IV. OBRAS DE CATEQUESE E REGENERAÇÃO

D. Antônio de Araoz, sobrinho do nosso Santo, acabava de fazer os seus votos. Foi o primeiro que os pronunciou depois dos dez Padres fundadores, e para o coração de Inácio de Loiola, que os recebeu, foi um dia de grande consolação. Diogo de Eguia fez também os seus no mesmo dia, imediatamente aos de Araoz. Ambos foram em seguida enviados para Espanha a fim de trabalharem na santificação das almas na cidade de Barcelona. O Padre Araoz viu correr a multidão ao seu encontro quando chegou àquela cidade. Toda a população queria ver o sobrinho do Santo, queria saber notícias do Santo! O bom Padre era literalmente assediado desde manhã até à noite, e viu-se estimado do povo e dos grandes, que não se cansavam de ver e ouvir o próximo parente do Santo, e de receber os seus conselhos espirituais.

Havia muitos anos que ninguém tinha visto Inácio de Loiola em Barcelona; mas a sua lembrança ficara viva em todos os corações e em todas as almas, e julgavam encontrar o venerado Santo naquele que acabava de ser formado na sua escola, a quem ele falara dos seus queridos barcelonenses, a quem tinha recomendado os seus interesses espirituais duma maneira particular. Amaram, pois, logo o Padre Araoz e amaram-no e veneraram-no pelas suas virtudes, como se amavam e veneravam por toda a parte os Padres da Companhia de Jesus.

Inácio de Loiola não se limitou aos importantes trabalhos do governo da Companhia, sobre os quais tornaremos a falar; ocupou-se também de criar na cidade de Roma obras e instituições de caridade e de zelo, de que só ele teve o primeiro pensamento, de que foi o primeiro instigador, e que ainda hoje são mantidas.

Eram numerosos os judeus na cidade; alguns tinham reconhecido a verdade e abraçado o cristianismo, graças aos esforços do nosso Santo, e grande número doutros haviam-lhe confessado que temiam a pobreza, resultado inevitável da sua conversão. Inácio só viu um meio de conciliar tudo no primeiro momento e empregou-o. Mandou preparar uma parte da sua casa para dar asilo aos catecúmenos e aos neófitos, e pediu esmolas para os sustentar, esperando melhores dias. Aumentando todos os dias o número das conversões, e não sendo suficiente a casa da Companhia, Inácio não descansou enquanto não obteve das pessoas mais ricas uma casa especial para esta obra, a fim de que os seus queridos israelitas estivessem em casa sua. Foi assim que ele fundou a casa de S. João de Mercato. Depois deste primeiro resultado dos seus esforços e fadigas, pediu ao Soberano Pontífice um decreto que assegurasse aos israelitas convertidos a conservação dos seus bens legítimos, herdados ou adquiridos, e, para os filhos que se tivessem convertido sem terem sido autorizados por seus pais, o direito de herdar, apesar da diferença de religião, os bens legitimamente possuídos, e de destinar ao estabelecimento dos neófitos, de S. João de Mercato os bens mal adquiridos, que se empregavam nestes casos em obras pias. O Papa Paulo III concedeu todos estes favores e designou, a pedido do nosso Santo, um Cardeal que devia ser o protetor desta importante fundação. Durante o primeiro ano, Inácio teve a consolação de baptizar quarenta judeus. De todos os neófitos fazia outros tantos apóstolos que se esforçavam por levar-lhe novas conquistas. Um dia, um dos catecúmenos, não podendo resistir mais às seduções dos seus correligionários, estava prestes a voltar para eles, quando o santo fundador o procurou e lhe disse:

- Isaac, queres abandonar-nos? Não o faças, meu filho, fica conosco.

Estas palavras vibraram profundamente na alma de Isaac, que julgou ouvir a palavra do próprio Deus, e nada foi capaz de o abalar; tornou-se depois um dos mais fervorosos cristãos.

