XV. A APROVAÇÃO DESEJADA

Diogo de Gouveia, reitor do colégio de Santa Bárbara, em Paris, que vimos muito irritado contra o nosso Santo a ponto de o querer submeter a um castigo infamante, e que, depois de o ter ouvido, se havia honro somente humilhado diante dele na presença de todo o colégio, Diogo de Gouveia ficara sendo desde esse dia seu amigo dedicado. Soube dos triunfos da Companhia em todas as cidades onde os Padres se haviam apresentado; tinham-lhe falado da edificação da sua vida, da sua admirável caridade durante a fome de Roma, de todo o bem que resultava para as almas do seu apostolado, sempre abençoado. Diogo de Gouveia era português, o rei de Portugal acabava de aumentar mais ainda assuas possessões na India, e Diogo perguntava-se que bem não fariam, entre essas nações idólatras, apóstolos como aqueles que ele conheceu, formados na escola de Inácio dê Loiola e adestrados já no ministério, de maneira que atraiam a admiração da Itália inteira. Escreveu ao nosso Santo e pediu-lhe autorização para propor ao seu soberano alguns dos seus discípulos a fim de levarem a fé às Índias. Inácio respondeu-lhe:

"Eu e os meus companheiros estamos à disposição do Sumo Pontífice, prontos a partir para qualquer parte do mundo onde lhe aprouver envia -nos para glória de Deus Nosso Senhor. É a Sua Santidade que deverá pedir os nossos serviços e não a nós, que não podemos dispor deles a nosso gosto...".

O reitor de Santa Bárbara escreveu a D. João III, rei de Portugal, enviando-lhe a resposta de Santo Inácio, e mostrou-lhe todas as vantagens que podiam advir, para glória de Deus e bem das almas, do apostolado desses admiráveis missionários, cujas virtudes, ciência e triunfos apostólicos toda a Itália proclamava. D. João III apressou-se a dar ordem a D. Pedro de Mascarenhas, seu embaixador em Roma, para negociar a este respeito com o Papa.

Mas já então os Padres, a pedido de alguns Príncipes e Bispos, tinham sido- enviados pelo Sumo Pontífice a diversos pontos da Itália, e operavam ali maravilhas. Fabro santificava a cidade de Parma, onde, naquele momento, mais de cem eclesiásticos e leigos seguiam, sob a sua direção, os Exercícios Espirituais. Laynez obtinha os mesmos resultados em Placência, e o Cardeal Santo Angelo, Ennio Filodardi, escrevia freqüentemente ao Papa a felicitar-se por ter levado coxa ele aqueles dois apóstolos à sua legação. Em Siena, Broet e Rodrigues reformavam um convento de religiosas e reanimavam o espirito sacerdotal no clero, pela prática dos Exercícios Espirituais, ao mesmo tempo que despertavam a fé em todas as almas com as suas pregações. Bobadilha pacificava a ilha de Ischia, cujos habitantes andavam em guerra contínua uns com os outros. Cláudio Lejay confundia em Bréscia os pregadores luteranos que se esforçavam por extinguir a fé católica naquela cidade e nos seus arredores.

Paulo III, desejando secundar os desejos do rei de Portugal, e prevendo o que homens animados de tal espirito podiam fazer para a glória de Deus nas Índias, deplorava que o seu número fosse tão pouco proporcionado às imensas necessidades da Igreja e hesitava em dar a D. Pedro de Mascarenhas uma resposta decisiva. O embaixador que queria regressar a Portugal e desejava levar consigo os Padres, continuava a insistir. Não podendo o Sumo Pontífice continuar a sua recusa, submeteu-se à decisão de Inácio de Loiola, a quem D. Pedro pediu sem hesitar, seis dos seus discípulos.

- Se der a V. Ex.a seis para as Índias e para Portugal - lhe respondeu Inácio em tom de inspiração - quantos ficam para as outras partes do mundo? Apenas posso conceder dois.

Concedeu Rodrigues, que chamou de Siena, e Bobadilha, que mandou vir de Nápoles, mas que, sofrendo de ciática, não se curou a tempo de partir e foi substituído por D. Francisco Xavier, o único dos seus primeiros discípulos que o nosso Santo conservou consigo em Roma e a quem amava na proporção do que a sua conversão lhe tinha custado de lágrimas, de paciência e de esforços.

Inácio de Loiola orava sempre para aplanar os obstáculos que se opunham à ereção da Companhia em Ordem religiosa. Não cessava de lembrar a Nosso Senhor a sua promessa de ser favorável a esta nascente Companhia, que usava o seu doce nome, e, orando, vertia abundantes lágrimas. Um dia, enquanto orava, pareceu-lhe que tomava os corações dos seus queridos discípulos, os apresentava apertados ao peito a Nosso Senhor pedindo-lhe que concedesse à petição de todos o que recusava a um só, e fez voto de mandar celebrar, pela Companhia, três mil missas em ação de graças, se obtivesse prontamente o favor, que solicitava em nome de todos os seus.

