III. VOCAÇÃO DE COSME DE TORRES E CONVERSÃO DE PAULO ANGELO

Recordar-se-ão os nossos leitores da heróica dedicação de Francisco Xavier pelos doentes duma esquadra espanhola, forçada a arribar em Ambóino na ocasião em que ele ali chegava; lembrar-se-ão também dos prodígios da sul, singular caridade, da sua heróica mortificação, do completo esquecimento de si próprio para salvar todos os doentes atacados de escorbuto.

Entre aqueles doentes, achava-se D. Cosme de Torres, padre espanhol, um dos homens mais sábios daquela época, e que pelo seu amor pelas ciências se deixara arrastar à Índia na esquadra de Carlos V.

Tomara grande parte nos cuidados ternos e delicados do nosso Santo, e aquela vida de sublime abnegação parecera-lhe uma maravilha que não acreditaria, se lhe não tivesse sido permitido vê-Ia e admirá-la, durante quatro meses seguidos, sem diminuir de coragem.

Por seu lado, Francisco Xavier impressionara-se também com as virtudes e piedade de D. Cosme de Torres, cuja reputação de ciência e de santa vida, conhecia desde há muito terno e um a outro se ligaram por uma sincera amizade. Na partida da esquadra o apóstolo das Índias dera ao seu novo amigo uma carta de recomendação para o Padre reitor do colégio de Goa, onde ele foi recebido de braços abertos.

A vida tão perfeita dos Padres daquele colégio havia excitado a admiração do sacerdote espanhol, a. ponto de lhe fazer desejar ardentemente a entrada na Companhia de Jesus.

O Padre Lanciloti dirigia-o nos Exercícios espirituais; e quanto mais vivo se tornava o seu desejo, mais ele adiava os votos e queria esperar ainda. Flutuava nesta penosa incerteza, quando o grande apóstolo chegou a Goa para ali passar o inverno, e encontrando-o no colégio, acolheu-o como a um dos seus irmãos, abraçou-o e estreitou-o ao coração exclamando:

- Cosme de Torres! que feliz me sinto por vos ver aqui, meu queridíssimo irmão!

- Sim, meu caro Padre, se me quereis, eu serei dos vossos; achava-me ainda numa constante incerteza; mas vendo-vos, abraçando-vos, fez-se luz em mim; sinto que Deus me quer aqui.

Francisco Xavier tinha toda a segurança naquele apelo. Agradeceu a Deus por uma tal aquisição, e reservando para a conquista do Japão, na qual seriamente meditava, a ciência do novo missionário, encarregou-o de instruir três japoneses, a fim de o familiarizar com as dificuldades da sua língua.

Estes três japoneses, que o nosso Santo mandara embarcar no navio de Jorge Álvares, quando este deixava Malaca, eram um jovem de família nobre e muito rica, chamado Angelo, e dois dos seus domésticos; o apóstolo do Oriente esperava penetrar no império do Japão, por seu intermédio, com mais facilidade e maiores esperanças de bom resultado.

Ângelo vai contar-nos, ele mesmo, como a divina Providência o levou ao conhecimento do Cristianismo e ao desejo de o abraçar.

PAULO ÂNGELO, PRIMEIRO CRISTÃO JAPONÊS

AOS PADRES E IRMÃOS DA COMPANHIA DE JESUS EM ROMA

Goa, 27 de Novembro de 1548.

Que a paz e a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam convosco! Amem.

Já que foi do agrado daquele que me criou procurar-me como a ovelha perdida no meio das trevas, para me chamar à luz do seu Evangelho arrancar-me das prisões da morte e dar-me a liberdade e a vida, julgo-me obrigado a recorrer a vós todos para render a sua divina Majestade ações de graças proporcionadas aos grandes favores com que a sua misericórdia infinita se dignou agraciar-me.

Compenetrado e confundido pela minha incapacidade, peço-vos, meus queridíssimos irmãos, que suprais a minha indignidade, e para vos convencer dela, vou expôr-vos aqui os meios extraordinários pelos quais o Pai celeste me conduziu ao grêmio da Igreja do seu Filho único e muito amado.

