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A nova da morte do santo Padre tão amado, todos os portugueses da
Santa-Cruz romperam em soluços.
Os marinheiros desembarcaram com todo o pessoal do navio; todos
queriam ver e venerar o corpo do grande apóstolo, todos queriam
beijar-lhe os pés e as mãos, recomendarem-se às suas orações, e
testemunhar-lhe o amor e o reconhecimento que ele havia grangeado de
todos os corações!
O santo corpo foi conservado até ao terceiro dia, domingo, estendido
sobre a esteira que cobria o solo da cabana.
Jorge Alvares, Francisco de Aguiar, Cristóvão e Antônio de
Santa-Fé, tiraram-lhe a sua pobre batina da qual repartiram entre
si os preciosos pedaços, acharam sobre o seu peito uma pequena boceta
contendo a assinatura de santo Inácio, os nomes dos Padres com os
quais o nosso Santo tinha vivido em Roma, a fórmula dos seus votos,
e uma parcela de osso do apóstolo S. Tomé, sob cuja proteção ele
pusera o seu apostolado das Índias.
Revestido o corpo de seus hábitos sacerdotais, foi posto num esquife
que se encheu de cal viva, a fim de que a carne fosse consumida logo e
os ossos pudessem ser removidos na volta da nau Santa-Cruz.
Os portugueses tinham erigido uma cruz num prado, na base da colina
que domina o porto; foi ao pé daquela cruz que Jorge Alvares fez
depositar o esquife. Levantou-se um montículo de pedras ao lado da
cabeça e um outro aos pés, e isto foi tudo!...
Francisco Xavier tinha previsto esses tristes funerais... Para
ele, o sacrifício devia ir mesmo além da morte! Deus nada lhe
poupara! Mas bem depressa também nada poupará para manifestar a
glória do imortal apóstolo.
Dispondo-se Luís de Almeida a fazer-se à vela para as Índias,
depois dos grandes frios, suplicou-lhe Jorge Alvares que não
deixasse o corpo de Xavier em Sancião, assegurando-lhe que ele
podia encarregar-se de o conduzir, por isso que pelas precauções
tomadas só teriam de transportar os ossos já despojados da carne pela
cal.
O capitão enviou dois dos seus homens com ordem de abrir o esquife e
verificar o seu conteúdo. Esta abertura fez-se a 17 de Fevereiro
de 1553, dois meses e meio depois da morte de Francisco Xavier.
Encontrou-se o seu rosto fresco, corado, sereno... o Santo
parecia dormir. Os ornamentos não estavam alterados. Examinando o
corpo, ele parece cheio de vida. Um dos homens corta um fragmento de
carne, acima do joelho... o sangue salta! Correm ao navio, e
levam a preciosa relíquia ao capitão; ele quer julgar por si
próprio... cai de joelhos diante daquela grande maravilha,
correm-lhe as lágrimas, não pode crer no que vê!
Em alguns instantes toda a equipagem da Santa-Cruz havia corrido
para o prado e rendia homenagem ao corpo venerando do santo Padre.
Todos se aproximaram, beijaram-lhe os pés e as mãos, e
certificaram-se de que se exalava deste santo corpo um perfume que não
tinha nada com que se comparasse sobre a terra.
Deitou-se de novo no esquife a cal que se tinha retirado, levaram
religiosamente aqueles restos maravilhosos para bordo da Santa-Crus,
e pouco depois, fez-se à vela para Malaca, onde chegou a 22 de
Março, com a mais bonançosa viagem.
Estava sendo aquela cidade de novo infestada de todos os horrores da
fome e da peste, e os Padres da Companhia de Jesus não se achavam
ali para prodigalizarem às vítimas desses destruidores flagelos os
tesouros do seu santo ministério e da sua sublime dedicação. O
capitão da Santa-Cruz, tendo expedido a chalupa para anunciar à
cidade a chegada do santo corpo, a clerezia, a nobreza e o povo,
vieram de tochas na mão, recebê-lo ao porto, não obstante a
disposição de ódio do governador, e conduziram-no processionalmente
à igreja de Santa Maria do Monte, que pertencia. à Companhia de
Jesus.
Os pagãos e os maometanos incorporaram-se espontaneamente na
multidão para renderem homenagem àqueles restos venerandos; Diogo
Pereira parecia acompanhar os de seu pai; a sua dor era dilacerante!
- Qual é a causa deste lúgubre motim? perguntou D. Alvaro,
deixando uma mesa de logo e abrindo uma janela que deitava para a praça
do governo.
