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Já falamos das solicitudes que Santo Inácio dedicava à
direção espiritual da casa de Roma, e da perfeição que exigia
de todos aqueles que Deus chamava à honra de o servir na
Companhia de Jesus; mas far-se-ia uma fraca idéia da sua
competência e do seu espírito de discernimento se nos
limitássemos aos traços já citados. Demais, temos falado
principalmente da sua serenidade e da sua firmeza; devemos
falar também dos tesouros de indulgência, da bondade, da doce
e compassiva caridade que constituíam o fundo do seu grande
coração. Para isso, entraremos em minudências, pois é por
elas que o homem se dá a conhecer.
Conta-se que, quando Santo Inácio decidia uma coisa, mesmo
pouco importante na aparência, adiava sempre a execução para
a pôr nas mãos de Deus, apesar de o ter já consultado antes
de submeter a sua opinião aos Padres que compunham o seu
conselho. "Convém dormir ainda sobre o caso", dizia-lhes ele
com a maior tranquilidade.
Quando se conhece a impetuosidade da sua ardente natureza,
não se pode deixar de admirar a completa transformação nele
operada. Era senhor de si mesmo e de todas as suas
impressões, a ponto de não as deixar nunca transparecer no
rosto senão na medida da sua vontade e em harmonia com o bem
que tinha em vista. O seu rosto era calmo e sereno, 0 olhar
doce e límpido; mas, se acontecia que um noviço ou outro
qualquer membro da Companhia caísse numa falta que o geral
julgasse dever punir severamente os seus olhos brilhavam, o
rosto parecia transformado, a voz era severa. Desde que o
culpado se afastava, Inácio readquiria a doce serenidade e
ninguém se apercebia, se o visitasse, do que acabara de
passar-se. O Padre Olivier Manare mostrava-lhe um dia o
desejo de abandonar o colégio de que era superior, porque,
desde que ocupava este cargo, experimentava a violência de
caráter que julgava completamente extinta.
- Não se trata, - lhe responde o Santo - senão de governar
esta disposição de maneira tal que, sem dominar, o superior
mantenha os inferiores no dever; mas não deve servir-se dela
com severidade senão nos casos graves e para as almas fortes.
Aquelas cuja virtude é tímida, exigem mais deferência.
Era assim que ele procedia. Quanto mais os seus religiosos
eram perfeitos, tanto menos os poupava, querendo
aperfeiçoá-los ainda pelos exercícios duma humildade maior.
Era duma extrema severidade para os Padres Nadal e Polanco a
quem amava ternamente, e duma extrema indulgência para Pedro
Ribadeneira, cuja ligeireza de caráter parecia a alguns
merecer maior severidade. Mas Santo Inácio via muito longe e
conhecia muito bem os homens para não prever o grau de mérito
a que podia chegar aquele que ele tratava com tão doce
paciência e tão amável bondade. Usava da mesma indulgência
para um noviço japonês chamado Bernardo, enviado à casa de
Roma por Francisco Xavier. Deu-lhe durante muito tempo os
encargos mais suaves, recomendando-lhe que o prevenisse
quando estivesse fatigado.
Um noviço italiano não tinha podido moderar ainda o seu olhar
muito vivo e muito aberto. Inácio disse-lhe um dia com a mais
insinuante voz:
- Irmão João Domênico, por que não procura fazer ler nos seus
olhos a modéstia com que a Deus aprouve adornar-lhe a alma?
João Domênico corrigiu-se um pouco devido a estas poucas
palavras. O nosso Santo foi mais severo para o Padre Olivier
Manare, que o amava e venerava de todo o coração. Partindo
para o colégio de Loreto, de que fora nomeado reitor, foi
pedir a bênção do seu bom Padre Inácio, e não pôde afastar a
vista do venerável rosto do santo fundador, que temia não
tornar a ver. Santo Inácio pareceu não dar por isso; mas no
momento em que o Padre Manare saía de casa, o Padre Polanco
foi-lhe ao encontro e disse-lhe:
- O nosso bom Padre não ficou contente com a maneira com que
Vossa Reverência o fixou, e encarrega-me de lhe dizer que
deve trabalhar para se corrigir desta falta, e fazer todos os
dias um exame sobre isso, recitar três orações e dar-lhe
conta todas as semanas destas penitências.
Ao mesmo tempo, o Padre Polanco dava-lhe por escrito este
aviso e a designação das orações vocais que devia recitar
todos os dias. Por esta falta, que contudo não era mais que
uma ternura do coração, o Padre Manare fez durante quinze
meses a penitência que lhe foi imposta.
