III. EM TERRAS DO JAPÃO

S. FRANCISCO XAVIER AOS PADRES DA COMPANHIA DE JESUS RESIDENTES EM GOA

Cangoxima [67], 3 de Novembro de 1549.

A graça e o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam sempre convosco! Amém.

De Malaca vos dei minuciosas notícias da nossa viagem e do ocorrido durante o tempo que permanecemos naquela cidade. Venho agora prosseguir na minha narração.

Fizemo-nos à vela de Malaca no dia de S. João Batista, pela tarde, e aportámos ao Japão, por graça de Deus, a 15 de Agosto seguinte. Deus nos deu sempre vento à popa, mas como os bárbaros são mais pérfidos do que os ventos, o nosso patrão, mudando de intenção, quis mudar de derrota, e loucamente fazia escala em todas as ilhas que encontrava, perdendo assim muito tempo.

Duas coisas nos afligiam vivamente: a primeira era que não aproveitávamos do bom vento que Deis nos dava, e que se viesse a faltar-nos, ver-nos-íamos forçados a ancorar em algum porto das costas da China e aí invernar, perdendo a possibilidade de chegai ao Japão neste ano: a segunda causa da nossa aflição, era que o patrão e a sua tripulação não cessavam de fazer execráveis sacrifícios a um ídolo que arrastavam para a popa do navio, não obstante os nossos rogos e as nossas instâncias para os dissuadir.

Deitavam sortes para perguntar-lhe se sena prudente aportarmos ao Japão e se teríamos uma feliz viagem; as suas respostas eram umas vezes boas outras más, diziam eles. A meio do nosso caminho, fundeámos numa ilha para aí fazer o fornecimento de lenha e deitar lastro, a fim de nos prevenir contra as tormentas que tornam os mares da China tão perigosos. Ali, a gente da equipagem renovou os seus ímpios sacrifícios para saber se devíamos aproveitar-nos do bom vento; o ídolo prometeu uma feliz travessia, mas que não devíamos perder tempo.

Então levantámos ferro imediatamente, - com grande satisfação nossa. Estávamos todos satisfeitos; os pagãos descansavam. com confiança na fé do seu ídolo, colocado à popa do navio entre tochas, e perfumado com madeira de calambá [68], que queimavam em sua honra, enquanto nós depositávamos toda a nossa confiança em Deus e nos merecimentos de Jesus Cristo seu Filho, cujo nome desconhecido íamos levar às nações pagãs.

Enquanto, pois, assim navegávamos,. à medida dos nossos desejos, tiveram os pagãos ainda a fantasia de consultar o seu ídolo para saber se, chegados ao Japão, poderiam voltar sãos e salvos a Malaca. O ídolo respondeu que chegariam ao Japão, mas que não voltariam a Malaca. Ei-los portanto, consternados e indecisos sobre o que deviam fazer; depois de muito reflectirem, tomaram a resolução de ir invernar à China, para não ir ao Japão senão no ano imediato!

Podeis julgar qual seria o nosso desespero, vendo-nos assim à mercê do demônio transformado em nosso piloto!

Nós íamos fazer aguada a um porto da Conchinchina, e dois contratempos nos vieram no mesmo dia, que era o da festa de Santa Madalena.

Pela tarde, achando-se o mar muito agitado e encapeladas as vagas, começou o nosso navio a baloiçar com violência, conquanto ancorado.

Manuel Sira, cristão chinês, um dos nossos companheiros, não podendo resistir aos balanços, caiu de cabeça sobre a sentina, infelizmente aberta e profunda, e cheia de água. Julgámo-lo perdido, mas Deus salvou-o. Ficou por algum tempo na água até à cintura, e tivemos muito trabalho para o tirar dali. Estava ferido na cabeça e sem sentidos. Enquanto nos ocupávamos em aplicar-lhe os primeiros remédios, eis que um novo balanço lança ao mar a filha do arrais; mas esta não se pôde salvar: o mar estava tão agitado, que todos os nossos socorros foram inúteis, e tivemos, como seu pai, a dor de a ver morrer à nossa vista. Esta desgraça levou Neceda ao desespero.

Era um espetáculo dilacerante o daquele infeliz pai, fazendo ouvir em todo o navio os seus gritos e soluços! A tripulação estava desanimada em vista do perigo iminente que nos ameaçava a todos.

Não sabendo onde tinham já a cabeça, vão lançar-se aos pés dos seus ídolos, passam o resto do dia e toda a noite a fazer-lhes sacrifícios de aves e de toda a sorte de rezes, supondo aplacar assim a ira das suas divindades. Em um daqueles momentos de delírio, Neceda quis saber, pela voz dos feiticeiros, se sua filha teria também morrido na ocasião em que Manuel estivera para morrer, e a resposta foi afirmativa.

