II. DE VENEZA A ROMA - TRABALHOS E FADIGAS - AUDIÊNCIA DO PAPA

Pelos fins da Quaresma daquele ano partiram de Veneza os discípulos de Inácio de Loiola com destino a Roma.

Tiveram uma jornada longa e bem penosa; andaram sempre a pé e pedindo esmola, que muitas vezes lhes era negada.

"Caminharam durante três dias ao longo da borda do mar, para se dirigirem a Ravena, sem poderem obter um bocado de pão, sequer. Depois dos sofrimentos e fadigas passadas em Veneza, era isto demasiado para os não extenuar completamente; alguns de entre eles caíam por não poderem dar um passo mais, e isto causava o maior desgosto aos companheiros."

"A humidade da estação, que era excessivamente chuvosa, expunha-os também a contínuas incomodidades: depois de se molharem durante todo o dia, passavam muitas vezes as noites em pleno ar, e consideravam-se felizes quando encontravam uma pouca de palha para lhes servir de cama e se cobrirem!"

"Como não tinham dinheiro para pagarem a passagem dos rios, viam-se na necessidade de deixarem aos barqueiros, umas vezes uma velha faca, outras um tinteiro ou qualquer coisinha do seu uso, e muitas vezes até parte dos seus pobres vestuários."

"Numa destas ocasiões em que se viram embaraçados por não poderem satisfazer um barqueiro descontente e impertinente, um deles, que não era ainda sacerdote, viu-se forçado a deixar o seu breviário em hipoteca, além de ficarem os seus companheiros em reféns."

"De volta, com o preço exigido, os desembarcou e percorreu a cidade de Âncona esmolando para desempenhar o seu breviário."

"...Muitas vezes tiveram de percorrer grandes distâncias com água até à cintura e mesmo até ao peito. Um dos viajantes recebeu a graça duma imediata recompensa às suas fadigas, porque achando-se doente duma perna, em conseqüência de aquecimento do sangue, permitiu Deus que saísse completamente curado deste banho inoportuno."

"Em Ravena tiveram os peregrinos viajantes um momento de repouso, porque foram recebidos no hospital, mas não lhes deram senão um só leito. Três de entre eles, mais fatigados. do que os outros, deviam ser preferidos; e quando notaram a repugnante indecência das roupas da cama, decidiram utilizar-se dela mais por penitência do que por necessidade."

"Simão Rodrigues, que era um dos três, renunciou a ela e estendeu-se no chão, achando este leito mais duro, é verdade, porém mais decente do que aquele que se lhe oferecia. Logo, porém, sentiu remorsos por haver fugido àquela mortificação e prometeu castigar-se na primeira ocasião que se lhe deparasse..."

"No prosseguimento da jornada, os que encontravam os nossos peregrinos, estrangeiros todos, igualmente vestidos e dirigindo-se para Roma, consideravam-nos como homens maus que vinham a Itália com o fim de solicitarem perdão de faltas cometidas, ou de serem absolvidos de crimes enormes."

"Caminhavam três a três, um Padre e dois minoristas, espanhóis e franceses, tão unidos pelo coração como se tivessem a mesma pátria ou nascessem da mesma mãe. Cada um deles sofria mais pelos seus companheiros do que pelos seus próprios males, c sem cuidar de si, se ocupavam em consolá-los e socorrê-los".

O P. Bártoli, a quem tomámos este trecho, reproduz também um notável fragmento da descrição desta viagem escrita por um daqueles heróicos peregrinos, e que não resistimos ao desejo de fazê-lo conhecido dos nossos leitores, persuadidos de que o trecho citado se refere ao nosso Santo.

"Quando eu percorria Ancona, diz aquele Padre, para recolher esmolas com que pudesse desempenhar o meu breviário, descobri na grande praça um dos nossos, que, molhado e de pés descalços, se dirigia às mulheres do mercado pedindo-lhes, ora uma fruta, ora alguns legumes. Parei a observá-lo, e recordando-me da nobreza do seu nascimento, das riquezas --que ele havia abandonado, dos seus grandes talentos naturais, da vastidão de seus conhecimentos adquiridos e das virtudes que tanta importância e consideração lhe teriam dado no mundo, senti-me por tal modo impressionado que me reconheci indigno de ser companheiro de tais homens".

