III. PREGAÇÕES E CONVERSÕES

Apenas entrou no castelo, D. Martinho Garcia, magoado com a persistência de Inácio não querer outra morada senão a dos pobres, e isto no seu próprio país, a alguns passos da sua ilustre família e da sua rica habitação, disse aos irmãos:

- Visto que não podemos evitar esta dor de coração e esta humilhação de família quero ao menos que Ínigo seja melhor tratado do que os mendigos, a quem ele nos prefere. Vou dar ordem para que lhe levem um leito agora mesmo, e, duas vezes por dia, enviar-lhe-ei a melhor parte do que for servido à mesa da sua família.

Pouco depois os criados do castelo chegavam ao hospital da Madalena, colocavam no quarto do Santo o leito enviado por D. Garcia e punham sobre a mesa os mais delicados acepipes. O coração de Inácio bateu de alegria ao ver essa suculenta comida. O seu olhar fixou-se nos servos de seu irmão com uma comovente expressão de reconhecimento.

- Agradeço a D. Garcia, - lhes disse - e agradeço-lhes também, meus bons amigos; não me podiam dar maior prazer. Os meus queridos doentes vão ficar muito satisfeitos! A soberana bondade de Deus lhes pague tudo!

E imediatamente foi tudo distribuído aos pobres doentes; Inácio recebeu em troco o pão negro da caridade. A noite, depois de uma longa oração, rasgou o corpo com a disciplina e em seguida estendeu-se no chão para tomar um pouco de descanso. Quando se levantou, desfez a cama de que se não quis servir, e julgou enganar deste modo aqueles que podiam ter adivinhado a sua mortificação. Durante o dia, percorreu as ruas da cidade pedindo esmola, convidou as criancinhas a irem ouvir a explicação do catecismo e os pais a escutarem as prédicas que fazia na igreja do hospital.

D. Garcia, prevenido de que seu irmão implora a caridade pública nas ruas de Azpeitia, procura-o e pede-lhe que não desonre assim a família:

- Meu irmão e senhor, - lhe respondeu o nosso herói - Nosso Senhor Jesus Cristo, mestre divino de todos nós, deu-nos o exemplo da pobreza voluntária. Creia que, praticando-a, não faço mal; permita-me, pois, que a honre e a respeite, se Deus me quiser fazer essa graça, até ao fim da minha vida.

- Diz-se que o meu querido irmão também quer pregar. Pense que, expondo-se à irrisão pública pela mendicidade, não terá autoridade alguma para ensinar o povo. Por outra parte, o mano não é Sacerdote e aqui não faltam Sacerdotes e Religiosos para a pregação.

- Meu bom irmão, por toda a parte vejo um grande relaxamento nos costumes e muita indiferença no cumprimento dos deveres do cristianismo. A causa desta desordem é a ignorância dos povos e estou firmemente resolvido a pregar em toda a parte onde me encontre, quando isso me for possível, para maior glória de Deus, nosso Mestre e Senhor.

-Mas não quererão ouvi-lo ! É uma tentativa inútil.

- Ainda que tivesse uma só criança, pregaria como se tivesse numeroso auditório; e, se lhe aproveitassem os meus ensinamentos, não pensaria ter perdido o tempo.

Vendo D. Martinho que não conseguia vencer a humilde firmeza de seu irmão, não insistiu mais.

Depois que o Santo abandonou Paris, o seu estômago funcionava regularmente; a saúde melhorou, em geral, e aproveitou-se disso para continuar as suas austeridades. A sua alimentação era o pão duro da caridade; dormia no chão do quarto e tomava apenas alguns momentos de sono; o cilício estava-lhe colado ao corpo por uma cadeia de ferro cheia de pontas e assaz comprida para lhe cair dos dois lados, depois de lhe atravessar a cinta; enfim, multiplicava as disciplinas e tratava-se com espantoso rigor. Tendo os criados do hospital conhecido que ele se não deitava, levaram o leito que D. Garcia lhe tinha enviado e substituíram-no por um dos pobres grabatos para uso dos indigentes.

Desde esse momento, Inácio serviu-se dele regularmente, feliz por não ter melhor cama do que os pobres de Jesus Cristo, do qual ele queria partilhar o roteiro desprendimento.

Pregava todos os domingos, todos os dias de festa e três vezes na semana, independentemente do catecismo que ensinava às crianças. A primeira vez que pregou, teve imensa gente a ouvi-lo. D. Garcia enganara-se nas suas previsões: Inácio, longe de excitar o desprezo do povo, inspira profunda veneração pela santidade da sua vida, e atraía a si todos os corações pela simplicidade das suas maneiras, pela doçura da sua palavra, pela benevolência do seu olhar e pela amável bondade que testemunhava a todos. Comovido pelo interesse que todos tomaram em dirigir-se à igreja do hospital para ouvirem a primeira instrução, Inácio lança o olhar sobre a imensa assembléia, reconhece aqueles que desejava ali ver, e apercebe alguns membros da sua família. D. Garcia era do número. Era excelente a ocasião para a deixar escapar; a humildade do nosso herói aproveita-a com uma espécie de avidez.

