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D. Antônio de Araoz, sobrinho do nosso Santo, acabava de
fazer os seus votos. Foi o primeiro que os pronunciou depois
dos dez Padres fundadores, e para o coração de Inácio de
Loiola, que os recebeu, foi um dia de grande consolação.
Diogo de Eguia fez também os seus no mesmo dia, imediatamente
aos de Araoz. Ambos foram em seguida enviados para Espanha a
fim de trabalharem na santificação das almas na cidade de
Barcelona. O Padre Araoz viu correr a multidão ao seu
encontro quando chegou àquela cidade. Toda a população queria
ver o sobrinho do Santo, queria saber notícias do Santo! O
bom Padre era literalmente assediado desde manhã até à noite,
e viu-se estimado do povo e dos grandes, que não se cansavam
de ver e ouvir o próximo parente do Santo, e de receber os
seus conselhos espirituais.
Havia muitos anos que ninguém tinha visto Inácio de Loiola em
Barcelona; mas a sua lembrança ficara viva em todos os
corações e em todas as almas, e julgavam encontrar o venerado
Santo naquele que acabava de ser formado na sua escola, a
quem ele falara dos seus queridos barcelonenses, a quem tinha
recomendado os seus interesses espirituais duma maneira
particular. Amaram, pois, logo o Padre Araoz e amaram-no e
veneraram-no pelas suas virtudes, como se amavam e veneravam
por toda a parte os Padres da Companhia de Jesus.
Inácio de Loiola não se limitou aos importantes trabalhos do
governo da Companhia, sobre os quais tornaremos a falar;
ocupou-se também de criar na cidade de Roma obras e
instituições de caridade e de zelo, de que só ele teve o
primeiro pensamento, de que foi o primeiro instigador, e que
ainda hoje são mantidas.
Eram numerosos os judeus na cidade; alguns tinham reconhecido
a verdade e abraçado o cristianismo, graças aos esforços do
nosso Santo, e grande número doutros haviam-lhe confessado
que temiam a pobreza, resultado inevitável da sua conversão.
Inácio só viu um meio de conciliar tudo no primeiro momento e
empregou-o. Mandou preparar uma parte da sua casa para dar
asilo aos catecúmenos e aos neófitos, e pediu esmolas para os
sustentar, esperando melhores dias. Aumentando todos os dias
o número das conversões, e não sendo suficiente a casa da
Companhia, Inácio não descansou enquanto não obteve das
pessoas mais ricas uma casa especial para esta obra, a fim de
que os seus queridos israelitas estivessem em casa sua. Foi
assim que ele fundou a casa de S. João de Mercato. Depois
deste primeiro resultado dos seus esforços e fadigas, pediu
ao Soberano Pontífice um decreto que assegurasse aos
israelitas convertidos a conservação dos seus bens legítimos,
herdados ou adquiridos, e, para os filhos que se tivessem
convertido sem terem sido autorizados por seus pais, o
direito de herdar, apesar da diferença de religião, os bens
legitimamente possuídos, e de destinar ao estabelecimento dos
neófitos, de S. João de Mercato os bens mal adquiridos, que
se empregavam nestes casos em obras pias. O Papa Paulo III
concedeu todos estes favores e designou, a pedido do nosso
Santo, um Cardeal que devia ser o protetor desta importante
fundação. Durante o primeiro ano, Inácio teve a consolação de
baptizar quarenta judeus. De todos os neófitos fazia outros
tantos apóstolos que se esforçavam por levar-lhe novas
conquistas. Um dia, um dos catecúmenos, não podendo resistir
mais às seduções dos seus correligionários, estava prestes a
voltar para eles, quando o santo fundador o procurou e lhe
disse:
- Isaac, queres abandonar-nos? Não o faças, meu filho, fica
conosco.
Estas palavras vibraram profundamente na alma de Isaac, que
julgou ouvir a palavra do próprio Deus, e nada foi capaz de o
abalar; tornou-se depois um dos mais fervorosos cristãos.
Tendo o catecumenato de S. João de Mercato tomado cm pouco
tempo considerável desenvolvimento, e não sendo os Padres
jesuítas assaz numerosos em Roma para se conservarem à frente
da sua direção, foi-lhe dado para superior um Padre secular,
João de Torano, com grande reputação de virtude e de
santidade. Mas o inferno não podia sofrer, sem clamar, os
prodígios de zelo e de caridade operados para a glória de
Deus por Inácio de Loiola e pela sua santa Companhia; não
podia ver arrancar-lhe tantas vítimas sem perseguir os
heróicos apóstolos e sem fazer explodir sobre eles todo o
furor do seu ódio e da sua vingança.
