VOLTA ÀS ÍNDIAS ILHA DE SANCIÃO

Novembro 1551 - Dezembro 1552


I. VIAGEM TORMENTOSA - DE NOVO EM MALACA - VIAGEM DA CHINA

Cinco dias haviam decorrido sem o brilho do sol no firmamento; cinco noites em que nem uma só estrela cintilara no céu; a chuva não cessara de cair em torrentes; as nuvens, ora chumbadas, ora acumuladas pareciam tomar um aspecto mais sombrio ainda; um vento violento, impetuoso, elevava as vagas ameaçadoras a uma altura prodigiosa; a tempestade aumentava visivelmente ...

...De súbito, muitas vozes a um tempo lançam rio espaço um grito dilaceraste... e depois... nada!... silêncio de morte! Só se ouve o medonho rugir das vagas!

- Meu Deus! meu Deus! eles foram devorados pelas vagas! a embarcação submergiu-se! Depressa! em seu socorro virai de bordo!...

- Mas, capitão, vós nos fareis submergir também.

- Virai de bordo! eu quero salvá-los!...

- Perder-nos-eis sem os salvar! O menor movimento nos fará sossobrar!...

Não obstante estas judiciosas advertências, do imediato e do piloto, o capitão ordena a perigosa manobra. Porém logo no começo da execução, uma medonha montanha de água avança e volta a embarcação que não pode levantar-se mais.

Passageiros, soldados e marinheiros, precipitam-se em desespero sobre a ponte; ali se reúnem em grande confusão agarram-se às cordas, evitam os movimentos, tornam a manobra impossível, e soltam gritos lancinantes.

Assim reunidos no interior, são um obstáculo a toda a tentativa de salvação.

A morte é infalível... a submersão é inevitável!... Uma nova vaga mais horrorosa ainda, vem despenhar-se sobre aqueles desgraçados... O que será feito do navio, da sua equipagem,, das suas riquezas!... Tudo se vai perder!.. . tudo vai submergir-se!...

Depois de seis dias da mais feliz navegação, variara o tempo subitamente, e o São Miguel fora impelido pela violência da tempestade, para um mar desconhecido dos portugueses. Decorreram cinco dias desde que se viam batidos por aquela horrível tormenta; o céu, carregado de nuvens, não permitia que se tomasse a altura e a tempestade em sucessivo aumento! O capitão mandara arrasar o castelo da proa e ordenara em seguida que se amarrasse solidamente a chalupa; mas sobrevindo a noite durante aquele trabalho, não permitia receber a bordo Afonso Calvo, sobrinho do capitão, quatro outros portugueses e dez índios escravos e marinheiros, que para ali haviam descido. Algumas horas depois, o furor das vagas quebra as amarras que retinham a chalupa, e os homens, que nela se achavam soltavam gritos de agonia que levavam o desespero ao coração de D. Eduardo da Gama e o arrastaram à imprudente manobra cujo resultado devia ser tão deplorável.

Mas a Providência velava pelo navio que levava o seu escolhido. Deus queria manifestar duma maneira maravilhosa a sua predileção pelo ilustre apóstolo do Oriente, e operar um daqueles prodígios cuja memória se eternizasse.

Francisco Xavier acabava de subir para o convés, e no momento em que a medonha vaga submergia o navio, ouviu-se a seguinte exclamarão

"Jesus! Salvador dos homens! amor da minha alma, socorrei-nos! eu vo-lo rogo pelas venerandas chagas que vos fizeram na cruz por nossa causa!"

No mesmo instante, o São Miguel já submergido, volta à flor da água, ninguém morrera! A tempestade diminui, o céu aclara-se e pode-se já orientar e vai-se seguir o rumo da viagem...

- Procuremos a chalupa! diz o capitão.

Os marinheiros sobem pelas enxárcias; olham em todas as direções... Nada! o mar... e só o mar! Não é possível duvidar-se, a embarcação fora a pique

Prossegue-se tristemente na viagem, deplorando-se a desgraça da morte de quinze homens; cada qual, sob a impressão do perigo de que acabava de escapai por milagre, partilha mais sensivelmente da dor do capitão que chora seu sobrinho, e a dos portugueses e dos índios que choram seus amigos ou seus parentes.

