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A quem por tão diversas maneiras, tantos e tão grandes testemunhos
teve na terra, em confirmação de sua virtude e santidade, parece que já não faltava
mais que ter algum do céu, e dos celestiais moradores. E até com este regalo
divino, a bondade infinita favoreceu ao santo Padre José, que na vida mortal e
carne fraca, fez uma vida angélica em seu espírito, e na conversação exterior muito
exemplar e digníssima de ser imitada.
Estando por vezes em oração no seu cubículo, entrava o porteiro com
algum recado; e era tão grande a claridade que dentro via, que ficava espantado.
Um dia, como outros muitos costumava fazer, veio o Padre José, com o
Padre Manuel Viegas, da casa de São Vicente à fortaleza da Bertioga, situada em
uma das barras da Ilha de São Vicente, com ocasião de se ver com o gentio
maromomi, cuja língua, diferente da geral de toda a costa, começa de aprender e a
queria meter em regras e arte, para por si e por outrem, ajudar a conversão destes
pobres, em tudo desamparados.
E de fato, alcançou o que pretendia com a graça divina, que era fazer
um modo de arte, catecismo e doutrina naquela língua. E muito mais alcançou Deus
o que pretendia, que era recolher alguns deles no céu, e deixar o caminho feito
para os que haviam de entrar, e facilitar esta empresa, aos que a houvessem de
seguir.
Mandou o Padre José, ao Padre Manuel Veigas fosse buscar algum
daqueles gentios, para continuar com sua doutrina; e andou lá dois dias. Entretanto
pediu o padre ao hóspede, o deixasse ir dormir a uma ermida de Nossa Senhora,
que estava mui perto da fortaleza, obra de trinta passos de distância. Foram com o
padre para o agasalharem, na ermida o hóspede e um genro seu, de nome Afonso
Gonçalves, com candeia. E tornando a trazer consigo a candeia, o deixaram só às
escuras, e se recolheram na torre, onde viviam com as suas famílias.
Sendo já alta noite, e estando todos dormindo, só a mulher de Afonso
Gonçalves estava esperta, a qual o acordou dizendo: “senhor, acordai e ouvireis
uma coisa maravilhosa”. Acordou, levantou-se, abriu uma janela da fortaleza e
viram ambos com os seus olhos a ermida, por entre as telhas e porta, e por cima
dos flechais, toda com seu alpendre alumiada, com grande resplendor, que os pôs
em admiração.
Juntamente ouviram uma música tão suave, que o enlevou a ele e tirou
de seu sentido, como em seu testemunho jura. E querendo descer abaixo, para ver
onde a música se dava, por lhe parecer que a ouvia de longe, imaginando que seria
algum navio que viesse entrando pela barra, àquelas horas da noite, querendo
descer como digo, se lhe arrepiaram os cabelos com temor, e lhe pareciam que
pegavam e tinham mão dele; e assim não se atreveu a ir ver o que era.
Durou a claridade e música por bom espaço de tempo, de que ambos
ficaram por extremo consolados. Vinda a manhã fizeram diligência pelos moradores
da fortaleza, e por sua gente de serviço, se levara alguém lume à igreja; e acharam
que não. Falaram então ao mesmo Padre José, e tratando do resplendor e da
música que ambos viram e ouviram, a resposta do padre foi obrigá-los, como filhos
seus espirituais que eram, não descobrissem a ninguém, o que viram e ouviram
daquela claridade e música enquanto vivessem.
O que eles pelo amor e respeito que tinham ao padre, guardaram
inteiramente, sem o descobrirem a pessoa viva, até aquele dia que era três de
outubro de seiscentos e dois anos, em o qual dia, sendo então morador da cidade
de São Sebastião do Rio de Janeiro, perguntado juridicamente, pelo Reverendo
Padre Martim Fernandes, vigário geral da mesma cidade, se sabia coisa da vida do
Padre José de Anchieta, jurou tudo o acima dito.
E acrescentou o dito Afonso Gonçalves que lhe parecera aquela música
e resplendor coisa do céu, assim pelo grande temor que em si sentira, e juntamente
muita consolação, como por se ver atalhado sem poder ir ver o que era; e também
como o mesmo padre querendo primeiro encobrir esta maravilha, e vendo que não
podia, lhes mandou o tivessem em segredo.
Bendito seja Deus em seus Santos, e permita que este bem-aventurado
seja com brevidade ilustrado, com a beatificação e canonização da Igreja
Santíssima Romana, para glória do mesmo Senhor, e proveito dos cristãos, em
especial de seus devotos, como merecem tão heróicas virtudes e milagres.
LAUS DEO, ET BENEDICTAE VIRGINI CONCEPTAE SINE PECCATO ORIGINALI.
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