João de Torano deixa-se dominar pelo demônio do orgulho, e
chega a servir-lhe de instrumento para tentar a perda de
Inácio e dos seus discípulos: "Por que - dizia ele - faz este
Inácio de Loiola tanto bem em Roma e os seus discípulos em
toda a Europa e até no Oriente? Esta casa, de que sou
superior, é, de facto, Inácio que a dirige. O Cardeal
protetor, os benfeitores, os administradores consultam-no e
nada fazem sem o ouvir; o próprio Papa faz tudo o que ele
deseja, e eu não sou aqui senão um seu subordinado. As coisas
não podem continuar assim por muito tempo".
A cabeça do desgraçado Torano exalta-se: espalha o boato de
que Inácio e os seus discípulos são hereges, hipócritas e
traem o segredo da confissão; faz uma memória repleta destas
infames calúnias e dirige-se ao Papa pedindo-lhe um
inquérito... Mas Deus lá estava e sabemos que a promessa
feita à santa Companhia de Jesus por Nosso Senhor devia ser e
será até ao fim cumprida. O inquérito solicitado pelo
caluniador volta-se contra ele. João de Toxano foi convicto
de heresia pelo Cardeal Monte, encarregado de tratar desta
questão, e viu-se privado dos seus benefícios, os bens
foram-lhe confiscados e foi-lhe interdito todo o exercício do
santo ministério. Devia ser condenado a prisão perpétua, unas
Inácio não queria vingar-se dele, e tanto trabalhou, que
conseguiu que esta pena fosse comutada na de expulsão do
território.
O nosso Santo fundou igualmente em Roma uma obra que também
se perpetuou: a das crianças abandonadas. Estabeleceu duas
casas, uma para crianças do sexo masculino, outra para as do
sexo feminino; escolheu administradores, encontrou
benfeitores, deu sólidas bases a esta obra, obteve do Papa
que um Cardeal fosse protetor dela, e retirou-se, como já
fizera com a casa dos judeus, a fim de não dar lugar à
inveja. Mas a lembrança do fundador não se apagou, e ainda em
nossos dias, todos os anos, no dia da festa de Santo Inácio
os órfãos vêm ajudar a todas as missas que se dizem na igreja
de Gesú, em honra daquele cuja caridade lhes fundou o asilo.
Nas suas visitas aos doentes dos hospitais, o Santo viu que
alguns não pensavam em se confessar senão nos últimos
momentos e que muitos morriam sem receber os sacramentos.
Impressionado com a perda de tantas almas, pediu ao Papa que
pusesse em vigor a decretai de Inocêncio III, ordenando que o
médico não visse outros doentes senão aqueles que começassem
por se confessar. Propôs apenas uma modificação: a de
permitir duas visitas do médico antes da confissão, mas de
proibir a terceira sob pena de incorrer nas penalidades da
lei. O Papa seguiu o conselho e o povo submeteu-se a estas
condições sem manifestar descontentamento. Este costume
conservou-se.
Isto não bastava para o zelo do Santo. Um grande número, de
raparigas arrastadas pela miséria, lançavam-se na desordem
moral; Inácio queria preservá-las desta desgraça e fundou
para elas o convento de Santa Catarina, onde são formadas na
virtude e no trabalho, e de onde não saem senão para se
casarem; se forem chamadas à vida religiosa, podem tomar ali
o véu. Depois de haver tomado para esta fundação todas as
medidas que podiam garantir-lhe o futuro, retirou-se, como
sempre.
O santo fundador tinha três amigos, sem os quais não
empreendia nenhuma destas obras: eram Tiago de Crescenzi,
duma das mais distintas famílias de Roma; Lourenço de
Castelo, homem muito estimado e possuidor de considerável
fortuna; e Francisco Vennuncci, primeiro capelão de Paulo
III. Entendia-se com eles para tudo o que queria empreender
neste gênero: os passos a dar, as esmolas a pedir, os
administradores a escolher, o Cardeal a solicitar para
proteger a obra, e a organização que podia ter: Todas estas
medidas de prudência não conseguiam evitar os obstáculos que
o inimigo do bem procurava lançar sobre o caminho do nosso
Santo; mas Nosso Senhor, depois de ter mostrado esta nova
crus ao ilustre fundador, não tardava a ser-lhe favorável.