Citemos ainda, seguindo o P. Bártoli, um patético ato de bondade da divina Providencia em favor desses heróis evangélicos que haviam deixado tudo para imitarem Jesus Cristo e fazer adorar a sua cruz.

"Depois de terem passado três dias em Loreto, aonde puderam gozar largamente das doces alegrias, da piedade e algum repouso, puseram-se a caminho para Roma, e chegaram a Tolentino de noite sem terem sequer um bocado de pão para reparar a fome e as fadigas do dia. Chovia copiosamente, e não encontraram pelo caminho uma alma a quem pudessem estender a mão à caridade."

"Três de entre eles iam na frente, outros seguiam ao longo dos muros, algum tanto abrigados da chuva, e um só caminhava pelo meio da rua, não temendo molhar-se nem enlamear-se mais do que o estava já, quando inesperadamente viu dirigir-se para ele, através da lama, um homem de bela aparência, de figura agradável, segundo ele pôde julgar. Este homem deteve-o e tomando-lhe a mão depositou nela algumas moedas, retirando-se em seguida sem dizer uma palavra."

"Logo depois chegaram a um albergue, onde encontraram pão, vinho e figos secos, magnífica refeição para eles e para alguns mendigos com os, quais repartiram" [21].

O primeiro cuidado dos nossos viajantes, logo que chegaram a Roma, foi o de visitar as principais igrejas, e quando acabavam de cumprir aquela piedosa peregrinação, um personagem que nenhum deles havia notado, veio direito a Xavier, atravessando a rua, e apertando-lhe a mão, exclamou:

- Será verdade, caro Francisco? sois vós que eu encontro aqui neste estado desprezível e vestido dum tão estranho modo?

- Sim, senhor Pedro, sou eu mesmo; porém mais esclarecido por mestre Ínigo, tocado da graça divina e disposto a não viver senão para a glória de Deus e para salvação das almas.

- E mestre Ínigo também está em Roma?

- Não, senhor; ele espera-nos em Veneza onde o deixámos para vir aqui, por ordem sua, apresentarmo-nos ao Soberano Pontífice e pedir-lhe a sua bênção e autorização para irmos trabalhar pela conversão dos infiéis na Terra Santa.

- Pois bem! meu caro Francisco, vinde ao palácio da corte de Espanha, onde eu resido durante a minha permanência em Roma, na qualidade de enviado extraordinário do nosso soberano o imperador e rei, e eu me encarrego de solicitar prontamente uma audiência de Sua Santidade.

Francisco Xavier aceitou imediatamente, e com ele os seus irmãos, o meio que a Providência lhes proporcionava. Ficou, pois, combinado que ele iria na manhã seguinte, com Pedro Fabro, ao palácio da corte de Espanha para combinarem com D. Pedro Ortiz sobre o importante assunto que ali os levara.

Pedro Ortiz, enviado extraordinário de Carlos V junto da Santa Sé, conhecera e tratara intimamente com Francisco Xavier e Fabro em Paris; afeiçoara-se ao nosso jovem santo como se afeiçoavam todos que o conheciam, e por isso lhe fez as mais vivas instâncias para que aceitasse um quarto no palácio da embaixada, porém foi em vão. Francisco negou-se a deixar o asilo que obtivera no hospital espanhol, asilo que ele compartia com os seus irmãos e onde exercia a caridade nos momentos em que podia dispor de si.

Pedro Ortiz fora em Paris um dos mais implacáveis adversários de Inácio de Loiola; havia empregado todos os meios e todos os esforços possíveis para impedir que o jovem senhor de Xavier se deixasse arrastar para aquele caminho de pobreza e humilhações, que não podia compreender, e tornava a encontrar agora o amável e elegante Navarrês estendendo a mão, como um mendigo, pelas ruas da capital do mundo católico; achava-o pálido, desfigurado, magro e quase desconhecido.

