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D. Inês Pascoal, a quem a peste tinha momentaneamente
afastado de Barcelona, refugiara-se em Manresa, e fazia
frequentes peregrinações ao santuário de Monserrate. Tendo-se
dirigido ah na madrugada do dia da festa da Anunciação,
voltava a Manresa, acompanhada de três senhoras e dois
jovens, quando pelo meio-dia, chegando ao sopé da montanha,
peito da igreja dos Santos Apóstolos, viu um jovem peregrino
cuja beleza e distinção lhe atraíram a atenção,
principalmente porque ia vestido com uma túnica de grosso
tecido è de corda à corta. Parecia fatigado e mancava
ligeiramente; tildo nele denuncia o fidalgo. D. Inês
contemplava o peregrino com interesse, e este lançando-lhe um
olhar modesto e doce, perguntou-lhe
- Estou longe dum hospital, senhora?
- Senhor peregrino, - lhe respondeu ela - o hospital mais
próximo é o de Manresa, onde nós moramos; se quereis vir
conosco, receber-vos-erros e vos trataremos da melhor
'vontade. Não temos pressa e caminharemos coze o vagar que
quiserdes.
Tendo o peregrino aceitado, D. Inês acrescentou:
- Senhor peregrino, nós temos boas pernas e vós pareceis
fatigado; servi-vos do nosso macho, que nos é desnecessário.
- Agradeço-vos senhora; desejo ir a pé.
Tendo o peregrino recusado o macho, que de tão boa vontade
lhe foi oferecido, os seis viajantes, mui respeitosos para
com ele, afrouxaram o passo e caminharam mais devagar, porque
se via que ele andava com dificuldade.
A pequena caravana ia já longe no vale de Llobregat, quando
um enviado do alcaide de Monserrate, correndo a toda a brida,
chama o jovem peregrino c pergunta-lhe:
- É verdade, senhor, que V. Ex.a deu um rico vestuário de
fidalgo a um mendigo de Monserrate?
- É verdade, - disse o nobre peregrino, corando.
- O alcaide não quis acreditar esse homem e prendeu-o
esperando o meu regresso.
- Ah! -disse o nosso Santo deixando escapar algumas lágrimas
-não me foi dado fazer algum bem a esse pobre homem sem lhe
causar ao mesmo tempo um grande mal!
- Fique tranqüilo, senhor, - replicou o enviado do alcaide -
em algumas horas será posto em liberdade.
E, puxando a rédea ao cavalo, voltou para Monserrate [20].
Uma das três senhoras que acompanhavam D. Inês, da qual era
amiga íntima, dirigia o hospital de Manresa, que se chamava
de Santa Lúcia, em razão da sua proximidade da igreja deste
nome. D. Inês, profundamente comovida com o que acabava de
passar-se, e não podendo duvidar de que Inácio fosse um
grande senhor e um grande Santo, recomendou-o calorosamente à
sua amiga quando se separou dela, antes de chegar a Manresa,
e convidou Inácio a segui-Ia na direção do hospital,
anunciando-lhe que ia enviar-lhe comida da sua mesa, o que se
apressou a fazer.
Em presença da miséria que encontrou naquele asilo da dor,
Inácio receou que não fosse assaz pobre. A lembrança de
quanto o buscavam e da sua elegância, do seu orgulho e da sua
ambição, do seu desejo de agradar e de ser citado pelo
atrativo da graça e do espírito, não o abandonava. Ele queria
expiar toda essa vida de prazeres e de honras, de vanglória e
de falsa grandeza. Queria tratar a sua natureza como sempre
tinha tratado o inimigo do seu soberano: como herói.
Determinado a combatê-la, por assim dizer, corpo-a-corpo, e a
sustentar contra ela uma luta de morte, sem tréguas, julgava,
apesar disso, nada ter feito.
Permitam-nos as minudências em que vamos entrar. Poderão
parecer pueris, muito vulgares, repulsivas até a certos
leitores delicados; mas se se colocarem somente sob o ponto
cie vista da fé, e se se considerar o princípio que produz as
ações que vamos referir, ser-se-á forçado a admirar-lhe o
heroísmo e a confessar-se vencido.
