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S. FRANCISCO XAVIER AO PADRE GASPAR
BARZEU
VICE-PROVINCIAL DA COMPANHIA DE JESUS
EM GOA
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Da Baía de Singapura, 28 de Julho de 1552.
Meu querido Irmão
A graça e o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam sempre
convosco! Amém.
Não podereis jamais fazer completa idéia das inquietações e
desgostos que acabo de experimentar em Malaca!
Não podendo narrar-vo-los por minha mão, deixei esse cuidado a
Francisco Peres; por mais incrível que vos pareça a sua
narração, é contudo verdadeira.
Eu parto para as ilhas da China, vizinhas da cidade de Cantão;
parto desprovido e abandonado de todo o socorro humano, mas cheio de
confiança na proteção divina. Espero que os idólatras serão os
que me abrirão o caminho pois que os cristãos mo fecharam, afrontando
audaciosamente as leis da Igreja e a cólera do Céu.
Consegui que o senhor arcebispo expedisse ao seu vigário geral um
decreto de excomunhão; ela deve ser lançada nomeadamente contra o
governador de Malaca e seus cúmplices, que puseram embaraços à
execução de um projecto tão útil à religião. Obtive que esse
decreto fizesse menção da minha qualidade de núncio apostólico nas
Índias e em todos os estados do Oriente, honra que me foi conferida
por Paulo III de gloriosa memória, pelos breves de que o senhor
arcebispo teve conhecimento.
Não procedo deste modo senão pelo interesse da propagação do
Evangelho, a fim de que os esforços dos seus pregadores não
encontrem mais obstáculos na perversidade dos funcionários públicos.
Não seria capaz de solicitar um semelhante ato da autoridade
eclesiástica, contra quem quer que seja, por meu interesse pessoal;
mas vejo-me resolvido a empregar todos os meios para fazer considerar
em toda a parte, como membros expulsos da Igreja, aqueles que
desobedecerem aos decretos dos Santos Padres.
Qualquer que seja a sua desgraça, não consentirei jamais que se use
para com eles de moderação, a fim de que, caindo em si, busquem um
remédio a seus males e para que no futuro não ousem embargar no seu
caminho os nossos Irmãos que, a bem da religião, terão de ir para
as Molucas, para a China ou para o Japão. Não desprezeis,
pois, nada para que esse decreto chegue o mais cedo possível.
Dos quatro companheiros que me seguiram, fiz partir três para o
Japão: Baltazar Gago, Eduardo da Silva, e João de
Alcáçova. A monção era ainda favorável, eles embarcaram em um
bom navio, e Deus queira que cheguem a salvamento a Amanguchi, onde
encontrarão Cosme de Torres e João Fernandes. Não deixei comigo
senão Cristóvão e Antônio, o Chinês; ambos estão muito
pesarosos, tanto pelos seus pró rios desgostos, como pelos meus...
Deus seja louvado em tudo!...
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A Santa Cruz chegara a Singapura [80] e aí se deteve por alguns
dias, dos quais o nosso Santo se aproveitou para escrever várias
cartas, e entre elas encontramos uma dirigida a um neófito japonês,
pobre, ignorante e sem educação; termina por estas afetuosas
palavras: Tu és o amigo do meu coração. O sobrescrito tem a
seguinte direção: A meu filho João; e no reverso; João, meu
filho, joio Bravo te lerá esta carta.
Durante aquela paragem, escreveu também ao seu amigo Diogo Pereira
consolando-o e animando-o; remeteu a seu cuidado as suas cartas ao
vice-rei e a D. João III e esta última aberta, para que Diogo
tivesse conhecimento e julgasse por si do interesse com que a sua causa
era advogada. O Santo recomenda ao seu amigo que envie a sua carta ao
rei por uma pessoa segura, e depois acrescenta:
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"Mas o que vos recomendo especialmente, é que vos lanceis nos
braços de Deus e que tenhais nele uma confiança tanto mais íntima
quanto maiores forem os vossos males. Ali, unicamente, achareis
consolações para as vossas desgraças e força para as suportar.
