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O santo fundador da Companhia de Jesus, - pode-se julgar
pelos fragmentos que ficam transcritos - vivia entre o céu e
a terra, e nunca estava longe de Deus pelo pensamento. Deve
surpreender que o inferno o perseguisse com o seu ódio e lhe
suscitasse tão frequentes perseguições? Deve surpreender que
o céu o cobrisse sempre com a sua proteção e o fizesse
triunfar tão gloriosamente dos seus inimigos?
Não havia ainda um ano que a Companhia fora erecta em Ordem
religiosa, que, devido à reputação de ciência e de virtude
dos seus membros, todos os Estados europeus pediam para
possuir alguns deles. Não podendo o rei de Portugal conseguir
a conservação em Lisboa dos dois santos apóstolos que lhe
tinham sido dados, enviou Francisco Xavier para as Índias,
segundo a decisão de Inácio, e conservou Simão Rodrigues, a
quem encarregou de fundar um colégio de apóstolos da sua
santa Companhia para as necessidades de Portugal e das suas
possessões nas Índias, e tomou a seu cargo todas as despesas
deste estabelecimento.
D. Pedro Ortiz, que tinha obtido do Papa o favor de levar
consigo Pedro Fabro para a dieta de Worms, aonde se dirigia
como embaixador de Carlos V, solicitou depois autorização
para o levar para a Espanha, onde esperava ver-lhe fazer
tanto bem como na Alemanha. Mas Pedro Fabro tinha operado
prodígios para a glória de Deus em Worms, em Viena e em
Ratisbona; estas duas últimas cidades não consentiram em
perdê-lo senão com a condição de que lhe dariam um outro
membro da Companhia para o substituir. O Papa concedeu dois à
Alemanha: Nicolau Bobadilha, que tirou da ilha de Ischia, e
Cláudio Lejay.
A Irlanda fez ver o perigo a que a apostasia de Henrique VIII
expunha a fé católica das suas populações, e o Soberano
Pontífice pediu ao nosso Santo dois dos seus apóstolos para
ali a manterem com o seu zelo e a santidade da sua vida;
Inácio designou os Padres Salmeron e Broet. Tinha escolhido a
princípio João Codure, mas tendo sido adiada a partida para a
Irlanda, o Padre Codure caiu doente e de modo que se receou
pela sua vida. A 29 de Agosto desse mesmo ano de 1541, Santo
Inácio, acompanhado do Padre Laynez, ia dizer missa pelo seu
querido doente, à igreja de S. Pedro in Montorio, quando,
passando pela ponte de Sixto, parou de repente e disse ao
Padre Laynez:
- Voltemos a casa, porque o nosso Codure está morto.
Tinha morrido com efeito, no momento em que o nosso Santo
teve a revelação. Notou-se que o Padre João Codure, nascido a
24 de junho, festa do nascimento do seu padroeiro, recebeu as
sagradas ordens a 24 de junho e faleceu no mesmo dia e na
mesma idade que o santo precursor.
Salmeron substituiu-o na missão da Irlanda. O Papa deu-lhe,
assim como ao Padre Broet, o título e os poderes de Núncio
apostólico, como tinha dado a Francisco Xavier ao partir para
o Oriente.
O santo fundador estava, pois, espoliado dos seus primeiros,
dos seis mais queridos discípulos; restava-lhe ainda o Padre
Laynez; a república de Veneza pediu-o com tanta instância,
que lhe foi concedido.
Ë verdade que o número dos noviços era já considerável. É
sabido que alguns esperavam apenas uma palavra do Santo para
virem submeter-se a tudo o que ele deles exigia. Recebeu-os
logo que a Companhia foi aprovada pelo Papa, e o noviciado
era tanto mais fácil ao seu fervor, que Santo Inácio os havia
preparado de há muito tempo. Encontramos ali o querido
sobrinho do Santo, Antônio de Araoz; Francisco Estrada, a
quem ele tinha impedido de ir alistar-se no exército de
Nápoles; Diogo de Eguia, o amigo que o ajudara nas boas obras
de Alcalá, e que encontrou em Veneza e Pedro Ribadeneira.
Todos lembravam a Inácio a virtude dos seus primeiros
discípulos, todos se amavam com incomparável caridade. A sua
vida angélica espalhava ao longe um perfume. que atraia as
almas e as fixava junto deles, ou as ligava a Deus para
sempre.
