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A ilha de Celebes, completamente infiel e muito considerável pela
sua extensão e população, atraía o zelo apostólico do nosso
Santo; para lá foi, evangelizando em primeiro lugar a cidade de
Tolo, a mais importante, e bem depressa conseguiu baptizar mais de
vinte e cinco mil habitantes. Ali, como em toda a parte, fez erigir
igrejas e levantar cruzes, e deixando as suas instruções para a
manutenção da fé, internou-se pela ilha.
Deve aqui ser consignada a época do seu apostolado em Macassar; os
documentos têm a lacuna da data; sabe-se tão somente que ele pregou
naquela capital com um tal resultado, que baptizou o rei e sua
família.
A princesa Leonor, filha do rei de Macassar, levada pelas
circunstâncias para a cidade de Malaca, narrara muitas vezes a Dona
Joana de Melo, esposa do governador, os prodígios operados por
Francisco Xavier na capital da ilha de Celebes, prodígios cuja
memória conservava, conquanto não pudesse precisar a data.
Enquanto o apóstolo ampliava o reino de Jesus Cristo nas principais
cidades daquela ilha, vieram comunicar-lhe que o rei de Tolo, que
recusara renunciar aos seus deuses para viver mais comodamente no gozo
das suas paixões, fazia destruir as igrejas e derribar as cruzes;
acrescentava-seque ele obrigava os neófitos a calcar aos pés as
cruzes abatidas, e que o terror dominava tudo.
A esta nova, exalta-se o zelo de Xavier. Reúne os seus amigos
portugueses, em número tão somente de oito, e diz-lhes
- Deixaremos impune um tal atentado à Majestade divina?
Mereceremos o glorioso título de soldados de Jesus Cristo, se não
acudirmos em sua defesa, se não soubermos fazer respeitar a sua lei e
castigar os revoltosos do seu império? Partamos! tomemos os
quatrocentos cristãos indígenas que nos cercam, vamos atacar o rei na
sua praça-forte de Tolo, sem nos importar com o número avultado dos
seus guerreiros! Que nos importa o número! Deus está por nós; eu
vos prometo a vitória!...
- Marchemos, meu Padre! respondem todos os portugueses; estamos
prontos a dar o nosso sangue e a nossa vida, se necessário for, por
uma só das vossas ordens!
O santo apóstolo abraça-os, aperta-os ao coração,
assegura-lhes sobretudo a mais brilhante vitória e enche-os de
entusiasmo. Prontamente se organiza o pequenino exército, marcha-se
sobre Tolo e quando se achavam já a pouca distância, o grande
Xavier detém-se e prostra-se para orar. A sua gente também se
detém e ora a seu exemplo, feliz e orgulhosa por se ver comandada por
um tal chefe. Ouve-se no mesmo instante uma horrorosa
detonarão... e as chamas do mais violento incêndio cobrem a cidade
e a devoram!
Tolo era dominada por uma montanha... Aquela montanha acabava de
abrir-se repentinamente, e lançava, com a mais desesperadora
impetuosidade, pedras, cinza, a lava incendiária e enxofre
inflamado! Os estilhaços das rochas voam em bocados encandescentes e
caem sobre as habitações que abatem e consomem! A terra treme, o
solo parece faltar sob os pés dos habitantes que fogem e vão buscar um
abrigo nas florestas. O montão de pedras e a lava, que não cessa de
sair do vulcão, excede bem depressa a altura das muralhas da cidade,
onde não fica nem um só indígena!...
Finalmente cessa o flagelo, o Padre Xavier e os seus soldados entram
na praça e tornam-se facilmente senhores dela. Então os culpados
correm a cair aos pés do grande apóstolo, confessam publicamente os
seus crimes, obtêm o perdão, e a penitência a que se sujeitam prova
a sinceridade do seu arrependimento.
Celebes estava conquistada; a fé veio a ser ali viva e ardente;
Xavier embarcou para voltar a Ternate, com disposição de levar mais
longe o nome de Jesus Cristo
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"...A setenta e duas léguas, proximamente, além das Molucas,
- escrevia ele aos seus irmãos de Roma-, existe uma terra que se
chama Morica, onde a religião cristã tendo sido pregada há muitos
anos, foi abandonada por absoluta falta de Padres, e hoje se acha de
todo extinta; e os seus habitantes levados à ignorância e barbaria
primitivas.
Este país, rico e fértil, é o mais inóspito que existe sob o
Céu. É com o veneno que os seus naturais acolhem os estrangeiros, e
por esta razão têm afastado os missionários das suas costas desde
muito tempo.
Contudo, em consideração às necessidades espirituais daquele povo,
- tanto mais a lamentar porque os seus crimes são a conseqüência da
sua ignorância e da completa ausência da nossa religião e dos
sacramentos, - acho-me resolvido a tentar aquela conquista com perigo
da minha vida, auxiliado e armado da minha única esperança em Deus,
e de seguir com o patrocínio -da sua graça esta máxima do meu
Mestre: Aquele que queira salvar a sua alma, a perderá, e aquele
que a perder por mim, a raivará".
"...Os meus amigos fazem todos os esforços possíveis para me
dissuadirem desta perigosa empresa; às suas lágrimas e aos seus rogos
unem eles os quadros mais horrorosos dos factos ali ocorridos, e
encontrando-me inacessível a todas as observações e oposições,
tomaram a resolução de recorrerem a um outro expediente; fizeram uma
grande provisão de contravenenos de toda a espécie; cada indivíduo
me leva e me encarecia o seu.
Para contentar a todos e não causar invejas, recusei todas aquelas
drogas e não quero outro recurso e outro antídoto mais que a
confiança em Deus, que poderia, porventura, afrouxar-se em mim
pelos preservativos da ciência humana.
