X. RENÚNCIA AS DIGNIDADES E INCIDENTES DOMÉSTICOS

A Companhia de Jesus, por toda a parte tão florescente e tão amada, tão procurada e tão admirada, estava longe de obter em França o êxito desejado. O Parlamento temia-a e fazia com que o rei a temesse; a Universidade não a queria. O espírito de independência destes dois corpos para com Roma explica a sua animadversão para com uma Ordem completamente dedicada à Santa Sé.

Uma Ordem religiosa só se podia estabelecer em França com autorização do Parlamento. Tendo esta autorização sido recusada à Companhia de Jesus, Inácio de Loiola tinha encontrado apenas um meio para ali introduzir o gérmen dum colégio: haura enviado a Paris, para trabalhar na santificação dos estudantes, alguns professores espanhóis, membros da Companhia. No número destes professores, encontramos Emiliano de Loiola, sobrinho. do nosso Santo, que lhe tinha dado a consolação de fazer os Exercícios Espirituais sob a sua direção com o maior fruto.

Guilherme Duprat, Bispo de Clermont, e amigo de Santo Inácio, esforçava-se em vão para obter o estabelecimento dum colégio. Queria fundá-lo a expensas suas e oferecia para este fim a sua casa, chamada então a casa de Clermont, cujo edifício é hoje ocupado pelo colégio Luís o Grande; mas os jesuítas não podiam tornar-se possuidores dele senão por cartas de registo, cuja concessão foi recusada. Em Paris renovavam-se mil acusações que a calúnia se esforçava por espalhar; temiam-se, como um flagelo, estes santos apóstolos, que levavam a luz ao meio das mais espessas trevas e reformavam todos os lugares por onde passavam.

Os amigos do santo fundador convidaram-no a desmentir categòricamente os caluniadores, como já tinha feito noutras circunstâncias; mas ele contentou-se com responder:

- Jesus Cristo, quando abandonou a terra, disse aos seus discípulos: Dou-vos a minha paz, deixo-vos a minha paz. Tomemos nesta ocasião como dirigidas a nós estas palavras. Algumas vezes é mais conveniente calar do que falar. Esperemos que a verdade brilhe e se defenda a si mesma.

É, que a Companhia, apesar de jovem, já não estava no seu começo. Tinha feito obras admiráveis, tinha conquistado a estima e veneração do mundo; bastava-lhe seguir o seu caminho sem se inquietar com os obstáculos que lhe levantava de longe a longe o inimigo de todo o bem.

Os jesuítas que o nosso Santo havia enviado a Paris, ocuparam o colégios dos Lombardos, esperando que a Providência lhes permitisse formar um estabelecimento, e oravam com ardor, cheios de confiança no futuro, quando uma circunstância providencial veio secundar os seus desejos.

O rei de França, Henrique II, enviou o Cardeal Guise a Roma, com a missão de convidar o Papa e o duque de Ferrara a entrarem numa liga contra o imperador da Alemanha. Inácio vê-o, explica-lhe o seu Instituto, diz-lhe que o seu fim principal é combater a heresia e procurar a glória de Deus pela santificação das almas. Acrescenta que um dos meios mais eficazes para chegar a este duplo fim é a educação cristã da juventude e que para isso são necessários colégios cristãos.

O Cardeal simpatiza com a idéia do santo fundador, e obtém, apenas regressa a Paris, cartas patentes do rei autorizando o estabelecimento da Companhia de Jesus em França. Mas estas cartas deviam ser sancionadas pelo Parlamento e as dificuldades renovaram-se. Não havia professo algum entre os jesuítas de Paris; Inácio envia a fórmula ao Padre João Baptista Viole e ordena-lhe que faça os seus votos nas mãos do Bispo de Clermont; o Bispo, doente naquele momento, pede ao abade de Santa Genoveva que os receba. Não podendo ainda Guilherme Duprat presentear com a sua casa a Companhia, e não querendo deixar um professo no colégio dos Lombardos, empresta a casa aos jesuítas e instala-os ali.

Assim começou o primeiro colégio da Companhia de Jesus na província de França; mas não pôde desenvolver-se tão rapidamente como noutras partes por causa da oposição persistente da Universidade e do Parlamento, oposição que não cedeu, alguns anos mais tarde, senão perante a autoridade da vontade real.

