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No extremo sul da Índia Gangética vivia a casta dos Paravars,
uma tribo que abrangia mais ou menos umas vinte mil almas.
Esses Paravars foram, por volta do ano l530, atacados por uma
tribo maometana selvagem e, tangidos pela sua situação
difícil, resolveram clamar pela ajuda dos portugueses.
Uma deputação de pescadores de pérolas encaminhara-se
para Goa e declarara ali que se os portugueses lhes
arrancassem os maometanos dos costados, estariam dispostos a
se converter todos à religião dos europeus. O governador real
entrou de acordo com essa proposta, gostosamente, e
estabeleceu ainda como mera condição um tributo anual de duas
barcas carregadas de pérolas.
Dentro em breve fundeou diante do Cabo Comorim uma frota
portuguesa, a qual expulsou os maometanos saqueadores; em
seguida a isso desembarcaram os sacerdotes católicos que
tinham vindo junto, entrando no país sob a direção do
vigário geral, afim da efetuar o batismo da tribo inteira. De
toda a parte afluíram os Paravars e foram se colocando por
ordem em fileiras: depois os sacerdotes proferiam algumas
palavras em latim, coisa que os pescadores de pérolas não
entendiam e cada paravar respondia algumas palavras em tamil,
coisa que os padres, por sua vez não entendiam também. As
cerimônias indispensáveis foram realizadas apressadamente;
logo depois distribuíram cédulas de papel onde havia escritos
nomes portugueses de batismo, entre a população, e a frota
pôs-se a caminho de regressar para Goa, levando o vigário
geral, e os demais sacerdotes. As autoridades coloniais
portuguesas, porém, puderam informar com orgulho ao seu rei
de que se lograra salvar vinte mil almas da condenação
eterna, conduzindo-as ao seio da Santa Madre Igreja.
A partir daí, os Paravars foram entregando, anualmente,
o seu tributo, e os brancos, do seu lado, cuidaram em troca
de que os piratas maometanos se mantivessem afastados do
litoral das pérolas. Mas, de resto, os Paravars puderam
continuar na observância pacífica de seus tradicionais
costumes; nunca mais apareceu um sacerdote cristão nessas
faixas de terra e, assim, aqueles pedacinhos de papel sobre
os quais estava traçado um nome incompreensível em caracteres
não menos incompreensíveis, ficaram sendo a única lembrança
que ligava os Paravars com a sua conversão religiosa.
Quando Francisco Xavier entrou em Goa, já oito anos
haviam decorrido desde essa cristianização dos pescadores de
pérolas; oito anos havia também que um sacerdote estivera ali
no sul entre a comunidade neófita.
As cabanas miseráveis, cobertas com folhas de palmeira,
nas quais residia essa gente, estavam situadas logo atrás do
Cabo Comorim, em uma faixa litorânia deserta e safara, em
cujas dunas ardentes só esporadicamente cresciam sebes de
espinheiros e leques de palmeiras. Ali viviam os Paravars,
gente musculosa e esbelta, de um tom de pele escura
carregado, esparsos em pequenas aldeias. Dia trás dia, já ao
roner da aurora, punham-se eles a caminho do alto mar,
metidos em barcas exíguas, com velas em forma de cauda de
andorinha, e, ao por do sol, regressavam às suas cabanas de
junco, trazendo a presa de pérolas conquistadas.
Em Tuticorin, a localidade principal dessa região,
continuavam existindo ainda os antigos templos pagãos com
ídolos coloridos, montes de argila pintada de branco e
vermelho vivo, cavalos feitos de marga, tábuas de pedra com
serpentes sagradas, touros, vacas e macacas, e até mesma nas
pequenas aldeias, encontravam-se símbolos obscenos e
grotescos, numerosíssimos, de toda a espécie, representativos
do culto tradicional, ao qual os pescadores de pérolas
pertenciam desde séculos.
