IV. NAS ILHAS DE MORO - VOLTA A TERNATE E A MALACA

A viagem foi curta e feliz, o mar bonançoso e calmo; jamais viagem alguma foi tão fácil, e tão isenta de perigos. Num momento de êxtase, Xavier soltou um grito de dor que atraiu a atenção de toda a equipagem. Tinham-no deixado em oração; correram para junto dele, ouviram-lhe distintamente pronunciai:

"Senhor, Jesus!... Matam aquela pobre gente!"

E o seu olhar, fixo sobre um ponto do mar, permanecia imóvel

- Que é isso, Padre Francisco? o que vedes? a quem matam? perguntou-lhe um dos seus amigos.

O Santo continua em êxtase, nada ouve, nada responde, o seu olhar conserva-se fixo no mesmo ponto, parecia que um raio celeste se soltara.

Os seus amigos depois de o terem contemplado com admiração por alguns instantes, deixaram-no de novo e retiraram-se penetrados do maior respeito e veneração.

Quando o santo Padre saiu da sua contemplação e voltou a terra, dirigiram-lhe novas perguntas sobre o grito aflitivo e as palavras estranhas que lhe tinham escapado. A sua humildade confunde-se, não responde e faz desviar a conversação com a graça e encanto tão conhecido nele. Porém logo que chegaram a uma das ilhas de Moro, viram oito cadáveres de portugueses vertendo ainda sangue!... os naturais da ilha acabavam de os assassinar e tinham abandonado os seus corpos na praia! Deram-lhes sepultura coxas a convicção de que era aquela "a pobre gente" que o santo Padre vira matar.

Cumprido aquele dever, Xavier, acompanhado dos seus amigos, dirigiu-se com todo o ânimo para a primeira aldeia. À vista dos europeus, os naturais fogem, persuadidos de que vinham pedir-lhes contas do sangue português que acabavam de derramar.

O santo apóstolo encontra um meio de os reter: com sua meiga voz canta a doutrina cristã. A voz de Xavier era sã, harmoniosa, simpática como uma voz angélica. Os insulanos detém-se, escutam-no e voltam para aquele que encanta os seus ouvidos e faz vibrar nos seus corações uma corda até ali desconhecida.

Dirigindo os olhos admirados para o celestial semblante de Xavier, encontram o seu olhar atrativo , e magnético, ao qual bem poucos índios resistiam, e vieram para ele atraídos irresistivelmente. Avançando para os selvagens, o amável Santo estende-lhes os braços; acolhe-os, transmite-lhes o desejo que experimentava há muito tempo de vir trazer-lhes a felicidade da vida presente e a da vida futura... E é atendido, é acolhido, é amado!

"Estas ilhas, disse ele, não se chamarão daqui em diante ilhas de Moro; mas sim da divina Esperança!"

E não se enganava; teve um resultado prodigioso em todo o país, chamado então a Morica Sofreu grandes privações entre aqueles selvagens; foi até mesmo perseguido pelo ódio de alguns, mas a docilidade da maior parte, a felicidade de haver vencido aqueles povos, de quem pessoa alguma se atrevia a aproximar, e de ter estabelecido naquele país tão temido, o império da Cruz, o reino de Jesus Cristo, eram para o coração apostólico do nosso Santo mananciais de consolações que mal podia exprimir: Assim escrevia a seus irmãos

"...Todos os perigos a que a gente se expõe aqui, todas as privações e incomodidades que se experimentam pela glória de Nosso Senhor Jesus Cristo, são outros tantos tesouros donde dimanam imensas consolações.

As lágrimas que aqui se derramam são tão deliciosas, que não me recordo de haver experimentado alegrias interiores que lhes sejam comparáveis! Nunca suportei com tamanha facilidade os trabalhos que me impus; jamais me lancei aos perigos com tanta intrepidez!

E contudo, eu estava cercado, desde o primeiro dia, de inimigos de natureza feroz, em ilhas desprovidas de todos os meios habituais da vida, e que não oferecem recursos nem no estado de saúde, nem no estado de doença. O verdadeiro nome daquelas ilhas deve ser daqui para o futuro o da divina Esperança.