D. Pedro procurou averiguar as causas desta transformação, e quando teve conhecimento das fadigas e privações de todo o gênero que aquela santa caravana havia suportado desde Veneza até Roma, quando soube que todos aqueles corações pulsavam de alegria no meio de tantos e tão acerbos sofrimentos, quando pessoalmente reconheceu quanto o nosso Santo se julgava feliz com o seu viver de abnegação e de penitência, Pedro só pôde admirar. Apressou-se a falar ao Papa Paulo III, que ocupava então a Santa Sé, dos discípulos de Inácio, cujas virtudes se aliavam a uma grande sabedoria, dos seus desejos de obterem a mercê de serem admitidos a beijar os pés do pai comum dos fiéis, e a pedir-lhe a sua bênção apostólica e a necessária permissão para irem trabalhar na conversão dos infiéis da Palestina.

O Papa, em extremo satisfeito por saber daquele grande zelo da glória de Deus e pela salvação das almas, exprimiu o desejo de os receber na manhã seguinte e pediu a D. Pedro Ortiz que lhos apresentasse.

Foi dos mais benévolos o acolhimento do Soberano Pontífice aos nossos devotos peregrinos; Paulo III, desejando ouvir aqueles jovens doutores da Universidade de Paris, propôs-lhes algumas questões teológicas, que eles trataram com tanta proficiência, modéstia é humildade que o Sumo Pontífice ficou encantado de os ouvir.

- Sou feliz, lhes disse ele, por ver em vós reunida tanta ciência a uma tal modéstia. Que poderemos fazer em vosso favor?

- Santo Padre, nós solicitamos a vossa permissão para irmos à Terra Santa pregar a doutrina de Jesus Cristo, nos mesmos lugares em que Ele deu todo o seu sangue pela salvação do mundo, e suplicamos a Vossa Santidade que se digne conceder-nos a sua bênção para que ela nos garanta a de Jesus Cristo em todos os trabalhos que desejamos empreender.

- Convencemo-nos que será quase impossível, atualmente, a viagem à Terra Santa, respondeu o Papa; por que achando-se declarada a guerra, serão interceptadas as passagens e estes obstáculos serão, sem dúvida, de longa duração; porém o vosso zelo pode ser empregado muito útilmente em outros lugares.

Abençoou-os em seguida com paternal afeição, deu-lhes uma considerável esmola e concedeu, aos que não eram ainda sacerdotes, permissão para receberem as sagradas ordens de qualquer bispo e em qualquer parte, na qualidade de pobres voluntários.

Depois desta audiência, voltaram os nossos viajantes a Veneza, onde Xavier retomou o seu ser-riço dos doentes pobres do hospital dos incuráveis. Ele e seus irmãos renovaram os seus votos perante o núncio do Papa, Jerónimo Varolli, arcebispo de Rosana, e pouco depois, a 24 de junho, foram conferidas as ordens sacras pelo arcebispo de Arbe, Vicente Nigusanti.

Considerando-se o nosso Santo muito feliz por poder trabalhar com mais eficácia ainda na salvação do próximo, revestido como se achava do caráter augusto que acabava de receber, desejava preparar-se por um longo retiro para a celebração da sua primeira Missa.

Um dia, depois de ter pregado na povoação de Monte Felice, a quatro léguas de Pádua, voltava a Veneza por um caminho diferente do que seguira na ida, para lá, quando descobriu uma. pobre cabana em ruínas completamente abandonada e cujas entradas estavam obstruídas pelos materiais amontoados... Dirigiu-se para ali, desembaraçou a porta da cabana e entrando viu que as paredes estavam fendidas e o tecto de colmo todo aberto, reconhecendo que estava desabitada e que a sua situação era completamente isolada:

- "Que bem estarei eu aqui, só e com Deus somente"! disse ele para si, com sensível demonstração de alegria."

E logo na manhã seguinte veio tomar posse da morada que escolhera a fim de se entregar ali, sob as únicas vistas de Deus, a todos os exercícios da mais rigorosa penitência, a um jejum diário e a contínuas orações.

Não saía da cabana senão para ir mendigar o seu pão nas proximidades; depois de ter obtido o necessário para não morrer de fome, voltava à sua solidão, martirizava o corpo e depois repousava por alguns momentos, deitando-se sobre aquele solo húmido e nu. Passou assim quarenta dias no gozo de consolações divinas e de sacrifícios contínuos do seu corpo.