Os Paravars batizados freqüentavam, às turbas, esses
santuários, e quando se sentiam atemorizados diante dos
gênios do fogo(que, pressagiando desgraças, dançavam à noite
sobre o mar) então, davam-se pressa em ir oferecer às suas
divindades a oblata de peixes, ou em construir novos templos
de barro e junco.
Eis que um dia apareceu Xavier no meio deles, com os pés
”descalços, levando sobre o seu corpo, uma vestimenta de mil
remendos, trazendo a cabeça coberta por um miserável capuz de
lã preta. Mantinha uma canainha na mão, repicava-a sem cessar
e os convocava, com algumas palavras tamílicas de sotaque
estrangeiro; isso soava mais ou menos: “Vinde, quero vos
anunciar uma boa nova!”.
Ainda em Goa Xavier fizera com que os intérpretes lhe
traduzissem algumas prédicas e orações em tamil e se pôs, com
grande esforço, a decorá-las. Quando, agora, já nessa, já
naquela aldeia dos Paravars, conseguira atrair com o tilintar
de sua canainha os filhos dos nativos, passou a explicar-lhes
o catecismo, ensinou-os a rezar e a cantar o AVE; os pequenos
se entregaram, as mais das vezes, à tarefa, como se houvera
tratado de aprender um novo brinquedo.
Foram as crianças também que lhe prestaram a mais
importante ajuda em sua luta contra os ídolos pagãos.
Sentiam-se alegres e felizes, quando sob a direção do padre
branco, tinham permissão para destruir as estátuas das
diversas divindades, na medida de seus desejos. Satisfeito
escreveu Xavier nessa ocasião ao seu irmão que se encontrava
na pátria: “Quando alguém me informa de culto aos ídolos,
então o que faço é reunir as crianças do lugar e dirigir-me
com elas para o ponto em que se encontram os ídolos. Os
insultos que o demônio recebe das crianças são maiores do que
as honrarias que os pagãos adultos lhe tributam, pois os
pequenos agarram os ídolos, reduzem-nos a pó mais fino do que
cinza, escarram sobre eles, calcam-nos aos pés e injuriam-nos
de outras maneiras ainda piores.”
Em breve os pensamentos todos das crianças se
concentraram em entusiasmar os seus pais também pelo homem
estranho, e, tal e qual se dera na cidade com os senhores
portugueses e seus escravos, aconteceu agora também com os
pescadores de pérolas: Xavier conquistou-lhes a afeição, eles
depositavam uma confiança cega nele e consideravam-no como um
ser superior; pois, desde a noite em que a sua canainha
tilintara e as suas estranhas palavras acerca de um Deus
invisível, de um reino dos bem-aventurados no céu e de um
lugar de condenação haviam ressoado profundamente no seio da
terra, por sobre as costas, desde então os pescadores não
viram mais os temidos gênios do fogo bailarem sobre as ondas.
Tinham a impressão de que o som de sua canainha houvesse
esconjurado dali o estranho fantasma.
Depois que a missão realizada nas costas de pesca fora
iniciada com tanto sucesso, Xavier foi visitando, uma depois
da outra, todas as regiões do império colonial português. Ora
trilhava ele ao longo das costas, por através de desertos de
areia, nos quais os pés mergulhavam no solo aquecido, ora,
caminhava por através de inenetráveis florestas virgens. Seu
admirável talento lingüístico permitira-lhe aprender, pouco
mais ou menos, o malaio, idioma que era geralmente
compreendido na Indochina.
Para onde quer que o seu roteiro o conduzisse, procurava
ele fazer os seus sermões e, então, se utilizava de todos os
pontos de contato, para tornar sensíveis em seus ouvintes os
perigos da condenação eterna e o poder de Deus. Assim é que
explicava ele com relação à ilha Homoro, coberta de vulcões,
que essas crateras eram as chaminés do Inferno, e que ali em
baixo de onde brotava a fumaça venenosa, os idólatras eram
fervidos durante toda a eternidade.