Um ardente luterano, que foi a Roma para fazer propaganda
herética, empregou meios tais de proselitismo que o
prenderam. Era muito jovem e tinha assaz talento para dar
esperança de voltar a abraçar a verdade; mas tudo o que se
fez para o esclarecer, só conseguiu irritá-lo. Tiveram então
a idéia de o meter na casa de Santo Inácio, e de se não
ocuparem dele na aparência; não acreditavam que ele
resistisse por muito tempo ao espetáculo que teria a todos os
instantes diante dos olhos. Inácio acolheu-o com a sua
benevolência e mansidão ordinárias, disse-lhe que seria
completamente livre no interior e que se lhe não pedia outra
coisa senão que evitasse o barulho, que perturbava o
recolhimento, e as conversas fora das horas dos recreios,
porque o silêncio era necessário naquela casa.
O jovem herege, satisfeito de respirar um ar tão puro, de
viver numa atmosfera tão tranqüila, tão doce, tão
embalsamada, acha-se vencido sem dar por isso. Procurou
conhecer a mudança da sua disposição e a sua consciência
respondeu-lhe que a tranquilidade de espírito, a paz da alma,
a alegria do coração não se encontravam senão na verdade. O
que ele via, o que admirava, era o Evangelho em ação; o que
sentia, o que saboreava com delícia, era o perfume
evangélico, era o espirito da verdadeira fé que se aproximava
dele pelo efeito das orações e dos méritos da Companhia de
Jesus.
Depois da sua conversão, um grande personagem perguntou-lhe
como pudera resistir tanto tempo às razões e às provas dos
mais sábios doutores
- Porque, - respondeu - a discussão é irritante, ao passo que
o exemplo é poderoso. Depois de ver todas as virtudes, toda a
santidade do Padre. Inácio e da sua Companhia, pareceu-me
impossível que a verdadeira fé se não achasse unida a essa
vida tão pura, tão doce, tão mortificada, tão angélica; foi
isto somente ó que me comoveu e esclareceu.
E ele tinha sido testemunha das provas a que a virtude dos
noviços era submetida. Santo Inácio não admitia senão Santos
na sua Companhia de heróis. Se as provas não fortificavam os
noviços de maneira a garantir verdadeiros Santos,. recusava
promovê-los à profissão...
- Se eu desejasse que a minha vida fosse prolongada, - dizia
ele-, seria para redobrar de vigilância na escolha dos nossos
súbditos.
Antônio de Araoz, seu sobrinho, entrara no noviciado vestido
com uma capa de veludo bordada a ouro, como todos os
fidalgos; Inácio quis que ele trouxesse aquele fato, durante
o seu noviciado, até cair a pedaços. Antônio, assim vestido,
ia pedir esmola nas ruas de Roma, servir os doentes nos
hospitais, lavar a louça na cozinha da casa,, fazer. os mais
rudes serviços, sempre metido na sua capa de veludo recamada
de bordados de ouro! Para o orgulho espanhol era uma rude
prova. Antônio sofreu-a heroicamente durante dois anos, prova
que se tornava de dia para dia mais meritória pela
deterioração da capa, que era um objecto ridículo.
O santo fundador fez também suportar igual humilhação a D.
João de Mendonça, governador do forte Santo Elmo,, em
Nápoles, a quem Deus tinha chamado à Companhia. Quanto mais
ilustre era, humanamente, o nascimento dos noviços,, tanto
mais o fundador queria destruir o orgulho até às mais
profundas raízes. Os noviços, realmente chamados, longe de se
queixarem destas provas humilhantes, apreciavam-lhe as
imensas vantagens e aceitavam-nas com avidez. Os homens mais
sábios, os Padres mais distintos pelo seu mérito e virtudes,
vinham colocar-se debaixo da bandeira do santo fundador e
submeter-se às mesmas provas, de que nenhum noviço era.
dispensado.
Inácio vigiava tudo e informava-se com exactidão dos
progressos de todos. Ia surpreendê-los algumas vezes nos
hospitais onde serviam os doentes, a fim de julgar por si
mesmo da maneira como cumpriam este dever. Não deixava nunca
impune a mais leve falta, nem conservava aqueles que eram
aferrados à própria opinião, se lhes não via uma vontade bem
determinada a desapegarem-se dela. Para os levar a este
desapego, ordenava-lhes coisas sem utilidade aparente, ou que
podiam parecer impossíveis; fazia-lhes abandonar uma ocupação
para os empregar noutra. O noviço devia chegar à mais
perfeita indiferença de vontade.