Não se sabe, realmente, qual dos dois se deve mais admirar,
se aquele que a impôs, se aquele que se submeteu a ela.
Um noviço, ao entrar na Companhia, tinha trazido um
crucifixo, junto do qual havia uma pequena imagem da
Santíssima Virgem. Este grupo era um objecto de arte, que o
jovem muito estimava. O Padre Geral fechou os olhos e
deixou-o gozar do seu tesouro; mas, quando viu o noviço assaz
avançado no caminho do desprendimento, disse:
- Agora, que este irmão tem o crucifixo no coração, bem
impresso, é tempo de lho tirar das mãos.
E mandou-lho tirar, sem que o noviço desse sinais do menor
pesar. Ia mais longe. Sabia, por experiência, quanto custa
aos grandes da terra sacrificar os títulos e as honras de que
gozam no mundo. Quando se apresentavam aspirantes duma
virtude medíocre, mas realmente chamados e desejosos de serem
todos de Deus e de se dedicarem ao seu serviço, tinha todas
as deferências para com eles e conservava-lhes até os seus
títulos: era senhor duque ou senhor marquês, e, no caso de
necessidade, Vossa Excelência. Os recém-vindos, lisonjeados a
princípio com a distinção, achavam-se daí a pouco
embaraçados, porque os seus iguais no mundo, que viviam com
eles no noviciado, não se preocupando com o que tinham
calcado aos pés, eram para eles uma como censura muda, mas
eloqüente, do seu resto de vaidade. Corriam então, a
lançar-se aos pés do boxe Padre Geral e suplicavam-lhe
permitisse que os tratassem como irmãos e não como mundanos.
Quando chegavam ao ponto de virtude necessária para suportar
fortes provas, Inácio humilhava-os até que tivessem esquecido
completamente a sua origem Procedia do mesmo modo para com
aqueles que se tinham ilustrado no mundo pela ciência ou
talento; queria uma completa transformação: "É necessário, -
dizia muitas vezes - sabermos acomodar-nos aos negócios que
não podem acomodar-se a nós. É necessário sabermos entrar
pela porta de certas pessoas, a fim de as fazer sair pela
nossa".
É o que ele sabia aplicar maravilhosamente à direção das
almas. Tendo Gaspar Loarte, pregador de grande celebridade em
Espanha, ido a Roma, entrou na Companhia de Jesus. Inácio de
Loiola sabia que Deus abençoava ordinariamente os trabalhos
apostólicos em proporção da santidade dos apóstolos; viu,
pois, logo o bem que faria um talento como o de Gaspar
Loarte, se a sua alma chegasse a um grande grau de perfeição,
e traçou o seu plano de maneira a assegurar esta conquista à
Companhia. Quis submeter este noviço às mais rigorosas provas
e adoptou ao mesmo tempo os meios necessários para o premunir
contra o desânimo. Era necessária toda a habilidade do nosso
herói para levar á realização este plano com o êxito
desejado. O processo que empregou é interessante; ei-lo tal
como está consignado nas Memórias do Padre Luís Gonçalves da
Câmara, então ministro na casa de Roma; e a quem o Padre
Geral tinha encarregado de experimentar este noviço.
Foi combinado que Inácio se reservava o trabalho de sustentar
a coragem e a virtude de Gaspar, enquanto o Padre Luís
Gonçalves se ocuparia de as exercitar; porque se fosse o
contrário, o noviço não teria certamente perseverado. Era
necessário que a consolação e a animação lhe viessem do mais
alto possível, e que encontrasse o coração do superior sempre
aberto para ele; tanto mais que Santo Inácio aproveitava
todas as ocasiões para pôr em realce o mérito do Padre
ministro na prova dos noviços e a vantagem que advinha para
estes últimos de serem formados na vida espiritual por um
homem de tão alta virtude e de tão grande experiência. Havia
já muito tempo que Gaspar Loarte estava submetido a este
regime, quando o Padre ministro lhe perguntou um dia:
- Que pensa da santidade do nosso Padre Inácio?
- O que penso é que esse bom Padre é realmente uma fonte de
óleo; é todo unção.
- E de mim?
- Ah! Vossa Reverência é uma fonte de vinagre!
