IV. EM SALAMANCA

Antes de abandonar Alcalá, o nosso santo apóstolo despiu o vestuário dos estudantes, que lhe tinham imposto, e retomou a sua pobre túnica cinzenta, o chapéu da mesma cor e o bordão de peregrino; conservou, porém, calçado.

Foi assim que ele se apresentou diante do Arcebispo de Toledo. O Prelado acolheu-o com uma bondade paternal, animou o seu zelo, prometeu-lhe proteção e aconselhou-o a que não voltasse a Alcalá, onde os seus inimigos podiam renovar as perseguições, mas se dirigisse a Salamanca, onde poderia continuar os estudos e ocupar-se das suas costumadas obras. Dado este conselho, o Arcebispo entregou-lhe uma esmola considerável para a viagem de Valhadolid a Salamanca.

Chegado a esta última cidade, Inácio experimentou tanto desprazer pelo estudo como em Alcalá; sentia que Deus o chamava a outra parte; mas aonde? Ignorava-o ainda. Esperando conhecer a vontade divina, pôs-se sob a direção de um religioso dominicano, e empreendeu a conversão dos estudantes e dos pecadores que encontrava. Falava em público e em particular todas as vezes que achava ocasião, e, quinze dias depois da sua chegada, tinha operado tão numerosas conversões, que a opinião pública alarmou-se.

"- Será conveniente, - dizia-se - que um leigo, um mendigo, se permita pregar, dirigir as almas, como se fora um doutor em teologia? Será possível que as suas pregações não sejam cheias de erros? Deve prevenir-se a autoridade eclesiástica".

Um dia, o confessor do nosso herói convida-o para jantar no domingo seguinte, em nome do subprior da sua comunidade, e previne-o de que o desejam interrogar sobre a sua doutrina; porque os Dominicanos foram advertidos do bom resultado das suas pregações e querem assegurar-se da sua ortodoxia. Inácio aceita o convite. Depois de jantar, conduzem-no a uma capela, onde se encontra o substituto da Inquisição e o subprior que ocupava o lugar do prior ausente. O religioso que conduzia o apóstolo era o seu confessor; este último, encarregado de usar da palavra, submeteu-o a um interrogatório, que terminou deste modo

-Num tempo em que a heresia causa tantos males, o senhor recusa dar a conhecer a sua doutrina àqueles que têm direito de a julgar? Se ela é pura, por que se cala? Se não é, por que a ensina?

Inácio guardou silêncio.

- E que significa o estranho vestido que usa o seu companheiro?

Isto dirigia-se a Calisto, que tinha acompanhado Inácio, e que trazia uma espécie de saia curta, tanto mais ridícula quanto era elevada a estatura de Calisto. Este último respondeu:

- Meu Padre, bem sei que este vestido é ridículo; mas encontrei um desgraçado tão pouco coberto, que lhe dei parte da minha roupa.

O subprior, olhando Calisto com uma espécie de desprezo, acompanha o seu olhar com um sorriso de incredulidade, e dirigindo-se a Inácio

- Como recusa dar a conhecer a sua doutrina, saberemos forçá-lo a isso.

Depois destas palavras, pronunciadas no tom da mais viva indignação, retira-se com os seus irmãos e deixa Inácio e Calisto a sós na capela; fecham as portas do convento, em seguida vêm procurar Inácio e conduzem-no a uma cela. O nosso herói passa três dias no convento comendo com a comunidade, recebendo na sua cela os religiosos que vêm vê-lo e ouvi-lo falar de Deus e esperando que à Providência aprouvesse decidir da sua sorte.

No quarto dia, o substituto da Inquisição apresenta-se e manda levar Inácio e Calisto para uma prisão. São encerrados com os maiores criminosos, num lugar onde se exala um cheiro fétido e cujos muros ressumam humidade por toda a parte. Acorrentam-nos um ao outro com uma cadeia tão curta que os pés de ambos se tocam e não podem fazer movimento algum sem incômodo e dor e sem que um arraste o outro. É uma verdadeira tortura! Passam a noite em oração e bendizem a Deus do fundo do coração. Sabendo-se no dia seguinte que foram presos, apressam-se pessoas amigas a visitá-los e levando-lhes camas, alimentos, tudo, enfim, que pudesse dulcificar a sua intolerável posição.

O bacharel Frias, vigário geral do Bispo, vem interrogar Inácio e Calisto na prisão, cada um separadamente. Depois de ter respondido a todas as perguntas que lhe foram dirigidas, o nosso herói entregou ao vigário geral o seu livro dos Exercícios Espirituais e pediu-lhe que o examinasse. Alguns dias depois, fizeram comparecer Inácio diante de um conselho composto de quatro doutores em teologia: Isidro, Paravinha, Frias e o vigário geral, que também se chamava Frias. Cada um por sua vez o interrogou sobre as mais delicadas e difíceis questões: sobre a Santíssima Trindade, a Encarnação, a Eucaristia e até sobre o direito canônico. Inácio pediu indulgência, por humildade. Bem sabia que nenhum homem sem estudos possuía a ciência que o próprio Deus lhe dera; mas, forçado a obedecer, enche de admiração os doutores que o escutam. Fazem-lhe perguntas sobre o primeiro mandamento... Inácio não é senhor de si, deixa falar o seu coração, a sua alma, e parece ter esquecido tudo, exceto Deus e o ardente amor que o inspira. Os seus examinadores estavam admiradíssimos e também julgavam amar a Deus naquele momento tanto como Inácio o amava.

