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Antes de entrar em Bolonha, tinha de passar sobre umas
pranchas lançadas através dum largo e profundo barranco que
as neves e as chuvas haviam enchido de água lamacenta.
Escorregou e caiu no barranco. Ninguém foi em seu auxílio,
porque as suas roupas esfarrapadas, as suas mãos com as
marcas das feridas, o seu rosto lívido, tudo nele anunciava a
mais completa miséria. Mas ainda ficou pior, quando o viram
sair do barranco, coberto de lama da cabeça aos pés. Então os
apupos do povo perseguiram-no até às ruas de Bolonha, e,
apesar de ir em jejum, não obteve em parte alguma a caridade
de um pedaço de pão.
E este pobre mendigo era Inácio de Loiola !...
O nosso herói estava tão enfraquecido pela falta de
alimentação, tão exausto pelo excesso de fadiga, e sofria
tanto com a humidade das suas roupas, que lhe parecia que
estava prestes a morrer. Foi-lhe mister um aumento de coragem
para chegar à porta dum espanhol, que estudava na
Universidade daquela cidade. Este estudante não reconheceu o
nobre mendigo, mas ouvindo-o falar na sua língua nacional,
apressou-se a socorrê-lo. Era tempo; o Santo já não podia dar
mais um passo...
Tantas humilhações e sofrimentos pareciam não bastar ao nosso
herói para testemunhar a Deus o seu reconhecimento; porque as
notícias que recebia de Paris eram sempre para ele novo
objecto de alegria e de ação de graças. Pedro Fabro,
esperando que os seus irmãos terminassem os estudos de
teologia, entregou-se aos trabalhos apostólicos com tal
êxito, que estava tudo preparado para o determinar a fixar-se
em Paris. Tinha feito inumeráveis conversões, tinha chamado à
fé uma grande multidão de hereges e as suas pregações
atraíram um concurso prodigioso de sábios e de pessoas
distintas. Um dos mais célebres doutores da Sorbona disse-lhe
um dia:
- Mestre Fabro, sei que tenciona abandonar a França para ir
levar o seu zelo e talento a outra parte. Diz-se que quer
associar-se a outros para exercer o apostolado entre os
infiéis.
- Talvez, - responde Fabro.
- Pois, - respondeu o doutor - não deve fazer isso. Vossa
Reverência não pode, sem pecar gravemente, abandonar o bem
real que faz em Paris para ir tentar noutra parte um bem
incerto. Quaisquer que sejam as obras que Vossa Reverência
empreenda, serão sempre inferiores às que pode aqui fazer,
onde tem uma influência decisiva e onde pode ser ouvido e
compreendido por todos. Sabe Vossa Reverência a língua do
país onde quer levar a palavra evangélica? Não. Então como
será compreendido e apreciado? Vossa Reverência aprenderá a
língua, creio-o; mas o tempo que dedica a esse estudo,
tê-lo-ia aqui empregado com mais resultado para a glória de
Deus. Estou certo de que Vossa Reverência cometerá uma falta
grave, repito, se abandonar o ministério de Paris...
Consultarei, se Vossa Reverência quer, todos os doutores da
faculdade de teologia e verá qual a sua decisão.
Fabro ficara inabalável; sabia que Deus o chamava ao
apostolado sob a direção de Inácio de Loiola, fizera voto de
corresponder a esta vocação e a opinião de todos os teólogos
de Paris não era bastante para o tornar infiel a essa
vocação.
O coração do nosso Santo dilatava-se ao receber estas
notícias; compreendia tudo o que a Igreja podia esperar de
tais apóstolos, num tempo em que o demônio da heresia fazia
tão grandes danos no seu seio e agradecia a Deus com todo o
ardor da sua alma. Soube também, por cartas dos seus amados
discípulos, que eles tinham feito em Paris a conquista de
três homens escolhidos, tão distintos pela virtude como pelo
talento, e que, depois de terem feito os Exercícios
Espirituais sob a direção de Pedro Fabro, reconheceram
clarissimamente que Deus os chamava à obra de Inácio. Eram
Cláudio Lejay, presbítero da diocese de Genebra; Pascácio
Broet, presbítero de Bretancourt, perto de Amiens; João
Codure, de Embrun, no Delfinado. Este último era ainda leigo,
e todos três doutores em teologia. No dia 15 de Agosto, festa
da Assunção, tinham feito votos em Montmartre, na capela
subterrânea dos Santos Mártires, e todos os outros,
discípulos do nosso Santo haviam renovado os seus.
