TERCEIRA PARTE

MESTRE E DISCÍPULO

(1524-1534)


I. OS PRIMEIROS ESTUDOS

Inácio de Loiola sabia que Deus o destinava a fundar uma Companhia de Apóstolos, e sentia necessidade de recrutar os seus discípulos entre os jovens que se davam ao estudo das ciências ou das letras.

Mas perguntava a si se a sua ignorância pessoal não comprometeria os seus esforços junto deles. Os homens não tinham nada que ensinar-lhe nas ciências divinas, porque Deus, como vimos, o tinha instruído e maravilhosamente esclarecido; mas não sucedia o mesmo com as ciências humanas. Impelido por outra parte para o estudo, por uma inspiração secreta assaz imperiosa para que pensasse em resistir-lhe, a sua resolução estava tomada. ia sentar-se nos bancos da escola, aos trinta e três anos de idade, e, para maior glória de Deus, misturar-se com os rapazinhos estudantes, a fim de aprender com eles os primeiros elementos da língua latina. Era necessário uma virtude como a de Inácio para não recuar diante de tal empresa, porque ele tinha aversão ao estudo; mas pedia-o a glória de Deus, e, embora tivesse que dedicar metade da sua vida a esse rude labor, não hesitava!

Chegando a Barcelona, foi ver D. Isabel Rosell e D. Inês Pascoal e comunicou-lhes o seu projecto. Isabel prometeu-lhe fazer as despesas dos livros e doutros objetos necessários e assegurou-lhe que encontraria sempre em sua casa as esmolas de que tivesse necessidade. D. Inês ofereceu-lhe um quarto numa casa sua, ao fim da rua de los Cotoneros, a última à esquerda de quem sai para o mar. Como os hospitais eram aos arrabaldes, se para lá fosse ficaria muito afastado das aulas.

O professor Jerónimo Ardebalo recebeu-o gratuitamente no seu curso de gramática e o nosso Santo meteu ombros à empresa , sem demora.

Aqui esperava-o uma nova artimanha do demônio.

Apenas entrava na aula, o seu espírito só se ocupava de Deus; as coisas espirituais absorviam-no completamente, não compreendia o que lia, não ouvia as explicações do professor e as consolações espirituais que experimentava iam até ao êxtase; todos os seus esforços para vencer este estado extraordinário não davam resultado algum.

"- É notável! - dizia ele a si mesmo por fim. Quando oro, me confesso, tenho a felicidade de comungar, me disciplino, ou me entrego a qualquer exercício espiritual, os êxtases não vêm tão frequentes nem tão completos; e apenas me quero entregar ao estudo, não para satisfazer uma vã curiosidade, mas unicamente para maior glória de Deus, sou obrigado a renunciar a ele pela abundância das consolações espirituais que o céu parece espalhar sobre mim. Reconheço nisto o espírito das trevas transformado em anjo de luz; apressemo-nos a frustrar os seus manejos infernais".

No dia seguinte, Inácio pediu ao seu professor que o acompanhasse à igreja de Nossa Senhora do Mar. Ali, pôs-se diante dele de joelhos e disse-lhe:

"- Mestre, sou culpado, muito culpado! Até agora negligenciei o trabalho, fui preguiçoso no estudo, não correspondi aos seus cuidados; suplico-lhe que me perdoe. Fui iludido pelos manejos do demônio, que Deus me fez a graça de poder reconhecer, manejos que quero frustrar custe o que custar. Comprometo-me neste momento, na presença do Rei e da Rainha do céu e da terra, a quem tenho a honra de servir, a trabalhar sob a sua direção durante dois anos. Comprometo-me solenemente a isto, e peço-lhe, mestre que me considere doravante como uma criança, me trate como tal e me castigue severamente, sendo preciso, para me tornar mais atento e mais estudioso!"

O professor não disse palavra, mas verteu lágrimas de enternecimento e apertou as mãos ao sublime discípulo; e, ao sair da igreja, abraçou-o com admiração, não tendo nunca visto virtude semelhante.

Desde este dia, Inácio pôde estudar com aplicação e bom resultado: os êxtases não voltaram.

Alguns sábios aconselharam-lhe, para lhe formar o gosto, a leitura das obras de Erasmo, entre outras a do Soldado Cristão.

Inácio leu-a; a princípio gostou e chegou a anotá-la; mas, percebendo que aquela leitura lhe esfriava o coração e prejudicava o seu espirito interior, repeliu para longe de si um livro que só era bom para enfraquecer o amor de Deus na sua alma. Leu então a Imitação de Jesus Cristo, que era as suas delícias.

