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“Devereis vir todos para minha corte, e aqueles que
forem versados em matemática, poderão ficar comigo e servir-
me”. Assim resolveu o imperador Kang-hi, quando os padres
pediram o seu consentimento para mandar buscar na França
outros irmãos da Ordem. Pois já o padre Schal, a quem fora
confiada primeiramente a educação do jovem imperador, soubera
inculcar, excelentemente, no rapaz uma intensa sede de saber;
às lições de Schal é que se devia agradecer o fato de Kang-hi
ter sido dominado durante toda a sua vida pela ânsia de novos
conhecimentos e por ter desejado sempre receber explicações
exatas sobre todos os fenômenos havidos entre o céu e a
terra. Quem mais, a não ser os sábios padres jesuítas, teria
sabido satisfazer a curiosidade de Kang-hi e, ao mesmo tempo,
mante-la sempre desperta? Quando o padre Schal fechou os
olhos, a sua alma pode se recomendar, tranqüila, à
misericórdia do Senhor, pois ele sabia que o seu pupilo
continuaria a fazer perguntas durante a sua vida inteira e
que, enquanto Kang-hi fizesse perguntas, os jesuítas haveriam
de gozar em sua corte de poder e prestígio.
Todas as manhãs o imperador mandava chamar os padres,
afim de que eles lhe explicassem uma lei física, uma equação
matemática, ou uma construção geométrica, com cuja solução
ele se torturara, debalde, durante a noite. Também durante o
dia o soberano abandonava, muitas vezes, importantíssimos
assuntos de governo, e apressava-se a ir ter com os jesuítas
pois que, de repente, se lhe encasquetara na cabeça um
cálculo astronômico que ele não conseguia resolver sozinho.
Mesmo de noite ocorriam-lhe, constantemente, novas perguntas,
e, só a muito custo, é que ele podia se separar de seus
professores europeus, para se recolher a um breve repouso.
Em breve já não se satisfazia com um mero conhecimento
teórico; quando os missionários, agora, lhe tinham explicado
uma construção geométrica, ele queria controlar praticamente
também se os cálculos feitos eram exatos. Para esse fim
mandava ele fabricar cubos, pirâmides, cilindros e cones de
diversos materiais e media-lhes a superfície, a altura e o
volume. Juntamente com os padres calculava ele o peso, de
diferentes esferas de um diâmetro dado ou então calculara-
lhes o diâmetro sendo conhecido o peso, e não lhes dava
descanso antes de ter executado com eles o nivelamento do
curso de um rio. Com a ajuda de seus conhecimentos
trigonométricos, recém adquiridos, determinava ele a largura
de arroios e tanques ou a altura de edifícios e sentia-se
infinitamente alegre quando a medição confirmava o resultado
obtido pelo cálculo.
Um dia o padre Benoit entregou-lhe uma carta celeste com
uma explicação em língua chinesa, a qual continha os
princípios do sistema copernicano. Por meio dela Kang-hi
ficou inteirado, pela primeira vez, da rotação da terra em
torno do sol e esse pensamento pô-lo em uma excitação tal,
que, durante dias a fio, não recebeu a nenhum de seus
mandarins da corte, deixando sem resolver os assuntos de
governo mais urgentes, e ansiando por assimilar todas as
conseqüências que se haviam aberto diante de seus olhos com a
nova e abaladora concepção do universo.
Depois disso chegou a vez dos problemas químicos e
médicos, abriram-se para o imperador os canos infinitos da
especulação filosófica.
Dentro em breve Kang-hi já não podia mais viver sem os
jesuítas. Para tê-los mais perto de si, resolveu por de lado
todas as regras de etiqueta cortesã. Permitia-lhes que se
sentassem junto a ele, ao passo que os demais dignatários de
alta categoria e até mesmo os príncipes imperiais, em
presença do Filho do Céu tinham que se conservar sempre de
joelhos. Muitas vezes chegava a esquecer a sua dignidade a
tal ponto que ia visitar os missionários, entretendo-se com
eles durante horas inteiras.
