V. EM MANAPAR - VOLTA A GOA - OS DEMÔNIOS FOGEM - MILAGRES E CONVERSÕES

Os milagres acompanhavam por toda a parte as pregações de Xavier. Vimos, na caria precedente, que de vários pontos opostos e afastados concorria muita gente a pedir-lhe para recitar o Evangelho aos doentes, então em grande número; que os doentes eram de ordinário curados, e que com o fim de satisfazer a todos ao mesmo tempo, mandava as crianças para o substituir.

Mas o que o Santo não diz, é que ele dava a essas crianças uma medalha, um rosário, uma imagem ou qualquer outro objecto de devoção, que trazia consigo, ou que havia tocado, o que era bastante para lhe comunicar uma virtude miraculosa...

Um dia vieram dizer-lhe de Manapar que um homem, dos mais importantes do país, estava possuído do demônio, e lhe pediam que viesse livrá-lo. O apóstolo, cercado naquele momento duma imensa multidão que instruía, chama um jovem, entrega-lhe um crucifixo que trazia sempre sobre o peito, e lhe ordena que vá sem receio pôr em fuga o demônio:

- "Não volteis sem que o tenhais expulsado vergonhosamente! disse ele ao rapaz".

À chegada do pequeno mensageiro, o possesso faz ouvir os mais medonhos uivos; os seus membros convulsos fazem horror de ver. O rapaz não se assusta: canta as orações que o Santo Padre lhe havia ensinado, ordena ao demônio que se retire e ao doente que beije o crucifixo do Santo Padre; e o demônio obedece e abandona a sua vítima.

Francisco Xavier vai procurar um dos habitantes desta mesma cidade de Manapar e roga-lhe que o escute por um momento, a fim de deixai penetrar a luz no seu espírito, porque o desgraçado índio era ainda idólatra e recusava a instrução de que tanto carecia. Ele rebela-se contra o santo apóstolo e o repele, dizendo:

-"Nunca entrarei na igreja dos cristãos! Se eu tivesse algum dia esta intenção, desejaria que me fosse proibida a entrada!"

Alguns dias depois, foi este índio atacado por homens armados que haviam jurado a sua morte. Ele consegue escapar-se das suas mãos; corre e procura um abrigo contra aqueles que o perseguem rugindo de raiva, e não vê outro senão a igreja dos cristãos; ela está aberta, mas ele acha-se ainda muito distante... Dirige-se para ali a correr, enquanto os cristãos que se achavam reunidos no templo, naquele momento, aterrados pelos gritos dos pagãos e temendo a pilhagem de que as suas igrejas eram constantemente ameaçadas, se apressam em fechar as portas. O desgraçado índio é morto pelos seus inimigos mesmo à porta da igreja, que, na sua impiedade, ele desejara ver fechar-se sobre si no dia em que pretendesse transpor os seus umbrais...

Visitando o Santo uma aldeia da mesma Costa da Pescaria, encontrou um pobre Paravá coberto de úlceras, falto de tudo, inteiramente nu e sem forças já para suportai a vida. O coração de Xavier comove-se profundamente à vista de tamanha dor e miséria. Ajoelha-se junto do doente, e fala-lhe com a voz entrecortada pelas lágrimas; consola-o com uma ternura paternal; lava as suas chagas, das quais ninguém se atreveria a aproximar-se, tão repugnantes eram elas, e cedendo ao seu ardente desejo de mortificações e de sofrimentos, lembrando-se, além disto, da delicadeza da sua natureza, que outrora chegava ao excesso, bebe, uma parte da água que servira para lavar as chagas do índio!!!... Afasta-se em seguida do lado do doente, que acabava de abraçar com afecto e solícita caridade, e entrega-se à oração.

Alguns instantes depois, levanta-se e volta para junto do doente... O Paravá olha para si, examina os seus membros, tateia-os e abre os grandes olhos... Estava curado! Suas chagas estavam cicatrizadas, seu corpo estava inteiramente limpo e não parecia ter sofrido nunca!

Antônio de Miranda era o catequista do nosso Santo, e por este título lhe era duplamente querido.

Uma noite, foi mordido por uma víbora que lhe causou a morte; o veneno desses répteis é mortal nas Índias. O Santa Padre é chamado; vai imediatamente, mas não vai ocupai-se dos seus funerais; precisa dele para a instrução dos índios, a glória de Deus e a salvação das almas carecem dos seus trabalhos

- "Antônio, diz-lhe o Santo, com voz forte e vibrante, em nome de Jesus Cristo, levantai-vos!"

