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Inácio de Loiola, como dissemos, ensinava o catecismo às
crianças de Azpeitia; iam outras de muito longe, e das mais
notáveis famílias, a fim de ouvir aquelas instruções. Os
próprios pais ali se dirigiam.
Entre os jovens ouvintes do nosso Santo, Martinho de Alarzia
tornava-se notado por disformidade no talhe, fealdade
excepcional e gaguice que não lhe permitia pronunciar uma só
palavra sem grande dificuldade. Interrogando-o um dia o
apóstolo em presença de numerosa assembléia, Martinho
perturba-se e responde de maneira a excitar a hilariedade de
algumas pessoas. O Santo vê isto e diz aos gracejadores:
- Porque se riem desta criança? Não são justos. A sua alma é
infinitamente mais bela diante de Deus do que as suas
disformidades corporais podem ser ridículas aos olhos dos
homens. Esta beleza interior crescerá um dia; Martinho será
um santo sacerdote e prestará serviços eminentes à Igreja de
Jesus Cristo no seu próprio país.
Martinho de Alarzia justificou literalmente a profecia do
Santo.
Francisco de Almara, criança de 8 anos, foi apresentado por
sua mãe ao santo apóstolo:
- Senhor, - lhe disse ela - abençoe meu filho e peça a Deus
que o conserve, porque só o tenho a ele!
Inácio contemplou o menino e pareceu absorto nos seus
pensamentos por um momento; depois, encarando a mãe,
disse-lhe como que inspirado:
- Tranqüilize-se, senhora, Francisco terá muitos filhos e
morrerá velho.
Francisco de Almara teve quinze filhos e morreu de oitenta
anos.
Vieram dalgumas províncias para pedirem simplesmente milagres
a Inácio de Loiola; ninguém acreditava que um tal Santo não
tivesse o poder de fazer tantos quantos fossem os doentes que
lhe apresentassem.
Uma mulher possessa do demônio havia quatro anos tinha sido
exorcismada algumas vezes sem resultado; levaram-na ao Santo:
- Bom senhor, - lhe disseram - tenha caridade para com esta
desgraçada; cure-a!
- Eu não sou sacerdote, não tenho poder algum para.
exorcismar, - respondeu humildemente o Santo.
- Não lhe pedimos isso; pedimos-lhe que a abençoe e que peça
a Deus que a cure; a sua caridade nada, nos pode recusar!
Inácio não pôde resistir; orou um instante, fez o sinal da
cruz sobre ela, e o demônio abandonou-a. A notícia desta cura
espalha-se rapidamente; levam outra mulher ao santo apóstolo
e dizem-lhe que ela é sujeita a convulsões que fazem crer na
presença do demônio
- Esta mulher não é possessa; - respondeu ele - mas o
espirito do mal apraz-se em mostrar-lhe imagens terríveis e é
isso o que ocasiona as convulsões.
Orou por esta mulher, fez sobre ela o sinal da cruz e
mandou-a embora curada.
Na vila de Gansara estava a morrer uma pobre mulher, vitimada
por uma tísica pulmonar. Levaram-na a Azpeitia_ pediram ao
Santo que a benzesse; responde que o não pode fazer antes de
ser sacerdote; insistem, ele deixa-se vencer, abençoa a
doente em presença de numerosas testemunhas, e a doente
readquire as suas forças e a saúde a ponto de voltar a pé
para a sua vila. Alguns dias depois volta a Azpeitia para
agradecer àquele a quem devia a vida e a. saúde e
oferecer-lhe frutos do seu jardim. Inácio, temendo afligi-la
se recusasse, aceita-os e distribui-os aos pobres doentes.
Bastido, há muito tempo no hospital da Madalena, era sujeito
a frequentes ataques de epilepsia. Um dia cai em presença de
Inácio, que, movido de compaixão, pede a Deus que o cure e
coloca-lhe a mão na fronte. Ao contacto desta mão, Bastido
volta a si e fica curado.
Uma mulher que tinha um braço dissecado, testemunha deste
prodígio, diz a uma pessoa que a acompanhava:
- Como ele faz milagres tão facilmente, e como me não atrevo
a pedir-lhe que me cure o braço, pode ser que o bom Deus lhe
dê a graça de curar sem que ele o saiba. Vou pedir o pano que
ele acaba de tirar àquele doente.
E apontava um pobre ulcerado, a quem o Santo acabava de curar
as feridas. Pede esse pano e lava-o com o único braço de que
pode dispor depois de o ter passado sobre aquele que não tem
vida; pois está persuadida de que o Santo deve deixar uma
virtude poderosíssima em tudo o que toca: Deus abençoou a
simplicidade da sua fé, manifestando de uma maneira brilhante
a grande santidade do nosso herói. Enquanto aquela mulher
lavava o pano cuja vista causava nojo, mas que para ela era
precioso, o seu braço morto foi em auxilio do outro e
readquiriu num momento uma força e um vigor que conservou
sempre.