Francisco Xavier vertia lágrimas também, porque a chalupa que desaparecera levara dois muçulmanos cuja conversão não pudera conseguir, e atribuindo a obstinação que mostraram tão somente à sua indignidade pessoal, pedia a Deus, com todas as forças da sua alma, o salvamento daqueles infelizes por um milagre, para se não perderem para a eternidade duas almas que ele tanto desejava arrancar ao inferno. E em seguida, aproximando-se do capitão, disse-lhe:

- Meu caro Eduardo, consolai-vos; a chalupa voltará; a filha virá juntar-se a sua mãe.

Oh! acabou-se, meu Padre! Eu não posso esperar isso a não ser por um milagre... respondeu-lhe D. Eduardo.

Contudo, Xavier havia-lhe dito: "Ela voltará". Aquela palavra era para ele a esperança. Fez ainda subir um marinheiro... Nada! nem um ponto se via no mar! O santo Padre retirara-se dali; depois de duas horas de oração voltou à ponte e perguntou:

- Então! capitão, vê-se a chalupa?

- Não, meu Padre!

- Fazei subir para o cesto da gávea, caro senhor, a embarcação voltará.

- Sim, diz impacientemente Pedro Velho, uma chalupa virá talvez algum dia, mas não será aquela que nós perdemos.

- Senhor Pedro, replicou o nosso Santo, vós duvidais da bondade e do poder de Deus? Isso é não ter fé. Nada lhe é difícil, nada lhe é impossível. Eu pus a chalupa sob a proteção da Santíssima Virgem, fiz voto de celebrar três missas a Nossa Senhora do Monte se ela nos for restituída com os quinze homens, e tenho tanta confiança na misericórdia infinita de Deus que espero vê-los voltar sãos e salvos.

Vejamos, capitão, acrescentou ele dirigindo-se a D. Eduardo, rogo-vos que façais subir um dos vossos para o cesto da gávea!

D. Eduardo, por deferência para com o santo Padre subiu ele próprio com um marinheiro, esteve em observação durante meia hora, e desceu completamente desenganado: o mar não oferecia à vista o menor ponto negro em toda a sua extensão!

Naquele momento, foi acometido o nosso Santo de uma espécie de vertigem que o fez vacilar, e teria caído se Francisco Mendes Pinto o não tivesse imediatamente amparado em seus braços.

- Meu Padre, lhe disse ele, há já três dias que sofreis os enjôo do mar e não tendes repousado nem um só momento; assim adoecereis por certo! Rogo-vos pois, como um favor, que descanseis por algum tempo na minha câmara!

Em todas as viagens do mar, Xavier, por amor à sua santa pobreza, não aceitava a câmara em nenhum navio. Quando ele quisesse isolar-se ia para a do capitão ou dum dos seus amigos, e para dormir estendia-se sobre a coberta, com a cabeça apoiada às cordas. Cedeu, porém, às instâncias de Mendes Pinto e rogou-lhe que fizesse guardar o seu escravo chinês para que ninguém o fosse estorvar.

Mas longe de se entregar ao repouso de que tanto carecia, o santo Padre esteve em oração até ao fim do dia e voltou à ponte no momento em que o sol desaparecera no horizonte.

- Vê-se a chalupa? perguntou ele ao piloto.

- Oh! é preciso esquecermos a chalupa, meu Padre. Como quereis vás que ela tenha resistido a uma tão horrorosa tempestade? E quando mesmo um milagre a tivesse salvo, não a poderíamos ver porque estaria a cinquenta léguas daqui, pelo menos.

- Vós raciocinais muito bem, tudo isso é muito justo, replicou Xavier, mas Deus não faz as coisas a meio: se ele salvou a chalupa por um milagre, pode também por um milagre fazê-la avançar. Antes que a noite venha, fazei subir alguém ao cesto da gávea, e me fareis com isso um grande favor.

- Nada há que eu não faça para vos obsequiar, meu Padre, vou eu mesmo subir até lá.

Mas dali a pouco desce o piloto sem ter descoberto coisa alguma.

- D. Eduardo, disse Xavier ao capitão, a chalupa vem, estou bem seguro disso! Suplico-vos, pois, que ponhais o navio à capa para lhe dar tempo de se reunir a nós!

A ordem foi dada e logo executada, suspendendo-se por muito tempo o seguimento do navio; mas os passageiros, que sofriam assim fortes balanços e não podiam crer na volta duma embarcação submergida, perdem a paciência e gritam com toda a força.

- "À vela! à vela, capitão, à vela! à vela!"