E Antônio que morrera na noite precedente, levantou-se cheio de vida. As manchas do veneno que o matara desaparecem no mesmo instante. A multidão, presente aquele prodígio, solta gritos de alegria e de admiração ; lança-se aos pés do Santo Padre, chama-o o grande Deus, e ele vê-se obrigado a explicar-lhe que não é mais que o instrumento do grande Deus que reina nos Céus e que o enviou às Índias para se fazei conhecer, fazer-se amar, fazer-se servir por todos que o ouvem, e para bem doutros ainda, aos quais espera levar o seu nome.

Em uma outra aldeia morreu uma menina dumas febres violentas e perniciosas do país; a família desesperada, apela para o santo Padre; ele corre e ressuscita a morta, em presença dum imenso número de pagãos, que crêem imediatamente no Deus de Xavier e solicitam a graça do batismo.

Igual prodígio se repete para com um rapaz que perecera da mesma doença, e do mesmo modo numerosas conversões coroam este milagre.

Duma outra povoação vieram pedir ao Santo para que. acudisse a dar a vida a uma criança. Na véspera caixa aquele pobre inocente em um poço, donde o tiraram morto; porém o Deus do santo Padre ressuscitara outros e pode também ressuscitar este. Os pagãos ali estão, esperando e não querendo acreditar nos prodígios que tantos outros viram e de que procuravam convencê-los.

Francisco Xavier não os faz esperar; chega com o mensageiro, e vendo que a criança está moita, ora por alguns instantes a poucos passos do cadáver; depois levantando-se, ordena à morte que deixe o menino, e à vida que se aposse dele, e a morte e a vida obedecem à ordem de Xavier invocada em nome de Jesus Cristo

Os pagãos não chamavam dali em diante o Santo apóstolo, senão o grande Deus da natureza.

Quantos mais prodígios operava Francisco Xavier, maiores eram as austeridades e mortificações a que se entregava. Sua alimentação era a dos mais pobres de entre os índios: arroz e água e nada mais.

Habitava uma miserável cabana de pescador, dormia no chão.

O vice-rei forçara-o a aceitar um colchão e um cobertor; Xavier vira um pobre deitado sobre folhas secas e lhe dera imediatamente o cobertor e o colchão. Não dormia senão três horas, e não lhe importava a dureza da sua cama para um sono de tão curta duração; não tinha ele a censurar-se de alguns excessos da sua mocidade? Viu-se como, nos arrebatamentos expansivos da sua alma, deplorava aqueles anos que toda a sua vida devia expiar por mortificações tais, que lhe parecia dever duvidar da salvação se não fossem completamente cumpridas. Não podia esquecer-se de que por alguns anos deixara de amar a Deus, a não ser de muito longe, para assim dizer, como o amam muitos cristãos, agora que o zelo da sua glória o abrasa e o devora. As fadigas, os sofrimentos, as privações, as humilhações, são os seus maiores desejos, porque tudo quanto ele sofria naquele apostolado tão penoso, era por Deus, e Deus sofrera tanto por nós!

Ele sofre para salvar as almas e Jesus Cristo deu todo o seu sangue pela salvação daquelas almas! Por isso o Santo apóstolo em nenhuma conta tinha tudo quanto fazia por Deus, e cada vez que os prodígios se multiplicassem nele, mais devedor se considerava.

Xavier havia já conquistado ao inferno uma grande extensão da Costa; ele sòzinho não era suficiente para satisfazer as necessidades de todas aquelas cristandades;além disso, a sua presença era reclamada em Goa, onde tinha muitos negócios a regular, e por isso embarcou em Novembro de 1543, com destino àquela cidade, levando dois indígenas que devia deixar no Colégio da Santa-Fé.

Chegado a Goa, deu ao Padre Paulo de Camerini todas as instruções necessárias com respeito à direção e administração do colégio; mandou o Padre Mancias para o Cabo Co morim, tornou a ver e animar as almas que havia convertido para Deus, não se esquecendo dos seus queridos leprosos nem dos seus afeiçoados prisioneiros; finalmente, escolheu dois jovens para o ajudar no seu apostolado; levou consigo João de Artiaga, artista de mérito e fervoroso cristão, e um rapaz indígena destinado às funções de catequista. Um mês lhe foi suficiente para dispor todas aquelas coisas. Durante a sua curta permanência naquela cidade, teve a consolação de ver chegar alguns Padres de Portugal que vinham partilhar os seus trabalhos.

"Viemos encontrar o Padre Francisco em Goa,-mandava dizer o Padre Melchior González aos seus irmãos da Europa; -suas virtudes são tais, que eu não conheço comparação; ele está possuído do amor divino no mais elevado grau; a sua santidade faz com que o olhem como um mártir vivo, e eu nada vos posso dizer que se aproxime do que tenho visto.