Entretanto Fernando, rei dos Romanos, renovava as suas solicitações junto de Inácio de Loiola, a fim de obter o Padre Canísio para o bispado de Viena. O santo fundador, inabalável na sua vontade de afastar todas as dignidades da sua querida Companhia, pediu ao Papa que não cedesse, se não queria a destruição duma Ordem que tinha a sua força e vida na humildade, e que não decidisse nada sem lho dizer; o Papa prometeu-lho. O embaixador de Fernando, desanimado com respeito a Inácio a quem não pode vencer, suplica ao Papa que ordene ao Padre Canísio que aceite o bispado de Viena, apesar da oposição do santo fundador.

- Oh ! isso nunca! - respondeu Júlio III - nós temos necessidade dos jesuítas!

Quando o embaixador se retirou, o Papa, dirigindo-se ao Cardeal Santa Cruz, disse-lhe:

- Uma Ordem tão útil à Igreja seria imediatamente destruída se nela entrassem as dignidades, porque estas abririam a porta à ambição; e a Companhia, perdendo então 0 seu espírito próprio, não seria mais a Companhia.

D. Fernando foi ainda desta vez obrigado a ceder diante da inflexibilidade de Inácio. O Cardeal Carpi dizia, a propósito desta tão enérgica firmeza do nosso Santo: - "Quando o prego está cravado, nada o pode arrancar"! Inácio também não cedeu quando o Papa desejou elevar Francisco de Bórgia à dignidade de Cardeal. O santo jesuíta, que já empregara todos os esforços para fugir a esta honra, soube que continuavam a querer-lha conferir, pediu para se afastar de Roma, e partiu furtivamente, deixando o seu Padre Inácio, repelir o chapéu, que contra sua vontade, lhe queriam dar.

O mau estado de saúde de Inácio de Loiola e os muitos e importantes negócios da Companhia não impediam de se ocupar duma multidão de . coisas relativas ao interior dos colégios, que havia criado em Roma, ou do noviciado, que vigiava sempre. O seu admirável gênio chegava para tudo e nunca encontrava nada pequeno para ocupar a sua atenção.

Estava-se construindo, na casa que se havia aumentado, um muro de vedação na via pública, e o nosso Santo ordena que fossem trabalhar nele os noviços. Estes jovens, alguns dos quais pertenciam às mais nobres famílias, eram objecto de edificação para a cidade. Vinham admirá-los neste trabalho tão humilde, às horas em que se sabia que a ele se entregavam sob a vigilância dos Padres, e todos ficavam assombrados da doçura dos seus movimentos, da modéstia de seu porte, da expressão serena dos seus rostos.

Um dia o Padre Geral veio ver os trabalhos e viu um dos jovens noviços com as costas voltadas pata o público, trabalhando com um ar preocupado e esforçando-se por evitar os olhares dos curiosos. A sua família era uma das principais de Roma. Era evidente para Inácio que este noviço tinha receio de ser reconhecido; o orgulho apoderara-se-lhe do coração, e, porque não era combatido, ia tornar-se o mais forte e pôr a sua vítima em oposição direta com a vontade de Deus, apesar da sua vocação ser certa. Inácio de Loiola viu isto tudo num relance de olhos.

Mandou chamar o Padre Bernardo Olivieri e disse-lhe, designando aquele noviço:

- Vossa Reverência não vê que aquele jovem Irmão está tentado? A vergonha está estampada no seu rosto e o orgulho no seu coração. Espera que ele sucumba para o socorrer? Não se atemoriza Vossa Reverência por deixá-lo perder por tão fútil motivo?

- Meu Padre, - balbuciou o Padre Olivieri - Vossa Reverência ordenou-me que empregasse . os noviços neste trabalho.

- Quando lhe dei essa ordem, - replicou o nosso Santo - não lhe ordenei que pusesse de parte o espirito de discrição e de caridade.

E indo em seguida para junto do noviço, sem mostrar que lhe tinha descoberto o segredo, disse-lhe cora a mais doce expressão de brandura:

- Como? pois também está aqui a trabalhar? É demasiado pesado para si; entre em casa; esse rude trabalho não é para as suas forças.

Mais tarde, esse noviço agradecia ao nosso Santo:

- Meu Padre, - lhe dizia - quanto agradeço a Vossa Reverência ter aproveitado então a fraqueza do meu corpo para curar a da minha alma ! Eu queria abandonar a Companhia, e é á doce compaixão de Vossa Reverência que devo a felicidade de ter permanecido nela.

É certo que o santo fundador não tinha sempre semelhantes contemplações; dependia isso das almas com que tratava. Mas quando empregava a severidade, tinha de ordinário um tacto particular para não deixar nunca uma impressão má ou lamentável àquele que recebia a correção. O que fazia dizer ao Padre Millon:

"O nosso Padre Inácio tem o talento de curar as feridas, que faz, de modo a não deixar cicatrizes".

