VI. VIAGEM TEMPESTUOSA

Antes de entrar em Bolonha, tinha de passar sobre umas pranchas lançadas através dum largo e profundo barranco que as neves e as chuvas haviam enchido de água lamacenta. Escorregou e caiu no barranco. Ninguém foi em seu auxílio, porque as suas roupas esfarrapadas, as suas mãos com as marcas das feridas, o seu rosto lívido, tudo nele anunciava a mais completa miséria. Mas ainda ficou pior, quando o viram sair do barranco, coberto de lama da cabeça aos pés. Então os apupos do povo perseguiram-no até às ruas de Bolonha, e, apesar de ir em jejum, não obteve em parte alguma a caridade de um pedaço de pão.

E este pobre mendigo era Inácio de Loiola !...

O nosso herói estava tão enfraquecido pela falta de alimentação, tão exausto pelo excesso de fadiga, e sofria tanto com a humidade das suas roupas, que lhe parecia que estava prestes a morrer. Foi-lhe mister um aumento de coragem para chegar à porta dum espanhol, que estudava na Universidade daquela cidade. Este estudante não reconheceu o nobre mendigo, mas ouvindo-o falar na sua língua nacional, apressou-se a socorrê-lo. Era tempo; o Santo já não podia dar mais um passo...

Tantas humilhações e sofrimentos pareciam não bastar ao nosso herói para testemunhar a Deus o seu reconhecimento; porque as notícias que recebia de Paris eram sempre para ele novo objecto de alegria e de ação de graças. Pedro Fabro, esperando que os seus irmãos terminassem os estudos de teologia, entregou-se aos trabalhos apostólicos com tal êxito, que estava tudo preparado para o determinar a fixar-se em Paris. Tinha feito inumeráveis conversões, tinha chamado à fé uma grande multidão de hereges e as suas pregações atraíram um concurso prodigioso de sábios e de pessoas distintas. Um dos mais célebres doutores da Sorbona disse-lhe um dia:

- Mestre Fabro, sei que tenciona abandonar a França para ir levar o seu zelo e talento a outra parte. Diz-se que quer associar-se a outros para exercer o apostolado entre os infiéis.

- Talvez, - responde Fabro.

- Pois, - respondeu o doutor - não deve fazer isso. Vossa Reverência não pode, sem pecar gravemente, abandonar o bem real que faz em Paris para ir tentar noutra parte um bem incerto. Quaisquer que sejam as obras que Vossa Reverência empreenda, serão sempre inferiores às que pode aqui fazer, onde tem uma influência decisiva e onde pode ser ouvido e compreendido por todos. Sabe Vossa Reverência a língua do país onde quer levar a palavra evangélica? Não. Então como será compreendido e apreciado? Vossa Reverência aprenderá a língua, creio-o; mas o tempo que dedica a esse estudo, tê-lo-ia aqui empregado com mais resultado para a glória de Deus. Estou certo de que Vossa Reverência cometerá uma falta grave, repito, se abandonar o ministério de Paris... Consultarei, se Vossa Reverência quer, todos os doutores da faculdade de teologia e verá qual a sua decisão.

Fabro ficara inabalável; sabia que Deus o chamava ao apostolado sob a direção de Inácio de Loiola, fizera voto de corresponder a esta vocação e a opinião de todos os teólogos de Paris não era bastante para o tornar infiel a essa vocação.

O coração do nosso Santo dilatava-se ao receber estas notícias; compreendia tudo o que a Igreja podia esperar de tais apóstolos, num tempo em que o demônio da heresia fazia tão grandes danos no seu seio e agradecia a Deus com todo o ardor da sua alma. Soube também, por cartas dos seus amados discípulos, que eles tinham feito em Paris a conquista de três homens escolhidos, tão distintos pela virtude como pelo talento, e que, depois de terem feito os Exercícios Espirituais sob a direção de Pedro Fabro, reconheceram clarissimamente que Deus os chamava à obra de Inácio. Eram Cláudio Lejay, presbítero da diocese de Genebra; Pascácio Broet, presbítero de Bretancourt, perto de Amiens; João Codure, de Embrun, no Delfinado. Este último era ainda leigo, e todos três doutores em teologia. No dia 15 de Agosto, festa da Assunção, tinham feito votos em Montmartre, na capela subterrânea dos Santos Mártires, e todos os outros, discípulos do nosso Santo haviam renovado os seus.