Havia ainda uma dificuldade relativa aos Exercícios Espirituais. Como é que um homem sem estudos pode distinguir claramente. o pecado venial do pecado mortal?

- Não o acusamos de incorrer em erro; mas censuramos-lhe a temeridade.

- A vós cumpre julgar e não a mim; - respondeu Inácio - se os princípios postos são ortodoxos, absolvei-nos; se são errôneos, condenai-nos.

Ninguém ousou condená-los.

Por negligência inexplicável, e que a Providência permitiu sem dúvida em favor do santo apóstolo, a porta da prisão ficou aberta uma noite inteira. Todos os prisioneiros se aproveitaram disso para se evadirem. Inácio e Calisto foram os únicos que se recusaram a aproveitar-se disso para readquirir a liberdade. Este facto provava suficientemente a sua inocência; assim o compreenderam, mas o processo eclesiástico devia fazer-se com todas as formalidades exigidas, e o cativeiro teve que prolongar-se alguns dias ainda; todavia, foi suavizado. Tiraram-lhe a cadeia que o ligava a Calisto e deram-lhe um quarto por cima das enxovias destinadas aos malfeitores. Uma coluna, colocada no centro, sustentava o tecto do quarto. A esta coluna estava presa uma cadeia que terminava por duas pontas, a cada uma das quais prenderam um dos pés dos nossos prisioneiros. Um deles não podia mover-se sem arrastar o seu companheiro; mas, ao menos, estavam sós.

Este quarto, assaz espaçoso, tornou-se logo uma espécie de lugar público; tudo ali ia para ver e ouvir o Santo. D. Francisco de Mendonça [34], que o visitava freqüentemente, disse-lhe um dia

- Como deve ser dolorosa esta prisão! Como esta cadeia deve ser pesada!

Não, senhor, - lhe respondeu o nosso herói - não há cativeiro, por duro que seja, que me não agrade sofrer por Jesus Cristo; não há pesadas cadeias que não esteja disposto a arrastar com prazer para lhe testemunhar o meu amor!

Uma piedosa e nobre senhora escreveu-lhe para exprimir a parte que tomava nos seus sofrimentos imerecidos; Inácio respondeu-lhe imediatamente

- "V. Ex.a parece ignorar que a cruz encerra um tesouro de glória. Não me pranteie, felicite-me antes, porque estou alegre. O meu mais ardente desejo é sofrer ainda mais se, com isso, eu for mais agradável ao soberano Senhor, que tenho a honra de servir".

Vinte e três dias depois da sua prisão, Inácio e Calisto compareceram de novo diante dos juízes e ouviram pronunciar a sua sentencia nestes termos:

"A vida de Ínigo é pura, a sua doutrina é ortodoxa. Ele e seus discípulos podem instruir o povo. É-lhes proibido, todavia, explicar a diferença entre pecado mortal e pecado venial antes de terem estudado teologia durante quatro anos. Sob esta condição, serão postos em liberdade".

Inácio de Loiola inclinou-se e disse aos seus juízes:

- Conformar-me-ei com a condição que me é imposta durante o tempo que esteja sob a vossa jurisdição.

Esta proibição de definir a natureza dos pecados, de que ele falava, pareceu ao zelo do nosso Santo um obstáculo invencível. Julgou ver nisso uma manifestação da Providência e preparou a sua partida. Os seus discípulos, pouco dispostos a segui-lo doravante numa vida tão aventurosa, fizeram inúteis esforços para o convencerem a ficar:

- A vontade de Deus chama-me a outra parte, - lhes disse - mas vós não sois obrigados a seguir-me; sou forçado a partir, separemo-nos pois, mas permaneçamos unidos de espírito e de coração, e que Deus nos conduza a todos aonde nos chama.

Os seus amigos censuram-no por aquela resolução, que os privava da sua presença e da edificação que lhes dava. Nada, porém, o pôde abalar. Pôs os livros e os manuscritos sobre um jumento e dirigiu-se para Barcelona.

Foi enorme a alegria à sua chegada àquela cidade, onde contava numerosos amigos; mas a esta alegria sucedeu logo uma profunda tristeza, porque Inácio declarou que apenas se demoraria alguns dias e desejava abandonar a Espanha o mais breve possível. Empregaram-se todos os esforços para o deter, mas em vão; a sua firmeza triunfou de todas as instâncias e de toda as lágrimas da amizade.