DA CERIMÔNIA DO CHÁ AO MARTÍRIO

“Tem nove pés de altura, a cabeça pequena em relação ao corpo, o rosto vermelho, os olhos redondos, o nariz comprido. Visto de lado, tinha ele os ombros caídos; sua boca alcançava as orelhas, e seus dentes muito brancos se assemelhavam aos de um cavalo. Suas unhas lembravam as garras de um urso. Aparecia sempre com um ar humilde, e sua voz soava igual ao arrulho de uma pomba. Quando erguia os braços, a gente poderia dizer que tinha diante dos olhos um morcego com as asas estendidas. Era uma visão bastante assustadora.” Com essas palavras descreve um cronista japonês, no ano de 1552, ao padre jesuíta Organtino; nessa ocasião esses recém chegados do país dos “ bárbaros do sul” pareceram aos japoneses, sempre, monstros estranhos e, sob muitos aspectos, inquietantes. Pouco tempo mais tarde, porém, já o mesmo missionário Organtino podia informar a Roma cheio de esperançosa alegria: “ Dentro de dez anos todo o Japão estará cristianizado.” Pois, agora, os filhos das mais ilustres famílias japonesas procuravam obter ingresso nas casas de noviciado jesuítas recém fundadas, e suas filhas, esposas e irmãs incorporavam-se, às turbas, a uma sociedade de cristãs japonesas, que trabalhava sob a direção dos padres na catequese do país inteiro.

Nesse meio tempo os missionários já haviam aprendido, completamente, a adaptar-se à vida japonesa e de tal modo, que eles, em suas maneiras, em sua cortesia e mesmo na sua pronúncia do japonês se igualavam às pessoas mais distintas. Eles se moviam, inclinavam-se e se sentavam, seguindo à risca os preceitos da etiqueta japonesa, conheciam todas as finuras do cerimonial do chá, e sabiam, de maneira idêntica aos nativos, quais as fórmulas de cortesia a ser enregadas na conversação e a forma por que se deveriam usar substantivos e verbos, de acordo com a posição da personalidade interpelada. Já que conheciam o gosto dos japoneses pelo espetacular, envidaram todos os esforços para organizar festas ponosas nos dias santos cristãos. Na sexta-feira santa faziam eles com que soldados japoneses montassem guarda em suas igrejas, junto ao santo sepulcro, envergando uniformes suntuosos. Depois, uma procissão de crianças vestidas festivamente conduzia os instrumentos do martírio do Salvador em torno da praça da igreja e, aí, virgens convertidas recitavam em coro, em língua japonesa, a história da paixão de Jesus. Todas as vezes que morria um padre, os seus irmãos organizavam um sepultamento solene, o qual mais de um Chogun teria podido invejar, pois os jesuítas sabiam agora, também, o quanto no Japão era julgada a inortância e o prestígio de um homem de acordo com a pona de suas exéquias. Os círculos educados do país foram conquistados por meio do saber poliédrico dos missionários. Os jesuítas edificaram escolas, mantiveram cursos de dialética e fizeram vir da Europa uma tipografia, a qual, agora, editava livros japoneses: gramáticas, dicionários, obras literárias, tratados teológicos, as fábulas de Esopo em tradução japonesa e também extratos dos livros clássicos chineses, especialmente das obras de Confúcio. Impressos em muitos mil exenlares, esses livros baratos espalharam-se por todo o Japão. Os jesuítas deram-se manha também, com a mesma habilidade, para conquistar as camadas incultas ; para isso não desprezavam eles meio algum e souberam também se utilizar para seus intentos das superstições mais grosseiras do povo. Quando, de uma feita, alguns bonzos se propuseram a enfeitiçar o padre Almeida, esse se declarou, imediatamente, pronto para a experiência e afirmou, do seu lado, que haveria de vencer os demônios por meio da cruz. Os bonzos untaram o missionário com ungüentos, puseram-lhe em cima ídolos, passaram-lhe serpentes em torno do pescoço e entoaram fórmulas de esconjuro de toda a espécie; mas Almeida agitava ininterruptamente a sua cruz, declarando que, com a ajuda da mesma, ele afugentava os demônios e, por esse meio, conseguiu que algumas pessoas do público se fizessem batizar imediatamente.

