|
Francisco encetou o curso de filosofia com desejos e propósito firme
de se distinguir entre todos os seus condiscípulos e assim o
conseguiu, porque a sua inteligência não admitia dificuldades, e
trabalhava com ardor insano. Dele se dizia, que "nunca estudante
algum conseguira, em Paris, tanto com tanta facilidade".
De entre todos os alunos da sua classe, Francisco extremou Pedro
Fabro, um dos mais notáveis pela sua assiduidade ao estudo, mais
atraente e simpático pelas qualidades da sua alma e do seu coração.
Xavier, encantado da sua modéstia, da sua afabilidade e da
tranquilidade do seu espírito, desejou aproximar-se dele, e Pedro,
que pelo seu lado admirava a vasta e robusta inteligência do jovem
Navarrês, assim como apreciava o seu nobre caráter e o encanto que
derramava em torno de si, julgou-se muito feliz por se ver por ele
estimado. Bem depressa os dois amigos não tiveram mais que um só
quarto e partilhavam os seus entretenimentos e trabalhos, os seus
prazeres e desgostos; tudo, finalmente, se tornou comum entre eles,
e os progressos de cada um faziam a alegria de ambos.
Deus preparava assim a execução de seus altos desígnios num e
noutro, porque uma tal intimidade estava em oposição com as idéias
da época.
Pedro Fabro, filho dum agricultor de Villaret, próximo de
Gênova, tinha sido guardador de gado na sua infância. A sua terna
piedade, o desenvolvimento extraordinário da sua inteligência e o
desejo que tinha de estudar o latim, resolveram seu pai a confiá-lo a
um professor da vizinhança, cujo mérito conhecia.
Pedro estudou ali com tal aproveitamento, que D. Jorge Fabro, seu
tio, prior dum mosteiro em Chartreuse, reconhecendo aquelas
disposições julgou conveniente adiantá-lo nos estudos, quanto
possível fosse, e obteve de seu irmão que se fizessem os arranjos
precisos para o mandar para a Universidade de Paris a fim de ali
seguir um curso de filosofia.
Era um sacrifício para a mediocridade da sua fortuna, porém o pai de
Fabro, verdadeiro cristão, para não resistir à vontade de Deus
para com seu filho, resignou-se a sofrer faltas pecuniárias, e as
saudades que esta separação e longa ausência lhe deixavam, e enviou
Pedro para o colégio de Santa Bárbara.
Xavier, ligando-se a este jovem estudante, reconhecera nele uma
modéstia original e uma simplicidade rústica provenientes, sem
dúvida, do seu nascimento e das suas ocupações anteriores; mas,
coisa admirável no século XVI, o soberbo espanhol, o descendente
dos reis de Navarra, aquele cujos irmãos eram admitidos com
distinção na corte de Aragão e de Castela, sendo ele também, com
a maior honra, recebido na de Francisco I [11], escolheu para o
seu íntimo amigo o filho dum pobre agricultor, dum aldeão da
Sabóia, com quem vivia em fraternal intimidade!
Que diferença, pois, nos seus caracteres, nos seus hábitos, na
educação, nos gostos e nas idéias! Pedro era duma piedade de
anjo. Francisco, educado sob princípios religiosos, conservava e
acatava os seus deveres e preceitos essenciais, mas não passava
disso. Era orgulhoso e altivo, delicado em pontos de honra, algum
tanto vaidoso da sua pessoa e da superioridade das suas brilhantes
faculdades. Pedro era humilde, ingênuo, modesto, chegando a ser
algum tanto tímido e não se orgulhando dos seus progressos e dos
louvores que recebia dos professores pelo seu grande mérito.
Os dois amigos trabalhavam com igual ardor nesta aprazível
intimidade, que nem por um momento fora interrompida, e calculavam,
com alegria, que, continuando a seguir por aquele modo os seus
estudos, e com tão igual resultado, receberiam os graus no mesmo dia
e partilhariam, ainda juntos, deste último aplauso e triunfo. Não
tinham, pois, tempo a perder; este pensamento animava-os,
incitava-os, e eles trabalhavam com mais ardor cada dia, e com tal
assiduidade que nada os distraía.
