|
FRANCISCO XAVIER, depois de se ter combinado com Miguel
Vaz, como vimos, embarcou para Cambaia, com o fim de obter do
vice-rei a expedição que desejava contra o tirano de Jafanapatão.
Logo que entrou no navio, reconheceu um daqueles fidalgos portugueses
cujos escândalos faziam a maior dor do seu coração, e não quis
perder esta bela ocasião de ganhar para Deus uma das almas que eram em
extremo nocivas à sua glória nas Índias.
Para render este homem refaz-se o nosso Santo de todo o encanto do
seu espírito, de toda a sua graça pessoal, de tudo; finalmente,
quanto possuía de atrativo e sedutor, até ao entusiasmo.
O fidalgo português sente o encanto; procura a companhia do Padre
Francisco, não pode passar sem ele, não se julga feliz senão junto
dele. Mas cada vez que o apóstolo lhe fala da sua alma, não colhe
mais que sarcasmos e ironias; porém insiste, ofendido contra uma
impiedade que lhe sangra o coração. Xavier não desanima; quanto
mais o pobre pecador mostra repugnância, mais o apóstolo lhe
testemunha bondade e carinho.
O navio ancorou em Cranganor e os passageiros desembarcaram. Durante
aqueles poucos dias de demora ali, o fidalgo não pôde resistir ao
desejo de procurar a companhia do Padre Francisco, de passear com
ele, de aproveitar; enfim, todas as ocasiões de gozar do prazer que
lhe proporciona, a sua conversação.
Ao terceiro dia, passeavam eles juntos num denso palmar, quando
inesperadamente Xavier, cedendo a uma inspiração divina,
descobre-se até à cintura e bate em si tão rudemente com a sua
disciplina, que rasga as carnes e o seu sangue corre abundantemente.
O português, que ao princípio olhara para ele com admiração, e
mostrando-se estupefacto pelos violentos movimentos do Santo, solta
gritos de horror logo que viu correr sangue
- Meu Padre! Que fazeis! Suspendei!... Isso importa um
verdadeiro suicídio!...
- Ah! meu caro senhor, vós não quereis compreender as minhas
palavras! é por vás, é por amor à vossa querida alma! mas isto
nada é comparativamente com o que eu deveria fazer. Custastes muito
mais caro a Jesus Cristo, e a sua Paixão, a sua morte, todo o seu
sangue, todo o seu amor não tem podido enternecei o vosso
coração!...
Senhor acrescentou ele, deixando-se cair de joelhos e levantando para
o céu os olhos cheios de lágrimas, Senhor! lançai a -vista sobre
o vosso sangue adorável e não sobre o de um pecador como eu!...
- Meu Padre! meu Padre! eis-me aqui! exclama o fidalgo
lançando-se aos pés de Xavier; suplico-vos que me confesseis aqui
mesmo, não adiemos para mais tarde! não retardemos um só instante!
E fez uma confissão geral, prometeu viver cristãmente e foi fiel à
sua palavra. Aquela conversão, tão difícil até ali, consolou e
alegrou muito mais o coração do nosso Santo, porque dela esperava
colher importantes resultados em benefício dos interesses da
religião.
Chegado a Cambaia, obteve Xavier o que desejava: o vice-rei
expediu ordens para reunir as tropas e formar um considerável exército
em Nagapatão, a fim de cair de surpresa sobre o tirano de
Jafanapatão, que devia ser entregue a Xavier sem condições;
porque o Santo apóstolo que esperava o sangue das vítimas
intercederia por ele e seus olhos se abririam à luz da fé.
Xavier tomou a estrada de Cochim, e tendo de demorar-se em
Cranganor, hospedou-se em casa dum cristão cujo filho vivia numa
deplorável devassidão.
O infeliz pai testemunhou ao Santo tão viva dor pela inutilidade das
suas observações e dos seus conselhos no espírito do jovem, que
Xavier, empregou as mais amáveis expressões para o consolar, e
suspendendo-se por um instante, recolheu-se como arrebatado por uma
iluminação súbita; depois, com o acento da inspiração e da
certeza, disse ao desventurado pai:
- Vós sois o mais feliz dos pais! Agradecei a Deus, meu amigo,
porque este filho, que para vós é hoje um objecto de tão amarga
dor, se converterá, será religioso da Ordem de S. Francisco e
terá a glória de morrer mártir!
Esta predição cumpriu-se literalmente. O jovem pecador
converteu-se, entrou na Ordem de S. Francisco, foi mandado para o
reino de Candia para evangelizar os bárbaros daqueles países e teve a
felicidade de ali morrer mártir.
