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O ruído estrepitoso e repentino de numerosas salvas de artilharia, ao
qual se misturavam os gritos confusos e prolongados de uma multidão de
vozes, pôs em grande agitação toda a população de Firando,
levando o terror ao espirito do seu rei Taquanambo.
Malquistado de pouco com o jovem soberano de Saxuma, temia que aquilo
fosse uma surpresa deste antigo aliado tornado seu inimigo, e que ele
tivesse chamado em seu auxílio os portugueses cujos navios se achavam
ancorados nas suas águas.
Como defender-se do formidável canhão dos europeus? A situação
era embaraçosa e critica e importava tomar conhecimento dela desde
logo.
Taquanambo, possuído de tão sinistros pensamentos e cheio de
terror, despachara um dos seus cortesãos com ordem de se informar com
exactidão do que se passava no porto, e esperava a volta do emissário
na maior ansiedade, quando este chegou.
Este disse ao rei, dando-lhe completa certeza que todo aquele ruído
não era mais do que uma manifestação de alegria da parte das
equipagens dos navios; que os portugueses e em geral os europeus,
costumam exprimir a sua alegria por meio de tiros de canhão, saudar os
seus soberanos com tiros de canhão, e matar os seus inimigos também a
tiros de canhão!
- Ora, acrescentou o enviado, os portugueses dos navios ancorados no
nosso porto, acabam de experimentar uma surpresa que lhes causou tão
grande alegria, que gritaram e dispararam os seus canhões como se
tivessem visto o inimigo ou o rei; eis tudo.
- E sabe-se o que foi que lhes causou aquela alegria e entusiasmo?
perguntou Taquanambo.
- O que os regozija tanto, é que o grande bonzo europeu, que faz,
quando quer, chover sobre a terra e aparecer o peixe no mar, aquele
bonzo que restitui a vida aos mortos e a saúde aos doentes, aquele
bonzo cristão, cujo Deus é tão poderoso, chegou ao porto num junco
do país; os portugueses reconheceram-no de longe, dispararam os seus
canhões, soltaram gritos de alegria, fizeram soar todas as suas
trombetas, içaram todos os seus pavilhões e abraçaram o bonzo em
choros e risos,
Poder-se-ia supor que haviam enlouquecido, se não se' soubesse que
aquele grande bonzo é um Deus, e que pouco era tudo- quanto se
fizesse por ele.
Encantado o rei por saber que o célebre bonzo cristão estava em
Firando, mostrou desejos de o ver, e os portugueses, para darem
àquele príncipe uma idéia da veneração que lhes merecia o seu santo
apóstolo, quiseram conduzi-lo ao palácio com grande pompa.
O humilde Xavier não pôde esquivar-se àquelas honras, mormente
porque elas deviam engrandecer a religião de que era ministro.
Escoltado de todos os soldados das equipagens, coam o estandarte na
frente, ao som dos clarins, e cercado dos oficiais e capitães em
grande uniforme, atravessou o nosso Santo, as ruas e praças de
Firando, e dirigiu-se ao paço de Taquanambo, que o recebeu com o
acolhimento proporcionado a pompa que o cercava.
Os portugueses apresentaram-no ao rei como o personagem mais ilustre e
como amigo do seu soberano, depois do qual ninguém era mais poderoso
do que Xavier, o grande apóstolo das Índias.
E quando eles fizeram saber a Taquanambo que o rei ele Saxuma o havia
obrigado a sair dos seus estados, este príncipe, satisfeito pela
ocasião de contrariar o seu inimigo tornando-se agradável ao rei de
Portugal, deu toda a liberdade ao missionário para pregar a religião
cristã no seu reino.
Saindo do palácio, começou Francisco Xavier a falar de um só
Deus na praça pública, e o povo veio imediatamente cercá-lo e
ouvi-lo.
Vinte dias lhe foram suficientes para fazer mais cristãos do que havia
feito em Cangoxima no decurso de mais de um ano.
