MOÇAMBIQUE - PENÍNSULA DAQUÉM DO GANGES

Abril 1541- Setembro 1545


I. A VIAGEM - ARRIBADA A MELINDE - CHEGA A GOA

A frota real ganhava o alto mar, e Francisco Xavier ia começar o seu novo apostolado. A equipagem da capitânia S. Diogo conta um milhar de passageiros compreendendo o pessoal militar. Xavier vai ser todo de todos para ganhar a todos. Interessando-se no assunto das conversações de cada um, fala da corte com os gentis-homens, da guerra com os militares, da ciência com os sábios, do comércio com os negociantes, e cativa a todos pela graça, amável benevolência das suas maneiras, e pela distinção nativa da sua pessoa, distinção que nunca perdeu.

O primeiro vício que o seu zelo combateu, em razão das suas perigosas e quase sempre inevitáveis conseqüências, foi o jogo. Propunha jogos inocentes, nos quais mostrava tomar grande interesse; assistia aos jogos sérios quando visse que não os Podia impedir, com o fim de evitar os excessos com a sua presença sempre respeitada; algumas vezes até se oferecia a tomar parte neles, a ponto de não poderem passar sem etc e sem a sua amável parceria. Catequizava todos os dias marinheiros, cuja afeição por ele era já tão dedicada e tão respeitosa que bastava uma palavra sua, ou mesmo um sinal, para terminar uma questão ou apaziguar a mais viva desordem entre eles.

Deu-se um dia um movimento extraordinário a bordo da capitânia. Acabava de morrer repentinamente uma criança de oito a dez anos, e todos se admiravam daquela morte tão rápida, procurando averiguar qual poderia ter sido a causa.

- Ele assistia ao catecismo com os outros? perguntou o Padre Francisco

- Não, meu Padre; não assistiu nem uma só vez, lhe responderam.

No mesmo instante se notou no semblante, sempre alegre e risonho do admirável Santo, uma impressão de tristeza que oprimiu todos os corações

- Pareceis experimentar uma viva aflição, por esta morte, meu caro Padre, disse-lhe o vice-rei; não foi devido a falta vossa que o menino deixou de receber a instrução que dáveis, aos outros.

- Se eu o tivesse sabido, respondeu tristemente o Santo, teria seguramente feito com que ele também a recebesse, senhor.

- Então não vos aflijais, meu Padre; não tínheis conhecimento disso, e portanto, não podeis ter remorsos.

- Recrimino-me pela falta de não ter sabido! Deveria ter procurado saber que uma das crianças embarcadas no mesmo navio que eu, não recebia instrução.

Este zelo do nosso Santo para com todas as almas que o cercavam, operou bem depressa uma maravilhosa transformação nos hábitos dos marinheiros.

Não se ouviam já juramentos, nem blasfêmias, nem injúrias; observava-se a caridade, as conveniências eram respeitadas, e desde o principal até ao mais pequeno toda a equipagem se achava aos pés de Xavier, que era querido como um pai, venerado como um Santo, admirado como um prodígio.

As instâncias do vice-rei para o fazer comer à sua mesa foram sempre inúteis; durante toda a viagem, não obstante a sua dignidade de Núncio, Francisco não se sustentava senão dos alimentos que mendigava pelos passageiros.

Tendo o escorbuto atacado a equipagem, nas costas da Guiné, a caridade de Xavier manifestou-se com um zelo, uma assiduidade, uma dedicação prodigiosa. Os passageiros aterrados pela moléstia não se atreviam a aproximar-se daqueles que se achavam acometidos porque receavam o contágio... O santo apóstolo não se lembrava de si nem um só momento; ia de um doente a outro, distribuía por cada um os cuidados mais urgentes, prestava a todos, e sem distinção, os serviços mais repugnantes com a maior delicadeza, e consolava todos os corações procurando salvar as suas almas.

Tantas fadigas e tantas vigílias alteraram a saúde de Xavier, produzindo-lhe frequentes vômitos e uma debilidade extrema, sem contudo diminuir o seu zelo e paralisar a sua dedicação.