Forçando-o a sua vida de estudo a diminuir uma parte do tempo que tinha por costume dar à oração, quis compensar esta privação, a fim de que não pudesse prejudicar o seu progresso espiritual. O estômago estava bom desde que chegou a Barcelona e Inácio aproveitou estas melhoras para voltar às austeridades, mas não sem ser autorizado pelo seu confessor, o Padre Diogo de Alcântara, religioso Franciscano. Não tornou a usar nem a túnica, nem a cadeia de ferro; querendo trabalhar na santificação das almas, sentia que não devia apresentar nada de austero no exterior. Usava uma espécie de sotaina cinzenta e chapéu de abas largas, que os espanhóis chamam sombrero. Trazia um cilício, aplicava rudes e frequentes disciplinas e tinha imaginado uma nova mortificação: cortara o meio da sola dos sapatos, de modo que, parecendo que andava calçado, andava descalço sem que ninguém o suspeitasse.

Inácio ocupava um pequeno quarto, no centro do último andar, e muitas vezes o filho de D. Isabel, João Pascoal, cometia a piedosa indiscrição de subir silenciosamente até lá no meio da noite e de espiar o nosso Santo por uma pequena abertura da porta. Via-o sempre em oração, ora prostrado, ora com os olhos elevados e os braços em cruz. Algumas vezes viu-o elevado acima do solo e rodeado de luz. Ouvia-o freqüentemente repetir

"- Ó meu Deus! ó meu amor! ó delicias da minha alma! Se os homens vos conhecessem, não vos ofenderiam nunca! Meu Deus! como sois bom em suportar um pecador como eu!"

D. Isabel e João Pascoal pediram-lhe baldadamente que comesse à sua mesa: quis sempre mendigar o pão necessário à sua subsistência de cada dia. A veneração que inspirava atraía-lhe bastantes esmolas em roupas e dinheiro; tudo distribuía aos pobres que lhe assediavam a casa ou que lhe embargavam a passagem nas ruas. Sabia-se que dava tudo o que recebia; mas não deixavam de lhe dar, porque também se sabia que o tornavam feliz dando-lhe meios para satisfazer a sua caridade. D. Isabel queixou-se um dia por ele dar sempre aos pobres o que tinha de melhor.

- Ah! senhora, - lhe replicou o nosso Santo - se Nosso Senhor Jesus Cristo lhe pedisse esmola, guardaria o melhor para si?

Deus continuava a favorecê-lo freqüentemente com as suas mais íntimas comunicações e por vezes sucedeu que elas o surpreenderam fora de casa com irresistível força.

Um dia, ficara de joelhos durante mais de duas horas, e na. mais completa imobilidade, diante do altar de S. Mateus, na igreja do convento de S. Jerónimo, quando as religiosas, que o observavam com santa curiosidade, viram-no elevar-se da terra, sempre ajoelhado; o seu rosto tinha uma expressão seráfica, o seu olhar era celeste!

Inácio ia por muitas vezes à igreja do convento dos Santos Anjos, situado fora da cidade, entre a porta Nova e a porta S. Daniel. Renovou-se ali o mesmo prodígio algumas vezes. As religiosas, que foram testemunhas disso, tiveram um grande desejo de ver e falar com aquele a quem chamavam Santo. Inácio, prevenido deste desejo, apressou-se a satisfazê-lo com o pensamento de que Deus faria que fosse para sua maior glória a conferência que lhe pediam.

O convento dos Santos Anjos, havia muito tempo decaído do seu primitivo fervor, terminara por cair no mais deplorável relaxamento de costumes. As religiosas desejavam ver Inácio de Loiola, não para se edificarem, mas para satisfazerem uma curiosidade puramente humana. Tinham ouvido falar da sua nobre origem; dos seus brilhantes triunfos na corte e nas armas, dos sacrifícios de glória, de fortuna, de posição e de coração que ele tinha feito, na idade em que de ordinário o homem se entrega cegamente às esperanças ambiciosas do futuro, e queriam conhecer esta celebridade do momento.

O nosso Santo foi-lhes apresentado por um santo Padre, Martinho Puyalto, que o havia instruído das desordens daquele convento. Inácio logo na primeira visita se exprimiu enèrgicamente contra o escândalo dado por algumas religiosas; lembrou-lhes o espirito do seu instituto e instou com elas para que reformassem a sua vida, e chegou, depois de mais algumas conferências, a conseguir que fizessem os Exercícios Espirituais. O resultado foi maravilhoso. Foi restabelecida a mais perfeita regularidade, adoptou-se a clausura em todo o rigor e a mais completa reforma reparou os mais escandalosos relaxamentos.

Alguns homens mundanos, aqueles que mais ativamente haviam contribuído para afastar as religiosas do espirito da sua vocação, irritaram-se contra o reformador e juraram vingar-se.