Inácio de Loiola, sabia que não trabalhava em obra sua; sabia que, cedo ou tarde, veria a Companhia aprovada como desejava. Tinha plena confiança acerca desse ponto. E contudo ora, suplica, derrama lágrimas diante de Deus para apressar o momento do completo cumprimento das suas promessas...

Era isto o que ele sabia e tinha entrevisto toda a glória que adviria a Jesus Cristo e á sua Igreja dos magníficos trabalhos da santa milícia que tinha missão de formar e organizar! E, como sabemos, o zelo pela glória de Deus devorava a alma de Inácio de Loiola. Todos os seus pensamentos, todas as suas obras, todas as suas orações, todas as suas lágrimas não tinham outro móbil e outro fim senão a glória e a maior glória de Deus.

Acabara apenas de ser feito o voto do nosso Santo, quando o Cardeal Guidiccioni se sentiu impelido a lançar um olhar sobre o plano de que tinha recusado ocupar-se. Leu-o, reconheceu e sentiu nele o espirito de Deus, e diz aos dois Cardeais que havia arrastado a uma opinião contrária

- Este projecto é admirável. Persistindo nas minhas idéias acerca das ordens religiosas, reconheço que se deve fazer uma exceção a favor desta, que é realmente inspirada pelo céu.

Desde este dia, o Cardeal apressou as coisas e o instituto foi aprovado e erigido em Ordem religiosa pela bula do Sumo Pontífice Paulo III, datada de 27 de Setembro de 1540, que já reproduzimos.

Houve algumas dificuldades relativamente ao nome de Jesus, que o santo fundador dava à nova Ordem. Achavam-no ambicioso, objectavam que tendo todas as Ordens existentes sido igualmente fundadas para a glória de Jesus Cristo e da sua Igreja, todas podiam também pretender esta denominação.

Inácio julgou não dever ceder neste ponto. Recusou dar o seu nome à Companhia, como lhe pediam, porque ele era apenas um instrumento da sua fundação e não o seu fundador. Queria dar-lhe o nome de Jesus, porque Jesus era o seu princípio e devia ser a sua vida, porque ela era destinada a servir e a imitar Jesus, porque Jesus devia ser seu chefe e seu modelo. O nosso Santo não dizia mais nada, mas os seus discípulos sabiam que não podia nem devia dar-lhe outro nome senão o de Jesus, porque fora Jesus que dera o seu nome à Companhia. Este nome, tão doce e tão poderoso ao mesmo tempo, foi aceito com efeito e posto na bula de instituição.

Recordando estas dificuldades, Santo Inácio dizia ao Padre João de Polanco:

- Teria ido contra a vontade de Deus, e ter-me-ia tornado gravemente culpado, se houvesse hesitado um só instante em dar à Companhia o nome de Jesus [51].

Tendo a Companhia de Jesus recebido a sanção apostólica, tratava-se agora de a organizar de maneira que pudesse atravessar os séculos sem que fosse jamais necessário chamá-la à santidade da sua origem. O Cardeal Guidiccioni disse que todas as ordens religiosas degeneravam com o tempo e terminavam por tornar-se grandes chagas na Igreja. A Companhia de Jesus será uma exceção: o seu espirito manter-se-á sempre à altura do seu principio, e ela será sempre para a Igreja uma consolação e um auxílio.

O primeiro cuidado do nosso Santo devia ser o de dar um chefe à Companhia e proceder à eleição do geral. Chamou, pois, a Roma os Padres disseminados em Itália; mas, Bobadilha que estava então no reino de Nápoles, em Bisignano, não pôde vir. Os habitantes daquela cidade, receando perdê-lo' para sempre se o deixassem afastar-se, dirigiram uma súplica ao Sumo Pontífice para obter que ele ficasse. O Papa acedeu. aos seus desejos, e tendo Bobadilha recebido esta ordem muito tarde para enviar o seu voto escrito, não pôde tomar parte na. eleição. Francisco Xavier e Simão Rodrigues tinham escrito e lacrado os seus e haviam-nos deixado nas mãos do Padre Laynez antes de partirem para Portugal. Não podendo Pedro Fabro abandonar a dieta de Worms, à qual assistia por ordem do Papa, enviou o seu voto lacrado. Os outros Padres dirigiram-se a Roma nos primeiros dias da Quaresma de 1541, e imediatamente começaram as conferências relativas à organização da Companhia, da qual era urgente fixar os pontos mais importantes, antes de se proceder à eleição do geral.. Além disso, alguns postulantes suspiravam pelo momento da sua admissão e esperavam que as primeiras regras fossem. assentes. Inácio haura feito um projecto, que foi aceito por todos os seus discípulos, como tinha sido o primeiro plana.. Ocuparam-se em seguida da eleição. Durante três dias imploraram as luzes do Espírito Santo, sem se comunicarem os. seus desejos ou as impressões recebidas na oração; no quarto dia, cada um escreveu e lacrou o seu voto, que entregou; mais três dias foram consagrados a pedir a Deus que abençoasse a eleição que ia ser conhecida. Enfim, a 7 de Abril, os votos eram abertos e viu-se que todos votavam no santo fundador.