De volta a Cochim, encontrou ali, o nosso Santo, Cosme Anes que
ele havia recomendado ao rei e por quem tinha particular afeição. Em
uma das suas conversações, perguntou-lhe Xavier se o ano era bom
para os negociantes portugueses
- Excelente, meu santo Padre, lhe respondeu ele, não pode ser
melhor. Em mui poucos meses expedimos para a Europa sete
carregações magníficas! Eu envio ao rei um diamante dos mais
raros, que não custou menos de dez mil ducados em Goa, e que valerá
trinta mil em Lisboa!
- Qual é o navio que leva esse diamante?
- É o Atouguia, meu Padre. Confiei-o ao capitão João de
Noronha.
- Eu sentiria grande pesar se tivesse remetido aquele diamante, tão
precioso, por esse navio...
- Então porquê, meu Padre? porque o Atouguia fez água uma vez?
Mas ele está completamente restaurado, e vós o suporíeis novo se o
vísseis hoje.
O Santo guardou silêncio. Anes, persuadido de que ele tivesse
conhecimento da sorte desta importante embarcação, acrescentou:
- Meu Padre, o vosso silêncio faz-me recear pelo Atouguia.
Recomendai-o a Deus, porque se ele se perde vou sofrer um
considerável prejuízo. Eu não tinha autorização para comprar
aquele diamante; se ele se perde, perco eu o seu preço e outras
despesas que tive de fazer.
- Farei o que desejais, meu amigo, respondeu simplesmente Xavier.
Algum tempo depois, jantando o- nosso Santo com Cosme Anes, lhe
disse:
- Rendei mil graças a Deus, meu amigo; o vosso belo diamante está
já em poder da rainha de Portugal.
Mais tarde, recebia Anes uma carta do capitão do Atouguia; ele
mandava-lhe dizer que poucos dias antes de chegarem a descobrir as
costas de Portugal, se abrira uma veia de água por baixo do mastro
grande; o rombo era tão considerável, era tão iminente o perigo
para toda a equipagem, que se falava já em abandonar o barco e
lançarem-se ao mar. Cortara-se o mastro grande, receava-se que o
navio sossobrasse antes de se poder salvar a maioria dos passageiros que
queriam lançar-se todos por uma vez às embarcações...
Mas eis que repentinamente a água desaparece! Que prodígio seria
este! A abertura é tão grande! Como se operou isto?!...
Examina-se a parte aberta e ela estava de todo fechada por si
mesma... e o Atouguia, não tendo mais que duas velas, navegava
admiravelmente e podia desafiar o melhor navio da armada real! Chegou
em muito bom estado ao porto de Lisboa e não parecia ter sofrido;
nenhuma avaria se dera também na sua rica carregação.
O Padre Xavier deixara Cochim para ir reunir-se armada portuguesa
em Nagapatão, em um navio que tocava a ilha da Vaca; desembarcou
ali e percorreu o interior da ilha. Encontrou uma família chorando
inconsolável a morte duma criança cujos tristes despojos iam ser
entregues à terra.
Aquela dor comoveu o nosso Santo; ele consola a família banhada em
lágrimas, sabe que é muçulmana e ordena à criança morta que
ressuscite em nome de Jesus Cristo Filho de Deus; a criança
ressuscita àquele nome.
O apóstolo não tem tempo de instruir aquele povo; porém
deixando-lhe a lembrança do prodígio, espera pelo futuro e volta ao
mar implorando a misericórdia infinita para aquele povo, que não
tivera tempo de evangelizar.
Passando à vista da ilha de Manar, pediu para ali se demorar alguns
dias. Logo que desembarcou naquela terra ensopada do sangue de tantos
mártires, dirigiu-se à povoação de Passim... Toda a ilha
estava infestada pela peste. Quando viram chegar o grande Padre, que
tanto amavam já sem o conhecerem, os consternados Manarenses
recuperam a coragem, convencidos de que o bom Padre não os deixará
sem os ter livrado do horroroso flagelo. Expedem emissários para
todas as aldeias vizinhas com o fim de anunciar a chegada do grande
Padre dos Paravás, e imediatamente todos os válidos, que excediam
ao número de três mil, correm a cercar Francisco Xavier.
- Grande Padre! exclamam eles, livrai-nos da peste! Grande
Padre, tudo morre aqui! Contam-se mais de cem mortos por dia!
Grande Padre, livrai-nos
- A vossa dor corta-me o coração, meus queridos Manarenses,
respondeu-lhes Xavier! Sim, eu vou pedir a Deus, que é o
Todo-Poderoso, e cuja bondade e misericórdia são infinitas, que
vos livre deste flagelo pelos merecimentos de Jesus Cristo seu
Filho, e pelos dos mártires de Manar que vão também orar por
vós., Esperai! Eu vos peço que espereis somente três dias.
Orai também, orai ao Deus das misericórdias infinitas que tenha
piedade de vós, e tende confiança.
