V. CRITÉRIO SINGULAR DE GOVERNO

Jerónimo Nadal, que deixámos em Paris, recusando ceder às instâncias de Inácio de Loiola, tinha-se retirado para a sua família, em Maiorca, e procurava conhecer a vontade de Deus a seu respeito, porque se sentia chamado ao apostolado, unas ignorava em que gênero de vida o devia exercer. Tinha, por momentos, desejos de se associar a alguns homens de virtude e de talento para trabalhar com eles na santificação das almas; depois rejeitava este projecto para voltar a alimentá-lo. Um dia deram-lhe a ler a cópia duma carta de Francisco Xavier dando conta à Companhia de Jesus do seu apostolado nas Índias. Jerónimo, maravilhado com os magníficos trabalhos do jovem professor que tanto admirara em Paris, exclamou: "Ah! é realmente uma grande obra!" Recorda-se de todos os esforços de Inácio para o determinara entrar na Sociedade, que ele formara então; recorda-se deque, parecendo-lhe muito perfeita essa vida, respondeu: "O Evangelho me basta", e que fugiu para se subtrair a novas instâncias daquele a quem acusava de o perseguir. Depois de alguns dias de viva agitação interior, Jerónimo, muito resolvido a não entrar na Companhia de Jesus, peio único motivo de que ela exigia dos seus membros uma grande perfeição, quis todavia consultar Inácio de Loiola e ouvir os seus conselhos espirituais. Partiu para Roma; o Padre Laynez acabava de chegar à Cidade Eterna, e Nadal encontrou também, no número dos Padres, um dos seus antigos amigos, Jerónimo Domenec. Ambos o convidaram a fazer com eles os Exercícios Espirituais. Nadal, furioso com a proposta, corre a queixar-se ao bom Padre Geral:

- Meu reverendo Padre, - lhe diz - Diogo Laynez. e Jerónimo Domenec querem armar-me laços para, contra minha vontade, me alistarem na Companhia de Jesus! Vossa Reverência sabe que não tenho talentos nem virtudes necessárias para isso.

- Não se inquiete, - respondeu-lhe Inácio - os Exercícios Espirituais não trazem nenhum compromisso e só lhe podem fazer bem à alma. Faça-os, sem se ocupar com o pensa mento de se juntar a nós. Este pensamento só deve vir de Deus, e se ele lho der, saberá bem em que deve empregá-lo para sua glória. Deixe Deus obrar. Nadal seguiu este conselho; fez o retiro dirigido pelo Padre Laynez, e não cessou de lutar consigo mesmo à medida que conhecia o chamamento de Deus. Enfim, chegado à meditação das Duas Bandeiras, confessou-se subjugado; está vencido, e contudo quer lutar ainda. Mas a sua agitação é muito violenta e não pode resistir mais; levanta-se no meio da noite e escreve estas linhas:

"Reconheço agora que as razões com que tanto combati contra mim mesmo e que me impediam de ligar-me ao serviço do Senhor, não merecem sequer que eu procure refutá-las. Ao contrário, tudo o que até aqui me afastava dele, atrai-me agora e consola-me, porque, depois de um rigoroso exame, compreendi que o amor de mim mesmo e a revolta da natureza foram os únicos agentes que me fizeram combater e duvidar. Vejo tanto mais a vontade de Deus na minha presente determinação, quanto é certo que aos sentidos, bem como ao mundo, repugna essa determinação: nenhum deles pode compreender ou gostar o espírito de Deus e o seu reino nas nossas almas. É por isso que nem as perturbações que tenho até hoje sentido, nem as mais rudes provas de que um homem possa ser cumulado, nem nenhum sofrimento inventado pelos próprios demônios poderão afastar-me da resolução, que tomei em nome da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, de praticar os conselhos evangélicos e de fazer os votos e tomar os compromissos da Companhia de Jesus. Estou pronto a fazer tudo o que de mim se exija, em conformidade com esses votos,. que eu pronuncio aqui com fervor e respeito, mas com uma. grande confiança na misericórdia de Deus, de quem tenho, recebido tantos benefícios. É de toda a minha alma, de toda a minha vontade que faço estes votos: para glória de Deus ! Assim seja. - Aos 23 de Novembro, décimo oitavo dos Exercícios".

