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A morte tinha passado pela casa de Loiola: D. Beltrão de
Yáñez deixara de existir. D. Martim Garcia, seu primogênito
tornara-se chefe da família, abandonara a corte e o serviço
no exército, casara-se e vivia retirado no lato do Loiola.
Desde a tomada de Pamplona, enviava todos dias um mensageiro
a informai-se de Inácio, sabia que o jovem herói lhe seria
entregue logo que os homens da ciência julgassem em estado de
ser transportado e contava impacientemente os dias.
Inácio chegou enfim. Os médicos, que o esperavam no castelo
declararam, depois de lhe terem examinado cuidadosamente a
perna direita, da qual sofria muito, que ela fora mal curada.
- Deixando-a assim, - acrescentaram eles - o Sr. comandante
sofrerá sempre dela e ficará defeituoso..
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- E que é necessário fazer para evitar essa desgraça? -
perguntou Inácio.
- É necessário quebrar o calo já formado, quebrar a perna de
novo, unir as partes do osso e depois aplicar o aparelho.
- Pois bem, - respondeu o valente guerreiro - quebrem-na já;
não quero ficar disforme.
Meteram mãos à obra. Inácio suportou esta longa e dolorosa
operação sem deixar escapar uma só queixa; mas no dia
seguinte sobrevieram-lhe uma febre ardente e sofrimentos do
estômago que nada pôde acalmar. A doença fez progressos
alarmantes; Inácio compreendeu-o.
- Doutor, - disse ele ao médico - sinto-me muito mal, quero
morrer como fidalgo cristão; que pensa do meu estado?
- Senhor... Penso que na idade de V. Ex.a deve sempre
esperar-se a cura.
O doente não interrogou mais o doutor e preparou-se para a
morte. No dia 28 de junho, D. Garcia, aterrado com o
enfraquecimento de seu irmão, comunicou ao médico as suas
apreensões
- Ah! senhor, - lhe respondeu o doutor - é infelizmente
verdade que não tenho esperança alguma!... A não sobrevir uma
crise favorável, o que não espero, o Sr. comandante não
passará da noite próxima.
- Hoje é a véspera dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, -
replicou D. Garcia enxugando as lágrimas, que, a seu pesar,
lhe banhavam as faces; - oremos para que no-lo conservem I D.
Ínigo compôs, no ano passado, um poema em honra de S: Pedro.
Quem sabe se o príncipe dos Apóstolos lhe será propício em
recordação desta homenagem?
Inácio também sentia a morte aproximar-se; pediu e recebeu os
últimos sacramentos na tarde desse mesmo dia, no meio das
lágrimas e dos soluços de sua família e das pessoas que o
estimavam. Pela meia-noite, adormeceu placidamente, com
grande admiração daqueles que esperavam o seu derradeiro
suspiro, e viu em sonho o Apóstolo S. Pedro colocar a sua mão
sobre ele e curá-lo. Quando despertou, todo o perigo tinha
desaparecido; poucos dias depois, a saúde e as forças
voltaram-lhe. Levantou-se o aparelho da perna esquerda...
Viu-se então que as partes do osso partido se tinham
deslocado, estavam disjuntas, uma sobre a outra, formavam uma
saliência, os nervos se tinham estendido a todo o comprimento
do membro, e, enfim, essa perna ficara mais curta que a
outra. Tal descoberta consternou todos os corações.
O belo Inácio de Loiola, um dos senhores da corte
considerados como mais elegantes, aquele cujas homenagens
eram mais graciosamente acolhidas pelas damas da rainha e
pelas próprias princesas; esse brilhante cortesão, tão
elogiado e tão procurado, era, agora apenas um homem disforme
e coxo.
Inácio, depois de tantos triunfos, não pôde aceitar esta
disformidade antes de tentar todos os meios para a fazer
desaparecer:
- Não quero esta saliência acima do joelho, disse aos
cirugiões. Que espécie de bota poderia eu calçar assim? Não
quero. Façam uma abertura suficiente para pôr o osso a
descoberto e arranquem toda a protuberância.
- Senhor, - responderam os cirurgiões - V. Ex.a não pode
suportar tais sofrimentos. Seria necessário serrar o osso!
-Pois bem, serre-se!
Mas, senhor, todos os sofrimentos que V. Ex.a sofreu nas
operações precedentes, não são nada em comparação desses.
- Isso é comigo; convosco é tirar-me este aleijão.
Inácio pronunciou estas últimas palavras num tom tão
imperativo que os médicos não ousaram replicar. E
acrescentou:
- Mandem fazer uma máquina que possa forçar este membro
encolhido a retomar o seu comprimento natural; não quero
ficar coxo.
- Senhor, admiro a coragem de V. Ex.a - disse-lhe o seu
médico ; - porque o que me pede é um instrumento de martírio,
é um suplicio real! Por Deus, reflita V. Ex.a...