Depois da sua partida, deixou-nos um vácuo, que me parece não ter mais companhia. Este valente soldado de Jesus Cristo não bebe nunca vinho e é de mui forte constituição...".

De volta à Costa da Pescaria, donde ele escreveu a admirável carta que atrás transcrevemos, o nosso Santo dedica-se a formar os dois Padres, dos quais procura fazer dois santos apóstolos; volta às suas prédicas, suas instruções, suas fadigas habituais de povoação em povoação, sem que o embaracem as chuvas, os calores, ou outro qualquer obstáculo. O seu zelo não conhece limites. Entretém mui frequente correspondência com o Colégio de Goa, o qual, dirige por cartas, e com o Padre Mandas a quem não cessa de animar no novo cargo que lhe confiara

"Pelo amor que nós consagramos a Jesus Cristo, lhe dizia ele de Punical, aproveitai todos os vossos momentos disponíveis para me dar conhecimento de tudo que vos diz respeito é aos vossos colegas. Logo que eu chegue a Manapar, darei notícias minhas. Não esqueçais o que vos recomendei na. vossa partida: rogai a Deus a necessária paciência no princípio para vos haverdes com aquela gente. Suponde. que o país que habitais é um purgatório destinado a purificar-vos de todas as vossas faltas, e admirai a infinita bondade que vos permite expiar neste mundo os pecados da vossa mocidade, com grande benefício no mérito e menos penas do que na outra vida".

Em todas as suas cartas a Francisco Maneias, Xavier se assinava: "Vosso irmão que muito vos ama em Jesus Cristo: Francisco".

Quando chegou a Manapar ali encontrou cartas daquele Padre; apressou-se em responder-lhe, dando-lhe conselhos próprios para manter o bem já feito:

"Eu vos suplico, lhe diz ele, que trabalheis para com aqueles homens, que são a escória do gênero humano, como o faria um bom pai para com os filhos desnaturados. Não vos deixeis desanimar, qualquer que seja a perversidade daqueles desgraçados, porque Deus os suporta, com quanto eles o ofendam brutalmente; Ele poderia exterminá-los e não o faz; ao contrário, não cessa de lhes fazer bem. Se ele lhes retirasse por um só instante a sua mão benfazeja, pereceriam todos de miséria.

Eu quereria que imitásseis aquele modelo; nele encontrareis a igualdade de alma que se não deixa enfraquecer por qualquer inquietação, por grave que seja".

E depois de o. ter animado a trabalhar, não obstante os obstáculos e os maus resultados, o Santo acrescenta:

"Enquanto ao mais, a razão e os louváveis exemplos nos dizem que é muitas vezes útil empregar-se a força para vencer a obstinação dos mais rebeldes, naquela nação sujeita a Sua Alteza de Portugal.

"Mando-vos, pois, um oficial de justiça, concedido pelo juiz, com ordem de condenar à multa de dois dinheiros de prata - um fanã - e a três dias de prisão, toda a mulher, que não obstante as proibições, beber daquele licor embriagante a que eles chamam urrac [40]. Fareis publicar esta lei em todas as aldeias e povoações, a fim de que alguma mulher surpreendida em estado de embriaguez, não possa pretextar ignorância.

"Significai aos panchayat [41], que se se beber daqui em diante o urrác em Punical, eu os tornarei responsáveis por este delito. Compeli-os sèriamente a corrigirem-se antes da minha chegada, e a vigiarem sobre os hábitos dos seus subordinados. Dizei-lhes que eu se os encontro ainda entregues aos mesmos vícios, autorizado pelos poderes que tenho do pretor, os farei conduzir a Cochim; e não ficarão livres com esta viagem, que se não iludam, porque estou bem resolvido a retirar-lhes todos os meios de voltarem a Punicáb".

Tal era, pois, a firmeza que o grande Xavier sabia juntar à sua tão amável e tão insinuante caridade.

Todos os cuidados que ele empregava nas missões de que se achava afastado,. não diminuíam em coisa alguma os seus trabalhos e as suas conquistas; internava-se por aquelas terras, só, sem guia e sem conhecimento dos sítios.

"Podeis fazer idéia da minha vida depois que aqui estou, escrevia ele dum lugar cujo nome até ignorava; não compreendendo ninguém e não podendo fazer-se compreender. Contudo, baptizo os recém-nascidos, porque para isto não careço de intérprete, nem tão-pouco para socorrer os pobres, que sabem perfeitamente fazer-me compreender a sua miséria".

