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Sempre em guerras e batalhas, entre os soldados de nome e de valor se acha mais
assinalado e de conhecida vantagem, que mostra seu ânimo em algum feito de armas
dificultoso, e alcança a vitória não esperada.
Tal foi um índio cristão em todas estas guerras, contra franceses e tamoios, de cujo
esforço confessaram os capitães portugueses ser tão levantado, que sem ele nunca se tomara o
Rio de Janeiro, de modo que se pode chamar honra dos índios cristãos do Brasil. Chamava-se
pelo nome português Martim Afonso de Sousa, e pelo da terra Ararigbóia.
O primeiro feito por onde começou a ter nome foi este. Achou-se em um navio de um
português em um porto de gentios, os quais se levantaram para o matar, e roubar o navio.
Mas no tempo da briga todos se meteram debaixo da coberta; só Martinho ficou no convés,
pelejando com seu arco e flecha, com que fez afastar os inimigos e salvou o navio.
Foi-se à Capitania de São Vicente aonde os nossos estavam em aperto, pela guerra do
gentio vizinho e aqui se fez grande soldado. Depois vindo à Capitania do Espírito Santo, foi
principal de uma aldeia, e ajudou a defender a vila contra uns franceses que procuravam de a
entrar.
E quando o Governador Geral Mem de Sá foi à conquista do Rio de Janeiro, dali o
levou com gente de peleja, pela fama que tinha de seu valor. Por todo o tempo da guerra que
durou muitos anos, se houve este índio tão esforçadamente, que foi havido por um valoroso
capitão, no conselho prudente e acertado, na confiança em Deus, como qualquer bom cristão
pelejando por sua honra, no ânimo fiel aos portugueses, e no arco ninguém melhor, como se
verá no sucesso seguinte.
Sendo governador do Rio de Janeiro Salvador Correia de Sá, como está dito, morava
este índio uma légua além da nova cidade, mais dentro da enseada, junto da praia; e os
franceses continuavam seu trato do pau-brasil com os tamoios, no Cabo Frio, dezoito léguas
do rio para o Norte.
Aconteceu que estando ali umas quatro naus, os tamoios, magoados de Martim Afonso,
rogaram aos franceses que antes de se partirem, os ajudassem a ir tomar aquele comum
inimigo. Vieram nisso os franceses, deram a vela com as quatro naus e oito lanchas carregadas
de gente de guerra dos tamoios, além das canoas sem conta, para lançarem gente em terra.
Ao passar por defronte da cidade, não houve resistência, porque ainda não havia
fortaleza na barra nem ao longo da praia. Perguntaram os nossos, para onde era a ida;
responderam das naus, que iam tomar a Martinho e entregá-lo aos tamoios. Os nossos
acudiram que não só com Martinho o haviam de haver, mas também com eles.
O governador fortificou a cidade, recolhendo a gente que havia, para qualquer coisa
que o inimigo intentasse, e logo mandou à Capitania de São Vicente pedir socorro de gente,
canoas e armas, e o índio também fez o mesmo em sua aldeia, entrincheirando-a toda em roda
de pau-a-pique, não tendo dentro mais que sua gente e os padres da Companhia para os
esforçarem na peleja; desembarcaram os inimigos, assim franceses mui bem armados, como
gentios tamoios que cobriram a praia e campo.
Nesta conjugação acodem alguns moradores à aldeia, dos quais foi um Duarte Martins
Mourão, e levando de noite um falcão pedreiro em uma canoa grande, o meteram na aldeia
sem serem sentidos do inimigo.
Vendo Martim Afonso este socorro se alegrou grandemente, e com os olhos cheios de
lágrimas de contentamento, disse: “isto estava eu esperando de tão bons amigos”. E chamado
pelos seus lhes falou desta maneira: “Filhos, arrancai-me essas tranqueiras, que já não temos
necessidade delas; saiamos, demos nesses inimigos em nome de Jesus, e do bem-aventurado
São Sebastião.”
Saltam logo na trincheira, abrem toda a aldeia, armados de confiança em Deus, e
esforçados com o exemplo dos portugueses, dão nos inimigos. Entretanto o tiro começa a
fazer seu ofício nas naus que ficaram em seco na baixa-mar, matando a muitos dentro nelas e
pela praia, e posto que os inimigos fizeram muita resistência, finalmente puseram em fuga aos
contrários, e seguindo o alcance fizeram mui grande estrago, com pouca perda dos nossos.
As naus vindo a maré se foram ao alto e se consertaram e tornaram na volta do Cabo
Frio, bem destroçadas e faltas de gente, com que a terra ficou desassombrada, e os contrários
abatidos, com as forças e ânimos quebrados.
Foi informado El-Rei Dom Sebastião deste bom sucesso, e da valentia de Martim
Afonso, e das façanhas que tinha feito e fazia em seu serviço, pelo que lhe mandou o hábito
de Cristo, com doze mil réis de tença, e pelo tempo em diante lhe mandou algumas peças de
estima, até lhe mandar uma vez um vestido de seu corpo, inteiro e acabado.
O governador da cidade, Salvador Correia de Sá, ajudando a Martim Afonso com os
soldados que pode, guardou a cidade de maneira que os inimigos não ousaram acometer. Daí
a alguns dias chegou socorro de São Vicente, e o governador mandou ao assalto ao Cabo Frio
a tomar língua e saber o que passava, e achou serem já as quatro naus idas sua viagem, para a
França e ser chegada outra de novo com muita mercadoria; tratou então com os soldados e
índios principais o que fariam, e vendo que todos estavam desejosos de pelejar, os seus
alentados com a vitória passada, e os de São Vicente por não voltar as suas casas sem fazerem
nada, determinou a ir em pessoa com a gente de guerra a acometer a nau com canoas.
