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Toda a cidade de Meliapor conhecia pela reputação o nosso Santo;
causou por isso um movimento geral a sua chegada ali. Gaspar Coelho,
vigário da paróquia de S. Tomé, veio pedir-lhe instantemente que
aceitasse a sua casa e não teve dificuldade em o conseguir, porque o
presbitério se achava ligado à igreja onde estava o túmulo do
primeiro apóstolo das Índias, e Xavier lembrou-se que poderia ali
passar uma parte das noites.
Reclamavam já o seu ministério, e com o zelo que lhe conhecemos,
previa ele já que os seus dias seriam absorvidos pelos trabalhos
apostólicos, em vista do deplorável estado de relaxação de costumes
em que se achava a cidade de Meliapor.
Logo nos primeiros dias da chegada, fez ouvir a sua poderosa voz
sempre abençoada, sempre apoiada pela mais eminente santidade de
vida, e logo também nos primeiros dias viu-se cercado dum grande
número de pecadores que a sua palavra havia esclarecido e convertido.
A exaltação do povo chegou a ponto de se propalar o boato de que
todos aqueles que resistissem às exortações do santo Padre morreriam
como réprobos; citavam-se até exemplos horrorosos, e o número de
pecadores crescia em torno do santo Padre para ouvir as suas
prédicas, para aliviar a sua consciência e para procurar a paz da
alma a fim de serem admitidos à graça de Deus.
Alguns pecadores, contudo, - mas em mui pequeno número-, evitavam
ver e ouvir o santo Padre, a quem ninguém resistia.
Um deles, rico fidalgo português, cujas devassidões eram o maior
escândalo da cidade, fugia de Xavier com tanto maior cuidado, quanto
mais conhecido ele se tornava. Um dia, no momento em que ia à mesa
do jantar, o Padre Xavier apresentou-se em sua casa
- D. Jacinto, lhe disse ele afavelmente, desde a minha chegada,
aqui, desejo ver-vos e não vos encontro em parte alguma!
- Meu Padre...
- Eu tenho pouco tempo de meu, não posso fazer visitas e venho
pedir-vos de jantar; aceitais-me, não é assim? Não achei outro
meio de vos ver.
- Certamente... meu Padre... é uma grande honra para mim,
balbuciou D. Jacinto.
Xavier foi amável, insinuante, jovial, espirituoso, atraente como
o era sempre que a glória de Deus e a salvação duma alma o chamava,
porém não falou absolutamente nada ao seu hospedeiro dos escândalos
da sua culpável vida.
Jacinto via-se confundido. Perguntava a si mesmo como era que um
Santo como o Padre Xavier, que nunca deixava escapar uma só
ocasião de conquistar uma alma, e que buscava os pecadores com
tamanhas fadigas e. um tão ardente zelo, não lhe dissesse uma
palavra sequer com relação à sua consciência. A sua admiração
cresceu ainda quando viu que o amável Santo o deixava e se retirava
com a mesma afabilidade que mostrara à chegada.
Então operou-se na sua alma uma perturbação inexplicável;
Jacinto, oprimido pelo pensamento de que o apóstolo havia julgado
inútil ocupar-se da sua salvação, porque o supunha incorrigível,
não gozou um só instante mais de repouso, e resolveu-se a ir
procurar o santo Padre.
- Meu Padre, lhe disse ele, o vosso silêncio confundiu-me!
Será porque me olheis como um réprobo que nunca obterá o perdão dos
seus pecados?
- Certamente que não, caro senhor. E porque razão? - Viestes a
aninha casa, meu Padre, e nem uma palavra me dissestes com respeito
à minha consciência!...
- Ah! vós não me teríeis escutado! Preferi guardar
silêncio...
- Oh! meu bom Padre, foi este silêncio que me perturbou. Não
tenho tido um só momento de descanso depois da vossa visita; sou o
mais desgraçado dos homens! Se é tempo ainda, -meu caríssimo
Padre Francisco, não me abandoneis!
- Sempre é tempo de recorrer à misericórdia infinita de Deus,
querido senhor; porém vós tendes grandes sacrifícios a fazer para
pôr em ordem a vossa consciência...
- Farei tudo que quiserdes, meu bom Padre! Tudo sacrificarei,
obedecer-vos-ei cegamente, uma vez que não desespereis da minha
salvação.
O Santo ouviu-lhe uma confissão geral, e Jacinto completamente
regenerado na sua vida, veio a ser um fervoroso e exemplar cristão.
Os prodígios acompanhavam por toda a parte o grande Xavier. Bento
Cabral, mercador português em Meliapor, achando-se de partida para
Malaca, foi pedir-lhe a sua bênção e suplicar-lhe que lhe desse
em lembrança um objecto qualquer que ele pudesse conservar.
