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Cinco dias haviam decorrido sem o brilho do sol no firmamento; cinco
noites em que nem uma só estrela cintilara no céu; a chuva não
cessara de cair em torrentes; as nuvens, ora chumbadas, ora
acumuladas pareciam tomar um aspecto mais sombrio ainda; um vento
violento, impetuoso, elevava as vagas ameaçadoras a uma altura
prodigiosa; a tempestade aumentava visivelmente ...
...De súbito, muitas vozes a um tempo lançam rio espaço um grito
dilaceraste... e depois... nada!... silêncio de morte! Só
se ouve o medonho rugir das vagas!
- Meu Deus! meu Deus! eles foram devorados pelas vagas! a
embarcação submergiu-se! Depressa! em seu socorro virai de
bordo!...
- Mas, capitão, vós nos fareis submergir também.
- Virai de bordo! eu quero salvá-los!...
- Perder-nos-eis sem os salvar! O menor movimento nos fará
sossobrar!...
Não obstante estas judiciosas advertências, do imediato e do
piloto, o capitão ordena a perigosa manobra. Porém logo no começo
da execução, uma medonha montanha de água avança e volta a
embarcação que não pode levantar-se mais.
Passageiros, soldados e marinheiros, precipitam-se em desespero
sobre a ponte; ali se reúnem em grande confusão agarram-se às
cordas, evitam os movimentos, tornam a manobra impossível, e soltam
gritos lancinantes.
Assim reunidos no interior, são um obstáculo a toda a tentativa de
salvação.
A morte é infalível... a submersão é inevitável!... Uma
nova vaga mais horrorosa ainda, vem despenhar-se sobre aqueles
desgraçados... O que será feito do navio, da sua equipagem,,
das suas riquezas!... Tudo se vai perder!.. . tudo vai
submergir-se!...
Depois de seis dias da mais feliz navegação, variara o tempo
subitamente, e o São Miguel fora impelido pela violência da
tempestade, para um mar desconhecido dos portugueses. Decorreram
cinco dias desde que se viam batidos por aquela horrível tormenta; o
céu, carregado de nuvens, não permitia que se tomasse a altura e a
tempestade em sucessivo aumento! O capitão mandara arrasar o castelo
da proa e ordenara em seguida que se amarrasse solidamente a chalupa;
mas sobrevindo a noite durante aquele trabalho, não permitia receber a
bordo Afonso Calvo, sobrinho do capitão, quatro outros portugueses
e dez índios escravos e marinheiros, que para ali haviam descido.
Algumas horas depois, o furor das vagas quebra as amarras que retinham
a chalupa, e os homens, que nela se achavam soltavam gritos de agonia
que levavam o desespero ao coração de D. Eduardo da Gama e o
arrastaram à imprudente manobra cujo resultado devia ser tão
deplorável.
Mas a Providência velava pelo navio que levava o seu escolhido.
Deus queria manifestar duma maneira maravilhosa a sua predileção pelo
ilustre apóstolo do Oriente, e operar um daqueles prodígios cuja
memória se eternizasse.
Francisco Xavier acabava de subir para o convés, e no momento em que
a medonha vaga submergia o navio, ouviu-se a seguinte exclamarão
"Jesus! Salvador dos homens! amor da minha alma, socorrei-nos!
eu vo-lo rogo pelas venerandas chagas que vos fizeram na cruz por nossa
causa!"
No mesmo instante, o São Miguel já submergido, volta à flor da
água, ninguém morrera! A tempestade diminui, o céu aclara-se e
pode-se já orientar e vai-se seguir o rumo da viagem...
- Procuremos a chalupa! diz o capitão.
Os marinheiros sobem pelas enxárcias; olham em todas as
direções... Nada! o mar... e só o mar! Não é possível
duvidar-se, a embarcação fora a pique
Prossegue-se tristemente na viagem, deplorando-se a desgraça da
morte de quinze homens; cada qual, sob a impressão do perigo de que
acabava de escapai por milagre, partilha mais sensivelmente da dor do
capitão que chora seu sobrinho, e a dos portugueses e dos índios que
choram seus amigos ou seus parentes.
