II. VOLTA A GOA - REFORMA O COLÉGIO - AS DESPEDIDAS

O jovem rei das Maldivas tinha vinte anos; não era o benquisto dos seus vassalos, e estes, por uma revolta que promoveram, querem o seu trono e a sua vida. Ele abandona um para salvar a outra, e refugia-se na costa do Malabar, esperando que os portugueses lhe prestariam o auxilio das suas armas, e que não tardaria a voltai vencedor aos seus estados.

Mas os exércitos portugueses, espalhados e ocupados nas colônias indianas, em as defender contra os seus vizinhos, não puderam ser empregados em favor do príncipe destronado; tudo quanto se pôde fazer por ele, foi receberem-no numa cidade portuguesa que quisesse escolher para a sua residência. Achava-se então em Cochim e aí ficou, mas numa posição assaz vexatória.

A Companhia de Jesus ofereceu-lhe um asilo na sua casa, e ele, ainda que maometano, e abertamente inimigo da religião cristã, aceitou o benefício que os apóstolos daquela religião lhe queriam fazer para o consolar da desgraça em que os seus vassalos maometanos o haviam cruelmente lançado.

O Padre Herédia empreendeu a sua conversão; ... era coisa difícil. Ele deixou-se instruir voluntariamente e escutou tudo quanto lhe disseram; dotado de uma inteligência notável, compreendia, retinha tudo que lhe ensinavam apreciando, até a verdade, de que nunca duvidou; mas poderia um cristão esperar reinar nas Maldivas?

O jovem príncipe queria recuperar a autoridade real que lhe haviam arrebatado.

- Eu creio, dizia ele ao Padre Herédia, eu vejo que a verdade está do vosso lado; mas se me tornasse cristão os meus vassalos não me reconheceriam jamais.

- E antes preferis perder a vossa alma para a eternidade, do que o vosso trono por algum tempo? perguntava-lhe o Padre.

- Eu desejo reinar!...

- Reinareis no Céu, onde não existem revoltas e de onde ninguém é forçado a fugir...

- Não faleis mais nisso, senhor. Eu não serei cristão enquanto me restar a menor esperança de recuperar a posse dos meus estados.

- Pois bem! replicou o Padre, nós esperamos o nosso santo Padre Xavier; vós sabeis que faz tantos milagres, que, para ele, o maior, o mais admirável, não lhe é impossível. Vereis que ele vos baptizará!

- Eu respondo pelo contrário, senhor, porque ele nada conseguirá contra a minha vontade.

- Não, príncipe, sereis vós mesmo que lho pedireis; não resistireis ao efeito da sua presença.

Alguns dias depois, sacrificando generosamente as suas esperanças, terrestres às esperanças da vida futura, o jovem príncipe, orgulhoso daquela feliz mudança, recebia solenemente o batismo... S. Francisco Xavier abraçara-o à sua chegada.

O nosso Santo não devia demorar-se em Cochim senão até que algum barco se fizesse à vela para Goa. Durante aquela curta permanência, aproveitou a partida de um navio para Lisboa, para escrever ao rei de Portugal, ao Padre Simão Rodrigues, à Companhia de Jesus em Roma e a Santo Inácio.

"Meu excelentíssimo Padre, escrevia ele a este último[77].

Na minha volta do Japão, encontrei em Malaca as vossas cartas.

Deus sabe com que prazer eu acolhi a notícia da vossa saúde, que me é tão cara e tão preciosa!

Os conselhos que me dais enchem-me de consolação! Eles respiram toda a vossa doçura, toda a vossa piedade; leio-os, releio e sobre eles medito; o meu coração e o meu espírito deles se alimentam. Que deliciosa lembrança por mim contém estas últimas palavras que vieram tocar a minha alma: Eu sou todo vosso, de modo que nunca de vós me esquecerei!

Lendo estas palavras traçadas por vossa mão, deliciosas lágrimas sulcaram o meu rosto! E ainda, no momento em que vos escrevo, elas caem sobre o papel, com a recordação daquele feliz tempo em que vós me estreitáveis nos vossos braços, como objecto de um amor tão puro como sincero, e que me segue ainda além dos mares!

É às vossas ardentes orações que eu devo esta proteção divina que, em meio de inumeráveis perigos que acabo de atravessar, por mares e nas terras do Japão, jamais metem abandonado! ...

...Dizeis, no excesso da vossa amizade por mim, que desejaríeis ardentemente ver-me uma vez ainda antes de morrer. Ah! Deus somente, que vê o fundo do meu coração, sabe que viva e profunda impressão fez em minha, alma este terno testemunho do vosso amor!