Tendo o catecumenato de S. João de Mercato tomado cm pouco tempo considerável desenvolvimento, e não sendo os Padres jesuítas assaz numerosos em Roma para se conservarem à frente da sua direção, foi-lhe dado para superior um Padre secular, João de Torano, com grande reputação de virtude e de santidade. Mas o inferno não podia sofrer, sem clamar, os prodígios de zelo e de caridade operados para a glória de Deus por Inácio de Loiola e pela sua santa Companhia; não podia ver arrancar-lhe tantas vítimas sem perseguir os heróicos apóstolos e sem fazer explodir sobre eles todo o furor do seu ódio e da sua vingança.

João de Torano deixa-se dominar pelo demônio do orgulho, e chega a servir-lhe de instrumento para tentar a perda de Inácio e dos seus discípulos: "Por que - dizia ele - faz este Inácio de Loiola tanto bem em Roma e os seus discípulos em toda a Europa e até no Oriente? Esta casa, de que sou superior, é, de facto, Inácio que a dirige. O Cardeal protetor, os benfeitores, os administradores consultam-no e nada fazem sem o ouvir; o próprio Papa faz tudo o que ele deseja, e eu não sou aqui senão um seu subordinado. As coisas não podem continuar assim por muito tempo".

A cabeça do desgraçado Torano exalta-se: espalha o boato de que Inácio e os seus discípulos são hereges, hipócritas e traem o segredo da confissão; faz uma memória repleta destas infames calúnias e dirige-se ao Papa pedindo-lhe um inquérito... Mas Deus lá estava e sabemos que a promessa feita à santa Companhia de Jesus por Nosso Senhor devia ser e será até ao fim cumprida. O inquérito solicitado pelo caluniador volta-se contra ele. João de Toxano foi convicto de heresia pelo Cardeal Monte, encarregado de tratar desta questão, e viu-se privado dos seus benefícios, os bens foram-lhe confiscados e foi-lhe interdito todo o exercício do santo ministério. Devia ser condenado a prisão perpétua, unas Inácio não queria vingar-se dele, e tanto trabalhou, que conseguiu que esta pena fosse comutada na de expulsão do território.

O nosso Santo fundou igualmente em Roma uma obra que também se perpetuou: a das crianças abandonadas. Estabeleceu duas casas, uma para crianças do sexo masculino, outra para as do sexo feminino; escolheu administradores, encontrou benfeitores, deu sólidas bases a esta obra, obteve do Papa que um Cardeal fosse protetor dela, e retirou-se, como já fizera com a casa dos judeus, a fim de não dar lugar à inveja. Mas a lembrança do fundador não se apagou, e ainda em nossos dias, todos os anos, no dia da festa de Santo Inácio os órfãos vêm ajudar a todas as missas que se dizem na igreja de Gesú, em honra daquele cuja caridade lhes fundou o asilo.

Nas suas visitas aos doentes dos hospitais, o Santo viu que alguns não pensavam em se confessar senão nos últimos momentos e que muitos morriam sem receber os sacramentos. Impressionado com a perda de tantas almas, pediu ao Papa que pusesse em vigor a decretai de Inocêncio III, ordenando que o médico não visse outros doentes senão aqueles que começassem por se confessar. Propôs apenas uma modificação: a de permitir duas visitas do médico antes da confissão, mas de proibir a terceira sob pena de incorrer nas penalidades da lei. O Papa seguiu o conselho e o povo submeteu-se a estas condições sem manifestar descontentamento. Este costume conservou-se.

Isto não bastava para o zelo do Santo. Um grande número, de raparigas arrastadas pela miséria, lançavam-se na desordem moral; Inácio queria preservá-las desta desgraça e fundou para elas o convento de Santa Catarina, onde são formadas na virtude e no trabalho, e de onde não saem senão para se casarem; se forem chamadas à vida religiosa, podem tomar ali o véu. Depois de haver tomado para esta fundação todas as medidas que podiam garantir-lhe o futuro, retirou-se, como sempre.

O santo fundador tinha três amigos, sem os quais não empreendia nenhuma destas obras: eram Tiago de Crescenzi, duma das mais distintas famílias de Roma; Lourenço de Castelo, homem muito estimado e possuidor de considerável fortuna; e Francisco Vennuncci, primeiro capelão de Paulo III. Entendia-se com eles para tudo o que queria empreender neste gênero: os passos a dar, as esmolas a pedir, os administradores a escolher, o Cardeal a solicitar para proteger a obra, e a organização que podia ter: Todas estas medidas de prudência não conseguiam evitar os obstáculos que o inimigo do bem procurava lançar sobre o caminho do nosso Santo; mas Nosso Senhor, depois de ter mostrado esta nova crus ao ilustre fundador, não tardava a ser-lhe favorável.