O Padre Xavier lança-se sobre a antena, apoia ali a cabeça r rompe em soluços

- Um pouco de paciência, eu vos suplico! diz ele aos passageiros; a chalupa vem; - e levantando para o céu os Olhos cheios de lágrimas, exclama: - "Jesus! meu Senhor e meu Deus! eu vos imploro, pelos sofrimentos da vossa santa Paixão, que tenhais piedade daquela pobre gente que vem para nós através de tantos perigos"!

Depois, baixou as pálpebras e conservou a cabeça apoiada sobre a antena, sem fazer um movimento, sem pronunciar uma palavra; julgavam-no adormecido.

- "A chalupa! Milagre! Milagre! Ei-la"! grita um jovem colocado junto do mastro grande.

Tudo corre, tudo grita, apertam-se, empurram uns aos outros, todos querem vê-la... A chalupa estava ali; os seus tripulantes estavam todos; era uma alegria, uma felicidade, lágrimas, ações de graças a Deus e ao santo apóstolo a quem u devia um tal prodígio; era um verdadeiro delírio!

A embarcação detém-se por si só junto do navio, e conquanto o mar estivesse muito agitado, a chalupa conservava-se imóvel enquanto os seus quinze homens subiam para bordo do São Miguel; ela não vinha avariada, e parecia nada ter sofrido.

Depois das primeiras impressões de alegria, todos se empenham em dirigir perguntas aos que com tanta felicidade haviam recuperado.

- Que um fale por todos, disse o capitão.

- Sim, é melhor! é melhor! dizem todos; que D. Afonso Calvo conte o que lhe aconteceu!

- Muito bem! mas saibam que não nos aconteceu absolutamente nada, disse Afonso.

- Como?! Nada?!

- Não, com toda a verdade. Eu nunca vi um piloto como o Padre Francisco! Ele guiou-nos por entre escolhos e furores do mar, com mais perícia do que o teria feito o melhor e mais prático de todos os marinheiros; nós não experimentámos um só momento de temor, não obstante a violência da tempestade.

Todos se mostraram surpreendidos de pasmo.

O capitão, penetrado da dolorosa idéia de que seu sobrinho enlouquecera em resultado do perigo, lança um triste olhar em torno de si; nota igual impressão em todos os semblantes e recolhe-se a um silêncio cheio de dor; ninguém tem a coragem de lhe dirigir mais perguntas, é um sofrida mento geral.

D. Afonso descobre a impressão causada pelas suas palavras, mas nada compreende

- Que achais, pois, vós todos de tão extraordinário e admirável no que acabo de dizer-vos? perguntou ele.

- O Padre Francisco não estava convosco, meu amigo, disse tristemente o capitão.

- Sim, meu tio, sim capitão, ele estava conosco, responderam ao mesmo tempo quinze homens salvos milagrosamente. Ele pode dizer-vos isso melhor do que nós. Onde está ele?

Procura-se o Padre Francisco; tinha-se retirado; estava em ação de graças.

- Por que, pois, dizeis vós, instou Afonso, que isto não é verdade, quando o vistes chegar conosco e ser o primeiro a subir a bordo do navios'

- Porque ele nos não deixou nem um só momento, respondeu D. Eduardo; além disso, assegurou-me por tal modo que vós viríeis, mostrava nisso tal certeza, que, não obstante todas as aparências, eu esperei e me decidi a demorar o navio, persuadido de que ele não insistiria assim se Deus não lhe tivesse feito conhecer a vossa volta.

- A nós, replicou D. Afonso, dizia-nos ele: "Coragem! meus filhos; eu vejo o São Miguel, seguimos o seu rumo, e nos reuniremos a ele bem depressa! Tende confiança em Deus!"

Os companheiros de D. Afonso Calvo apoiavam com o seu testemunho tudo quanto ele acabava de dizer, quando os dois muçulmanos, que tinham estado a conversar em voz baixa, uniram a sua afirmativa à dos portugueses e dos índios católicos, acrescentando, com uma viva animação, que nem um nem outro tinham visto subir o Padre Xavier para o navio; que eles tinham os olhos sobre ele no momento da abordagem, e que deixaram de o ver de repente, enquanto D. Afonso subia, mas que ao mesmo tempo o viram sobre a ponte do navio.

- Para nós, disse um deles, o facto é suficiente; a maneira como ele nos trouxe é um grande milagre; a sua presença sobre a chalupa, quando está provado que ele não deixou o navio, é um milagre maior ainda; a religião do profeta nunca fez tais prodígios, e, nós o dizemos abertamente, vamos pedir o batismo ao Padre Francisco! Se Jesus Cristo não fosse Deus, o santo Padre, como vós o chamais, não faria tão grandes milagres em seu nome.

