XI. O DOMÍNIO DE SI MESMO

Existia na Companhia, desde os primeiros Padres da fundação, uma graciosa e poética crença que aumentava a terna veneração que o santo fundador inspirava a todos os seus filhos. Esta opinião era apoiada, segundo se dizia, numa revelação feita a um dos primeiros Padres; mas o mistério que rodeava a sua origem deixa muito a desejar.

O Padre Laynez, autorizando-se da sua antiga intimidade com Inácio, e da confiança que ele sempre lhe testemunhara, quis saber dele a verdade, e disse-lhe um dia:

- Padre, todos nós estamos persuadidos, e alguns motivos há para o crermos, que a querida alma de Vossa Reverência está confiada à guarda dum arcanjo. É verdade?

Inácio de Loiola baixou os olhos, corou como um criminoso, não respondeu e ficou no mais doloroso embaraço. O Padre Laynez não insistiu, porque sabia o bastante; mudou de conversa e Inácio recobrou a sua liberdade de espirito, que só a humildade pôde perturbar por um instante.

O nosso Santo tinha tal império sobre si mesmo, que nada podia alterar a tranqüila expressão da sua angélica fisionomia. A sua natureza violenta e impetuosa estava a tal ponto transformada que os médicos julgavam o temperamento de Inácio melancólico e fleumático, e persuadiam-se que o admirável Santo nunca tivera paixões a combater. Era esta a opinião de todas as pessoas que raras vezes o viam e não podiam julgar o seu enorme valor. Para conhecer o homem e apreciar o Santo, é mister lançar um olhar sobre o seu passado, e depois sobre o conjunto de tudo o que ele tinha realizado em alguns anos; é necessário ver os heróis que ele formara, as grandes coisas que eles haviam feito, os brilhantes serviços que tinham prestado à Igreja e ao mundo. Somente então se conhecia Inácio de Loiola.

Já dissemos que não havia nada que abalasse o nosso Santo; bastarão alguns factos para o provar.

Foi mister aplicar-lhe um aparelho no pescoço para curar um tumor. O Irmão enfermeiro, encarregado deste serviço, querendo fazê-lo conscienciosamente, depois de ter apertado a tira de pano, que fez passar sobre a cabeça, entendeu que devia cosê-la para evitar que saísse do seu lugar. Quando se entregava a esta operarão, Santo Inácio disse-lhe com a maior tranquilidade.

- Irmão João Paulo, creio que também me está cosendo a orelha.

Com efeito, a orelha estava cosida; a agulha tinha-a atravessado e o fio ia entrando sem que o paciente tivesse feito o mais ligeiro movimento nem soltado a menor queixa.

Esperou, um dia, catorze horas seguidas para falar a um Cardeal, e não mostrou fadiga após este longo exercício de paciência nem deu a entender que outros negócios reclamavam a sua presença noutros lugares. É verdade que se tratava da glória de Deus na audiência que ele esperava, e Inácio, como sabemos, sacrificava tudo a esta glória. Citaremos, a propósito disto, a resposta que deu ao Padre Polanco, quando, tendo de dirigir-se a Alvito, no reino de Nápoles, e caindo a chuva a torrentes no momento da partida, o Padre Polanco o convidou a adiá-la para o dia seguinte:

- Padre Polanco, - respondeu-lhe o Santo-, há trinta anos que nada há que me tenha feito adiar por um instante aquilo que julgo dever fazer para o serviço e a glória de Deus Nosso Senhor.

E partiu, sem parecer contrariado pela chuva forte e pelo vento impetuoso que aumentava a imprudência da partida.

Tendo-o o seu zelo e a sua caridade conduzido a uma casa, aparece-lhe um Irmão pouco depois e pede para lhe falar acerca dum negócio importante e urgente. Mandam-no entrar; diz algumas palavras em voz baixa ao santo fundador, que o despede dizendo-lhe

- Está bem, basta.

O Irmão retira-se; Inácio continua a conversa, e, quando terminou, despede-se daqueles a quem foi visitar. Um deles diz-lhe no momento em que saía

- Padre, o Irmão que aqui veio há pouco parecia muito agitado; trouxe a Vossa Reverência alguma má notícia?

