III. MARIA DE ORDEZ - JERÔNIMO CASALINI - ZELO DE XAVIER

Maria de Ordez, nobre rica e santa mulher, irmã-confrade da Ordem Terceira de S. Domingos, estava possuída dum tão grande desejo de ir acabar os seus dias junto do túmulo deste santo fundador da Ordem, que, logo que se viu desligada dos laços de família que a prendiam a Espanha, aceitou as propostas da sua amiga Isabel Casalini, de Forli, que a convidara a ir a Bolonha a fim de a acompanhar no seu retiro e ali viverem como duas irmãs. A senhora Isabel habitava o presbitério de Santa Lúcia com seu tio Jerónimo Casalini, cura daquela paróquia, homem muito notável pelos seus conhecimentos científicos, pela sua piedade e outras virtudes.

Reunidas já as duas amigas e com o propósito de se não separarem dali em diante, iam todas as manhãs ouvir Missa à capela do túmulo de S. Domingos, quando um dia Maria de Ordez impressionada pelas maneiras do Padre que a celebrava, o fez notar a Isabel. Ambas dirigiram para ele olhares perscrutadores e ambas se compenetraram dum mesmo sentimento de admiração e respeito.

Para elas não era ele um padre da terra, mas sim um enviado do Céu; Isabel contempla-o por um instante, crendo em uma aparição celeste; depois, deixando cair a cabeça e apoiando-a entre as mãos, prostra-se, profundamente humilhada, aos pés de Deus, e sente naquele momento passar-lhe pela mente todas as misérias da sua alma, como jamais se lhe afigurara com tanta realidade; as lágrimas correm-lhe silenciosas e abundantes... Dirige de novo as vistas para o Padre, e nota que dos seus olhos também as lágrimas correm, porém apresentando no semblante uma espécie de irradiação divina...

Isabel não se enganara: aquelas lágrimas, a expressão seráfica, o modo de orar do Padre, testemunhavam evidentemente as delícias que enchiam a sua alma.

Acabada a missa, Isabel possuída de vivos desejos de falar ao Santo, que acabava de a comover tão profundamente, intenta pedir-lhe alguns conselhos espirituais, mas como ousar aproximar-se dele, se os seus desejos e os seus ela se julga tão indigna! Comunica temores à sua amiga... D. Maria achava-se do mesmo modo impressionada, e ainda muito comovida, responde-lhe somente:

-Vamos juntas!

Concordes nisto, mandaram pedir ao santo Padre a bondade de as receber por um instante; obtiveram-no, e logo que se acharam em sua presença ficaram por tal modo impressionadas da maneira como ele falou de Deus, que, depois de terem recebido os seus preciosos conselhos, correram imediatamente a participar a sua descoberta ao venerável cura

-Meu tio, diz-lhe Isabel, ele não é um homem, é um anjo!...

- Donde é ele? donde vem?

- É espanhol. Donde vem, ignoro-o; tudo quanto sei é que ele fala de Deus como nunca até hoje tenho ouvido falar, e que é duma beleza que nada tem da terra! Quando dirige 0 olhar para o Céu, estou certa, meu tio, que ele vê a Deus! Nunca vi expressão semelhante; é celestial!

- E ele mora no hospital! ajuntou D. Maria.

- Sim, meu tio, replicou Isabel, e nós não o podemos deixar ali. Ide vê-lo e suplicai-lhe que venha habitar o presbitério!

- Oh! sim, senhor, disse Maria, Deus deve abençoar generosamente os lugares por onde ele passa!...

- Muito bem, minhas filhas, eu irei vê-lo e farei quanto me seja possível para obter que honre o presbitério com a sua presença.

As duas amigas estavam já adiantadas em idade. O bom cura sentia que aquela exaltação, conquanto inteiramente natural do caráter italiano, devia ter, nestas duas santas almas, uma causa de grande valor.

No mesmo dia dirigiu-se ao hospital e pediu para ver o Padre espanhol que naquela manhã tinha celebrado a missa no altar do túmulo de S. Domingos.

- Ah! responderam-lhe, é o Padre Francisco! Que santo, senhor cura! que felicidade experimentareis se o virdes e o conhecerdes! Vinde, vinde contemplá-lo de longe na sala onde ele trata dos doentes.

- De que Ordem é ele?

- Nada sabemos, senhor, a esse respeito; dizem somente, quando lhes perguntam, que são noviços e da Companhia de Jesus.

- Pois eles são muitos?

- Dois, senhor, e verdadeiros Santos.

Tinham chegado à entrada da sala onde Francisco Xavier se dedicava, como em Veneza, ao tratamento dos enfermos, e com resultado muito superior para a glória de Deus, pois que já então falava o italiano mais facilmente.

O cura de Santa Lúcia, logo que o viu compreendeu a justa exaltação da sobrinha e de Maria. E se ele tivesse querido patentear, naquele momento, tudo quanto sentia, prostrar-se-ia aos pés do jovem santo e lhe pediria a sua bênção.

Falaram por muito tempo de Deus, e o bom cura rogou, suplicou e obteve do amável Xavier, que não sabia negar o que pudesse conceder, que aceitaria hospitalidade no presbitério, com a condição, porém, de não se utilizar da mesa do bom cura.

- Senhor, disse-lhe o nosso jovem santo, eu fiz voto de viver de esmolas, de não comer senão o pão que mendigar, e quanto seja compatível com o meu ministério: permiti, pois, que me conserve fiel a este meu voto, ou que continue a habitar o hospital.

O cura, contentando-se e julgando-se feliz por o poder ter ao menos debaixo do seu tecto, aceitou as suas condições, e desde a manhã do dia seguinte Xavier estabeleceu-se em sua casa e na maior liberdade de poder ali viver como lhe aprouvesse.

