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Se nos apegarmos à letra, o sentido destas coisas não só
permanecerá obscuro a quem o examina, como nem sequer estará livre de
uma concepção inverossímil de Deus. Com efeito, parte anterior e
parte posterior existem só nas coisas que têm forma, e toda forma é
limite de um corpo. Portanto, quem imagina uma figura delimitando
Deus, não pensará que Ele está livre de uma natureza corporal.
Pois bem, todo corpo é evidentemente composto. O composto é
constituído pela concorrência de elementos heterogêneos. Ninguém
diria que o composto é indissolúvel. O que se pode dissolver não
pode ser imortal. De fato, a corrupção é a dissolução do que é
composto. Se tomarmos ao pé da letra as costas de Deus, por via de
conseqüência seremos levados necessariamente a um absurdo. De fato,
diante e atrás só se dão no que tem forma, e a forma só se dá no
que tem corpo. E este, por sua própria natureza, pode ser
dividido, posto que todo o composto pode dividir-se. O que pode ser
dividido não pode ser imortal. Portanto, quem é escravo da letra
pensará como conseqüência que a Divindade está submetida à
corrupção. E sem dúvida, Deus é imortal de incorruptível. Mas
então, que interpretação alem do sentido literal será coerente com
a letra? Se uma parte nos obriga, no contexto do discurso, a buscar
outra interpretação das palavras escritas, sem dúvida será
conveniente fazer o mesmo com relação ao todo. O que entendemos de
uma parte, isso mesmo havemos de tomar necessariamente em relação ao
todo, pois não existe um todo se não está composto de partes.
Portanto, o lugar perto de Deus, e a pedra neste lugar, e nela o
lugar que se chama fenda, e a entrada de Moisés ali, e o estender da
mão de Deus até a boca da fenda, e sua passagem, e a chamada, e
depois disto a contemplação das costas, tudo isto será considerado
de forma mais adequada se seguirmos a norma da interpretação
espiritual. Qual é o significado? Que da mesma forma que os corpos
pesados, se algo recebe impulso em um plano inclinado, ainda que nada
o empurre depois deste primeiro movimento, se não há nada que corte o
impulso com um obstáculo, são empurrados por si mesmos para baixo com
força pela ladeira enquanto o plano permanecer inclinado costa abaixo;
assim de forma contrária, a alma que se liberta da paixão terrena,
se volta leve e veloz, começando a voar desde baixo até às coisas de
cima, até o alto. E como nada acima corta seu impulso, pois a
natureza do bem atrai a si a quem levanta os olhos para ela, a alma
sempre se eleva alem de si mesma, em tenção pelo desejo das coisas
celestiais, como diz o Apóstolo, até às coisas que estão adiante
(Flp 3, 13), e elevará seu vôo cada vez mais alto. Com
efeito, graças ao já conseguido, deseja não renunciar ao que está
acima e torna incessante seu impulso às coisas de cima renovando
sempre, com o já conseguido, a tenção para o vôo. De fato, o
trabalhar da virtude alimenta sua força no cansaço, já que sua
tenção não diminui pelo esforço, mas aumenta. Por esta razão
dizemos que o grande Moisés, apesar de fazer-se cada dia maior,
nunca se deteve no caminho para o alto, nem impôs a si mesmo algum
limite até o cume, mas que uma vez posto o pé na escada em cujo cimo
estava Deus (Gn 28, 12), como diz Jacob, subiu
ininterruptamente ao nível superior, sem cessar nunca de subir,
porque sempre há um degrau mais alto do que aquele a que já se
chegou.
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