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Moisés nasceu precisamente quando o tirano havia ordenado matar os
varões (Ex 1, 16). Como o imitaremos com nossa livre escolha
as circunstâncias do nascimento deste homem? Não está em nosso
poder – dirá seguramente alguém – comparar aquele ilustre nascimento
com nosso nascimento. Não obstante, não é difícil começar a
imitação por aquilo que parece mis inacessível. Pois quem
desconhece que todo o ser que está sujeito à mudança nunca permanece
idêntico a si mesmo, mas que continuamente passa de um estado a
outro, pois a mudança sempre se opera para melhor ou para pior?
Apliquemos isto ao nosso assunto. O feminino da vida, aquele que o
tirano quer que sobreviva, é a índole material e passional a que é
conduzida, ao escorregar, a natureza humana; por outro lado, o
renovo varonil é o impetuoso e forte da virtude, que é hostil ao
tirano e que a este resulta suspeito de rebelião contra seu poder. É
necessário que aquele que é submetido a mudança seja de algum modo
gerado constantemente, pois na natureza mutável não há nada que
permaneça totalmente idêntico a si mesmo. Alem disso, ser gerado
deste modo não provem de um impulso exterior, à semelhança dos que
geram corporalmente o que não prevêem, senão que este nascimento tem
lugar por nossa livre escolha. Somos, de certa forma, nossos pais:
geramos a nós mesmos de acordo com o que queremos ser. Mediante a
livre escolha, nos adaptamos ao modelo que escolhemos: varão ou
fêmea, virtude ou vicio. Por esta razão, apesar da hostilidade e
do desgosto do tirano, nos é possível chegar à luz com um nascimento
mais nobre, e ser contemplados com agrado pelos pais deste parto
formoso, estes pais da virtude seriam os pensamentos, e permanecer na
vida mesmo que isto seja contrário à intenção do tirano. Se
partindo da história colocássemos mais em evidência seu sentido
íntimo, o discurso ensinaria isto: que no começo da vida virtuosa se
encontra o nascer que provoca tristeza ao inimigo, referindo-me a esta
forma de nascimento em que o livre arbítrio faz o papel de parteira.
Pois ninguém causa tristeza ao inimigo se não mostra já, em si
mesmo, sinais que dão testemunho de sua vitória sobre ele. Pertence
exclusivamente ao livre arbítrio dar a luz a este rebento varonil e
virtuoso e mante-lo com alimentos convenientes, assim como também
prover a que se salve incólume da água. Aqueles que entregam seus
filhos ao tirano, os expõem nus e sem proteção à corrente. Chamo
corrente à vida agitada com sucessivas paixões; o que cai nesta
corrente, afundando, submerge nela e se afoga. Os sábios e
providentes pensamentos, que são os pais deste filho varão, quando a
necessidade da vida os obriga a depositar seu bem descendente nas ondas
da vida, protegem aquele que põem na corrente em uma cesta para que
não se afunde. Essa cesta, tecida com fibras diversas, é a
educação, tecida por sua vez com diversas disciplinas; sobre as
ondas da vida, ela manterá flutuando aquele que leva (Ex 2, 3).
Graças a ela, este não vagueará muito na agitação das águas,
levado de um lado para outro pelo movimento das ondas, mas tendo
chegado à estabilidade da terra firme, isto é, tendo saído da
agitação da vida, será empurrado para o estável pelo impulso mesmo
das águas. A experiência também nos ensina isto: que a
instabilidade e mudança constante dos negócios deixam longe de si
aqueles que não estão imersos nos enganos humanos, considerando uma
carga inútil os que lhes são nocivos por sua virtude. Quem conseguir
permanecer fora destas coisas, que imite Moisés e não evite
lágrimas, embora se encontre protegido em uma arca. As lágrimas,
com efeito, são proteção segura para os que se salvam através da
virtude. E se a mulher sem filhos e estéril, que é filha do rei,
penso que ela representa propriamente a sabedoria pagã, fazendo passar
por seu o recém-nascido, tenta ser chamada mãe deste, a palavra
aceita que não se recuse o parentesco desta pretendida mãe contanto
que se considere nela o imperfeito da idade. Porem quem corre para
cima, para o alto – como sabemos de Moisés – experimenta a vergonha
de ser chamado filho de quem é estéril por natureza. A cultura pagã
é verdadeiramente estéril, sempre grávida, porem sem jamais dar a
luz em um parto. Pois após seus grandes períodos de gravidez, que
fruto pode mostrar a filosofia que seja digno de tais e tantos
esforços? Acaso não são todos vazios e imaturos, abortados antes
de chegar à luz do conhecimento de Deus, podendo haver chegado talvez
a homens se não tivessem estado completamente fechados no sentido de
uma sabedoria estéril?
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