Assim, o santo fundador ordenava a um pregador que se
ocupasse dos negócios da casa, sem cessar as suas pregações;
queria que o professor de teologia ensinasse gramática;
enviava o professor de teologia à cozinha. Um Padre
preparava-se para celebrar a Santa Missa e estava já
revestido dos paramentos; vinham adverti-lo de que o Padre
geral lhe queria falar e o Padre devia tirar os paramentos e
ir onde a obediência o chamava. Chegado diante do Padre
geral, este dizia-lhe simplesmente
- Vá dizer missa.
O noviço, satisfeito por ter de oferecer a Deus este ato de
obediência imprevista, agradecia ao superior do fundo do
coração, porque sabia que a virtude se fortifica pela prova.
Se sucedia que um noviço adiava a execução duma ordem, pela
interpretação que dava à vontade do superior, Inácio
mandava-o chamar no momento em que ele menos esperava, e
impunha-lhe uma penitência. Foi o que aconteceu um dia a um
Padre que confessava e quis acabar a confissão começada : foi
punido pela demora. Pedindo-lhe um dia um Padre licença para
fazer uma peregrinação, o Santo recusou-lha; o noviço insiste
e o Santo pune-o, dizendo-lhe que mereceu a punição, não pelo
pedido em si, mas pela sua disposição em preferir a sua
própria satisfação à obediência.
O Padre Emerio de Bonis foi empregado na sacristia, durante o
primeiro ano do seu noviciado, e era então muito jovem. Todos
os dias encontrava à porta da igreja as mais nauseabundas
imundícies, e contentava-se de as limpar humildemente. Tendo
Inácio adquirido a certeza de que as imundícies eram postas,
por maldade, por uma pessoa que morava em frente da igreja e
cuja vida era escandalosa, ordenou a Emerio de Bonis que
fosse pedir a essa mulher que lançasse as imundícies de sua
casa noutra parte. O jovem noviço, um pouco tímido e duma
modéstia angélica, não podendo resolver-se a dirigir a
palavra a uma mulher daquelas, pediu a um outro que
desempenhasse aquela comissão tão pouco agradável. Inácio
soube-o, aprovou a modéstia de Emerio, mas censurou-lhe a
desobediência e puniu-o: impôs-lhe por penitência que fosse
todos os dias, ao refeitório, com uma campainha ao pescoço, e
dissesse em voz alta, uma vez em cada refeição, estas
palavras: "O quero e não quero não moram nesta casa".
O fervoroso e modesto noviço sofreu esta penitência durante
seis meses.
Quando um noviço vinha pôr-se de joelhos diante de Inácio,
para lhe pedir perdão e penitência, o Santo concedia um e
impunha a outra, e, depois de algumas palavras, terminava
dizendo: Levante-se. Se o noviço não se levantava
imediatamente, Inácio deixava-o de joelhos e saía, dizendo:
"A humildade não tem mérito quando é contrária à obediência".
Um dia o nosso Santo conversava com um fidalgo, quando um
Irmão coadjutor, que ele tinha chamado se apresenta. Inácio
fez-lhe sinal para se assentar; mas o Irmão, temendo faltar
ao respeito ao seu superior e ao visitante, ficou de pé.
Santo Inácio ordenou-lhe que pusesse sobre a cabeça o banco
em que devia assentar-se e fê-lo estar assim até que o
fidalgo se retirou.
Um Padre flamengo, muito escrupuloso, levava muito tempo a
recitar o ofício divino, recomeçando sempre e querendo chegar
a dizê-lo sem distração; mas a sua pretensão só lhe fazia
perder muito tempo e ter mais escrúpulos. Todos os conselhos
que lhe deram não tinham dado resultado satisfatório; Santo
Inácio, sabendo que ele era assaz obediente para aceitar
todos os remédios que lhe fossem dados, imaginou um, violento
é verdade, mas que salvou o doente. Proibiu-lhe que
empregasse mais duma hora a recitar o ofício, e, dando-lhe um
relógio de areia disse-lhe que havia de acabar apenas o
último grão de areia caísse; fosse qual fosse a parte do
ofício que lhe restasse, devia renunciar a ele. O pobre
flamengo via-se entre dois fogos! Se não terminasse a tempo,
era forçado pela obediência a faltar a uma obrigação
rigorosa; se cumpria esta obrigação tão importante, como
Padre, pecava gravemente contra a obediência, como religioso.