Nadal, fiel às suas promessas, entrou no noviciado logo depois do retiro e foi um dos membros mais úteis e mais distintos da Companhia de Jesus.

Entretanto o santo fundador via desenvolver-se a sua. obra cada vez mais. Francisco Xavier fundara um colégio nas cidade de Goa, metrópole das colônias portuguesas nas. Índias; Simão Rodrigues estabeleceu em Portugal, por ordem. e a expensas do rei D. João III, que obteve que o colégio de Coimbra tivesse um noviciado da Companhia. Em Valência, Alcalá, Gandia e Barcelona pediam também colégios e noviciados. Da Alemanha, da Bélgica, de toda a parte, enfim, eram dirigidas as mesmas súplicas ao nosso Santo, cuja reputação, assim como a da Companhia, era universal. Os aspirantes afluíram a Roma de todas as partes da Europa; por isso, querendo conservar o espírito de união e de caridade entre homens de nações diversas e algumas vezes inimigas, Inácio obrigava-os a falar italiano e fazia-os estudar esta língua logo que entravam na casa. Queria que cada um deles, depois da sua profissão estudasse a língua do país para onde era enviado, de maneira que a pudesse falar sempre sem se preocupar com a sua língua nacional. O Jesuíta devia ser o apóstolo do mundo e não duma cidade ou dum país.

A obstinação nas idéias era um dos principais motivos de exclusão ou de expulsão para o santo fundador. Um espanhol de grande capacidade, duma ciência pouco comum e duma virtude reconhecida, entrou na Companhia e exercia o cargo de ministro [54] na casa professa de Roma. Desempenhava o cargo com habilidade; mas quando se lhe metia uma idéia na cabeça, não lhe saía mais. Inácio tirou-lhe o cargo, julgando inapto para mandar aquele que não sabia obedecer. Obrigou-o a fazer os Exercícios Espirituais, e Marino, assim se chamava esse Padre, prometeu emendar-se. Inácio restabeleceu-o então no cargo, mas daí a pouco o Padre Marino esforçava-se por lhe provar que ele entendia muito pouco das coisas temporais, o que fazia dizer ao Padre Nadal.

- Marino fará perder o bom nome aos Exercícios Espirituais! Acaba de os fazer e não é um homem novo.

Com efeito, Marino parecia tão aferrado à sua opinião como nunca. Uma noite, já tarde, Inácio soube que ele acabava de dar uma nova prova da sua teimosia; no mesmo instante envia-lhe ordem de abandonar a casa sem esperar para o dia seguinte.

- Será um exemplo para os outros; - acrescentou sabe-se porque o tenho dito muitas vezes, que não quero passar a noite sob o mesmo tecto com homens cujo espírito de obstinação é incorrigível.

Outro espanhol, também chamado Marino, doutor da Universidade de Paris, ensinava filosofia no colégio de Roma. Observava com algum desagrado algumas regras da Companhia, dizia-o abertamente e mostrava com toda a franqueza a sua opinião acerca das mudanças que deviam fazer-se. Inácio chamou-o em particular algumas vezes e esforçou-se por provar-lhe que Aristóteles não podia razoavelmente pretender -reformar o Evangelho; mas, não conseguindo convencer nem esclarecer o professor, despediu-o. Naquele momento o colégio de Roma tinha poucos professores e não era possível substituir Marino

- Ah! meu reverendo Padre, - disse Luís Gonçalves ao santo fundador - lamento, no interesse do colégio, que Vossa Reverência despedisse Marino; talvez ele se corrigisse!

- Pois bem; - respondeu-lhe Inácio sorrindo-se - vá o meu querido Luís procurar convertê-lo.

Um alemão teve a singular pretensão de possuir o espírito =de S. Paulo. Não tinha outro defeito; mas este era mais que suficiente. Inácio, vendo a impossibilidade de lho tirar, despediu o noviço.

