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Inácio de Loiola começava a falar bem o francês, que ignorava
ao chegar a Paris, e sentia alegria por isso, porque lhe
facilitava os seus trabalhos apostólicos, limitados até então
só aos espanhóis e portugueses. É verdade que eles eram
numerosos nas escolas da Universidade; mas não bastavam ao
ardor do seu zelo. Prometera não aconselhar ninguém a fazer
os Exercícios Espirituais antes de terminar os estudos;
todavia aproveitava as férias para procurar a Deus esta
glória e trabalhar mais ativamente na conversão dos
pecadores.
Um dia levou-o um negócio a casa dum sábio doutor, dignitário
eclesiástico, mais ocupado dos interesses do tempo que dos da
eternidade, e encontrou-o absorvido numa partida de bilhar.
Esperou que ele acabasse. Ao dar a última carambola, o doutor
apresenta um taco ao nosso Santo e propõe-lhe uma partida
- Ignoro as regras do jogo, -lhe respondeu Inácio V. Ex.a
ganhará com certeza.
- Não importa! - acrescentou o doutor. Dou-lhe uma lição e
poderei dizer a todo o tempo que o vi jogar o bilhar.
Um raio de luz esclareceu de repente o espírito do apóstolo;
aproveita a brincadeira do doutor e diz-lhe:
- Pois bem, estou pronto; mas jogando, quero ganhar. Sou
muito pobre para jogar com o único fim de me divertir, e como
só possuo a minha pessoa, é a ela que eu jogo. Se perder,
pôr-me-ei às ordens de V. Ex.a e obedecer-lhe-ei humildemente
em tudo o que lhe aprouver ordenar-me, durante um mês, com a
condição de não ofender a Deus. Se ganhar, V. Ex.a fará uma
coisa que eu lhe pedir e que lhe será com toda a certeza
vantajosa.
Deus permitiu que esta proposta divertisse o doutor, o qual a
aceitou com entusiasmo. Começa a partida, ou antes, o nosso
herói começa a jogar, e as suas tacadas são tão firmes, o seu
olhar tão seguro que acaba a partida dum jacto, sem perder
uma tacada.
O doutor ficou pensativo; não era natural que, não tendo
nunca jogado, Inácio fosse um jogador de primeira força. O
dedo de Deus estava ali, e servia-se daquela circunstância
para o levar a reformar a sua vida assaz mundana e assaz
agitada...
O doutor tinha razão. Tendo o santo apóstolo ganhado o jogo,
reclamou o preço: o doutor submeteu-se e perguntou-lhe o que
devia fazer. Inácio impôs-lhe os Exercícios Espirituais
durante um mês. Obedeceu, saiu deste retiro completamente
mudado e tornou-se modelo de todas as virtudes sacerdotais.
Um amigo do nosso Santo tinha-se deixado arrastar a uma
ligação condenável: todas as instâncias de amizade de Inácio,
todas as suas exortações não conseguiram obter dele a ruptura
daquelas relações pecaminosas. Inácio orou ainda mais
ardentemente pela conversão deste pecador; às mortificações
acrescentou as austeridades. Deus parecia surdo às suas
orações, invencível à sua dor. Todas as noites o culpado sai
da cidade e vai a Gentilly, onde tomou o funesto hábito de se
dirigir regularmente. Inácio de Loiola não tinha esgotado
ainda todos os recursos do seu zelo e da sua caridade. Segue
a distância aquele que já não quer chamar-lhe amigo a fim de
ofender a Deus mais livremente, e, sabendo o caminho que ele
segue todos os dias, vê o que lhe resta fazer para triunfar
da obstinação do culpado.
Era no inverno; o frio tinha gelado alguns regatos, e, entre
outros, a Bièvre, que o amigo do nosso Santo atravessava
sobre uma pequena ponte para se dirigir ao seu destino. Uma
noite, Inácio, cuja palavra havia sido infrutífera, foi
lançar-se seminu na Bièvre, perto da ponte sobre a qual o seu
amigo devia passar. Mete-se por entre o gelo que cobre a
superfície do rio, e ali permanece, mergulhado até aos
ombros,. pedindo, lacrimoso, a Deus que aceite este
sofrimento para salvação dum pecador a quem tanto ama. A hora
costumada o amigo chega; vai a entrar na ponte... Pára!
Inácio lá está! ouve a sua voz e o remorso faz-se sentir:
- Caminha ! - exclamou o heróico apóstolo - caminha,, com
perigo da tua alma, aonde o inferno te conduz ! Eu, teu
amigo, aqui fico para expiar pelo sofrimento o condenável
prazer que não receias ir gozar comprometendo a tua alma!
Vai; esperarei que voltes; aqui me encontrarás; e
encontrar-me-ás também amanhã e todos os dias até que apraza
a Deus restituir-te a vida à alma ou dar a morte ao meu
corpo.