Francisco Xavier vertia lágrimas também, porque a chalupa que
desaparecera levara dois muçulmanos cuja conversão não pudera
conseguir, e atribuindo a obstinação que mostraram tão somente à
sua indignidade pessoal, pedia a Deus, com todas as forças da sua
alma, o salvamento daqueles infelizes por um milagre, para se não
perderem para a eternidade duas almas que ele tanto desejava arrancar ao
inferno. E em seguida, aproximando-se do capitão, disse-lhe:
- Meu caro Eduardo, consolai-vos; a chalupa voltará; a filha
virá juntar-se a sua mãe.
Oh! acabou-se, meu Padre! Eu não posso esperar isso a não ser
por um milagre... respondeu-lhe D. Eduardo.
Contudo, Xavier havia-lhe dito: "Ela voltará". Aquela palavra
era para ele a esperança. Fez ainda subir um marinheiro... Nada!
nem um ponto se via no mar! O santo Padre retirara-se dali; depois
de duas horas de oração voltou à ponte e perguntou:
- Então! capitão, vê-se a chalupa?
- Não, meu Padre!
- Fazei subir para o cesto da gávea, caro senhor, a embarcação
voltará.
- Sim, diz impacientemente Pedro Velho, uma chalupa virá talvez
algum dia, mas não será aquela que nós perdemos.
- Senhor Pedro, replicou o nosso Santo, vós duvidais da bondade e
do poder de Deus? Isso é não ter fé. Nada lhe é difícil, nada
lhe é impossível. Eu pus a chalupa sob a proteção da Santíssima
Virgem, fiz voto de celebrar três missas a Nossa Senhora do Monte
se ela nos for restituída com os quinze homens, e tenho tanta
confiança na misericórdia infinita de Deus que espero vê-los voltar
sãos e salvos.
Vejamos, capitão, acrescentou ele dirigindo-se a D. Eduardo,
rogo-vos que façais subir um dos vossos para o cesto da gávea!
D. Eduardo, por deferência para com o santo Padre subiu ele
próprio com um marinheiro, esteve em observação durante meia hora,
e desceu completamente desenganado: o mar não oferecia à vista o
menor ponto negro em toda a sua extensão!
Naquele momento, foi acometido o nosso Santo de uma espécie de
vertigem que o fez vacilar, e teria caído se Francisco Mendes Pinto
o não tivesse imediatamente amparado em seus braços.
- Meu Padre, lhe disse ele, há já três dias que sofreis os
enjôo do mar e não tendes repousado nem um só momento; assim
adoecereis por certo! Rogo-vos pois, como um favor, que descanseis
por algum tempo na minha câmara!
Em todas as viagens do mar, Xavier, por amor à sua santa pobreza,
não aceitava a câmara em nenhum navio. Quando ele quisesse
isolar-se ia para a do capitão ou dum dos seus amigos, e para dormir
estendia-se sobre a coberta, com a cabeça apoiada às cordas.
Cedeu, porém, às instâncias de Mendes Pinto e rogou-lhe que
fizesse guardar o seu escravo chinês para que ninguém o fosse
estorvar.
Mas longe de se entregar ao repouso de que tanto carecia, o santo
Padre esteve em oração até ao fim do dia e voltou à ponte no
momento em que o sol desaparecera no horizonte.
- Vê-se a chalupa? perguntou ele ao piloto.
- Oh! é preciso esquecermos a chalupa, meu Padre. Como quereis
vás que ela tenha resistido a uma tão horrorosa tempestade? E quando
mesmo um milagre a tivesse salvo, não a poderíamos ver porque estaria
a cinquenta léguas daqui, pelo menos.