Já às quatro horas da madrugada os missionários tinham
que se levantar, para prestarem as suas homenagens, em tempo
oportuno, ao impaciente soberano; somente com o cair da noite
é que eram eles dispensados e, mesmo assim, ainda tinham que
elaborar o programa imperial para o dia seguinte. Quando
ficava só o imperador, repetia sempre, caprichosamente, as
lições que acabara de aprender, relia os apontamentos dos
padres e, então, explicava aos seus filhos o que ele mesmo
recém aprendera. O padre Gerbilon teve mesmo que acompanhar o
imperador em uma viagem à Tartaria, pois Kang-hi não queria
passar nem um só dia sem lição.
O missionário narra o magnifico encontro do imperador
com os Grandes tártaros, descreve as suntuosas cerimonias do
grande “ Kotan” e o banquete em que participaram cerca de
8OO príncipes tártaros. Também nessa ocasião Kang-hi despediu
os hóspedes todos o mais depressa que lhe foi possível, afim
de se entreter com Gerbilon sobre a eclíptica e a órbita da
terra. No fim de contas os jesuítas também encontraram
maneira, é verdade que com a maior precaução, de puxar o
assunto para o cristianismo e souberam dispor o ânimo do
soberano a favor dessa religião de maneira tão benévola que o
mesmo lhes fez presente de um terreno para construção de uma
igreja e contribuiu, além disso, com dez mil “ taels” para
os gastos de edificação. Quando a igreja ficou pronta, Kang-
hi entregou aos jesuítas uma inscrição redigida por ele
mesmo, para ser colocada no portal. Continha ela uma fórmula
completa de adoração dirigida ao deus dos cristãos, o qual
era designado aí como “ a verdadeira causa primaria de todas
as coisas, sem princípio nem fim.” Os padres contaram-lhe,
além disso, tantas coisas sobre a dignidade e o poder do
Papa, que Kong-hi alimentou o pensamento de se aparentar pelo
casamento com o príncipe da cristandade. Por isso escreveu
ele uma carta ao papa, na qual solicitava a mão de uma de
suas sobrinhas.
“A ti, Clemente, o mais abençoado de todos os papas,
abençoado e grande imperador de todos os papas e igrejas
cristãs, senhor dos reis da Europa e amigo de Deus!” Com
essa invocação dá inicio ele à epistola original, conservada
no arquivo do ministério do Exterior de Paris. “O mais
poderoso de todos os poderosos da terra”, contém mais adiante
esse documento, “ o qual é maior do que todos os grandes sob
o sol e sob a lua, e que está sentado no trono de esmeraldas
do império da China, erguido sobre cem degraus de ouro, afim
de explicar aos fiéis a palavra de Deus, o qual dispõe do
direito de vida e morte sobre l5 reinos e 170 ilhas, escreve
esta carta com a pena virgem do avestruz. Saúde e vida longa.
Chegou o tempo em que a florescência de nossa juventude irá
sazonar o fruto de nossa idade madura, afim de que se
realize, ao mesmo tempo, o desejo de nossos fiéis súditos e
lhes seja dado um herdeiro do trono para a sua proteção.
Assim sendo, resolvemos desposar uma donzela ilustre e bela,
que tenha sorvido o leite de uma leoa corajosa e de uma mansa
corça. Dado que o vosso povo romano foi considerado sempre
como o genitor de mulheres valentes, castas e inexcedíveis,
houvemos por bem estender a nossa mão poderosa e tomar uma
delas por esposa. Esperamos que possa ser uma de vossas
sobrinhas, ou a de um outro grande sacerdote, sobre a qual
Deus tenha lançado o seu olho direito... Desejamos possua ela
os olhos da pomba, a qual contempla o céu e a terra, e os
lábios de um marisco, que se alimenta do rubor da aurora: sua
idade não deverá ir além de duzentas luas; sua altura terá
que ser do comprimento de um caule de trigo verde e que seu
talhe como um punhado de trigo seco... Aquiescendo ao nosso
desejo vós, pai e amigo, tereis estabelecido uma aliança e
uma amizade eternas entre os vossos reinos e o nosso poderoso
país. Nossas leis ficarão unidas, como a trepadeira que se
enlaça em torno da árvore. Nós mesmos espalharemos o nosso
sangue real em muitas províncias e aqueceremos o leito de
vossos príncipes com algumas de nossas filhas, das quais os
mandarins, na qualidade de nossos embaixadores, vos
entregarão os retratos... Enquanto isso erguemo-nos em nosso
trono para vos abraçar. Declaramo-vos que esta carta foi
selada com o timbre de nosso império, em nossa capital do
mundo, no terceiro dia da oitava lua do quarto ano de nosso
reinado.”