Naqueles tempos a conversão em massa ao cristianismo,
levada a cabo pelos Paravars, em troca de ajuda militar
portuguesa, tornara-se um costume predileto na Índia. Assim é
que o príncipe de Candy, ameaçado por povos vizinhos, pediu a
ajuda de tropas portuguesas e prometeu em troca a conversão
de todo o seu povo. Com isso estabelecera ele exigências
militares bem importantes, pois podia invocar o fato de que
em seu principado estava a famosa rocha, sobre a qual ainda
se tinha ocasião de ver claramente a pegada de Buda, e que em
um pagode da capital era conservado um dente do PERFEITO.
Dentro de tais circunstâncias resolveu o príncipe abrir mão
da crença de seus maiores só em troca da remessa de um forte
contingente militar.
Com os soldados brancos haviam entrado em Candy também
os tradicionais padres, os quais, ao mesmo tempo, haviam
batizado o príncipe e o povo. Mas depois, quando as tribos
maometanas inimigas foram escorraçadas e o corpo
expedicionário português deixara Ceilão de novo, o príncipe
também retornara à antiga religião e mandara abrir,
novamente, o templo que guardava o dente de Buda.
Um ano mais tarde, justamente durante a estadia de
Xavier na Índia Meridional, o soberano viu-se envolvido outra
vez em um conflito militar e necessitou, de novo, de urgente
auxílio das armas portuguesas. A fama de Xavier já penetrara
também em Ceilão; por isso o príncipe pediu-lhe a sua
mediação junto ao governo de Goa. Xavier aceitou essa
incumbência com alegria e, pessoalmente, dirigiu-se em
companhia das forças militares portuguesas a Candy e ali
procurou levar a cabo a nova cristianização.
Também nesse caso lançou mão ele, outra vez, das
crianças, para dar cabo, uma vez por todas, da idolatria. As
crianças, a seu comando, irroneram no famoso templo,
arrebataram o dente de Buda, e, em zeloso trabalho, puseram-
se a esfregar a rocha sagrada até que não se pudesse mais
perceber vestígio da pegada do PERFEITO.
Também outros príncipes do país chamaram o missionário,
o qual soubera tratar tão bem com as autoridades portuguesas,
e pediram-lhe que fosse às suas cortes, pois, a todo o
instante, surgia a necessidade de sufocar rebeliões locais
com o auxílio dos europeus. Onde quer que se desse um caso
assim, logo aparecia Xavier também para reunir os moradores
do principado em apreço, em troca de ajuda militar, por meio
de sua canainha, e aí, começava ele as suas lições de
catecismo.
Depois de uma atividade de seis anos, criara Xavier na
Índia um grande setor de trabalho. No começo do ano de l549
escreve ele a Ignácio: “Neste momento vivem membros da nossa
Sociedade em todos os pontos da Índia em que existem
cristãos. Encontram-se quatro nas Molucas, dois em Malaca,
seis no Cabo Comorim, dois em Coxun, dois em Bascin e quatro
na ilha Socotra. Cada grupo é dirigido por um superior”.
Suas cartas levaram um ano para chegar à pátria, depois
de uma longa travessia marítima. Quando uma dessas epístolas
chegava na Europa, isso eqüivalia sempre a uma festa de
alegria para a cristandade católica, tão atribulada pela
heresia.
O rei João de Portugal ficou entusiasmado com o sucesso
obtido pela missão que ele mesmo iniciara e incrementara.
Remeteu as cartas de Xavier para a Espanha também, onde eram
lidas por ordem do arcebispo de Toledo em todos os púlpitos.
“Conhecem-nos, agora, na Espanha inteira”, escreveu
nessa ocasião Pedro Faber a Ignácio. “Ali onde até então
ninguém tinha ouvido falar a nosso respeito, ou onde nos
julgavam apenas tomando em consideração as calúnias, não há,
agora, louvado seja Deus, mais nenhum lugar, nenhum palácio,
nenhuma prisão e nenhum hospital, onde quem quer que seja,
rico ou pobre, nobre ou burguês, sábio ou ignorante, mulher
ou criança, não saiba como nós vivemos e qual é o objetivo da
nossa Ordem.”
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