Tudo estava explicado. D. Afonso não estava louco; os seus catorze companheiros não o estavam também. Deus operara uma sucessão de prodígios a rogos do grande Xavier: salvara o São Miguel; salvara a chalupa; conduzira esta ao navio; acalmara a violência da tempestade; tornara sensível a presença do seu santo apóstolo em dois lugares ao mesmo tempo, e tudo isto durante vinte e quatro horas.

Todos tinham pressa de tornar a ver o nosso Santo; desejavam agradecer-lhe, ouvir a sua meiga voz, prostrarem-se a seus pés. Achavam a sua oração muito longa!

Se pudessem interrompê-la! mas isso não era possível: era necessário esperar com paciência, e resignavam-se com pesar quando finalmente ele tornou a aparecer com grande alegria de todos.

Os quinze homens que ele tão milagrosamente salvara, prostraram-se a seus pés agradecendo-lhe coxas lágrimas e pedindo-lhe a sua bênção:

- Meu Padre! fostes vós que nos salvastes! diziam eles, éreis vós que dirigíeis o leme!...

- Não, meus amigos, era a mão de Deus que o dirigia! é a ele que deveis agradecer, a ele somente! responde-lhes o santo Padre, fazendo-se vermelho.

Depois, dirigindo-se ao capitão, disse-lhe

- Agora, à vela! meu caro Eduardo; Deus vai dar-nos a mais feliz viagem.

Treze dias depois, chegavam à ilha de Sancião [76].

Quando deixou o navio de D. Eduardo da Gama, Xavier disse ao piloto Francisco de Aguiar:

- "Vós não morrereis no mar, por mais violentas que sejam as tempestades que afrontardes, e por mais frágil que seja o navio em que embarcardes".

Francisco de Aguiar tinha visto o bastante para crer cegamente nas palavras proféticas do grande apóstolo. A partir daquele momento, nunca mais se importou nem do vento, nem da estação, nem do barco em que embarcava; cantava durante as tempestades.

Surpreendido uma vez por uma borrasca aterradora, em viagem de Tenasserim para o reino de Pegu, num ruim barco em que havia recebido alguns passageiros maometanos, conservava a sua alegria de espirito e não se mostrava pesaroso senão por ter de ver um navio quebrar-se contra um rochedo.

- Como podeis vós cantar, disse-lhe um dos passageiros quando vedes a morte a ameaçar-vos assim?

- O Padre Francisco, nosso santo Padre, predisse-me que eu não morreria no mar! Quando as vagas fossem dez vezes mais elevadas eu não as temeria e navegaria, através de semelhante tempestade, em um barco de vidro! Mas vós não podeis compreender isto, vós que não sois da nossa religião! O vosso profeta não faz milagres como o nosso santo Padre!

- Se não ficarmos submergidos, será seguramente por um milagre, disse um dos muçulmanos, porque nunca vi tormenta mais furiosa e o vosso barco não pode lutar senão por um prodígio impossível de explicar.

- Prometeis converter-vos, se chegarmos a salvamento?

Sim! sim! exclamaram os infiéis; como não podemos escapar à morte sem milagre, pediremos o batismo em Tavar.

Chegados a Tavar, descobrem sobre a praia muitos barcos quebrados; conhecem que a tempestade causara a perda de muitas vidas e bens e fazem-se cristãos mesmo em Tavar.

O navio Santa Cruz, pertencente ao capitão Diogo Pereira, achava-se no ancoradouro de Sancião, prestes a fazer-se à vela para Malaca, assim como um outro navio português. Xavier, intimamente relacionado coxas o capitão do Santa Cruz, embarcou a bordo; o vento variou repentinamente e tornando-se favorável para aquela direção, levantaram ferro a 3 z de Dezembro de 1551.

- Por um mar tão calmo, disse o capitão, quando se viram ao largo, podemos conversar sossegadamente. Falai-nos do Japão, meu Padre; estais satisfeito? -

- Deus abençoou os nossos trabalhos, respondeu o santo apóstolo; o Evangelho fez magníficos progressos nos reinos de Saxuma, Firando, Amanguchi e Bungo; sente-se somente a falta de obreiros em um solo tão fértil, e eu espero poder enviá-los em breve. Mas é necessário empreender-se também a conversão da China e tratar de aí penetrar logo que eu tenha regulado os negócios e os interesses da Companhia nas Índias para onde neste momento sou chamado.Tenho já um catecismo traduzido em chinês..

