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Quando se tornou conhecido na Europa o triunfo da missão
jesuíta chinesa, dentro em breve provocou ele o ciúme da
Ordem Dominicana, a qual já não via os jesuítas com bons
olhos, por causa da polemica molinista. Também os
franciscanos, que, igualmente, se tinham ocupado desde havia
muito com trabalhos de catequese, invejavam o sucesso
surpreendente da Sociedade de Jesus, e, finalmente, para os
jansenistas, tudo quanto os jesuítas faziam ou deixavam de
fazer, lhes era fundamentalmente odioso.’ As antinomias se
aguçaram ainda em conseqüência do desastrado fim da missão
chinesa empreendida pelos dominicanos e franciscanos.
Sacerdotes dessas duas ordens haviam feito nesse meio
tempo, também, a tentativa de por um pé firme na China, mas,
à diferença dos jesuítas, haviam eles nesse caso impugnado
todo e qualquer compromisso com os costumes nacionais
chineses e, desde o inicio, haviam aplicado os mais rigorosos
princípios. Assim é que dominicanos e franciscanos, logo
depois de sua chegada, começaram a pregar que todos os
imperadores da China, da mesma maneira que o sábio Confúcio,
eram pagãos eternamente condenados ao fogo do Inferno. Não
podia deixar de acontecer que tais doutrinas viessem provocar
revolta geral em um país, em que se demonstrava o máximo
respeito para com os soberanos e legisladores mortos. Por
esse motivo os novos missionários foram, dentro em breve,
presos pelas autoridades, encarcerados e expulsos do país.
Os jesuítas, pelo contrário, haviam iniciado a sua obra
de catequese com mapas geográficos, relógios, espelhos,
óculos e quadros e, graças a isso, tinham conseguido grande
sucesso. Por esse motivo os dominicanos e franciscanos
acusavam-nos agora de que tinham tentado propagar a doutrina
de Cristo, recorrendo a meios indignos e, com isso, a tinham
profanado.
Os padres da Companhia de Jesus não ficaram devendo
resposta aos seus adversários e declararam que os frades
mendicantes, em conseqüência da sua conduta imprudente,
haviam atraído perigo enorme para o cristianismo chinês; sim,
que a falta de habilidade desses missionários havia
provocado, desnecessariamente, a má vontade das autoridades
e, assim, de certa maneira haviam levado ao martírio
numerosos cristãos chineses. Em breve a luta entre as ordens
religiosas foi completada por intrigas não menos odiosas da
política secular: A ida de uma missão jesuítica para a China,
por mediação de Luiz XIV, provocou a cólera ciumenta do
governo português, o qual, baseado em privilégios papais,
reclamava para si o direito exclusivo de dirigir a
cristianização do Extremo Oriente.
Portugal publicou, em seguida, um violento ataque
diplomático contra a França, junto à Santa Sé, e começou logo
a mover caça aos missionários jesuítas franceses mandados
para a China; um desses foi feito prisioneiro pelos
portugueses e conservado no cárcere em Goa até a sua morte.
Inflamaram-se novas pendências em torno da ocupação do
bispado que ia ser criado em Pequim: os franceses insistiam
em que o bispo deveria ser um jesuíta de nacionalidade
francesa, ao passo que os portugueses exigiam um bispo
português da Ordem de Cristo. Com isso a missão chinesa foi
gerando intrigas políticas sempre novas e mais complicadas
entre Paris, Lisboa e Roma.
A Inquisição da Santa Sé foi importunada com acusações
contra os jesuítas. Incriminavam os padres que atuavam na
corte de Pequim, de que eles, na sua qualidade de membros do
tribunal matemático, haviam se dado ao estabelecimento no
calendário de dias fastos e nefastos; que isso, pois,
significava o incremento de uma superstição condenável e era
absolutamente inadmissível. Quando da celebração da missa
eles, indo de encontro a todos os preceitos eclesiásticos,
traziam a cabeça coberta com um barrete daqueles que usavam
os antigos letrados chineses; liam o missal, o breviário e a
liturgia, não como estava prescrito, em língua latina e sim
em chinês; por ocasião do batismo de mulheres eles deixavam
de lado a unção que o ritual exigia se fizesse nas fossas
nasais, nas ombros e no peito, valendo-se do argumento gasto
de que os chineses não toleravam fossem os corpos femininos
tocados por estrangeiros.
O fato de que os missionários continuassem permitindo
aos seus catecúmenos na China a participação dos ritos usuais
em honra dos seus mortos, provocou grande revolta entre todos
os inimigos dos jesuítas. Essas festas fúnebres, por ocasião
das quais eram queimados rolos de papel e servidos carne e
vinho nas mesas, para as almas dos falecidos, eram, segundo a
opinião dos dominicanos e franciscanos, cerimonias puramente
pagas, cuja celebração importava para todos os cristãos na
prática de um pecado. Em compensação os jesuítas, diziam
eles, não haviam se limitado apenas a consentir nesses usos
condenáveis, pelo contrário, praticaram-nos, eles também.
