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Diogo de Gouveia, reitor do colégio de Santa Bárbara, em
Paris, que vimos muito irritado contra o nosso Santo a ponto
de o querer submeter a um castigo infamante, e que, depois de
o ter ouvido, se havia honro somente humilhado diante dele na
presença de todo o colégio, Diogo de Gouveia ficara sendo
desde esse dia seu amigo dedicado. Soube dos triunfos da
Companhia em todas as cidades onde os Padres se haviam
apresentado; tinham-lhe falado da edificação da sua vida, da
sua admirável caridade durante a fome de Roma, de todo o bem
que resultava para as almas do seu apostolado, sempre
abençoado. Diogo de Gouveia era português, o rei de Portugal
acabava de aumentar mais ainda assuas possessões na India, e
Diogo perguntava-se que bem não fariam, entre essas nações
idólatras, apóstolos como aqueles que ele conheceu, formados
na escola de Inácio dê Loiola e adestrados já no ministério,
de maneira que atraiam a admiração da Itália inteira.
Escreveu ao nosso Santo e pediu-lhe autorização para propor
ao seu soberano alguns dos seus discípulos a fim de levarem a
fé às Índias. Inácio respondeu-lhe:
"Eu e os meus companheiros estamos à disposição do Sumo
Pontífice, prontos a partir para qualquer parte do mundo onde
lhe aprouver envia -nos para glória de Deus Nosso Senhor. É a
Sua Santidade que deverá pedir os nossos serviços e não a
nós, que não podemos dispor deles a nosso gosto...".
O reitor de Santa Bárbara escreveu a D. João III, rei de
Portugal, enviando-lhe a resposta de Santo Inácio, e
mostrou-lhe todas as vantagens que podiam advir, para glória
de Deus e bem das almas, do apostolado desses admiráveis
missionários, cujas virtudes, ciência e triunfos apostólicos
toda a Itália proclamava. D. João III apressou-se a dar ordem
a D. Pedro de Mascarenhas, seu embaixador em Roma, para
negociar a este respeito com o Papa.
Mas já então os Padres, a pedido de alguns Príncipes e
Bispos, tinham sido- enviados pelo Sumo Pontífice a diversos
pontos da Itália, e operavam ali maravilhas. Fabro
santificava a cidade de Parma, onde, naquele momento, mais de
cem eclesiásticos e leigos seguiam, sob a sua direção, os
Exercícios Espirituais. Laynez obtinha os mesmos resultados
em Placência, e o Cardeal Santo Angelo, Ennio Filodardi,
escrevia freqüentemente ao Papa a felicitar-se por ter levado
coxa ele aqueles dois apóstolos à sua legação. Em Siena,
Broet e Rodrigues reformavam um convento de religiosas e
reanimavam o espirito sacerdotal no clero, pela prática dos
Exercícios Espirituais, ao mesmo tempo que despertavam a fé
em todas as almas com as suas pregações. Bobadilha pacificava
a ilha de Ischia, cujos habitantes andavam em guerra contínua
uns com os outros. Cláudio Lejay confundia em Bréscia os
pregadores luteranos que se esforçavam por extinguir a fé
católica naquela cidade e nos seus arredores.
Paulo III, desejando secundar os desejos do rei de Portugal,
e prevendo o que homens animados de tal espirito podiam fazer
para a glória de Deus nas Índias, deplorava que o seu número
fosse tão pouco proporcionado às imensas necessidades da
Igreja e hesitava em dar a D. Pedro de Mascarenhas uma
resposta decisiva. O embaixador que queria regressar a
Portugal e desejava levar consigo os Padres, continuava a
insistir. Não podendo o Sumo Pontífice continuar a sua
recusa, submeteu-se à decisão de Inácio de Loiola, a quem D.
Pedro pediu sem hesitar, seis dos seus discípulos.
- Se der a V. Ex.a seis para as Índias e para Portugal - lhe
respondeu Inácio em tom de inspiração - quantos ficam para as
outras partes do mundo? Apenas posso conceder dois.
Concedeu Rodrigues, que chamou de Siena, e Bobadilha, que
mandou vir de Nápoles, mas que, sofrendo de ciática, não se
curou a tempo de partir e foi substituído por D. Francisco
Xavier, o único dos seus primeiros discípulos que o nosso
Santo conservou consigo em Roma e a quem amava na proporção
do que a sua conversão lhe tinha custado de lágrimas, de
paciência e de esforços.
Inácio de Loiola orava sempre para aplanar os obstáculos que
se opunham à ereção da Companhia em Ordem religiosa. Não
cessava de lembrar a Nosso Senhor a sua promessa de ser
favorável a esta nascente Companhia, que usava o seu doce
nome, e, orando, vertia abundantes lágrimas. Um dia, enquanto
orava, pareceu-lhe que tomava os corações dos seus queridos
discípulos, os apresentava apertados ao peito a Nosso Senhor
pedindo-lhe que concedesse à petição de todos o que recusava
a um só, e fez voto de mandar celebrar, pela Companhia, três
mil missas em ação de graças, se obtivesse prontamente o
favor, que solicitava em nome de todos os seus.