Terminado o seu retiro, voltou Francisco para junto do seu amado mestre, então em Vicência, para onde foram chamados todos os seus irmãos, e teve a felicidade de celebrar os santos mistérios pela primeira vez, achando-se todos eles presentes, auxiliado das suas orações e dos seus votos. A sua comoção era tão forte, e corriam tão abundantemente as suas lágrimas, que os assistentes também as não puderam conter.

Conquanto fosse naturalmente robusta a saúde de Xavier, não pôde resistir a tamanhas austeridades: alguns dias depois da primeira Missa adoeceu gravemente, e foi necessário tratá-lo como a um mendigo, porque ele queria viver e morrer na mais completa pobreza.

Levaram-no para o hospital, e ali, o nobre Xavier, o ilustre descendente dos antigos reis de Navarra, não obteve mais que metade dum leito! Foi colocado ao lado dum doente pobre que lhe era desconhecido...

Deus fazia-lhe expiar assim os sentimentos de orgulho e as ambições de glórias vãs que haviam por algum tempo alimentado a sua mocidade:.. mas derramava ao mesmo tempo tais consolações na sua alma, que Xavier, longe de recordar-se do que havia deixado, julgava-se feliz por ter um sacrifício mais a oferecer, e agradecia à divina Misericórdia que se dignava oferecer-lhe assim tão preciosas ocasiões.

Nos seus estudos da Escritura Santa, Francisco Xavier invocava muitas vezes S. Jerónimo; pedia-lhe que lhe fizesse compreender as dificuldades que encontrava e a luz fazia-se no seu espirito; resultou dali que da parte do nosso Santo nasceu uma dedicada devoção por aquele Santo doutor da Igreja.

Numa noite, quando Xavier se achava ainda doente no hospital de Vicência, julgou ver em sonhos, circundado de glória, o Santo que ele gostava de invocar nos seus estudos. Pareceu ouvir distintamente que ele lhe dizia, depois de meigas e fortificantes palavras, como as que costumam vir do Céu à terra:

- Muitas e maiores tribulações vos esperam em Bolonha, onde passareis este inverno acompanhado somente de um dos vossos irmãos; os outros serão mandados para Roma, Pádua, Ferrara e Sena.

Estas palavras impressionaram profundamente Francisco. Duvidou duma aparição real de S. Jerónimo, mas não podendo esquecer-se das palavras que ouvira, não podendo disfarçar a consolação que experimentava, e vendo as melhoras do seu estado de saúde, tomou o partido de nada dizer, nem mesmo ao seu santo mestre, e de esperar pelos acontecimentos futuros. Poucos dias depois achava-se completamente curado.

Até ali havia decorrido o ano durante o qual Santo Inácio e seus discípulos se achavam comprometidos a esperar os meios de passarem para a Palestina. A guerra não lhes deixava esperança alguma de poderem embarcar, era chegado, pois o momento de se tomar uma decisão relativa ao segundo voto: o de se porem à disposição do Soberano Pontífice.

Reuniu, pois, Inácio os seus discípulos e lhes fez ver que desembaraçados como se achavam da peregrinação para a Terra Santa, ficava-lhes o cumprimento do voto de irem a Roma receber do Papa o destino que ele julgasse dever dar-lhes, e achando inútil que todos para ali fossem, resolveu que ele próprio iria a Roma acompanhado de Pedro Fabro e Diogo Laynez; que Xavier e Bobadilha iriam pregar em Bolonha, Rodrigues e Lejay em Ferrara, Codure e Mozes em Pádua, Brouet e Salmeron em Sena.

Francisco Xavier, quando ouviu assim designadas pelo seu mestre, as cidades que lhe haviam sido indicadas por S. Jerónimo no seu sonho, convenceu-se que não tinha sido uma ilusão, e mais ainda vendo que o seu destino pessoal era Bolonha; não obstante isso guardou ainda segredo das suas anteriores impressões.

Antes de terminar esta reunião, deu Santo Inácio detalhadas instruções aos seus discípulos, acrescentando que achando-se eles reunidos em nome de Jesus com o fim de trabalharem pela sua glória, a sua associação devia ter, dali em, diante, o nome de

Companhia de Jesus