O vice-rei mandou pôr à sua disposição uma câmara maior e mais arejada; o nosso Santo fez remover para ali os doentes de maior perigo e lhes cedeu até o seu leito; ele estendia-se sobre o solo nu, ou subia ao convés e, apoiando a cabeça nas enxárcias, só descansava alguns momentos que a natureza imperiosamente exigia.

Quando o tratamento dos doentes absorvia todo o seu tempo, D. Martinho de Sousa fazia-o servir da sua mesa. Francisco Xavier aceitava tudo ansiosamente, pela felicidade de poder oferecer aos seus queridos convalescentes alguns alimentos mais delicados e mais fortes do que aqueles que lhes davam, e dos quais reservava uma parte para si. Esta troca trazia uma grande consolação ao seu espírito de mortificação e de humildade.

A heróica dedicação do nosso Santo fez-lhe conquistar, da parte da tripularão e dos passageiros da S. Diogo, o cognome de Santo Padre, cognome que adoptaram para ele todos os portugueses das Índias, e que lhe ficou para sempre até mesmo entre os índios. O amável Padre Xavier aceitava com a sua humildade e afabilidade habituais este testemunho de afetuosa veneração, cuja glória dava a Deus.

Escrevendo à Companhia de Jesus em Roma, que chamava sua mãe muito amada, descreve a sua viagem de Lisboa a Goa, dá conta dos seus trabalhos apostólicos, mas deixa em silêncio os pormenores que acabamos de referir.

Goa, 20 de Setembro de 1542.

"Que a graça e a caridade de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam sempre conosco. Amen.

Durante a minha permanência em Lisboa, por mais duma vez vos noticiei, meus irmãos, a minha partida para as Índias com Paulo de Camerini e Francisco Maneias, e cumprindo os vossos desejos, da modo que me é possível, vou hoje participar-vos a nossa chegada e dar-vos notícia da nossa viagem.

Paramos de Lisboa, a 7 de Abril de 1541, e só a 6 de Maio do corrente ano, 1542, é que aqui chegámos [27].

Esta viagem, que é ordinariamente de seis meses, foi para nós de mais de um ano. Viemos embarcados no mesmo navio em que vinha o vice-rei, e só temos a louvar os cuidados e atenções que este nobre cavaleiro nos prodigalizou sempre. Quanto à nossa saúde, ela tem resistido admiravelmente a todas as fadigas da viagem.

Durante toda a travessia, ocupamo-nos em ouvir as confissões, tanto dos doentes como dos que tinham saúde, e pregávamos todos os domingos. Rendo graças a Deus por me ter dado ocasião de fazer ouvir a sua divina palavra sobre o vasto império das águas, de celebrar ali os divinos mistérios e de administrar os seus augustos sacramentos, que são tão úteis e necessários no mar como. em terra.

Forçados a arribar a Moçambique ali nos demorámos seis meses com as numerosas equipagens dos cinco grandes navios do rei.

Aquela ilha compreende duas cidades, uma pertencente aos portugueses, e outra aos sarracenos seus aliados. Durante a nossa permanência ali, as equipagens sofreram muito das variadas doenças de que foram atacadas, e perdemos com isto oitenta homens.

Nós dedicamo-nos constantemente aos hospitais; os Padres Paulo e Maneias, como enfermeiros, e eu como capelão, administrando socorros espirituais. Só, carro me achei, mal podia acudir a todos.

Aos domingos pregava o auditório era bastante numeroso, e o vice-rei assistia sempre. Além destas ocupações via-me obrigado a ouvir as confissões de muitas pessoas estranhas aos hospitais.

Eis, pois, coma nós passámos o nosso tempo em Moçambique, eis como aqueles seis meses foram empregados unicamente na glória de Deus e no bem do próximo".

Seja-nos permitido interromper aqui o nosso Santo para fazer notar uma das suas omissões tão habituais como voluntárias.