Não bastou ao santo fundador ter abrigado as raparigas que podiam ficar expostas a perder-se; quis também salvar as mulheres que estavam perdidas, retirá-las do abismo em que tinham caído e colocá-las num lugar de refúgio que pudesse estar sempre aberto ao arrependimento. Queria fundar para estas pobres pecadoras um convento especial; porque o de Santa Madalena não recebia as mulheres casadas, e não admitia das outras senão as que quisessem aceitar o véu; ora nem todas eram chamadas a esse estado. Inácio não encontra para esta obra a simpatia que havia encontrado para as precedentes; mas não desanima. Trabalhava para a glória de Deus e estava certo de que Deus o ajudaria. Pediu, suplicou a algumas pessoas, e obteve enfim que D. Leonor, mulher de D. João da Vega, embaixador de Carlos V junto da Santa Sé, recebesse algumas dessas pobres pecadoras e fizesse recolher outras por algumas senhoras suas amigas, aguardando que houvesse a desejada casa para as recolher a todas.

Contente com esta promessa, impelido pela sua caridade, corre em busca das almas perdidas que quer salvar, e, como se não pudessem resistir à sua palavra, essas mulheres desgraçadas abandonavam tudo à sua voz e seguiam-no. E via-se o santo fundador da Companhia de Jesus atravessar as ruas de Roma, seguido dessas mulheres, das quais todas as pessoas honradas se afastavam com horror, e chegar assim ao palácio de Espanha, onde as entregava a D. Leonor. Quase todos os dias dava um passeio deste gênero, apesar de todos os negócios que tinha de tratar e apesar dos seus contínuos sofrimentos, às vezes muito intensos. Um dia disseram-lhe que algumas pessoas achavam pouco digno dele percorrer as ruas da cidade seguido dessas pobres pecadoras, e acrescentaram:

- Vossa Reverência entrega-se a muitas fadigas e cuidados para obter pouco resultado; porque essas desgraçadas, que se deixam comovei por um instante, tornam em breve a recair.

- Darei o meu tempo e as minhas fadigas por bem empregadas, - respondeu o Santo - se chegar a evitar um só pecado mortal de cada uma delas.

Entretanto, D. Leonor termina por dizer a Inácio que ela e as suas amigas não podiam continuar a receber tanta mulher, e que a casa destinada a esta obra não permitia que se recebesse mais uma. Foi o momento da Providência. Inácio de Loiola não tem auxilio algum, mas espera contra toda a esperança e crê que é da vontade divina que ele empreenda, só, o que ninguém quer começar. Enquanto pede a Deus o seu apoio e auxílio nesta empresa, o Padre Codacio vem anunciar-lhe que ao cavar na igreja, para fazer reparações, as operários descobriram antigas ruínas e que ali haura pedras de grandes dimensões e de notável beleza:

- Deus seja louvado! - responde o santo fundador venda essas pedras por cem ducados e venda-as imediatamente.

O Padre Codacio vende-as por esse preço. Inácio pega nesse dinheiro, vai procurar alguns cavalheiros que lhe tinham recusado auxílio para a sua grande obra, e diz-lhes:

- Nenhum dos senhores quer começar, mas eu trago a primeira pedra; é necessário que agora dêem a segunda.

Não lhe resistem, o dinheiro chega de toda a parte, Inácio compra o antigo convento de Santa Marta, forma, para o dirigir, uma associação de senhoras piedosas sob o patrocínio de Santa Maria da Graça, entrega-lhes as chaves do convento, que manda reparar, e no dia 16 de Fevereiro de 1542 as mulheres arrependidas estavam ali instaladas, tendo por o Cardeal Carpi, que era também protetor da Companhia.

Inácio fez uma exceção em favor desta casa, concedendo-lhe um Padre jesuíta para confessor. Em breve tornou-se o fervor tão intenso que o convento de Santa Marta era citado pelos pregadores como um modelo de todas as virtudes. Em poucos anos, o número das mulheres sinceramente convertidas e penitentes tinha-se elevado a trezentas.

