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Chega o momento da partida. o navio vai levantar ferro e
Inácio dirige-se a bordo. As suas provisões são suficientes:
o seu alforje leva o pão e a sua cabaça vai cheia de água.
Não será bastante? Tem algumas moedas de cobre. Guardá-las
como propriedade sua seria contrário ao espirito de pobreza;
dá-las aos marinheiros seria dispô-los em seu favor;
reservá-las para comprar pão no desembarque seria falta de
confiança em Deus. Deixa-as na margem para o primeiro pobre
que as encontre.
Cinco dias depois, uma violenta borrasca lançava o navio no
porto de Gaeta, e o nosso peregrino, sem perder um instante,
segue a pé, a estrada de Roma.
No fim do primeiro dia, encontra-se numa vila, onde algumas
pessoas reunidas junto dum grande fogo, peito da hospedaria,
o convidam a aquecer-se. Inácio estende-lhes a mão e pede à
sua caridade uma esmola e um abrigo por amor de Deus. Dão-lhe
de comer e mandam-no para a estrebaria! O nobre Inácio de
Loiola dirige-se para ali, bendizendo a Deus por esta
humilhação; porque o orgulho de raça não está ainda extinto
na sua alma e ele tem sede de tudo o que possa contribuir
para o esmagar sem piedade. No meio da noite, ouve gritos de
socorro sobre a estrebaria; sobe o mais depressa possível
para levar socorro à pessoa que parece chamá-lo, e encontra
uma mulher lutando com um homem que quer ultrajá-la. Inácio
fala espanhol a esse desgraçado italiano, mas fala-lhe em
nome de Deus, ameaça-o com a sua cólera, é compreendido e a
mulher é salva.
Antes do pôr do sol o Santo põe-se a caminho. Chegando à
noite muito tarde a uma pequena cidade, encontrou a porta
fechada; retira-se a uma pequena capela fora dos muros c aí
passa a noite. Ao abrirem-se as portas, apresenta-se para
entrar na cidade; perguntam-lhe pelo passaporte, porque a
peste assola uma parte da Itália e ninguém penetra nas
cidades se não for munido dum certificado de saúde. O nosso
herói ruão tem por si senão a sua confiança em Deus e tem
contra si um rosto extenuado, uma magreza excessiva... É-lhe
recusada a entrada. Resigna-se a seguir outro caminho,
ladeando a cidade; mas chegando à primeira vila, é forçado a
parar. Exausto de fadiga, reduzido à extrema fraqueza pelos
jejuns e austeridades, sofrendo da perna direita, à qual não
deixou o tempo necessário para se fortificar e
restabelecer-se do violento tratamento que lhe fez sofrer,
experimentando vivas dores de estômago, não podia dar mais um
passo.
Enquanto o santo peregrino descansava das suas grandes
fadigas numa vila desconhecida, ignorando a língua dos
habitantes e sofrendo com este gênero de isolamento, vê o
povo subitamente agitado, e todos correm a vestir os seus
hábitos de festa com a agitação do prazer e da alegria. Daí a
pouco compreende que a princesa suserana da cidade, em que
lhe foi recusada a entrada, vai atravessar a vila para se
dirigir àquela cidade. Junta-se aos habitantes que a vão
esperar e aproveita a ocasião para lhe pedir autorização de
passar pela sua boa cidade a fim de se dirigir a Roma,
acrescentando
"- Afirmo a Vossa Alteza que não tenho a peste e que a minha
doença é apenas fraqueza".
Tendo-lhe sido concedida esta autorização, descansou dois
dias naquela cidade e retomou em seguida o caminho de Roma,
onde chegou no domingo de Ramos do ano de 1523.
Passou ali a Semana Santa, visitou todas as igrejas, recebeu
a bênção do Soberano Pontífice Adriano VI, assim como a
permissão de fazer a peregrinação à Terra Santa, e dispôs-se
para a partida.
Não tendo podido dissuadi-lo de empreender esta perigosa
viagem alguns espanhóis que encontrara na Cidade Eterna,
forçaram-no a aceitar ao menos sete peças de ouro para a
travessia. Inácio de Loiola censurou-se logo desta falta
contra a santa pobreza. Saindo de Roma, distribuiu aos pobres
tudo o que acabava de receber e dirigiu-se para Veneza,
sempre a pé, pedindo a esmola do tecto que o devia abrigar e
do pão que o devia alimentar.
As dificuldades da viagem tornavam-secada vez maiores. A
doentia palidez do seu rosto aterrava a todos; afastavam-se
dele com terror, tomando-o por um pestífero.. Não podendo
atravessar as cidades cuja entrada lhe era recusada, nem
achar nas vilas e aldeias um abrigo para a noite, via-se
obrigado a tornar ao ar livre os curtos momentos de descanso
que concedia à sua fraqueza. Entre Chioggia e Pádua tinha
conseguido juntar-se a alguns viajantes que iam a pé como ele
e esperava poder entrar coxas eles na cidade. Chegados à
porta, pediram-lhes o passaporte; ninguém o apresentou e
foram repelidos. Os companheiros do nosso Santo voltam atrás
para arranjar o atestado de bom estado de saúde, mas não
querem ir com o pobre mendigo, que se dispunha a segui-los,
porque estão persuadidos que só o seu aspecto seria um
obstáculo para obterem o atestado. Além disso, Inácio está
fraco e anda a custo. Parece-lhes bom este pretexto para se
desembaraçarem dum pobre mendigo, cuja companhia é uma
humilhação para eles. Declaram-lhe pois que, não podendo
acompanhá-lo na sua marcha vagarosa, lhe tomam a dianteira.