Inácio de Loiola julgava que todos os sofrimentos eram poucos
para agradecer a Deus tantas e tão doces consolações.
O estudante espanhol que o tinha socorrido na miséria, em que
o vimos reduzido quando chegou a Bolonha, depois de lhe ter
feito tomar algum alimento para o chamar à vida, dirigiu-lhe
algumas perguntas, às quais o humilde peregrino julgou dever
responder com toda a simplicidade.
O carinhoso espanhol apenas soube que tinha diante de si
Ínigo de Loiola, cuja reputação de santidade se tornara
universal, recolheu-o com toda a satisfação, não quis que ele
procurasse outro asilo e prestou-lhe todos os cuidados
reclamados pelo seu doloroso estado. Não pôde, contudo,
impedir os resultados da doença.
No dia seguinte, o nosso herói, apoquentado por grandes
sofrimentos de estômago, viu-se assaltado por uma febre
ardente, que o pôs em perigo durante alguns dias. Mas, graças
aos dedicados cuidados de que era objecto, restabeleceu-se
breve e pôde retomar o seu bordão de peregrino para continuar
a viagem.
VI. NA CIDADE DAS GÔNDOLAS
Dois espanhóis, chegados da Terra Santa, tinham parado em
Veneza com tenção de esperarem a primavera para terem os
caminhos mais fáceis e conseguirem tempo mais favorável para
voltarem à pátria.
Estes espanhóis eram dois irmãos, ternamente unidos, Estêvão
e Diogo de Eguia, que já vimos em Alcalá. Em sua casa tinha
Ínigo de Loiola recebido fraternal hospitalidade quando
abandonou o asilo dos indigentes daquela cidade, muito
afastado da Universidade. Como dissemos, Diogo secundava o
nosso Santo com uma generosidade inexaurível em todas as suas
obras.
Os dois irmãos estavam em Veneza havia algumas semanas,
quando um dia, passeando juntos, viram um peregrino cujo
rosto pálido e desfalecido anunciava sofrimento, e cujas
roupas indicavam profunda miséria. Diogo deixa escapar um
grito de supresa e de contentamento:
- Estêvão, - disse a seu irmão - olha este pobre peregrino !
É o Santo de Alcalá !
- Sim, é ele ! - exclama Estêvão - é realmente D. Ínigo
E ambos, pondo de parte o respeito humano, correm a lançar-se
nos braços do indigente e nobre peregrino.
Inácio de Loiola, apenas reposto da doença que o prendeu em
Bolonha, partiu para Veneza. Muito fraco, e pressentindo que
em breve tempo seria forçado a pôr termo a tão grandes
fadigas; quisera fazer esta viagem duma maneira mais
meritória ainda do que as precedentes. Estava-se nos últimos
dias de Dezembro, o frio era intenso, os caminhos cobertos de
neve, a marcha difícil, e o nosso Santo fez todo o caminho de
pés descalços. No seu pensamento, esta viagem podia ser a
última que lhe seria dado fazer como peregrino mendicante, e
quisera efetuá-la em todo o rigor do desprendimento
evangélico. Era assim que o nobre Loiola dava entrada na.
opulenta Veneza.
A sua chegada a esta cidade, tinha recebido esmolas enviadas
pelos seus amigos de Barcelona, que, evitando-lhe a
mendicidade, lhe permitiam consagrar todo o tempo às boas
obras e aos estudos teológicos, que ainda não terminara.
O encontro com Estêvão e Diogo de Eguia foi para ele uma
agradável surpresa; abraçou-os com a efusão da amizade,
contente por tornar a ver amigos a quem os seus queridos
pobres tinham devido tão numerosos benefícios.
Os dois irmãos vinham de Jerusalém com fundas impressões e um
desejo ardente de servir a Deus da maneira mais perfeita.
Sentiam-se chamados à vida religiosa; mas qual a ordem em que
Deus os queria? Era o que nenhum deles podia reconhecer assaz
claramente para tomar uma decisão. O pensamento de que o
santo apóstolo de Alcalá seria para eles um anjo condutor
nesse labirinto, tornou neles ainda mais viva a alegria de o
verem. Submeteram-lhe as suas incertezas; Inácio
aconselhou-lhes que fizessem os Exercícios Espirituais; neles
foram esclarecidos e ficaram mui resolvidos a associar-se aos
trabalhos de Inácio de Loiola; mas ficou combinado com eles
que esperassem e só entrassem na sua Companhia depois dela
estar definitivamente constituída como Ordem religiosa.