Diremos primeiramente que o vice-rei tomou a resolução de fazer invernar a armada em Moçambique por causa do escorbuto que assolava os outros ramos, depois de haver devastado o seu, e que esta resolução, a única a tomar-se na perigosa situação em que ele se via, era ainda de algum perigo para todos. Porém era difícil conservar-se no mar nas proximidades do equinócio e no estado de doença em que estavam os marinheiros, que dificultava o serviço das manobras, tornando-o quase impossível. Foi, pois, absolutamente necessário arribar, e não foi possível fazer-se senão em Moçambique, cujo clima é dos mais malsãos e muito perigoso em todo o tempo para os europeus por causa das águas estagnadas que ali produzem doenças mortais. Os conquistadores, desde que se apossaram daquelas terras, chamaram-na Sepultura dos portugueses.

O vice-rei ordenou que todos os doentes fossem transportados para os hospitais, e Francisco Xavier acompanhou-os com a maior solicitude, não se limitando aos cuidados espirituais como ele quer fazer crer.

Sabe-se que o escorbuto decompõe o sangue, corrompe-o e produz ordinariamente chagas que fazem afastar do doente aqueles que o deveriam socorrer.

O coração de Xavier, magnânimo por excelência, e que não recuava.em frente de perigo algum, correu para aquele que se lhe apresentava, coxas todo o heroísmo de que havia dado provas a bordo da nau São Diogo. Os mais repulsivos doentes eram os que ele preferia, porque neles 'encontrava ocasião de vencer a sua natureza profundamente impressionável, à vista de tais misérias corporais. Ali renovou ele muitas vezes, o que fizera em Veneza, recordando-se da seguinte máxima do Pai da sua alma:

"Não se adianta na virtude senão quando se tenha triunfado de si próprio. A ocasião de um grande sacrifício é uma coisa tão preciosa que se não deve nunca deixar escapar".

Xavier sabia dar tanto encanto aos delicados cuidados que prodigalizava aos doentes, que todos eles o queriam quando sentissem aumentar os seus sofrimentos

"Onde está o Santo Padre? Oh! se o Santo Padre aqui estivesse, diziam eles, nós sofreríamos menos! Só a sua presença nos faz tanto bem!"

E quando aparecia o Santo Padre todos o queriam ver ao mesmo tempo, porque todos asseguravam que quanto mais próximo ele estivesse menos sofriam:

"O mais agradável e o mais eficaz de todos os remédios, diziam eles, é a vista do semblante angélico do Santo Padre".

Para os satisfazer o mais possível andava o Santo Padre duma enfermaria à outra, durante o dia, e pernoitava numa cada noite, por turno, repousando somente por alguns momentos sobre o solo nu onde se estendia. Ao primeiro movimento de qualquer doente, ao primeiro grito de dor que de qualquer deles partisse, o Santo levantava-se imediatamente e corria para junto daquele que mais sofria.

Tantos trabalhos e tantas fadigas influíram bastante na saúde, naturalmente tão forte, do nosso Santo.

Uma violenta febre maligna obrigou a que o sangrassem sete vezes em alguns dias, e os delírios constantes que o acometiam deram sérios cuidados. ' Conservava-se no hospital donde o haviam querido afastar desde a invasão da epidemia, mas onde ele insistira em ficar, não obstante o ar infeccionado que ali se respirava, respondendo a todas as instâncias

"Fiz voto de pobreza, quero por isso viver e morrer entre os pobres, mas nem por isso sou menos reconhecido pelo interesse e cuidados que me prodigalizam".

Todas as vezes que Francisco Xavier recusasse o que lhe ofereciam, sabia juntar tal firmeza à sua humildade, que não se podia esperar vencê-lo.

Logo que o Santo se viu pouco melhor da doença, voltou às suas vigílias e fadigas, arrastando-se, difícil e penosamente dum a outro leito para consolar e animar, ao menos com a sua benevolente palavra, aqueles que não podia servir como de antes.