Entre estes dois escolhos, tomou a resolução da corrida, e,
evitando-os a ambos, acabava sempre antes que o último grão
de areia caísse; foi deste modo curado desse gênero de
escrúpulos.
Santo Inácio esforçava-se por manter o espírito de união e de
perfeita caridade entre os noviços, a fim de que eles o
levassem às casas aonde fossem enviados; queria que cada um
deles, quando abandonasse os seus irmãos, encontrasse novos
irmãos em toda a parte onde vivesse com membros da Companhia.
Para obter este espírito de caridade entre os membros de uma
família destinada a tão grande aumento, punia severamente a
menor palavra pouco favorável dum noviço a respeito doutro.
Sabendo um dia que um deles se permitira falar dos singulares
efeitos do delírio que a febre dava a um de seus irmãos,
Inácio infligiu-lhe uma penitência de alguns dias.
O nosso Santo empregava todos os meios de doçura e de
persuasão para levar os noviços a sentir e apreciar as
vantagens destas provas; quando via que não podia alcançar o
completo desprendimento da sua opinião ou da sua vontade,,
despedia-os sem ter em consideração as outras qualidades de
que eram dotados, e fossem quais fossem as suas outras
virtudes ou as ciências que possuíssem. Não tinha mais
contemplações com o nascimento. Expulsou D. Teotónio, filho
do duque de Bragança e sobrinho de D. Manuel, rei de
Portugal, com receio de que o seu espírito irrequieto
semeasse a agitação e a desunião entre os irmãos; despediu
também um primo do duque de Bivona, parente do vice-rei da
Sicília, que era seu amigo e benfeitor. Pedro Ribadeneira
pediu, suplicou ao Santo que perdoasse a esse jovem, que se
oferecia para sofrer os mais severos castigos; as lágrimas e
as petições de Ribadeneira não puderam vencer o santo
fundador.
- Quando o Padre Inácio decide uma expulsão, - dizia D.
Teotónio, que o sabia por experiência - não há nada que o
mova a misericórdia.
A sua misericórdia não se deixou vencer também a respeito de
Cristóvão Laynez, irmão do Padre Diogo. Cristóvão, depois
duma vida dissipada nos prazeres, quis entrar na Companhia,
mas Inácio, não lhe reconhecendo vocação alguma, despediu-o,
apesar de todas as suas instâncias e as de seus parentes.
Ribadeneira pediu-lhe que lhe fornecesse meios para voltar a
Espanha, porque ele tinha gasto o seu patrimônio e achava-se
na miséria:
- Meu Pedro, - respondeu-lhe o Santo - ainda que eu possuísse
todos os tesouros da terra, não daria um óbolo àqueles que se
tornam indignos de ficar na Companhia. Eles não podem
esperar, quando a abandonam, que ela os reembolse das fadigas
que padeceram, como se as não tivessem dado gratuitamente a
Deus Nosso Senhor, mas as tivessem apenas emprestado à
Companhia; assim como não podem esperar, que, depois de terem
recebido todos os dias o necessário, como interesse, tenham
direito ainda a exigir a título de dívida, que lhe restituam
o capital.
Desde a sua eleição ao generalato, o nosso Santo trabalhava
nas Constituições da sua Ordem e dedicava-lhe algumas horas
todos os dias. Se durante o dia lhe faltava o tempo, tomava à
noite essas horas de trabalho, apesar dos seus sofrimentos e
da sua fraqueza. Meditava muito tempo cada constituição,
orava muito, escrevia em seguida, e quando terminava uma
parte, colocava-a de manhã sobre o altar em que dizia missa,
oferecia-a a Nosso Senhor, e pedia-lhe que lhe fizesse
conhecer se a aceitava assim, ou se devia ser modificada,
acrescentada ou cortada em alguns pontos. João Borelli, que
ajudava à missa, foi muitas vezes testemunha disso. Conquanto
Santo Inácio tivesse recebido, a respeito das Constituições,
as luzes mais certas, a sua profunda humildade fazia-o
proceder como se tivesse sido privado de qualquer revelação
do alto. Disse um dia ao Padre Laynez:
- Diogo, não crês que Deus haja revelado a todos os
fundadores as Constituições próprias da Ordem que haviam de
estabelecer?
- Penso que sim, meu Padre, estou intimamente persuadido
disso.
- É também o que eu penso, - replicou o nosso Santo [53].
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