Inácio de Loiola julgava que todos os sofrimentos eram poucos para agradecer a Deus tantas e tão doces consolações.

O estudante espanhol que o tinha socorrido na miséria, em que o vimos reduzido quando chegou a Bolonha, depois de lhe ter feito tomar algum alimento para o chamar à vida, dirigiu-lhe algumas perguntas, às quais o humilde peregrino julgou dever responder com toda a simplicidade.

O carinhoso espanhol apenas soube que tinha diante de si Ínigo de Loiola, cuja reputação de santidade se tornara universal, recolheu-o com toda a satisfação, não quis que ele procurasse outro asilo e prestou-lhe todos os cuidados reclamados pelo seu doloroso estado. Não pôde, contudo, impedir os resultados da doença.

No dia seguinte, o nosso herói, apoquentado por grandes sofrimentos de estômago, viu-se assaltado por uma febre ardente, que o pôs em perigo durante alguns dias. Mas, graças aos dedicados cuidados de que era objecto, restabeleceu-se breve e pôde retomar o seu bordão de peregrino para continuar a viagem.

VI. NA CIDADE DAS GÔNDOLAS

Dois espanhóis, chegados da Terra Santa, tinham parado em Veneza com tenção de esperarem a primavera para terem os caminhos mais fáceis e conseguirem tempo mais favorável para voltarem à pátria.

Estes espanhóis eram dois irmãos, ternamente unidos, Estêvão e Diogo de Eguia, que já vimos em Alcalá. Em sua casa tinha Ínigo de Loiola recebido fraternal hospitalidade quando abandonou o asilo dos indigentes daquela cidade, muito afastado da Universidade. Como dissemos, Diogo secundava o nosso Santo com uma generosidade inexaurível em todas as suas obras.

Os dois irmãos estavam em Veneza havia algumas semanas, quando um dia, passeando juntos, viram um peregrino cujo rosto pálido e desfalecido anunciava sofrimento, e cujas roupas indicavam profunda miséria. Diogo deixa escapar um grito de supresa e de contentamento:

- Estêvão, - disse a seu irmão - olha este pobre peregrino ! É o Santo de Alcalá !

- Sim, é ele ! - exclama Estêvão - é realmente D. Ínigo

E ambos, pondo de parte o respeito humano, correm a lançar-se nos braços do indigente e nobre peregrino.

Inácio de Loiola, apenas reposto da doença que o prendeu em Bolonha, partiu para Veneza. Muito fraco, e pressentindo que em breve tempo seria forçado a pôr termo a tão grandes fadigas; quisera fazer esta viagem duma maneira mais meritória ainda do que as precedentes. Estava-se nos últimos dias de Dezembro, o frio era intenso, os caminhos cobertos de neve, a marcha difícil, e o nosso Santo fez todo o caminho de pés descalços. No seu pensamento, esta viagem podia ser a última que lhe seria dado fazer como peregrino mendicante, e quisera efetuá-la em todo o rigor do desprendimento evangélico. Era assim que o nobre Loiola dava entrada na. opulenta Veneza.

A sua chegada a esta cidade, tinha recebido esmolas enviadas pelos seus amigos de Barcelona, que, evitando-lhe a mendicidade, lhe permitiam consagrar todo o tempo às boas obras e aos estudos teológicos, que ainda não terminara.

O encontro com Estêvão e Diogo de Eguia foi para ele uma agradável surpresa; abraçou-os com a efusão da amizade, contente por tornar a ver amigos a quem os seus queridos pobres tinham devido tão numerosos benefícios.

Os dois irmãos vinham de Jerusalém com fundas impressões e um desejo ardente de servir a Deus da maneira mais perfeita. Sentiam-se chamados à vida religiosa; mas qual a ordem em que Deus os queria? Era o que nenhum deles podia reconhecer assaz claramente para tomar uma decisão. O pensamento de que o santo apóstolo de Alcalá seria para eles um anjo condutor nesse labirinto, tornou neles ainda mais viva a alegria de o verem. Submeteram-lhe as suas incertezas; Inácio aconselhou-lhes que fizessem os Exercícios Espirituais; neles foram esclarecidos e ficaram mui resolvidos a associar-se aos trabalhos de Inácio de Loiola; mas ficou combinado com eles que esperassem e só entrassem na sua Companhia depois dela estar definitivamente constituída como Ordem religiosa.