- Vós raciocinais muito bem, tudo isso é muito justo, replicou
Xavier, mas Deus não faz as coisas a meio: se ele salvou a chalupa
por um milagre, pode também por um milagre fazê-la avançar. Antes
que a noite venha, fazei subir alguém ao cesto da gávea, e me fareis
com isso um grande favor.
- Nada há que eu não faça para vos obsequiar, meu Padre, vou eu
mesmo subir até lá.
Mas dali a pouco desce o piloto sem ter descoberto coisa alguma.
- D. Eduardo, disse Xavier ao capitão, a chalupa vem, estou bem
seguro disso! Suplico-vos, pois, que ponhais o navio à capa para
lhe dar tempo de se reunir a nós!
A ordem foi dada e logo executada, suspendendo-se por muito tempo o
seguimento do navio; mas os passageiros, que sofriam assim fortes
balanços e não podiam crer na volta duma embarcação submergida,
perdem a paciência e gritam com toda a força.
- "À vela! à vela, capitão, à vela! à vela!"
O Padre Xavier lança-se sobre a antena, apoia ali a cabeça r
rompe em soluços
- Um pouco de paciência, eu vos suplico! diz ele aos passageiros;
a chalupa vem; - e levantando para o céu os Olhos cheios de
lágrimas, exclama: - "Jesus! meu Senhor e meu Deus! eu vos
imploro, pelos sofrimentos da vossa santa Paixão, que tenhais
piedade daquela pobre gente que vem para nós através de tantos
perigos"!
Depois, baixou as pálpebras e conservou a cabeça apoiada sobre a
antena, sem fazer um movimento, sem pronunciar uma palavra;
julgavam-no adormecido.
- "A chalupa! Milagre! Milagre! Ei-la"! grita um jovem
colocado junto do mastro grande.
Tudo corre, tudo grita, apertam-se, empurram uns aos outros, todos
querem vê-la... A chalupa estava ali; os seus tripulantes estavam
todos; era uma alegria, uma felicidade, lágrimas, ações de
graças a Deus e ao santo apóstolo a quem u devia um tal prodígio;
era um verdadeiro delírio!
A embarcação detém-se por si só junto do navio, e conquanto o mar
estivesse muito agitado, a chalupa conservava-se imóvel enquanto os
seus quinze homens subiam para bordo do São Miguel; ela não vinha
avariada, e parecia nada ter sofrido.
Depois das primeiras impressões de alegria, todos se empenham em
dirigir perguntas aos que com tanta felicidade haviam recuperado.
- Que um fale por todos, disse o capitão.
- Sim, é melhor! é melhor! dizem todos; que D. Afonso Calvo
conte o que lhe aconteceu!
- Muito bem! mas saibam que não nos aconteceu absolutamente nada,
disse Afonso.
- Como?! Nada?!
- Não, com toda a verdade. Eu nunca vi um piloto como o Padre
Francisco! Ele guiou-nos por entre escolhos e furores do mar, com
mais perícia do que o teria feito o melhor e mais prático de todos os
marinheiros; nós não experimentámos um só momento de temor, não
obstante a violência da tempestade.
Todos se mostraram surpreendidos de pasmo.
O capitão, penetrado da dolorosa idéia de que seu sobrinho
enlouquecera em resultado do perigo, lança um triste olhar em torno de
si; nota igual impressão em todos os semblantes e recolhe-se a um
silêncio cheio de dor; ninguém tem a coragem de lhe dirigir mais
perguntas, é um sofrida mento geral.
D. Afonso descobre a impressão causada pelas suas palavras, mas
nada compreende
- Que achais, pois, vós todos de tão extraordinário e admirável
no que acabo de dizer-vos? perguntou ele.
- O Padre Francisco não estava convosco, meu amigo, disse
tristemente o capitão.
- Sim, meu tio, sim capitão, ele estava conosco, responderam ao
mesmo tempo quinze homens salvos milagrosamente. Ele pode dizer-vos
isso melhor do que nós. Onde está ele?