Se nesse ou naquele principado chegava ao governo um novo Daimyo, então, dentro em breve, aparecia também um jesuíta que lhe contava das enormes vantagens que o intercâmbio comercial com Portugal poderia trazer ao seu país. Cada vez com mais freqüência encontravam-se soberanos que, não somente adotavam o cristianismo, mas mandavam até destruir os templos budistas e expulsar os bonzos. Quando, uma vez, um daimyo se punha a criar dificuldades ao cristianismo, vinha ter à sua corte um padre e observava, incidentemente, que o intercâmbio comercial com Portugal poderia servir também para o fornecimento de armas de fogo; que os príncipes cristãos das províncias vizinhas já tinham feito uso copioso delas. Essa insinuação bastava para que esse daimyo também pedisse o batismo rapidamente. Finalmente aproximou-se o tempo em que os jesuítas puderam exercer a sua influência na corte mesma de Miako; um daimyo de nome Oda Nobunaga erguera-se, agora, como soberano indiscutido de todo o Japão, e, sob o seu governo, a cidade, meio em ruínas, de Miako transformou-se outra vez em uma capital luxuosa. Mas com isso o sonho de Xavier chegara à realização: havia no Japão de agora em diante, um poderoso monarca e abria-se a possibilidade de cristianizar o império todo por meio da conquista desse monarca.

Quando Nobunaga ainda estava lutando pela conquista do poder, os sacerdotes budistas se opuseram a ele de maneira especialmente hostil; para quebrar-lhes o poderio procurou ele, então, incrementar o cristianismo. Concedeu aos missionários liberdade completa de prédica, dispensou-os de todos os inostos, convidou-os a edificar em sua nova capital de Azutche uma igreja e uma casa missionária, e, para esse fim, fez-lhes presente de um magnífico terreno. Afim de que ninguém pusesse em dúvida a sua amizade para com os cristãos, incendiou ele os conventos dos odiados sacerdotes budistas, retirou, pessoalmente, os ídolos de sua casa e mandou encarcerar sem misericórdia a todos os bonzos sobre os quais ele conseguiu deitar mão.

Dentro em breve os jesuítas já estavam desenenhando na corte de Nobunaga o papel de conselheiros íntimos; tinham entrada junto a ele a qualquer hora, convidava-os para as refeições e entretinha-se com eles sobre os seus grandes planos. Esses, porém, não visavam nada menos do que a conquista da China e assim os padres, agora, esperavam poder entrar em Pequim no séquito do vitorioso soberano japonês. Para essa expedição tornava-se necessária uma esquadra. Nobunaga, seguindo os conselhos dos jesuítas, resolveu mandar construi-la em Portugal, pois que os missionários lhe haviam acenado com preços sumamente baratos em virtude de sua mediação. Mas Nobunaga foi assassinado antes de chegar a hora de iniciar a sua expedição à China. Seu sucessor Toyotomi Hideyósh fora, na verdade, a princípio, favorável também aos cristãos; mas, dentro em breve, modificou a sua atitude. O fato de algumas virgens cristãs, que haviam despertado o seu agrado, se lhe terem recusado, apelando para os preceitos de sua nova religião, colocara-o logo em más disposições de ânimo.

Mas, dentro em breve, surgia um outro incidente mais grave ainda: um navio mercante espanhol encalhara nas costas japonesas, e as autoridades confiscaram a preciosa carga. Afim de conseguir a sua libertação, os marinheiros tentaram instilar o temor nos japoneses e procuraram demonstrar em um mapa-múndi a colossal extensão da monarquia espanhola. A pergunta de um funcionário japonês, sobre a maneira pela qual o rei de Espanha pudera submeter tantos países, responderam eles: “Os nossos soberanos começam mandando para os países a que pretendem conquistar, primeiramente, os sacerdotes. Depois de terem esses convertido uma parte do povo, então seguem-se-lhes as tropas, as quais fazem causa comum com os povos cristãos e trazem o país inteiro para debaixo do governo da coroa espanhola.”