E como a docilidade e a dedicação daquele povo prometia os mais
consoladores resultados, não hesitou em lhes deixar o Padre Cosme de
Torres, para ir levar mais longe as suas conquistas.
Partiu, portanto, pelos fins de Outubro de 1550, acompanhado de
João Fernandes e de dois cristãos japoneses, Bernardo e Mateus;
foi embarcar-se em Facata, para se dirigir de ali a Amanguchi,
capital do pequeno reino de Naugata, a mais de cem léguas de
Firando.
Sua intenção era de não se demorar em Amanguchi, e de continuar a
viagem até Meaco, capital do império; mas tendo conhecimento da
desordem de costumes que reinava na capital de Naugata, quis aí
lançar, de passagem, a semente evangélica. Espalhava-a às mãos
cheias; o seu zelo, excitado pelo pensamento dos crimes que manchavam
aquela cidade, parecia mais ardente do que nunca; o fervor da sua
oração continua, por todas aquelas almas perdidas no vicio,
correspondia ao seu zelo; mas Deus quis que ele não colhesse,
naquele momento, senão o insulto e o ultraje.
O povo, inclusive as crianças, perseguiam-no apedrejando-o e
enchendo-o de injúrias!
Francisco Xavier suportou aquelas humilhações com uma mansidão
inalterável, e não atribuiu senão aos seus pecados o nenhum sucesso
das suas pregações.
Oxodono, rei de Amanguchi, querendo conhecer por si próprio a
doutrina europeia, de que tanto se falava, desejou ver os bonzos da
Europa, e reuniu os grandes da corte para os ouvir.
- De onde sois vós? perguntou ele a Xavier.
- Sou europeu.
- Porque viestes ao Japão?
- Para pregar a lei de um Deus único; porque ninguém se pode
salvar, se não adorar aquele Deus e Jesus Cristo seu Filho, com
um coração puro de vícios, se lhe não render o culto religioso que
lhe é devido, se não cumprir, finalmente, a lei divina.
- Explicai-nos essa lei.
Então o santo apóstolo explicou as principais verdades da fé,
respondeu às objeções de cada um, falou mais de uma hora, e fez
até verter algumas lágrimas ao seu auditório... mas foi tudo
quanto conseguiu. Não ganhou nem uma só alma para Jesus Cristo!
Depois de ter assim semeado sem colher durante um mês inteiro,
resolveu-se a tomar o caminho de Meaco com os seus companheiros,
pelos fins de Dezembro, por uma chuva miúda e nevada que não cessava
senão para deixar cair o gelo mais espesso e duradoiro.
O inverno é tão rude e rigoroso no Japão, que as casas se
comunicam por galerias cobertas sem sair à rua. Mas a coragem dos
quatro viajantes é superior ao rigor da temperatura; ela vencerá
denodadamente todos os obstáculos que se opuserem ao seu zelo.
O nosso humilde e intrépido Xavier, cujo exemplo animava os seus
companheiros, empreende resolutamente, a pé, com o seu altar às
costas, e sem fato de inverno, uma viagem de quinze dias de jornada em
qualquer outra estação, mas cuja duração provável não se podia
antever pelo tempo da neve, dos tufões tão violentos, tanto em terra
como no mar.
Bernardo servia de guia e levava às costas as provisões de boca...
um saco contendo arroz torrado. Era aquele todo o recurso que
possuíam para se reconfortarem das suas fadigas; e elas foram grandes
naquela viagem!
Foram grandes para o corpo; foram grandes para o coração, e para a
alma dos nossos heróis, mas a sua coragem não foi abalada.
Por todo o caminho se encontravam torrentes geladas; era necessário
atravessá-las; escorregavam, caíam e feriam-se... Não
importa! levantavam-se, prosseguiam e chegavam à outra margem,
tomando o Santo a mão aos outros três menos ágeis, conquanto mais
novos do que ele.
