|
Foi o Padre José mui exemplar em todas estas virtudes, assim nos encontros pesados que lhe
sucederam, como nas doenças que foram muitas e graves, em especial depois que, com a idade,
as forças o desampararam.
Neste Colégio da Bahia, em um dia de purga, lhe deu o enfermeiro um pedaço de galinha
cozida, com abóbora amargosa. Comia o enfermo mas muito devagar; rogou-lhe o irmão que
comesse; o padre disse que o faria por lhe dar gosto, bebeu o caldo e comeu da carne, e depois
lhe perguntou se tinha outro enfermo a quem houvesse de dar daquele caldo, e dizendo que não,
calou-se o padre. Dali a pouco caiu o irmão no erro que ele passara, e disse:
“Padre, perdoe-me V. R. que o matei”.
Acudiu o padre rindo:
“Não matastes, irmão, mas antes quis Deus com isto dar saúde, por meio de gostar também a
amargura do seu fel e vinagre, que ele gostou por nós, sem se queixar”.
Era manso seu falar e seu rosto sempre sereno, e nunca alterado com mostras de alegria ou
tristeza, por alegres ou tristes que fossem as coisas, que a ele ou a outrem sucediam. Aos que lhe
davam ocasião de alguma moléstia e sentimento, se mostrava tão benigno como se nada lhe
fizeram, e tinha particular cuidado de os encomendar a Deus. E falando-lhe um dia em uma pessoa
que lhe tinha dado um grande desgosto, respondeu: “mais pecou contra Deus que contra mim, e
pois Deus o sofre, bem é que o sofra eu também, por amor de Deus”.
Não sofria, em sua presença, tocasse alguém faltas de ausentes, e ou atalhava a prática ou a
ouvia como quem não estivera ali. A todos trabalhava consolar e meter em paz, e até os índios que
vinham Ter com ele, tristes e afligidos, confessavam que iam de sua presença alegres e
consolados.
Na vila da Vitória, Capitania do Espírito Santo, queria certo homem edificar umas casas, com
que impedia a vista às nossas; foi-lhe o padre à mão com alguma eficácia. Depois, parecendo-lhe
que se excedera no modo, disse a um da casa: “pesa-me de escandalizar a fulano, mas eu lh’o
pagarei.” A paga foi que, não costumando aquele homem confessar-se com os nossos padres, daí
a poucos dias se veio confessar geralmente de toda sua vida, com o mesmo padre com muita
consolação de ambos.
DE SUA GRANDE HUMILDADE
Era muito humilde e grande desprezador de si mesmo assim no tratamento de sua pessoa,
como nas coisas dignas de admiração, que Deus por ele obrava. E estando dotado de tantas
partes, que mereciam louvor, de nenhuma delas o pretendia, antes por mais que suas virtudes o
manifestavam, ele as encobria de maneira que não eram notadas, senão de pessoas que tinham já
dele muito conceito, o que se viu em palavras que disse de coisas futuras, e de pessoas ausentes
em muita distância, das quais se não fazia caso senão quando o tempo com o efeito as declarava.
E posto que, por esta causa, se nos ocultaram muitas coisas e muitas profecias, contudo as que
sabemos bastam para ilustrarem as muitas virtudes do padre José, e para nossa edificação.
Quando o mandavam os padres chamar para assistir aos batismos e casamentos dos gentios
sempre tomava à sua conta o mais trabalhoso da festa, convém a saber: o ensinar e catequizar aos
que haviam de batizar e casar, e o mais honroso deixava aos padres das aldeias.
Estando o Padre José um dia praticando com alguns padres e irmãos no Rio de Janeiro,
vieram a falar como se havia um de aquietar no ofício e grau, em que a Companhia o pusesse, se
se queria conservar na paz e quietação de sua alma. E o exemplo, com que isto confirmou, foi
consigo mesmo, dizendo que nunca tivera olho ao que podia ser ao diante. E assim, sendo irmão,
nunca lhe viera à memória que pudesse ser sacerdote e que, quando se não precatou, se viu com
as ordens. E sendo sacerdote, nunca lhe viera ao pensamento que podia ser professo ou superior,
nem em si achava parte para isto; senão quando, se viu provincial.
Tanta era a sua humildade que nunca teve para si que podia ser promovido a algum grau. Este
caso me contou o irmão Mateus de Aguiar, que era um dos que estavam naquela prática.
CONFIANÇA EM DEUS
Da desconfiança de si mesmo e da humildade, é mui certa e fiel companheira a confiança em
Deus; esta virtude tinha mui altas raízes no coração do padre, porque tinha experimentado que o
livrara Nosso Senhor de mui evidentes perigos, por meios não esperados, e lhe acudia nas
necessidades e negócios árduos, quando já todo remédio humano falhava, pelo que, com muita
seguridade de ânimo, aguardava o combate dos trabalhos, e tomava nesta rodela seus golpes,
como se viu no seu naufrágio e voluntário cativeiro, para concluir as pazes com o gentio contrário,
de que se falou no Livro primeiro, cap. 8 e 12.
Outro caso referirei, ainda que em matéria mais leve. Sendo superior na casa de São Vicente,
sucedeu não haver um dia na casa que comer, mais que laranjas e farinha de guerra. Deu conta
disso, o refeitoreiro ao padre, o qual lhe respondeu: “tende fé e tangei à mesa a seu tempo”.
Acabado o exame da consciência que se costuma fazer na Companhia, um quarto antes de comer,
tornou o irmão ter com o Padre José, que estava de joelhos na sacristia, dizendo: “é chegada a
hora e não temos nada”. Respondeu o padre que tangesse a seu tempo. Assim o fez e foram todos
à mesa.
E começando de se ler a lição da mesa, tocam à portaria, acode o irmão porteiro (que era o
Padre Agostinho de Matos, que este caso referiu no seu testemunho), acha um cesto com comida
preparada, e quente, que logo se repartiu pela mesa, dando todos muitas graças a Deus, atribuindo
às orações do padre. Mandou esta esmola José Adorno, senhor de um engenho de açúcar e
principal benfeitor daquela casa, que morava dali uma légua, mas não costumava fazer aquelas
caridades de ordinário.
Também foi ato de confiança em Deus, quando na casa de São Paulo, vendo que a um
homem, criado da casa, levavam a rastro uns novilhos, que andava amansando, se atravessou
diante deles, só com bordão que tinha na mão, e os fez parar, e livrou ao homem do perigo
evidente com admiração dos presentes e clara prova do favor de Deus, com que quis mostrar a fé
de seu servo.
Em suas doenças era muito sofrido, por não dar pena aos outros; de noite passava suas dores
o melhor que podia. E assim disse dele um irmão, que, sendo enfermeiro muitos anos, nunca tivera
enfermo mais paciente, nem de maior obediência que o padre, ainda sendo Provincial. Quando, por
sua devoção, pedia ao Superior penitência por falta de guardar as regras, como temos de costume,
de joelhos a pedia.
|
|