natureza apta para dar a vida. Por esta razão, se dá
satisfação ao desejo de Moisés precisamente naquilo que este desejo
fica sem satisfação. Com efeito, aprende do que já foi dito que a
Divindade, pela própria natureza, é inabarcável, pois não está
circunscrita por nenhum limite. Pois se pensássemos a Divindade com
algum limite, seria necessário considerar juntamente com o limite o
que haveria mais além deste limite. Com efeito, o que está limitado
termina certamente em alguma coisa, como o ar é limite dos animais
terrestres, e a água é o limite dos aquáticos. E posto que o peixe
é rodeado pela água em todas as partes, e o pássaro pelo ar, e o
meio da água no caso dos aquáticos e o do ar no caso do pássaro é o
marco do limite no ponto extremo que abarca o pássaro ou o peixe ao
qual delimitam a água e o ar, assim necessariamente, se pensarmos a
Divindade dentro de um limite, é necessário que esteja abarcada por
algo heterogêneo a sua natureza, e a lógica mostra que o continente
é maior que o contido.
|
|