Umas vezes enterravam-se ria neve até por cima dos joelhos: outras
vezes também, depois de terem trepado penosamente os rochedos
escarpados das altas montanhas, nas quais a neve era rija e gelada,
desapareciam de repente, e iam parar ao fundo dum abismo, de onde não
poderiam sair senão por milagre da divina Providência que velava por
eles, não poupando nenhuma prova à sua fé.
Aquelas grandes fadigas influíram finalmente na saúde do nosso
Santo: ele foi atacado de uma febre que o obrigou a deter-se por
alguns dias em Facai; mas logo que se sentiu melhor, seguiu
corajosamente o caminho de Meaco.
Em todas as cidades, em todas as aldeias que atravessava, ele
anunciava um só Deus e Jesus Cristo seu Filho, por quem unicamente
o homem pode ser salvo; mofavam dele. As crianças perseguiam-no
gritando: Deus! Deus! Deus! Xavier repetia tantas vezes aquela
palavra nas suas pregações, que as crianças a retinham como uma
palavra estrangeira que haviam ignorado até então.
Não tendo a língua japonesa o equivalente à palavra Deus para
exprimir a idéia de um poder soberano, o santo apóstolo pronunciava
aquele nome em português; era tamanha a admiração dos japoneses,
que se riam sem compreender.
Numa cidade em que ele se via escutado com mais atenção do que de
antes, falou por mais tempo, explicou a necessidade de fugir ao vício
e de praticar a virtude para ser salvo. Aquela estranha doutrina
excitou o furor da multidão.
Lançam-se sobre o Santo, arrastam-no para fora dos muros da
cidade, condenam-no a ser apedrejado, e ia-se já executar aquela
cruel sentença, quando uma tempestade horrorosa, que ninguém havia
previsto, rebentou tão violenta, que cada um fugiu precipitadamente a
buscar um abrigo.
Francisco Xavier ficou só no meio daquela tormenta, agradecendo à
adorável Providência que o livrara assim duma morte certa, para lhe
dar tempo de levar mais além o nome de Jesus Cristo.
Contudo os nossos viajantes continuavam a sua jornada para Meaco,
através de perigos constantemente renovados e de retardamentos e
embaraços tais, que Bernardo, encarregado de dirigir a pequena
caravana, muitas vezes enganado pela, neve de que o país estava
coberto, se desnorteava completamente.
Um dia em que ele não conseguia orientar-se suficientemente, viram
um cavaleiro que parecia estar seguro do caminho que seguia. Xavier
perguntou-lhe se eles estavam na estrada de Meaco.
- Sim, respondeu ele, e eu também para aí vou; se vós quereis
seguir-me, vinde, levai-me este pacote que me é de grande embaraço
sobre o meu cavalo.
- Da melhor vontade, lhe disse o Santo.
E carregou com um grande alforge, satisfeito por ter sido tomado por
um pobre desgraçado que qualquer tinha direito de fazer trabalhar por
sua conta. O viajante nem sequer afrouxou o passo do cavalo,
resultando disso que Francisco Xavier, esforçando-se por muito
tempo em o seguir, caiu na estrada, desfalecido, aniquilado,
semi-morto de debilidade e de fadiga.
Os seus companheiros, que não tinham podido caminhar tão
ràpidamente, não obstante os seus desejos, acharam-no estendido no
chão, e mal podendo falar!
Suas pernas e pés, excessivamente inflamados, estavam feridos em
vários lugares... Mas não se queixava; esperara chegar assim até
Meaco, guiado pelo cavaleiro desconhecido.
Deus, porém, não o permitira, somente lhe dera uma ocasião de se
humilhar e de sofrer, e ele agradecia-lhe com todas as forças da sua
alma.
Finalmente, depois de dois meses da mais penosa jornada, entrava ele
em Meaco, pelos fins de Fevereiro de 1551.
Encontrou aquela cidade absorvida rios trabalhos de uma guerra; não
conseguiu obter audiência do soberano, cuja autoridade reconheceu ser
nula; e considerando que não era própria a ocasião de anunciar
àquela cidade uma religião desconhecida, que condena todas as
desordens em que ela se achava abismada, tomou a resolução de voltar
a Amanguchi, mas em condições diferentes.