Estando ainda no Japão, há já alguns anos, e perseguido por inimigos pessoais que conspiravam contra a minha vida, refugiei-me num convento de bonzos.

Um navio português veio ao mesmo tempo fundear no porto, próximo do qual se achava situado aquele convento.

Era precisamente o navio de D. Alvaro Vez que outrora conhecera, e que se apressou em oferecer-me um asilo a bordo; porém, como os seus negócios o demorariam naquele ancoradouro por muito tempo, para a minha segurança teve a bondade de escrever a um dos seus amigos que estava num porto muito afastado, rogando-lhe que me recebesse.

Munido daquela carta, despedi-me de Álvaro, e parti imediatamente para o porto em que devia encontrar Fernando Álvares, a quem era dirigida a recomendação de que eu era portador. Cheguei ali de noite, e por engano remeti a carta a D. Jorge Álvares, capitão dum outro navio, que me recebeu com amizade, dizendo-me que me levaria consigo e me apresentaria ao reverendo Padre Francisco Xavier, seu amigo íntimo. Consenti nisso.

Durante a viagem, quer fosse para me familiarizar com a idéia de ver o Padre e inspirar-me de ante-mão estima e afeição por ele, quer fosse para me dar algumas noções do Cristianismo, D. Jorge, encaminhava sempre a conversação para Xavier, para as suas virtudes suas grandes ações e efeitos maravilhosos da sua palavra.

Em resultado disso, concebi dois ardentes desejos: o primeiro de conhecer pessoalmente o ilustre e santo personagem, cujas virtudes e encantos me eram exaltados em termos tão magníficos, e o segundo de estudar seriamente uma religião que produz homens tão perfeitos.

Achava-me já tão convencido da verdade daquela religião, que me teria deixado baptizar logo que cheguei a Malaca, se o senhor vigário geral não tivesse rosto no meu casamento um obstáculo àquela graça, por isso que não me devia ser permitido, depois de baptizado, viver com uma mulher idólatra. Causou-me isso um grande desgosto, mas a este desprazer se acrescentou um outro não menos pungente.

Eu viera ver o Padre Xavier e ele achava-se ausente! A porta da Igreja era-me fechada, e aquele que teria podido acalmar e adoçar a minha dor não estava ali!

Desconsolado, desanimado, resolvi voltar para o Japão: a monção era favorável embarquei em um navio que devia deixar-me num porto da China, distante somente duzentas léguas da minha pátria. Cheguei àquele porto e ali encontrei um barco que partia para o Japão; passei para ele, e fazendo-se à vela em seguida, contava tornar a vero meu país com seis ou sete dias de navegação.

Mas Aquele que governa tudo e que dirige as coisas de modo que fiquem cumpridos os seus desígnios, me levou de novo ao ponto donde tinha partido, por meios que só d'Ele são conhecidos.

A vinte léguas das costas do Japão, uma tempestade das mais violentas ameaça-nos dos maiores perigos durante quatro dias, e acaba por lançar-nos sobre as costas da China, que havíamos deixado.

O perigo que eu acabava de passar, trouxe-me muito sérias reflexões. Achava-me fatigado, inquieto, ralado de remorsos, quando vejo dirigir-se para mim D. Alvaro Vaz Foi grande a sua surpresa por me encontrar na China, quando me supunha em Malaca.

Contei-lhe as minhas aventuras, e o perigo pelo qual acabava de passar e de escapar-me; achava-me ainda todo molhado e coberto de espuma do mar. Ofereceu-me de novo o seu navio e convenceu-me a tentar ainda a viagem para Malaca.

D. Lourenço Botelho uniu-se a ele, e ambos me asseguraram que eu ali encontraria o Padre Francisco Xavier, que ele me, consolaria de todos os meus desgostos e sofrimentos, que me instruiria, me baptizaria, me poria no seminário de Goa e me faria ir depois para o Japão com os Padres da sua Companhia.