Não bastou ao santo fundador ter abrigado as raparigas que
podiam ficar expostas a perder-se; quis também salvar as
mulheres que estavam perdidas, retirá-las do abismo em que
tinham caído e colocá-las num lugar de refúgio que pudesse
estar sempre aberto ao arrependimento. Queria fundar para
estas pobres pecadoras um convento especial; porque o de
Santa Madalena não recebia as mulheres casadas, e não admitia
das outras senão as que quisessem aceitar o véu; ora nem
todas eram chamadas a esse estado. Inácio não encontra para
esta obra a simpatia que havia encontrado para as
precedentes; mas não desanima. Trabalhava para a glória de
Deus e estava certo de que Deus o ajudaria. Pediu, suplicou a
algumas pessoas, e obteve enfim que D. Leonor, mulher de D.
João da Vega, embaixador de Carlos V junto da Santa Sé,
recebesse algumas dessas pobres pecadoras e fizesse recolher
outras por algumas senhoras suas amigas, aguardando que
houvesse a desejada casa para as recolher a todas.
Contente com esta promessa, impelido pela sua caridade, corre
em busca das almas perdidas que quer salvar, e, como se não
pudessem resistir à sua palavra, essas mulheres desgraçadas
abandonavam tudo à sua voz e seguiam-no. E via-se o santo
fundador da Companhia de Jesus atravessar as ruas de Roma,
seguido dessas mulheres, das quais todas as pessoas honradas
se afastavam com horror, e chegar assim ao palácio de
Espanha, onde as entregava a D. Leonor. Quase todos os dias
dava um passeio deste gênero, apesar de todos os negócios que
tinha de tratar e apesar dos seus contínuos sofrimentos, às
vezes muito intensos. Um dia disseram-lhe que algumas pessoas
achavam pouco digno dele percorrer as ruas da cidade seguido
dessas pobres pecadoras, e acrescentaram:
- Vossa Reverência entrega-se a muitas fadigas e cuidados
para obter pouco resultado; porque essas desgraçadas, que se
deixam comovei por um instante, tornam em breve a recair.
- Darei o meu tempo e as minhas fadigas por bem empregadas, -
respondeu o Santo - se chegar a evitar um só pecado mortal de
cada uma delas.
Entretanto, D. Leonor termina por dizer a Inácio que ela e as
suas amigas não podiam continuar a receber tanta mulher, e
que a casa destinada a esta obra não permitia que se
recebesse mais uma. Foi o momento da Providência. Inácio de
Loiola não tem auxilio algum, mas espera contra toda a
esperança e crê que é da vontade divina que ele empreenda,
só, o que ninguém quer começar. Enquanto pede a Deus o seu
apoio e auxílio nesta empresa, o Padre Codacio vem
anunciar-lhe que ao cavar na igreja, para fazer reparações,
as operários descobriram antigas ruínas e que ali haura
pedras de grandes dimensões e de notável beleza:
- Deus seja louvado! - responde o santo fundador venda essas
pedras por cem ducados e venda-as imediatamente.
O Padre Codacio vende-as por esse preço. Inácio pega nesse
dinheiro, vai procurar alguns cavalheiros que lhe tinham
recusado auxílio para a sua grande obra, e diz-lhes:
- Nenhum dos senhores quer começar, mas eu trago a primeira
pedra; é necessário que agora dêem a segunda.
Não lhe resistem, o dinheiro chega de toda a parte, Inácio
compra o antigo convento de Santa Marta, forma, para o
dirigir, uma associação de senhoras piedosas sob o patrocínio
de Santa Maria da Graça, entrega-lhes as chaves do convento,
que manda reparar, e no dia 16 de Fevereiro de 1542 as
mulheres arrependidas estavam ali instaladas, tendo por o
Cardeal Carpi, que era também protetor da Companhia.
Inácio fez uma exceção em favor desta casa, concedendo-lhe um
Padre jesuíta para confessor. Em breve tornou-se o fervor tão
intenso que o convento de Santa Marta era citado pelos
pregadores como um modelo de todas as virtudes. Em poucos
anos, o número das mulheres sinceramente convertidas e
penitentes tinha-se elevado a trezentas.