Sordevila, Padre catalão, e excelente teólogo, tinha imaginado um método de oração, por meio do qual se obtinham à vontade, segundo ele dizia, êxtases, visões, arroubamentos sem igual. Procurava fazer adoptar o seu método aos noviços mais jovens, e tinha ganho alguns, cujo espírito perturbado chegava por vezes ao delírio. Inácio, advertido deste facto, censurou o Padre catalão em pleno refeitório e mandou-o provocar visões e arroubamentos a outra parte que não nos noviciados da Companhia.

Dois Padres espanhóis: Francisco Onéfrio e André de Oviedo, ardendo em desejos de viverem, na Companhia, uma vida puramente contemplativa, escreveram neste sentido ao Padre geral. Este respondeu-lhes que não era esse o fim da Companhia, e que, se preferiam a vida do deserto, deviam abandoná-la. Mas os dois Padres, primeiro que tudo obedientes, compreenderam por esta resposta que o seu desejo era uma tentação, e renunciaram logo a ele.

O nosso Santo, como já dissemos, era igualmente inflexível para as faltas que podiam perturbar a caridade entre os membros da sua numerosa família. Uma noite, pelas i z horas, vieram dizer-lhe:

- Meu reverendo Padre, Francisco Zapata viu pregar o Padre Nadal nas ruas e zombou dele publicamente, tratando de charlatanismo, o que todos nós fizemos, segundo o uso da Companhia em Itália. E não quis atender a razões a este respeito.

Inácio não respondeu, deixou afastar-se aquele que o veio advertir, orou bastante tempo, foi em seguida procurar Francisco Zapata, que dormia, acordou-o, fê-lo levantar, ordenou-lhe que abandonasse a casa antes de romper o dia e entrou depois no seu quarto.

De ordinário, Inácio não dava uma ordem de expulsão sem ter conferenciado com os seus conselheiros; nesta causa decidiu só e todos o souberam de manhã. Quando Inácio propunha uma expulsão, e os Padres defendiam o culpado o Santo dizia-lhes:

- Agora Vossas Reverências pedem por ele; mas se o tivessem conhecido melhor, tê-lo-iam admitido? Não, certamente. Pois bem, despeçamo-lo agora, porque a prova que se segue à admissão não tem outro fim senão assegurarmo-nos sobre se ele convém ou não à Companhia. Deixo a Vossas Reverências a admissão, deixem-me a expulsão.

Quando um estrangeiro vinha ver a casa, Inácio, despedindo-o, dizia-lhe:

- Viu a nossa prisão; esta dispensa-nos qualquer outra.

Compreende-se isto facilmente, porque ele não queria senão Santos, ou pelo menos aqueles que prometessem tornar-se tais. Um dia de Pentecostes despediu doze noviços ao mesmo tempo, e nunca o seu rosto apareceu mais tranqüilo, mais doce, mais sereno do que depois desta despedida. Inácio exigia dos superiores a mesma severidade não só para com os noviços, mas também para os que tinham já votos; porque julgava que a Companhia não podia ter força e duração senão pela virtude dos seus membros. Tendo sabido que não era rigorosamente observada a obediência numa casa de Portugal, escreveu imediatamente ao provincial censurando-o e mandando-lhe, em virtude da obediência que lhe prometera, que trabalhasse sem demora na repressão deste abuso, e que expulsasse da Companhia, fosse qual fosse a classe a que pertencessem, todos os que se mostrassem insubordinados.

O Padre Leonardo Clesélio, reitor do Colégio de Colônia, tinha apenas quinze súbditos; um dia despediu oito. Mas, depois da despedida, receou ter sido demasiado severo, e escreveu imediatamente ao Padre geral acusando-sedo que fizera, expondo-lhe as coisas como se tinham passado e pedindo-lhe que lhe infligisse a penitência que reconhecia merecer, qualquer que ela fosse, e à qual se submetia antecipadamente com toda a humildade; pedia ao mesmo tempo ao seu bom Pai que lhe perdoasse. Inácio apressou-se a responder-lhe que só lhe dava elogios e a sua bênção, com a ordem positiva de renovar, no caso de necessidade, o que acabava de fazei com tanta prudência.