- Não, - disse o infeliz pecador banhado em lágrimas não, meu
amigo ! Não irei mais longe e não voltarei mais aqui. Tudo
está terminado!
E assim foi, realmente. Converteu-se sinceramente,, seguiu a
direção do Santo e viveu como perfeito cristão.
Tinham falado a Inácio dos escândalos dados por um sacerdote,
que lhe indicaram. Inácio orou muito tempo por aquele pecador
sem ser ouvido, e, não vendo pretexto algum para ir ao seu
encontro e mostrar-lhe o mau caminho que seguia, consultou
Deus e pediu-lhe que o inspirasse. Um domingo de manhã, foi
pedir a este Padre que o ouvisse de confissão e narrou-lhe
todos os pecados da sua vida, vertendo amaríssimas lágrimas,
porque o nosso herói não cessava de prantear os seus pecados
passados. Deus, que lhe sugeriu este pensamento, serviu-se
disto para tocar o coração do sacerdote, ralado pelo remorso
à medida que o penitente se acusava. Apenas a confissão
acabou; os papéis trocaram-se; o Padre abre a sua alma ao
Santo e pede-lhe que o ajude no caminho de que nunca se
devera ter afastado. Inácio lembra-lhe que faça os Exercícios
Espirituais. O conselho é seguido, o fruto maravilhoso; e o
Padre repara, por uma dia de penitência exemplar, os
escândalos que antes dera.
Um dos estudantes, que o santo apóstolo chamara para Deus,
tinha recaído nos seus hábitos de pecado. Depois de ter
esgotado em vão a linguagem da fé e da amizade para lhe fazer
tomar de novo o caminho da virtude; depois de ter inutilmente
orado por ele durante alguns meses, Inácio quis fazer ao céu
uma santa violência, e, havendo-se imposto um jejum de três
dias, passou-os todos junto do altar, sem comer e sem dormir,
não cessando de pedir a Deus a alma, que o inferno lhe
roubara. E Deus, amerceando-se de tantas lágrimas e orações,
de tantas privações e sofrimentos, restituiu esta conquista à
sua ardente caridade. Desta vez foi para sempre: o discípulo
do nosso Santo não mais se desviou do caminho que lhe traçou
o seu mestre e deu até ao fim o exemplo de todas as virtudes.
Inácio exercia também as obras de misericórdia nos hospitais.
Cuidava dos doentes, convertia os pecadores, amortalhava os
mortos e trabalhava heròicamente para extinguir tudo o que
nele ainda havia de inclinações naturais.
Ínigo de Loiola devia morrer inteiramente. A sua delicada
natureza já não se revoltava com os serviços humilhantes que
prestava aos doentes dos hospitais; mas tinha uma repulsão
instintiva por certas doenças e queria triunfar, custasse o
que custasse, com o auxílio do céu, dessa repulsão.
Soube um dia que tinha dado entrada no hospital dos
Espanhóis, o de Saint-Jacques, um pobre mendigo com uma
doença contagiosa; vai vê-lo e prodigalizar-lhe os seus
cuidados. O doente diz-lhe que está sendo devorado por uma
úlcera. O nosso Santo limpa e cura esta chaga, procurando
consolar e fortificar o doente... De repente apresenta-se um
pensamento ao seu espírito, e o herói de Pamplona sente um
arrepio de medo percorrer-lhe todo o corpo! "Se a doença se
me comunicasse"! disse ele. Mas reconheceu logo a tentação: o
brilhante fidalgo da corte queria afastar-se desse pobre
doente, e assim de Jesus Cristo presente naquele de seus
membros que estava diante dos seus olhos. Mas não será assim:
o Santo vencerá o fidalgo. Ao mesmo tempo, Inácio inclina-se
para o doente, abraça-o e levanta-se vencedor!
O inimigo, porém, não se atemorizou, e o nosso herói quer que
ele seja esmagado, pulverizado. Todos os dias volta ao
hospital, procura os doentes que sofrem moléstias
contagiosas, trata deles com preferência e chega a triunfar
completamente dos seus receios e repulsões.
Entretanto o estudo, o apostolado, o serviço dos hospitais,
as austeridades, as longas orações não lhe bastam: o seu
ardor não está satisfeito; tem necessidade de mais do que
isso. Deus fez-lhe conhecer a sua vontade; sabe que chega o
momento de recrutar os primeiros soldados do grande exército
de que Jesus Cristo deve ser chefe. Este exército está
destinado a fazer prodígios de valor no campo de batalha da
Santa Igreja; Inácio sabe-o e suspira pelo momento em que lhe
seja dado formar-lhe o núcleo e vê-lo em seguida aumentar e
desenvolver jura maior glória de Deus.
Até esse dia Inácio não terá descanso.
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