Notara ele que o povo escarnecia da sua pobre batina rota, que
remendava por suas mãos o melhor que podia; mas somos forçados a
concordar que aquele meio não era o melhor, e que equivalia quase a
uma rotura constante com o povo convinha pois mudá-la.
Notara também que os japoneses eram muito curiosos de todos os
produtos da indústria europeia, e convencido de que presentes daquele
gênero lhe mereciam a estima do rei, dirigiu-se imediatamente para
Firando onde deixara, entregue aos portugueses, os objecto que lhe
havia parecido supérfluo levar.
Quando partiu de Meaco, cantava ele os primeiros versículos do salmo
CXIII, com um acento que comoveu vivamente João Fernandes, e
lhe fez pensar que o seu Padre Xavier se achava interiormente
esclarecido sobre o progresso que a religião faria em breve no império
cuja capital acabava de deixar.
A sua viagem foi pelo rio, por ser muito longa a jornada por terra,
para ser feita a pé; demais, o estado da guerra daquele país
tornava-a cada dia mais perigosa. Em Facai, embarcou-se e chegou a
Firando.
O vice-rei das Índias e o governador de Malaca haviam-no forçado a
levar para o Japão um pequeno relógio, uma espineta, instrumento
muito procurado então, mesmo na Europa, e alguns outros objecto
desconhecidos nos países que ele ia percorrer.
Francisco Xavier, esperando tudo do efeito daqueles presentes, no
espirito do rei de Amanguchi, apressou-se em solicitai dele uma
audiência logo que ali chegou.
O rei, maravilhado daqueles prodígios, admirou a inteligência e os
talentos dos europeus, e no mesmo dia enviou ao chefe dos bonzos
cristãos uma considerável soma de dinheiro que ele lhe devolveu
intacta. Xavier recusava-a e pedia somente uma nova audiência para a
manhã seguinte, a fim de entregar a Oxodono as cartas do arcebispo
das índias e do governador de Malaca.
- É admirável! - disse Oxodono-, os bonzos da Europa recusam
dinheiro, e os nossos tudo quanto têm acham pouco!
Na audiência do dia seguinte, ele louvou o bonzo cristão e lhe
agradeceu testemunhando o desejo de lhe ser agradável.
- Todo o favor que eu solicito, respondeu-lhe Xavier, é a
permissão de pregar a religião de Jesus Cristo nos vossos Estados,
porque nenhum homem pode ser salvo senão por ele.
Oxodono, admirando o desinteresse dum tal bonzo, autorizou-o a
pregar a religião que inspirava tanta generosidade, promulgou o édito
pelo qual permitia a seus vassalos praticar a religião cristã, e
proibiu, sob as mais severas penas, que se inquietassem os bonzos
daquela religião.
Fez mais ainda; concedeu para morada de Xavier e dos três cristãos
que o acompanhavam, uma antiga habitação dos bonzos, desabitada.
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"...Logo que ali nos estabelecemos, escrevia o nosso Santo,
fizemos lá as nossas instruções, e a afluência dos ouvintes era
imensa. Pregávamos duas vezes ao dia, e em seguida a cada discurso,
tínhamos uma longa conferência sobre as matérias de que tínhamos
tratado, de modo que não cessámos de pregar ou de responder a
questões que nos eram dirigidas.
Bonzos, nobreza, gente do povo, tudo, finalmente, concorria em
chusma, e os que não podiam entrar ficavam à porta.
O resultado foi que a falsidade das superstições pagãs e as dos seus
autores ficou desde logo demonstrada, e que a verdade apareceu
brilhante a todos os espíritos.
É notável que aqueles que tinham sido os mais teimosos na discussão,
foram as nossas primeiras conquistas. Quase todos eram homens de
distinção, que se tornaram os nossos melhores amigos desde que foram
cristãos, e nos puseram ao corrente dos mistérios, ou antes das
inépcias da religião japonesa dividida em nove seitas.