- Não; - respondeu-lhe o nosso Santo - veio dizer-me que os oficiais de justiça se tinham apresentado para nos levar os móveis, porque devemos alguns escudos, que ainda não pudemos pagar. Trata-se dum empréstimo, que fomos forçados a contrair. Se nos levarem as camas, dormiremos perfeitamente no chão. Pedi somente que nos deixem os manuscritos; mas se no-los quiserem levar, não me oporei a isso.

No dia seguinte, Jerónimo Astali, fidalgo romano, responsabilizava-se pela divida, e uma esmola de duzentos escudos que chegava ao mesmo tempo, pagava aos credores e restabelecia os negócios do nosso Santo.

A casa professa teve, durante nove anos, um vizinho que, querendo forçar os Padres a comprar-lhe a casa, imaginava mil maneiras de os incomodar. Não podendo o refeitório receber luz senão do muro que dava para o pátio deste mau vizinho, não se pôde conseguir que ele deixasse abrir as janelas e, durante nove anos, viram-se obrigados a acender luz em pleno dia naquela parte da casa. Este vizinho encheu o pátio dos mais incômodos animais. Enfim, as coisas chegaram a ponto que Santo Inácio querendo alargar a casa, em conseqüência do aumento sempre crescente dos religiosos, terminou por dar àquele homem o elevado preço que ele exigia pela sua casa. Tinha suportado até então, sem se queixar, todos os inconvenientes daquela má vizinhança. Estava combinado o preço pela casa e suas dependências, tais como estavam; mas o vizinho, antes de a entregar a Inácio, mandou tirar portas, janelas, grades, obra de talha, ferragens e até algumas pedras. Qualquer outro teria intentado um processo àquele miserável; o nosso Santo pareceu não ter dado por essa injustiça. Tomou posse desses muros arruinados com tanta satisfação aparente como se lhe tivessem prestado um grande serviço com aquela deterioração. Não teve uma só palavra de censura para aquele que o tinha assim espoliado, nem manifestou nenhum pesar!

Tendo um dia o Padre ministro de lhe falar dum negócio importante, procurou-o, soube que tinha saído e retirou-se. O Santo voltou tarde a casa; vinha de esperar muito tempo e inutilmente uma audiência do Papa. O Padre ministro, supondo o seu superior muito fatigado para se ocupar de negócios, esperou para o dia seguinte. Inácio censurou-o por esse adiamento:

- Onde estagiamos nós, - lhe diz ele-, se perdêssemos a liberdade de espírito e de apreciação por termos praticado a paciência segundo a vontade de Deus Nosso Senhor, e não segundo a nossa vontade?

O nosso Santo podia falar assim, porque em todas as ocasiões o encontravam disposto a escutar o que se lhe queria dizer, e a responder com a mesma segurança de vistas, sabedoria de conselho e desinteresse de opinião. A doença, a perseguição, a fadiga e o trabalho, o excesso dos negócios, nada tinha influência sobre os conselhos e decisões que se lhe pediam; e fosse qual fosse a importunidade daqueles que recorriam às suas luzes, deixava-os penetrados sempre de reconhecimento pelo seu amável acolhimento e pela sua muita bondade. Mas se homens do mundo se apresentavam, sem outro fim senão o de o verem e conversarem acerca de coisas inúteis, apressava-se a mudar de conversa, e falava-lhes das grandes verdades cristãs: a morte, o juízo, o inferno e o paraíso.

- É - dizia ele - um ganho certo, quer para eles, quer para mim. Para eles, se isso os levar a descer ao fundo da sua consciência e a pô-la em regra diante de Deus. Para mim, porque se retiram mais depressa se estas verdades os não comovem, e me deixam assim um tempo precioso, que sem 'isso me roubariam.

Alguns homens do mundo vinham pedir-lhe a sua proteção, junto dos soberanos; queriam um emprego na corte do imperador Carlos V, do rei de Portugal ou de outro. A resposta de Inácio era a mesma para todos os pretendentes

- Não lhes posso ser útil, -dizia ele-, senão junto do monarca soberano do céu e da terra. Se conhecem uma corte mais brilhante e onde o favor seja mais duradoiro, trabalhem, e, logo que entrem, pedir-lhes-ei que me procurem a mesma felicidade. Entretanto, como a minha ambição é fazer-lhes o que sei de melhor, ofereço-lhes os meus serviços e ficarei muito satisfeito com ensinar-lhes o caminho da verdadeira glória e da verdadeira grandeza.