- Mas, meu Padre, disse-lhe João Lopes, um dos passageiros, como conseguireis isso? A China, não somente não admite os nossos navios nos seus portos, mas ainda proíbe, sob pena de morte, ou de cativeiro perpétuo, que qualquer estrangeiro entre no seu império. Alguns mercadores nossos tentaram-no;sabe-seque uns foram mortos e outros acorrentados como malfeitores. Creio, contudo, que só tendes um meio de aí chegar, meu Padre: é com uma solene embaixada em nome do rei de Portugal.

- Esse seria um meio excelente! disseram todos os portugueses; João tem razão, mas a despesa seria enorme.

São necessários, acrescentou Lopes, ricos presentes para o imperador e para os ministros, sem falar das despesas de armamento e outras... O vice-rei não poderá, por certo, sobrecarregar-se delas, hoje que a guerra exige sacrifícios tão consideráveis.

- Compreendo todas essas dificuldades, disse Xavier, mas confio e espero na Providência...

- Meu caro Padre, exclamou o capitão imediatamente, o meu navio e a minha fortuna estão ao serviço de Deus e ao vosso! Eu vo-lo ofereço de todo o coração para a conversão da China l

Xavier apertou ao seu coração o amigo tão digno dele, e abraçou-o com lágrimas de reconhecimento, dizendo-lhe:

- Aceito! meu excelente amigo, aceito com alegria! Deus vos pagará o que lhe ofereceis tão generosamente. Eu me encarrego de obter do vice-rei a embaixada necessária para a minha entrada.

- Eu só temo uma coisa, meu Padre, acrescentou o capitão, é que se retenha o meu navio em Malaca para o serviço do rei; porque está sendo ali horrível a guerra.

- Sim! respondeu-lhe Xavier. Ela foi bem mortífera! mas Deus, cuja misericórdia é infinita, compadeceu-se. No momento em que a fortaleza, não podendo resistir por mais tempo, ia render-se, os infiéis, dominados por um terror pânico, tomaram a fuga e a cidade está livre.

Francisco Xavier acabava de revelar o que Deus lhe fizera conhecer, com tanta sinceridade e dignidade, que ninguém se atreveu a dizer sequer uma palavra Depois de alguns momentos de silêncio o capitão replicou:

- Meu caro Padre, vós tendes pressa de chegar a Goa, eu sou obrigado a ir a Sunda, e a estação vai já bastante adiantada para se poder esperar que encontreis, à vossa chegada. a Malaca, um navio pronto a sair para as Índias.

- Antônio Pereira aí está com o seu navio no ancoradouro; ele dispõe-se a fazer-se à vela, para Cochim, nós o encontraremos prestes a partir, e aproveitarei essa oportunidade, respondeu Xavier.

Naquele momento, um pé de vento súbito levanta uma violenta tempestade; era o tufão, perigoso nos mares da China, que se desencadeava com furor.

A tripulação e os passageiros surpreendidos e aterrados suplicam ao santo Padre que os salve, que ore e rogue para obter a bonança.

Xavier não responde; retira-se por alguns instantes para u câmara do capitão, e torna a aparecer sobre a ponte com os olhos elevados para o céu, o semblante animado, ar inspirado... Abençoa o navio em voz alta, e depois acrescenta:

"O navio Santa Cruz não se perderá no mar! O lugar que o viu construir o verá destruir-se por si mesmo. Prouvera u Deus que aquele que partiu conosco seja tão feliz: mas não saberemos senão muito tarde qual foi a sua triste sorte!"

O Santo acabava apenas de pronunciar aquelas palavras guando o furacão cessou, o mar tornou-se tão sossegado como na partida. Em seguida descobriram-se dois marinheiros boiando sobre uma prancha e fazendo penosos esforços para atingirem o Santa Cruz; presta-se-lhes imediato socorro e são recebidos com o maior interesse...

Aqueles marinheiros pertenciam à equipagem do navio que seguira o de Diogo Pereira, e que levado pelo tufão se quebrara contra um rochedo; tudo se perdera, vidas e fortunas. Os dois náufragos que se acabavam de salvar eram os únicos a quem a Providência poupara a vida.

O capitão Diogo Pereira deteve-se em Singapura; uma fragata ia fazer-se à vela daquele porto para Malaca.

