VI. OS DISCÍPULOS PELO MUNDO

Era necessário que Santo Inácio, na extensão e profundeza das suas vistas, julgasse muito necessária a severidade de que usava na admissão dos noviços à profissão; porque estava longe de poder satisfazer os pedidos, que de toda a parte lhe chegavam. Tinha chamado o Padre Laynez de Veneza, Afonso Salmeron estava de volta da sua missão na Irlanda, e ambos eram de muita utilidade ao nosso Santo. Mas, pouco depois, o Papa Paulo III pede dois teólogos da Companhia para assistirem, como legados seus, ao Concílio de Trento, e Inácio designa dois dos seus primeiros e tão queridos discípulos: os Padres Laynez e Salmeron, que os mais sábios teólogos de Roma costumavam consultar como mestres, apesar de serem ainda novos. O nosso Santo, temeroso pela humildade dos seus queridos discípulos vendo-os honrados com o titulo de teólogos do Papa, numa assembléia como a dum concilio ecumênico, julgou dever dar-lhes por escrito os seguintes conselhos, cujo desenvolvimento omitimos

"Assim como quando se trata com grande número de pessoas para o bem espiritual e a salvação das almas avança muito a glória de Deus; se Nosso Senhor nos é propicio, assim também, se não vigiamos por nós, e se Deus nos não ajuda, perdemos muito e podemos prejudicar aqueles com quem tratamos. Mas como, em virtude do gênero de vida a que nos dedicamos, não é permitido abster-nos destas relações, o fruto que dai resultará será tanto mais pronto, tanto mais seguro quanto melhor nos hajamos preparado e premunido antecipadamente, e fizermos uma regra de vida mais claramente traçada. É por isso que vos darei alguns conselhos, que podem ser úteis no Senhor, quer conservando-os tais quais são, quer reduzindo-os ou acrescentando-lhes outros semelhantes.

Desejo ardentemente, para falar em geral, que no exercício da nova missão, não percais nunca de vista três pontos principais:

1º. No Concílio a maior glória de Deus e o bem da Igreja universal;

2º. Fora do Concílio, a vossa antiga regra e o vosso método de ajudar as almas, fim que principalmente me propus atingir com a vossa partida.

3º. O cuidado particular da vossa alma, a fim de que não vos descuideis nem abandoneis a vós mesmos; mas, que ao contrário, vos esforceis, por uma aplicação é atenção assíduas, a tornardes-vos de dia para dia mais dignos da missão que vos foi confiada...".

Abriu o Concílio de Trento. O nosso Santo agradecia a Deus e orava ardentemente para que ele correspondesse às esperanças da Igreja, quando rebentou uma ruptura de relações do rei de Portugal com o Sumo Pontífice.

D. Miguel da Silva, muito tempo embaixador de Portugal em Roma, foi chamado pelo seu soberano, nomeado secretário de Estado e promovido ao bispado de Viseu. Pouco depois, o Cardeal Alexandre Farnese, seu parente e amigo, fê-lo elevar ao cardinalato. Não tendo sido consultado para isto o rei de Portugal e não querendo permitir que os seus súbditos fossem devedores a outrem, que não a ele, dos favores com que eram honrados, recusou ao Bispo de Viseu autorização para aceitar a púrpura romana. D. Miguel, atemorizado com este facto; partiu secretamente de Portugal e dirigiu-se a Roma, onde foi revestido publicamente das insígnias cardinalícias e recebeu as maiores honras. O rei D. João III, irritado com a fuga de D. Miguel e com o acolhimento que recebeu em Roma, seqüestrou as rendas do bispado de Viseu e proibiu a todos os portugueses que mantivessem relações com o Prelado. Ao mesmo tempo morria o Cardeal Contarini na sua legação de Espanha, e Paulo III enviara Miguel da Silva a substituí-lo junto de Carlos V, na qualidade de legado apostólico. D. João III queixou-se à corte de Roma. O Papa queixa-se a Santo Inácio e pergunta-lhe se ele está convencido de que o rei de Portugal é realmente o príncipe mais religioso da cristandade.

