V. CONVERSÃO DE XAVIER - DE QUE SERVE AO HOMEM...

Estavam as coisas neste pé, no dia em que Miguel, obrigado por falta de dinheiro, o viera pedir ao jovem professor no colégio de Beauvais; e nós sabemos que Xavier, depois de lhe ter dado algumas moedas para as primeiras necessidades, lhe pedira que voltasse na manhã seguinte.

Na tarde daquele dia, Francisco acabava de interromper o seu trabalho, ao qual não se tinha podido dedicar com o seu habitual zelo, quando sentiu abrir-se levemente a porta do seu quarto para dar passagem a D. Ínigo; este ruído, ainda que fraco, fê-lo estremecer como se respondesse secretamente aos íntimos pensamentos que o preocupavam.

Aproximando-se de Xavier, D. Ínigo estendeu-lhe a mão mostrando envolvê-lo num olhar o mais terno e paternal. Xavier dissimulando do melhor modo que pôde a sensação que lhe causava aquele olhar, apressou-se em dizer ao seu amigo

- Tendes-me dado tantas provas de amizade, meu caro senhor, que não hesito em pedir-vos uma nova. Quereis prestar-me um serviço?

- Da melhor vontade, meu amigo; tudo quanto eu possa fazer por vós, fá-lo-ei com o maior prazer; falai, caro Francisco.

- Tivestes a bondade de me emprestar dinheiro a última vez que me faltou pela demora do mensageiro encarregado de receber a minha mesada [14]; acho-me hoje nas mesmas circunstâncias, e se pudésseis emprestar-mo de novo, muito grato me deixaríeis.

- Sabeis que eu estou sempre à vossa disposição, e muito vos agradeço a confiança que me dispensais, D. Francisco.

- Um amigo meu pediu-me que o tirasse dum pequeno embaraço pecuniário, e eu, não o podendo servir neste momento, lembrei-me de recorrer a vós, certo de que me obsequiaríeis.

- Certamente e de todo o coração; vós é que muito me obsequiais dando-me ocasião de vos ser útil, crede-o.

Francisco dirigiu ao seu amigo um olhar indecifrável para qualquer outro que não fosse aquele a quem era dirigido. Ínigo compreendeu-o e procurou aproveitar o momento que a divina Providência parecia proporcionar-lhe para penetrar na alma que se mostrava, enfim, disposta a abrir-se.

- D. Francisco, disse-lhe ele muito comovido, o vosso coração é muito bom... em extremo sensível!.., Oh! meu amigo! sim! ele é muito nobre, muito grande, muito generoso para se prender à terra! Não foi feito para este mundo! As vossas próprias reflexões vo-lo terão feito sentir, porque vos acho menos alegre que de ordinário, há já algum tempo, e hoje especialmente pareceis-me triste e preocupado; estou convencido, pois, que alguma coisa vos atormenta interiormente...

- O que me atormenta, respondeu Xavier, não é tanto o vosso Quid prodest!... É a necessidade de vos dizer que sinto e me arrependo de vos ter conhecido e apreciado tão tarde, manifestando, tantas vezes, que as vossas palavras me eram desagradáveis. Horroriza-me esta injustiça, sinto que tenho sido mais que injusto aos vossos olhos e o meu coração mo recrimina; eis, pois, tudo. Quanto às minhas idéias do futuro, não as posso sacrificar. Reconheço a vossa bondade, a generosidade do vosso coração e todas as mais qualidades que vos adornam e que eu admiro e respeito; maravilham-me, sobremodo, as vossas virtudes e a vossa perfeição, mas não me julgo destinado e digno de imitá-las, não me sinto com vocação para renunciar aos meus empreendimentos presentes e àqueles que espero para o futuro.

- Mas, caro Francisco, vós obrigais-me a opor-vos ainda o Quid prodest da vossa embirração: "De que serve ao homem ganhar o universo se ele vier a perder a sua alma?"

"A vossa ambição é nobre, eu não o contesto; mas a que se dirige para o Céu, para a eternidade, não o é ainda mais? E se visais a um fim que reconheceis ser menos belo, menos nobre, menos duradouro, é isto digno duma alma como a vossa? Se não existe outra vida mais que a deste mundo, a razão está por vós; porém, se a vida deste mundo é curta e a do outro eterna, é loucura não trabalhar senão pela glória fugitiva da terra e perder assim a da eternidade..."