Podeis fazer idéia do perigo que nós corríamos, entregues assim à mercê do demônio e dos seus cegos adoradores, e qual seria o resultado desta viagem se Deus nos houvesse abandonado ao seu furor.

Apurada a minha paciência, à vista dos ultrajes feitos a Nosso Senhor Jesus Cristo por aqueles abomináveis sacrifícios, pedi a Deus que nos não submergisse antes de ter arrancado das trevas aqueles desgraçados, criados à sua imagem, e remidos a preço do seu sangue; ou, se a sua vontade era permitir que eles se conservassem aí enterrados, agravar ao menos os suplícios do nosso inimigo comum, do autor de todas aquelas superstições...

Não estavam ainda enxutas as nossas lágrimas, quando 0 mar acalmou; levantámos ferro e prosseguimos a nossa derrota. Em poucos dias, avistámos Cantão, porto da China, onde o patrão do barco queria passar o inverno.

Era necessário empregar todos os meios para o forçar a continuar a viagem para o Japão; vendo que os nossos rogos eram de nenhum efeito, ameaçámo-lo com a cólera do governador de Malaca e de todos os portugueses. Deus permitiu, enfim, que ele se rendesse e prosseguimos na viagem.

Daí a pouco descobrimos Ting-Tcheou [69], outro porto da China e já o nosso navio se dispunha a entrar nele para esperai a volta da monção, e depois seguir para o Japão, quando vimos sair do porto uma barca dirigindo-se para nós à força de remos; vinha prevenir-nos que o porto estava ocupado por um tal número de piratas, que ficaríamos perdidos se avançássemos.

Efetivamente do cesto da gávea descobriam-se, a uma légua de distância, as lanchas daqueles corsários.

O nosso patrão não hesitou um momento e pôs-se ao largo; mas o vento repelia-nos de Cantão com tanta força que nos foi necessário avançar para o Japão, contra os desejos de Neceda, da tripulação e do inferno!...

Finalmente no próprio dia da Assunção da Santíssima Virgem, a 15 de Agosto de 1549, tocámos aquela terra, pela qual tanto suspirávamos!

Por não termos podido ancorar noutro porto, desembarcámos em Cangoxima, que é verdadeiramente a pátria de Paulo de Santa-Fé. Fomos aí amavelmente acolhidos pelos seus parentes, seus amigos e seus concidadãos.

De todos os povos bárbaros que tenho visto nenhum pode ser comparado a este pela sua boa natureza. É de uma perfeita probidade, franco, leal, engenhoso, ávido de honras e de dignidades. A honra é para ele o primeiro de todos os bens. É pobre, mas entre eles a pobreza não é desprezada. A nobreza pobre não é menos considerada do que a rica, e jamais a indigência determinaria um gentil-homem a casar-se para elevar o seu nome pelo auxílio de uma opulência plebéia: julgar-se-ia aviltado.

Os japoneses são em geral obsequiosos. Têm uma decidida paixão pelas armas, que consideram como uma salvaguarda indispensável. Todos andam armados desde o pequeno até ao belho: todos trazem à cintura um punhal e uma espada, até mesmo os jovens de catorze anos, e não admitem que se possa suportar uma palavra ofensiva.

A plebe respeita a nobreza tanto quanto esta respeita os reis e os príncipes, e se honram em os servir e em obedecer-lhes. Aquela submissão vem unicamente do respeito, pois que se julgariam degradados em obedecer por temor.

O japonês come pouco e bebe muito. A sua bebida é um licor produzido pelo arroz fermentado, porque o vinho é desconhecido aqui. Olham como infamante qualquer espécie de jogo, especialmente os de parada, porque o jogador, dizem eles, cobiçou os bens alheios. Se juram o que é raro, é pelo sol. Quase todos sabem ler, o que nos será de grande auxílio para lhes fazer aprender as orações e os principais pontos da doutrina cristã...

Eles ouvem com a maior atenção tudo quanto lhes dizemos de Deus e da religião.

Os japoneses não adoram figuras de animais; rendem as honras divinas a antigos personagens cuja vida, segundo eu pude compreender, se assemelha à dos nossos antigos filósofos. Alguns adoram o sol, outros a lua. Todos ouvem falar com prazer do que se refere a história natural e a filosofia moral. Posto que réus de muitos crimes, condenam, logo que se prove, a enormidade deles unicamente pela luz da razão ...