A sua reputação de santidade era tão grande na Companhia que o Padre Leonardo Kessel, reitor do Colégio de Colônia, que o não conhecia, lhe escreveu a suplicar-lhe que lhe concedesse a permissão de ir a Roma, a fim de ter a consolação de o conhecer e de receber a sua bênção. O Padre Kessel era muito idoso, duma saúde fraquíssima, e fazia tanto bem dm Colônia, que Inácio hesitava em satisfazê-lo. Custava todavia ao seu coração recusar esta consolação ao bom velho e consultou Deus para saber o que devia decidia. Depois de ter orado, escreveu ao Padre Kessel:

- "Não é necessário empreender tão longa viagem para ver o vosso Padre Geral, porque é provável que Deus arranje as comas de modo que Vossa Reverência me vela em Colônia".

Ora, sucedeu que um dia em que o Padre Leonardo Kessel estava só no seu quarto, muito ocupado nos negócios que estavam a seu cargo, viu o Padre Inácio diante de si, olhando-o com uma bondade toda paternal, sem lhe falar, e quando o Padre Kessel o tinha contemplado bem, desapareceu, deixando o bom reitor inundado da mais doce alegria.

O santo fundador tinha escrito regras sobre á modéstia, prescrevendo a posição exterior até às suas menores minudências. Dizia que estas doze regras lhe tinham custado muitas lágrimas; que havia consultado Deus durante muito tempo, nas suas longas orações, a fim de conhecei a sua vontade acerca de cada uma delas duma maneira certa, antes de impor a sua prática aos seus religiosos. Desejando pôr em vigor, estas regras o mais cedo possível, Inácio aproveitou-se, para as fazer conhecer, da presença de alguns professos vindos a Roma de diversos pontos da Europa, os quais deviam partir em breve. O Padre Laynez foi encarregado de as promulgar e de fazer uma exortação sobre a necessidade da sua observância. Inácio fixou o dia e ordenou a todos os Padres que se reunissem na sala das conferências, à hora em que de ordinário se juntavam no terraço.

Este terraço, à altura do primeiro andar, dava para a jardim, e era uma espécie de galeria coberta. Todos os dias depois de jantar, os Padres passeavam naquele terraço, ao abrigo do sol, do vento e da chuva.

No dia designado, dirigindo-se todos à sala das conferências, o Padre Laynez leu as novas regras e acompanhou a leitura dum discurso. No momento em que exortava os seus irmãos a não negligenciarem as menores observâncias delas porque todas eram destinadas a concorrer para o seu progresso espiritual, ouviu-se um estalido espantoso, seguido dum abalo que se sentiu em toda a casa. Ninguém se mexeu. Laynez continuou o seu discurso e todos pareciam muito tranqüilos. Mas logo que a sessão terminou, saíram para conhecer a causa de tal barulho e abalo e viram que o terraço tinha aluído. Se os Padres não tivessem sido forçados, pela obediência, a estar na sala das conferências naquele momento, alguns teriam infalivelmente perigado, esmagados por aquela massa. Todos , ergueram as mãos ao céu agradecendo à Providência e venda neste acontecimento a manifestação da aprovação divina em favor das regras que acabavam de ser promulgadas.

- Sim, meus irmãos, - disse o nosso Santo - Deus testemunhou-nos por este facto que estas regras lhe são agradáveis; esforcemo-nos por que elas sejam observadas com exactidão.

Esta observância deu ensejo, dai a pouco, a algumas críticas dos mundanos, inimigos dos jesuítas; diziam que a Padre Inácio queria fazer dos seus religiosos outros tantos hipócritas. Estas críticas foram repetidas ao santo fundador:

- Deus queira, - respondeu ele - que esta hipocrisia aumente de dia para dia entre nós ! Quanto a mim, não conheço em toda a Companhia, senão estes dois hipócritas.

E designava os Padres Bobadilha e Salmeron, que considerava como modelos, e que sabia que eram interiormente. muito mais perfeitos ainda do que pareciam.