Esta divisão causou sensação na Europa. Santo Inácio, vendo com dor que ela podia comprometer os interesses da religião, empreendeu a pacificação dos espíritos. O negócio era difícil e delicado. Inácio devia grandes favores a D. João III, o mais zeloso protetor da Companhia; mas devia-os ainda maiores ao Sumo Pontífice. Para tratar este negócio segundo as vistas de Deus, pediu orações, jejuns, mortificações e santos sacrifícios aos seus discípulos; ele mesmo orou durante alguns dias, como costumava orar; depois propõe ao Papa dar o bispado de Viseu ao Cardeal Alexandre Farnese, com a condição deste dar os rendimentos ao Cardeal Silva. O Papa aprova a idéia e encarrega Inácio da negociação com o rei de Portugal. O nosso Santo escreve então a Simão Rodrigues, provincial em Portugal e muito estimado do soberano, e ordena-lhe que faça conhecer a sua carta ao rei. Esta admirável carta, modelo de sabedoria, de prudência, de delicadeza e de habilidade produziu o efeito desejado.

D. João III venerava profundamente Santo Inácio, considerava-o como inspirado do céu e tinha como um dever obrar em conformidade com os seus conselhos. Tinha o costume de dizer que a voz do Padre Inácio devia ser considerada como a do próprio Deus. Viu que Inácio era de opinião que o Papa não fizesse as primeiras negociações e esperasse as do rei; soube ao mesmo tempo, sem dúvida pelo Padre Rodrigues, o acordo proposto ao Papa pelo nosso Santo acerca das rendas do bispado de Viseu, e não hesitou mais em submeter-se. Mandou dizer ao Papa por Inácio de Loiola que consentia no que se fizesse em favor de D. Miguel da Silva e levantava o seqüestro às rendas do seu bispado. Em compensação, Paulo III concedeu alguns privilégios ao rei de Portugal, e a paz foi restabelecida, com grande consolação daquele que a tinha negociado com tanta delicadeza e habilidade.

Entretanto Inácio recebia as mais consoladoras noticias do Concilio. O Cardeal de Trento escolhera o Padre Cláudio Lejay para o seu conselho e consultava-o nas questões mais difíceis. O Padre Salmeron pronunciara, naquela imponente assembléia, um discurso em latim que mereceu unânimes aplausos não só pela ciência como pela eloqüência do jovem teólogo. O Padre Laynez excitava geral admiração todas as vezes que falava. Os legados do Papa haviam encarregado os três jesuítas de fazerem, duma parte, a coleção de todas as heresias antigas e modernas; de outra, a das passagens da Escritura, dos Padres da Igreja, dos concílios e dos doutores que podiam ser-lhes opostas.

O nosso Santo soube com muita alegria que os três Padres, depois de terem brilhado na assembléia, não se envergonhavam de pedir esmola nas ruas da cidade, não somente para eles, mas ainda para pobres soldados alemães, católicos, a quem os hereges tinham obrigado a abandonar o serviço e a pátria, pelo único motivo de quererem continuar fiéis à sua fé.

Os legados, vendo os três jesuítas muito pobremente vestidos, mandaram-lhes fazer sotainas novas; os religiosos vestiam-nas por deferência quando se dirigiam às sessões; mas quando saiam, despiam-nas e vestiam as outras. Davam conta ao seu Padre Geral de tudo o que faziam e contavam fazer e, pediam-lhe sempre os seus conselhos, que seguiam cegamente.

Tendo sido interrompida indefinidamente a sessão, Inácio de Loiola reclamou o Padre Laynez, do qual tinha necessidade em Roma, e a quem Florença, por outra parte, reclamava com empenho. Mas o Cardeal de Santa Cruz aduziu tão poderosos motivos para o deixar em Trento, que o nosso Santo teve que ceder.

Ao mesmo tempo, o Bispo de Trieste passava a melhor vida, e Fernando, rei dos Romanos, sob o poder do qual estava aquela diocese, depois da recusa do Padre Bobadilha, então em Ingolstadt, lançou as suas vistas para outro membro da Companhia de Jesus e pediu o Padre Cláudio Lejay, já conhecidos apreciado e venerado nos seus Estados. O Padre Lejay estava em Trento; o rei Fernando escreveu-lhe e exprimiu-lhe o desejo de que aceitasse a sé de Trieste, para a qual. acabava de o nomear. O humilde religioso ao ler essa carta. ficou como assombrado por um raio:

"As dignidades não podem convir aos membros da Companhia de Jesus; - respondeu logo a Fernando - a outras ordens é que se deve dirigir para encontrar Bispos; além de que um tal fardo seria muito superior às minhas forças".

