XIII. SOCORRO DOS CORPOS E DAS ALMAS

No pensamento providencial, tudo devia concorrer não somente para a justificação de Inácio de Loiola e dos seus muitos discípulos, mas também para a manifestação brilhante e menos procurada, da eminente santidade e do valor excepcional destes novos campeões da. Igreja de Jesus Cristo. Em Storta, é verdade, Nosso Senhor tinha mostrado a sua cruz à Companhia que o Pai Eterno lhe apresentava para seu serviço e sua glória; mas, mostrando aos apóstolos da sua escolha este sinal da contradição e do sofrimento, o Senhor Jesus tinha-os envolvido num olhar cheio de amor e havia-lhes dito: "Ser-vos-ei propício".

Inácio de Loiola e os seus discípulos hauriram nesta visão e nesta promessa uma força incomparável e viam nelas todo o fruto da sua santa Companhia; porque, se a cruz é o sinal da contradição, é-o também da vitória; se promete humilhações, assegura o triunfo; se traz sofrimentos, garante a glória, que é a recompensa dos sofrimentos.

No fim do ano de 1538, á. cidade de Roma viu-se a braços com a mais terrível fome. Os pobres, morrendo de inanição, arrastavam-se dolorosamente para fora de suas casas e estendiam-se nas ruas para receberem o socorro da caridade ou o da morte. Era um espetáculo aterrador!

O santo fundador da Companhia de Jesus não possuía nada e os seus discípulos estavam nas mesmas circunstâncias; todos viviam de esmolas. Acabavam de ser reabilitados na opinião pública, mas tinham ainda inimigos, principalmente entre o povo, que tinham procurado irritar contra eles com as mais absurdas calúnias. Inácio sabe tudo isso... Não importa! É precisamente porque não vê meio algum de socorrer os pobres, que terá mais confiança na Providência. Todos os Padres metem mãos à obra com ele. Percorrem as ruas, tomam. o r, moribundos nos braços ou aos ombros, transportam-nos sua casa, assaz vasta para ser transformada num pequeno hospital, e recebem deste modo até quatrocentos. Vão mendigar socorros à porta dos ricos, encontram suficientes esmolas para acudir a esta grande necessidade, e, socorrendo o corpo, dando-lhe a vida que lhe fugia, salvam a alma do pobre que a sua caridade recolheu. Mas a casa tem, limites e a sua caridade não os conhece. Recorrem sempre e sem cessar à generosidade dos grandes e levam a alimentação do corpo com a da alma aos pobres que não podem recolher em casa.

A notícia da admirável caridade de Inácio e dos seus, discípulos atrai muitos curiosos à torre Melangolo; querem ver em ação estes dedicados apóstolos, tão descuidados de si e tão ocupados com os sofrimentos do pobre; esses homens,, reputados tão sábios, alguns dos quais são de nobre linhagem e parecem não saber nem conhecer outra coisa senão a humildade,, a mortificação e a dedicação levadas ao mais sublime grau. E aqueles a quem só impele a curiosidade, comovidos até ao Fundo da alma pelos afetuosos - cuidados prodigalizados pelos heróicos Padres a todos os infelizes, despojavam-se do ouro, da prata, duma parte dos vestidos para contribuírem para esta obra maravilhosa da mais engenhosa caridade.

O número dos pobres socorridos pelos Padres da Companhia de Jesus durante esta fome, elevou-se à cifra de quatro mil, pouco mais ou menos. Estes prodígios de caridade atraíam para o Santo todos os espíritos e todos os corações; na cidade só contava amigos e admiradores. O povo corria para junto dos bons Padres, nas ruas e praças públicas, com as maiores demonstrações de reconhecimento e de respeito. Os ricos e os grandes punham-se à disposição de Inácio para o secundar em todas as suas boas obras. Margarida de Austria, filha de Carlos V, quis entregar-lhe a direção da sua alma. Enfim,. Sumo Pontífice, ufano de possuir tais homens, mostrou desejo de os empregar no serviço da Igreja.

