V. EM SANCIÃO - A CHINA A VISTA

AO PADRE FRANCISCO PÉRES

Do porto de Sancião, 22 de Outubro de 1552.

Meu muito querido Irmão,

A graça e o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam sempre convosco! Amen.

Com o auxílio de Deus, eis-nos chegado a Sancião [81], afastados de Cantão cento e vinte milhas aproximadamente. Fiz construir em terra uma cabana onde, todos os dias, tenho celebrado os santos mistérios até ao momento em que fui acometido duma enfermidade que durou quinze dias. Graças a Deus vou recuperando as forças, e a minha convalescença vai em bom caminho. Trabalho, confesso, termino as desinteligências, apaziguo as questões entre a gente das equipagens, ocupo-me, finalmente, de tudo que pode tornar-se em glória de Deus.

O comércio atrai para este porto muitos mercadores chineses de Cantão. Os nossos portugueses estão empenhados em achar entre eles algum que quisesse encarregar-se de me introduzir naquela. cidade, mas nenhum tem querido até agora atender a proposta alguma: vai nisso, dizem eles, a vida e a fortuna daquele que fizesse uma tal tentativa, se o mandarim, governador da cidade, o viesse a descobrir.

Contudo os nossos portugueses conseguiram encontrar um negociante de Cantão, que parece muito honesto, e com o qual convencionei por duzentas peças de oiro, cujo valor lhe darei em pimenta. Por este preço ele se compromete a transportar-me em um pequeno barco, em que não levará senão seus filhos e alguns escravos, a fim de que o mandarim, sabendo da minha chegada à cidade, não possa descobrir por quem e como aí fomos introduzidos.

Está, além disso, comprometido a nos conservar em sua. casa a mim e os meus companheiros durante três ou quatro dias, com meus livros e nossa pequena bagagem; ele nos conduzirá, passado este tempo, pela madrugada, à porta da cidade, sobre o caminho que vai diretamente à morada do mandarim. Então eu irei ao encontro do governador, dir-lhe-ei que vim com o fim de fazer, conhecer a lei divina ao imperador da China; e lhe apresentarei as cartas do senhor arcebispo de Goa.

Todos os mercadores chineses nos olham com alegria e desejam muito, dizem eles, o bom resultado do nosso plano.

Eu não ignoro os perigos que corro; os chineses fizeram-mos conhecer. O primeiro, é que o mercador que trata conosco, depois de ter recebido o preço convencionado, nos não lance numa ilha deserta, ou mesmo ao mar, para se subtrair a toda a censura; o segundo é que o mandarim nos não castigue, mandando-nos para as masmorras ou ao suplicio; porque há pena de morte contra todo o estrangeiro que põe o pé sobre o solo do império, sem que tenha para isso permissão. Há ainda outros perigos pessoais muito mais graves e que seria longo enumerar; desejo contudo dizer-vos algumas palavras.

Entre aqueles perigos, o principal é o de perder a confiança em Deus. Porém, como é Ele mesmo que nos inspirou o desejo desta viagem, como nós não a empreendemos senão com o fim de satisfazer a sua vontade, para levar o nome de Jesus Cristo ao meio daquela nação pagã; como não temos outro fim mais que o de estender o império da sua Cruz; o maior, o mais iminente de todos os perigos seria duvidar da sua proteção e do seu socorro.

Todo o inferno conjurado nada pode contra nós sem a permissão de Deus, único todo-poderoso: se ele está por nós, os obstáculos aplanar-se-ão. Eis porque queremos ser fiéis às seguintes palavras de Jesus Cristo: Aquele que preza a sua vida neste mundo, a perderá; aquele que a perder por mim, a recuperará .

Espero de dia em dia o mercador de que vos falei, Deus queira que não me veja enganado nas minhas esperanças!

...Que Deus Nosso Senhor nos preste o seu auxílio e a sua luz, a fim de que possamos entrar um dia na sua glória!

Vosso irmão, o menor em Jesus Cristo.

Francisco".

Não era permitido aos portugueses, chamados pelos seus negócios à ilha de Sancião, estabelecer aí abrigos duráveis; era-lhes proibido habitações a não serem cabanas construídas com pranchas, esteiras e ramos de árvores, à borda do mar.

Foi um abrigo deste gênero que se levantou para o heróico apóstolo do Oriente; a fim de que pudesse nele celebrar os santos mistérios; quanto a si, pessoalmente, contentou-se com partilhar da cabana de um mercador, e foi assim que ele viveu ali durante perto de três meses.