Inácio, exausto de fadiga, abandonado num lugar desconhecido,
não sabendo o caminho que devia seguir, põe-se em oração,
mais confiado que nunca na Providência, porque lhe falta todo
o socorro humano.
Aquele por quem ele se expunha a tantas privações e
sofrimentos vem, com efeito, em seu auxílio: Nosso Senhor
aparece-lhe, consola-o, promete fazê-lo entrar em Pádua e em
Veneza, e deixa-o inundado duma alegria inexprimível.
O nosso peregrino põe-se a caminho, cheio de força e de
coragem. Junta-se aos viajantes que o tinham abandonado e
sabe deles que, apesar de irem munidos do atestado de saúde,
os não deixaram entrar em Pádua. Inácio não desanima.
Chegado à porta daquela cidade, passa por meio dos guardas,
que lhe não dirigem nenhuma pergunta e parece não o verem.
Continua a sua peregrinação, transpõe a entrada de Veneza
como se fora invisível, e isto sob as vistas dos seus
companheiros de viagem, que encontrou naquele momento, e que,
menos felizes que o mendigo desprezado, sofreram um exame
minucioso das suas pessoas e dos seus papéis antes de lhes
consentirem que entrassem na cidade.
Era avançada a hora quando chegou a Veneza. Ignorando onde
estavam situados os diversos hospitais, refugiou-se num
pórtico para lá passar a noite.
Este pórtico era o do palácio Trevisano, pertencente ao
senador deste nome, Marco Antônio, venerado pelas suas
grandes virtudes e eminente piedade [26]. Este senhor, que
acabava de pegar no sono, despertou de repente ouvindo estas
palavras:
"- O meu servo está deitado na pedra à porta do teu palácio e
tu dormes molemente num leito adornado de ricos bordados!"
O senador levantou-se logo, correu à porta do seu palácio; dá
com os pés num corpo que faz um ligeiro movimento vê que é um
pobre peregrino sem asilo e condu-lo a casa, onde o trata com
o maior respeito.
O nosso herói não podia permanecer numa casa onde era tão
estimado, e saiu para ir para casa dum negociante espanhol,
biscainho, que o tinha reconhecido, mas não aceitou seus
oferecimentos. O senador e o negociante queriam fazer-lhe as
despesas da viagem, mas ele recusou e pediu-lhes apenas que
lhe obtivessem uma audiência do doge André Gitti. O navio que
levava os peregrinos para a Terra Santa, tinha abandonado as
águas de Veneza e devia arribar à ilha de Chipre; ora,
naquele momento, a república enviava um novo governador
àquela ilha, e estando pronta a pôr-se à vela a nau do Estado
que devia transportá-lo, Inácio desejava obter o favor de ir
nessa nau:
- Pense, - diziam-lhe - que, desde a tomada de Rodes pelos
Turcos, os seus piratas cruzam sem cessar o mar da Síria e
que o menor perigo a que o senhor se pode expor é o da
escravatura.
- Nada disso, - respondia ele - pode abalar a minha
confiança; se os navios faltassem, eu faria, com o auxilio do
céu, a atravessia numa prancha.
Pediram-lhe que não abandonasse Veneza sem ver o embaixador
de Carlos V; mas Inácio recusou
- Nada tenho que fazer com os grandes deste mundo, -
respondeu ele - e nada tenho que pedir-lhes: estou sob a
proteção do Rei do céu e da terra, a quem tenho a honra de
servir; esta me basta e não me faltará nunca.
Concederam-lhe passagem na nau do Estado; mas, na véspera da
partida, assaltou-o uma ardente febre. Foi-lhe receitado um
medicamento que exigia descanso e medidas de prudência;
Inácio não pode resolver-se a seguir os conselhos da
sabedoria humana. O médico proíbe-lhe que embarque,
dizendo-lhe que a sua vida perigava; a sua inspiração
impele-o, porém, a partir e a não perder esta ocasião de ir à
Palestina, e obedece à sua inspiração. Embarcou no dia 14 de
julho e o enjoo curou-o completamente.
A equipagem da nau compunha-se de marinheiros e de
passageiros, cujo proceder e palavras eram objecto de
escândalo para o nosso peregrino. Inácio fez ouvir a esses
desgraçados pecadores a linguagem da fé e lembrou-lhes as
verdades que eles pareciam ter esquecido. A sua palavra não é
compreendida, os seus conselhos são desprezados; filham-no
como censor importuno, cuja temeridade querem punir,
desembaraçando-se da sua presença. Naquelas paragens há uma
ilha deserta; manobram de maneira a parar ali apenas o tempo
necessário para lá deixarem o peregrino espanhol. Um dos
passageiros sabendo da infernal combinação, adverte dela o
nosso Santo, que redobra as suas exortações com mui pouco
êxito. Os marinheiros persistem no seu projecto homicida,
manobram com este fim e aproximam-se da ilha desabitada; mais
alguns instantes e o crime será consumado... Uma espantosa
rajada de vento, que nada pressagiava, e que ninguém podia
prever, repeliu a nau, arrebatou-a e levou-a até à ilha de
Chipre!
Não tinha Inácio de Loiola dito antes de embarcar: "Estou sob
a proteção do Rei do céu e da terra, a quem tenho a honra de
servir; ela me basta e não me faltará nunca"?
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