Encontra-se ali uma raça de selvagens chamada Javares, que julga e crê adquirir a imortalidade matando os cristãos que encontram. A falta de sangue estrangeiro derramam ode suas mulheres e filhos; mas procuram, sobretudo, o sangue cristão.

Uma daquelas ilhas é constantemente agitada por tremores de terra; umas vezes é envolvida por nuvens de cinza e de fumo lançada pelos vulcões, outras vezes é alumiada por chamas vomitadas por esses abismos aterradores.

Os insulanos estão convencidos de que a sua ilha é uma imensa fornalha que consome o próprio rochedo sobre o qual a povoação esta estabelecida. Isto parece verosímil, porque nas frequentes explosões daqueles vulcões, se vêem enormes massas de rochedos lançados pelos ares a uma altura prodigiosa, e nas ocasiões dos temporais, as suas cavernas expelem para as planuras tamanha quantidade de cinza incandescente, que os lavradores dos campos ficam desfigurados ...

...Em dia de São Miguel, durante a minha missa, houve ali um tremor de terra tão violento que julguei ver o altar de todo voltado. Veio-me então ao-pensamento que se travava um combate entre este valoroso arcanjo e os demônios daquelas ilhas que ele expulsava dos seus terríveis esconderijos...".

Os insulanos que assistiam ao santo sacrifício, fugiram precipitadamente, temendo serem vítimas se se conservassem ali até ao fim; o seu santo apóstolo ficou só no altar, e concluiu a missa.

Em três meses o heróico Xavier, que os Moroenses olhavam como um ser sobrenatural, fizera para Deus a difícil conquista daquele grupo de ilhas, apesar dos meios empregados por alguns rebeldes para lhe obstar e destruir os resultados da sua empresa. Tentaram até tirar-lhe a vida; mas a Providência o salvou sempre das traições que lhe armava o inferno.

Perseguido um dia por alguns selvagens, o Santo vê-se detido por um largo rio; descobre próximo de si uma, longa vara, lança-a através do rio, aventura-se sobre aquela fraca ponte, confiado na proteção divina, e salva-se.

Chegara o momento de deixar os Moroenses. Recomendou-lhes as suas instruções, e voltou a Ternate onde foi recebido com demonstrações da mais notável alegria.

Desde a manhã seguinte o seu confessionário via-se tão concorrido e com tanto empenho, como o havia sido antes da sua partida; não lhe deixavam nem um só instante de descanso.

Feliz pelas disposições dos seus queridos Ternatenses, o santo apóstolo, que não aspirava senão pelo descanso da eternidade, prestou-se gostosamente aos desejos de cada um, e voltou aos seus trabalhos habituais.

Todos os habitantes de Ternate, sem exceção, se chegaram aos sacramentos com a mais fervorosa devoção. Depois de lhes ter concedido três meses, separou-se deles o grande Xavier para voltar a Malaca e dali para o cabo Comorim a fim de tornar a ver os seus estremecidos Paravás, seus primeiros filhos da Índia. Desejava também fazer uma viagem a Goa para os interesses da Companhia de Jesus nas Índias, porque ela começava a progredir de modo que dava as mais belas esperanças.

Esta segunda ausência de Ternate dilacerou o coração de Xavier; assim se exprime escrevendo a seus Irmãos da Companhia

"...Com o fim de me subtrair aos choros e aos lamentos dos meus presados neófitos, quis aproveitar-me do silêncio e da obscuridade da noite para o embarque. Não o pude, porém, conseguir porque o meu projecto foi descoberto, comunicado em segredo, e no próprio momento me vi cercado por todos os filhos que eu havia criado para, Jesus Cristo!

Confesso a minha fraqueza, pois que me encheu o coração de enternecimento e dor a vista aquele rebanho que com a minha ausência ficava exposto a ser presa do inferno! Pedi-lhes que se reunissem numa igreja que ali recitassem e cantassem o catecismo, do mesmo modo que faziam em minha presença, e que o decorassem. Um Padre muito apreciado e meu sincero amigo consolou-nos prometendo-nos encarregar-se da direção daqueles exercícios de piedade como eu os havia estabelecido...".