Deus permitiu que o nosso Santo, depois de ter curado tantas
enfermidades, não pudesse resistir a todas as fadigas do seu
apostolado e caísse doente. Sua família, a quem uma tão
eminente santidade tinha esclarecido, instou com ele para
conseguir que o transportasse a Loiola, onde todos desejavam
ter a consolação de lhe prodigalizar cuidados. Inácio foi
inflexível. Os seus parentes obtiveram apenas licença para
virem tratá-lo naquele hospital de que o não podiam arrancar,
e renovavam-se junto dele de modo a não o deixarem isolado
durante dia e noite. Para o incomodarem o menos possível,
ficavam num quarto vizinho que comunicava com o dele só o
tempo que Inácio permitia.
Ia já muito melhor, quando uma noite as suas duas primas, D.
Maria de Oriala e D. Simoa de Alzaga, que o velavam, o
deixaram só no quarto vizinho.
Antes de o abandonarem, D. Maria colocou uma luz sobre um
móvel a alguns passos de Inácio:
- Agradeço-lhe, Maria; - lhe disse ele - mas prefiro não ter
luz e peço-lhe que a apague.
- E se o primo tiver necessidade dela?
- Se tiver necessidade dela, Deus Nosso Senhor fará com que
me não falte.
D. Maria obedeceu, apagou a luz e retirou-se com sua irmã.
Inácio entregou-se imediatamente à oração, apesar dos seus
sofrimentos, e estava há mais de duas horas absorvido em
Deus, quando suas primas, ouvindo-o soltar gemidos, que
atribuíram a redobramento de febre, correram ao quarto dele,
e o viram rodeado de luz e orando com a expressão da
beatitude. O Santo voltou a si, testemunhou o maior pesar por
ter sido surpreendido no momento de tanto fervor e pediu às
suas parentas que nunca falassem nisso.
Deus não permitiu que a sua discrição correspondesse ao
desejo do nosso Santo. Ao contrário, Deus queria justificar
aos olhos de toda a família Loiola a vida de santa pobreza
que Inácio tinha escolhido para lhe agradar. Era necessário
que todos os membros dessa nobre família se vissem forçados a
confessar que, longe de os humilhar, a santa vida do pobre
mendigo os elevava e era a sua mais bela glória. E, para
isso, a Providência nada tinha poupado. Tornara necessário a
viagem de Inácio a Biscaia, reunira toda a sua família no
castelo de Loiola no momento em que ele devia chegar,
manifestara a santidade do apóstolo por numerosos milagres,
abençoara a sua palavra, fazendo com que ela operasse
importantes conversões; enfim levara a luz aos espíritos e
aos corações. Os parentes do nosso herói viam nele um
prodígio de virtude.
O nosso Santo estava restabelecido; falava da sua partida
para a Itália e não tinha ainda posto os pés no castelo de
seus pais. Os seus irmãos não ousavam renovar as suas
instâncias, mas era vivo e profundo o seu pesar:
- Pois bem, - disse a castelã - irei eu ao encontro de meu
cunhado Ínigo, lançar-me-ei a seus pés e ficarei diante dele
de joelhos até que me conceda a graça de vir comigo.
- Deus queira que sejas mais feliz do que nós o temos sido
até agora, - disse tristemente D. Garcia.
No dia seguinte, a cunhada de Inácio foi procurá-lo e
pediu-lhe simplesmente que não partisse sem ter dado a sua
família a consolação de vir ver o castelo onde nascera, onde
tinham decorrido os primeiros anos da sua infância, e onde
haviam morrido seu pai e sua mãe que tanto o amaram:
- Entrar na casa de meus pais, querida irmã, - respondeu
Inácio -seria entrar de novo num mundo que eu abandonei para
sempre; não o farei.
Então a nobre senhora caiu de joelhos diante de seu cunhado e
banhada em lágrimas
- Meu irmão, meu querido irmão, - disse-lhe ela não é por
motivos humanos que eu lhe suplico que nos conceda este
favor, mas pela caridade de Jesus Cristo, que enche o seu
coração ! Peço-lhe pelo seu santo amor, pela sagrada Paixão!
...
- Sim, querida irmã, pela paixão de Nosso Senhor consinto;
irei esta noite.
A noite, com efeito, foi a Loiola, viu toda a sua família
reunida, deu-lhe conselhos espirituais, e disse a seus
irmãos:
- Todas as ações da nossa vida devem ter por fim a glória de
Deus nosso Mestre soberano. A fim de que a minha visita
preencha este fim, peço-lhes, meus irmãos, uma graça que
espero me não recusarão.
Todos acederam no mesmo instante. O Santo continuou:
- Peço-lhes que mandem dar doze pães todos os domingos a
outros tantos pobres, em honra dos doze apóstolos.
O seu desejo será satisfeito, - disse D. Garcia - desde o
próximo domingo.
Todos corroboraram a promessa do chefe da família.
O nosso Santo passou a noite em Loiola, mas não se deitou:
estaria demasiado bem, teria encontrado o que havia
abandonado para sempre. No dia seguinte, antes de romper o
dia, estava no hospital.