Peço-vos, em nome de todo o vosso amor a Deus, em nome de toda a
afeição que tendes, que recorrais ao tribunal da penitencia, vos
aproximeis da Mesa Santa, deponhais aos pés da Cruz todos os vossos
ressentimentos, façais o sacrifício à vontade divina, e chegueis a
ter como um bem para vós, todos os acontecimentos que Deus houve por
bem permitir. Esperai, como eu, que esta tempestade não será
senão momentânea e que, longe de vos prejudicar, ela se tornará em
vosso proveito e em vossa honra.
Eu conservo em minha companhia Francisco Vilas, e levo-o comigo
para a China, não somente porque os seus serviços me são
extremamente úteis, mas ainda porque ninguém melhor do que ele para
cuidar dos vossos interesses durante a viagem e auxiliar o vosso
encarregado, Tomás Escandelho.
...Sou de opinião que faríeis bem se dirigísseis ao rei um
memorial circunstanciado sobre as vantagens prováveis de um comércio
entre a China e Portugal, por meio de uma feitoria que os ministros
do rei procurariam obter em Cantão. Quisera que fizésseis remeter
um memorial semelhante ao vice-rei das Índias, porque eu, por meu
lado, escrevo a Sua Alteza sobre o mesmo assunto. Ajuntai o vosso
memorial à minha carta, sob' a mesma capa, com este sobrescrito:
Ao rei nosso senhor, da parte do Padre mestre Francisco. Mas não
confieis este maço, que deve ser entregue ao rei em pessoa, senão a
um homem duma fidelidade provada, e duma autoridade e mérito
reconhecidos...
O vigário geral de Malaca pediu-me que escrevesse por ele a Sua
Alteza; eu satisfaço os seus desejos, conquanto ele nada tenha feito
do muito que poderia fazer no interesse da nossa embaixada à China,
ou antes a bem da religião que ele sacrificou o favor de D.
Álvaro... Engana-se completamente quem põe de lado Deus, o
autor, a origem de todo o bem, para firmar as suas esperanças nos
homens!...
Quanto a mim, vingo-me daqueles de quem tenho de me queixar,
prestando-lhes todos os serviços que posso. Deus saberá
infligir-lhes a punição que merecem, e vós mesmo, meu caro amigo,
sereis testemunha dos castigos que a justiça divina lhes reserva.
Tenho piedade deles, confesso-vos: temo que as desgraças que os
ameaçam lhes pareçam algum dia muito rigorosas".
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O capitão da Santa Cruz saiu de novo ao mar a 23 de julho. O
pessoal da embarcação compunha-se de quinhentos homens,
compreendendo os passageiros. A navegação foi feliz durante muitos
dias; esperava-se chegar assim, sempre levados por boxe vento,
quando, mui próximo do termo daquela longa viagem, se declara
subitamente uma calmaria podre que faz parecer que o navio se conserva
ancorado.
Prolongando-se esta calma por muitos dias, viam-se ameaçados de
falta de viveres e sobretudo de água, que já se começava a recusar,
além duma certa medida fixada para cada um; mas qualquer que fosse a
economia desta distribuição, continuando a durar a calma, faltou
totalmente a água, os doentes eram numerosos, e o vento não
voltava.
Cada homem que morria era. lançado ao mar, e cada um esperava a sua
vez, porque todos se sentiam morrer devorados pela sede, mais cruel
ainda do que a fome.
Tinha sido enviada a chalupa em descoberta de alguma ilha onde se
pudesse fazer aguada... Ao sexto dia não tinha ainda voltado!
Chega finalmente ao sétimo. Cada um se arrasta à amurada,
esperando descobrir algum sinal do resultado, antes da abordagem...
Ela nada trazia! Tinha estado à vista da ilha Formosa, mas não
pudera aí chegar; toda a esperança estava pois perdida!...
Achavam-se à capa, havia catorze dias. Um dos passageiros propõe
aos seus companheiros de infortúnio irem suplicar ao Padre Francisco
para obter de Deus um pouco de água para não morrerem...