Que sensibilidade naquele coração de apóstolo, e que enternecimento, doçura e encanto na maneira franca e sincera como aquele grande e magnífico conquistador de almas exprime o bem que produziu, e a promessa do Padre que o devia substituir: "ele consolou-nos". A sua humildade não lhe permite supor que os seus queridos neófitos sentissem tanto a falta da sua pessoa quando um outro lhes prodigalizasse os mesmos cuidados; parecia ignorar o poder que Deus lhe dera!

Levava o nosso Santo para o colégio de Goa trinta jovens índios para ali serem educados e instruídos com o fim de entreterem e conservarem a fé nas Molucas quando voltassem.

No momento em que o navio que conduzia o apóstolo venerado levantou ferro, um grito de consternação se elevou da praia e retiniu até ao fundo do coração tão sensível e amável de Xavier; novas lágrimas se escaparam dos seus olhos, retirou-se, entregou-se à oração e ofereceu a Deus a sua dor e os seus votos pelo estremecido rebanho dó qual a divina vontade o separava.

Em Ambóino demorou-se Francisco Xavier alguns dias com o fim de reavivar o fervor religioso dos seus neófitos. Quatro navios portugueses se achavam então no porto; visitou as equipagens e fez erigir uma capela à borda do mar

"Passei vinte dias entre os marinheiros e soldados, escrevia ele; preguei três sermões, confessei muitos, acabei com as suas desavenças e lhes disse ao despedir-me: A Pai :da convosco".

Um dia, enquanto ele pregava às equipagens, parou e disse-lhes, depois de um instante de silêncio

"Orai por Diogo Gil; recomendai-o a Deus, por que ele está em agonia em Ternate".

Soube-se pouco depois que Diogo morreu no mesmo dia.

Quando os navios portugueses estavam para se fazer à vela de volta a Malaca, Xavier observou aquele que parecia o mais forte e que sabia estar mais ricamente carregado, e dirigindo-se a Gonçalo Fernandes, a quem o navio pertencia, disse-lhe:

- "Senhor Gonçalo, este navio passará por um grande perigo! Que Deus vos livre dele!"

No estreito de Sabon, o navio choca contra um rochedo, despedaçando o leme e ameaçando abrir infalivelmente o casco; todos se preparam para se lançarem ao mar... Uma vaga, porém, levanta o navio, desencalha-o e leva-o ao largo...

Xavier havia dito: "Que Deus vos livre!" Deus o havia ouvido, o navio estava "salvo".

O nosso Santo visitou todas as povoações da ilha de Ambóino e fez erigir uma cruz em cada uma; uma destas cruzes, colocada pelo próprio Santo, adquiriu no futuro uma grande celebridade por ocasião dum milagre que julgamos dever referir aqui com a maior simplicidade.

A estiagem aterrava o pais, e alguns habitantes falavam já em recorrer aos seus antigos ídolos e fazer-lhes oferendas para obter a chuva desejada, quando uma mulher exclamou entusiasticamente:

- "Voltar ao ídolo? Ah! o que diria o santo Padre? Não ternos nós a cruz da margem do rio, e o santo Padre, quando a colocou, não nos disse: Meus queridos filhos, vós vireis para ao pé desta cruz pedir ao nosso Pai que está rio Céu, as coisas de que carecerdes, e tudo quanto lhe pedirdes pelos merecimentos de Jesus crucificado, ela vos concederá?"

"O santo Padre o disse e ele nunca nos enganou! Antes de recorrerdes ao ídolo vinde à cruz comigo!"

A índia arrasta assim toda a povoação para junto da cruz, pede a Deus que lhes conceda a chuva, pois que o santo Padre prometera que se obteria tudo quanto se pedisse pela virtude da cruz; suplica-lhe não permita que se volte ao ídolo, que não é mais do que um demônio. Enquanto ela ora com aquela simplicidade de fé, cobre-se o céu de espessas nuvens, a chuva cai brandamente e continua a cair sem interrupção por todo o tempo necessário para reparar os prejuízos que a seca produzira.