Procura-se o Padre Francisco; tinha-se retirado; estava em ação
de graças.
- Por que, pois, dizeis vós, instou Afonso, que isto não é
verdade, quando o vistes chegar conosco e ser o primeiro a subir a
bordo do navios'
- Porque ele nos não deixou nem um só momento, respondeu D.
Eduardo; além disso, assegurou-me por tal modo que vós viríeis,
mostrava nisso tal certeza, que, não obstante todas as aparências,
eu esperei e me decidi a demorar o navio, persuadido de que ele não
insistiria assim se Deus não lhe tivesse feito conhecer a vossa
volta.
- A nós, replicou D. Afonso, dizia-nos ele: "Coragem! meus
filhos; eu vejo o São Miguel, seguimos o seu rumo, e nos
reuniremos a ele bem depressa! Tende confiança em Deus!"
Os companheiros de D. Afonso Calvo apoiavam com o seu testemunho
tudo quanto ele acabava de dizer, quando os dois muçulmanos, que
tinham estado a conversar em voz baixa, uniram a sua afirmativa à dos
portugueses e dos índios católicos, acrescentando, com uma viva
animação, que nem um nem outro tinham visto subir o Padre Xavier
para o navio; que eles tinham os olhos sobre ele no momento da
abordagem, e que deixaram de o ver de repente, enquanto D. Afonso
subia, mas que ao mesmo tempo o viram sobre a ponte do navio.
- Para nós, disse um deles, o facto é suficiente; a maneira como
ele nos trouxe é um grande milagre; a sua presença sobre a chalupa,
quando está provado que ele não deixou o navio, é um milagre maior
ainda; a religião do profeta nunca fez tais prodígios, e, nós o
dizemos abertamente, vamos pedir o batismo ao Padre Francisco! Se
Jesus Cristo não fosse Deus, o santo Padre, como vós o chamais,
não faria tão grandes milagres em seu nome.
Tudo estava explicado. D. Afonso não estava louco; os seus
catorze companheiros não o estavam também. Deus operara uma
sucessão de prodígios a rogos do grande Xavier: salvara o São
Miguel; salvara a chalupa; conduzira esta ao navio; acalmara a
violência da tempestade; tornara sensível a presença do seu santo
apóstolo em dois lugares ao mesmo tempo, e tudo isto durante vinte e
quatro horas.
Todos tinham pressa de tornar a ver o nosso Santo; desejavam
agradecer-lhe, ouvir a sua meiga voz, prostrarem-se a seus pés.
Achavam a sua oração muito longa!
Se pudessem interrompê-la! mas isso não era possível: era
necessário esperar com paciência, e resignavam-se com pesar quando
finalmente ele tornou a aparecer com grande alegria de todos.
Os quinze homens que ele tão milagrosamente salvara, prostraram-se a
seus pés agradecendo-lhe coxas lágrimas e pedindo-lhe a sua
bênção:
- Meu Padre! fostes vós que nos salvastes! diziam eles, éreis
vós que dirigíeis o leme!...
- Não, meus amigos, era a mão de Deus que o dirigia! é a ele
que deveis agradecer, a ele somente! responde-lhes o santo Padre,
fazendo-se vermelho.
Depois, dirigindo-se ao capitão, disse-lhe
- Agora, à vela! meu caro Eduardo; Deus vai dar-nos a mais
feliz viagem.
Treze dias depois, chegavam à ilha de Sancião [76].
Quando deixou o navio de D. Eduardo da Gama, Xavier disse ao
piloto Francisco de Aguiar:
- "Vós não morrereis no mar, por mais violentas que sejam as
tempestades que afrontardes, e por mais frágil que seja o navio em que
embarcardes".
Francisco de Aguiar tinha visto o bastante para crer cegamente nas
palavras proféticas do grande apóstolo. A partir daquele momento,
nunca mais se importou nem do vento, nem da estação, nem do barco em
que embarcava; cantava durante as tempestades.