...A vida dos bonzos é mais criminosa do que a do povo, e contudo eles gozam de grande consideração... Tenho tido muitas conferências com alguns de entre os mais distintos e especialmente com aquele, que pelos seus merecimentos, título e muita idade, -já octogenário-, goza do respeito e até da veneração de todo o país; ele é tido entre os bonzos como uma espécie de bispo; tem o título de Ninchit.

Tenho-o encontrado sempre hesitante sobre as mais simples questões, se bem que as mais importantes, como por exemplo: se a nossa alma é imortal, ou morre com o corpo, responde, ora afirmativamente, ora negativamente.

Se este famoso doutor é tão pouco sólido, na defesa da sua doutrina, o que posso esperar dos outros?

Porém, o que vos parecerá surpreendente, é que ele nos estima muito, e tanto o povo como os bonzos buscam com empenho a nossa conversação. O que singularmente lhes causa admiração, é que nós tivéssemos percorrido seis mil léguas com o único fim de lhes anunciar o Evangelho.

O solo destas ilhas é muitíssimo próprio para receber a semente evangélica; rendei graças a Deus conosco. Se fôssemos completamente senhores da língua do país, faríamos aqui uma grande colheita. Deus queira que a possamos aprender em breve! Já começamos a falar, e em quarenta dias temos feito suficientes progressos para poder explicar os dez mandamentos de Deus.

Não entro nestes pormenores senão para vos levar -a agradecer à Providência o haver aberto ao vosso zelo estes novos países... Estai preparados, porque daqui a dois anos é provável que eu chame alguns de entre vós.

Entregai-vos, enquanto esperais, à meditação e à prática da humildade. Exercitai-vos no vencimento próprio e a passar por cima de todas as repugnâncias da natureza.

Aplicai-vos ao estudo de vós mesmos, a fim de vos conhecerdes: o conhecimento de si própria é a mãe da humildade e da confiança em Deus...

...Não confieis, meus queridos filhos, nas vossas próprias forças, na sabedoria humana, na estima dos outros, para descansardes inteiramente nos braços da Providência. Estareis assim sempre em posição superior, sempre armados e prontos a combater ou a suportar todas as penas espirituais e corporais; porque Deus fortifica os fracos e eleva os pequenos.

Eu conheço um homem que contraiu o hábito de não depositar confiança senão unicamente em Deus, em meio dos mais aterradores perigos, e Deus o tem recompensado por uma maravilhosa efusão de graças, que seria muito longo enumerar aqui.

Mas voltemos à nossa narração.

Os habitantes de Cangoxima não censuraram Paulo por ter abraçado o Cristianismo, e mostraram mesmo estimá-lo mais. Todos o felicitaram por ter tido a fortuna de fazer a viagem das Índias, e por ser o primeiro japonês que descobriu as suas riquezas.

O rei de Saxuma, de que depende Cangoxima, habita a seis léguas daqui; Paulo julgou do seu dever ir apresentar-lhe as suas homenagens, e foi por ele muito bem recebido.

Depois de lhe ter testemunhado o prazer que sentia em recebê-lo, fez-lhe muitas perguntas sobre os costumes, usos, riquezas, forças e poder dos portugueses, e mostrou-se muito satisfeito com as suas respostas. Mas o que lhe pareceu uma maravilha das mais surpreendentes foi um pequeno quadro que Paulo lhe mostrou, que representava a Santíssima Virgem tendo o Menino Jesus sobre os joelhos.

Levado de admiração e de respeito, à vista daquele belo desenho, lançou-sede joelhos em frente do quadro e ordenou aos seus cortesãos que o imitassem.

Apresentado em seguida o mesmo quadro à rainha mãe, ela ficou dominada do mesmo respeito e da mesma admiração, mandando poucos dias depois pedir a Paulo uma cópia daquela imagem; mas ele não encontrou um pintor capaz de a reproduzir, Pediu então que lhe desse por escrito um resumo descritivo da religião cristã, e Paulo apressou-se em a satisfazer...

Paulo de Santa-Fé, que prega dia e noite o Evangelho aos seus pais e amigos, converteu já sua mulher, sua filha, e muitos dos seus parentes e vizinhos. E isto tem merecido a aprovação de todos.

Queira o Céu dar-nos em breve o conhecimento da língua, para que possamos entregar-nos sem reserva à pregação, porque nós aqui somos como as estátuas: falam-nos, fazem-nos sinais, e nós conservamo-nos mudos!

Voltamos a ser crianças; toda a nossa ocupação é aprender os primeiros elementos da gramática japonesa.