D. Inácio de Loiola está num hospital onde a piedade lhe
concede um asilo; está coberto com uma grosseira túnica e
cingido duma corda; mas é jovem e belo, e nada perdeu desse
cunho de nobreza e de distinção que imprime respeito e indica
o homem de coração. Ele sabe-o, vê-o, e é necessário que tudo
isso desapareça. Todo o seu passado deve ser esmagado,
calcado aos pés, destruído... E mete mãos à obra.
Os seus cabelos são belos e ele tem-nos sempre tratado...:
deixa-os crescer numa desordem só comparável à dos mendigos
de que está rodeado. A sua barba andava sempre escanhoada
negligencia-a como os cabelos. A sua mão é um modelo de forma
e de limpeza: deixa crescer as unhas e não se ocupa delas...
A sua linguagem é a da corte: estuda o idioma catalão e
esforça-se por falá-lo tão naturalmente como se tivesse
nascido na última classe popular da catalunha.
D. Inácio de Loiola teve sempre, mesmo nos campos, alguns
criados às ordens: faz-se agora servo dos pobres doentes, e
os mais repelentes são os seus preferidos. Presta-lhes os
serviços mais baixos, os mais repulsivos, e se a natureza
delicada tenta revoltar-se, força-a a tratar as mais
asquerosas chagas, a lavá-las, a beijá-las de joelhos!
Tais mortificações, porém, não lhe bastam: são-lhe
necessárias ainda, e sempre, as macerações mais espantosas. A
roupa branca era sempre fina: um rude cilício a substitui.
Tece por suas próprias mãos uma erva comprida e com espinhos,
colhida no campo, e faz dela um cinto, que traz sobre a pele;
disciplina-se três vezes por dia; come o pão mais grosseiro;
bebe água que ele mesmo vai buscar à fonte e recusa qualquer
outro alimento, exceto ao domingo. O pão grosseiro, coxas que
se alimenta, vai mendigá-lo de porta em porta, a fim de se
humilhar. Assiste todos os dias ao santo sacrifício da missa
e aos ofícios, de manhã e de tarde, na igreja dos
Dominicanos; ora de joelhos sete horas inteiras. Dorme na
terra nua, a cabeça apoiada numa pedra ou num pedaço de pau,
e só concede ao sono os primeiros momentos da noite; o resto
é para a oração. Ao domingo confessa-se a um dos Padres
Dominicanos e comunga; sendo aquele dia para ele de
felicidade, permite-se acrescentar algumas ervas cosidas em
água à sua refeição de pão negro; mas espalha nelas cinza
para lhe alterar o sabor.
Tal era a vida do nosso Santo no hospital de Santa Lúcia, na
pequena. cidade de Manresa.
Esforçava-se por imitar as maneiras dos homens do povo, assim
como a sua linguagem, a fim de não trair a sua nobre origem;
mas, como de ordinário sucede, essa afetação fá-lo cair no
exagero a ponto de passar por um miserável vagabundo que
todos podiam insultar impunemente. Quando saía, os rapazes
cornam atrás dele, apontavam-no a dedo e chamavam-lhe o Pai
Saco, alusão ao saco de grosso tecido que o cobria. Aqueles a
quem pedia a esmola dum pedaço de pão, riam-se dele, da sua
comprida barba, dos seus grandes cabelos, de todo o conjunto
da sua pessoa. Que provação humilhante para o orgulhoso
fidalgo! Mas Inácio dizia imediatamente
"- O soberano, a quem tenho a honra de servir não usou, por
meu amor, a túnica reservada entre os judeus aos insensatos?