Surpreendido uma vez por uma borrasca aterradora, em viagem de
Tenasserim para o reino de Pegu, num ruim barco em que havia recebido
alguns passageiros maometanos, conservava a sua alegria de espirito e
não se mostrava pesaroso senão por ter de ver um navio quebrar-se
contra um rochedo.
- Como podeis vós cantar, disse-lhe um dos passageiros quando vedes
a morte a ameaçar-vos assim?
- O Padre Francisco, nosso santo Padre, predisse-me que eu não
morreria no mar! Quando as vagas fossem dez vezes mais elevadas eu
não as temeria e navegaria, através de semelhante tempestade, em um
barco de vidro! Mas vós não podeis compreender isto, vós que não
sois da nossa religião! O vosso profeta não faz milagres como o
nosso santo Padre!
- Se não ficarmos submergidos, será seguramente por um milagre,
disse um dos muçulmanos, porque nunca vi tormenta mais furiosa e o
vosso barco não pode lutar senão por um prodígio impossível de
explicar.
- Prometeis converter-vos, se chegarmos a salvamento?
Sim! sim! exclamaram os infiéis; como não podemos escapar à morte
sem milagre, pediremos o batismo em Tavar.
Chegados a Tavar, descobrem sobre a praia muitos barcos quebrados;
conhecem que a tempestade causara a perda de muitas vidas e bens e
fazem-se cristãos mesmo em Tavar.
O navio Santa Cruz, pertencente ao capitão Diogo Pereira,
achava-se no ancoradouro de Sancião, prestes a fazer-se à vela
para Malaca, assim como um outro navio português. Xavier,
intimamente relacionado coxas o capitão do Santa Cruz, embarcou a
bordo; o vento variou repentinamente e tornando-se favorável para
aquela direção, levantaram ferro a 3 z de Dezembro de 1551.
- Por um mar tão calmo, disse o capitão, quando se viram ao
largo, podemos conversar sossegadamente. Falai-nos do Japão, meu
Padre; estais satisfeito? -
- Deus abençoou os nossos trabalhos, respondeu o santo apóstolo; o
Evangelho fez magníficos progressos nos reinos de Saxuma, Firando,
Amanguchi e Bungo; sente-se somente a falta de obreiros em um solo
tão fértil, e eu espero poder enviá-los em breve. Mas é
necessário empreender-se também a conversão da China e tratar de
aí penetrar logo que eu tenha regulado os negócios e os interesses da
Companhia nas Índias para onde neste momento sou chamado.Tenho já
um catecismo traduzido em chinês..
- Mas, meu Padre, disse-lhe João Lopes, um dos passageiros,
como conseguireis isso? A China, não somente não admite os nossos
navios nos seus portos, mas ainda proíbe, sob pena de morte, ou de
cativeiro perpétuo, que qualquer estrangeiro entre no seu império.
Alguns mercadores nossos tentaram-no;sabe-seque uns foram mortos e
outros acorrentados como malfeitores. Creio, contudo, que só tendes
um meio de aí chegar, meu Padre: é com uma solene embaixada em nome
do rei de Portugal.
- Esse seria um meio excelente! disseram todos os portugueses;
João tem razão, mas a despesa seria enorme.
São necessários, acrescentou Lopes, ricos presentes para o
imperador e para os ministros, sem falar das despesas de armamento e
outras... O vice-rei não poderá, por certo, sobrecarregar-se
delas, hoje que a guerra exige sacrifícios tão consideráveis.
- Compreendo todas essas dificuldades, disse Xavier, mas confio e
espero na Providência...