Ao terceiro dia a peste cessou, todos os doentes se viram
instantaneamente curados e à mesma hora. Tudo quanto restava de
pagãos na ilha de Manar pediu o batismo com instância, não obstante
a perseguição aberta contra os cristãos. O Santo apóstolo,
depois de os ter baptizado a todos, deixou-os, para voltar à armada
naval onde era esperado.
Quando chegou a Nagapatão, teve o desgosto de saber que a armada
recusava atacar o rei de Jafanapatão. Um navio português,
ricamente carregado que vinha do Pegu, naufragara na costa de
jafanapatão; o rei estava de posse da preciosa carregação, e os
mercadores portugueses, persuadidos de que não obteriam nada, se a
armada começasse as hostilidades, combinaram-se a seduzir os oficiais
a preço de ouro, e estes recusavam-se ao ataque ordenado pelo
vice-rei.
Xavier viu nisto oposição da Providência ao plano que formara;
renunciou também a ele e tornou a embarcar para voltar a Travancor.
Passando em frente da ilha de Ceilão, lançou sobre ela um triste
olhar.
"Ah! desgraçada ilha, disse ele, vejo-te coberta de cadáveres!
Rios de sangue te banham por todos os lados"!
Algum tempo depois, D. Constantino de Bragança, e depois dele
D. Furtado de Mendonça, faziam passar a fio de espada todos os
habitantes da ilha, e o tirano que reinava em Jafanapatão e seu filho
foram desapiedadamente massacrados.
O vento, constantemente contrário, forçou o nosso Santo a voltar
para Nagapatão. Durante aquela penosa viagem soube que os insulares
de Macassar anelavam ansiosos pelo momento em que lhes fosse permitido
ouvir-lhe pregar o Evangelho, de que eles não tinham senão uma
idéia muito confusa, levada para ali por~um mercador português.
A esta nova, exalta-se o zelo do grande apóstolo, que resolve
partir no mesmo instante para Macassar, a fim de aproveitar a ocasião
duma tão rica colheita, que, dizia ele, não supunha tão fácil;
mas carecia antes de tudo de consultar a vontade de Deus.
Na sua chegada a Nagapatão, encontrou Miguel Ferreira que acabava
de fretar o seu navio, e que se achava prestes a partir para
Meliapor. Xavier aproveita esta circunstância e embarca com ele a
29 de Março, domingo de Ramos, com o fim de ir implorar as luzes
divinas junto do túmulo de S. Tomé.
O vento, então favorável, nas costas de Coromandel mudou
repentinamente, e obrigou-os a ancorar próximo dum promontório;
sete dias decorreram à espera do momento em que pudessem, sem perigo,
ganhar o alto mar. O admirável Santo conservou-se por aqueles sete
dias em contínua contemplação e sem tornar o mais ligeiro alimento.
No Sábado Santo, somente, a pedido de Diogo Madeira, anuiu em
beber um pouco de água, na qual pediu que se fizesse cozer uma
cebola. Este facto foi atestado por todo os passageiros.
Naquele mesmo dia, q. de Abril, tornando-se melhor o tempo,
puderam levantar âncora e voltar ao mar:
- Capitão, o vosso navio é bastante forte para resistir a uma
violenta tempestade? perguntou Xavier.
- Oh! não, santo Padre; é, ao contrário, um velho barco;
porém eu não o exponho nunca quando o tempo não está seguro.
- É necessário, pois, tornar a ganhar o porto, senhor.
- Oh! Padre Francisco! como, pois, tendes vós medo com um tempo
assim? Eu iria a Meliapor em uma cascazinha de noz com um vento como
este.
- Não vos fieis nisso, capitão, poderíeis enganar-vos!
- Meu Padre, olhai para este belo céu, nunca vi melhor tempo para
o mar, eu conheço-o; a mais frágil barca estaria em segurança com
este vento. Nada temais, Padre Francisco! Confiai em mim, que
sou um velho homem do mar. Vós chegareis a salvamento.
Xavier não insistiu mais; além disto os passageiros recusavam voltar
ao ancoradouro que haviam deixado. Mas no mesmo instante o mar
mostra-se agitado; um ponto negro se apresenta no horizonte; avança
e sobe ràpidamente, e o navio, jogando em todos os sentidos, ameaça
sossobrar, quando uma violenta rajada de vento, retrocedendo-o com
uma força prodigiosa , o lança precisamente na rada de Nagapatão,
de onde haviam partido.
Imagine-se o pesar do capitão e da equipagem, ao recordarem-se que
nenhum de entre eles atendera as advertências do santo Padre.
Xavier tinha de fazer a sua peregrinação ao túmulo do primeiro
apóstolo das Índias; para evitar novas demoras, tomou o partido de
fazer a viagem por terra e a pé, não obstante a distância e as
dificuldades dos caminhos.
|
|