Partiram do Rio, e tanto que chegaram a certa paragem, donde as espias dos tamoios os
viram, avisaram aos franceses, que zombaram bem de poder ser tomada sua nau, que era de
duzentas toneladas, com corchos do rio de Janeiro, que assim chamaram as canoas de guerra.
Contudo consertaram a nau com sua xareta e artilharia e eles armaram-se para a defender.
Nisto chegaram as canoas na madrugada, e cercam a nau pondo-se ao socairo dela, de
modo que os tiros não pudessem fazer dano, donde defendem que nenhum francês apareça a
bordo sob pena da flecha.
Acometeram os nossos a subida, mas foram rebatidos com piques e outras armas, e
principalmente com alcanzias de fogo. E entre outros o mesmo governador foi três vezes ao
mar, armado e sem saber nadar, mas em caindo logo os soldados e índios o tiravam e punham
em salvo.
Foi a briga mui travada de parte a parte, enquanto o capitão francês andou em pé
pelejando mui esforçadamente com duas espadas, e como estava todo armado, o não podiam
as flechas ferir, ainda que lhe davam muitas; espantado disto, um índio da terra perguntou se
tinham aquelas armas algum lugar por onde lhe pudesse meter alguma flecha, e dizendo-lhe
que só pela viseira, lhe apontou uma tão certa, que o derrubou e matou com ela.
Vendo os mais o seu capitão morto, e a muitos dos seus mal feridos, se recolheram
abaixo, aonde não escaparam, porque o governador com os seus os entraram e renderam. Os
tamoios que estavam escaldados de fresco, viram a briga de terra, mas nenhum se atreveu
ajudar a seus amigos.
Trouxeram a nau com muita festa para o Rio de Janeiro; vestiu o governador a todos os
índios de bons panos que acharam, e o mais repartiu com os soldados; a artilharia ficou na
cidade, e a nau mandou à Bahia, ao Governador Geral seu tio; e ele ficou sem nada, ou para
melhor dizer com tudo o que mais estimava, que era a honra e a benevolência dos soldados,
que sempre pelejaram com muito esforço e bons sucessos, à sombra de tão valoroso capitão.
Posto que os tamoios foram deitados da Capitania do Rio de Janeiro, não se acabou
contudo sua contumácia; antes recolhendo-se ao cabo Frio, onde tinham sua força, dali
salteavam por mar, em suas canoas as Capitanias vizinhas do Rio e do Espírito Santo.
Até que no ano de mil e quinhentos e setenta e cinco, governando a Capitania do Rio o
Doutor Antonio Salema, foi com grosso exército a fazer-lhes guerra em suas próprias terras,
onde matando e cativando a muitos mil deles, destruiu de todo aquele soberbo gentio. Dando
somente vida e liberdade a alguns que hoje estão nas aldeias de São Lourenço e São Barnabé,
do Rio de Janeiro, de que os padres da Companhia têm cuidado.
E com isto damos fim às coisas do Rio de Janeiro, e sua conquista, e já o tempo pede
que tornemos a continuar com as que são mais próprias do Padre José, posto que assim ele
como o Padre Manuel da Nóbrega e outros padres não tiveram pequena parte nos trabalhos e
conquista do Rio de Janeiro.
MORTE DO ÍNDIO MARTIM AFONSO. TESTAMENTO DE MARTIM AFONSO
Concluirei este capítulo com a morte do índio Martim Afonso, de quem no princípio
falei. Foi ele mui devoto, em sua vida, do mártir São Sebastião, e contava que nos tempos dos
combates contra os tamoios e hereges, vira ao glorioso santo ir discorrendo pelas canoas,
amparando os nossos, e fazendo nos inimigos grande estrago
E assim na hora da morte com muita fé e devoção, falando a seu modo com o santo,
lhe dizia: “Irmão capitão, assim como na vida sempre me ajudastes a vencer os inimigos
visíveis, assim agora na morte, que tenho maior necessidade e estou em maior perigo, ajudai-
me a vencer os invisíveis”.
E depois de receber os Sacramentos e o da Santo Unção, chamando a seus parentes, fez
seu testamento, e repartiu com eles uma grande herança, não de coisas temporais, que ele não
tinha, nem os índios estimam, mas de maravilhosos conselhos, quais um virtuoso pai e muito
temente a Deus, pudera dar a seus filhos naquela hora, para se conservarem em virtude,
diante de Deus e dos homens, e quais de um bárbaro brasil se não podiam esperar. Porém a
graça divina não enjeita boas vontades.
Dizia-lhes naquele passo: “Irmãos e filhos meus, a herança que vos deixo é que sejais
muito amigos da Igreja, fiéis aos capitães, caritativos com os brancos (que assim chamam os
portugueses) e obedientes aos padres que de nós têm cuidado, porque por estas boas obras
vos fará Deus muitos bens como a mim sempre me fez.
A minha casa foi sempre estalagem de brancos, nunca vi a nenhum deles nu que não
despisse a minha roupa para o cobrir, nunca o vi na guerra flechado que não o tomasse às
minhas costas, e o pusesse em salvo, nunca vi branco na batalha em perigo que não pusesse
meus peitos diante dele por rodela, antes para Deus me livrar de perigo, achava por remédio
acudir aos que via em maior aperto, e desta maneira me fez Deus muitas mercês em vida,
livrando-me de evidentes perigos na guerra, e me fez outros favores que todos sabeis, e
finalmente no cabo de tantos anos me dá agora uma morte sem dores e tão quieta como
vedes”.
E desta maneira deu sua alma a Deus, com muita consolação sua edificação dos
presentes.
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