- Meu caro Padre, exclamou o capitão imediatamente, o meu navio e
a minha fortuna estão ao serviço de Deus e ao vosso! Eu vo-lo
ofereço de todo o coração para a conversão da China l
Xavier apertou ao seu coração o amigo tão digno dele, e abraçou-o
com lágrimas de reconhecimento, dizendo-lhe:
- Aceito! meu excelente amigo, aceito com alegria! Deus vos
pagará o que lhe ofereceis tão generosamente. Eu me encarrego de
obter do vice-rei a embaixada necessária para a minha entrada.
- Eu só temo uma coisa, meu Padre, acrescentou o capitão, é que
se retenha o meu navio em Malaca para o serviço do rei; porque está
sendo ali horrível a guerra.
- Sim! respondeu-lhe Xavier. Ela foi bem mortífera! mas Deus,
cuja misericórdia é infinita, compadeceu-se. No momento em que a
fortaleza, não podendo resistir por mais tempo, ia render-se, os
infiéis, dominados por um terror pânico, tomaram a fuga e a cidade
está livre.
Francisco Xavier acabava de revelar o que Deus lhe fizera conhecer,
com tanta sinceridade e dignidade, que ninguém se atreveu a dizer
sequer uma palavra Depois de alguns momentos de silêncio o capitão
replicou:
- Meu caro Padre, vós tendes pressa de chegar a Goa, eu sou
obrigado a ir a Sunda, e a estação vai já bastante adiantada para
se poder esperar que encontreis, à vossa chegada. a Malaca, um
navio pronto a sair para as Índias.
- Antônio Pereira aí está com o seu navio no ancoradouro; ele
dispõe-se a fazer-se à vela, para Cochim, nós o encontraremos
prestes a partir, e aproveitarei essa oportunidade, respondeu
Xavier.
Naquele momento, um pé de vento súbito levanta uma violenta
tempestade; era o tufão, perigoso nos mares da China, que se
desencadeava com furor.
A tripulação e os passageiros surpreendidos e aterrados suplicam ao
santo Padre que os salve, que ore e rogue para obter a bonança.
Xavier não responde; retira-se por alguns instantes para u câmara
do capitão, e torna a aparecer sobre a ponte com os olhos elevados
para o céu, o semblante animado, ar inspirado... Abençoa o navio
em voz alta, e depois acrescenta:
"O navio Santa Cruz não se perderá no mar! O lugar que o viu
construir o verá destruir-se por si mesmo. Prouvera u Deus que
aquele que partiu conosco seja tão feliz: mas não saberemos senão
muito tarde qual foi a sua triste sorte!"
O Santo acabava apenas de pronunciar aquelas palavras guando o
furacão cessou, o mar tornou-se tão sossegado como na partida. Em
seguida descobriram-se dois marinheiros boiando sobre uma prancha e
fazendo penosos esforços para atingirem o Santa Cruz;
presta-se-lhes imediato socorro e são recebidos com o maior
interesse...
Aqueles marinheiros pertenciam à equipagem do navio que seguira o de
Diogo Pereira, e que levado pelo tufão se quebrara contra um
rochedo; tudo se perdera, vidas e fortunas. Os dois náufragos que
se acabavam de salvar eram os únicos a quem a Providência poupara a
vida.
O capitão Diogo Pereira deteve-se em Singapura; uma fragata ia
fazer-se à vela daquele porto para Malaca.
Francisco Xavier, de todo confiado na inspiração que recebera
relativamente à presença do capitão Antônio Pereira no ancoradouro
de Malaca, escreveu-lhe pedindo que retardasse por três dias a sua
partida para Cochim. Escreveu também ao Padre Peres dando-lhe
ordens para preparar tudo de modo que ele pudesse embarcar sem demora.
A nova da chegada tão próxima do santo Padre espalhou-se em poucas
horas por toda a cidade de Malaca.
"Ah! se ele aqui estivesse, nós não teríamos sofrido tanto nesta
horrível guerra! Ele nos teria prestado maiores socorros que o mais
numeroso e zoais valente exército"!