Entre os portugueses que então estavam em Sancião, encontramos Pedro Velho que, vindo do Japão para Malaca a bordo do São Miguel, havia sido testemunha dos grandes milagres operados por Xavier durante aquela viagem. Pedro Velho possuía uma fortuna considerável; o nosso Santo não o ignorava e recorria muitas vezes à sua bolsa para os pobres que ele próprio não pudesse socorrer.

Um dia, Xavier, que segundo ele próprio disse, se ocupava de tudo que pudesse resultar em glória de Deus, buscava Pedro, de cabana em cabana, e finalmente o encontrou jogando com um dos seus amigos e perdendo mais do que queria

- Senhor Pedro, disse-lhe ele, eu procurava-vos para vos pedir dinheiro.

- Empregais bem o vosso tempo, Padre Francisco! Vêde o que tenho perdido

- Tenho uma pobre órfã para casar, e careço de um pequeno dote; contei convosco para a salvar do perigo que corre. Vejamos, dai-me uma soma suficiente! Tendes dinheiro às mãos cheias...

- Contudo, santo Padre, vás não tereis nada do que lá está.

- É isso verdade, caro Pedro?

- Tão verdade, meu Padre, que aí tendes a chave da minha carteira. Ide lá tirar tudo o que quiserdes, com a condição de que não tocareis no que lá está!

O santo Padre, levando a chave, retira-se depois deste gracejo de Pedro, e vai abrir a sua carteira que continha quarenta e cinco mil escudos de oiro.

Alguns dias depois, fazendo Pedro Velho as suas contas, acha intacta a soma de quarenta e cinco mil escudos. Penalizado por aquela discrição de Xavier, diz-lhe:

- Como! meu santo Padre, vós não tomastes a sério a oferta que vos fiz ultimamente de casar a órfã que me recomendastes?

- Sim, senhor, tomei o suficiente.

- Não tomastes nada, meu Padre, e sinto-me com isso mortificado...

- Asseguro-vos, senhor Pedro, que tirei da vossa carteira trezentos escudos de oiro, que vos serão bem contados um dia, porque estão bem empregados.

- Meu Padre, eu acabo de fazer as minhas contas a minha carteira encerrava quarenta e cinco mil escudos quando vos dei a chave, e estão ainda lá. Deus vos perdôe por isso, padre Francisco, pois eu esperava que tirásseis ao menos metade.

Francisco Xavier, subditamente esclarecido viu o milagre que ignorava, e pronunciou estas palavras proféticas:

- Pedro, a intenção que tivestes, foi agradável Àquele que perscruta os corações e pesa os seus movimentos. Ele terá isso em conta e vos restituirá um dia o cêntuplo do que houverdes dado. Prometo-vos, de sua parte, que vos não faltarão jamais os bens temporais, e que se vos acontecerem desagradáveis acidentes no comércio, vossos amigos se esforçarão por repará-los. Anuncio-vos, além disso, que seleis advertido do dia da vossa morte.

- Meu Padre, todas as vossas palavras são para mim como as de Deus; mas permiti que vos pergunte como serei prevenido do momento da minha morte, qual será o sinal certo?

- Quando achardes o vinho amargo, preparai-vos, porque não tereis mais que um dia a viver.

Veremos mais adiante se esta predição foi cumprida.

Alguns dias depois, Manuel de Oliveira, recorria a Xavier, com alguns outros portugueses

- Meu Padre, que desgraça, t O São Vicente foi levado pelo tufão. Acabamos de ter esta noticia: ele ia de Macau para o Japão, nós somos todos interessados na sua carga, e é uma perda imensa para todos nós. Rogai a Deus que no-lo conserve!

O apóstolo orou por alguns instantes e disse em seguida aos interessados do São Vicente:

- Não há nada a temer pelas vossas riquezas: o São Vicente foi levado, é verdade, mas a força que o impeliu, conduziu-o ao porto onde devia ancorar, e não sofreu nenhuma avaria.

Os portugueses conheciam o valor das palavras do seu santo Padre; confiados nele esperaram a volta do seu navio, que, do Japão onde se devia demorar pouco, tinha de chegai a Sancião em dia quase prefixo. Porém o São Vicente não chegou no dia esperado.