Cada vez que me recordo, e isto me acontece constantemente, meus olhos enchem-se de lágrimas involuntárias; e quando se apresenta ao meu espírito a deliciosa idéia de que poderei abraçar-vos ainda uma vez, porque nada há que a santa obediência não possa fazer, vejo-me no mesmo instante surpreendido por uma torrente de lágrimas que não posso suspender!"

Esta carta, de que não citaremos mais que estes dois fragmentos, levava por sobrescrito: Ao douto instituidor Inácio, meu santo Pai em Jesus Cristo.

Com aquela excessiva sensibilidade que tinha lágrimas para todas as emoções; com aquela constância nas suas afeições, que de cada uma das suas recordações fazia uma saudade do passado, um martírio no presente; com aquela natureza tão delicadamente impressionável, e algumas vezes tão enérgica e tão poderosa, qual devia ser o mérito do nosso heróico Xavier!

Separado por quase quatro mil e quinhentas léguas, assina-se nas suas cartas escritas ao Pai da sua alma: "O menor dos vossos filhos que estão no exílio tão longe de vós!"

Era um sacrifício de cada dia aquela separação! Mas a glória de Deus chama-o às Molucas, e sem hesitar corre para duzentas léguas mais longe! Ouve a voz de Deus chamá-lo ao Japão, e lança-se através de todos os perigos de que é ameaçado, e interpõe mais seis mil léguas entre a Europa e ele!

Agora entrevê a China, viu os chineses escutá-lo com interesse em Amanguchi; Deus concede-lhe no mesmo instante, o perfeito conhecimento da sua língua, e conclui disto que deve levar a fé àquele império, e não pensa senão em preparar os meios para aí penetrar, felicitando-se por ter de sacrificar uma vez mais as vivas afeições do seu coração à glória e ao serviço de Deus

"Tenho esperanças, escrevia ele à Companhia de Jesus, de que Deus dará entrada na China não somente à nossa Companhia, mas também a todas as outras Ordens religiosas [78], como em campo aberto à santificação de todas, a fim de que façam brilhar todas as suas virtudes no meio daquele povo morto, e que carece de ser chamado à vida! ...

...Ah! que não possa eu pintar-vos as consolações que a Deus aprouve derramar sobre os nossos trabalhos! Oh! se eu pudesse fazê-las compreender às nossas Universidades européias! Assim eu pudesse fazer-lhas gozar e saborear!

Se tantos jovens, que se entregam tão seriamente aos estudos, tivessem aproximado os seus lábios, uma vez que fosse, desta deliciosa bebida, vê-los-íamos bem depressa voltar as suas vistas para as nações infiéis, ambicionar a glória de nelas fazer a conquista das almas em nome do soberano senhor de todas as nações!...".

Naquela ocasião, muitos membros da Companhia de Jesus, disseminados pelas Índias, se dirigiam a Goa, por ordem de Xavier, e outros vendo-se obrigados a irem ali em negócios de interesses das suas cristandades, o nosso Santo, à sua chegada, nos primeiros dias de Fevereiro achou-os quase todos reunidos no colégio da Santa-Fé. E se ele gozava a consolação das infinitas bênçãos com que Deus fizera acompanhar os seus trabalhos, se se julgava feliz por saber que o rei, fazendo justiça às suas reclamações, atendera ponto por ponto os seus pedidos, e a religião fizera os mais satisfatórios progressos nas Índias portuguesas; se lhe causou grande alegria saber que o número dos cristãos se elevava já a quinhentos mil na costa da Pescaria, onde o Padre Criminale estivera a ponto de ser morto pelos Badegás, vivamente o desconsolou e afligiu o estado em que encontrava o Colégio.

O caráter independente do Padre Gomes tinha aí perturbado tudo; ele administrava-o segundo as suas idéias e não segundo o espírito da Companhia; desprezava todas as observações que lhe faziam.. A cidade de Cochim desejava um colégio; o Padre Gomes é sabedor desse desejo e parte para o ir estabelecer por si próprio. Entende-se com o comandante da fortaleza que lhe cede a igreja da Mãe de Deus, sem consentimento do vigário geral e da confraria a que ela pertencia.

O Padre Gomes aceita a doação, a confraria intenta-lhe um processo e ele sustenta-o. O povo habituado à humildade, à caridade, à brandura dos Padres da Companhia de Jesus, não pode tolerar a sua obstinação e revolta-se contra ele. "Se o santo Padre o soubesse!" diziam de todos os lados.

Ele criara inimigos em Goa, e pôs contra si toda a cidade de Cochim. As reclamações subiam frisantes e numerosas; chegaram até junto do trono, foram até ao Santo fundador da Companhia. Foi por isso de urgência chamar Xavier, e o grande apóstolo tudo deixara, transpusera mais de duas mil léguas, e achava-se em Goa.