- Sim! sim! respondem todos a uma voz, com o coração cheio de
esperança; sim! o santo Padre nos salvará! Deveríamos ter-lho
pedido muito antes! Vamos todos!
E aqueles pobres doentes recorrem a Francisco Xavier.
- Santo Padre Francisco! tende piedade de nós! Vós podeis
dar-nos água! Pedi a Deus, ele não vos recusará!
- Pois bem! respondeu ele, recitemos juntos as ladaínhas dos
Santos, a fim de que eles nos obtenham o que desejamos.
Quando esta oração terminou, disse-lhes:
- Ide, tende confiança. nos merecimentos de Jesus Cristo, pelos
quais tudo se pode obter.
Em seguida, recolhe-se por alguns instantes; depois, voltando à
ponte, toma pela mão um menino, desce com ele à chalupa, e
ordena-lhe que prove a água. do mar. O menino prova e rejeita-a
- Que gosto tem esta água, meu menino? pergunta o nosso Santo; é
doce ou salgada?
- É tão salgada, meu Padre, que eu não pude bebé-la.
- Prova-a de novo, meu querido menino.
- Oh! como é boa! Não está já salgada, meu Padre!
Xavier fez logo fornecer a embarcação, e cada qual, oprimidos pelos
ardores da sede, empenhava-se em fazer encher os copos.
O primeiro que levou a água aos lábios achou-a salgada: mas o
Santo fez o sinal da cruz sobre o copo, e a água tornou-se excelente
no mesmo instante. Nunca, diziam os marinheiros, haviam encontrado
água com tão agradável gosto.
Os árabes maometanos, passageiros da Santa-Cruz, esclarecidos por
aquele prodígio, pedem o batismo; um só, conquanto intimamente
convencido, faz exceção: não podia confessar-se cristão na sua
pátria, e conserva-se infiel. Poucos dias depois, o seu único
filho, de idade de cinco anos, brins cando muito próximo da amurada,
cai ao mar, e nenhum esforço humano o pôde salvar. O pai
encerrou-se por três dias com o seu desespero, e tornou a aparecer,
mas sempre inconsolável. As doenças ocasionadas pela falta de água
tinham matado tanta gente, que, marinheiros e passageiros, ocupados
de seus pesares pessoais, pouca atenção haviam prestado àquele
acidente.
Os árabes, além disso, não se comunicavam com os portugueses e
coxas os índios, entre os quais a maior parte ignorava a perda do
menino.
O Santo apóstolo, retirado em uma câmara no momento daquela
desgraça, ignorava-a também, e vendo o pobre infiel desfeito em
lágrimas, pergunta-lhe, com a sua ordinária bondade, o motivo de
tão grande dor. O infeliz pai desfaz-se em soluços:
- É, respondeu um marinheiro, porque ele perdeu há dias um seu
filho; caiu ao mar.
A desesperação do árabe parece redobrar então, os seus gritos
penetram o coração de Francisco Xavier, que toma afetuosamente a
mão do pobre pai e lhe pergunta com a sua meiga voz:
- Prometeis-me crer em Jesus Cristo e submeter-vos à sua lei, se
Ele vos restituir vosso filho?
- Oh! sim, prometo! Sim! eu serei cristão... Mas passaram
já três dias!... É impossível!... Temos avançado tanto
depois disso!... Ele está bem longe! meu pobre filho...
- Tende confiança em Deus e em Jesus Cristo seu Filho, replicou
o nosso Santo; pedi-lhe que vos restitua vosso filho, e
prometei-lhe reconhecer a sua lei e abraçá-la de todo o vosso
coração.
Três dias depois, antes de nascer o sol, achavam-se sobre o convés
somente os marinheiros de serviço... Dão um grito de
surpresa... O filho do árabe, aquela criança que eles tinham
visto desaparecer entre as ondas, seis dias antes, esta ali, a
alguns. passos!... É ele!... interrogam-no. A criança nada
sabe: lembra-se somente que caiu ao mar, mas não sabe como voltou
para o navio: é tudo quanto pode dizer.