- Custe o que custar, não quero ficar disforme nem enfermo.
Tome as suas medidas; quanto a mim, estou pronto.
D. Garcia advertido pelos cirurgiões da resolução de Inácio,
procurou, mas em vão, fazê-lo mudar de parecer:
- Meu senhor e irmão, - lhe respondeu energicamente o jovem
cortesão - permita-me que lhe diga, com todo o respeito
devido ao chefe da casa, que não é aos trinta anos que se
renuncia facilmente à corte, à guerra, a tudo o que constitui
o prazer e a glória da vida.
- Podeis viver feliz conosco, meu caro Ínigo.
- Na minha idade? Não, senhor; tenho apego aos hábitos que
tomei. Ainda que as torturas com que me ameaçam fossem mil
vezes mais dolorosas, não hesitaria em submeter-me a elas.
Que é a dor comparada com todas estas desvantagens?
Foram forçados a ceder. Estando feitos todos os preparativos,
quiseram ligar o paciente para operar aquela perna, cuja
saliência devia desaparecer.
- Ligar-me? - exclamou o corajoso guerreiro - ligar-me como
um louco ou uma criança? Não, não, fiquem tranqüilos; não me
mexerei.
No momento de fazer a primeira incisão, o operador
empalideceu, porque sabia o que Inácio ia sofrer.
- Coragem, doutor! - lhe disse o nosso herói; faça de conta
que está a operar um cadáver.
A operação foi longa e é fácil compreender quanto seria
dolorosa. Inácio não soltou um só grito, não se queixou, não
empalideceu!
- Que admirável coragem! - disse-lhe seu irmão quando tudo
estava terminado; - vistes serrar esse osso como se ele fosse
de outra pessoa. Pergunto a mim mesmo se eu não sofri mais
que vós.
- Tenho tanto empenho em não ficar defeituoso! respondeu-lhe.
Como poderia, sem fazer a operação, trazer as botas que são
de uso na corte? Era necessário fazer este sacrifício à
elegância.
Curado desta operação, e tendo a chaga cicatrizada,
entregou-se ao suplício da máquina de ferro, destinada a
distender-lhe a perna; devia ser torturado daquele modo
durante alguns meses, sem outra ocupação que a dos seus
sofrimentos e sem outra distração que as conversas da
família. Inácio pensava rios prazeres da corte e sonhava com
a sua princesa, pela qual, sobretudo, ele se impunha dores
tão cruéis; ao menos queria persuadir-se disso, e pensava em
descrever-lhe em versos pomposos tudo o que tinha sofrido
para evitar a desgraça de lhe desagradar. Todavia, devemos
confessá-lo, Inácio temia mais ainda a desgraça de não tornar
a ser um objecto de preferência na corte, e de deixar de ser
apontado pela sua elegância e porte, bem como pela sua
beleza.
O tempo corria e o aborrecimento apoderava-se dele apesar dos
sonhos da sua imaginação. Os romances de cavalaria, então
muito em voga em Espanha, pareceram-lhe dever preencher o
vácuo que se fazia sentir nas suas longas horas de isolamento
e de reclusão. Divertiam-no as imaginárias aventuras de
cavaleiros andantes e as suas impossíveis proezas. Esta idéia
agrada-lhe; ordena que lhe tragam um desses romances. Depois
de alguns instantes, o seu criado de quarto volta: -Senhor
aqui está tudo o que pude encontrar. Como! Peço-te um romance
e trazes-me livros de devoção? Estás doido?
- Senhor, não há outros.
- Vai do meu mando pedir a D. Garcia romances de cavalaria.
-Já fui, Senhor; D. Garcia não tem romances; S. Ex.a não tem
outros livros senão estes.
Estes livros eram: a Vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo
frade Ludolfo, e a Flor dos Santos, ambos em língua
castelhana.
- Pois bem, - disse o jovem mundano - deixa-me esses livros.
Sobrevém-lhe o tédio e o espirito de Inácio tem necessidade
de alimento; à falta de melhor, aceita a leitura que, por
certo, não teria escolhido.
- Ah!- dizia ele muitas vezes desde que estava de cama -, S.
Pedro curou-me miraculosamente, não me resta a menor dúvida,
a ele devo a vida; mas porque me deixaria coxo? Porque me
obrigaria a sofrer um tratamento que me retém tanto tempo
nesta imobilidade? Não compreendo! De que serviria a vida, se
eu não encontrasse de novo as minhas regalias pessoais?...
Antes a morte...
Assim raciocinava o homem da corte, vaidoso da sua pessoa,
soberbo dos seus triunfos na sociedade, orgulhoso por
natureza, ardente e generoso pelo coração, dotado das mais
brilhantes faculdades, e pregado, pela vontade divina, no
leito de dor, onde julgava não estar preso senão pela vontade
própria, com o único fim de satisfazer a vaidade.
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