O incidente ocorrido em Cochim pôde ser reparado.

Francisco Xavier, nos poucos dias que aí esteve, reunira na catedral, o vigário geral, o comandante, e a confraria da Mãe de Deus; de joelhos pedira perdão de todos os escândalos ocasionados pelo procedimento do Padre Gomes, e lhes restituiu as chaves da igreja a que renunciou em nome da Companhia. A confraria, profundamente penetrada do bom exemplo de tão grande humildade e desinteresse, devolveu-lhe as chaves da igreja, fazendo-lhe uma formal doação dela.

Era menos fácil reparar o mal feito ao colégio de Goa. Mas Xavier não vacila ante as medidas que julgou necessárias.

Despediu os jovens portugueses que Gomes admitira ilegalmente; tornou a chamar os jovens indianos que por ele haviam sido expulsos; restabeleceu o seminário tal como era antes; finalmente fez a Antônio Gomes sábias admoestações, acolhidas por este com tamanha altivez que forçaram Xavier a usar de severidade.

Mandou Gomes a Diu, e deu ordem ao superior dos Padres que aí residem para lhe comunicar a sua expulsão da Companhia, e para o obrigar a voltar para Portugal na primeira embarcação que se fizesse à vela para Lisboa.

As ordens do Santo apóstolo foram executadas: Antônio Gomes embarcou para Portugal, mas não chegou ao termo da sua viagem, porque o naufrágio do navio em que ia o mandou para a eternidade ! ...

Acabava Francisco Xavier de receber de Roma o título e os poderes de Provincial da Companhia de Jesus nas Índias e em todos os estados do Oriente. Santo Inácio comunicava= -lhe ao mesmo tempo todos os privilégios que lhe haviam sido concedidos a ele como chefe da Ordem, com poderes de os substabelecer nos outros membros da Companhia que ele considerasse dignos.

Munido daqueles poderes, nomeou Xavier ao Padre Barzeu vice-provincial, e ao mesmo tempo reitor do colégio de Santa-Fé. Forçou a humildade do Padre Barzeu a aceitar aqueles dois cargos, dos quais o investiu perante todos os Padres reunidos, depois do que se ajoelhou humildemente diante dele para reconhecer a sua autoridade.

O Padre Barzeu, profundamente humilhado de ver a seus pés o grande apóstolo do Oriente, prostra-se sem poder pronunciar uma só palavra, e em seguida, tentando de novo expor a sua insuficiência e sua indignidade, foi forçado a obedecer.

Xavier ordena a todos, que seguindo a santa obediência, se sujeitem ao vice-provincial como ao Padre Inácio, e o autorizou a expulsar da Companhia aqueles que procedessem independentemente da sua autoridade, ou que resistissem às suas ordens, quaisquer que fossem as suas virtudes, qualidades e talentos. Sendo a obediência para ele a primeira virtude do religioso,, tudo o mais devia ser tido como de nenhum valor naquele que a não seguisse.

Deu instruções por escrito e pormenorizadas ao vice-provincial sobre a administração temporal e espiritual da Companhia e do Colégio; depois designou a cada um dos Padres o posto que devia ocupar dali em diante, e, regulado e disposto tudo, dedicou-se aos preparativos da sua viagem para a China.

O vice-rei, a pedido de Xavier, deu a Diogo Pereira o título e os poderes de embaixador na China, encarregou-o dos presentes para o imperador e fez tudo que estava a seu alcance para secundar os projetos de Xavier. Por seu lado, Diogo Pereira, fez a aquisição de magníficas casulas de seda, paramentos de altar de brocado, quadros religiosos dos melhores artistas, enfim, brilhantes ornamentos de igreja, destinados a dar aos chineses uma idéia da majestade do culto católico e a predispô-los a favor da religião que se lhes ia anunciar.

A 7 de Abril, escrevia Xavier ao rei de Portugal:

"Nós partimos, sob a proteção de Vossa Alteza com ricos presentes de que Diogo Pereira fez aquisição em parte á custa dos vossos tesouros e em parte dos seus; mas levamos um outro tão precioso, que nenhum rei, que eu conheça, fez jamais tão magnífico a outro rei: é o Evangelho de Jesus Cristo! Se o imperador da China vier a conhecer algum dia o seu precioso valor, a ele ligará mais preço que a todos os seus tesouros.

Confio que Deus lançará, enfim, um olhar de misericórdia sobre aquele vasto império, que esclarecerá aqueles povos criados à sua imagem e que lhes ará conhecer Jesus Cristo Salvador de todos os homens.