Escreveu em seguida ao seu muito amado Padre Inácio, queixando-se-lhe com o terror e a simplicidade duma criança, mas com a humildade e desprendimento dum Santo. Pedia-lhe que procedesse energicamente junto do Papa, a fim de afastar este golpe da Companhia, e acrescentava:

"Declaro-lhe, meu reverendo Padre, que se a obediência me não detivesse em Trento, afastar-me-ia a toda a pressa e ocultar-me-ia de modo que fosse impossível encontrarem-me".

Os legados apostólicos enviam o Padre Lejay a Veneza. O rei Fernando, julgando-o tanto mais digno do episcopado quanto mais ele procura afastar-se dele, manda a Veneza o seu confessor, o Bispo de Laubach, e recomenda-lhe que empregue todos os esforços para convencer o Padre Lejay a aceitar o bispado de Trieste. O Bispo de Laubach fala a uma pedra: Lejay é inflexível. D. Fernando pede ao Papa que ordene a Lejay que aceite o bispado; o embaixador, Tiago Lasso, recebe ordens para tratar esta questão com toda a atividade. O Papa envia a Inácio a carta de D. Fernando; o nosso Santo corre a toda a pressa a casa do embaixador, que lhe faz conhecer as ordens do seu soberano, escritas por seu próprio punho, e lhe diz que, depois duma vontade tão energicamente expressa por um príncipe, não é possível responder com uma recusa. Inácio persiste na sua oposição. Tiago Lasso declara-lhe que não se encarrega de a comunicar ao rei. Inácio dirige-se ao Sumo Pontífice e exprime-lhe a sua grande dor. É expor a Companhia a perder a humildade, que deve fazer a sua força e a sua glória, - afirma o Santo abrir-lhe a porta às dignidades e às honras.

Mas Paulo III tinha decidido esta nomeação, havia prometido interpor a sua autoridade; pensava também que o Padre Lejay era tanto mais digno do episcopado, quanto mais o recusava com energia. Respondeu, pois, ao nosso santo:

"O coração dos reis está nas mãos do Senhor". Pensamos que o rei D. Fernando foi dirigido pelo Espírito de Deus neste negócio. Todavia consultaremos a vontade divina e convidamos-vos a fazer o mesmo".

Inácio retirou-se desconsolado com a disposição do Papa e procurou em seguida os Cardeais, que sabia serem dedicados à Companhia. O Cardeal Carpi escreveu a D. Fernando e nada conseguiu; mas Inácio de Loiola não desanimou. Sempre enérgico por natureza, sempre inflexível em tudo o que tocava à glória de Deus ou ao espírito da Companhia, cujo único fim era o aumento desta glória, o nosso Santo não podia dar-se por vencido diante de todas estas dificuldades. Margarida de Áustria tinha-se posto sob a sua direção, depois da morte do Padre Codure; recorre à sua intervenção, diz-lhe que vai escrever ao rei D. Fernando e pede-lhe que obtenha do Papa que a nomeação do Padre Lejay fique suspensa até que D. Fernando lhe responda. 0 -Papa concede a demora pedida pelo príncipe, e Inácio escreve ao rei:

"Conhecemos, grande Príncipe, o afeto de Vossa Alteza à nossa Companhia, e o zelo que anima Vossa Alteza pela salvação dos povos confiados à sua guarda. Damos graças a Deus por isso e suplicamos à Bondade divina que inspire a Vossa Alteza os meios de realizar com êxito tudo o que a piedade de Vossa Alteza lhe faça empreender. Mas, ousamos dizê-lo, o maior benefício, o maior favor com que a bondade de Vossa Alteza nos pode honrar, é ajudar-nos a caminhar com fidelidade e sinceridade nas vias da nossa vocação. Estamos persuadidos de que as honras e dignidades lhe são opostas; afirmamos até, e é nossa profunda convicção, que nada há mais eficaz para alterar e destruir o espírito do nosso Instituto do que forçar-nos a aceitar bispados. Aqueles que formaram esta Companhia tiveram por fim ir a todos os cantos do mundo ao primeiro sinal do Sumo Pontífice. O espírito da nossa Companhia é ir, com toda a humildade e simplicidade, duma cidade a outra, duma província a outra trabalhando na santificação das almas para maior glória de Deus, mas não limitando os seus trabalhos a um só país. A Sé apostólica confirmou este ponto das nossas regras; Deus tem provado que lhe era agradável com o aumento de piedade resultante dos trabalhos de alguns dos nossos, trabalhos que aprouve à bondade e à clemência infinitas abençoar e fecundar. Ora as sociedades religiosas não podem viver senão pela manutenção do seu primitivo espírito, que é a sua alma. Se o nosso for conservado, a Companhia viverá; se o perdermos, breve será destruída. Fácil é imaginar o flagelo que pesaria sobre nós, se se nos impusesse a aceitação de bispados. Somos apenas nove professos e já foram propostas sés episcopais, a quatro ou cinco as quais todos tem energicamente recusado: se um só aceitasse os outros julgariam ser-lhes lícito imitá-lo, e esta Companhia não somente degeneraria do seu primitivo espirito mas não tardaria a dissolver-se por causa da dispersão dos seus membros. Esta Ordem, a menor de todas, tem já feito bem pelo exemplo da santa humildade e da pobreza. Se os povos nos vissem entrar nas honras e nas riquezas, a alta opinião, que têm de nós, mudar-se-ia em opinião contrária, e, com grande escândalo de muitos, o caminho da santificação das almas fechar-se-ia para nós.

É inútil acumular razões. Imploramos a clemência e a sabedoria de Vossa Alteza; pomo-nos com confiança sob a sua proteção, e, como estamos certíssimos de que Vossa Alteza não quer a ruína da nossa Sociedade, pedimos, exoramos a Vossa Alteza, pelo sangue de Jesus Cristo, que siga a inspiração da sua consciência e o impulso da sua bondade, preservando-nos de tal perigo, e considerando como seu este pequeno rebanho que acaba de nascer, suplicando-lhe que o conserve para glória da eterna Majestade.

Faço votos porque Vossa piedosa Alteza seja para sempre adornado e cumulado de todos os dons e de todas as graças celestes."

D. Fernando não pôde resistir ao pedido do santo fundador; o seu embaixador recebeu ordem de desistir; o Papa, não tendo motivo para constranger Inácio, não insistiu mais, e o nosso Santo, satisfeitíssimo com este resultado fez cantar um Te Deum e pediu missas de acção de graças a toda a Companhia.

Era muito favorável a ocasião para a deixar perder. Inácio de Loiola não deixava escapar nenhuma, e aproveitou esta para tratar com o Sumo Pontífice uma questão que, para ele era a vida ou a morte da sua querida Companhia. Procurou Paulo III, e, depois de lhe agradecer o ter suspendido a sua decisão suprema até à resposta de D. Fernando, acrescentou:

- A nossa pequena Sociedade é apenas composta de duzentos membros aproximadamente e de nove professos. Se lhe tiram os seus homens de méritos, em que se tornará ela? A elevação dum só prejudica a todos: introduziria o espirito de ambição, que é o mais oposto ao ela Companhia. Estou longe de censurar as Ordens religiosas que aceitam as dignidades e desempenham os cargos para edificação das almas e glória de Deus; mas a nossa pequena Companhia difere dessas Ordens, que pela sua antiguidade, adquiriram a força necessária para poderem arcar com tão pesados fardos. A nossa acaba de nascer e está muito fraca... Santíssimo Padre, considero as antigas Ordens religiosas, na Igreja militante, como esquadrões de soldados destinados a permanecer no posto que lhes foi destinado, conservando a sua posição, fazendo face ao inimigo, sempre em ordem de batalha, não tendo outra maneira de combater, porque é assim o corpo de que fazem parte e todo o exército deve ter corpos deste gênero. Mas nós somos um corpo de cavalaria ligeira, sempre prontos ao tempo de alarme, vigiando as surpresas atacando, ou defendendo segundo as circunstâncias, e, como esquadrões volantes, fazemos fogo de todos os lados e escaramuçamos sempre.

O Papa compreendeu as razões do santo fundador e aprovou-as em todos os pontos.