"Francisco, podeis dizer-me em que se tornaram os ricos, os poderosos, os felizes desta vida que morreram há algum tempo? Viveram de ambições, conquistaram fortunas, honras, e os louvores dos homens; conseguiram o seu fim, obtiveram tudo que ambicionavam e de tudo gozaram..., Mas o que lhes resta agora, depois da morte, de tudo que desfrutaram na terra? O que encontraram de tudo isto às portas da eternidade?"

"Ah! sim, meu amigo! tornarei a dizer-vos ainda, e vós reflectireis mais sèriamente: De que serve ao homem ganhar o universo, se vier a perder a sua alma?"

- Eu posso amar a ciência, posso ser sensível à glória que reina em torno dela, sem contudo condenar-me por isso.

- Tendes a certeza do que dizeis? Não. Sabeis, ao contrário, que Deus vos pede que façais por Ele todo o sacrifício desde já, e nada mais sabeis. Não exponhais, pois, a saúde da vossa alma num talvez!

- Sacrificar tudo! encerrar-se o homem num pequeno círculo de idéias estreitas...

- Estreitas! Elas abraçam todos os séculos passados e por vir, a eternidade inteira, e vós as achais mais estreitas do que as vossas, que se limitam a esta vida e não abraçam senão alguns anos?

- Eu não posso deixar de dizer-vos que acho algum tanto baixas as vossas idéias de perfeição, quando vejo que elas vos levam a estender a mão à caridade, andar mal trajado e a suportar toda a sorte de injúrias... Oh! não! nunca poderei partilhar essas idéias!

- Achais baixo aquilo que eleva e engrandece a alma! Chamais vil o que a aproxima de Deus! Não ignorais, de certo, que ela se eleva e se aproxima d'Ele em proporção e à semelhança de Nosso Senhor, pela prática das virtudes, cujo exemplo nos deu durante a sua vida mortal...

"Francisco, vós sois dotado duma razão bastante clara e dum grandioso coração para deixardes de compreender tudo isto."

"Prossigamos, meu amigo; eu conheço quanto é esclarecido o vosso espírito, e quanto é bom e leal o vosso coração e o vosso caráter; muito bem! dizei-me agora o que achais mais racional e mais proveitoso; sacrificar agora aquilo que prezais para ter segura a felicidade eterna, ou gozar hoje desses bens pelo preço duma pena eterna?"

"Respondei".

Falando-lhe deste modo, D. Ínigo aproximou-se do seu jovem amigo e tomou-lhe a mão que sentiu estremecer entre as suas, adivinhando a luta que se travava naquele coração tão ardente de 27 anos. Francisco não respondeu.

- O vosso silêncio responde por vós, lhe disse migo; fiquemos nisto, e eu me convenço de que vós mesmo me direis amanhã: "De que serve ao homem ganhar o universo se vier a perder a sua alma?"

- Não aguardarei para amanhã, respondeu-lhe Francisco com voz comovida; confesso-me vencido... Porém não posso sacrificar tudo como entendeis! É impossível!

- Compreendo que acheis impossível, por esta tarde, porém uma natureza como a vossa, não pode reconhecer a verdade sem se render e sacrificar por ela com a mais completa e cega submissão.

Francisco não replicou. Ínigo levantou-sé, deu alguns passos pelo quarto, e depois, parando, ficou a contemplar o seu jovem amigo que parecia absorvido nas suas reflexões; não tardou, porém, muito que os seus olhares se encontrassem. Francisco tinha os olhos cheios de lágrimas. D. Ínigo aproximou-se então dele e abriu-Lhe os braços, aos quais Xavier se deixou atrair, entregando-se completamente comovido...

O homem do mundo, que pouco antes se confessara vencido, rendia-se agora de todo. O amigo estreitou-o ao seu coração com o semblante radiante de inexprimível satisfação! Podia, finalmente, entregar a Deus e entregar-lhe toda inteira aquela formosa alma que conhecia ser predestinada a coisas mui grandes, e que pelos desígnios da Providência, devia ir, mais tarde, fundar o reino de Jesus Cristo no meio das nações bárbaras, fazendo reviver entre aqueles povos a luz já consumida e que, outrora irradiara à voz dos primeiros apóstolos.

Francisco estava de todo convertido; sentia intimamente que Deus o queria e o chamava para si... mas ele tinha tanto a sacrificar que pediu ainda alguns dias para reflectir. D. Ínigo contava, com toda confiança, na retidão e sinceridade do seu amigo para não duvidar um instante sequer do resultado das suas reflexões na disposição em que o via.

- Tornaremos a falar, lhe disse ele, quando vos aprouver. Sim, meu amigo; disponde do tempo necessário, reflexionai perante Deus, e segui depois a sua divina inspiração.