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O vasto edifício ocupado hoje pela biblioteca Santa Genoveva, no
ângulo da rua dos Sete-Caminhos, era-o no século XVI pelo
colégio de Montaigu [13].
No ano escolar de 1528 a 1529, notava-se, no número dos
alunos, que seguiam a classe das humanidades naquele colégio, um
estudante que parecia ter já passado, há muito tempo, a idade dos
estudos clássicos. Todos perguntavam quem poderia ser este personagem
que vinha assim enfileirar-se entre tão jovens estudantes para receber
a mesma instrução que eles, numa idade em que, de ordinário, o
homem não aprende a não ser pelo hábito intelectual ao qual ele
parecia estranho.
O seu traje não era como o dos outros. Em lugar da longa batina dos
estudantes da Universidade, usava a toga dos velhos, notável pelo
grande comprimento; não trazia o gorro inclinado para a orelha
direita, mas sim um chapéu de abas horizontais, colocado no meio da
cabeça e sem inclinação, como se usa hoje: naquela época
consideravam isto uma enormidade.
Nada mais era preciso para excitar a curiosidade entre os estudantes e
os professores. Faziam-se mil conjecturas, comentava-se
transmitiam-se várias observações; porém o estrangeiro inspirava
tal respeito que ninguém ousava dirigir-lhe perguntas, não
encontrando em torno de si senão olhares benevolentes, e não
permitindo que corresse a crítica, excitada pela curiosidade, a não
ser na sua ausência.
Nas proximidades da terminação das férias, que seguiram as aulas,
e as quais o desconhecido freqüentara com rigorosa regularidade,
soube-se de repente, que este misterioso personagem era acusado de
sortilégio e magia. Contavam-se coisas de arrepiar os cabelos,
acrescentando-se que ele havia sido denunciado ao inquisidor Mateus
Ori, prior dos Jacobinos, e esperava-se que fosse condenado à
forca- ou à fogueira.
Asseguravam alguns que era o menos que ele merecia, atendendo-se a
que dois anos antes fora condenado em Espanha por igual crime e que
sofrera muitos meses de detenção nas prisões de Alcalá e
Salamanca.
Não se falava no Bairro Latino senão deste importante assunto,
quando, poucos dias depois desta surpreendente nova, se soube que o
inquisidor reconhecera a inocência deste grande criminoso e que até
falava dele com profunda veneração, sem contudo nada dizer que
pudesse deixar penetrar o mistério com que o desconhecido insistia em
encobrir-se.
Expirara o tempo das férias; as aulas estavam já abertas, os alunos
haviam voltado aos seus estudos; D. Francisco tornava a
apresentar-se com o mesmo brilhantismo na cadeira que lhe estava
confiada, e na qual granjeara a maior reputação, e Pedro Fabro
continuava a trabalhar com a mesma coragem e dedicação pelo estudo.
Nada parecia, pois, fazer mudar a vida íntima dos dois amigos,
quando um dia o doutor Penha que tinha sido seu professor de filosofia
e que o era ainda de Fabro, os viu passear, depois do jantar, coze
um dos seus novos discípulos, do qual todo o colégio se preocupava
com muita curiosidade.
Era um homem de 40 anos, pròximamente. O seu andar grave e algum
tanto precipitado denunciava algum sofrimento, o que se notava também
nos seus movimentos contrafeitos. Conquanto fosse mais baixo que
Francisco, a sua beleza mui notável era mais varonil, as suas
ações mais enérgicas; talvez esta diferença lhe viesse da idade.
A sua cor bronzeada indicava o homem habituado a grandes fadigas; os
seus olhos azuis, algum tanto profundos e cheios de fogo, deixavam
entrever uma alma muito preocupada, uma inteligência superior, uma
vontade que devia ultrapassar e vencer todos os obstáculos; porém só
a convivência e a intimidade podiam descobrir aquela expressão
habitualmente oculta ao observador pelas grandes pálpebras guarnecidas
de longas pestanas, que ele trazia sempre inclinadas para o chão.