- Eu nada tenho, respondeu-lhe o humilde Santo; não vos posso dar
mais que este rosário, que vos será útil, se tendes confiança em
Maria.
Bento embarcou e o seu navio quebrou-se contra um rochedo; todos os
passageiros e a maior parte dos marinheiros desapareceram submergidos,
e os outros salvaram-se sobre uma rocha à flor da água; o mercador
está entre eles com o seu rosário na mão. Eles reúnem algumas
pranchas, restos do navio quebrado, e lançam-se nelas à mercê da
Providência!
O nosso mercador não largava o seu rosário; invoca a Estrela do
Mar, oferece os, méritos do santo Padre Xavier e perde o
sentimento e o conhecimento da sua situação. Não supõe que se acha
no mar, supõe-se em Meliapor junto do santo Padre, julga estar a
falar-lhe e a ouvi-lo... E eis que de repente torna a si...
Vê-se em terra, sobre uma costa que lhe parece desconhecida e cujo
nome pergunta aos estranhos que o cercam, porque os marinheiros, seus
companheiros de infortúnio, não estão a seu lado. Respondem-lhe
que está 'em Nagapatão, e ele publica, com todo 0 entusiasmo do
seu elevado reconhecimento, a maneira milagrosa como foi salvo das
ondas.
O navio de Jerónimo Fernandes de Mendonça fazia toda a sua
fortuna, e aquele navio foi aprisionado pelos corsários do- Malabar
em frente do cabo Comorim. Jerónimo, para salvar a sua vida,
lança-se ao mar, ganha, a nado, a costa de Meliapor e ali encontra
o santo Padre a quem expõe a sua cruel situação.
- Se eu pudesse lastimar-me por ser pobre, respondeu-lhe o
caritativo apóstolo, lastimá-lo-ia neste momento! Mas tende
coragem, meu caro amigo! A divina Providência não vos
abandonará, ela virá em vosso auxílio.
Dizendo isto, o Padre Xavier revolvia a sua algibeira, e como
penalisado de nada achar nela, dirigiu um olhar suplicante para o Céu
e afastou-se alguns passos orando. Torna a meter a mão na
algibeira, e voltando-se para Jerónimo, diz-lhe:
- Caro senhor, tomai isto, o Céu vo-lo envia, aceitai, mas não
digais nada a ninguém!
E dava-lhe cinquenta ducados de oiro. Jerónimo Fernandes, ébrio
de alegria, por ter com que restabelecer os seus negócios e por ser
devedor daquela fortuna a um milagre da Providência, empenhou-se em
o fazer publicar, não obstante a oposição do santo Padre. Deus
quis que o prodígio não pudesse ser contestado, porque aquelas peças
de oiro foram reconhecidas como de uma matéria mais pura e de maior
valor que a de todas as moedas em circulação nas Índias.
A grande santidade de Xavier produzia em Meliapor tão salutar fruto
como a sua palavra, e a cidade inteira reformava-se com um empenho bem
consolador para o coração do apóstolo amado de Deus.
Uma das mais satisfatórias conversões para ele, foi a de João de
Eiro que depois de haver servido na armada portuguesa, se enriquecera
no comércio das Índias, conquanto não tivesse ainda senão trinta e
cinco anos. Veio um dia procurar o santa Padre e disse-lhe:
- Meu Padre, venho comunicar-vos um pensamento que me preocupa há
muitos dias. Eu desejava servir a Deus o mais completamente
possível, mas a pobreza aterra-me; permiti, pois, que me una a
vós, que vos acompanhe por toda a parte, e que tome parte em todos os
vossos cuidados; eu vos auxiliarei da melhor vontade nas vossas
missões.
- Não está nisto a perfeição evangélica, respondeu-lhe
Xavier. Lembrai-vos do conselho dado por Nosso Senhor Jesus
Cristo ao jovem do Evangelho que lhe perguntou o que deveria fazer
para ser perfeito: Se quereis ser perfeito, lhe disse o divino
Salvador, vendei tudo quanto tendes e dai o seu valor aos pobres.
- Pois bem, meu Padre, dar-vos-ei tudo que tenho e vós o dareis
aos pobres.
- Não é também desse modo que isto se deve levar à execução.
Examinai primeiramente a maneira como vos enriquecestes nos vossos
negócios. Pode acontecer que encontreis algumas restituições
necessárias; preparai-vos a fazer uma boa confissão geral, e com a
vossa consciência purificada por esta confissão e pelas
restituições, obtereis mais facilmente a graça de conhecer a vontade
de Deus para convosco.