Querendo Inácio de Loiola aproveitar esta favorável disposição para lhe submeter o seu plano de Constituições da Companhia, preparava-o ativamente. Forçado a interromper este longo trabalho durante a calamidade que acabava de afligir a cidade, continuou-o pouco depois, sempre com o concurso dos seus discípulos, à aprovação dos quais submetia artigo por artigo, convidando-os a reflectirem nele diante de Deus e a pedir-Lhe luzes antes de responderem, deixando-lhes liberdade para aceitarem ou discutirem o assunto proposto. Inácio apresentava-lhes as coisas, não como superior, que o não queria ser, mas como irmão mais velho da família. Até então não havia superior reconhecido. Os discípulos obedeciam ao mestre com a docilidade que dá uma confiança cega, e o mestre nunca ordenava, apenas propunha. O nosso Santo, na sua profunda humildade esforçava-se sobretudo por não ser considerado como fundador; e nisto empregava tanta simplicidade como firmeza. Isto explica-se: a idéia de fundar a Companhia não era dele.

Em Manresa, na sua gruta mil vezes bendita, Inácio de Loiola, cumulado das graças e dos favores do Soberano, ao serviço do qual ele queria viver e morrer, pedira-lhe a graça de empregar, em honra da sua divina Majestade, a força e o ardor que tinha prodigalizado até então para glória e honra dos príncipes da terra. E o Monarca eterno, aceitando a sua dedicação e os seus serviços, tinha-o encarregado duma missão digna do seu mérito e do seu valor.

Escolhera-o para formar uma Companhia, destinada não somente a combater os seus mais temíveis inimigos, mas também a dilatar indefinidamente os limites do seu império: esse corpo privilegiado, no qual só os valentes e os fortes podiam ser admitidos, devia recrutar-se, estender-se e dividir-se sem se desunir, porque "a união faz a força". Devia ter por chefe Jesus Cristo e não reconhecer outra bandeira senão a sua cruz; devia ter um comandante supremo com o título de geral, submetido ao Vigário de Cristo na terra.

Mas Deus, na sua misericórdia e no seu amor, não se limitara a dar a idéia da santa Companhia de Jesus àquele a quem encarregara de a formar; tudo devia ser divino nessa obra de salvação para os homens e de glória para a Igreja; tudo devia ter impresso o selo do seu autor; o próprio Deus quis indicar ao nosso herói os principais pontos da admirável organização que devia assegurar-lhe a força e garantir-lhe a duração.

Qual seria o momento em que o plano das Constituições da santa Companhia de Jesus desceu do céu à terra? Inácio de Loiola não o revelou nunca.

Santo Inácio não se considerava, pois, fundador da Companhia; considerava-se simplesmente como o instrumento que a devia organizar e estabelecer. Havia recebido esta missão em 1522, e, prosseguindo este fim havia dezassete anos, tinha arcado com todos os perigos, vencido as maiores dificuldades, domado obstáculos de todos os gêneros, sofrido todas as privações, suportando as mais duras fadigas, tudo sem se desanimar um só instante. Sabia que a obra não era sua, mas de Deus; daí essa paciência, essa coragem, essa perseverança que não pode assaz admirar-se, sobretudo recordando a natureza impetuosa do nosso herói e o seu empenho em tomar de assalto tudo o que ousasse resistir-lhe antes da sua conversão.

O santo fundador não tinha escrito todo o plano das Constituições; tinha-o gravado na alma em caracteres indeléveis, e, chegado o momento de o tornar conhecido, quis comunica-lo aos seus discípulos, como se viu, propô-lo às suas meditações, entrega-lo à sua discussão artigo por artigo, e não impor-lho como um pensamento do alto.

Este trabalho exigia tempo, e os Padres tinham muito pouco, absorvidos como estavam pelas funções do apostolado; porque todos procuravam o seu santo ministério com tal empenho que lhes não era possível reunirem-se senão à noite.

Vemos, segundo uma carta do Santo, que nessa época Deus lhe deu a consolação de fazer a conquista do seu querido sobrinho, Antônio de Araoz, que se tornou membro da Companhia de Jesus.