Não consentiu em cobrir-se com o manto da irrisão? Não foi
perseguido pelos gritos dum povo ébrio de furor e cego pelo
ódio? Esta gente ri-se de mim, é verdade; mas não me tem ódio
nem me quer mal. Longe disso, auxilia-me muito a expiar o meu
orgulho e a minha ambição de vanglória. Coragem, pois ! Ainda
não sofri por amor do Rei do céu e da terra, tantas
humilhações como sua divina Majestade se dignou sofrer por
amor de mim, miserável pecador!"
De tempos a tempos, ia a Monserrate, passava muito tempo aos
pés da Santíssima Virgem, conversava acerca dos seus
interesses espirituais como Padre Chanones, que pressentiu
grandes desígnios divinos sobre o seu heróico penitente. D.
Inácio ia também com frequência em peregrinação a um
santuário vizinho de Manresa chamado de Nossa Senhora de
Viladorsis, quando o cuidado dos doentes e o serviço dos
pobres lhe deixavam tempo.
Entretanto o inimigo dos homens não podia ver sem furor os
progressos daquele que o combatia sem tréguas com tais armas.
A paciência, a humildade, a abnegação, a mortificação, a
renúncia não faltavam, um só instante ao nobre cavaleiro de
Jesus e de Maria, apesar do desprezo com que não cessavam de
o perseguir, e por isso o demônio usou de outro meio.
Algumas pessoas souberam, em Monserrate, pelo mendigo a quem
o nosso Santo dera os seus ricos vestidos, que, sob os
andrajos da miséria e da mendicidade, se ocultava, por
espirito de penitência, um nobre fidalgo, o qual não podia
habitar longe de Monserrate, porque ia ali muitas vezes.
O boato chegou até Manresa, onde foi confirmado, apesar do
segredo prometido por aqueles que tinham acompanhado Inácio
no dia da sua chegada. Já censuravam o ter sido humilhado o
pobre estrangeiro do hospital, que não era outro senão esse
fidalgo. Desde então, começaram a testemunhar-lhe toda a
benevolência e respeito; vinham até consultá-lo, e ele falava
de Deus com tanto amor, que alguns pecadores, sensibilizados
com as suas virtudes e palavras, converteram-se sinceramente.
- Visto que Deus se digna servir-se de mim para operar tais
conversões, - disse ele um dia a si mesmo - que grande bom
não poderia eu fazer se, em vez de me tornar desprezível por
um exterior ignóbil, tivesse continuado a ser o que era, =-um
fidalgo! Porque, enfim, eu ultrapasso todos os limites. Não
seria Deus mais honrado, mais glorificado, se se visse
brilhar no seu servo a ilustração do nascimento e a glória
das puas próprias ações? Se eu tivesse continuado na corte, e
ali vivesse como um Santo, teria mais mérito; houvera
convertido alguns jovens fidalgos... Para que, pois,
permanecer num hospital, onde todo o brilho do meu nascimento
e dos meus talentos não pode ganhar uma só alma? Demais,
tantas austeridades não podem deixar de afastar da
santidade... E com que direito exporei aos sarcasmos e
insultos dos vagabundos a honra da minha família, que os meus
antepassados conquistaram ao preço do seu sangue?..."
Neste momento a tentação foi tão forte, que tudo se revoltou
na natureza impetuosa do nosso herói. Houve nele um abalo
espantoso! A sua túnica, os farrapos que o cobriam, os seus
cabelos, a sua barba, as suas mãos causavam-lhe horror; o pão
da caridade revoltava-lhe o coração, o serviço dos doentes
desgostava-o, a tempestade tornava-se terrível...
Inácio reconheceu as sugestões do inferno: correu aos seus
doentes mais repulsivos, abraçou-os, tratou-os mais
afetuosamente que nunca e permaneceu junto deles até que a
tentação se afastasse.
Este assalto pode, porém, renovar-se; além disso, o nosso
Santo é já bastante conhecido e vêm de muito longe vê-lo a
Manresa; há perigo para ele em continuar no hospital de Santa
Lúcia. Inácio quer um retiro onde os homens não possam ir
perturbar a sua união com Deus, e vai procurar esse retiro
com a confiança de que Deus lho fará encontrar.
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