Um dia, no acesso da febre, viu que acabavam de conduzir para a enfermaria um marinheiro repentinamente atacado; não existiam leitos disponíveis, e por isso o haviam estendido sobre uma cama de palha, onde não tardaria a morrer. O apóstolo levanta-se, aproxima-se da cama do moribundo e quer falar-lhe da eternidade, cujas portas se iam abrir para ele. Naquele momento aparece o médico e aterrado pela idéia do perigo a que o nosso Santo se expõe, pede-lhe que desista da obra de salvação que intenta; mas vendo com pesar que ele o não atende, insiste, dizendo-lhe:

- "Permiti que vos observe, meu Padre, que ninguém aqui está mais perigosamente doente do que vós; deitai-vos, eu vos suplico! conservai-vos em repouso, ao menos até ao fim do acesso; nisto vai a vossa vida".

- "Obedecer-vos-ei pontualmente, caro doutor, eu vo-lo prometo, logo que tenha cumprido este dever imperioso do meu ministério; é uma alma a salvar, os momentos são preciosos e ele não tem um só a perder",

Desde logo fez Xavier transferir o moribundo, da cama em que se achava estendido e sem conhecimento, para o seu próprio leito; apenas o jovem marinheiro foi colocado. no leito do Santo Padre, recuperou os sentidos. Xavier, sempre heróico, deitou-se a seu lado, falou-lhe da sua alma e das misericórdias infinitas do Deus que o ia julgar; confessou-o chamou-o às disposições mais santas, e viu-o morrer com a consolação de o haver salvado.

Cumprido aquele dever, o Santo obedeceu como prometera, e deixou curar a sua febre sem repetir o que o médico julgava imprudente.

Achava-se ainda mal restabelecido quando o vice-rei, cuja saúde sofria com a demora de residência numa atmosfera viciada por tantas moléstias epidêmicas, resolveu prosseguir a sua viagem, e não querendo deixar ali ficar o Padre Xavier, pediu-lhe que o acompanhasse.

Ia pois fazer-se de novo à vela a nau São Diogo, que era a capitânia e que o vice-rei comandara até ali. Na presença de Xavier ordenou ele que a armassem para a partida.

- Senhor, lhe disse o santo apóstolo - que começava desde então a manifestar as vistas proféticas de que foi tão abundantemente favorecido ao depois - senhor, não embarqueis naquele navio! é, sim, o mais belo e o mais forte de entre todos da vossa frota, mas ele se perderá!

O vice-rei tinha tal confiança na santidade do Santo Padre, que não hesitou em embarcar na Coulão, e a deixar a São Diogo que pouco depois se despedaçou contra um rochedo à vista da ilha de Salsete.

Deixemos agora falar o nosso Santo

"Moçambique dista das Índias pròximamente novecentas léguas. Dispondo-se o vice-rei a prosseguir viagem, e tendo a estação das chuvas, deixado doentes de cama muitos homens das equipagens, desejou que algum dos nossos se deixasse ali ficar para tratar dos doentes, e a seu pedido ficaram em Moçambique Paulo e Mancias e eu o acompanhei para lhe administrar os socorros da religião, no caso que a sua doenças, se agravasse. Eis aí porque a minha chegada a este país precedeu muito a dos meus companheiros, que espero, dum dia para outro, pelos navios que atrás ficaram. Há cinco meses que cheguei a Goa, capital das Índias. É uma cidade admirável e digna de se ver [28], cuja população inteira é cristã.

Os franceses têm aqui uma comunidade numerosa. A catedral, que é magnífica [29], é servida por um considerável cabido; além desta possui mortas outras igrejas. Foi extrema a satisfação que experimentei em ver a cruz de Jesus Cristo assim implantada e glorificada sobre plagas tão longínquas, sobre o antigo solo da idolatria

A nossa viagem de Moçambique a Goa foi de dois meses. Arribámos por alguns dias em Melinde, cidade situada na costa e onde os negociantes portugueses têm uma feitoria.. Aqueles que ali morrem são sepultados em magníficos túmulos que se distinguem pelas cruzes que os guarnecem. Próximo da cidade vê-se uma alta e muito bela, de pedra doirada, que os portugueses ali levantaram. Não posso descrever-vos o prazer que senti quando vi aquele símbolo da nossa redenção colocado como um troféu em terras de Maomé!

O rei de Melinde veio a bordo cumprimentar o vice-rei, que o recebeu com atenções e afabilidade. Tendo ali morrido alguns homens da nossa equipagem, prestámos-lhes as honras fúnebres com todas as cerimônias usadas pela Igreja, o que produziu grande admiração entre os muçulmanos.