Francisco Xavier, de todo confiado na inspiração que recebera relativamente à presença do capitão Antônio Pereira no ancoradouro de Malaca, escreveu-lhe pedindo que retardasse por três dias a sua partida para Cochim. Escreveu também ao Padre Peres dando-lhe ordens para preparar tudo de modo que ele pudesse embarcar sem demora.

A nova da chegada tão próxima do santo Padre espalhou-se em poucas horas por toda a cidade de Malaca.

"Ah! se ele aqui estivesse, nós não teríamos sofrido tanto nesta horrível guerra! Ele nos teria prestado maiores socorros que o mais numeroso e zoais valente exército"!

Ao desembarque, encontrou o santo Padre a população reunida no porto e empenhada em comunicar-lhe todas as desgraças com que haviam sido oprimidos na sua ausência

- Vede, santo Padre, todo este belo bairro destruído pelos javaneses!... E este, vede, meu Padre, olhai! não reconhecereis por certo esta rua!

- Meus queridos filhos, respondeu o Santo, vós recaístes em tão grandes pecados! tendes ofendido tanto a Deus e admirais-vos que Ele vos haja punido? Fazei penitência! Atraístes sobre vós a cólera de Deus; trabalhai agora por atrair a sua misericórdia; ela é infinita, não esqueçais isto!

Aquele que era acolhido com tanto amor e entusiasmo fazia a sua entrada solene numa cidade, onde era olhado como um soberano, vestido de uma pobre batina, cujos farrapos mal remendados, ameaçavam escapar-se do grosso fio que os retinha. Dois dias depois, o humilde apóstolo ceava em casa do seu amigo D. Francisco de Paiva com alguns outros portugueses.

- Meu Padre, disse-lhe D. Francisco, vós pareceis-me mais formoso, mais belo, esta noite; foi para nos honrar que vestistes essa bela batina?

O Padre Xavier olha-se, examina-se... e diz com surpresa

- Mas é verdade, é uma batina nova!... Como foi que isto aconteceu? Não me reconheço a mim próprio!... Estava convencido que vestira esta manhã a batina que ontem trazia.

A sua admiração divertia tanto os seus amigos, que ele compreendeu a decifração do enigma.

- Esta bela batina enganou-se, agora vejo eu, lhes disse ele; ela buscava o seu dono nas trevas e tomou-me por ele.

Tinha-se com efeito trocado a sua pobre batina por uma nova enquanto ele dormia; ele vestira-a sem dar por isso, passara todo o dia sem pressentir a mudança., e foi necessário que D. Francisco de Paiva lhe dirigisse um gracejo sobre o seu asseio e garbo para que conhecesse a pequena burla dos seus amigos.

D. Pedro da Silva não era já governador de Malaca; estava substituído por seu irmão D. Álvaro de Ataíde da Gama. O Padre Xavier foi visitar um e outro; comunicou-lhes o seu projecto de embaixada para a China, que aprovaram, no interesse da coroa de Portugal, assim como no da religião, e recebeu com alegria a promessa do seu apoio:

- Eu vos seria muito mais útil na execução deste plano, disse-lhe o governador, se acumulassem em mim a intendência da marinha, mas não sou o intendente e ignoro mesmo a quem este cargo, vago desde há pouco, será dado. A minha autoridade limita-se à cidade; contudo, prometo-vos, meu Padre, empenhar todos os meios a meu alcance. Demais, vós ides ter com o vice-rei, estais na sua graça, podeis fazer uma coisa: pedir-lhe que me nomeie intendente, conquanto seja já governador da cidade; a vossa empresa caminhará às mil maravilhas. Ser-me-á livre equipar um navio da armada real para essa embaixada, e procurarei fazer as coisas de modo que ela se realize!

- Senhor governador, respondeu Xavier, eu apresentarei com a melhor vontade o vosso pedido...

- Não, não, meu Padre! É necessário pedir como um simples desejo da vossa parte. Eu não devo entrar nisso de modo algum!

- Assim o farei, senhor.

E o nosso Santo, a quem Deus não quis esclarecer naquele momento sobre as intenções de D. Alvaro, deixou-o cheio de -esperança e encantado do seu acolhimento.

Diogo Pereira, fiel à sua promessa, deu-lhe trinta mil escudos de oiro para as primeiras despesas, e o grande Xavier, tendo terminado os seus arranjos, embarcou no navio de Antônio Pereira, que só esperava por ele; os três japoneses também o acompanhavam, e fazendo-se à vela para Cochim, aí chegaram a 24 de janeiro de 1552.