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Estavam as coisas neste pé, no dia em que Miguel, obrigado por
falta de dinheiro, o viera pedir ao jovem professor no colégio de
Beauvais; e nós sabemos que Xavier, depois de lhe ter dado algumas
moedas para as primeiras necessidades, lhe pedira que voltasse na
manhã seguinte.
Na tarde daquele dia, Francisco acabava de interromper o seu
trabalho, ao qual não se tinha podido dedicar com o seu habitual
zelo, quando sentiu abrir-se levemente a porta do seu quarto para dar
passagem a D. Ínigo; este ruído, ainda que fraco, fê-lo
estremecer como se respondesse secretamente aos íntimos pensamentos que
o preocupavam.
Aproximando-se de Xavier, D. Ínigo estendeu-lhe a mão mostrando
envolvê-lo num olhar o mais terno e paternal. Xavier dissimulando do
melhor modo que pôde a sensação que lhe causava aquele olhar,
apressou-se em dizer ao seu amigo
- Tendes-me dado tantas provas de amizade, meu caro senhor, que
não hesito em pedir-vos uma nova. Quereis prestar-me um serviço?
- Da melhor vontade, meu amigo; tudo quanto eu possa fazer por
vós, fá-lo-ei com o maior prazer; falai, caro Francisco.
- Tivestes a bondade de me emprestar dinheiro a última vez que me
faltou pela demora do mensageiro encarregado de receber a minha mesada
[14]; acho-me hoje nas mesmas circunstâncias, e se pudésseis
emprestar-mo de novo, muito grato me deixaríeis.
- Sabeis que eu estou sempre à vossa disposição, e muito vos
agradeço a confiança que me dispensais, D. Francisco.
- Um amigo meu pediu-me que o tirasse dum pequeno embaraço
pecuniário, e eu, não o podendo servir neste momento, lembrei-me
de recorrer a vós, certo de que me obsequiaríeis.
- Certamente e de todo o coração; vós é que muito me obsequiais
dando-me ocasião de vos ser útil, crede-o.
Francisco dirigiu ao seu amigo um olhar indecifrável para qualquer
outro que não fosse aquele a quem era dirigido. Ínigo compreendeu-o
e procurou aproveitar o momento que a divina Providência parecia
proporcionar-lhe para penetrar na alma que se mostrava, enfim,
disposta a abrir-se.
- D. Francisco, disse-lhe ele muito comovido, o vosso coração
é muito bom... em extremo sensível!.., Oh! meu amigo! sim!
ele é muito nobre, muito grande, muito generoso para se prender à
terra! Não foi feito para este mundo! As vossas próprias
reflexões vo-lo terão feito sentir, porque vos acho menos alegre que
de ordinário, há já algum tempo, e hoje especialmente pareceis-me
triste e preocupado; estou convencido, pois, que alguma coisa vos
atormenta interiormente...
- O que me atormenta, respondeu Xavier, não é tanto o vosso Quid
prodest!... É a necessidade de vos dizer que sinto e me arrependo
de vos ter conhecido e apreciado tão tarde, manifestando, tantas
vezes, que as vossas palavras me eram desagradáveis. Horroriza-me
esta injustiça, sinto que tenho sido mais que injusto aos vossos olhos
e o meu coração mo recrimina; eis, pois, tudo. Quanto às minhas
idéias do futuro, não as posso sacrificar. Reconheço a vossa
bondade, a generosidade do vosso coração e todas as mais qualidades
que vos adornam e que eu admiro e respeito; maravilham-me,
sobremodo, as vossas virtudes e a vossa perfeição, mas não me julgo
destinado e digno de imitá-las, não me sinto com vocação para
renunciar aos meus empreendimentos presentes e àqueles que espero para
o futuro.
- Mas, caro Francisco, vós obrigais-me a opor-vos ainda o Quid
prodest da vossa embirração: "De que serve ao homem ganhar o
universo se ele vier a perder a sua alma?"
"A vossa ambição é nobre, eu não o contesto; mas a que se dirige
para o Céu, para a eternidade, não o é ainda mais? E se visais a
um fim que reconheceis ser menos belo, menos nobre, menos duradouro,
é isto digno duma alma como a vossa? Se não existe outra vida mais
que a deste mundo, a razão está por vós; porém, se a vida deste
mundo é curta e a do outro eterna, é loucura não trabalhar senão
pela glória fugitiva da terra e perder assim a da eternidade..."
"Francisco, podeis dizer-me em que se tornaram os ricos, os
poderosos, os felizes desta vida que morreram há algum tempo?