Eu parto com Diogo Pereira e um dos nossos Irmãos. O fim desta embaixada é pedir a liberdade dos portugueses cativos naquele país, e propor um tratado de aliança entre Vossa Alteza e o imperador da China. Mas o meu fim pessoal é o de declarar guerra ao inimigo de Deus e dos homens. E, pois, em nome do Rei dos reis que me apresentarei perante o imperador e perante os seus vassalos, anunciando-lhes que não é ao demônio, mas a Deus seu Criador, a Jesus Cristo seu Soberano Senhor, que eles devem render homenagem!

É uma empresa que pode parecer temerária e audaciosa, a de ir apresentar-me perante um poderoso monarca para o convencer do erro em que vive; se esta missão é já perigosa em face de príncipes cristãos, quanto mais o deve ser em presença da barbaria!

Mas o próprio Deus é o nosso fim, ele só nos anima, ele nos sustentará. Este pensamento enche-nos de confiança e de esperança; apoiados ao seu braço todo-poderoso, ousaremos tudo para a sua glória.

O que poderemos recear? O que teremos a temer? Não devemos recear senão a desgraça de ofender a Deus; não devemos temer senão os efeitos da sua cólera...

...A minha confiança não tem limites; quando considero que para uma missão tão sublime, para levar o facho da verdade a um outro mundo, para assim dizer, ao meio das trevas da superstição e da barbaria, Deus se dignou escolher-nos, a nós, o mais fraco e o maior dos pecadores...

É preciso, pois, que a minha vontade corresponda à confiança e ao fervor que aprouve a Deus inspirar-me na sua misericórdia infinita; é preciso que eu esteja sempre pronto a voar onde a sua voz me chama para ali proclamar a sua divina lei pois que ele quis dar-me os meios por intervenção de Vossa Alteza.

O meu imenso reconhecimento para as pessoas que aqui são os representantes de Vossa Alteza e que me têm auxiliado nos meus planos para a glória de Deus, faz-me solicitar de vós toda a sorte de graças e mercês em seu favor. Os meus desejos foram plenamente satisfeitos. Dignai-vos, Senhor, aceitar os meus sinceros agradecimentos; por mim, conservarei de tudo isto lembrança eterna".

Foi ainda de Goa que o grande apóstolo escrevia a seguinte admirável carta ao Padre Cipriano, na qual, depois de o haver repreendido severamente pela imprudência do seu zelo e pouco império do seu caráter exaltado, acrescenta:

"Até aqui tenho ditado; agora tomo a pena: reconhecei a minha escrita e o meu coração.

Oh! meu querido Cipriano! se soubésseis que sentimentos de afeição por vós me tem inspirado esta carta, jamais esqueceríeis Francisco Xavier! tê-lo-íeis sempre presente no espírito, e desramaríeis abundantes lágrimas, considerando a caridade com que o seu coração arde por vós. Ah! se o segredo dos corações pudesse ser penetrado nesta vida, vós veríeis, meu Irmão Cipriano, que lugar tão profundo tendes no meu!

Sou todo vosso e não vos esquecerei jamais.

Francisco".

Aproximava-se o momento da partida.

S. Francisco Xavier empregou as últimas noites que passava no colégio em dar os seus conselhos aos Padres que ia deixar. Muito ocupado durante o dia para lhes dirigir todas as exortações e recomendações que julgava serem-lhes úteis na sua vida de um apostolado tão austero e difícil, no meio daquela mistura de índios e portugueses, consagrava-lhes as primeiras horas da noite, reservando as restantes para a oração.

Escreveu as suas instruções para cada um daqueles cujo posto oferecia maiores dificuldades, e somente as recomendações que deixou ao Padre Barzeu, vice-provincial, não tinham menos de setenta páginas, que se não podem ler sem admirarão desde a primeira até à última linha.

Finalmente, chegada a hora, o ilustre apóstolo separou-se dos seus Irmãos, a 12 de Abril de 15 52, e embarcou em um navio da armada real que se fazia à vela para Malaca. A vista de Samatra, uma violenta tempestade ameaça submergi-lo e o capitão fala em alijar a embarcação lançando a sobrecarga ao mar.

- Suspendei! capitão, diz-lhe o Padre Xavier; a tempestade vai cessar antes do pôr do sol, e daqui até lá nada temos a recear.

O capitão, que conhecia o valor das palavras de Xavier, obedeceu e pouco depois declarava-se a bonança. O sol brilhava ainda no horizonte.

Achavam-se próximo de Malaca. O semblante do santo Padre altera-se subitamente; mostra uma impressão de tristeza tal que aflige os que o cercam.

- Vós sofreis, meu Padre? perguntam-lhe.

- Oh! sim, respondeu ele, e muito! Orai pela infeliz cidade de Malaca., porque ela é vitima de uma doença contagiosa que a dizima neste momento.