Deus faça a graça de nos conceder a memória das crianças e ter a sua inocência na prática dos exercícios!

Quando viemos para estas regiões atraídos pela sede das conquistas, foi com intenção de fazer uma coisa agradável a Deus, e não fazíamos senão antever as graças com que ele se dignaria um dia favorecer-nos. Mas hoje, vemos claramente que esta viagem é uma felicidade para nós mesmos, e que foi em nosso próprio interesse que ele nos conduziu a este país; porque, para nos tornar mais aptos para o seu serviço, e ter-nos na sua única dependência, quebrou todos os laços que nos ligavam ainda às criaturas, e que teriam podido enfraquecer a nossa confiança nele.

Ah! meus irmãos, eu vos rogo, unias vossas ações de graças às nossas para agradecer tantos benefícios, e que as vossas orações nos preservem do vergonhoso vício da ingratidão

Eu considero como um assinalado benefício da Providência ter-nos trazido para um país onde estaremos ao abrigo dos prazeres da mesa, e onde a própria tentação não nos poderá alcançar.

O japonês ignora o uso da carne, até mesmo das aves; vive só de ervas, arroz, trigo peixe e frutas com que faz as suas delícias: assim, não conhece nenhuma das moléstias provenientes da intemperança, e goza duma excelente constituição.

Existe aqui um grande número de Academias. Se virmos por toda a parte os espíritos dispostos a receber o Evangelho, é provável que escrevamos a todas as Universidades do mundo cristão com o fim de despertar a sua fé, excitar o seu zelo e satisfazer a nossa consciência, pois que elas poderão vir facilmente em auxílio destes povos cercados de trevas, e trazer-lhes o conhecimento da verdade.

Escreveremos aos seus doutores como aos nossos mestres e a nossos superiores, rogando-lhes que nos considerem como o menor de entre eles; e se não puderem vir em pessoa tomar parte nos nossos trabalhos, rogar-lhes-erros que ajudem ao menos, por todos os meios, aqueles que sejam zelosos e se queiram votar à salvação das almas para glória de Deus, e que achanam aqui consolações espirituais muito maiores e mais sólidas do que aquelas que podem esperar ali onde estão.

Finalmente se o trabalho for tal e me pareça dever fazê-lo um dia, não hesitarei dirigir-me diretamente ao Santo Padre e o informarei do estado das coisas, porque é a ele, vigário de Jesus Cristo, pai de todas as nações, pastor de todos os cristãos, que pertencem aqueles que estão prontos a inclinar a cabeça sob o jugo do Evangelho e a entrar no seio da Igreja, sob a autoridade do soberano pontífice.

Apelaremos ainda para todas as comunidades religiosas votadas ao serviço de Deus, e que ardem em desejos de ver glorificar o nome de Jesus Cristo e estender-se o império da Cruz.

Nós os chamaremos para as ilhas do Japão para aqui saciarem a sede que os devora; e se estes vastos países forem estreitos para o seu grande zelo, mostrar-lhes-erros com o dedo o império da China, cuja população e extensão são incomparavelmente maiores, e onde a entrada nos será muito fácil, sob a proteção do imperador do Japão, como espero com a graça de Deus.

O imperador do Japão está ligado por interesses e amizade ao da China, que lhe facilitou a sua chancela para, referendar os passaportes dos súbditos japoneses que queiram penetrar no seu império. Diz-se que muitos têm feito aquele trajeto em dez ou doze horas.

Esperamos, se Deus nos conservar por mais dez anos nesta terra, vermos grandes coisas levadas a efeito, tanto para os que queiram trazer para aqui a luz do Evangelho, como para os que forem por ela esclarecidos e convertidos.

Em dia de S. Miguel, 29 de Setembro, fomos recebidos em audiência pelo rei de Saxuma, que nos acolheu muito bem: "Conservai preciosamente, nos disse ele, todos os documentos da vossa religião, porque se a verdade está por eles provada, eu porei o diabo em furor".

Poucos dias depois, promulgou ele um édito pelo qual dava aos seus vassalos a liberdade de abraçar o Cristianismo. Feliz nova! que reservei para o final da minha carta, com o fim de aumentar, pela surpresa, o prazer que ela vos causará.

Rendei, pois, graças a Deus! ...

...A pena não se esgota quando falo da minha afeição por vós todos, em geral, e por cada um em particular.

Se as almas daqueles que se amam pudessem tornar-se sensíveis aos olhos do corpo, vós vos veríeis todos reproduzidos na minha, meus prezados irmãos, como num espelho, ao menos enquanto a vossa humildade vos não permitisse reconhecer-vos ornadas de todas as virtudes com que o meu coração se compraz em ornar-vos...