- Meu Padre, o nosso navio devia estar de volta, segundo a vossa predição, disse Manuel ao santo apóstolo; talvez se tenha perdido. Que desgraça seria!

- Não tendes fé, Manuel, respondeu-lhe Xavier. Eu prometi-vos a volta do São Vicente sem avaria, estai seguro de que o tornareis a ver antes do fim da semana. Ele está no mar, e em muito bom estado.

- Deus vos oiça, meu Padre!

Dois dias depois, chegava o navio ao porto de Sancião, são e salvo, e sem ter experimentado nenhum acidente desagradável, não obstante a violência do tufão que havia enfrentado.

A ilha de Sancião era de ordinário inquietada por animais ferozes que destruíam os seus produtos, devastavam os campos e atacavam os habitantes; mortas vezes até as crianças eram arrebatadas e devoradas por aqueles terríveis habitantes das florestas. Queixavam-se àquele que parecia dispor do poder divino; suplicavam-lhe que afastasse aquele flagelo permanente.

Uma noite, ouve o santo Padre o rugir dos afamados tigres próximo da sua cabana. Sai, vai direito àqueles terríveis animais, faz sobre eles uma aspersão de água-benta e ordena-lhes, em nome de Jesus Cristo, que se retirem e não tornem a aparecer. Dóceis àquela poderosa voz, ou antes, forçados a obedecê-Ia, retiram-se e não voltam mais.

No entanto tudo estava pronto para a execução da perigosa empresa que o seu zelo inspirava.

O mercador chinês que se tinha encarregado de o pôr em território de Cantão não esperava senão as suas ordens; o que devia servir-lhe de intérprete acabava de retirar a sua palavra; mas, conquanto Antônio de Santa Fé, discípulo do colégio de Goa, tivesse esquecido a sua língua materna, Francisco Xavier contava com a fraca reminiscência que lhe restava; demais, não lhe havia concedido Deus a graça de fazer compreender os chineses que o tinham vindo ouvir na praça pública de Amanguchi, e não havia permitido que ele também fosse compreendido? Se, agora, aprouve à divina Providência privá-lo de intérprete que julgava ter conseguido, saberia substituí-lo por outros recursos, que ela unicamente conhecia e de que pode dispor á sua vontade.

Nesta confiança, vai o grande Xavier despedir-se do capitão general.

- Meu caro Padre, disse-lhe o capitão, suplico-vos que espereis que todos os navios portugueses tenham partido. Se fordes retido em Cantão, pelo único motivo da vossa entrada em terra interdita aos estrangeiros, arrependei-nos-erros de havei facilitado os vossos projetos, e os mandarins se apossarão dos nossos homens, dos nossos navios, das mercadorias e do oiro que eles encerram. Isto seria a ruína e o luto de todas as nossas famílias.

- Esperarei da melhor vontade, senhor capitão, respondeu docemente o bom Padre; livre-me Deus de ocasionar jamais tão grandes desgraças i Não tentarei passai à China senão depois da, partida de todos os vossos navios, podeis contar com isso.

O mercador chinês[82] aproveitou-se desta detença para voltai a Cantão onde os seus negócios o chamavam, e prometeu tornar a vir logo que os navios portugueses se tivessem feito à vela.

O nosso Santo, para satisfazer quanto possível a todos os portugueses acampados em Sancião, aceitara partilhar das cabanas dalguns deles, por turno, porque todos queriam tê-lo junto de si.

Um dia celebrou a missa sem ter visto Diogo Vaz, espanhol, em cuja casa morava então. Depois da missa lançou um olhar sobre os assistentes e perguntou em voz alta:

- Onde está o meu hospedeiro?

- Santo Padre, respondeu-lhe um dos seus amigos, ele partiu sem prevenir ninguém.

- Ah! replicou o santo Padre com ar inspirado que impressionou vivamente os ouvintes, o que foi, pois, que o apressou? Onde o leva a sua triste sorte? Ele procederia melhor se esperasse o junco chinês que comprou.

Soube-se pouco depois que Diogo Vaz, arribado em frente de Malaca, havia desembarcado; que se internara numa floresta para ai buscar madeira própria para compor o seu navio, e que tinha sido morto a golpes de machado por bandidos indianos. O Santo contava com o seu navio para ir a Sião, no caso que não pudesse penetrar em terra chinesa.