Esse projeto matrimonial, na verdade, não foi realizado,
mas, apesar disso, o cristianismo fez um progresso rápido na
própria família do imperador; dos trinta e cinco filhos e
vinte filhas de Kang-hi alguns se fizeram batizar. O
extraordinário favor do soberano deu em resultado que os
missionários passassem a desfrutar de enorme prestígio entre
o povo também e que pudessem eles realizar muitos batismos;
nessa ocasião surgiram por toda a parte na China paróquias e
igrejas cristãs.
Dentro em breve ofereceu-se aos padres uma outra
oportunidade para ampliação de sua atividade missionaria.
Kang-hi incumbiu-os, por exemplo, da organização de uma nova
carta geográfica de todo o império, e, no cumprimento dessa
ordem, os padres se viam obrigados, a miúdo, a realizar
longas viagens. Visto que, nessas ocasiões, apareciam eles
como enviados do imperador, e levavam consigo uma grande
escolta, a sua chegada causava em toda a parte uma grande
impressão e proporcionava ao cristianismo nas províncias um
apoio moral extraordinário. Os missionários, durante essas
expedições geográficas, visitavam ao mesmo tempo as paróquias
cristãs, regulavam os seus assuntos e cuidavam da edificação
de novas igrejas.
Um conflito político ofereceu-lhes em breve, a
possibilidade de se mostrarem úteis ao imperador, também em
outros assuntos. Constantes pendências nas províncias
limítrofes sino-russas tinham tornado iminente o perigo de
uma guerra e, visto que algumas tribos tártaras perigosas
faziam menção de se aliar aos russos contra a China, em
Pequim começou-se a procurar a maneira de evitar um conflito
aberto. Mas faltava aos mandchús toda e qualquer experiência
em negociações diplomáticas, e assim foi que não lograram
eles encontrar uma base razoável para o entendimento. Os
jesuítas realizaram então uma conferência da paz e
participaram até mesmo das negociações como intérpretes e
mediadores. O padre Gerbilon foi em seguida ao acampamento
dos russos e deu-lhes a entender o quão vantajoso seria o
obterem eles dos chineses um tratado comercial lucrativo, em
troca de concessões territoriais. Os russos eram bastante
comerciantes, para que não fossem perceber a exatidão das
explicações de Gerbilon, e se declararam, imediatamente,
prontos a abrir mão em favor da China dos territórios
contestados, caso obtivessem a permissão para mandar a
Pequim, anualmente, uma delegação comercial. Quando o padre
Gerbilon, já entrada a noite, regressou ao acampamento
chinês, trazia consigo um tratado de paz já pronto, cujas
cláusulas eram absolutamente favoráveis aos chineses. Dois
dias mais tarde o tratado foi assinado; era o primeiro pacto
que o império chinês concluía com uma potência européia. Na
China tomou-se em alta conta esse sucesso diplomático dos
jesuítas; os mandarins mais ilustres lhes felicitaram, e o
príncipe Sasan, o chefe oficial da delegação de paz,
agradeceu-lhes com as mais lisonjeiras expressões o
valiosíssimo serviço.
Os missionários, que, em todas as situações da sua
atividade governamental, se haviam postado fielmente ao lado
do imperador, demonstraram ser ainda colaboradores valiosos,
quando Kang-hi, já envelhecido, cansado, doente e achacado de
dores, começou a se extinguir.