O doutor Penha vendo-o com os dois amigos, dirigiu-se a Fabro e
tomando-o por um braço levou-o consigo, deixando Francisco só com
o estrangeiro. Este procedimento não pareceu agradar ao nosso jovem,
professor, porque poucos instantes depois subiu para o seu quarto,
aonde Pedro se lhe reuniu em seguida
- Tiveste grande paciência todo este tempo, Francisco, disse-lhe
ele entrando.
- Que queríeis, meu caro amigo; ele continuou a exortação, na
vossa ausência, e eu fiz-lhe observar que perdíeis com isso e que
para evitar o trabalho de repetir na vossa presença, seria melhor
deixar a continuação para amanhã.
- Mestre Penha veio falar-me dele, pediu-me que lhe repetisse e
explicasse as lições, e eu aceitei.
- Fizeste muito bem; na sua idade é mais fácil estar a repetir
sempre as mesmas sentenças do que aprender a filosofia. Mestre Penha
disse-vos alguma coisa que saiba deste misterioso estudante?
- Nada absolutamente. Ele começa a excitar a curiosidade em Santa
Bárbara como em Montaigu, e não se inquieta com isso. Dá-se
pelo nome de Ínigo, e eis tudo quanto Mestre Penha sabe e que nós
sabíamos também.
Alguns meses depois, Fabro, que apreciava cada vez mais o estudante
de quem era repetidor, significou a Xavier o desejo que tinha de o
admitir como terceiro companheiro de quarto, e a Providência, que
dispunha sempre as coisas para conservar a melhor harmonia entre os dois
amigos, serviu-se da condescendente amizade de Xavier para o fazer
consentir naquilo que muito o desgostava, a vida em comum com um
honre-m que lhe era antipático. Fabro exercia, porém, tal
influência no coração de Francisco, que podia pedir-lhe tudo sem
recear nem sequer a aparência duma recusa.
- Da melhor vontade, respondeu ele, uma vez que vós o desejais;
contudo imporei somente uma condição.
- Qual é ela?
- Que ele nos exortará só de dia, e nunca de noite! Não lhe
suponho a intenção de nos impedir o sono.
- Meu caro amigo, ele pode ser levado pelo encanto da própria
eloqüência, e isto seria um grande estorvo para o nosso repouso, e
demais, nós temos boa memória para a todo o momento termos presente o
seu inevitável: Quid prodest!
Pedro sorriu docemente, mas do fundo do coração agradecia a Deus o
ter concorrido para esta aproximação, da qual muito esperava a bem do
seu caro amigo.
Convencionou-se, pois, que o novo estudante viria instalar-se,
como terceiro habitante do. quarto dos dois amigos, logo que
terminasse alguns negócios que o retinham fora por algum tempo ainda.
No entretanto Ínigo repetia constantemente a Francisco estas palavras
divinas que o desesperavam: "De que serve ao homem ganhar todo o-
universo se vier a perder a sua alma?" e não obtinha em resposta mais
que um gracejo, uma palavra de desprezo e ordinariamente um profundo
silêncio, o que era ainda mais ofensivo. Porém Ínigo não
desanimava.
Pedro, cujos progressos na vida espiritual eram. notáveis desde que
lhe dera inteira confiança, esforçava-se em concorrer com a sua
influência, e não era mais feliz.
Os progressos de Xavier nas ciências e no mundo lisonjeavam a sua
vaidade a ponto de o tornar surdo à palavra evangélica, que não
cessavam de lhe recordar.
Num dia, Ínigo depois de lhe ter falado por longo tempo sobre as
vaidades do mundo, com tão mau resultado como sempre, terminou com as
mesmas palavras celestes
De que serve ao homem ganhar todo o universo, se vier a.perder a sua
alma? - Vós o compreendereis um dia, D. Francisco acrescentou
ele.
- De que serve ao homem estar a pregar todo o dia se não consegue
senão perder o seu tempo? replicou-lhe Xavier em tom de mofa.
- Cumpre com o seu dever, e aquele que não procura aproveitar,
falta ao seu, D. Francisco.
Francisco continuou a trabalhar sem responder.