"Meus caríssimos irmãos, - disse o santo apóstolo um dos principais motivos que me determinaram a aparecer de novo neste país, que abandonei com intenção de não mais aqui voltar, foi o de ceder ao grito da minha consciência. Há muito tempo que uma voz interior me dizia que, onde eu tive a desgraça de dar outrora o mau exemplo duma juventude mundana, frívola e dissipada, devia dar a do arrependimento e da penitência. Todos os dias peço a Deus Nosso Senhor, e lho peço com lágrimas de viva dor, que me perdoe esse passado que deploro. Hoje venho pedir a todos, compatriotas e amigos meus, a quem ofendi ou escandalizei então, que me perdoem e não recusem o auxílio das suas orações a um miserável pecador, como eu, que tanta necessidade tem delas. E se alguns de vós, arrastados pelos meus funestos exemplos, tiveram a desgraça de me imitar nos meus desvarios, suplico-lhes que voltem para Deus e façam sincera penitência. de todos os seus pecados."

"Outro motivo me trouxe junto de vós. Tenho que pagar uma divida, tenho que confessar-me réu duma grande falta e de proclamar altamente a inocência daquele que foi acusado e punido publicamente. Tenho que indenizá-lo da perda que o fiz sofrer (e aponta com o dedo um dos seus ouvintes, a quem nomeia); foi ao senhor que eu causei prejuízo. Aquele homem honrado, condenado a pagar uma quantia assaz considerável e a sofrer a vergonha da prisão, por ter roubado frutos dum jardim, não era réu dessa falta. Fui eu que a cometi; fui eu que escalei o muro desse jardim, com alguns jovens da minha idade, fui eu que roubei os frutos. Para reparar esta falta, tanto quanto me é possível, dou àquele que sofreu as conseqüências do meu pecado, dois domínios situados nestes arredores, e que são propriedade minha. Aceite-os em recordação da minha culpa (e nomeia de novo aquele a quem se dirige), e provar-me-á desse modo que me concede o perdão que lhe peço. Declaro publicamente que lhe dou um desses domínios a título de restituição, e o outro a titulo de reparação, suplicando-lhe de novo que me perdoe de todo o coração, porque do fundo da minha alma deploro a injustiça que lhe fiz"..

Todo o auditório vertia lágrimas. Aquele que assim falava, todos em Azpeitia o tinham conhecido belo, elegante, muito apreciado, muito pródigo! Hoje viam-no coberto com uma pobre sotaina cinzenta, cingido por uma corda da mesma cor, pálido, recolhido, orando sempre, humilhando-se até estender a mão para implorar a esmola dum bocado de pão, e, naquele momento, não temia confessar-se publicamente réu duma falta da sua juventude, de todos ignorada.

D. Garcia estava também comovido; começava a compreender que a profunda humildade de seu irmão podia pôr a seus pés todos os que o escutavam. E foi o que sucedeu.

Dai a pouco corriam de todas as vilas, de todos os castelos, de todas as cidades da província para consultar o Santo, para o ouvirem, para o verem e pedirem-lhe as suas orações. Não havendo igreja que pudesse conter a multidão que se acotovelava em volta dele, viu-se forçado a falar ao ar livre, e, conquanto a sua voz fosse bastante fraca, ouvia-se a grande distância. Chegaram até a subir a árvores para o ouvirem. O clero da província nunca tinha visto tão grande número de penitentes invadir os confessionários; porque todos, pressurosos de reformarem a sua vida e de porem em prática a santa palavra que tinham ouvido, queriam começar por pacificar a sua consciência. Mas o próprio clero tinha necessidade de reforma, assim como algumas comunidades religiosas; e Inácio, prevendo que estas conversões não seriam duradoiras se não fossem sustentadas pelo zelo dos pastores das almas, ocupou-se da reforma do clero. Leigo como era, tentou esta imensa empresa, e Deus, que lha tinha inspirado, abençoou-a abundantemente. Obteve então um sacrifício muito meritório para os espanhóis, o do jogo das cartas, que era uma verdadeira paixão em todo o país; os Padres e os religiosos não estavam isentos disso. Fez outro prodígio: atacou o luxo nas suas pregações com tal força, que as mulheres, comovidas até às lágrimas, fizeram ceder a sua vaidade à palavra do apóstolo, e esta reforma foi duradoira.

Durante os dez dias que precederam as festas do Pentecostes, explicou todas as tardes um dos mandamentos de Deus. O efeito foi maravilhoso. Algumas pessoas, que até então tinham vivido na desordem, deram exemplo da mais bela conversão e moveram muitas outras, que viveram depois na penitência, na mortificação e no afastamento do mundo.

Estabeleceu em Azpeitia uma confraria do Santíssimo Sacramento, encarregada de cuidar dos pobres envergonhados; deu-lhe para este fim um capital assaz considerável, confiando a sua administração a alguns dos magistrados da cidade.

Estabeleceu também o uso de rezar todos os dias ao meio dia pelas almas que estão em pecado mortal, e à noite pelos mortos; e, a fim de não deixar morrer esta devoção, pôs a render uma certa quantia para pagar àquele que tocasse o sino da paróquia para dar o sinal de rezar.