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No ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1859, a
12 de Outubro, às 9 horas da manhã na igreja do Bom Jesus,
antiga casa professa dos Padres da Companhia, sita na antiga cidade
de Goa, onde se acha o túmulo com o corpo de S. Francisco
Xavier, com pareceram o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor
Visconde de Torres Novas, Governador Geral do Estado da Índia;
o Governador do arcebispado de Goa, a Relação do Estado,
Câmara Municipal do Concelho das Ilhas, e outras corporações,
autoridades e chefes das repartições deste Estado, abaixo
assinados, os quais haviam sido convidados para assistir à abertura do
dito túmulo com o fim de se conhecer o estado em que se achava o corpo
do mesmo Santo, em virtude da autorização concedida por Sua
Majestade, em portaria do ministério da marinha e ultramar n. 100
de 11 de Setembro [98] do mesmo ano e abaixo transcrita.
E logo com as chaves que existiam na secretaria geral e que foram
apresentadas neste ato, se abriu o cofre em que se acha o corpo do
Santo e se encontrou revestido de hábitos sacerdotais; depois, os
facultativos de que se compõe a junta de Saúde, o físico-mor
Eduardo de Freitas e Almeida, o cirurgião-mor José Antônio de
Oliveira e o cirurgião da 1º. classe Antônio José da Gama,
tendo procedido ao exame do corpo, acharam o crânio revestido, do
lado direito da respectiva pele cabeluda, onde se vêem ainda alguns
raros cabelos, e completamente descoberto do lado esquerdo.
A face toda está revestida de uma pele seca e escura com uma abertura
do lado direito comunicando com o seio maxilar do mesmo lado, e que
parece corresponder ao lugar da contusão de que trata o processo verbal
lavrado em i de janeiro de 1782; dos dentes visíveis, só falta
um dos incisivos inferiores; existem ambas as orelhas. Falta o braço
direito; a mão esquerda está completa, compreendendo unhas, como se
disse no processo verbal de 1782; as paredes abdominais acham-se
cobertas de uma pele ressequida e algum tanto escura; o ventre não
contém intestinos; os pés estão cobertos de uma pele igualmente seca
e escura, deixando ver a saliência dos tendões; faltam no pé
direito o quarto e o quinto dedos; contudo existem ainda em um deles
restos de pele e das falanges num estado muito esponjoso.
À vista disto foi decidido que o corpo e as relíquias do mesmo Santo
estão em estado tal que podem ser expostos à veneração pública, a
fim de excitar e aumentar a devoção dos povos; e de tudo, eu
Cristóvão Sebastião Xavier, oficial-maior da secretaria do
Governo deste Estado, redigi este processo verbal, no qual se
assinam todas as corporações e autoridades acima mencionadas. E eu
Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, secretário do Governo Geral o
fiz escrever. - Visconde de Torres Novas. - O governador do
arcebispado, Caetano Peres, etc... seguem 57 assinaturas.
Ajuntemos aqui a descrição do túmulo do nosso Santo.
S. Francisco Xavier, está depositado em um caixão de prata
lavrada e dourada. Este caixão está colocado em um soberbo mausoléu
de mármore negro de Itália, circundado por três altares que ocupam
as três faces do mesmo mausoléu, onde se acham esculpidas sobre o
mármore, em baixo relevo, e com toda a perfeição artística, as
principais ações da vida deste Santo apóstolo.
Este monumento, rico e precioso, merece ser minuciosamente admirado.
Era naquela igreja que vinham outrora tomar posse do poder os antigos
vice-reis e capitães generais, e os actuais governadores gerais
também continuam aquele uso praticando as mesmas formalidades.
A sacristia é em tudo proporcionada à magnificência deste templo, e
vê-se aí uma bela coleção de pinturas e quadros.
Atrás do túmulo, dirigindo-se da sacristia para o convento,
vê-se o quadro representando S. Francisco Xavier É, segundo se
diz, o seu verdadeiro retrato, tirado pouco tempo depois da sua
morte. Próximo da porta deste majestoso templo lê-se a seguinte
inscrição:
"Sepultura de D. Jerónimo Mascarenhas, capitão de Cochim e de
Ormuz, que mandou edificar esta igreja à sua custa; e, em
reconhecimento, a Companhia de Jesus lhe consagrou este lugar".