Esclarecidos por este lado, fácil nos foi entrar na luta, Em cada
discussão com os bonzos, mágicos e outros, confundíamo-los
imediatamente com os nossos argumentos e raciocínios...".
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A ansiedade daquele povo em procurar a verdade junto do santo
apóstolo, não conhecia limites.
Não somente durante o dia, mas até de noite, vinham submeter-lhe
as dificuldades. Ele não conseguia quase nunca recitar o seu
breviário sem interrupção, e conquanto lhe fosse permitido rezar um
ofício mais curto que o romano, nunca se aproveitou daquela
autorização.
Conta-se até que ele jamais omitira a recitação do Veni Creator
antes de cada uma das horas canônicas, e que o seu semblante se
animava então como se o Espírito Santo tivesse querido dar um sinal
sensível da sua presença sobre o seráfico Xavier.
Julgue-se por isto do sacrifício que ele se impunha, entregando-se
incessantemente à discrição dos que o vinham consultar. Algumas
vezes até, nem mesmo lhe deixavam tempo de dizer a missa, e muito
menos ainda podia ele dispor dum momento para algum pequeno repouso ou
tomar uns ligeiros alimentos: era aos olhos de todos um milagre
permanente a que sustentava a sua preciosa existência e lhe dava força
de resistir a fadigas que nenhum outro teria podido suportar.
Propunham-lhe as mais difíceis e variadas questões; ele ouvia com
serenidade, dignidade e benevolência; depois, respondia a cada um
coze tanta clareza, e apresentava a verdade tão palpável, que fazia
mudar de opinião a todos.
Um dia em que a concorrência era imensa e as questões mais numerosas
ainda que de costume, manifestou Deus o seu poder de uma maneira até
então desconhecida. .
Pedia um ao apóstolo amado de Deus explicação da eternidade, que
não podia compreender, enquanto outro rogava que lhe desse a do
movimento dos astros; um terceiro desejava que ele esclarecesse as suas
dúvidas sobre a imortalidade da alma, e um quarto queria saber donde
vinham as cores do arco-íris; alguns outros propunham dificuldades
sobre a graça, ou desejavam saber como se dão os eclipses do sol,
enquanto que outros queriam ainda ser ilucidados sobre as penas do
inferno, ou sobre a extensão e a população da terra.
O grande Xavier ouvia todas as questões que lhe propunham coxas a sua
graça e bondade ordinárias. Quando terminaram, levantou-se,
lançou sobre a imensa assembléia um olhar inspirado, pronunciou
algumas palavras e produziu em todos uma tal suprema e admiração que
pareciam atacados de paralisia. Olhavam-se, olhavam para Francisco
Xavier, e não achavam palavras com que exprimissem os sentimentos de
que se viam possuídos...
Uma só resposta do santo apóstolo operara o mais maravilhoso dos
prodígios: resolvera, ao mesmo tempo, todas as dificuldades duma
maneira tão clara, tão precisa e tão completa que cada um se julgava
sob a impressão dum sonho!
Foi contudo necessário reconhecer a realidade daquela maravilha, e
para isso Deus a renovou depois, pelo seu apóstolo privilegiado,
todas as vezes que lhe eram apresentadas semelhantes questões em grande
número e diversidade e que exigiam muito mais tempo do que aquele de
que ele podia dispor.
Os japoneses não quiseram ver naquele prodígio um milagre do poder
divino e persistiram por muito tempo em o atribuir á ciência de
Francisco Xavier, para a qual, diziam eles, não havia mistério
neste mundo nem no outro; o que fazia com que os bonzos dissessem,
quando falavam do Padre Torres
"Ele teias ciência, é verdade; mas não pode ser comparado ao
Padre Xavier! Não existe outro talento que possa resolver tantas
dificuldades por uma, só resposta! O Padre Francisco Xavier é o
maior homem da Europa e do mundo inteiro!"