- É, provavelmente, respondeu-lhe um dos jogadores, o funeral do
Padre Xavier, pois que o seu corpo devia chegar hoje.
- Que fanáticos! Eles verão bem depressa as honras que eu reservo
ao seu santo Padre!
Depois das cerimônias religiosas, foi retirado o Santo do esquife
que o encerrava; levaram-no para o cemitério dos pobres,
lançaram-no numa cova muito pequena, forçando-o muito para ali
entrar, e calcaram aquela terra "com pesadas alavancas" - diz o
catequista do Santo, testemunha ocular-, e lhe abriram e achataram o
nariz no estado em que vós o vistes em Goa, e quebraram-lhe o
costado direito!... Eram aquelas, sem dúvida, as honras que o
sacrílego governador havia prometido prestar a Xavier [86].
Naquele mesmo dia, cessava a peste em toda a cidade, os doentes
viam-se milagrosamente curados, e embarcações carregadas de
víveres, ancoravam no porto e vinham pôr termo à fome. O grande
apóstolo recompensava assim as provas de veneração que os habitantes
de Malaca acabavam de lhe prestar, a despeito da culpável
governador, cuja malvadez tinha atraído sobre eles os castigos do
Céu.
O corpo de S. Francisco Xavier, retirado do seu esquife, ficou
assim indignamente enterrado na terra, na imundície!... E
desgraçado daquele que tivesse ousado subtrai-lo àquela
profanação...
Por aquele tempo o Padre João da Beira, voltando às Molucas,
por ordem de Xavier, com o Irmão Manuel de Távora, chegou a
Malaca no correr do mês de Agosto, e não pôde resolvei-se a
embarcar para o seu destino, sem ter visto o que restava do seu amado
superior. Por seu lado, Diogo Pereira desejava desde muito tempo
poder prestar ao seu Santo amigo as honras merecidas pela sua
incomparável vida; mas o terrível governador estava ali. O Padre
João da Beira insistia, contudo:
- Somente vê-lo! dizia ele a Diogo; em seguida o tornaremos a
enterrar e Deus saberá um dia mudar as circunstâncias de maneira que
nos dará a consolação de prestar ao seu santo apóstolo as honras que
merece.
- Pois bem! meu Padre, lá iremos pelo meio da noite, a fim de
não sermos surpreendidos, respondeu-lhe Diogo Pereira.
Na noite de 15 de Agosto de 1553, dirigiram-se eles para o
sítio em número de seis: o Padre Beira, o Irmão Manuel de
Távora, Diogo e Guilherme Pereira e dois outros portugueses.
Descobriram o precioso corpo e acharam-no tão fresco como se a vida,
o não tivesse deixado; o lenço branco que cobria o belo rosto de
Xavier estava molhado com o seu sangue!... Os amigos do nosso
Santo prostraram-se diante daquele prodígio, e derramaram lágrimas
de sentimento pela profanação de que eram testemunhas.
- "Levêmo-lo! levêmo-lo! disseram eles em voz baixa e todos ao
mesmo tempo: a Providência nos protegerá."
E tomando nos braços o querido e venerando corpo, removeram-no para
uma pequena ermida que Diogo Pereira possuía fora da cidade,
convencionando conservá-lo ali até que Deus lhes permitisse
fazê-lo transferir convenientemente para Goa. Diogo Pereira
fez-lhe construir uma de madeira preciosa e forrada de damasco;
colocou-se uma almofada de brocado por baixo da cabeça do Santo,
cobriu-se-lhe com um pano de tecido de oiro, e pôs-se uma tocha
acesa na câmara. Esta tocha devia ter uma duração de dezoito
horas; ardendo, porém, noite e dia durou dezoito dias!
Nessa ocasião estando um barco prestes a fazer-se à vela para as
Molucas, julgou o Padre Beira dever deixar o Irmão Távora junto
do corpo de que se via forçado a separar; encarregou-o da vigia e
guarda daquele querido depósito e de o acompanhar a Goa logo que se
oferecesse ocasião, e partiu ardendo mais que nunca em zelo pela
glória de Deus e pela salvação das almas. Dizia-se que parecia
que o espirito do grande Xavier passara para ele.
Logo depois da sua partida, o Padre Alcáçova, vindo do Japão,
desembarcava em Malaca, onde devia esperar que algum navio se fizesse
à vela para Goa; reuniu-se a Manuel de Távora para honrar a santa
relíquia do seu Padre tão amado, na morada solitária de Diogo
Pereira, pedindo todos os dias a Deus ocasião de a transportar com
segurança para a metrópole das Índias portuguesas, onde a
veneração pública o esperava impacientemente.
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