Que o Senhor esclareça os nossos espíritos! que ele nos faça conhecer a sua santa vontade e nos dê a todos forças para a executar pontualmente

Todo vosso em Jesus Cristo,

Francisco".

Depois das dolorosas angústias de uma tão longa e tão penosa travessia; Deus, como vimos, fez passar o heróico Francisco Xavier por uma prova mais penosa, mais dolorosa ainda, quando tocou o solo do Japão para salvação do dual acabava de expor-se a tão grandes perigos. Ele, que possuía, o dom das línguas desde a sua chegada às Índias não compreende uma só palavra da do Japão, que morre por evangelizar. Via-se segundo a sua expressão, como uma estátua. e o zelo devorava-o. Não vê senão pagãos e ídolos em torro de si, e não pode deixar escapar da sua alma a menor centelha do fogo que o anima pela conversão de uns e pela derrota dos outros.

Deus parece retirar-lhe os seus favores no momento em que acabava de sofrer tão amargamente para procurar a sua glória, no momento em que lhes seriam mais necessários do que nunca!

A prova era grande para aquele coração de apóstolo!

Mas Francisco Xavier, cuja humildade iguala o seu zelo, não se desanima um instante. Volta a ser criança, como escrevia a seus Irmãos; aplica-se ao estudo daquela língua tão difícil para um europeu, e atribui aos seus pecados a privação que Deus lhe impõe. E escreve a Santo Inácio, sob aquela admirável impressão, as seguintes notáveis linhas, relativas certamente, no seu pensamento, à suspensão de um favor que lhe havia sido tão liberalmente concedido até ali.

"Eu não poderei jamais avaliar quanto sou agradecido aos japoneses, pois que é a eles que devo o imenso favor que Deus me fez de conhecer a enormidade e a imensidade dos meus pecados.

Até hoje, arrebatado e fora de mim, não havia ainda sondado toda a profundidade do abismo que eles abriram na minha alma; não o vi bem senão no momento em que Deus, no meio das angústias e das misérias pelas quais me experimentava no Japão, me desvendou os olhos e me fez tocar com o dedo a necessidade cm que me achava de ter junto a mim um homem que tivesse constantemente os olhos na minha pessoa.

Que à vossa caridade apraza pois, abrir os seus para as conseqüências que pode ter a direção das santas almas dos nossos Padres c dos nossos irmãos, confiadas à minha solicitude!

A misericórdia de Deus me fez conhecer quantas qualidades necessárias me faltam para um tal emprego, e estou tão convencido da minha incapacidade, que julgo deveria antes esperar da vossa bondade o favor de ser colocado sob a direção dos meus irmãos, do que o de ter o pesado encargo de os dirigir".

Não obstante, como já se viu, quarenta dias foram bastantes para o prodigioso Xavier aprendei a língua tão complicada do Japão, de maneira a poder explicar os Mandamentos. Desde que o rei fez publicar o édito autorizando os seus vassalos a abraçar a religião cristã, começou o grande Apóstolo as suas pregações; era escutado com avidez, e ali, como em toda a parte, ele foi amado e venerado.

Os próprios bonzos, que nada queriam da sua religião, queriam a sua pessoa e a buscavam constantemente.

A fé fazia rápidos progressos, pedia-se o batismo com empenho, e já uma grande parte dos habitantes de Cangoxima eram cristãos, quando os bonzos, apercebendo-se desta imensa deserção, compreendem que eles serão aniquilados com a ruína da sua religião, e conspiram a perda dos pregadores estrangeiros, que tanto haviam admirado antes; trabalham por desacreditá-los de mil maneiras; procuram, sobretudo, amotinar, o povo contra eles, inclusive as crianças.

Francisco Xavier pregava um dia na praça pública; um bonzo interrompe-o, insulta-o e dirige-se ao povo:

- Desconfiai, disse ele, deste impostor! é um demônio que tomou a figura humana para vos seduzir!

O povo mostra-se indignado, exprobra àquele bonzo a sua má fé e descobre-lhe o fundo do seu pensamento:

- É porque perdeis as nossas oferendas que quereis impedir que salvemos as nossas almas! Melhor seria para vós que escutásseis o santo Padre e lhe deixásseis salvar também a vossa!

Mas dois somente seguiram aquele sábio conselho desde logo; os outros, prezando muito os seus vícios para os sacrificarem à salvação das almas, continuaram a fazer fogo de todas as suas baterias contra o chefe dos bonzos cristãos.