As conversações aumentavam à medida que os espíritos se viam mais
esclarecidos, e como a classe ilustrada não carecia já de
conferências, julgou Xavier devei cessá-Ias para se dedicar às
pregações nas praças públicas. Elas tornavam-se muito
necessárias porque os bonzos das diversas seitas, buscando combater a
influência do grande bonzo cristão e o poder das verdades que ele
ensinava, se combinaram para o desacreditar publicamente, e
esforçavam-se por influir no ânimo do povo contra aquela religião
nova que condenava todos os prazeres e excitava a cólera de Amida e
Chaca.
Francisco Xavier pregava pois duas vezes por dia num bairro, enquanto
João Fernandes pregava noutro, com grande desgosto dos bonzos, cujo
crédito diminuía em proporção da confiança que o nosso Santo
inspirava.
Os chineses, que o comércio atraia a Amanguchi, tiveram a
curiosidade de ver o famoso bonzo europeu, de quem se diziam tantas
maravilhas, e correram para a principal praça, logo que souberam que
ele ali pregava.
A língua do Japão é bem diferente da da China, mas os mercadores
chineses sabiam o necessário para o seu comércio, e esperavam
compreendei alguma coisa da doutrina trazida de tão longe, e que
aquele bonzo tão maravilhoso não adulterava.
Em presença do nosso apóstolo experimentaram eles um sentimento de
respeito que testemunharam pela sua atitude e olhar. Xavier conheceu
isto; o seu coração comoveu-se à vista daqueles chineses que o
escutavam, e coxas a idéia do seu vasto império que a luz do
Evangelho não esclarecera ainda. O seu desejo de ali penetrar, de
levar para ali o adorável nome de Jesus Cristo torna-se rasais
intenso, mais ardente do que nunca, e lança um olhar de compaixão
para aqueles pobres pagãos...
Um novo prodígio se opera! Deus restitui ao seu apóstolo o dom que
lhe havia sido retirado à sua chegada ao Japão.
Xavier dirige-se aos chineses que o escutam, e fala-lhes a sua
língua vernácula com a maior perfeição possível! O povo,
arrebatado por aquela admirável maravilha, exclama em altos gritos e
batendo palmas, que jamais homem algum foi tão grande como o bonzo
cristão, e que a sua doutrina não pode deixar de ser superior à dos
bonzos japoneses.
Alguns dias depois, o número dos cristãos crescera
consideravelmente, e em menos de dois meses mais de quinhentos
idólatras haviam renunciado aos seus ídolos e recebido o batismo.
Os grandes e os sábios deram o exemplo; o povo seguiu-os, e o
fervor daqueles neófitos era tão manifesto que a única conversação
em toda a cidade de Amanguchi era sobre a religião cristã e as suas
santas práticas. Eles viam-se tão felizes, que não tinham
expressões para testemunharem o seu reconhecimento àquele que viera de
tão longe para lhes trazer a verdade, e coze ela a felicidade desta
vida e da vida eterna. Xavier chegara ao auge da alegria
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"...Conquanto eu esteja já todo branco[70], escrevia ele,
sinto-me mais vigoroso e mais robusto do que nunca, porque os
trabalhos a que a gente se entrega para instruir uma nação
civilizada, ávida de conhecer a verdade, são bem adoçados pela
abundância das searas e pela esperança de novas colheitas.
Na maior das minhas fadigas, quando me era necessário satisfazer ao
empenho da multidão entusiasta que concorria gostosa às nossas
conferências, o meu corpo banhava-se em suor, é verdade, mas a
minha alma nadava em alegria!"
"Um dos principais fidalgos deste pais, o príncipe Neatondono,
assim como sua mulher, deram-nos provas evidentes da sua afeição,
promovendo todos os meios para a propagação do Evangelho; mas não
pudemos determinar nem um nem outro a abraçar uma religião cujas
verdades reconheciam. E porquê Porque eles depositaram grande soma
de dinheiro no banco do deus Amida; porque estabeleceram em honra do
mesmo deus mosteiros de bonzos e os mantêm ricamente dotados, a fim de
que os bonzos orem e roguem sem cessar ao deus Amida que os preserve de
toda a desgraça neste mundo que lhes faça participar da sua felicidade
no outro. Temiam por tanto perder o capital, o interesse e a
recompensa, se mudassem de religião.