Diogo de Hozez, duma das mais nobres famílias, de Málaga, natural de Córdova, atraído pela doçura, bondade e santidade do nosso herói, uniu-se a ele, consultava-o frequentes vezes, e seguia, com plena confiança, os conselhos espirituais que dele recebia. Um dia advertiram-no, muito em segredo, que devia desconfiar de Inácio, e da sua doutrina; que em Espanha e em França ele fora objecto de gravíssimas acusações; que fora condenado como herético e que era prudente acautelar-se dum homem em quem todas as aparências davam a perceber uma santidade pouco comum.

Diogo de Hozez ia fazer os Exercícios Espirituais, sob a direção de Inácio, quando recebeu esta advertência confidencial. Espírito superior e versado na ciência teológica, pareceu-lhe favorável a ocasião para julgar por si mesmo da ortodoxia do nosso Santo. Encerra-se a pretexto de retiro, rodeia-se de livros de teologia, toma o dos Exercícios Espirituais e examina-lhe escrupulosamente as mais simples expressões. Pouco depois, e mesmo sem se aperceber, suspende o seu trabalho, começa a reflectir, reconhece a obra divina e confessa ao santo apóstolo toda a verdade. Fez então o retiro espiritual com toda a humildade, sob a direção de Inácio, e reconhece-se chamado à vida apostólica na Sociedade de Inácio Loiola. O santo fundador exige que ele tenha tempo de reflectir mais e de se assegurar da vontade de Deus e promete-lhe aceitá-lo se ele persistir no seu desejo.

Tais eram os prodigiosos efeitos dos Exercícios Espirituais. Os frutos que o Santo tirava deles para a glória de Deus eram tão abundantes e tão maravilhosos, que ele queria que os fizessem todos aqueles que lhe eram queridos, todos aqueles a quem era devedor de reconhecimento.

Sem negligenciar os seus estudos teológicos, dava os Exercícios a um grande número de pobres peregrinos, que lhe testemunhavam o desejo de reformar a vida ou abandonar o mundo. O administrador do hospital de S. João e S. Paulo, Pedro Contarini, que foi depois Bispo de Baffo, pôs-se inteiramente sob a sua direção, assim como algumas pessoas da sua família, depois de terem feito este retiro.

Tais vitórias não podiam deixar de irritar o inimigo de Deus e dos homens. A calúnia tinha começado a sua obra surdamente; mas, vendo-se muito mal acolhida numa cidade onde os principais personagens rodeavam Inácio dos seus respeitos e o olhavam como santo, levantou sobranceiramente a cabeça e acusou-o em alta voz de heresia, de sortilégio e de magia. Espalhou por toda a parte a notícia dos processos jurídicos de que ele foi objecto em Espanha e em França; nada desprezou para o perder na opinião, destruir na influência (que a sua santidade lhe tinha conquistado e deter as vitórias sempre crescentes do seu apostolado.

Quem eram os caluniadores de que o público se tornava eco? Ninguém o sabia. Só Inácio o não ignorava.

Era sempre o mesmo; diz-nos o Padre Bartoli, mas, "quando receava ser descoberto, sabia subtrair-se pela fuga às investigações da Inquisição e aos castigos que merecia. Alcalá, Salamanca e Paris tinham sido o teatro das suas façanhas; nesta última cidade, onde não podiam infligir-lhe outra punição, queimaram publicamente o seu retrato".

Inácio não se admira desta nova perseguição suscitada pelo inferno, mas tem necessidade para a sua obra duma reputação ao abrigo de qualquer censura, tanto no seu modo de proceder, como na sua fé. Procura o Núncio do Papa, Jerónimo Veralli, e pede-lhe que mande examinar juridicamente a sua causa. O Núncio anui aos seus desejos e dá unia sentença que proclama altamente a inocência de Inácio e declara os seus acusadores réus de calúnia. O nosso Santo vai :mais longe: manda pedir um atestado semelhante ao Inquisidor de Paris, que se apressa a enviar-lho.

Entretanto, o nosso herói esperava os seus muito amados discípulos. Sabia, por cartas deles, que estavam em caminho para se lhe juntarem, e que esta viagem não era para eles sem perigo. Tornando a guerra entre Francisco I e Carlos V quase impossível a passagem das fronteiras, os peregrinos, em número -de nove, andando sempre, podiam inspirar desconfiança e serem detidos pelas tropas dos dois exércitos. Tinham, pois, necessidade duma assistência contínua do céu.

Esta assistência não lhes faltar; Inácio não cessa de a pedir.