Aproximava-se o momento da partida geral: Francisco Xavier escreveu por aquelas diversas embarcações ao Padre Barzeu, Padre Peres e a Diogo Pereira, a quem renovava a expressão dos seus pesares e da sua dor; dava-lhe ao mesmo tempo ânimo e conselhos espirituais mais sólidos e afetuosos. Não obstante haver já expedido ordem ao Padre Peres para deixar Malaca, reitera-lha na seguinte carta:

"...Ordeno-vos expressamente, lhe dizia ele, que não desistais da idéia que deveis ter tido de sair de Malaca segundo as minhas ordens. Proíbo-vos que vos deixeis vencer e enternecer pelos rogos e instâncias de quem quer que seja.

No estado a que chegaram as coisas, não vos conserveis por mais tempo naquela cidade indigna de vossos cuidados; não percais aí um tempo e trabalhos que mais utilmente empregaríeis em outra parte. Podereis aí deixar o nosso Bernardo junto de Vicente Viegas. Ele continuará a ensinar às crianças os elementos da religião, da gramática e da literatura; mas deixo isso à vossa disposição; vós julgareis se será melhor levá-lo do que deixá-lo, e fareis o que melhor vos parecer.

Penso que convém entregardes a Vicente Viegas, quando partirdes, as chaves da nossa casa da cidade e as da pequena residência que se chama de Nossa Senhora do Monte; por causa da capela, e que está situada nos arredores.

Rogar-lhe-eis a bondade de se encarregar da guarda daquelas casas; deixar-lhe-eis uma ata em duplicado da doação perpétua que o senhor arcebispo fez delas à nossa Companhia; pedireis a Vicente uma ata pela qual ele declare que tem aguarda daquelas duas propriedades pertencentes à nossa Companhia; na partida para Cochim levareis originais daquelas atas, e chegado ao vosso destino, as enviareis, por via segura, a Goa, para aí serem depositadas nos arquivos do Colégio.

Eu despedi Vicente Alvaro Ferreira da nossa Companhia; não desejo que ele volte às Índias no mesmo navio em que vós fordes. Se não tiverdes outro, ou que ele não queira absolutamente separar-se de vós, permito que vos acompanhe, mas sob a condição expressa de que ele vos prometerá entrar numa outra Ordem religiosa; neste caso dirigi-lo-eis com tal caridade que possa afirmá-lo na sua boa resolução.

O intérprete de que vos falei cedeu à vergonha e abandonou-nos; agora somos só três: o chinês Antônio de Santa-Fé, Cristóvão [83], e eu. Nós persistimos na nossa resolução porque confiamos no auxílio de Deus.

Orai por nós, eu vos suplico! porque corremos perigo de uma cruel escravidão: mas estamos consolados e fortificados pela idéia de que vale muito mais ser escravo pelo único amor de Deus, do que comprar as doçuras da liberdade pelo preço de uma baixa e ignóbil fugida da Cruz de Jesus Cristo, e dos trabalhos dolorosos que lhes estão ligados.

Se o mercador chinês, que prometeu fazer-nos entrar na China, viesse a faltar à palavra, estou resolvido a embarcar-me para o reino de Sião, a fim de me aproveitar da embaixada que o rei envia ao imperador da China. Por outro lado, consta-me que aí se apresta um navio que deve entrar no porto de Cantão, e introduzindo-me ali, chegarei antes do fim do ano ao cúmulo dos meus votos. Conseguirei, finalmente, pisar a terra por que suspiro tão ardentemente!..."

Aquela grande preocupação levava muitas vezes o nosso Santo à praia do lado da cidade de Cantão, dirigia as suas vistas para aquela terra de promissão, e dizia aos amigos que o acompanhavam:

- Oh! quando porei eu o pé naquela terra tão próxima e que eu não posso pisar ainda? Quando me concederá Deus a felicidade de aí levar o seu nome?

Não receio nem o cativeiro nem os suplícios. Chegar à China! Não peço, não desejo senão esta graça, da qual, contudo, me reconheço bem indigno!... Quererá Deus empregar, um instrumento tão vil numa missão tão gloriosa?...

E grossas lágrimas se escapavam dos olhos do humilde apóstolo, com o pensamento de que a sua indignidade fosse talvez um obstáculo à realização do seu voto mais querido, e acrescentava:

- Eu seria tão feliz em morrer por Jesus Cristo!... Mas este favor é tão sublime para um pecador como eu!...