Cada um dos Padres motivava, com o mais sensibilizados elogio ao santo fundador, a escolha que dele fazia para governar a Companhia. Não era uma escolha feita pelo sentimento das conveniências, era a escolha do coração, a da alma e da consciência daqueles que podiam apreciar com justiça todo o, valor do seu pai.

Mas o voto mais notável é o do nosso Santo:

"Em presença de Deus Nosso Senhor, dou o meu voto,, para que se torne nosso superior, aquele que reúna maior número de sufrágios, com exceção de mim. Mas se a Companhia julga mais vantajoso, para glória de Deus Nosso Senhor,, que eu designe qualquer, estou pronto a fazê-lo. - Inácio".

Não se sabe o que mais deva admirar-se, nestas linhas; há nelas tanta humildade, simplicidade, prudência e sabedoria que o espírito fica confundido. Inácio não quer testemunhar mais estima ou preferência por um dos seus discípulos do que por todos os outros; sente, além disso, que a confiança que lhes inspira os levará todos a designá-lo, a escolhê-lo, e está resolvido a repelir para longe de si o fardo do governo.

Pintou-se a alegria em todos os rostos depois da leitura do voto, do último e, tendo-se voltado todos os olhares para o nosso Santo, fácil foi julgar das suas impressões. Era um condenado que acabava de ouvir pronunciar a mais terrível sentença. O Padre Ribadeneira, então postulante e que vivia na casa da Companhia, assistiu a esta sessão e conservou-nos as palavras pronunciadas por Santo Inácio no momento em que se viu proclamado geral:

"Meus irmãos, -disse ele - sou indigno de tal cargo e julgo-me incapaz de o desempenhar. Não sei dirigir-me a mim mesmo; como poderei dirigir os outros? Quando me considero em presença da divina Majestade; quando me lembro da minha vida mundana e das minhas faltas passadas; quando vejo no presente as minhas más disposições, as minhas misérias, a minha fragilidade, a minha inclinação para o mal, o meu pouco zelo pelo bem, não posso resolver-me a aceitar o fardo que querem impor à minha fraqueza. Peio-lhes, pois, que levem este negócio diante de Deus Nosso Senhor e lhe supliquem, durante três dias, que nos esclareça com o seu divino Espírito, a fim de que a escolha recaia num chefe mais digno do que eu, e que possa governar a Companhia com prudência, sabedoria e autoridade".

A alegria dos bons Padres mudou para uma dolorosa -tristeza. Todos representaram ao seu muito amado Pai a inutilidade duma nova eleição, que daria o mesmo resultado; todos resistiram muito tempo; mas foi mister ceder diante da inquebrantável firmeza de Inácio de Loiola.

A segunda eleição foi semelhante à primeira.

O santo fundador renovou a sua recusa. Então o Padre Laynez levantou-se e disse-lhe com uma espécie de autoridade:

- Meu Padre, ceda à vontade de Deus; se o não fizer, a. Sociedade dissolver-se-á, porque eu estou resolvido, e todos comigo, a não reconhecer outro chefe senão aquele que Deus escolheu.

- Pois bem, - disse o nosso santo - submeter-me-ei à decisão do meu confessor. Far-lhe-ei conhecer os pecados, os crimes que cometi até à idade de trinta anos; confessar-lhei-ei toda a minha indignidade, toda a minha incapacidade, e, quando ele me tiver ouvido, se me aconselhar ou ordenar, em nome de Jesus Cristo Nosso Senhor, que aceite essa temível responsabilidade, obedecerei.

Os Padres reclamaram em vão contra esta nova resistência dizendo-lhe que a vontade de Deus não podia ser mais claramente manifesta e que ele resistia a essa vontade. O Santo não se deixou vencer e os seus discípulos tiveram de ceder. Ele confessava-se ao Padre Teodósio, religioso de S. Francisco, do convento de S. Pietro in Montorio.

Na Sexta-Feira Santa, Inácio abandona os seus discípulos, sai da torre de Melangolo e vai encerrar-se no convento de S. Pedro. Passa ali três dias sem comunicar com ninguém, exceto com o Padre Teodósio; faz-lhe uma confissão geral, dá-lhe conta das duas eleições em seu favor, assim como dos motivos da sua recusa e pede-lhe que lhe faça conhecer a ordem de Deus. No dia de Páscoa, o Padre Teodósio diz ao nosso Santo:

- Resistindo à escolha de seus irmãos, V. Rev.a resiste ao Espírito Santo.

- Aceito, pois, o cargo; - respondeu Inácio suspirando - mas peço-lhe que escreva a sua decisão e que venha comunicá-la aos seus irmãos.

O Padre Teodósio acedeu aos seus desejos, e Inácio de Loiola foi proclamado geral da Companhia na terça-feira de Páscoa, 19 de Abril de 1541.