O partido bonzista da corte de Hideyoski não deixou passar essa oportunidade para expor ao soberano, devidamente comentada, essa afirmação alarmante, e Hideyoshi, que já não podia suportar, absolutamente, os missionários, por causa das melindrosas virgens cristã, resolveu, em seguida, a extirpação completa de sua doutrina “perigosa ao Estado.” A partir daí, a situação dos padres tornou-se extraordinariamente difícil. Decretos rigorosos proibiam, sob pena de morte, toda e qualquer atividade de catequese aos sacerdotes e, à população interdiziam eles a adoção do cristianismo. Quem já tivesse recebido o batismo, estava obrigado a retornar, o mais depressa possível, à antiga religião.

Sob o reinado de Ieyashu, sucessor de Hideyoshi, a perseguição aos cristãos tornou-se mais violenta ainda, fato esse que se ligou à chegada dos primeiros navios holandeses ao Japão. Os atilados neerlandeses haviam também descoberto, nesse meio tempo, a rota marítima para o Extremo Oriente e, em breve, apareceu uma embaixada oficial holandesa, a qual propôs ao governo japonês a celebração de um tratado comercial em regra.

Com isso desapareceram as últimas reservas que ainda detinham o soberano japonês diante do emprego de extremo rigor contra os jesuítas: depois do início das relações comerciais com a Holanda já se podia, perfeitamente, passar sem os portugueses e, destarte, não havia necessidade de que se lhes fizessem concessões religiosas de nenhuma espécie. Assim é que, agora, um edito ordenou a queima de todas as igrejas católicas e punição severa de todos os missionários remanescentes no país. Os cristãos, rezava nesse decreto, tem em vista “ propagar uma lei perniciosa, exterminar a verdadeira doutrina, derrubar o governo e se apoderar do império.” Quando os padres haviam reconhecido, uma vez, que tudo se tinha conjurado contra eles, então acreditaram que Deus, que até então tinha exigido deles prudência, capacidade de adaptação, zelo e astúcia, pedia agora o seu holocausto, afim de mostrar aos pagãos japoneses, de maneira expressiva a verdade da doutrina cristã. E com a mesma presteza com que antes haviam estudado os mais complicados textos sanscriticos, com que haviam se disfarçado em brahmanes, aprendido as regras da etiqueta japonesa e, assim, conquistado as almas, para o reino de Cristo, aceitaram agora os jesuítas o martírio também, para a maior glória de Deus. Com serena tranqüilidade deixaram se encarcerar, torturar e crucificar, pois os japoneses haviam aprendido de suas prédicas acerca da paixão de Cristo, essa forma de execução desconhecida no Japão até aquela data, e lhes proporcionou um prazer especialmente sardônico o cravar na cruz os sacerdotes do Salvador crucificado. Outros padres foram dependurados pelos pés até que sucumbiram, miseravelmente, de inanição e outros por sua vez, foram decapitados e atirados ao mar. Mas, enquanto eles estavam pendentes da cruz, com a cabeça inclinada para o lado, à espera do seu fim ou marchavam para o escabelo da execução, continuavam pregando, até o seu último alento, que a doutrina de Cristo era a única verdadeira. E, depois de todas as muitas vitórias que haviam eles conseguido no Japão, mediante prudência e astúcia, essa morte digna, em honra de Deus iria exercer a mais duradoura das influências. Pois, quando muito tempo já passado, outros missionários católicos puderam novamente trilhar o solo do Japão, encontraram ali grandes comunidades secretas de cristãos; eram os descendentes daqueles japoneses que outrora haviam assistido o martirológio dos jesuítas.

Depois que o Japão se havia fechado para os missionários, no ano de 1600, os jesuítas se dirigiram também para a Cochinchina e Tonkin, onde o padre Alexandre de Rhodes, especialmente, colheu grandes resultados. O número dos nativos que se deixaram batizar ali, subiu, dentro em breve, a cerca de quatrocentos mil.