Diogo de Hozez, duma das mais nobres famílias, de Málaga,
natural de Córdova, atraído pela doçura, bondade e santidade
do nosso herói, uniu-se a ele, consultava-o frequentes vezes,
e seguia, com plena confiança, os conselhos espirituais que
dele recebia. Um dia advertiram-no, muito em segredo, que
devia desconfiar de Inácio, e da sua doutrina; que em Espanha
e em França ele fora objecto de gravíssimas acusações; que
fora condenado como herético e que era prudente acautelar-se
dum homem em quem todas as aparências davam a perceber uma
santidade pouco comum.
Diogo de Hozez ia fazer os Exercícios Espirituais, sob a
direção de Inácio, quando recebeu esta advertência
confidencial. Espírito superior e versado na ciência
teológica, pareceu-lhe favorável a ocasião para julgar por si
mesmo da ortodoxia do nosso Santo. Encerra-se a pretexto de
retiro, rodeia-se de livros de teologia, toma o dos
Exercícios Espirituais e examina-lhe escrupulosamente as mais
simples expressões. Pouco depois, e mesmo sem se aperceber,
suspende o seu trabalho, começa a reflectir, reconhece a obra
divina e confessa ao santo apóstolo toda a verdade. Fez então
o retiro espiritual com toda a humildade, sob a direção de
Inácio, e reconhece-se chamado à vida apostólica na Sociedade
de Inácio Loiola. O santo fundador exige que ele tenha tempo
de reflectir mais e de se assegurar da vontade de Deus e
promete-lhe aceitá-lo se ele persistir no seu desejo.
Tais eram os prodigiosos efeitos dos Exercícios Espirituais.
Os frutos que o Santo tirava deles para a glória de Deus eram
tão abundantes e tão maravilhosos, que ele queria que os
fizessem todos aqueles que lhe eram queridos, todos aqueles a
quem era devedor de reconhecimento.
Sem negligenciar os seus estudos teológicos, dava os
Exercícios a um grande número de pobres peregrinos, que lhe
testemunhavam o desejo de reformar a vida ou abandonar o
mundo. O administrador do hospital de S. João e S. Paulo,
Pedro Contarini, que foi depois Bispo de Baffo, pôs-se
inteiramente sob a sua direção, assim como algumas pessoas da
sua família, depois de terem feito este retiro.
Tais vitórias não podiam deixar de irritar o inimigo de Deus
e dos homens. A calúnia tinha começado a sua obra surdamente;
mas, vendo-se muito mal acolhida numa cidade onde os
principais personagens rodeavam Inácio dos seus respeitos e o
olhavam como santo, levantou sobranceiramente a cabeça e
acusou-o em alta voz de heresia, de sortilégio e de magia.
Espalhou por toda a parte a notícia dos processos jurídicos
de que ele foi objecto em Espanha e em França; nada desprezou
para o perder na opinião, destruir na influência (que a sua
santidade lhe tinha conquistado e deter as vitórias sempre
crescentes do seu apostolado.
Quem eram os caluniadores de que o público se tornava eco?
Ninguém o sabia. Só Inácio o não ignorava.
Era sempre o mesmo; diz-nos o Padre Bartoli, mas, "quando
receava ser descoberto, sabia subtrair-se pela fuga às
investigações da Inquisição e aos castigos que merecia.
Alcalá, Salamanca e Paris tinham sido o teatro das suas
façanhas; nesta última cidade, onde não podiam infligir-lhe
outra punição, queimaram publicamente o seu retrato".
Inácio não se admira desta nova perseguição suscitada pelo
inferno, mas tem necessidade para a sua obra duma reputação
ao abrigo de qualquer censura, tanto no seu modo de proceder,
como na sua fé. Procura o Núncio do Papa, Jerónimo Veralli, e
pede-lhe que mande examinar juridicamente a sua causa. O
Núncio anui aos seus desejos e dá unia sentença que proclama
altamente a inocência de Inácio e declara os seus acusadores
réus de calúnia. O nosso Santo vai :mais longe: manda pedir
um atestado semelhante ao Inquisidor de Paris, que se apressa
a enviar-lho.
Entretanto, o nosso herói esperava os seus muito amados
discípulos. Sabia, por cartas deles, que estavam em caminho
para se lhe juntarem, e que esta viagem não era para eles sem
perigo. Tornando a guerra entre Francisco I e Carlos V quase
impossível a passagem das fronteiras, os peregrinos, em
número -de nove, andando sempre, podiam inspirar desconfiança
e serem detidos pelas tropas dos dois exércitos. Tinham,
pois, necessidade duma assistência contínua do céu.
Esta assistência não lhes faltar; Inácio não cessa de a
pedir.
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