CAPÍTULO 4.

Moisés chegou então a isto, e agora chega também todo aquele que, seguindo seu exemplo, despoja a si mesmo de sua envoltura terrena e olha para a luz que sai da sarça, isto é, o raio de luz que nos ilumina através da carne cheia de espinhos, que é, como diz o Evangelho, a luz verdadeira (Jo 1, 19) e a verdade (Jo 14, 6). Então este chega a ser capaz de prestar ajuda aos demais no sentido da salvação, de destruir a tirania daquele que domina com artes más, e de encaminhar à liberdade os que estão debaixo da tirania de perversa escravidão. A transformação da mão direita e a mudança do bastão em serpente (Ex 4, 3-7) são o começo dos prodígios. Parece-me que nestes prodígios se dá a entender simbolicamente o mistério da manifestação da Divindade aos homens através da carne do Senhor, graças à qual tem lugar a destruição do tirano e a libertação dos que estão oprimidos por ele. Leva-me a esta interpretação o testemunho profético e evangélico. Pois o profeta diz: Esta é a mudança da destra do Altíssimo (Sal 76, 11), como se a Divindade, considerada imutável, se houvesse mudado conforme nosso aspecto e figura por condescendência para com a debilidade da natureza humana. A mão do Legislador tomou uma cor distinta da que lhe é natural ao ser tirada do peito; voltando novamente ao peito, tornou à beleza que lhe era própria e natural. O Deus Unigênito, o que está no seio do Pai (Jo 1, 18), é a direita do Altíssimo (Sal 76, 11). Quando se manifestou a nós saindo do seio, se transformou conforme nossa forma de ser; depois de haver curado nossa enfermidade, novamente recolheu ao próprio seio, o seio da direita do Pai, a mão que havia estado entre nós e que havia tomado nossa cor. Então não tornou passível o que era de natureza impassível, mas por sua comunicação com o que era impassível transformou em impassibilidade aquilo que era mutável e passível. A transformação do bastão em serpente não há de perturbar os amigos de Cristo como se tivéssemos que harmonizar a palavra do mistério com um animal que lhe é oposto (Ex 4, 3; 7, 10 e Nm 21, 9). A verdade mesma não afasta esta imagem quando diz com a voz do Evangelho: Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que seja levantado o Filho do homem (Jo 3, 14). O sentido é claro. Se o pai do pecado foi chamado serpente pela Sagrada Escritura (Gn 3, 1), e o que nasce da serpente é verdadeiramente serpente, segue-se que o pecado tem o mesmo nome daquele que o gerou. Pois bem, a palavra do Apóstolo dá testemunho de que o Senhor se fez pecado por nós (2Co 5, 21), ao revestir-se de nossa natureza pecadora. O símbolo se acomoda ao Senhor como foi dito. De fato, se a serpente é pecado e o Senhor se fez pecado, a conseqüência que se segue será evidente a todos : que quem se fez pecado, se fez serpente, a qual não é outra coisa senão pecado. Se fez serpente por nós para comer e destruir as serpentes dos egípcios produzidas pelos magos. Uma vez feito isto, a serpente se transforma novamente em bastão (Ex 7, 12) com o qual são castigados os que pecam, e são aliviados os que sobem o caminho escarpado da virtude, apoiando-se no bastão da fé por meio das boas esperanças. A fé é, na verdade, a substância das coisas que se esperam (Hb 11, 1). Quem chegou ao entendimento destas coisas é como um deus em relação àqueles que, seduzidos pela ilusão material e sem substância, opõem-se à verdade e julgam coisa vã escutar falar a respeito do ser. Pois disse o Faraó : Quem é ele para que eu escute sua voz? Não conheço o Senhor (Ex 5, 2). O Faraó só julga digno aquilo que é material e carnal, as coisas que caem sob as sensações irracionais. Ao contrário, se alguém tiver sido fortalecido pela iluminação da luz, e tiver recebido tanta força e tanto poder contra os adversários, então, como um atleta convenientemente preparado por seu treinador nos varonis exercícios do esporte, se dispõe, confiante e audaz, para o ataque dos inimigos, tendo na mão aquele bastão, isto é, o ensinamento da fé, com o que há de triunfar sobre as serpentes egípcias. A mulher de Moisés, saída de um povo estrangeiro (Ex 4, 20), o acompanhará. Há algo nada desprezível da cultura pagã para nossa união com ela com a finalidade de gerar a virtude. Com efeito, a filosofia moral e a filosofia da natureza podem chegar a ser esposa, amiga e companheira para uma vida mais elevada, com a condição de que os frutos que procedem delas não conservem nada da imundície estrangeira. Pois se esta sujeira não tiver sido circuncidada e cortada ao meio até o ponto em que todo o daninho e impuro haja sido arrancado fora, o anjo que lhes sai ao encontro lhes causará um terror de morte. A mulher o aplaca mostrando-lhe seu filho purificado pela ablação do sinal pelo qual se reconhece o estrangeiro (Ex 4, 24-26). Julgo que a quem esteja iniciado na interpretação da história será patente, por tudo que se disse, a continuidade do progresso na virtude que mostra o discurso seguindo, passo a passo, a conexão dos acontecimentos simbólicos da história.