Um dos principais Sarracenos de Melinde perguntou-me um dia se os nossos templos era muito freqüentadas, se os cristãos são assíduos nos exercícios públicos da religião e se cumprem com zelo os seus preceitos, acrescentando que entre eles a fé se achava arrefecida há muito tempo; que de dezassete mesquitas que ali tinham, só existiam três e mesmo estas pouco freqüentadas; que esta indiferença religiosa o desconsolava e não podia descobrir a sua causa. Um tão grande mal, dizia ele, não pode vir senão dum espantoso crime por nós cometido.

E, depois de termos trocado algumas explicações mais, àquele respeito, acabei por lhe dizer que Deus, soberanamente fiel à sua promessa, não se pode agradar dos infiéis nem das suas orações, e que por isso não permite a propagação dum culto tão detestável a seus olhos.

O que eu só muito ligeiramente pude mostrar ao meu devoto muçulmano veio fazê-lo, duma maneira terminante, um Cachy, doutor na lei de Maomé, declarando-nos que se o Profeta não voltasse a visitá-los dentro de dois anos, ele renunciaria à sua religião. Além disto, notava-se que os infiéis, abandonados aos descaminhos duma vida criminosa, são atraídos aos tormentos do remorso e da desesperação, e que na sua infinita misericórdia, Deus permite sempre que aquele estado de sofrimentos interiores reverta em benefício da salvação de suas almas, fazendo-os voltar a si e a procurar a verdade.

Saindo de Melinde descobrimos em seguida Socotorá, ilha de cem mil passos de circunferência, pròximamente, e ali nos abastecemos de água. É um terreno seco, árido e estéril, que não produz senão tâmara, que aos habitantes serve de pão; os seus únicos recursos são as suas palmeiras e o seu gado, isto é, tâmaras, carne e leite.

Esta ilha está exposta a excessivos calores. Os seus habitantes são rudes e duma ignorância deplorável; não sabem ler nem escrever e nem se pode descobrir entre eles o menor vestígio de letras humanas. Gloriam-se de serem cristãos e o são, se o Cristianismo consiste em igrejas, cruzes e lâmpadas.

Cada bairro tem um diretor espiritual que faz as funções de cura, conquanto saiba tanto como os seus fregueses. Não possuindo nem um só livro, porque também não sabe ler, recita de cor algumas fórmulas de orações.

Quatro vezes ao dia, ao som duma matraca, como as que usamos na Quinta-Feira Santa, se dedicam aqueles pobres cristãos à igreja: à meia-noite, ao raiar da aurora, ao meio-dia e pela tarde ao pôr do sol. Os preceptores nem compreendem a língua da sua liturgia, que eu suponho ser siríaca. Eles têm uma profunda devoção por S. Tomé, que, dizem, foi seu pai na fé. Repetem moitas vezes, nas suas fórmulas, uma palavra que se assemelha à nossa Aleluia.

Os preceptores ou padres não administram nunca o batismo, cujo nome até ignoram. Eu administrei-o durante a minha permanência ali a um grande número de crianças com consentimento, e mesmo a pedido de seus pais, que corriam a apresentar-mas.

A liberalidade deste povo faz um grande contraste com a sua indigência, porque me ofereciam tudo quanto tinham, e vi-me forçado a aceitar-lhes algumas tâmaras para que não supusessem que desprezava o que me ofereciam com tanta franqueza e empenho.

Muito se empenharam e me suplicaram para que ficasse entre eles, prometendo-me que todos sem exceção receberiam o batismo. Movido por tantas instâncias, solicitei do vice-rei permissão para me deixar ali, onde faria uma abundante e já madura colheita. Mas por ser aquela ilha privada de guarnição portuguesa e exposta aos insultos dos maometanos, receou o vice-rei que numa das suas invasões me levassem e me retivessem em cativeiro. Recusou, pois, assegurando-me que bem depressa eu encontraria outros cristãos, igual necessidade de socorros e de instrução e aos quais ainda seria mais útil.