Inácio de Loiola, sabia que não trabalhava em obra sua; sabia
que, cedo ou tarde, veria a Companhia aprovada como desejava.
Tinha plena confiança acerca desse ponto. E contudo ora,
suplica, derrama lágrimas diante de Deus para apressar o
momento do completo cumprimento das suas promessas...
Era isto o que ele sabia e tinha entrevisto toda a glória que
adviria a Jesus Cristo e á sua Igreja dos magníficos
trabalhos da santa milícia que tinha missão de formar e
organizar! E, como sabemos, o zelo pela glória de Deus
devorava a alma de Inácio de Loiola. Todos os seus
pensamentos, todas as suas obras, todas as suas orações,
todas as suas lágrimas não tinham outro móbil e outro fim
senão a glória e a maior glória de Deus.
Acabara apenas de ser feito o voto do nosso Santo, quando o
Cardeal Guidiccioni se sentiu impelido a lançar um olhar
sobre o plano de que tinha recusado ocupar-se. Leu-o,
reconheceu e sentiu nele o espirito de Deus, e diz aos dois
Cardeais que havia arrastado a uma opinião contrária
- Este projecto é admirável. Persistindo nas minhas idéias
acerca das ordens religiosas, reconheço que se deve fazer uma
exceção a favor desta, que é realmente inspirada pelo céu.
Desde este dia, o Cardeal apressou as coisas e o instituto
foi aprovado e erigido em Ordem religiosa pela bula do Sumo
Pontífice Paulo III, datada de 27 de Setembro de 1540, que já
reproduzimos.
Houve algumas dificuldades relativamente ao nome de Jesus,
que o santo fundador dava à nova Ordem. Achavam-no ambicioso,
objectavam que tendo todas as Ordens existentes sido
igualmente fundadas para a glória de Jesus Cristo e da sua
Igreja, todas podiam também pretender esta denominação.
Inácio julgou não dever ceder neste ponto. Recusou dar o seu
nome à Companhia, como lhe pediam, porque ele era apenas um
instrumento da sua fundação e não o seu fundador. Queria
dar-lhe o nome de Jesus, porque Jesus era o seu princípio e
devia ser a sua vida, porque ela era destinada a servir e a
imitar Jesus, porque Jesus devia ser seu chefe e seu modelo.
O nosso Santo não dizia mais nada, mas os seus discípulos
sabiam que não podia nem devia dar-lhe outro nome senão o de
Jesus, porque fora Jesus que dera o seu nome à Companhia.
Este nome, tão doce e tão poderoso ao mesmo tempo, foi aceito
com efeito e posto na bula de instituição.
Recordando estas dificuldades, Santo Inácio dizia ao Padre
João de Polanco:
- Teria ido contra a vontade de Deus, e ter-me-ia tornado
gravemente culpado, se houvesse hesitado um só instante em
dar à Companhia o nome de Jesus [51].
Tendo a Companhia de Jesus recebido a sanção apostólica,
tratava-se agora de a organizar de maneira que pudesse
atravessar os séculos sem que fosse jamais necessário
chamá-la à santidade da sua origem. O Cardeal Guidiccioni
disse que todas as ordens religiosas degeneravam com o tempo
e terminavam por tornar-se grandes chagas na Igreja. A
Companhia de Jesus será uma exceção: o seu espirito
manter-se-á sempre à altura do seu principio, e ela será
sempre para a Igreja uma consolação e um auxílio.
O primeiro cuidado do nosso Santo devia ser o de dar um chefe
à Companhia e proceder à eleição do geral. Chamou, pois, a
Roma os Padres disseminados em Itália; mas, Bobadilha que
estava então no reino de Nápoles, em Bisignano, não pôde vir.
Os habitantes daquela cidade, receando perdê-lo' para sempre
se o deixassem afastar-se, dirigiram uma súplica ao Sumo
Pontífice para obter que ele ficasse. O Papa acedeu. aos seus
desejos, e tendo Bobadilha recebido esta ordem muito tarde
para enviar o seu voto escrito, não pôde tomar parte na.
eleição. Francisco Xavier e Simão Rodrigues tinham escrito e
lacrado os seus e haviam-nos deixado nas mãos do Padre Laynez
antes de partirem para Portugal. Não podendo Pedro Fabro
abandonar a dieta de Worms, à qual assistia por ordem do
Papa, enviou o seu voto lacrado. Os outros Padres
dirigiram-se a Roma nos primeiros dias da Quaresma de 1541, e
imediatamente começaram as conferências relativas à
organização da Companhia, da qual era urgente fixar os pontos
mais importantes, antes de se proceder à eleição do geral..
Além disso, alguns postulantes suspiravam pelo momento da sua
admissão e esperavam que as primeiras regras fossem.
assentes. Inácio haura feito um projecto, que foi aceito por
todos os seus discípulos, como tinha sido o primeiro plana..
Ocuparam-se em seguida da eleição. Durante três dias
imploraram as luzes do Espírito Santo, sem se comunicarem os.
seus desejos ou as impressões recebidas na oração; no quarto
dia, cada um escreveu e lacrou o seu voto, que entregou; mais
três dias foram consagrados a pedir a Deus que abençoasse a
eleição que ia ser conhecida. Enfim, a 7 de Abril, os votos
eram abertos e viu-se que todos votavam no santo fundador.