Francisco Xavier deixou, finalmente, aquele bom povo que comparava muitas vezes aos primeiros cristãos, e embarcou para Maloca, onde chegou em julho de 1547. Encontrou ali os padres João da Beira, Nunes Ribeira e Nicolau Nunes, aos quais ele ordenara que fossem para as Molucas, e esperavam que algum navio se fizesse à vela com aquele destino.

O Padre Francisco Maneias recebera igualmente ordem de partir com eles, porém, persuadido de que a sua presença era necessária no cabo Comorim e que o seu superior não podia avaliar bem as coisas de tão longe, deixou de obedecer. Xavier, apreciando diversamente a santa obediência e considerando-a como a primeira virtude necessária em um bom religioso, não hesitou em expulsai da Companhia aquele membro recalcitrante.

Dois dos missionários que vinham auxiliar o ilustre apóstolo haviam chegado a Goa com mais sete Padres europeus, de entre os quais alguns estavam na Costa da Pescaria. Os filhos de Santo Inácio tinham-se já multiplicado a ponto de poderem destacar nove duma vez para as Índias, mas Xavier pedia ainda e pedia sempre!

Esperando que algum navio se fizesse à vela para as Molucas, deu as suas instruções aos três Padres que para ali mandava; instruiu-os mesmo na missão de Maloca no modo de exercer o apostolado naqueles países, onde tantos frutos respondiam aos seus incríveis trabalhos, e foi para ele uma verdadeira alegria poder guardá-los junto de si por aquele tempo todo, porque embarcaram só pelos fins de Agosto.

O apóstolo estremecido não teve menos que fazer durante a sua permanência em Maloca; todos queriam confessar-se a ele, e escrevia aos seus irmãos de Roma:

"Não podendo satisfazer a todos, fiz descontentes, mas eu lhes perdoei de boa vontade os seus azedumes, porque aquele despeito provava os desejos que tinham de se reconciliarem coxa Deus e tornarem-se melhores para o futuro".

Que doce caridade! que tocante indulgência!

João de Eiro viera de Ambóino com o nosso Santo, e sem nada lhe dizer, aceitou uma considerável soma que um rico português lhe deu para acudir às necessidades do santo Padre; mas era difícil ocultar-se uma coisa daquele gênero àquele a quem Deus esclarecia em tudo.

Xavier, que queria viver da pobreza evangélica em todo o seu rigor, achou tão culpável a ação de João de Eiro, que julgou dever puni-lo severamente. Ordenou-lhe que passasse' para uma ilha deserta, vizinha de Malaca, onde viveria e pão e água unicamente, e que passaria ali os seus dias em ração; acrescentando:

- Um tal ato de avareza é uma injúria feita à pobreza evangélica; ela deve ser expiada! Ide! não volteis sem que eu vos chame!

João de Eiro amava o santo Padre com tão terna afeição, que nem pensou em resistir e desobedecer; não hesitou nem um instante; deixou-o logo, fez a sua provisão de pão, foi desterrar-se na solidão que lhe era designada, e ali viveu cumprindo a ordem que recebera.

Um dia, durante a sua oração, aparece-lhe a divina Mãe com semblante severo; ele quer aproximar-se... ela repele-o e lhe diz que não deve pretender a honra de entrar na Companhia de Jesus, e desaparece.

Eiro, chamado poucos dias depois por Francisco Xavier, não lhe fala da sua visão; mas Xavier conta-lha com todos os pormenores. Eiro, que desde muito tempo desejava entrar na Companhia, julgou que podia negar o facto procurando persuadir-se que não passava dum sonho, tanto nele como em Xavier, e negou, portanto, resolutamente.

- Ide! disse-lhe o nosso Santo; eu sei a quem me deverei dirigir acerca disto. Vás faltastes à lealdade e amais o dinheiro; não podemos viver doravante juntos; separemo-nos, pois. Contudo, quero que saibais, para vossa consolação, que Deus vos iluminará e vos concederá a graça de vos receber um dia na Ordem de S. Francisco [50].