Sobre uma coluna à entrada da porta principal, lê-se:
"Reverendissimus et illustrissimus D. Alexis Menezeus,
archiepiscopus Goanensis, Indiae primas, Anno Domini MDCVI.
d. ma ".
Havia sido anunciado que a exposição do Santo corpo seria pública
desde 2 de Dezembro, dia da morte do grande apóstolo das Índias,
até 1 de janeiro de 1860. Mas já se contavam mais de trinta mil
estrangeiros chegados a Goa antes do dia da verificação jurídica da
santa relíquia. "As ruas desertas da cidade de Goa, viram desfilar
uma multidão de povo pertencente a todas as seitas e a todas as
religiões. O rio estava coberto de embarcações, e o templo
majestoso do Bom Jesus, onde está depositado o Santo, cheio de
pessoas distintas que concorreram a este ato solene. Um outro ato
semelhante, e que havia excitado talvez menos entusiasmo, tivera
lugar, há mais de 77 anos, ao 1 de Janeiro de 1782; porém
pouca gente assistiu "[99].
Monsenhor Canoz, da Companhia de Jesus, bispo de Tamase e
vigário apostólico de Maduré, convidado a fazer parte dos
peregrinos aos quais o governador de Bombaim havia oferecido o seu
barco para se transportarem ao lugar da exposição solene do santo
corpo, vai-nos dar a interessante descrição daquela cerimônia e
dizer-nos a felicidade que ele gozou, junto do túmulo venerado do
nosso ilustre Santo. Achamos estes pormenores na carta que ele
escreveu ao Rev. Padre Bekx, geral da Companhia de Jesus e tem a
data de 10 de Dezembro de 1859.
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"A igreja do Bom Jesus, ligada à antiga casa professa da
Companhia e edificada por D. Pedro de Mascarenhas em 1592,
não tem, diz ele, "senão uma só nave mui larga, e dois braços de
cruz, no fundo dos quais se acham, dum lado o altar de S. Francisco
Xaxier, e doutro o de S. Francisco de Borja [100]. O altar-mor
é dedicado a Santo Inácio...
Atrás da capela de S. Francisco Xavier eleva-se o famoso
monumento erigido à memória do apóstolo das Índias pelo grão-duque
de Toscam em 1655, e que se distingue através de uma larga grade
de bronze dourado e artisticamente trabalhado. É para sentir que
esteja encerrado em um espaço estreito e escuro que não permite
apreciá-lo como merece. É formado de mármore branco, deixando nos
quatro lados da base um largo espaço livre para um altar.
A segunda parte do monumento, colocado sobre aquela base, é ornada
no meio de baixos relevos em bronze; representam, dum lado o Santo
baptizando pobres infiéis, do outro pregando verdades da salvação,
e sobre a terceira face, morrendo, abandonado na ilha de Sancião,
próximo da China.
Finalmente a terceira parte diminui gradualmente de largura á
proporção que se eleva; está encimada por um magnífico caixão de
prata contendo o corpo do Santo e ornado de pequenas colunas entre as
quais estão colocados vidros. Tinha-se feito descer aquele caixão
para o colocar sobre um estrado elevado no meio do cruzeiro da igreja,
e coberto de um tapete verde; mas o caixão forrado de um rico estofo,
que encerra o santo -corpo, tinha sido retirado e deposto sobre uma
das faces do monumento onde era permitido aos fiéis venerá-lo.
Um dia, depois de ter dito a santa missa no altar oposto, vim
prostrar-me diante daquele caixão que abracei com toda a efusão do
coração; e até à chegada dos piedosos peregrinos prolonguei com
delicias minha ação de graças, meditando sobre as virtudes e
merecimentos do Santo que o próprio corpo de Jesus Cristo que eu
acabava de receber, santificara duma maneira tão prodigiosa.
Finalmente chegara o grande dia da festa de S. Francisco Xavier que
foi anunciado solenemente pelo som majestoso dos sinos da Catedral e de
todas as igrejas da cidade, assim como pelas salvas de artilharia.