No meio dos seus temores e das suas esperanças por aquela China tão desejada, ele não se esquecia dos interesses espirituais dos Padres espalhados pelas Índias, nas Molucas, no Japão e em todo o Oriente. Cada navio que partia de Sancião levava páginas dignas da grande alma de Xavier. Achamos, numa carta dirigida ao Padre Barzeu, vice-provincial, estes notáveis conselhos, que dizem o alto apreço que ele ligava à obediência e à humildade religiosa:

"...Por ter ocasião, recomendo-vos que veleis atentamente sobre vós próprio; sem isto, eu não poderia ter confiança em vós.

Não vos esqueçais de reler muitas vezes as instruções que vos deixei à minha partida, e de as pôr exactamente em prática, sobretudo no que diz respeito à submissão do espírito, de que vos prescrevi o uso diário. Lembrai-vos que tendo os olhos fixos sobre o que Deus opera pelo vosso ministério ou pelo de nossos irmãos, não os deveis afastar da vossa miséria e vosso nada.

A minha amizade por vós todos me faria desejar ver-vos, todos juntos, meditar e passar uma revista ao que Deus tem feito e ao que faria se não tivésseis posto obstáculos a seus desígnios.

Estimaria mais que reflectísseis acerca disto do que ver-vos extasiados sobre as maravilhas de que tendes sido instrumentos nas suas mãos.

A primeira reflexão vos fará corar de vós mesmos e vos inspirará sentimentos de profunda humildade, descobrindo as vossas fraquezas e misérias; enquanto que a outra vos traria, facilmente, pensamentos de orgulho, e faria uma desordem vergonhosa na nossa Companhia, se ela viesse a introduzir-se aí: Vós não sois mais que os transmissores do bem do próximo; não sois mais que os instrumentos de que Deus se dignou servir-se para operar as suas maravilhas; não esqueçais isto..."

"Guardai-vos, meus Irmãos, de pecar contra o voto da santa obediência, causando a menor delonga na execução das minhas ordens ...

...Dirijo-me a vós em particular, mestre Gaspar; suplico-vos que não vos esqueçais de executar ponto por ponto, tudo quanto vos hei prescrito. Não vos julgueis, presumindo a minha morte, desembaraçados da minha autoridade, e tornados ao vosso livre arbítrio. Recordo-me que uma das minhas longas ausências fez cair alguns de entre vós, neste erro. Como não morrerei senão quando Deus quiser, quaisquer que sejam os meus desgostos da vida e meus desejos da morte, é em vão que a curiosidade do homem se esforce em pressagiar a minha última hora. Digo-vos isto a fim de que não prefirais o vosso juízo às minhas vontades, como vos tem acontecido doutras vezes, se é que vos lembra. Deus sabe se tendes sido prudente ou insensato...

Prestai toda a vossa atenção ao que vos vou dizer ainda.

Sêde rigoroso na admissão dos indivíduos que se apresentam a entrar na nossa Companhia.

Quando aqueles que admitirdes tiverem passado por um exame rigoroso e um inquérito severo, fazei-os passar também por todas as provas do serviço e da aprendizagem doméstica.

Examinando alguns deles que têm sido admitidos, não posso deixar de desconfiar do juízo daqueles que os apreciaram. Os seus progressos vão tão pouco além dos primeiros elementos da perfeição, que só vejo neles homens que o interesse, honra e crédito da Companhia exigem imperiosamente a exclusão dela, como os factos o têm provado.

Não posso deixar de apresentar um exemplo na pessoa de Álvaro Ferreira, que mandei riscar do registo da nossa Companhia, e que vos proíbo de aceitar no vosso colégio, se ele aí se apresentar. Se ele quiser entrar numa outra Ordem religiosa, podeis auxiliá-lo por todos os meios a vosso alcance; mas acautelai-vos em evitar que se lhe abra de novo a porta da nossa Companhia, quaisquer que sejam as instâncias que ele vos faça; porque, de minha convicção íntima, fiz uma lei expressa, em toda a amplitude dos meus poderes, e sei que ele não convém de modo algum ao nosso Instituto.

Se esta carta fôr parar às mãos de um outro que não seja o reitor Gaspar Barzeu, qualquer que ele seja, deverá julgar como prescrito a si próprio o que aqui ordeno a Gaspar Barzeu.

Francisco".

Esta carta é datada de Sancião, a 13 de Novembro de 1552. Dois dias depois todos os navios portugueses se fizeram à vela; só ficou no porto o Santa-Cruz.