Atravessando um dia o nosso Santo um corredor, viu dois Irmãos coadjutores conversando despreocupadamente, parecendo que não tinham nada que fazer. Encarou-os, mostrou-lhes com o dedo um-montão de pedras e ordenou-lhes que as içassem ao tecto. O outro dia surpreendeu-os igualmente desocupados e entretendo-se com coisas fúteis; encarou-os como da primeira vez, mostrou-lhes as pedras que estavam no tecto e ordenou-lhes que as fossem buscar e as pusessem no corredor. Os Irmãos compreenderam então a lição e não se entregaram mais à ociosidade.

Para aqueles que trabalhavam corajosamente em aperfeiçoar-se, o bom Padre Geral tinha palavras que os faziam redobrar de ardor. e pareciam dar-lhe asas.

Um Irmão coadjutor, a quem a natureza violenta arrebatava algumas vezes, era apenas ocupado em vigiar e conter a expressão dos seus pensamentos

- Coragem, Irmão, - dizia-lhe freqüentemente o nosso Santo-, continue a vigiar e a vencer-se e adquirirá mais merecimentos do que aqueles cuja doçura natural não exige combate.

Outro Irmão, dum natural igualmente impetuoso, afastava-se dos outros o mais possível para evitar as ocasiões de impaciência. Inácio, a quem nada escapava, vê-o um dia, durante o recreio, no isolamento que ele se criara. Aproxima-se dele, e com a sua voz o mais ternamente paternal, pergunta-lhe porque está só.

- Meu reverendo Padre, sou tão arrebatado que tenho receio de pecar por impaciência, se estiver com os meus irmãos.

- Engana-se procedendo assim, meu irmão, - disse-lhe o Santo. Não é pela fuga que se triunfa do inimigo, é pelo combate. A solidão não destrói a impaciência, apenas a dissimula. Alguns momentos de império sobre si mesmo, no meio das ocasiões que o atemorizam, fará com que o meu irmão avance mais do que com um ano de solidão.

E o bom Irmão, julgando ouvir a doce voz de Nosso Senhor, apressou-se a seguir o conselho do seu Padre Geral, e reconheceu daí a pouco toda a utilidade dele.

Inácio de Loiola dizia moitas vezes que, no caminho da perfeição, era necessário haver toda a cautela em não pôr a oração no lugar da virtude. Por isso, instando com ele um dia o Padre Nadal para que prolongasse o tempo prescrito aos religiosos para a oração, respondeu:

- Padre Jerónimo, as longas meditações são necessárias para aprender a dominar as paixões; mas quando, pela oração e pela reflexão, se obteve este resultado, unimo-nos mais facilmente a Deus num quarto de hora de recolhimento do que um homem não mortificado durante algumas horas de oração. O maior obstáculo para a união da alma com Deus é o apego a si mesma; é isso o que lhe impede o vôo.

Explicou-se mais brevemente, mas não menos inteligivelmente na seguinte ocasião.

O Irmão Lourenço Tristano era exemplar a todos os respeitos; contudo uma vez expôs-se a receber uma liçãozinha que nunca mais esqueceu. Trabalhava ativamente em reparar o muro de um terraço; Inácio apresenta-se, observa-o com atenção e prazer, e, no mesmo momento, um movimento do Irmão faz-lhe cair uma maçã do bolso. O bom Padre Geral, viu, mas fingiu que não deu por isso. Lourenço, muito embaraçado, parece ignorar a dificuldade da posição e evita voltar-se para não ser forçado a ver a comprometedora maçã. Inácio, a quem nada escapava, aproveita o momento em que o Irmão se aproxima do corpo do delito, e, com a ponta da bengala, faz rolar a maçã sob os olhos do delinqüente. O Irmão cora, não ousa olhar para o bom Padre Geral e muito menos pronunciar uma só palavra e continua tristemente a sua tarefa. Santo Inácio renova algumas vezes a sua pequena manobra s retira-se certo de que foi compreendido.

Um irmão dizia a outro:

- Estou muito persuadido de que não há em todo 0 mundo tão grande Santo como o nosso Padre Inácio.

No mesmo instante, esse santo Padre Inácio, que aparecia muitas vezes à hora e em sítio onde menos o esperavam, exclama com essa voz possante que fazia vibrar tudo em redor dele, quando queria aterrorizar um culpado:

- Desde quando lhe foi permitido aviltar a santidade a ponto de a atribuir a um pecador como eu? Essas palavras equivalem a uma blasfêmia! Há-de expiá-las, comendo durante quinze dias nos lugares mais vis da casa.