As tropas, reunidas naquela ocasião, desfilavam com a música à
frente, por diante da fachada da igreja do Bom Jesus e iam postar-se
m estrada por onde devia passar o governador. Os cônegos da Catedral
e a clerezia achavam-se já na capela do monumento esperando S.
Ex.. Logo que ele chegou, ás io horas precisamente, começou a
procissão que, atravessando o largo corredor do claustro, entrou m
igreja. O caixão era levado por seis cônegos com capas de seda
prateadas, debaixo do pálio e seguido do governador, do seu estado
maior e de todos os funcionários civis e militares do Estado,
convidados para aquela imponente cerimônia. Parou junto da barreira
do santuário para se abrir o caixão e tirar-se a parte superior.
Então o corpo do Santo, posto a descoberto foi deslizado no interior
do mesmo caixão, dando-se em seguida começo a uma missa solene com
música que foi interrompida pelo panegírico do apóstolo das Índias.
O administrador daquela casa tinha preparado para nós um lugar na
tribuna de onde podíamos contemplar à nossa vontade a procissão.
Quanto ao sermão, foi-nos impossível entender uma só palavra por
causa da distância em que nos achávamos e do grande sussurro do povo
que ia e vinha dirigindo-se para junto do túmulo sagrado, sem prestar
atenção ao pregador a quem também não compreendia...
Acabada a missa, um dos sacerdotes de serviço veio procurar-me assim
como aos meus dois companheiros, o P. Gard e o P. Charmillot,
chegados na véspera de Belgão, para nos introduzir no santuário a
beijar os pés do Santo. Eu detive-me em presença do caixão,
penetrado de devoção, deixando passar livremente por diante de mim
todos os cônegos e os clérigos em serviço. Não posso exprimir-vos
meu M. R. Padre, a comoção e o sentimento de alegria e
felicidade que experimentei colando os meus lábios sobre aqueles pés
sagrados que percorreram tantas regiões longínquas e pisaram tantas
vezes esta terra da Índia para anunciar a tão diversos povos,
abismados nas trevas da idolatria, a boa nova da paz e da salvação:
Quam speciosi pedes evangelizantium pacem, evangelizantium bona! -
Que formosos pés os daqueles que evangelizam a paz, que evangelizam o
bem!
Quanto Deus é admirável nos seus santos, e como ele se compraz em
glorificar, mesmo aqui em baixo, aqueles que só têm trabalhado pela
sua glória! Eu considerei-me como delegado, com os meus dois
companheiros, em nome de toda a Companhia, numa tão imponente
cerimônia, e orei com todo o fervor de que era capaz, pela Igreja e
seu chefe nas graves conjunturas em que ele se acha atualmente; por
toda a Companhia e por aquele que a dirige; e por todas as missões da
India e da China, unindo no meu coração o Maduré e Bombaim
pedindo para todos os nossos missionários o espírito apostólico de
S. Francisco Xavier e para os povos infiéis a graça da
conversão.
O meu espírito, entregue a uma multidão de reflexões piedosas,
não podia separar-se deste lugar abençoado. Não me achava
satisfeito com aquele primeiro ato de veneração; voltei para ali
naquela tarde, tornei a ir na seguinte manhã. Porém para satisfazer
mais à vontade, a minha devoção, desejei ser admitido a uma visita
particular; tinha já falado nisto ao cônego Pereira, vigário
geral, encarregado de presidir no domingo à veneração das santas
relíquias. Falei ainda ao administrador, depois ao secretário do
governador, e fui bem sucedido. Conheceu-se que tinha esquecido
colocar debaixo do caixão uma prancha com rebordos e guarnecida de
pequenas rodas que devessem facilitar o movimento diário antes e depois
da veneração. Foi fixado para o meio dia aquele trabalho e fui para
aí convidado com os meus companheiros. Podeis imaginar se nós fomos
fiéis ao chamamento. Ajudei por minhas próprias mãos a levantar a
preciosa carga que foi deposta sobre o estrado em frente da uma de
maneira, que nos deixava todo o vagar para contemplar o santo cor o.