Compreende-se a admiração que em toda a parte excitavam homens tão dignos, tão sábios, tão enérgicos, grande número dos quais pertenciam às mais opulentas e ilustres famílias, e que, tendo abandonado tudo para viverem de pobreza, humildade e obediência, conservavam no meio dos grandes trabalhos e dos triunfos do apostolado, uma submissão de crianças a todas as vontades dos seus superiores.

O Padre Araoz operava em Barcelona um bem prodigioso; toda a cidade caia a seus pés, todas as classes da sociedade o amavam e ele não podia ser indiferente por aqueles que tanto lhe queriam. Santo Inácio ordenou-lhe que abandonasse Barcelona e se dirigisse a outra província de Espanha. O Padre Antônio de Araoz respondeu-lhe logo com estas linhas tão comoventes pela sua simplicidade

"Quanto à ordem que Vossa Reverência me dá para me dirigir a outra parte, no princípio de Setembro, obedecer-lhe-ei, pela graça do nosso bom Mestre, com grande alegria de coração, ainda que aqui não agrade por causa do bem que se ia fazendo; estou convencido de que a voz de Vossa Reverência é para mim a de Jesus Cristo, voz que compreendem sempre aqueles que pertencem ao rebanho. É certo que tenho tanto em que ocupar-me aqui, que, querendo atender a tudo, não me sobra tempo para me ocupar de mim, e sou obrigado a trabalhar pela noite dentro, por não ter liberdade alguma durante o dia. Ouvir confissões, a maior parte das quais gerais, dar os Exercícios Espirituais, trabalhar em reconciliações importantes entre certos nobres, tudo isto me ocupa de tal modo, que muitas vezes (e digo-o para que Vossa Reverência tenha compaixão da minha pobre alma) não me sobra tempo para celebrar a santa missa".

Tal é o espírito de obediência e de humildade que sempre se tem conservado na santa Companhia de Jesus.

Era bem o espirito divino que inspirava Santo Inácio no governo da Companhia, porque vemos S. Francisco Xavier empregar, ao mesmo tempo, os mesmos meios nas Índias, e governar do mesmo modo. Xavier é tão difícil como Inácio na escolha e na admissão dos súbditos; tão firme, tão rigoroso nas virtudes que deles exige; tão pronto e tão inflexível nas expulsões que julga necessárias. S. Francisco Xavier não conhecia, quando partiu de Roma para Portugal e para as Índias, das Constituições da Companhia senão o plano apresentado ao Papa; não cessava de pedir a Santo Inácio, em todas as suas cartas, que o ajudasse com os seus conselhos, a fim de que as casas que ele fundasse no Oriente não diferissem em nada das da Europa. E, contudo, Xavier segue o mesmo caminho que o santo fundador, dá o mesmo espírito, imprime a mesma direção aos diversos colégios, às diversas missões e residências, que criou numa extensão de três mil léguas, antes de ter recebido os conselhos e a direção que pediu ao seu Padre Geral. Santo Inácio admira nisto a obra de Deus, e no fundo do seu coração promete chamar um dia a Roma aquele a quem o Espírito Santo tão maravilhosamente esclarece para bem da sua querida Companhia e abandonar-lhe as rédeas do governo.

Enquanto formava numerosos operários apostólicos, Francisco Xavier pedia-os à Europa. Suplicava a Santo Inácio, ao rei de Portugal e a Simão Rodrigues, provincial em Portugal, que lhe enviasse o maior número possível. E quando estes Padres chegavam às residências da Índia, julgavam estar nas da Europa, quanto ao interior e ao seu espírito; por que a organização, a administração temporal ou espiritual tudo era igual; nada tinham a mudar senão relativamente aos usos e às exigências do país, que deviam evangelizar.