O espírito do mal fez todos os esforços para destruir este grande bem. Os homens mais escandalosos da cidade queriam abrir à força as portas do convento, e, não podendo consegui-lo, quebraram os vidros e arremessaram-lhe pedras. Um deles, chamado Matias, não encontrando outro meio para se vingar do zelo dos jesuítas e do seu santo fundador, recorreu àquele já tantas vezes ensaiado sem resultado: espalhou o boato de que o Padre Inácio e os seus eram hereges mascarados e tinham fugido de Paris para evitar os castigos a que a Inquisição os havia condenado. As coisas tinham avançado tanto, que, por consideração ao seu caráter e para honra do ministério sagrado que exerciam, Inácio julgou dever dirigir uma memória ao Papa e pedir-lhe um novo inquérito, instando para que nomeasse juízes. Estando doente o Cardeal-Vigário, o pedido não teve deferimento; logo que ele se restabeleceu, Inácio renovou o pedido e fê-lo apresentar pelo Bispo de Césène, que dirigiu ao Papa uma memória na qual chamava santa à Companhia de Jesus. O Cardeal-Vigário, Filipe Archinti, dirigiu-se duas vezes ao convento de Santa Marta para interrogar as pessoas que o habitavam acerca da doutrina e dos costumes dos jesuítas, e Matias foi intimado a comparecer diante do tribunal no dia 3 de Julho. Mas, em vez de se apresentar, procurou abrandar o nosso Santo; ignorava, sem dúvida, que, em casos semelhantes, Inácio não fraquejava.

Todos os pedidos de Matias nada conseguiram; a sentença dada pelos juízes, que foi mais uma glória para a Companhia de Jesus e para o santo fundador, dizia que Matias perderia o cargo que ocupava e que os seus bens sevam seqüestrados se continuasse a espalhar boatos caluniosos contra aqueles santos religiosos; além disso, foi condenado às despesas do processo e a uma pena que os juízes se reservavam dar-lhe a conhecer. Mas o Santo empregou tantas instâncias em favor do culpado, que obteve a remissão da pena. Sabemos que ele sempre se vingava assim. Matias, cheio de reconhecimento pela, caridade de Inácio, converteu-se tornou-se amigo dedicado do Santo, e um dos mais zelosos benfeitores da Companhia de Jesus.

Enquanto este processo se instruía, Barberano, frade espanhol, excitado sem dúvida pelo demônio da inveja, voltou-se também contra Inácio, acusou-o de administrar a obra de Santa Marta sem ter recebido autorização do Papa, e de querei, sem missão, reformar todo o mundo. Estas acusações eram ridículas; o povo riu-se de Barberano e não deu importância às suas declamações. O frade, furioso com o acolhimento que lhe faziam, escreveu ao nosso Santo todas as injúrias que pôde imaginar e terminou a sua carta dizendo-lhe: "O meu desejo era ver queimar todos os jesuítas, desde Perpignan até Sevilha".

Inácio de Loiola recebeu esta carta por um mensageiro; ordenou-lhe que esperasse e ditou imediatamente estas linhas ao seu secretário, João de Polanco:

"Jesus. - Senhor, dizei ao Padre Frei Berberano: - Dizeis que, se de vós dependesse, faríeis queimar todos os nossos desde Perpignan até Sevilha. E eu digo-vos: Desejo que vós, os vossos amigos e todos os vossos, não somente de Perpignan a Sevilha, mas em todo o universo, sejais inflamados, consumidos pelo fogo do Espírito Santo, de tal sorte que todos, tendo atingido o fastígio da perfeição, aumenteis assim o brilho da glória divina. Dizeis também que o governador e o Vigário de Sua Santidade estão fazendo um inquérito a nosso respeito e que brevemente será dada a sentença. Se há razões de queixa contra mim, apresentem-lhas diretamente, juntando as provas, a fim de que eu seja o única punido, se for culpado; porque me seria muito agradável ser castigado no meu corpo para evitar a todos os nossos que, de Perpignan a Sevilha, sejam queimados sem o terem merecido".

Barberano deu-se por satisfeito com esta resposta e não insistiu nas suas ridículas acusações.