Viveram de ambições, conquistaram fortunas, honras, e os louvores
dos homens; conseguiram o seu fim, obtiveram tudo que ambicionavam e
de tudo gozaram..., Mas o que lhes resta agora, depois da morte,
de tudo que desfrutaram na terra? O que encontraram de tudo isto às
portas da eternidade?"
"Ah! sim, meu amigo! tornarei a dizer-vos ainda, e vós
reflectireis mais sèriamente: De que serve ao homem ganhar o
universo, se vier a perder a sua alma?"
- Eu posso amar a ciência, posso ser sensível à glória que reina
em torno dela, sem contudo condenar-me por isso.
- Tendes a certeza do que dizeis? Não. Sabeis, ao contrário,
que Deus vos pede que façais por Ele todo o sacrifício desde já, e
nada mais sabeis. Não exponhais, pois, a saúde da vossa alma num
talvez!
- Sacrificar tudo! encerrar-se o homem num pequeno círculo de
idéias estreitas...
- Estreitas! Elas abraçam todos os séculos passados e por vir, a
eternidade inteira, e vós as achais mais estreitas do que as vossas,
que se limitam a esta vida e não abraçam senão alguns anos?
- Eu não posso deixar de dizer-vos que acho algum tanto baixas as
vossas idéias de perfeição, quando vejo que elas vos levam a
estender a mão à caridade, andar mal trajado e a suportar toda a
sorte de injúrias... Oh! não! nunca poderei partilhar essas
idéias!
- Achais baixo aquilo que eleva e engrandece a alma! Chamais vil o
que a aproxima de Deus! Não ignorais, de certo, que ela se eleva e
se aproxima d'Ele em proporção e à semelhança de Nosso Senhor,
pela prática das virtudes, cujo exemplo nos deu durante a sua vida
mortal...
"Francisco, vós sois dotado duma razão bastante clara e dum
grandioso coração para deixardes de compreender tudo isto."
"Prossigamos, meu amigo; eu conheço quanto é esclarecido o vosso
espírito, e quanto é bom e leal o vosso coração e o vosso
caráter; muito bem! dizei-me agora o que achais mais racional e mais
proveitoso; sacrificar agora aquilo que prezais para ter segura a
felicidade eterna, ou gozar hoje desses bens pelo preço duma pena
eterna?"
"Respondei".
Falando-lhe deste modo, D. Ínigo aproximou-se do seu jovem amigo
e tomou-lhe a mão que sentiu estremecer entre as suas, adivinhando a
luta que se travava naquele coração tão ardente de 27 anos.
Francisco não respondeu.
- O vosso silêncio responde por vós, lhe disse migo; fiquemos
nisto, e eu me convenço de que vós mesmo me direis amanhã: "De
que serve ao homem ganhar o universo se vier a perder a sua alma?"
- Não aguardarei para amanhã, respondeu-lhe Francisco com voz
comovida; confesso-me vencido... Porém não posso sacrificar tudo
como entendeis! É impossível!
- Compreendo que acheis impossível, por esta tarde, porém uma
natureza como a vossa, não pode reconhecer a verdade sem se render e
sacrificar por ela com a mais completa e cega submissão.
Francisco não replicou. Ínigo levantou-sé, deu alguns passos pelo
quarto, e depois, parando, ficou a contemplar o seu jovem amigo que
parecia absorvido nas suas reflexões; não tardou, porém, muito que
os seus olhares se encontrassem. Francisco tinha os olhos cheios de
lágrimas. D. Ínigo aproximou-se então dele e abriu-Lhe os
braços, aos quais Xavier se deixou atrair, entregando-se
completamente comovido...
O homem do mundo, que pouco antes se confessara vencido, rendia-se
agora de todo. O amigo estreitou-o ao seu coração com o semblante
radiante de inexprimível satisfação! Podia, finalmente, entregar
a Deus e entregar-lhe toda inteira aquela formosa alma que conhecia
ser predestinada a coisas mui grandes, e que pelos desígnios da
Providência, devia ir, mais tarde, fundar o reino de Jesus Cristo
no meio das nações bárbaras, fazendo reviver entre aqueles povos a
luz já consumida e que, outrora irradiara à voz dos primeiros
apóstolos.
Francisco estava de todo convertido; sentia intimamente que Deus o
queria e o chamava para si... mas ele tinha tanto a sacrificar que
pediu ainda alguns dias para reflectir. D. Ínigo contava, com toda
confiança, na retidão e sinceridade do seu amigo para não duvidar um
instante sequer do resultado das suas reflexões na disposição em que
o via.
- Tornaremos a falar, lhe disse ele, quando vos aprouver. Sim,
meu amigo; disponde do tempo necessário, reflexionai perante Deus,
e segui depois a sua divina inspiração.
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