O espírito do mal fez todos os esforços para destruir este
grande bem. Os homens mais escandalosos da cidade queriam
abrir à força as portas do convento, e, não podendo
consegui-lo, quebraram os vidros e arremessaram-lhe pedras.
Um deles, chamado Matias, não encontrando outro meio para se
vingar do zelo dos jesuítas e do seu santo fundador, recorreu
àquele já tantas vezes ensaiado sem resultado: espalhou o
boato de que o Padre Inácio e os seus eram hereges mascarados
e tinham fugido de Paris para evitar os castigos a que a
Inquisição os havia condenado. As coisas tinham avançado
tanto, que, por consideração ao seu caráter e para honra do
ministério sagrado que exerciam, Inácio julgou dever dirigir
uma memória ao Papa e pedir-lhe um novo inquérito, instando
para que nomeasse juízes. Estando doente o Cardeal-Vigário, o
pedido não teve deferimento; logo que ele se restabeleceu,
Inácio renovou o pedido e fê-lo apresentar pelo Bispo de
Césène, que dirigiu ao Papa uma memória na qual chamava santa
à Companhia de Jesus. O Cardeal-Vigário, Filipe Archinti,
dirigiu-se duas vezes ao convento de Santa Marta para
interrogar as pessoas que o habitavam acerca da doutrina e
dos costumes dos jesuítas, e Matias foi intimado a comparecer
diante do tribunal no dia 3 de Julho. Mas, em vez de se
apresentar, procurou abrandar o nosso Santo; ignorava, sem
dúvida, que, em casos semelhantes, Inácio não fraquejava.
Todos os pedidos de Matias nada conseguiram; a sentença dada
pelos juízes, que foi mais uma glória para a Companhia de
Jesus e para o santo fundador, dizia que Matias perderia o
cargo que ocupava e que os seus bens sevam seqüestrados se
continuasse a espalhar boatos caluniosos contra aqueles
santos religiosos; além disso, foi condenado às despesas do
processo e a uma pena que os juízes se reservavam dar-lhe a
conhecer. Mas o Santo empregou tantas instâncias em favor do
culpado, que obteve a remissão da pena. Sabemos que ele
sempre se vingava assim. Matias, cheio de reconhecimento
pela, caridade de Inácio, converteu-se tornou-se amigo
dedicado do Santo, e um dos mais zelosos benfeitores da
Companhia de Jesus.
Enquanto este processo se instruía, Barberano, frade
espanhol, excitado sem dúvida pelo demônio da inveja,
voltou-se também contra Inácio, acusou-o de administrar a
obra de Santa Marta sem ter recebido autorização do Papa, e
de querei, sem missão, reformar todo o mundo. Estas acusações
eram ridículas; o povo riu-se de Barberano e não deu
importância às suas declamações. O frade, furioso com o
acolhimento que lhe faziam, escreveu ao nosso Santo todas as
injúrias que pôde imaginar e terminou a sua carta
dizendo-lhe: "O meu desejo era ver queimar todos os
jesuítas, desde Perpignan até Sevilha".
Inácio de Loiola recebeu esta carta por um mensageiro;
ordenou-lhe que esperasse e ditou imediatamente estas linhas
ao seu secretário, João de Polanco:
"Jesus. - Senhor, dizei ao Padre Frei Berberano: - Dizeis
que, se de vós dependesse, faríeis queimar todos os nossos
desde Perpignan até Sevilha. E eu digo-vos: Desejo que vós,
os vossos amigos e todos os vossos, não somente de Perpignan
a Sevilha, mas em todo o universo, sejais inflamados,
consumidos pelo fogo do Espírito Santo, de tal sorte que
todos, tendo atingido o fastígio da perfeição, aumenteis
assim o brilho da glória divina. Dizeis também que o
governador e o Vigário de Sua Santidade estão fazendo um
inquérito a nosso respeito e que brevemente será dada a
sentença. Se há razões de queixa contra mim, apresentem-lhas
diretamente, juntando as provas, a fim de que eu seja o única
punido, se for culpado; porque me seria muito agradável ser
castigado no meu corpo para evitar a todos os nossos que, de
Perpignan a Sevilha, sejam queimados sem o terem merecido".
Barberano deu-se por satisfeito com esta resposta e não
insistiu nas suas ridículas acusações.
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