Dois dias depois Ínigo apresentava-lhe estudantes capazes de poderem
apreciar o seu mérito, e aos quais havia feito os maiores elogios da
ciência e eloqüência do jovem professor. Queria levá-lo pelo lado
fraco, conhecendo, além disso, que Francisco tinta um coração o
mais sensível e o mais reconhecido. Agradeceu a Ínigo com
delicadeza, repreendendo-se interiormente por o haver tratado até
então com tanto rigor.
A partir daquele dia renunciou ao seu sistema de defesa por epigramas,
e suportava com paciência, sem responder, as importunas maçadas de
Ínigo.
Dali a pouco, achando-se Francisco com D. João de Madeva,
falou-lhe de Ínigo do mistério com que ele se envolvia, da
curiosidade que excitava e da edificação da sua vida. D. João
compreendeu tudo imediatamente.
- Como! disse ele a Xavier, vós o vedes todos os dias, viveis com
ele e ainda não descobristes quem ele é?
- É impossível arrancar-lhe o seu segredo
- É o mais novo dos de Onhez, Ínigo de Loiola! É o belo pajem do
rei! o valente oficial que desapareceu após a tomada de Pamplona, e
que depois se tornou um Santo; porém é uma santidade que desagrada
muito aos seus irmãos e que bastante os mortifica. Um de Onhez,
vestido como um mendigo, vivendo de esmolas, pregando por toda a
parte!... Sua família tem procurado por todos os meios retê-lo
junto de si, mas a exaltação de Ínigo tem resistido a todas as
instâncias.
Francisco ficou desorientado! Podia D. João continuar a falar por
muito tempo sem ser atendido. Xavier conhecia a família de Ínigo,
não pessoalmente, mas sim pelos seus irmãos que estavam na corte dos
reis católicos e que a conheciam; além disto a sua família tinha
sempre mantido relações com a dele, e era este Ínigo que ele,
Xavier, havia olhado, desde o princípio; como um homem de
nascimento baixo, e que mais tarde tratara com tanta ironia! E agora
é que apreciava quanto havia de heroísmo na vida pobre e humilde de
D. Ínigo! As reflexões sucediam-se umas às outras, mas os seus
progressos no mundo e as esperanças nó futuro traziam-lhe violentos
remorsos de consciência e esta luta desassossegava-o.
No mesmo dia do seu encontro com D. João de Madeva, Francisco
comunicou a Pedro Fabro o que viera a saber, e confessou francamente
a D. Ínigo que reconhecia nele toda a verdade. Desde aquele momento
a mais sincera amizade os uniu; porém Ínigo não possuía mais que o
lado humano. de Francisco, conquistara uma grande parte do seu
coração, mas da sua alma nada; esperava, portanto, e esperava
muita porque via o combate interior com que lutava o seu amigo, e
observava-o com grande ternura e vivo interesse, sem dar-lhe a
entender que o havia compreendido.
Pedro Fabro acompanhava-o em orar ardentemente pela alma que lhes era
tão cara e esperavam assim pelo momento da graça, que solicitavam com
toda a confiança nas suas orações.
Por aquele tempo estava Ínigo a acabar o seu curso de filosofia, e
Pedro resolvido a fazer voto de pobreza e a partilhar da santa vida do
seu amigo, dispôs-se a ir a Sabóia tratar de alguns negócios do
seu interesse e dar o último abraço de despedida a sua família.
Partiu, pois, com a esperança de que Ínigo, que se achava
estabelecido, havia já alguns dias, no seu quarto comum, conseguiria
conquistar a alma de Francisco durante a sua longa ausência, pois que
contava demorar-se muitos meses na Sabóia.
Depois da partida de Fabro, pôde Francisco estudar melhor as
perfeições de D. Ínigo, e quanto mais o admirava, mais se
arrependia da injustiça das zombarias que lhe dirigira tão
inconsideradamente; tornou-se amável e atencioso para com ele,
estimava-o verdadeiramente, mas não passava além.
D. Ínigo não conseguia, portanto, o que mais ambicionava, e não
obstante a luta interior que Francisco experimentava, e que ele
observava e seguia, via-o, contudo, continuar ávido pela glória
que passa, e pouco disposto a querer alcançar a que é eterna. De
tempos a tempos repetia-lhe: "De que serve ao homem ganhar o
universo, se vier a perder a sua alma, caro Francisco?"
E ele nada mais dizia.
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