Segui os seus conselhos e voltei com eles a Malaca. A primeira pessoa que vi quando desembarquei, foi D. Jorge Alvares! Experimentámos grande alegria por nos tornarmos a ver, e no mesmo instante ele me levou à catedral, onde o Padre Xavier abençoava um casamento. Depois da cerimônia, o capitão apresentou-me a ele, dizendo-lhe quem era e por que vinha.

Atento e com os olhos fixos no Padre Xavier, vi o seu amável semblante expandir-se numa grande e santa alegria; depois voltando-se para mim olhou-me ternamente, falou-me com tanta doçura e testemunhou-me tão grande afecto, que me cativou o coração, e julguei-me muito feliz por ver a minha extrema ternura tão completamente correspondida! Na sua comovedora voz, e na doce expressão, reconheci a divina Providência, admirei o seu poder, e adorei os seus impenetráveis decretos!

O Padre Xavier destinou-me desde logo para o seminário de Goa; mas não permitindo a sua visita aos cristãos de Comorim acompanhar-me, enviou-me antes dele, no navio de Jorge Alvares. Ele seguiu-nos de perto, porque nós chegámos no dia 1 de Março, e ele a 4 ou 5 do mesmo mês [56]. Parecia que os ventos e o mar se combinavam para satisfazer os meus desejos.

Eu suspirava por ele e suspirava ao mesmo tempo pelo batismo, e os meus votos foram bem depressa cumpridos. Ele chegou; a minha instrução concluiu-se no colégio, fui baptizado na manhã do Pentecostes, com os dois domésticos que me haviam acompanhado do Japão.

É esta a minha história. Espero que com a graça de Jesus Cristo, Senhor e Criador, de todas as coisas nosso Redentor, que sofreu e morreu na cruz para nos salvar, ela reverta não somente em meu proveito pessoal, mas também em glória de Deus, na propagação da fé e em honra de toda a Igreja.

Quanto a mim julgo-me bem recompensado de todos os meus sofrimentos! Gozo do maior bem que jamais ousava esperar. Cada dia a fé enche a minha alma de nova luz; a verdade e a santidade do Evangelho desenvolvem-se cada vez mais a meus olhos; os benefícios com que tenho sido favorecido, aqueles que constantemente recebo, as alegrias, as consolações de que a minha alma se acha cheia, tornam-me palpável, para assim dizer, o que eu não podia entrever.

Parece-me que adquiri uma vida nova, novas faculdades, e, finalmente, que Deus me criou de novo. Aprendo o que me ensinam com uma rapidez que me admira e me confunde. Foi-me necessário tão poucos dias para eu ler e escrever em língua portuguesa, que a aninha inteligência parece um prodígio que me faz espantar.

Decorei textualmente palavra por palavra, toda a explicação do Evangelho de São Mateus que o Padre Cosme de Torres me repetiu por duas vezes, e traduzi-a em língua japonesa.

O Padre Xavier propõe-se ir para o Japão e promete associar-me ao seus trabalhos.

Orai, meus irmãos! rogai a Deus que se digne abençoar-nos. Pedi para mim um reconhecimento, uma gratidão proporcionada aos benefícios que tenho recebido! eles são tão grandes que Deus se verá, para assim dizer, obrigado a dar-me forças para sofrer a morte confessando o seu santo nome, para me não deixar na necessidade de ser ingrato.

O meu coração diz-me que não morrerei sem ter visto no Japão um colégio da vossa Companhia para o progresso da fé e para glória de Deus, pela qual eu sou, meus Padres, vosso servo.

Paulo de Santa-Fé.

Depois do seu batismo, pedira Paulo Angelo a Xavier permissão para usar o apelido de Santa-Fé, em memória do colégio onde encontrara a felicidade; autorizado pelo santo apóstolo adoptou aquele nome e não o deixou nunca.

Um dos seus domésticos chamou-se João e o outro Antônio; eles imitavam perfeitamente seu amo no fervor da sua piedade e na prática de todas as virtudes cristãs.