O momento da sua partida aproximava-se. Espalhou-se esta
notícia, e o clero, os magistrados, o povo da cidade e dos
arredores suplicaram em vão ao santo apóstolo que ficasse no
seu próprio país, onde tinha feito um grande bem. Inácio não
se deixou vencer nem pelas lágrimas nem pelas petições.
- Deus chama-me a outra parte, - respondeu a todas as
súplicas-, e em caso algum ficaria em Azpeitia. Rodeado da
minha família, estaria, de certo modo no meio do mundo e eu
abandonei o mundo e tudo o que é do mundo, renunciando para
sempre a ele.
D. Garcia não podia resignar-se a ver partir a pé, como um
indigente, aquele que era objecto da veneração pública e que
usava o nome de Loiola:
- Meu caro Ínigo, - lhe disse ele - cedi à sua humildade até
agora, ou, antes, a sua humildade nada me concedeu durante os
três meses que acaba de passar em Azpeitia. Hoje, é
impossível que o meu querido irmão me não permita dar-lhe um
cavalo e mandá-lo acompanhar e seguir como convém a um homem
do seu nascimento.
- Como ainda não adquiri todas as forças - respondeu o Santo
- aceito da melhor vontade um cavalo, porque aquele em que
vim é incapaz de fazer uma nova viagem, e dei-o ao hospital,
onde serve para o transporte das provisões. Quanto aos
criados, agradeço, mas não tenho necessidade deles.
- Mas, meu caro Ínigo, em consideração à opinião pública, não
deve viajar assim no seu país. Iremos todos acompanhá-lo até
Pamplona, ou até Siguenza, porque o meu caro irmão vai
primeiro a Obanos. Todos sabem que Ínigo é dali, e o mano não
pode recusar aos seus irmãos a consolação de o acompanharem.
- Acedo meu irmão, - disse humildemente o nosso Santo.
Seus irmãos acompanharam-no, pois, até aos arredores de
Pamplona, e lá Inácio despediu-se deles, pedindo-lhes que não
fossem mais longe, e dirigiu-se sòzinho àquela cidade, onde
vendeu o cavalo que D. Garcia lhe tinha dado. Dali, foi
regular os negócios de D. Francisco Xavier a Obanos, onde
habitava D. João de Aspilcueta, irmão mais velho de
Francisco; depois subiu ao castelo de Xavier, onde passou
alguns dias. Partiu em seguida para Almazan, sempre a pé e
pedindo esmola; ali regulou os negócios de Diogo Laynez,
dirigindo-se depois a Toledo para tratar dos de Afonso
Salmeron. Querendo embarcar em Valência, aí parou a fim de
ver o seu antigo discípulo, João de Castro, que estava no
noviciado dos Cartuxos de Val-de-Cristo.
Inácio apreciava o valor e as virtudes de João de Castro,
provou-lho comunicando-lhe todos os seus planos para glória
de Deus. Contou-lhe o compromisso que tinha tomado com os
seus novos discípulos, todos conhecidos de João. Confiou-lhe
o projecto de ir com eles à Palestina e deu-lhe a conhecer
todo o seu pensamento relativamente à ordem apostólica, cujo
fim e plano Deus lhe tinha indicado; enfim, pediu-lhe as suas
orações e os seus conselhos.
João de Castro respondeu-lhe que reflectiria e passou a noite
em oração; ao sair da cela, no dia seguinte, correu a abraçar
Inácio com uma terna efusão, e disse-lhe:
- A sua santa empresa é obra de Deus; triunfará, apesar de
todas as oposições humanas, e todo o mundo lucrará com ela.
Parece-me uma obra tão excelente e tão perfeita, que se me
quiser para cooperar nela, estou pronto a sair da Cartuxa
para o seguir por toda a parte. Sou apenas noviço na ordem de
S. Bruno; não tendo, pois, tomado nenhum compromisso, com
toda a alegria serei seu discípulo.
- Não, meu caro João, - lhe respondeu Inácio. Recebo com o
maior contentamento as palavras de animação que me dá,
creio-as inspiradas pelo Espírito Santo, mas não devo aceitar
a sua proposta. Creio que Deus o quer na solidão; o meu caro
João deve corresponder à sua vocação. Deus esclareceu-o a meu
respeito, a fim de que pudesse fortificar-me e animar-me na
obra que Ele me encarregou de realizar, e, agora, estou
convencido de que me esclarece a seu respeito a fim de que eu
o anime a continuar no caminho em que a Ele aprouve
conduzi-lo. Sigamos, pois a nossa vocação separadamente; por
serem diferentes, não são menos santas.
Os dois amigos prometeram em seguida recordar-se um do outro
diante de Deus, e separaram-se. Inácio dirigiu-se no mesmo
dia para Valência, onde embarcou imediatamente, apesar dos
perigos da navegação, naquele momento em que Barba-roxa tinha
mais de cem galeras a cruzar o Mediterrâneo. e quando se não
falava senão das suas devastações naquelas margens e dos seus
latrocínios em pleno mar.
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