Ia todas as manhãs oferecer o santo sacrifício da Missa à igreja de Santa Lúcia, depois ouvia as confissões de grande número de pessoas que concorriam ao seu confessionário.

Visitava em seguida os encarcerados, nós quais só a sua presença bastava para produzir uma salutar impressão, colhendo, além disso, admiráveis frutos da sua insinuante palavra.

Terminada a visita aos presos voltava a ver os seus queridos doentes do hospital, e pela tarde reunia as crianças para lhes fazer o catecismo; depois disto pregava à parte do povo, cujas ocupações durante o dia privavam de ir à igreja em outra hora.

O povo, subjugado pela sua palavra, coaria em seguida ao tribunal da penitência, e o retinha ali muitas vezes até hora avançada. Voltando a casa, entregava-se à oração e assim passava uma grande parte da noite.

Esta vida de trabalhos, um jejum quase contínuo e outras austeridades de que nunca se dispensou, suportando as intempéries dum inverno excepcionalmente rigoroso, era mais que suficiente para deteriorai a mais robusta saúde. Além disto, S. Jerónimo revelara ao nosso Santo, por ocasião da sua doença em Vicência:

- Uma maior tribulação vos espera em Bolonha, onde passareis o inverno.

A tribulação profetizada, foi uma violenta febre intermitente, que, resistindo a todos os meios empregados para a combater, reduziu o nosso jovem santo a um grau de debilidade e de aniquilamento que fez recear pela sua vida. Isto produziu uma grande dor em toda a cidade de Bolonha onde ele havia convertido tantos pecadores, consolado tantos aflitos, reconciliado tantos inimigos e feita grande bem a todos!

Logo que as suas forças o permitiram, Xavier continuou a exercer o ministério da pregação, da confissão, da instrução das crianças, do cuidado dos doentes e dos presos, e tudo isto com a ardente febre que o devorava e os sofrimentos que a acompanhavam.

Porém chegou um momento em que a natureza sucumbiu: Aba tido a ponto de não poder ter-sé de pé; mas sempre devorado pelo seu zelo religioso, arrastava-se até à porta da rua, sentava-se em um banco de madeira e ali se esforçava ainda em chamar os transeuntes à contrição dos seus pecados; pregava-lhes a necessidade da penitência, falava-lhes da misericórdia infinita dum Deus que morreu 'pela salvação do mundo.

Conhecido, amado e venerado, como era o nosso Santo, aquelas pregações, tanto mais eloqüentes quanto mais impossíveis pareciam no estado em que ele se achava, produziam maravilhosos frutos.

Cada pessoa que passava e ouvia a voz do venerando apóstolo, se aproximava imediatamente dele; cercavam-no, escutavam-no de joelhos, e muitas vezes os soluços dos seus auditores cobriam a sua voz quase extinta e que ele sustentava por um grande esforço. Algumas vezes extinguia-se-lhe completamente aquele jovem apóstolo, de trinta e dois anos apenas, conservava-se ali, aniquilado, débil, pálido e exânime como se a morte tivesse passado por ele!

Devotado à salvação das almas e querendo dedicar-se a este santo ministério até ao seu último suspiro, ali se deixava ficar, com a cabeça caída, o corpo apoiado à parede, esperando o momento em que a sua voz pudesse ainda por um instante secundar o seu zelo, que nenhum outro sofrimento podia enfraquecer; naquele estado, contudo, só a sua mista impressionava e produzia numerosas conversões. De noite ocupava-se de Deus e não dispunha senão de alguns momentos para dormir.

Jerónimo Casalini desejava cuidar dele como um pai cuida dos seus filhos; porém não pôde conseguir o seu intento e nada alcançou do espírito de mortificação e zelo que animava Francisco, vendo-se obrigado a admirá-lo e a agradecer a Deus por lhe haver concedido, na sua misericórdia, a graça de ver de tão perto a santidade sobre a terra.

O bom cura procurava aproveitar-se, para o seu progresso espiritual, de todos os instantes que o seu heróico amigo lhe concedia durante a sua doença, porque se entregara à sua direção, assim como sua sobrinha e Maria de Ordez. Afirmava-se que Francisco Xavier vertia abundantes lágrimas em todas as sextas-feiras quando dizia a missa da Paixão, e que muitas vezes tivera grandes transportes no santo altar, e acrescentavam:

- O Padre Francisco fala muito pouco; mas cada uma das suas palavras parece vinda do Céu.

É que o nosso jovem Santo se lembrava sempre, com pesar, dos prazeres que gozara na convivência da sociedade, onde os encantos do seu espírito eram apreciados e louvados a ponto de iludir o seu amor próprio, e expiava agora esses pequenos gozos da sua vaidade, por todos os meios que o seu arrependimento lhe sugeria.

Os Santos, segundo o mundo, perdoam-se voluntariamente dos prazeres desses pequenos triunfos; os Santos, segundo Deus, exprobram-se e expiam-nos...

Até então cedera a febre que minava a saúde de Xavier, e uma carta do seu querido mestre Inácio, chamando-o a Roma pelos fins da Quaresma, o fez partir de Bolonha quase furtivamente para evitar a explosão de dor que ele esperava se declarasse em toda a cidade com a notícia da sua partida.

- Jamais, disse o cura de Santa Lúcia, quando o Santo deixou o presbitério, jamais será ocupado por outra pessoa o quarto que foi habitado pelo santo Padre Francisco Xavier.

- Enquanto nós vivermos, ajuntava a sobrinha, ninguém mais habitará esta câmara abençoada! e nós, meu tio, iremos sempre orar ali.