Porém a presença de Francisco fazia cada vez maior falta no solar de
Xavier. Os dias pareciam ali mais longos, os serões não tinham
encantos desde o dia em que o espírito alegre, a animação e o
caráter amável do jovem estudante deixara de dar vida àquela
solidão. Decorrera dois anos depois da sua partida, e dois anos de
separação do filho, era já longo tempo para os corações daqueles
pais!
D. Maria esforçava-se por dissimular a sua tristeza, porém D.
João era mais franco, por isso falava muitas vezes em chamar para
junto de si o seu filho mais novo; e D. Maria conseguia sempre
dissuadi-lo desta idéia, a bem dos interesses do seu muito querido
Francisco, continuando ambos a sofrer a ausência e o isolamento,
cheios da maior abnegação e paciência.
D. Madalena, sua filha, então abadessa do mosteiro de Santa
Clara, gozava de tão grande fama de santidade, que de muito longe a
vinham consultar, e provado estava que ela recebia luzes proféticas,
porque os factos o justificavam.
D. João escreveu-lhe consultando-a se devia ou não determinar o
regresso de Francisco [12]. A santa abadessa, inspirada por
Deus, respondeu a seu Pai: -"Se a glória de Deus vos é cara,
deixai meu irmão em Paris, a fim de que depois da filosofia ele
estude a teologia, porque Deus me revelou que Francisco era o vaso de
eleição destinado a levar para as Índias o facho da Fé".
Esta magnífica e inesperada nova produziu uma inexprimível mistura de
impressões no nobre solar!... Que esperanças lhes restavam agora
de tornar a ver aquele que espalhava ali tanta alegria e tanto
encanto!... Qual seria o destino que a Providência tinha em vista
dar-lhe?...
Que direção tomaria ele para ir... para as Índias? pelo meio de
povos infiéis cuja selvageria e natural crueldade inspiravam
terror?!... E ao mesmo tempo, que felicidade, que glória para
aquele pai e aquela mãe, aos quais Deus se dignava fazer anunciar,
por um de seus filhos, cuia santidade era conhecida em todo o reino de
Valentia, que o seu Francisco tão querido era o "vaso de
eleição" destinado a levar o Evangelho aos vastos países de
além-mar, de pouco conquistados pelas armas européias...
D. João e D. Maria souberam agradecer a Deus esta grada,
oferecendo-lhe o doloroso sacrifício cujo preço era aquele Xavier
conservou-se, pois, em Paris; ali continuou o seu curso de
filosofia e terminou-o duma maneira tão distinta, que se lhe ofereceu
imediatamente uma cadeira daquela faculdade no colégio de Beauvais;
porque então ninguém podia ser agregado à Universidade, e obter o
grau de doutor em teologia se não tivesse ensinado a filosofia por sete
anos consecutivos.
Assim como o haviam desejado os dois amigos, Pedro Fabro foi
recebido como professor em artes ao mesmo tempo que Xavier, e também
por distinção.
Ao receber a sua nomeação para a cadeira do colégio de Beauvais,
Francisco tomou a mão de seu amigo e disse-lhe com o sentimento de
franca cordialidade que fazia o encanto da sua vida de estudante
- Pedro, eu lecionarei no colégio de Beauvais, porém,
conservarei o meu quarto de estudante de Santa Bárbara é não nos
separaremos.
- Considerar-me-ei muito feliz, respondeu-lhe Pedro, porque
estou resolvido a seguir um segundo curso de filosofia, antes de
começar os estudos de teologia, assim gozarei muitos anos mais da
vossa companhia.
- Era isso o que eu desejava, replicou Xavier; vós podíeis mesmo
seguir o curso de teologia morando no colégio de Santa Bárbara, e
conquanto os nossos trabalhos sejam hoje diferentes, ser-nos-á mais
agradável a vida comum, porque trabalha-se mais e descansa-se
melhor, quando se está ligado como nós.
- Assim gozaremos, pois, esses tantos anos; mais tarde... o
futuro pertence a Deus!...
- Sim, não pensemos, por agora, na nossa separação; falaremos
nisso em 1534, e, por tanto, temos muito tempo.
|
|