Então Deus veio apoiar com os seus prodígios a palavra do apóstolo, que devia do mesmo modo renovar todos os milagres operados outrora pelo divino Salvador.

Um dia, passeando o Santo querido dos japoneses na praia, à beira-mar, parou a considerar os pobres pescadores que se afligiam por não recolherem produto algum da sua pesca; as suas redes subiam sempre vazias, e, desanimados, iam cessar aquele seu inútil trabalho:

- Porque vos desanimais, meus filhos? disse-lhes Xavier com a sua doce e compassiva voz.

- Santo padre, hoje não há peixe! O mar não é abundante de peixe em Cangoxima, e há já alguns dias que não recolhemos nem um só!

- Vejamos, tende coragem! Tornai a lançar a rede!

- Mas há já tanto tempo que a estamos a lançar inutilmente, santo Padre!

- Não importa; lançai-a ainda uma vez, e tende confiança em Deus.

Os pescadores obedecem... e eis que mal podem levantar a rede, tão cheia ela estava! Eles não sabem explicar semelhante resultado de uma pesca que não somente produziu uma quantidade de que não havia exemplo, mas ainda uma qualidade que nunca tinham visto.

Na manhã seguinte e nos subseqüentes dias o mesmo resultado! Desce que o nosso Santo intercedera com as suas orações e rogos, o mar de Cangoxima tornara-se um dos melhores para a pesca, e o milagre continuou ainda depois, durante muitos anos.

Uma pobre mulher, cujo filho tinha um inchaço geral em todo o corpo, ouviu dizer que o Padre Xavier curava todos os doentes em que tocasse. Ela torna o seu filhinho moribundo nos braços, corre ao santo Padre, porque também no Japão, como nas Índias, assim o chamavam, e diz-lhe:

- Meu Padre, aqui vos trago o meu pobre filhinho! Vós vedes que ele vai morrer se o não curardes imediatamente l

A infeliz mãe chorava copiosamente.

O apóstolo dirigiu para ela um olhar que demonstrava a mais consoladora compaixão e que tendo sido para ela uma esperança, entregou-lhe imediatamente o filho, dizendo

- Aqui o tendes! Curai-o, meu Padre!

Xavier toma em seus braços o menino que lhe ofereciam, e diz:

- Deus te abençoe!

E repete duas vezes ainda aquelas palavras; depois restitui a criança a sua mãe, cujas lágrimas se tornaram no mesmo instante em lágrimas, de alegria. Seu filho, completamente desinchado e de perfeita saúde, parecia ainda mais belo do que antes da doença.

Um leproso, com a notícia daquele milagre, espera e conta com a sua cura, se lhe for permitido aproximar-se do santo Padre. Separado de todo o mundo, não lhe é permitido ir procurá-lo; mas ouve falar tanto da sua caridade que se atreve a mandar-lhe pedir uma visita..

O nosso Santo, impossibilitado naquele momento de acudir ao chamamento do infeliz, encarrega um dos seus de lá ir, dizendo-lhe:

"Perguntareis três vezes àquele doente se ele acreditará em Jesus Cristo, no caso em que a sua lepra desapareça, e, se assim o prometer, fareis sobre ele o sinal da cruz, depois de cada resposta".

O enviado do apóstolo executa pontualmente as ordens que recebera; o doente responde três vezes que acreditará em Jesus Cristo, e depois do último sinal da cruz, que seguiu à sua última resposta, a lepra desaparece subitamente!

A fé daquele japonês veio a ser tão viva, que se lhe concedeu desde logo a graça do batismo.

Um fidalgo japonês, ainda idólatra, perdera a sua única filha, e achava-se quase louco de dor. Dois neófitos, seus amigos, falam-lhe dos milagres de Francisco Xavier e induzem-no a pedir ao Santo a ressurreição de sua filha.

O desgraçado pai agasta-se com os seus amigos; supõe que a fé do Cristianismo lhes alterara a razão, pois que no Japão ninguém ouvira ainda falar na ressurreição dos mortos. Nunca nenhum ídolo fizera coisa semelhante, nunca os bonzos haviam lido nos livros dos sábios uma maravilha daquele gênero: os mortos não podem ressuscitar.

Contudo, os cristãos conseguem inspirar-lhe tal confiança nos prodígios do santo Padre, que o pagão vai lanar-se a seus pés aos gritos de dor que faziam cortar o coração.

Xavier comove-se: afasta-se por um momento com Fernandes, e voltando-se pouco depois para o fidalgo japonês

- Ide, diz-lhe simplesmente o Santo, comprimindo a comoção que experimenta. Ide, vossa filha vive.