Agradeci pois afetuosamente a todos os meus amigos pedindo-lhes o
melhor e o mais eficaz de todos os contravenenos: o auxílio das suas
orações...".
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Vendo o governador de Ternate, D. João de Freitas, que os
amigos do nosso Santo não conseguiam destruir a sua firmeza, fez
publicar um édito impondo penas severas contra todo e qualquer
capitão que recebesse a bordo do seu navio o Padre Francisco
Xavier, com destino para a Morica, ou ilhas do Moro"[49].
A esta notícia, dirige-se o heróico apóstolo à presença do
governador em audiência pública, e, não tendo em consideração
senão o seu zelo, diz-lhe com o acento de nobreza que lhe era natural
e a dignidade que lhe conhecemos
- "Eu vos sou em extremo reconhecido, senhor, por uma medida que
julgastes dever adoptar unicamente em meu interesse, mas, seja-me
permitido perguntar-vos e a todos os meus amigos aqui presentes se
credes que o poder de Deus seja limitado? Vós tendes uma bem fraca
idéia da graça do divino Salvador!"
"Existirão, pois, corações que possam resistir à virtude do
Altíssimo quando lhe apraz enternecê-los e convertê-los? Aquela
virtude, suave e forte ao mesmo tempo, que pode fazer florescer a
planta morta, e do seio da pedra fazer nascer os filhos de Abraão?!
Como! Aquele que submeteu o mundo ao império da Cruz pelo
ministério dos Apóstolos não poderá também submeter um mesquinho
ponto da terra? As ilhas de Moro ficariam unicamente privadas do
benefício da Redenção? Quando Jesus Cristo ofereceu todas as
nações ao Padre Eterno, como sua herança, teriam sido aqueles
povos exceptuados? Eles são os mais bárbaros, eu creio; mas que a
fossem ainda mais, é por que eu nada posso só por mim que espero
muito deles. Eu tudo posso, confiado n'Ele que me fortifica, e de
quem unicamente vem a força dos obreiros evangélicos!"
Notava-se uma tal inspiração na expressão do celeste semblante de
Xavier, que todos o ouviam sem ousarem interrompê-lo, não obstante
o enternecimento que cada uma das suas palavras produzia nos
corações, que tão carinhosamente o amavam.
Os seus, ouvintes. eram seus amigos e não se achavam privados de
todos os sentimentos humanos para com aquele que tão profundamente
amavam e veneravam! O apóstolo tão querido continuou
- "Às nações menos selvagens e menos cruéis não faltarão
pregadores! As ilhas de Moro são para mim, uma vez que ninguém as
quer! Ah! se elas encerrassem minas de oiro, madeiras odoríferas,
riquezas preciosas, os cristãos saberiam encher-se de coragem para
afrontarem todos os perigos! nada os aterraria! Mas ali não existe,
senão almas a conquistar, e para a aquisição daquele tesouro, eles
não têm senão indiferença, timidez... e desprezo! Será,
pois, necessário, vos pergunto eu, que a caridade seja menos
corajosa, menos generosa do que a cobiça- e a ambição?
Matar-me-ão, dizeis vós, pelo ferro e pelo veneno!...
"Esta graça não é concedida a um pecador como eu! mas atrevo-me a
dizer-vos que, qualquer que seja o gênero de tormento ou de morte que
me espere, acho-me pronto a sofrer mil vezes mais pela salvação duma
só alma. Oh! se eu tivesse a felicidade de morrer nas suas mãos,
talvez que todos eles adorassem o nome de Jesus Cristo!
"Desde a origem da Igreja o Evangelho tem frutificado nas terras
incultas do paganismo, muito mais pelo sangue dos mártires do que
pelos suores dos missionários. Nada há pois, a recear por mim nas
ilhas de Moro; além disto, Deus me chama, os homens não me
impedirão de obedecer à sua voz!"
Viam-se lágrimas em todos os olhos. O amável e Santo apóstolo
era tão querido em Ternate, que logo que o édito ficou revogado,
todos disputavam a graça de acompanhar Xavier às ilhas de Moro, e
tais foram os pedidos e as instâncias, que o forçaram a aceitar a
companhia de alguns dos seus amigos, e consolar aqueles que não podia
levar consigo.
O povo cobria a praia no momento do seu embarque, e só se ouviam
gritos de consternação e soluços de dor da parte dos índios, porque
cada um deles lhe previa uma morte inevitável e o choravam como
chorariam pelo mais carinhoso pai.
Era grande a comoção de Xavier; copiosas lágrimas corriam também
dos seus olhos, mas originadas pela dor do povo: era ele o objecto
daquela viva dor, via quanto era querido daquela gente que arrancara ao
demônio e dera a Jesus Cristo, e o coração do nosso Santo não
podia deixar de estar vivamente comovido por tanto reconhecimento e
tanto amor.
De pé, sobre a tolda do navio, solicitou as bênçãos celestes para
aquele querido rebanho, cujo pastor e pai era ele, deu o sinal de
partida, a âncora subiu, e a multidão, ajoelhada na praia,
levantou-se, trepou para os rochedos sobranceiros e ali se conservou
por todo o tempo que foi possível descobrir-se a embarcação que
conduzia o objecto venerado que os deixava cheios de pesares e da mais
dolorosa solicitude. Ninguém esperava tornar a vê-lo nesta vida.
"Deus me chama às ilhas de Moro", dissera o ilustre apóstolo ao
governador de Ternate e aos que se achavam reunidos em sua casa naquele
momento.
Deus o chamava efetivamente e não tardou em prová-lo.
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