Tendo o Padre Gonçalves feito conhecer essa resposta ao nosso
Santo, ficou Inácio muito satisfeito com a franqueza do Padre
Gaspar, e convidou o Padre Gonçalves a moderar o rigor das
provas, tão bem suportadas até então. É verdade que as
lágrimas corriam algumas vezes dos olhos do Padre Gaspar, mas
concluía dai que lhe restava ainda muito caminho a percorrer
para chegar ao grau de humildade em que Deus o queria; e
corria a lançar-se nos braços do Padre Inácio,,
confessava-lhe a sua fraqueza, vertia muitas lágrimas e
confessava que tinha necessidade de força e de consolação. O
bom Padre Geral dava-lhe ambas as coisas e o Padre Gaspar
voltava à sua vida de prova com ardente desejo de atingir a
perfeição, à qual era chamado. Pouco depois, julgando-o Santo
Inácio assaz avançado para dirigir os outros, nomeou-o reitor
do colégio de Génova.
Era para o nosso herói uma alegria incomparável ver o bom
resultado dos seus esforços em casos semelhantes. Nunca teve
maior felicidade do que no dia em que, tendo perguntado a
Jerónimo Nadal, que tanto pesar lhe causara com as suas
primeiras resistências, qual das três residências designadas
preferia, este lhe respondeu com toda a simplicidade:
- Padre, a minha única inclinação é não ter nenhuma.
Fazendo-lhe a mesma pergunta, o Padre Manare respondeu também
com simplicidade
Estou pronto a tudo, mesmo a morrer, se a morte for
conseqüência da obediência.
Tais eram os homens formados na escola de Inácio de Loiola.
A mais dolorosa prova para eles era afastarem-se da; casa de
Roma, onde lhes era dado verem o seu muito amado Padre Geral,
admirarem a sua maravilhosa santidade, gozarem a sua ternura
paternal. Eram tão ternamente amados por ele, que cada um
podia julgar-se o filho preferido do seu coração. Quando
chegava o momento de se separarem dele, Inácio informava-se
minuciosamente do pequeno viático que levavam, querendo que
todos tivessem o indispensável para viajar pobremente. A sua
solicitude seguia-os, acompanhava-os na viagem, e era uma
festa para o seu coração de pai quando vinha a notícia de que
tinham chegado ao termo do seu destino.
Nada era comparável à terna caridade e à solicitude da nosso
Santo para com seus filhos doentes. Não somente os ia ver,
abraçá-los, consolá-los e prodigalizar-lhes os seus cuidados;
mas, não podendo ficar por muito tempo com eles, em razão das
suas imensas ocupações, queria que lhe levassem notícias
deles algumas vezes durante o dia. Se a doença necessitava
dum tratamento assíduo, informava-se da exactidão dos
enfermeiros em observá-lo escrupulosamente; a negligência
neste gênero, por ligeira que fosse, era severamente punida.
Num momento em que o número dos doentes era assaz
considerável, dois noviços, recentemente entrados, foram
atacados da doença reinante; não havendo lugares, estando
alguns quartos já transformados em enfermarias e sendo então
os recursos pecuniários muito limitados, propôs-se ao Padre
Geral que fizesse transportar os dois recém-vindos ao
hospital:
- Ah! isso nunca! - respondeu. Aquele que abandonou o mundo
para servir a Deus, não encontrará um asilo nesta casa?
Dê-se-lhes já o mais necessário; Deus nos enviará o que nos
falta.
Noutra circunstância, tendo o médico ordenado que se desse a
um convalescente um alimento bastante caro, o ecônomo
queixou-se ao Padre Geral e disse-lhe:
- Padre, tenho apenas uma quantia diminuta, que mal chega
para acudir às necessidades urgentes de hoje.
- Pois bem, - respondeu o bom padre - gaste-se tudo com o
doente; nós, que estamos bons de saúde, podemos contentar-nos
com pão. Estamos bons de saúde! Sabe-se qual o estado de
sofrimento em que sempre estava o seu estômago; mas isso
pouco lhe importava.
Quando os seus queridos Padres doentes estavam tristes,
mandava para junto deles os mais jovens noviços músicos e
pedia-lhes que lhes cantassem cânticos para os distrair.
Pensava Inácio que estas jovens e frescas vozes seriam um
calmante para os seus nervos abalados. Ia ver os seus doentes
no meio da noite, para se assegurar dos cuidados do
enfermeiro e ver se tudo se fazia com exactidão, segundo as
prescrições do médico. Algumas vezes se levantou de noite
para ver se um Padre que tinha sido sangrado, tirara, ao
dormir, as tiras do braço.
Compreende-se que esta bondade tão comovedora lhe cativasse
os corações de seus filhos, e que, para eles, ninguém
substituísse o seu querido Padre. Por isso o santo geral
encontrava da parte deles mais pressa do que resistência em
aceitar as humilhações que julgava dever impor-lhes para
fortificar e aumentar a virtude dos seus religiosos.