A acusação mais grave levantada contra a missão jesuíta,
no entretanto, constou de que os padres haviam ocultado,
sistematicamente, na China, a morte de Cristo na cruz, e que
eles batizavam os chineses, sem que tivessem lhes dito uma só
palavra acerca da crucificação do Senhor. Mais ainda, que os
jesuítas em suas igrejas da China não tinham um único
crucifixo sequer, mas apenas imagens do Salvador na sua
glória e da Mãe de Deus entronizada no Céu.
Os jesuítas, por sua vez, apresentaram memoriais
justificativos longuíssimos ao tribunal da Inquisição.
Constava dos mesmos que eles jamais haviam renegado o
Crucificado, mas o interesse da religião exigia que se
transmitisse o evangelho aos pagãos só mui cautelosamente e
com certo tacto; a morte na cruz era considerada na China
como grande opróbrio e, nessas condições, os chineses só mui
dificilmente estariam dispostos. a acreditar em um Deus que
havia sido executado de maneira tão aviltante. Por esse
motivo os jesuítas ocultaram a narração da crucificação de
Cristo até o instante em que os seus convertidos estivessem
bastante preparados.
No que dizia respeito aos ritos, cuja tolerância servira
de motivo à censura contra eles, o fato é que não se tratava
aí de cerimonias religiosas e sim de certas formas de
piedade, contra as quais, do ponto de vista cristão, nada se
podia objetar. As cerimonias fúnebres dos chineses outra
coisa não significavam senão a expressão de veneração filial
pelos antepassados. Por outro lado esses usos estavam
prescritos de maneira absolutamente obrigatória a todos os
chineses, e proibi-los seria impossibilitar toda a
cristianização.
A luta foi se tornando sempre cada vez mais violenta, e,
dentre em breve, todo o clero católico da Europa começou a
participar dele. Os dominicanos Moralez e Navarete escreveram
livros volumosos, um depois do outro, nos quais eram acusados
os missionários jesuítas na China de traição aberta à
religião cristã; o infatigável Antônio Arnauld aderiu a essas
diatribes. Os papas hesitaram durante muito tempo entre os
jesuítas e seus adversários, pois na Europa ninguém tinha uma
idéia precisa acerca da significação real desses ritos
chineses, que ocupavam o primeiro lugar na disputa. Era
necessário se verificasse se as almas dos mortos na China
eram adoradas como divindades, dever-se-ia ficar esclarecido
sobre até que ponto as mesas, nas quais eram servidas as
iguarias para os antepassados, eram de ser consideradas como
altares. Sobre tudo isso as Ordens litigantes manifestavam
opiniões diametralmente opostas. Dado que os papas, então, à
vista dessas circunstancias, não podiam chegar a um
julgamento objetivo imparcial, tomavam eles suas decisões
conforme estivessem, pessoalmente, em bom pé de amizade, ou
com os dominicanos ou com os jesuítas. Paulo V manifestara no
ano de 1616 que estava absolutamente disposto a justificar a
conduta dos jesuítas, entretanto não publicou ele uma decisão
formal sobre o assunto. No ano de 1635 os dominicanos
dirigiram uma denúncia ao novo papa Urbano VIII ; não
obstante, somente sob o papado de seu sucessor Inocêncio X,
foi que o Colégio dos Cardeais chegou a uma decisão, na qual
ficou estabelecido que as festas fúnebres deviam ser
proibidas.
Entretanto, com Alexandre VII os jesuítas lograram
alcançar de novo maior influencia junto à cúria, e assim a
inquisição romana no ano de 1656 decidiu que os ritos
chineses representavam “ um culto exclusivamente civil e
político” e, por isso, deviam ser tolerados. No ano de 1667,
na pessoa de Clemente IX assumiu o governo um inimigo
declarado da Sociedade de Jesus ; assim sendo não foi de
admirar que, dentro em breve, houvesse sido decretada uma
decisão contra o culto dos antepassados. Esse rumo tomado
pelas coisas, desfavorável aos jesuítas, atingiu então o seu
ponto culminante com a constituição de Clemente XI decretada
no ano de 1715.
Nessa foi estabelecido um juramento formal contra o
culto dos antepassados, para os missionários que atuavam na
China. Um legado do papa partiu para esse pais, afim de
controlar a execução dessa ordem e, principalmente, estudar
todo o assunto litigioso no seu local próprio.
Assim é que agora os chineses também vieram a saber da
luta encarniçada de que eles vinham sendo objeto desde havia
muitos decênios, e com isso ficaram eles não pouco
edificados. Quando o legado do papa comunicou ao imperador
Kang-hi que o santo padre havia condenado o culto dos
antepassados como idolatria paga, o imperador observou irado:
“Como pode o papa julgar de coisas que ele nunca viu e nem
conheceu? Pelo que me diz respeito, jamais me atreveria a
querer julgar os usos da Europa acerca dos quais eu nada
sei.” Um juiz chinês, a quem coube julgar um monge
dominicano que tinha sido preso, declarou nessa ocasião: “
Conheço bem os jesuítas ; eles são verdadeiros pregadores e
homens de bem, que nos trouxeram livros, relógios,
telescópios e outros objetos úteis. Mas vós outros sois
falsos pregadores, pois não conheceis nem as altas ciências
da matemática e da astronomia e nem nos trouxestes relógios e
livros.”
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