O bom Irmão submeteu-se humildemente a esta estranha penitência, achando muito simples a santa indignação do seu venerável Pai.

Francisco Cartero, jovem noviço, dum caráter muito alegre, ria francamente e a propósito de tudo. A sua fisionomia aberta, a sua aparência sempre satisfeita, davam-lhe o ar de rir interiormente das suas próprias idéias. Mas esta franca alegria não prejudicava nada o seu fervor e a regularidade da sua vida religiosa. Inácio encontra-o um dia, sempre sorrindo, e diz-lhe

- Francisco, diz-se que o Irmão está sempre a rir?

Francisco baixa os olhos e espera uma severa repreensão.

- Está bem, - acrescentou o Santo-, ria e regozije-se no Senhor, meu filho; um bom religioso não tem razões nenhumas para estar triste, e tem muitas para estar alegre e contente. Seja alegre, e sê-lo-á sempre se for humilde e obediente. Recomendo-lhe sobretudo estes dois pontos, porque conheço cm si faculdades que, no futuro, o poderão tornar apto para negócios importantes; se então lhe derem esses empregos, afligir-se-á se for humilde. Julgo reconhecer que os ares de Roma lhe não convêm; talvez deseje ir para Flandres, quando a minha intenção é enviá-lo à Sicília. Veja, pois, que, se tiver apego aos lugares e aos empregos, se expõe à tristeza e ao pesar, porque a obediência o porá muitas vezes em oposição com os seus gostos e desejos. A fim de ser sempre alegre, como hoje está, seja sempre humilde e sempre obediente.

Francisco, perfeitamente tranqüilo, e contentíssimo com a bondade paternal com que o seu venerável Geral lhe falara, mostrou-se mais satisfeito e mais alegre que nunca quando o deixou.

O Irmão João Baptista, cozinheiro da casa professa, encontrava assunto de meditação nas coisas mais insignificantes do seu emprego; era uma alma simples e duma grande virtude. O fogo da cozinha lembrava-lhe muitas vezes as chamas eternas ou as do purgatório e inspirava-lhe um grande horror ao pecado; recordava-se então das faltas da sua juventude e queria sofrer mil mortes para as expiar. Um dia o bom Irmão, dominado por essa viva contração, e julgando talvez evitar assim o fogo do purgatório, meteu a mão no fogo e deixou-a queimar. O odor que dela exala espalha-se imediatamente na casa; o Padre ministro corre, informa-se, e o pobre Irmão, a quem a dor arrancava abundantes lágrimas, mostrava-lhe a mão e lança-se-lhe aos pés implorando perdão, porque compreende a sua temeridade. O Padre ministro adverte o Padre Geral, e diz-lhe que, na sua opinião, este imprudente deve ser despedido da casa; os outros Padres são do mesmo parecer. Inácio julga o culpado de modo diferente:

- Este bom Irmão, - diz ele - merece mais compaixão. Sejamos indulgentes, porque a sua falta foi cometida por simplicidade.

O nosso Santo põe-se em oração, pede toda a noite a cura do bom Irmão, e no dia seguinte o Irmão João Baptista, que tinha dormido muito bem enquanto o seu Padre Geral velava por ele, encontra-se perfeitamente curado: a sua mão não tinha o menor sinal da horrível queimadura da véspera.

Compreende-se a veneração que o santo fundador inspirava a todos os seus religiosos, quando se vê que Deus parecia comprazer-se em justificá-la. Os bons Padres recolhiam tudo o que podiam apanhar ao seu santo Geral. Dividiam os cabelos: que cortava, os restos dos papéis nos quais tinha escrito uma ordem já inútil por ter sido executada, tudo o que lhe pertencia e lhe dizia respeito. Inácio tinha conservado o saca que usava em Manresa; mas não o pôde guardar intacto, porque lho descobriram e não tiveram escrúpulo de tirar-lhe alguns bocados; felizmente para os piedosos culpados, o Santo ignorou-os sempre.

O Padre Nadal foi menos feliz. Santo Inácio sofria muito dum dente e resolveu-se a mandá-lo arrancar. Nadal, presente á operação, apoderou-se furtivamente do dente e queria conservá-lo como uma relíquia; mas o nosso Santo, que tinha excelente ouvido, escutou algumas palavras, suficientes para traírem o segredo; censura severamente o seu querido Padre Nadal, a quem amava com terna afeição, obriga-o a apresentar o corpo de delito e fá-lo desaparecer para sempre.