O Padre Bobadilha pediu-lhe um dia para mudar de quarto; o
que ocupava era muito pequeno, muito incômodo, e preferia
outro que designou.
- Isso seria um mau precedente; - respondeu o nosso
Santo-outros, a exemplo de Vossa Reverência, quereriam também
fugir aos inconvenientes da santa pobreza. Não somente não
mudará de quarto, mas irá arranjar tudo, naquele que ocupa,
de modo a alojar nele dois companheiros que para lá mandarei.
O Padre Bobadilha obedeceu imediatamente, sem a mais ligeira
hesitação.
Um noviço declara um dia ao Padre Geral que desespera de
atingir o ponto de perfeição a que todos os seus irmãos lhe
parecem chegados, que quer renunciar a uma vida para a qual
se reconhece indigno e voltar ao mundo. Inácio conversa com
ele durante grande parte da noite, chega a persuadir-lhe que
aquele desânimo é obra do demônio e vê-o cair a seus pés,
banhado em lágrimas, pedir-lhe uma penitência proporcionada à
sua culpa:
- A penitência que lhe dou, - disse-lhe o Santo levantando-o
e abraçando-o - é que nunca se arrependa de ter querido
servir a Deus. Eu oferecerei uma outra por si, se Nosso
Senhor não me julgar indigno disso, todas as vezes que as
dores de estômago me apoquentarem.
Pedro Ribadeneira, como já dissemos, era leviano como uma
criança; alguns Padres tinham pedido a Inácio que o
despedisse, dizendo que ele nunca poderia ocupar um lugar
entre os homens graves de que a Companhia era composta.
Inácio, que pensava . de modo diferente, queria conservar o
jovem brincalhão, e fechava os olhos às suas infantilidades.
Mas o espírito do mal, que os tinha muito abertos, conhecendo
que o jovem Pedro se conservava ali pela terna veneração que
tinha a Inácio de Loiola, soube mudar-lhe de repente este
sentimento a tal ponto que aquele amor e veneração se
transformaram em desgosto e antipatia. Inácio não mudou as
suas maneiras, não deu a perceber que notava que Pedro lhe
fugia; contentou-se em orar por ele e em pedir a Deus que lhe
indicasse o meio de vencer no coração do jovem um sentimento
tão oposto àquele que até então o havia conservado no
noviciado. Inácio tinha pedido algumas vezes a Pedro que
fizesse os Exercícios Espirituais; mas Pedro respondia sempre
que preferia abandonar a casa e a Companhia. Um dia, o nosso
Santo conheceu que a sua prece era ouvida e que podia falar a
Pedro com bom resultado. Mandou-o chamar imediatamente. Pedro
apresentou-se disposto como de ordinário, prometendo repelir
qualquer proposta de retiro e aproveitar a ocasião para
acabar com a questão, declarando que quer abandonar a
Companhia.
- Pedro, - diz-lhe Inácio estendendo-lhe os braços meu Pedro,
meu caro filho !...
Pedro não o deixa continuar; cai a seus pés, o seu coração
rebenta em soluços e exclama:
-Meu Pai! meu Pai! Fá-los-ei, quero fazê-los! sim, meu Pai !
Inácio não tinha ainda pronunciado a palavra retiro e não
havia falado dos Exercícios; mas Pedro bem sabia que o
inimigo da sua alma era quem o havia impedido de os fazer até
então, e ele sentia-se, naquele momento, tão subjugado pela
santidade do seu bom Pai, sentia tal necessidade de recuperar
o passado, que o seu primeiro grito foi a pedir o que mais
havia temido. Lançando-se em seguida nos braços e sobre o
coração daquele querido Pai, pelo qual tinha agora a sua
primeira veneração, suplicou-lhe que o dirigisse nos
Exercícios e que o ouvisse de confissão geral. Inácio
concede-lhe. tudo. Depois de o ter ouvido de confissão geral,
disse-lhe: apenas estas simples palavras
"Pedro, peço-lhe que não seja ingrato para com aquele de quem
tem recebido tão preciosos dons".
Ribadeneira, que nos deixou todas estas informações,
acrescenta: "A estas palavras, pareceu-me que um véu caía dos
meus olhos. O meu coração ficou tão fortalecido, que, desde
esse momento, há cinquenta e dois anos, até hoje, na meu
espírito não se levantou nunca a mais ligeira tentação.