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Uma circunstância veio aumentar ainda muito o número dos cristãos,
com grande desespero dos bonzos.
João Fernandes pregava um dia em uma praça; o povo escutava-o em
recolhimento, quando um homem de ínfima classe se aproxima e lhe
escarra afrontosa e atrevidamente no rosto!
Fernandes, formado na escola do humilde Xavier, não mostrou
alterar-se com o ultraje que recebera; tira o seu tenso com a maior
serenidade, limpa o rosto e continua a falar sem mesmo procurar ver de
onde partira aquele insulto.
A heróica paciência de Fernandes foi apreciada e admirada como
merecia; ela produziu numerosas conversões entre os pagãos que foram
testemunhas daquele facto, e achavam-se ali indivíduos de todas as
classes. Um deles, notável pelo seu nascimento e pela sua
instrução, e que recebera no batismo o nome de Lourenço, veio a
ser tão devotado cristão, que, depois de suficientes provas,
Xavier o admitiu na Companhia de Jesus. Ele viera a Amanguchi para
se fazei admitir no número dos bonzos, e veio a ser jesuíta!
Tais progressos do Cristianismo, traziam naturalmente a ruína
completa dos sacerdotes de Chaca e Amida; o inferno pedia vingança e
para isto se trabalhava com todo o ardor.
Os bonzos queixavam-se ao rei; Oxiondono cedeu às suas ameaças, e
sem revogar o édito concedido ao Padre Xavier, mostrou-se hostil à
religião cristã; mandou confiscar os bens dos fidalgos que a tinham
abraçado, e concedeu aos bonzos a liberdade de caluniar publicamente
os pregadores europeus.
Aquelas medidas tiveram um efeito oposto, pois que fez crescer
consideravelmente o número dos cristãos, ao ponto de chegar a mais de
três mil dali a poucos dias, e todos tão fervorosos, tão
dedicados, que teriam preferido a morte mais cruel, a ter de renunciar
à sua fé.
No meio destas grandes consolações, soube Francisco Xavier que um
navio português acabava de chegar ao porto de Figen, a cinquenta
léguas de Amanguchi, e a uma légua de Funai [71], capital do
reino de Bungo. Escreveu imediatamente ao capitão e aos daquele
navio pedindo-lhes os seus nomes, notícias das Índias e da época em
que deviam voltar, e expediu Mateus encarregado daquelas cartas.
Admirados e satisfeitos os portugueses por saberem que o seu santo
Padre se achava tão perto deles, mandaram-lhe as cartas de Goa e de
Malaca de que vinham encarregados, respondendo-lhe que dentro de um
mês se fariam à vela para um porto da China onde haviam deixado três
navios, um dos quais era comandado por Diogo Pereira, seu amigo, e
que em janeiro voltaria às Índias.
Cinco dias foram suficientes para que Mateus fizesse o duplo trajeto
por mar.
Xavier recebeu de Goa uma carta do Padre Camerini em que lhe dizia
que a sua presença ali era indispensável, a bem dos negócios da
Companhia, e suplicando-lhe que viesse imediatamente.
A esta noticia, ele chama o Padre Torres a Amanguchi, confia-lhe
aquela florescente cristandade e parte com Bernardo, Mateus e dois
jovens cristãos de elevado nascimento, cujos bens haviam sido
confiscados pelo rei e que se recusavam a recobrar a posse deles a troco
da sua fé.
Lourenço também se reuniu a eles, e, pelos fins de Setembro, de
1551, os nossos viajantes puseram-se a caminho, a pé, com um
bastão na mão e levando cada um às costas uma parte das suas poucas
bagagens. A viagem teria sido mais curta e muito menos penosa por
mar; Xavier, porém, cujas mortificações se uniam ao zelo, quis
viajar por terra como os peregrinos pobres.