João de Eiro submeteu-se à direção de Xavier; mas bem depressa
a pobreza tornando-se-lhe intolerável, fretou misteriosamente uma
pequena embarcação e dispunha-se a partir, às ocultas do santo
Padre, a fim de recomeçar as suas empresas comerciais, quando o
catequista Antônio veio ter com ele e disse-lhe
- Senhor João, vinde depressa falar ao Padre Francisco; ele
espera-vos.
- Enganais-vos, Antônio; é algum outro João que o Padre
procura, não pode ser comigo.
- Sois vós mesmo, por que ele me disse: João de Eiro; é
urgente, vinde depressa!
Ei-lo, algum tanto desconcertado, e temendo que o Santo, sempre
esclarecido por Deus, conhecesse já o seu plano secreto satisfez ao
chamamento que lhe era feito.
- Vós pecastes! disse-lhe Xavier, logo que o viu.
- É verdade, é verdade, meu caro Padre! pequei; cedi a uma
violenta tentação de voltar ao meu comércio!
- Penitência, pois, meu amigo, penitência! lhe respondeu o
apóstolo levantando-o e abraçando-o.
Porque Eiro, não podendo sustentar a suavidade e a penetração do
angélico olhar de Xavier, se prostrara a seus pés. Rendeu-se de
todo contrito da sua falta, confessou-se, tratou em seguida de vender
tudo quanto possuía, deu toda a sua importância aos pobres,
reuniu-se ao santo Padre, e o seguiu na qualidade de seu catequista.
Antes de largar Meliapor, onde ia deixar tão gratas recordações,
escrevia o nosso Santo à Companhia de Jesus, em Goa, a 8 de
Maio de 1545:
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"...Opondo-se os ventos à minha volta, fui para Meliapor.
Ali, sobre o túmulo do santo Apóstolo não cessei de pedir a
Deus, por sua intercessão, para que me faça conhecer a sua divina
vontade, à qual estou resolvido a ser fiel, com o auxílio da sua
graça, por qualquer preço que seja Aquede que dá o desejo, dá os
meios de o cumprir. Deus, na sua infinita misericórdia, lembrou-se
do seu indigno servo, pois que eu sinto repentinamente a alma expandida
pela alegria, o coração inundado de delícias, e reconheci que Deus
me chamava a Malaca e dali para Macassar...
O Padre Francisco Maneias está em Comorim com alguns Padres do
Malabar; o seu zelo é tal, que a minha presença ali é inútil.
Os Padres que têm passado a estação das chuvas em Moçambique e
aqueles que vieram neste ano de Portugal, poderão ir para Ceilão
com os príncipes e senhores daquele país, que para ali voltam.
Quanto a mim dirigir-me-ei para Macassar, com a esperança de que
Deus protegerá a minha coagem, pois que foi ele que me inspirou esta
resolução, e que em prova de que é de seu agrado encheu a minha alma
duma abundância de delícias!
Estou tão convencido da vontade de Deus, que se eu retardasse a
execução deste projecto, somente por alguns instantes,
julgar-me-ia em guerra aberta com o Céu!
Não me atreveria a esperar mais nada da sua soberana bondade, nem
nesta vida, nem na outra. Assim, na falta de navio mercante
português, acho-me decidido a embarcar em um barco de pagãos ou
Sarracenos.
Tenho tão grande confiança em Deus, cujo amor somente para ali me
leva, que sem hesitar, com o único bafejo do Espírito Santo,
afrontei todas as tempestades do Oceano na mais débil barca. As
minhas esperanças não se acham ligadas nem às velas, nem às
âncoras, nem aos marinheiros. Deus unicamente! eis o meu piloto,
eis a minha âncora de misericórdia e de salvação!
Ah! meus queridos irmãos, orai, orai constantemente por mim,
miserável pecador! Não me esqueçais nas vossas orações diárias,
nos vossos santos sacrifícios; recomendai-me a este Deus tão cheio
de bondade! É em seu nome que eu vos rogo...".
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O que poderíamos dizer do zelo do nosso admirável apóstolo que não
estivesse muito abaixo desta ardente e magnífica expansão da sua
alma?!...
Ele não pôde partir tão depressa como desejava, e conservou-se em
Meliapor até aos princípios de Setembro, e só então embarcou para
Malaca, deixando em lágrimas a população que acabava de reformar,
e cuja vida se tornara tão edificante, que ao deixar a cidade disse:
"Meliapor é uma cidade das mais cristãs; Deus a abençoará: em
poucos anos ela virá a ser uma das mais ricas e florescentes cidades de
toda as Índias!"
E aquela predição cumpriu-se, poucos anos depois.
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