O pai louco de alegria e fiel à sua promessa, pede o batismo para
si, para sua mulher, seu filho é seu escravo. O menino recebeu o
nome de Francisco, em lembrança daquele a quem devia a vida.
Em seguida surgem no ancoradouro da ilha de Cinchea, a equipagem
comunica aos insulanos e aos mercadores estrangeiros, que aí estavam
em grande número, os dois grandes milagres operados em alguns dias
pelo apóstolo das Índias;, mostram. o menino ressuscitado e a água
do mar tornada tão doce e tão agradável que se não conhecia outra
comparável; acrescentam que muitos marinheiros e passageiros a
conservam em memória do prodígio de que tiveram a felicidade de ser
testemunhas, e também ela esperança de que ela curava os doentes,
pois que, nas pela se viram curas maravilhosas operadas pelos objetos
que o santo Padre havia tocado.
Todos os habitantes de Cinchea se dirigem em multidão à praia para
verem, ao menos de longe, o Santo de quem lhes diziam tão
admiráveis coisas; mas de sessenta maometanos, índios e etíopes,
desejosos de o vexem de mais perto, vão a bordo do Santa Cruz que o
nosso Santo não deixara e encontram-no sobre a ponte.
Francisco Xavier, penetrado do espirito divino, acolhe-os coxa o
olhar inspirado que subjugava as massas, e anuncia-lhes as verdades
cristãs com um poder de palavra que os faz cair a seus pés solicitando
a graça do batismo. O grande apóstolo, comovido pelas suas
instâncias e pela ardência da sua fé, concede-lho
imediatamente...
Então um novo prodígio, um prodígio desconhecido, fixa a atenção
das inumeráveis testemunhas reunidas na praia. Enquanto o ilustre
Xavier dá a Jesus Cristo a conquista que acaba de fazer em seu
nome; enquanto imprime o selo. do Cristianismo nas frontes, que se
abaixam diante dele, o seu corpo eleva-se a proporções
sobrehumanas! Os homens que o cercam parecem umas crianças ao pé
dele! Um grito uníssono se deixa ouvir sobre a praia, todos se
ajoelham sobre a ponte do navio; mal se crê o que se vê. Estêvão
Ventura, que se achava no meio da multidão, destaca.-se dela e vai
para bordo do Santa-Cruz... O santo apóstolo tinha os pés sobre
a ponte do navio, a sua prodigiosa elevação tinha uma causa
sobrenatural de que ele não podia duvidar.
Depois da cerimônia do batismo, Francisco Xavier reapareceu a todas
as vistas na sua estatura natural, sem que ninguém, entre as
numerosas testemunhas que se achavam sobre a ponte, se apercebesse do
momento da transformação, de modo a poder dizer como ela se havia
operado. Tinham-no visto maior que um gigante enquanto baptizava e
viam-no com a sua própria altura depois do batismo; era. o que
podiam afirmar. Deus acabava de mostrar assim quanto era grande, para
ele, o apóstolo que escolhera para levar o seu nome aos extremos do
Oriente.
Deixaram Cinchea e dirigiram-se para Sancião donde sabiam
acharem-se próximos, mas temiam que se tivessem enganado na
direção; o capitão mandou a chalupa reconhecer a costa que tinham à
vista: três dias se passaram sem que a embarcação voltasse, e
supunham-na por isso levada pelo tufão e quebrada contra algum
escolho:
- Traqüilizai-vos, dizia Xavier, a chalupa está em bom estado,
ela há-de voltar trazendo-vos provisões da ilha de Sancião, da
parte dos portugueses; e muitas embarcações que ali estão no
ancoradouro virão também ao vosso encontro.
A chalupa voltou no quarto dia, carregada pelos portugueses de
provisões de boca, e muitas embarcações metam ao encontro da
Santa-Cruz que levava o Padre querido de todos os portugueses do
Oriente.
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