Ele está coberto de uma rica casula bordada a oiro e guarnecia de
pérolas, presente de uma Rainha de Portugal em 1699, quando
S. Francisco Xavier foi declarado defensor das Índias. Mas não
era isto que atraia tanto a nossa atenção; ocupávamo-nos mais em
fazer tocar os objetos de devoção, imagens, medalhas e rosários a
seus pés sagrados.
Naquela ocasião um dos assistentes mandou-me uma fita cor de rosa,
medida do comprimento do corpo, que eu envio a Vossa Paternidade.
Auxiliei de novo a colocar o caixão no esquife; e foi então
especialmente que ajoelhando-me junto daquela cabeça venerável,
pus-me a contemplar aquele rosto do apóstolo, que parecia pregar
ainda todas as virtudes apostólicas de que deixou no mundo tão belos
exemplos, e sobretudo aquela máxima salutar que, saída da boca de
Inácio, tinha feito nele uma impressão tão profunda e duradoira, e
exercido uma tão maravilhosa influencia para a sua conversão e sua
dedicação completa, ao serviço de Deus; aquela máxima que ele
citava a todos, especialmente aos felizes do mundo e aos príncipes da
terra, que mais precisavam: Quid prodest homini si mundum universum
lucretur, animae vero suae detrimentum patiatur? - De que serve ao
homem ganhar o universo se ele chega a perder a alma?
Reconhecem-se ainda os traços daquele heróico personagem que três
séculos não puderam apagar. A pele que cobre o rosto está algum
tanto trigueira; a boca entre-aberta dessa ver os dentes;
distinguem-se os lábios, o nariz, as fontes; dir-se-iam
espalhados sobre o crânio cabelos grisalhos, como encrustado na pele;
a cabeça está algum tanto elevada, apoiada sobre um coxim. O braço
esquerdo coberto duma alva preciosa estendido sobre a casula, deixa a
descoberto a mão toda, cujos dedos se conservam suspensos e algum
tanto separados uns dos outros.
Sabe-se que o braço direito foi cortado em 1616 por ordem do P.
Geral Aquaviva e transportado a Roma, onde está exposto no Gesú,
no altar de S. Francisco Xavier. Depois daquela amputação,
feita numa grande sala da casa professa, o corpo do Santo perdeu
aquela frescura e flexibilidade que conservara até ali.
Os pés conservam a sua forma e todos os dedos, exceto os dois
pequenos do pé direito que foram tirados.
Entro nestes pequenos pormenores porque me persuado que agradará a
Vossa Paternidade e àqueles dos nossos que lerem e que sem dúvida
invejarão a minha felicidade de ter rosto com meus olhos aqueles restos
milagrosamente conservados, que nos pregam tão fortemente a
penitência e a mortificação, fazendo-nos ver sobre a terra a
glória daqueles membros crucificados pelo serviço de Deus...".
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Um fragmento do braço direito do Santo, como já dissemos, foi
concedido ao colégio que a Companhia de Jesus tinha estabelecido em
Macau; mas sob a influência, ou antes, sob a dominação inglesa,
o colégio dos jesuítas foi transformado em caserna e somente a igreja
conservada.
Em 1834, uma imprudência dos soldados incendiou a caserna, os
socorros foram mal dirigidos, o incêndio devorou os estabelecimentos,
alcançou a igreja e não deixou senão ruínas... Não nos
enganamos: no meio daquela grande e deplorável destruição um
admirável milagre se verificou: quatro estátuas somente foram
respeitadas pelas chamas e se conservaram de pé perfeitamente
intactas: eram as de Santo Inácio de Loyola, S. Francisco
Xavier, S. Francisco de Borja e S. Luís Gonzaga.
Numerosas relíquias dos mártires do Japão desapareceram naquele
desastre... A de S. Francisco Xavier foi a única salva!
Poderíamos citar factos ainda mais recentes, atestando que o poder
dos merecimentos do ilustre apóstolo, cuja admirável vida nos foi
tão agradável escrever, está bem longe de enfraquecer; mas
limitar-nos-emos a afirmar que ele se não invoca em vão.
Acrescentaremos aperras que as páginas que acabam de ser lidas foram
inspiradas pelo sentimento do mais profundo, mais vivo, mais terno
reconhecimento.
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Glória a Deus!
Glória a S. Francisco Xavier!
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