Voltando um dia Inácio de Loiola e o Padre Martinho Puyalto ao convento dos Santos Anjos, foram atacados, perto da porta S. Daniel, por dois escravos negros, que os feriram violentamente com um pau; o Padre Martinho morreu; Inácio caiu sem sentidos, e, julgando-o morto, os assassinos abandonaram-no e fugiram. Inácio não lhes tinha oposto nenhuma resistência; longe disso, tinha agradecido a Deus por assim ser tratado por sua glória e implorara a sua misericórdia em favor dos culpados até ao momento em que perdeu os sentidos. Voltava a si quando um moleiro, vendo-o estendido por terra, se aproxima, o interroga, coloca-o sobre o cavalo e o conduz a casa de D. Inês Pascoal: estava moribundo. Poucos dias depois tinham perdido as esperanças de o salvar, e as pessoas mais consideráveis da cidade enchiam-lhe a casa para o ver e admirar. D. Estefânia de Requesens vertia, junto dele, abundantes lágrimas:

- Por que chora, senhora? - lhe disse o nosso herói não deve lamentar-se, mas antes regozijar-se comigo.

D. Diogo de Alcântara, seu confessor, ordenou-lhe que tirasse o cilício que trazia; João Pascoal apoderou-se dele e não quis jamais entregar-lho: será esta, - dizia ele - a mais preciosa herança que deixarei aos meus filhos [29]. Enfim, depois de cinquenta e três dias de doença, Inácio voltou à sua. vida habitual. Uma das suas primeiras visitas foi ao convento dos Santos Anjos.

- Comete uma imprudência; - disse D. Inês - expõe-se a um novo ataque dos seus inimigos.

- A minha maior felicidade seria morrer por tão bela causa, - respondeu ele.

Mas o arrependimento havia entrado na alma do desgraçado que tinha mandado dois dos seus escravos executar as suas ordens. Um dia, um homem lançou-se de joelhos diante do santo apóstolo em plena rua:

Chamo-me Ribeira, - disse-lhe ele - e fui eu que mandei atacar o senhor pelos meus escravos; perdoe-me, por amor de Deus, esse crime! Eu queria a sua vida! Estava cego pelo ódio e furor, perdoe-me! A sua bondade, senhor, e a sua caridade abriram-me os olhos! O senhor podia ter-me perdido e não o fez !

Inácio consolou-o, assegurou-lhe que lhe tinha perdoado apenas recebeu os primeiros golpes e que desde esse momento não cessara de orar por ele. E fez de Ribeira um fervoroso cristão, que lhe foi sempre dedicado.

Outro dia, voltando do convento dos Santos Anjos, ouviu gritos de desespero no interior duma casa da rua Belloco. Entra, informa-se da causa e respondem-lhe:

" - O jovem Lizano, que andava em processo com seu irmão, como o perdesse, enforcou-se numa trave da casa".

Inácio, movido de compaixão por esta alma, mandou cortar a corda que suspendia o cadáver. Empregaram inútil todos os meios para chamar à vida o jovem e verifica-se que está morto. Inácio põe-se de joelhos, implora em voz alta a misericórdia infinita e pede que aquela alma readquira assaz vida para ter tempo de se confessar e de receber a absolvição dos seus pecados. No mesmo instante, o jovem Lizano abre os olhos e pede um Padre; confessa-se, recebe a absolvição e morre !

Havia dois anos que o nosso Santo estudava em Barcelona. O seu professor, julgando-o bastante adiantado para começar a filosofia, convidou-o a dirigir-se à Universidade de Alcalá. Tendo-se Inácio feito examinar por um doutor, que foi da mesma opinião, preparou-se para a partida. D. João Pascoal lançou-se-lhe aos pés.

- Permita-me, - lhe disse - que o acompanhe; segui-lo-ei por toda a parte e quero ser seu discípulo.

- Não, meu caro João, - lhe respondeu o nosso Santo. Deus não quer que o senhor me siga; Ele quere-o no mundo. O João esposará uma senhora de eminente virtude, e terá alguns filhos, que lhe causarão grandes desgostos, cruciantes dores, até que um dia ficará reduzido a grande miséria!... Mas tenha coragem, porque todas essas tribulações serão para maior glória de Deus e santificação da sua alma.

E, tirando o pequeno crucifixo que trazia ao peito, deu-lho, acrescentando:

- O senhor encheu-me de testemunhos de afeto, assim como D. Inês; não o esquecerei nunca! Nada possuo, e desejo contudo deixar-lhe uma lembrança do meu reconhecimento; aceite este pequeno crucifixo, que me tem acompanhado em todas as minhas peregrinações, consolado em todas as minhas aflições, sustentado em todas as minhas provações.

João beijou o crucifixo, pô-lo sobre o coração -e não se separou dele até à morte. Veremos mais tarde se a predição que o nosso Santo lhe fez se realizou.

Um jovem catalão de Girona, Miguel Rodez, pediu-lhe igualmente para o seguir e tornar-se seu discípulo:

- Não, meu bom Miguel, - lhe respondeu - não é essa a sua vocação; o senhor deve ficar no mundo, fazer parte da magistratura, onde obterá belos triunfos [30].

Alguns outros jovens propuseram-se também acompanhar Inácio, mas ele aceitou apenas três: Calisto, Artiaga e Cazeros.

No dia da sua partida toda a cidade Barcelona estava em lágrimas.