Beaudoin Angelo apenas acabou de entrar no noviciado de Roma,
arrependeu-se amargamente e quis retirar-se. Tinha deixado no
mundo um sobrinho a quem amava, e do qual o seu espirito e o
seu coração não podia afastar-se. Não tendo pai aquele jovem,
era uma ação pouco digna abandoná-lo, dizia; e queria voltar
para ele. O bom Padre Inácio sabe isto, pede a Deus que lhe
fada conhecer a sua vontade; e depois, seguro da luz que
recebeu, manda chamar Beaudoin, fá-lo sentar junto dele e
diz-lhe no tom mais afetuoso e mais simples
- Quero contar-lhe uma coisa que me é pessoal e que se
assemelha muito ao que o senhor experimenta agora pelo seu
querido sobrinho. Quando comecei a servir a Deus, e andava,
como o senhor, muito ocupado no seu servido, tive que
sustentar um rude ataque. O meu querido Beaudoin vai ver como
o demônio obrou para me tentar e como Deus Nosso Senhor me
ensinou a maneira como devia repelir a seu ataque.
Recitava eu todos os dias o ofício de Nossa Senhora num livro
adornado de imagens, no número das quais havia uma muito
parecida com minha cunhada. Todas as vezes que esta imagem se
me apresentava à vista, recordações da aninha vida do mundo e
da corte me vinham ao espírito e o meu coração experimentava
a mais viva ternura pelos seus parentes. Querendo
desembaraçar-me de recordações importunas, que reconhecia
serem muito prejudiciais ao servido da divina Majestade, não
achei expediente mais eficaz do que renunciar à prática da
devoção, que era para mim uma ocasião desses impulsos para o
mundo. Mas compreendi logo que, perdendo o mérito duma obra
de piedade, e de muito livre vontade, cedia terreno ao
inimigo. Vi que o demônio, no fundo e na forma, me tratava
como trataria uma criança. Pois bem, - disse eu - livremo-nos
das suas importunidades com a simplicidade duma criança. E
cobri a imagem com uma folha de papel. A tentação desapareceu
com a ocasião que eu lhe tinha dado".
Depois destas palavras, o santo fundador levantou-se, abraçou
ternamente Beaudoin e deixou-o cheio da mais terna alegria.
"De repente, - conta este último - o meu rosto foi inundado
de lágrimas e experimentei no fundo do coração um tal
sentimento de doçura e de suavidade, que todo o meu amor para
com meus parentes se voltou para Deus, e desde esse momento,
o pensamento de meu sobrinho nunca foi para mim objecto de
perturbação nem de pesar".
Vê-se por isto a grada que Deus concedia à palavra do nosso
Santo e a virtude que dava a tudo o que dele vinha.
Lourenço Maggi reunia tudo o que promete o homem superior.
Entrado no noviciado, tem daí a pouco um tal desejo de o
abandonar, que vem ao encontro do Padre Geral e declara-lhe
bruscamente a sua resolução. Inácio não ficou surpreendido e
disse-lhe:
- Não vejo nisso dificuldade, visto que assim o deseja;
pelo-lhe, porém, que me prometa uma coisa.
- Sim, Padre, tudo o que quiser, exceto continuar na
Companhia, demasiado perfeita para mim.
- Não é isso o que lhe peço. O que desejo é o seguinte: -
Esta noite, a qualquer hora, mas ao primeiro despertar,
coloque-se no seu leito como um homem que está na agonia e só
espera o derradeiro momento. Represente-se que vai, em alguns
momentos, dar contas da sua vida ao tribunal de Deus Nosso
Senhor e ouvir a sua sentença. Represente-se tudo isto o mais
vivamente possível. Diga em seguida: "Se eu estivesse neste
estado, a quem quisera ter obedecido, a Deus, que me chama ao
seu serviço, ou ao demônio, que me quer afastar dele?" Escute
a resposta da sua consciência, e pergunte-se, depois disto,
se não tem a certeza de chegar um dia a esse derradeiro
momento da sua vida. Depois de ter seguido este conselho,
abandone a Companhia quando quiser.
No dia seguinte de manhã, Lourenço veio ter com Inácio.
- Então, Lourenço, - lhe disse o Santo - vem dizer-me adeus?
- Padre! se eu não estivesse já no noviciado, suplicar-lhe-ia
que me abrisse a porta, apesar da minha indignidade. Nunca
conheci tão bem o chamamento de Deus como esta noite.
E o noviço estava de joelhos diante do bom Padre Inácio,
pedindo-lhe que esquecesse que ele esteve tão perto de
sucumbir à tentação. Esta tentação não se lhe renovou nunca
mais.
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