Assisti às vésperas recitadas pelos padres, que duravam uma hora inteira, repetindo o celebrante sempre as mesmas orações, enquanto incensava, de modo que a igreja se enchia de fumo. Eles têm duas Quaresmas no ano, durante as quais não comem senão tâmaras e hortaliça em muito pequena quantidade; prefeririam antes morrer do que infringir esta abstinência. E se algum de entre eles a infringisse ficava-lhe proibida a entrada na igreja.

Encontrei um dia, numa povoação, duas crianças cuja mãe era maometana. Ignorando eu a religião de seus pais, quis administrar-lhes o batismo, porém os pequenitos fugiram a correr para junto de sua mãe, gritando que eu pretendia batiza-los. A mãe veio imediatamente encher-me de injúrias, declarando que não consentiria nunca que seus filhos fossem cristãos.

Então os Socotorenses exclamam pelo seu lado, que ela tem razão, que os Sarracenos eram indignos de uma tal graça, e que se a pedissem, eles, Socotorenses, se oporiam em massa, e não consentiriam jamais que um maometano se fizesse cristão. Tal é, pois, o ódio daquele povo pelos Sarracenos.

Tornámos a fazer-nos à vela pelos fins de Fevereiro e aqui chegámos a 6 de Maio, como já disse. Dos cinco navios que havíamos deixado em Moçambique, e que dali largaram pelos meados do mês de Março, o mais considerável [30], e carregado de preciosas mercadorias, quebrou-se e perdeu-se, salvando-se tão somente a equipagem; os outros chegaram a salvamento.

Desde que estou em Goa habito o hospital desta cidade, onde administro os sacramentos aos doentes [31]. É tão grande o número de pessoas que solicitam os sacramentos, além dos doentes, que eu não poderia satisfazer a todos ainda mesmo que Deus me decuplicasse. Acabado o serviço do hospital, emprego o resto da manhã em confessar os habitantes da cidade.

Depois do meio-dia, visito os presos e trabalho por instruir aqueles pobres desgraçados, ensinando-os a acusar os seus pecados e chamando-os a uma confissão geral. Dali volto para perto do hospital, a uma igreja da invocação da Santíssima Virgem [32], onde doutrino as crianças que de ordinário excedem o número de trezentas. Ensino-lhes as orações usuais, o Credo e os Mandamentos. O arcebispo impôs a todas as outras igrejas a obrigação deste sistema de instrução, e isto tem feito convencer a todos da utilidade e da vantagem que dali se pode colher, e todos a uma voz o louvam.

Nos domingos e dias santificados celebro os santos mistérios no hospital dos leprosos que fica fora da cidade, numa povoação dos subúrbios; oiço ali as confissões e administro a comunhão aos que estão presentes. Não há um só naquele hospital que se não chegue aos sacramentos. Desde que fiz ouvir a palavra de Deus àqueles desgraçados leprosos, eles a aceitaram com avidez, e tenho tido a consolação de ser estimado por eles!

Naqueles mesmos dias, domingos e santificados, saindo do hospital dos leprosos, vou à igreja, de que vos falei, e ali prego aos indígenas; depois do meio-dia volto ali para lhes explicar o Símbolo dos Apóstolos, a Oração dominical, a Saudação angélica e o Decálogo. É tal a concorrência que ali aflui que a igreja mal pode conter tanta gente.

Parto brevemente, por ordem do vice-rei, para o Cabo Camarim, que dista daqui pròximamente sessenta e seis léguas[33]. Afiançam que aquele país promete uma rica colheita e eu confio que os meus trabalhos ali resultarão em glória de Deus. Levo comigo três indígenas, que, além da sua língua natural, sabem perfeitamente o português. Dois são diáconos c o terceiro ainda minorista. O vice-rei tencionara primeiramente mandar para ali os Padres Paulo e F. Maneias logo que aqui chegassem.

Que Deus me conceda o seu auxílio em abundância para fazer ali triunfar o seu santo nome e conseguir a sua infinita glória! Que por vossa intercessão Ele me perdoe todas as minhas iniquidades! Eu lho rogo ardentemente.