- Como?! ela não pode viver, pois que vós não invocastes para isto o Deus dos cristãos!

- Ela está viva, repete Xavier.

E o desditoso fidalgo retira-se cheio de raiva:

- O bonzo cristão mangou comigo, dizia ele; não invocou o seu Deus; não veio tocar a cabeça de minha filha, como faz aos doentes, e diz-me que ela está viva!

E dirigia-se para sua casa, fulo de raiva contra o chefe dos bonzos cristãos, quando encontra várias pessoas da sua família que lhe vinham anunciar que a menina voltara à vida. Pouco depois, vê sua filha em pessoa correndo para ele:

- Se vós soubésseis, meu pai, lhe diz ela, abraçando-o, se soubésseis o que me aconteceu! Eu estava mortal Dois horríveis demônios se haviam apossado de mim e arrastavam-me para um abismo de fogo! Via-me já perdida, quando dois homens de nobre aparência, e com olhares meigos e compassivos me arrancaram de suas mãos. No mesmo instante, voltei à vida como se despertasse dum soro, sentindo-me no mais perfeito estado de saúde l

- Minha filha! minha querida filha! tu estavas bem aporta, é verdade, e o chefe dos bonzos cristãos te ressuscitou por prodígio do seu Deus, que é muito mais forte e mais poderoso que os nossos; vamos agradecer-lhe!

E o pai e a filha vão procurar Xavier, que estava ainda cm companhia de Fernandes. Logo que os viu, a menina exclamou

- Ei-los! eis-aí aqueles que me livraram das mãos dos demônios! Reconheço-os perfeitamente!

Em seguida prostra-se a seus pés, solicitando instantemente, assim como seu pai, a graça do batismo, que lhes foi concedido logo que a sua instrução o permitiu.

Este milagre produziu um grande abalo no povo, que até então não tinha ouvido falar da ressurreição e em cuja língua não existia mesmo a palavra que exprimisse aquela idéia.

Xavier era, pois, para os cangoximenses, inclusive os pagãos, um verdadeiro Deus, muito mais poderoso do que Amida e Chaca, suas maiores divindades.

Muitos se converteram, e os bonzos, ainda mais irritados, juraram um ódio implacável ao célebre apóstolo, cuja reputação se estendia já até às extremidades do império japonês.

Um homem do povo, por eles pago, insultava-o e ameaçava-o com raiva nas ruas da cidade, em um dia, depois duma das suas instruções. Xavier suportava as suas injúrias, e ameaças sem lhe responder e sem nada perder da sua inalterável mansidão, quando, subitamente esclarecido lá do alto, vê a vingança de Deus prestes a fulminar aquele desgraçado. Olha-o com expressão de piedade, e diz-lhe tristemente:

"Apraza a Deus conservar a vossa língua!"

E no mesmo instante a língua do pagão apodrece! Sai-lhe, mau grado seu, da boca e os bichos nela formigam!... A turba exalta o poder do Deus dos cristãos, os bonzos são mais desprezados do que nunca, e alguns dias depois, a mulher dum dos principais fidalgos da corte, tendo abandonado Chaca e Amida, que ela havia cumulado de donativos com grande liberalidade, recebia o batismo solenemente com toda a sua família.

Os bonzos não tinham já, portanto, meio algum de perseguir e indispor o grande apóstolo com os cangoximenses; a fraqueza deles não podia lutar contra o seu poder e era necessário, contudo, pôr um termo às suas conquistas diárias: Amida e Chaca, inspirou-os.

Os navios portugueses, que de ordinário faziam escala em Cangoxima, acabavam de passar sem ali tocar, e haviam já atingido o porto de Firando, para onde levavam as suas ricas mercadorias.

O comércio de Cangoxima e de todo o reino de Saxuma sofreria com a ausência dos mercadores portugueses; o rei estava irritado, e a ocasião era muito preciosa para a deixarem perder.

Feito este cálculo, os principais de entre os bonzos vão ter com o rei, dizem-lhe que ele incorreu na cólera dos deuses Amida e Chaca, aos quais deve o seu trono; que a Posteridade maldirá o seu nome; que os cristãos dão lá a conhecer o seu embuste, porque foi seguramente o chefe dos seus bonzos que mandou os mercadores portugueses para Firando e os impediu de vir a Cangoxima.

Os Deuses assim quiseram para punir o povo que desertou dos pagodes, e especialmente para punir o rei, cuja fraqueza o levara a permitir aos seus vassalos a renegarem da sua religião.