Ao desembarque, encontrou o santo Padre a população reunida no
porto e empenhada em comunicar-lhe todas as desgraças com que haviam
sido oprimidos na sua ausência
- Vede, santo Padre, todo este belo bairro destruído pelos
javaneses!... E este, vede, meu Padre, olhai! não
reconhecereis por certo esta rua!
- Meus queridos filhos, respondeu o Santo, vós recaístes em tão
grandes pecados! tendes ofendido tanto a Deus e admirais-vos que Ele
vos haja punido? Fazei penitência! Atraístes sobre vós a cólera
de Deus; trabalhai agora por atrair a sua misericórdia; ela é
infinita, não esqueçais isto!
Aquele que era acolhido com tanto amor e entusiasmo fazia a sua entrada
solene numa cidade, onde era olhado como um soberano, vestido de uma
pobre batina, cujos farrapos mal remendados, ameaçavam escapar-se do
grosso fio que os retinha. Dois dias depois, o humilde apóstolo
ceava em casa do seu amigo D. Francisco de Paiva com alguns outros
portugueses.
- Meu Padre, disse-lhe D. Francisco, vós pareceis-me mais
formoso, mais belo, esta noite; foi para nos honrar que vestistes
essa bela batina?
O Padre Xavier olha-se, examina-se... e diz com surpresa
- Mas é verdade, é uma batina nova!... Como foi que isto
aconteceu? Não me reconheço a mim próprio!... Estava
convencido que vestira esta manhã a batina que ontem trazia.
A sua admiração divertia tanto os seus amigos, que ele compreendeu a
decifração do enigma.
- Esta bela batina enganou-se, agora vejo eu, lhes disse ele; ela
buscava o seu dono nas trevas e tomou-me por ele.
Tinha-se com efeito trocado a sua pobre batina por uma nova enquanto
ele dormia; ele vestira-a sem dar por isso, passara todo o dia sem
pressentir a mudança., e foi necessário que D. Francisco de
Paiva lhe dirigisse um gracejo sobre o seu asseio e garbo para que
conhecesse a pequena burla dos seus amigos.
D. Pedro da Silva não era já governador de Malaca; estava
substituído por seu irmão D. Álvaro de Ataíde da Gama. O
Padre Xavier foi visitar um e outro; comunicou-lhes o seu projecto
de embaixada para a China, que aprovaram, no interesse da coroa de
Portugal, assim como no da religião, e recebeu com alegria a
promessa do seu apoio:
- Eu vos seria muito mais útil na execução deste plano, disse-lhe
o governador, se acumulassem em mim a intendência da marinha, mas
não sou o intendente e ignoro mesmo a quem este cargo, vago desde há
pouco, será dado. A minha autoridade limita-se à cidade;
contudo, prometo-vos, meu Padre, empenhar todos os meios a meu
alcance. Demais, vós ides ter com o vice-rei, estais na sua
graça, podeis fazer uma coisa: pedir-lhe que me nomeie intendente,
conquanto seja já governador da cidade; a vossa empresa caminhará às
mil maravilhas. Ser-me-á livre equipar um navio da armada real para
essa embaixada, e procurarei fazer as coisas de modo que ela se
realize!
- Senhor governador, respondeu Xavier, eu apresentarei com a melhor
vontade o vosso pedido...
- Não, não, meu Padre! É necessário pedir como um simples
desejo da vossa parte. Eu não devo entrar nisso de modo algum!
- Assim o farei, senhor.
E o nosso Santo, a quem Deus não quis esclarecer naquele momento
sobre as intenções de D. Alvaro, deixou-o cheio de -esperança e
encantado do seu acolhimento.
Diogo Pereira, fiel à sua promessa, deu-lhe trinta mil escudos de
oiro para as primeiras despesas, e o grande Xavier, tendo terminado
os seus arranjos, embarcou no navio de Antônio Pereira, que só
esperava por ele; os três japoneses também o acompanhavam, e
fazendo-se à vela para Cochim, aí chegaram a 24 de janeiro de
1552.
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