As fadigas duma tão grande viagem por mar, as do tribunal da penitência, onde eu carrego com os pecados de cada um enquanto gemo sob o peso dos meus, o contacto contínuo c habitual com os idólatras, em solo abrasado por um sol ardente, serão para mim consolações e delícias se eu souber afrontar tudo com o único fim de agradar a Deus; porque estou convencido que as almas que amarem e venerarem a cruz de Nosso Senhor, encontrarão a felicidade nos reveses, nas contrariedades e nas misérias da vida, e que para elas a ausência da cruz será a ausência da vida.

E na verdade, que morte poderá ser mais horrorosa do que a vida que se acha separada de Jesus Cristo? mormente quando se tenha gozado a felicidade de viver n'Ele e por Ele!

Ah! crede-me! não há cruz comparável à vida à mercê das suas próprias paixões, e não há felicidade que possa ser comparada à de morrer cada dia por sua própria vontade para se entregar inteiramente a Jesus Cristo.

Rogo-vos e suplico-vos, meus amados irmãos, que me dêem notícias em particular de cada um dos membros da nossa Companhia, por isso que não me fica esperança alguma de vos tornar a ver jamais, e de poder entreter relações convosco a não ser por escrito. Conquanto eu seja indigno dum tal favor, não mo recuseis! Lembrai-vos que foi Deus que vos tornou dignos de fortificar as minhas esperanças e de sustentar-me pelas vossas consolações.

Conjuro-vos, em nome de Jesus Cristo, que me prescrevais o sistema que devo seguir entre os maometanos e os pagãos, para junto dos quais sou enviado. Deus me falará pela vossa voz; ele me fará conhecer a maneira como o seu Evangelho deve ser anunciado àqueles pobres povos, e como devo trazê-los ao grêmio da Igreja. Pelas vossas cartas conhecerei as faltas que tiver cometido e me esforçarei por corrigir-me.

Confio inteiramente que Nosso Senhor Jesus Cristo lançará uma vista de misericórdia sobre as perfeições e súplicas da Igreja nossa mãe, assim como sobre os seus membros, dos quais fazeis parte, e que Ele se dignará servir-se de mim, tão mau servidor como sou, para propagar o Evangelho por sobre o solo da idolatria. Não duvido até, qualquer que seja a abjeção do instrumento que pretende empregar naquela obra tão importante, que dela resulte algum dia a vergonha daqueles que, tendo nascido para grandes coisas, se consomem nas pequenas.

Espero que a obra que empreendo será um poderoso incentivo para as mais tímidas almas, especialmente quando elas vejam e reconheçam que eu, pó e cinza, eu, o homem o mais abjeto, atesto como testemunha ocular, que aquela parte da vinha do Senhor se acha privada de obreiros apostólicos. Ah! praza a Deus que o zelo pela sua glória chame para aqui um grande número! Praza a Deus que eu possa consagrar-me inteiramente ao seu serviço e ser para sempre seu escravo!

Suplico à misericórdia infinita que nos dê parte na felicidade eterna para a qual nos criou, que aumente as nossas forças para trabalhar em seu serviço e que nos inspire sempre a mais perfeita conformidade à sua suprema vontade.

Queira Deus que gozeis todos de perfeita saúde!

Sou vosso inútil irmão em Jesus Cristo,

Francisco Xavier".

Julgámos não dever omitir nem uma só palavra desta carta em que a alma do nosso Santo se abre tão completamente. Vê-se ali até que ponto leva a sua abnegação e o esquecimento de si próprio, o ardor do seu zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas, assim como aquela brilhante sede de sofrimentos que lhe faz ver a ausência da vida na ausência da Cruz.

Vê-se mais que, para ele, o não sofrer era o mesmo que não se achar ligado a Jesus Cristo, e neste caso prefere a morte. Toda a sua vida, todos os seus trabalhos, todas as fadigas do seu nobre apostolado nas Índias serão a conseqüência dos admiráveis sentimentos que enriquecem a sua alma, e que ele exprime tão enèrgicamente nas páginas que se acabam de ler.