O rei mostrou-se muito aterrado; os bonzos aproveitaram-se do medo que tinham conseguido incutir na sua crédula majestade para lhe arrancarem um édito revogando o que havia concedido a Xavier, e impondo pena de morte àqueles dos seus vassalos que abraçassem, dali em diante, a religião pregada pelos bonzos europeus.

A esta desanimadora nova, Francisco Xavier só procurou fortificar os cristãos na fé. Todos lhe prometeram antes morrer do que renunciar a ela, e o apóstolo, reconhecendo que não poderia atrair e ganhar mais almas idólatras, retirou-se do reino de Saxufa, para levar mais além a luz do Evangelho

"Despedimo-nos dos nossos neófitos, escrevia ele, mas não sem pesar e sem lágrimas amargas, vertidas de ambas as partes!

Aquela pobre gente não se cansava de nos agradecer por termos vindo de tão longe, através de tão grandes perigos, só com o fira de lhes ensinar o caminho do céu.

Deixei-lhes Paulo, que acabará de os instruir e de os fortalecer na fé cristã".

Foi em Setembro de 1550 que o nosso Santo se separou do seu querido Paulo e dos seus neófitos; demorara-se um ano em Cangoxima. Antes de partir, deu cartas de recomendação aos dois bonzos que havia convertido, e que desejavam visitar as Índias e a Europa.

E não podemos deixar de dizer neste lugar, que Paulo de Santa-Fé trabalhou tanto depois da partida de Xavier, que o édito contra o Cristianismo não teve execução; -que o número, dos idólatras diminuiu consideravelmente, e que o rei de Saxuma instado pelos grandes da sua corte, e além disso compenetrado de todas as virtudes cristãs, escreveu ao vice-rei elas Índias, pouco tempo depois, pedindo-lhe Padres da religião de Xavier a quem os japoneses cognominavam, o santo por excelência.

Xavier tomou a estrada de Firando com o Padre Cosme ele Torres e o Irmão Fernandes; viajava a pé, como sempre, levando o seu altar portátil às costas, quando, não longe do castelo do príncipe Herandono, súbdito do rei de Saxuma, encontrou alguns dos seus cortesãos que lhe pediram instantemente subisse ao castelo a fazer uma visita ao príncipe ou tone.

O santo apóstolo, na esperança de fazer uma nova conquista para Deus, cedeu às suas instâncias.

Herandono, admirado de ver o bonzo cristão, cuja celebridade enchia o Japão, recebeu-o com as mais distintas honras; fez reunir toda a tropa da guarnição, sua família, seus cortesãos, e Xavier, apresentando-se em meio daquela imensa e imponente reunião, pregou imediatamente a fé em Jesus Cristo.

As suas palavras produziram tal impressão, que muitos dos que o ouviam se apressaram em submeter-lhe as suas dúvidas, e dezassete de entre eles, suficientemente esclarecidos, solicitaram o batismo com tanta fé, que o apóstolo lho concede; baptizou-os em presença do seu tone, que, com temor de desagradar ao rei, não permitiu que um grande número recebesse aquele favor. Comprometeu-se porém a fazer-se baptizar ele próprio, e a deixar livres todos os seus súbditos logo que fosse autorizado pelo soberano, que estava convencido não sustentaria por muito tempo o édito que fora forçado pelos bonzos a publicar.

Contudo, aquele príncipe, admirando a doutrina pregada por Francisco Xavier, permitiu a sua mulher pedir-lhe o batismo, que ela recebeu com grande alegria...

E tendo o nosso Santo notado um grande vigor de espírito no intendente do príncipe, encarregou-o do cuidado de fortificar a fé e a piedade dos neófitos.

Designou o sítio que lhe pareceu mais próprio para as reuniões e recomendou que ele as presidisse, que lesse nelas em alta voz uma parte da doutrina cristã, todos os domingos, os salmos da penitência todas as Sextas-feiras, e as ladainhas dos Santos todos os dias.

Quando partia, deixou-lhe uma disciplina de que ele se servira muitas vezes.

O intendente ligava tanta importância àquele instrumento de penitência, que mui raras vezes permitia que os cristãos se servissem dele.

Aquela disciplina fez uma infinidade de milagres, e os sucessores de Francisco Xavier no apostolado do Japão, acharam-na em poder da princesa que a havia conservado preciosamente, depois da morte do velho intendente, e que dela se servia para operar prodígios, assim como dum pequeno livro escrito pela mão do ilustre Xavier, e que ele lhe dera quando dela se separou.

O livrinho continha algumas orações e as ladainhas dos Santos.