Caminharam cinco dias a marchas forçadas; mas chegados a
Pinlaschau, aldeia situada a quase duas léguas do porto de Figen,
as forças abandonaram-no completamente e caiu aniquilado de fadiga;
atacado pela febre e violentas dores de cabeça, com os pés
extremamente inflamados, não pôde seguir um passo mais.
Mateus, Bernardo e Lourenço continuam para diante e levam aquela
triste notícia ao São Miguel, único navio português que se
conservava ainda no porto de Figen.
O capitão, D. Eduardo da Gama, convoca imediatamente todos os
oficiais e mercadores que estavam em Funai, diz-lhes que o santo
Padre está doente a duas léguas do porto e convida-os a montar a
cavalo para o ir ver; todos anuem em acompanhá-lo e prestar os seus
serviços ao santo Padre, objeto de tanta veneração para os
portugueses. A um quarto de légua de Figen, a cavalgada
suspende-se admirada, o capitão apressa-se em apear e todos os mais
põem pé em terra...
Francisco Xavier estava ali. Caminhava penosamente, apoiado ao seu
bordão; tinha o rosto pálido, desfigurado, e os cabelos
sensivelmente esbranquiçados... D. Eduardo da Gama só o
reconhece pela radiante expressão da sua angélica Fisionomia,
expressão que com nenhum sofrimento se alterava.
O humilde Padre não ignora os sentimentos que inspirava: convencido
de que D. Eduardo da Gama viria ao seu encontro com os portugueses
do seu navio, e achando-se um pouco melhor, resolvera pôr-se a
caminho.
O capitão, tendo feito inúteis esforços para o obrigar a montar a
cavalo, viu-se forçado a acompanhá-lo a pé com todos os seus
cavaleiros. A equipagem logo que descobriu o Santo querido ao lado do
capitão disparou os seus canhões, içou as bandeiras, os clarins
soaram e as aclamações de alegria fizeram-se ouvir ao longe...
Era uma festa para todos!
Aconteceu também em Funai o que acontecera em Firando; a
população pôs-se em alarme cheia de terror ouvindo aquelas numerosas
descargas de artilharia; o rei sentiu tremer o seu trono julgando-se
atacado pelos europeus; o pavor chegara a todos os espíritos.
Um grande da corte apresentou-se, todo aterrado ao capitão do São
Miguel, a informar-se, em nome do rei, da causa daquele formidável
motim. O capitão mostra-lhe pela mão o santo Padre tão prezado,
e diz-lhe:
- Eis aqui, senhor, a causa deste entusiasmo que vos pôs em alarme
e vos causou tão grande susto. Nós quisemos dar ao nosso santo
Padre Xavier um testemunho da nossa alegria por o tornar a ver.
Dizei ao vosso rei que vistes o homem mais ilustre, a honra e glória
de Portugal, e das Índias, o amigo mais querido do nosso grande
soberano, o homem do mundo mais amado e mais respeitado!
- É, pois, este bonzo cristão que tem feito tantas maravilhas em
Amanguchi, perguntou o fidalgo japonês, e de quem os nossos bonzos
dizem tanto mal? Eu não vejo nele nada daquela grande celebridade;
parece bem pobre, bem mal vestido!
- Isso é verdade, senhor, respondeu-lhe D. Eduardo; mas o
nosso santo Padre Xavier, de uma das mais nobres famílias da
Europa, renunciou a sua fortuna, assim como a todas as honras da
corte, por amor de Deus que nós adoramos, e por dedicação para com
todos os homens, a fim de salvar as suas almas pregando-lhes as
verdades cristãs.
O cortesão do rei de Bungo não teve que responder, e só se
mostrava confundido e admirado do que ouvia. E depois de haver
examinado bem o Padre Xavier, apressou-se a voltar para junto do rei
a fim de lhe dar conta da sua mensagem.
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