Dentro em breve apareceram os padres Gerbilon e Rouvet
no quarto do soberano enfermo trazendo-lhe uma caixa com
bolinhas de miolo de pão; essas, como eles o asseguravam,
haviam curado o poderoso Rei Sol da França, de uma grave
enfermidade; e de fato – apenas Kang-hi ingerira algumas
dessas pílulas, eis que já começou a se sentir completamente
restabelecido e pode se aplicar ao governo do império e aos
teoremas de Euclides com forças novas. Alguns meses mais
tarde adoeceu ele de novo de uma febre maligna, a qual
aparecia com grande violência todos os dias à mesma hora. Os
missionários foram chamados outra vez e reconheceram logo que
Kang-hi estava atacado de malária. Recomendaram-lhe o uso de
uma casca medicinal, que seus irmãos da Ordem tinham
descoberto; era a chamada “ casca dos Jesuítas” , que mais
tarde, sob o nome de cascas de quina, iria se espalhar por
todo o mundo.
Mas os padres tiveram de sentir aí, pela primeira vez,
que se formara na família imperial uma resistência contra
eles; o príncipe herdeiro protestava contra o fato de estar
seu pai usando um remédio desconhecido na China, e afirmava
que ninguém sabia ao certo se esse remédio não iria
prejudicar a saúde dele. Dado, porém, que o estado de Kang-hi
ia piorando cada vez mais, ficou resolvido que quatro
príncipes experimentassem, primeiro, o efeito do medicamento
em si mesmos. Depois que essa experiência foi coroada de um
feliz resultado, o imperador resolveu também experimentar as
cascas dos jesuítas. No dia imediato não apareceu o esperado
acesso de febre, e a mesma coisa aconteceu nos dias
subseqüentes. Logo depois do seu restabelecimento Kang-hi foi
do palácio à cidade acompanhado de grande séquito. E o que
nunca acontecera, estava acontecendo agora: permitiu ele ao
povo, que, aliás, por ocasião das excursões do imperador era
escorraçado das ruas, nelas permanecesse. Em sua companhia
achavam-se os quatro padres Gerhilon, Bouvet, Fonteney e
Visdelon; tiveram eles licença para permanecer de pé,
enquanto os próprios mandarins mais elevados eram obrigados a
se prostrar de joelhos e tocar o solo com a fronte.
O imperador, então, voltado para os missionários disse
em voz alta: “ Vós europeus me haveis servido sempre com zelo
e dedicação e, até o dia de hoje, não tenho razão para vos
fazer a menor acusação. Muitos chineses desconfiam de vós,
mas eu, que fiz observar todos os vossos passos
cuidadosamente, estou tão convencido da vossa correção e
sinceridade, que declaro alto e bom som: é necessário que
acreditem em vós e que em vós confiem!” Em seguida a isso
Kang-hi narrou ao povo que estivera doente, e que os
estrangeiros tinham restaurado a sua saúde.
Os jesuítas haviam salvo o soberano duas vezes; numa
terceira vez, quando ele regressou da caça atacado de uma
grave pneumonia, o mais que puderam fazer foi lhe suavizar a
morte. Acalmaram-lhe o coração, que pulsava violentamente,
com o emprego de um electuario, e depois deram-lhe a beber do
seu vinho de missa, o qual eles mandavam vir todos os anos de
Manila; era o sangue de Cristo, declararam eles ao imperador,
e o vinho do altar cristão deu ao enfermo, na realidade,
forças de novo por algum tempo, Kang-hi morreu cheio de
respeito pelo Deus dos cristãos, o qual o ajudara a passar as
últimas horas de sua vida sem sofrimento e com ânimo
tranqüilo.
Mas em toda a China haviam se espalhado, nesse meio
tempo, os rumores referentes aos milagrosos remédios dos
europeus. Centenas de enfermos afluíram para junto dos
padres, e todos eles receberam tratamento médico. Com isso
tiveram os missionários muitíssimas oportunidades de falar a
respeito de sua religião e induzir ao batismo as pessoas
curadas, cheias de agradecimentos. Assim é que, agora, foram
conquistadas muitas almas para o reino de Cristo, graças a
pílulas francesas, pós índicos e vinho espanhol.
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