Os meninos cristãos eram de ordinário os seus mensageiros para levarem as suas cartas; alguns de entre eles tanto se afeiçoaram ao Santo que não o quiseram deixar; destes se servia ele para catequistas e intérpretes. Deixara um ao Padre Maneias, de quem falava na sua correspondência com o interesse de pai; nada é mais comovedor da parte do admirável apóstolo, preocupado e absorvido por tantos e tão magnânimos trabalhos, como a lembrança que encontramos por aquela criança, numa carta datada de Livare a 23 de Abril de 1544:

"Dizei da minha parte ao pequeno Mateus que continue a ser estudioso, a repetirem as lições que vós lhe dais, em voz alta, em pleno catecismo, a pronunciá-las bem. Quando eu para lá fôr, lhe farei um presente, que, estou certo, lhe causará muito prazer".

A fim de se poder dar uma idéia cabal das minudências em que ele entrava na direção das missões de que se achava afastado, citaremos o final da mesma carta:

"Dizei-me, acrescenta ele, se as crianças são exatas em concorrer às orações, e quantas de entre elas as sabem de cor. Peço-vos que não poupeis nem papel nem palavras, para lhas explicar e fazer-lhas aprender. Aproveitai a primeira ocasião para me satisfazer sobre todos estes pontos.

Que o Senhor seja convosco como desejo que seja para comigo! Que tenhais saúde. Vosso Irmão que muito vos ama em Jesus Cristo;

FRANCISCO".

No entretanto o nosso Santo ampliava o reino de Jesus Cristo com um progresso maravilhoso. Em Tuticorim, recebeu ele cartas do Padre Mancias que lhe causaram o maior pesar pela impossibilidade em que se via de poder ir ter com ele imediatamente, como desejava.

O coração e a alma de Xavier manifestam-se completamente na resposta àquele Padre, e que não podemos resistir ao desejo de a dar aqui, quase integralmente, visto ser o nosso fim fazer conhecer, sobretudo, a vida intima do grande apóstolo do Oriente.

"Meu querido irmão em Jesus Cristo.

Deus, a quem tudo é conhecido, sabe qual o prazer que eu experimentaria se pudesse estar alguns dias convosco, de preferência a conservar-me em Tuticorim, separado de vós por tão pequena distância.

Mas, sendo a minha presença aqui de absoluta necessidade para terminar as dificuldades que poderiam arrastar esta gente a contendas perigosas, é irremediável que ambos nós saibamos sacrificar esta consolação à preciosa vantagem que o serviço de Deus pode colher desta pacificação, e que nos alegremos de estar onde não desejamos estar, e onde nos retém a mui santa vontade do Senhor, o seu reino e a sua glória.

Ainda mais uma vez vos imploro que não vos impacienteis contra essa desgraçada gente, quaisquer que sejam os seus erros e as suas reincidências. Conheço quão penoso nos é o ver-nos desviados a cada instante dos nossos trabalhos sérios para nos ocuparmos dos seus pequenos interesses; mas é necessário suportar estas importunações com paciência e serenidade, e prestarmo-nos de bom grado a esses contratempos que nos vêm por todos os lados.

Fazei quanto puderdes; adiai com afabilidade o que não puderdes executar no mesmo momento; consolai com boas palavras aquele que não puderdes servir escusai-vos com bondade por não poder fazer o que vos pedem.

A esperança consola algum tanto aquele que não obtém desde logo o que deseja.

Vós deveis a Deus inúmeras e continuadas ações de graças, e creio que as rendeis devidamente, por vos ter colocado aonde não podeis estar ocioso, quando mesmo o queirais, porque trabalhos sem número vos roubam à porfia todos os momentos da vossa vida; mas o que faz a sua recompensa é o tenderem todos eles para a glória de Deus.

Mando Pedro à vossa disposição; tornai-me Antônio logo que esteja restabelecido, que, julgo, poderá estarem cinco ou seis dias.

A qualquer necessidade a que vos vejais exposto, quer seja de dinheiro, quer de conselhos, escrevei-me imediatamente; não vos podem faltar oportunidades pelos que vão e vêm diariamente.

Suportai esse povo com uma paciência e bons modos tais,, que nada vos possa alterar, com o fim de o arrancar ao vício e leva-lo ao bem. Se alguns daqueles pobres índios são rebeldes a todos os vossos esforços; se não podeis conquista-los pela vossa indulgência, lembrai-vos que a missão que vos foi dada consiste em punir, a propósito, aqueles que o merecem, e a tirar do mal para o bem os que podem ser estimulados.

Que Deus vos conceda os socorros que eu lhe rogo para mim próprio!

Vosso irmão que muito vos ama em Jesus Cristo.

Francisco".