Cada um dos Padres motivava, com o mais sensibilizados elogio
ao santo fundador, a escolha que dele fazia para governar a
Companhia. Não era uma escolha feita pelo sentimento das
conveniências, era a escolha do coração, a da alma e da
consciência daqueles que podiam apreciar com justiça todo o,
valor do seu pai.
Mas o voto mais notável é o do nosso Santo:
"Em presença de Deus Nosso Senhor, dou o meu voto,, para que
se torne nosso superior, aquele que reúna maior número de
sufrágios, com exceção de mim. Mas se a Companhia julga mais
vantajoso, para glória de Deus Nosso Senhor,, que eu designe
qualquer, estou pronto a fazê-lo. - Inácio".
Não se sabe o que mais deva admirar-se, nestas linhas; há
nelas tanta humildade, simplicidade, prudência e sabedoria
que o espírito fica confundido. Inácio não quer testemunhar
mais estima ou preferência por um dos seus discípulos do que
por todos os outros; sente, além disso, que a confiança que
lhes inspira os levará todos a designá-lo, a escolhê-lo, e
está resolvido a repelir para longe de si o fardo do governo.
Pintou-se a alegria em todos os rostos depois da leitura do
voto, do último e, tendo-se voltado todos os olhares para o
nosso Santo, fácil foi julgar das suas impressões. Era um
condenado que acabava de ouvir pronunciar a mais terrível
sentença. O Padre Ribadeneira, então postulante e que vivia
na casa da Companhia, assistiu a esta sessão e conservou-nos
as palavras pronunciadas por Santo Inácio no momento em que
se viu proclamado geral:
"Meus irmãos, -disse ele - sou indigno de tal cargo e
julgo-me incapaz de o desempenhar. Não sei dirigir-me a mim
mesmo; como poderei dirigir os outros? Quando me considero em
presença da divina Majestade; quando me lembro da minha vida
mundana e das minhas faltas passadas; quando vejo no presente
as minhas más disposições, as minhas misérias, a minha
fragilidade, a minha inclinação para o mal, o meu pouco zelo
pelo bem, não posso resolver-me a aceitar o fardo que querem
impor à minha fraqueza. Peio-lhes, pois, que levem este
negócio diante de Deus Nosso Senhor e lhe supliquem, durante
três dias, que nos esclareça com o seu divino Espírito, a fim
de que a escolha recaia num chefe mais digno do que eu, e que
possa governar a Companhia com prudência, sabedoria e
autoridade".
A alegria dos bons Padres mudou para uma dolorosa -tristeza.
Todos representaram ao seu muito amado Pai a inutilidade duma
nova eleição, que daria o mesmo resultado; todos resistiram
muito tempo; mas foi mister ceder diante da inquebrantável
firmeza de Inácio de Loiola.
A segunda eleição foi semelhante à primeira.
O santo fundador renovou a sua recusa. Então o Padre Laynez
levantou-se e disse-lhe com uma espécie de autoridade:
- Meu Padre, ceda à vontade de Deus; se o não fizer, a.
Sociedade dissolver-se-á, porque eu estou resolvido, e todos
comigo, a não reconhecer outro chefe senão aquele que Deus
escolheu.
- Pois bem, - disse o nosso santo - submeter-me-ei à decisão
do meu confessor. Far-lhe-ei conhecer os pecados, os crimes
que cometi até à idade de trinta anos; confessar-lhei-ei toda
a minha indignidade, toda a minha incapacidade, e, quando ele
me tiver ouvido, se me aconselhar ou ordenar, em nome de
Jesus Cristo Nosso Senhor, que aceite essa temível
responsabilidade, obedecerei.
Os Padres reclamaram em vão contra esta nova resistência
dizendo-lhe que a vontade de Deus não podia ser mais
claramente manifesta e que ele resistia a essa vontade. O
Santo não se deixou vencer e os seus discípulos tiveram de
ceder. Ele confessava-se ao Padre Teodósio, religioso de S.
Francisco, do convento de S. Pietro in Montorio.
Na Sexta-Feira Santa, Inácio abandona os seus discípulos, sai
da torre de Melangolo e vai encerrar-se no convento de S.
Pedro. Passa ali três dias sem comunicar com ninguém, exceto
com o Padre Teodósio; faz-lhe uma confissão geral, dá-lhe
conta das duas eleições em seu favor, assim como dos motivos
da sua recusa e pede-lhe que lhe faça conhecer a ordem de
Deus. No dia de Páscoa, o Padre Teodósio diz ao nosso Santo:
- Resistindo à escolha de seus irmãos, V. Rev.a resiste ao
Espírito Santo.
- Aceito, pois, o cargo; - respondeu Inácio suspirando - mas
peço-lhe que escreva a sua decisão e que venha comunicá-la
aos seus irmãos.
O Padre Teodósio acedeu aos seus desejos, e Inácio de Loiola
foi proclamado geral da Companhia na terça-feira de Páscoa,
19 de Abril de 1541.
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