JESUÍTAS COMO BRAHMANES E YOGIS

A morte inedira Xavier de realizar o seu grande plano, mas a obra começada por ele iria, a despeito disso, ser continuada com, sucesso admirável. Pois, de repente, surgiu em lugar do falecido uma turba imensa. Dezenas e centenas de missionários jesuítas alimentavam o propósito de alcançar aquilo que Xavier não pudera mais completar; cada qual estava inulsionado pelo mesmo fogo de entusiasmo, e cada qual possuía de igual maneira a aptidão para ser comerciante com o comerciante, soldado com o soldado, conselheiro com o príncipe, com o escravo amigo e confidente, capazes de defrontar os orgulhosos japoneses com altivez e de vencer os eruditos bonzos em debates dialéticos. Por toda a parte onde os portugueses haviam sido dominados pelo vício, onde hindus, malaios e japoneses veneravam os ídolos, apareceram os missionários jesuítas com o intuito de pregar a religião cristã. Infatigáveis, dispostos ao sacrifício, adaptáveis e atilados eram todos eles; se um tinha que abandonar o posto, fosse por se ter tornado velho e cansado, fosse que de Roma lhe tivessem destinado uma outra tarefa, mas fosse também por o terem metido na prisão ou o haverem martirizado até a morte, então um outro, imediatamente, tomava o seu lugar, e se mostrava sempre igualmente corajoso, inteligente e astucioso, como o fora o seu predecessor. Durante anos a fio os missionários jesuítas haviam se substituído uns aos outros, em todos os continentes e, não obstante, tinha-se a impressão de que, desde os dias de Xavier até à nossa época, por detrás de numerosas máscaras que mudavam sempre, conforme a diversidade dos países e costumes, se ocultasse sempre o mesmo rosto.

Em Ormuz, na fronteira indo-pérsica, caminhava agora o padre Barzeus, pelas ruas afora, enunhando a canainha. Nessa cidade famosa pela sua riqueza encontravam-se mercadores de todas as raças e credos: persas, judeus, brahmanes, jainas, parsis, turcos, árabes, cristãos armênios, gregos, italianos e portugueses. Barzeus sabia conquistá-los a todos. Os comerciantes vinham atrás dele em busca de conselho para os seus complicados assuntos de negócios; mas com os judeus sabia ele ser judeu, de sorte que os rabinos foram tomados de enorme admiração pelo grande saber talmúdico deste padre cristão e no fim de contas, convidaram-no para que viesse às suas sinagogas afim de interpretar os livros sagrados diante da comunidade inteira.

Os maometanos, por sua vez, viram em Barzeus, dentro de pouco tempo, precisamente um novo profeta e, quando ele, uma vez, apareceu em suas mesquitas, levantaram-no por sobre os seus ombros e festejaram-no como o batista João redivivo. Barzeus soube conquistar até mesmo a confiança dos brahmanes, visitando-lhes os templos e discutindo ali com os mais doutos entre eles a respeito das analogias existentes entre a doutrina da Trindade cristã e a hindu. Por fim Barzeus se viu obrigado a organizar um programa semanal em perfeita forma: às quintas feiras pregava ele para os maometanos; aos sábados para os judeus, às segundas-feiras para os brahmanes e nos dias restantes para os cristãos.

Já Xavier havia sido inteirado por um sábio hindu de muitas cousas referentes aos brahmanes. “ Ele me desvendou sob sigilo” , escreveu Xavier nessa ocasião, “ que a verdadeira doutrina deve permanecer sempre em rigoroso segredo... Há uma língua secreta que serve para o ensino, como entre nós o latim. Ele me enumerou, exatamente, os mandamentos dessa doutrina e me deu sobre cada um deles uma boa explicação...”

Essas indicações, porém, haviam produzido em Xavier uma pequena impressão apenas; ele continuava vendo a sua tarefa mais importante na Índia no fato de se dedicar, sobretudo, aos escravos e pescadores de pérolas, ao exército de pobres e deserdados, que pareciam especialmente acessíveis à doutrina de salvação do cristianismo. Ele não conseguira perceber, de nenhuma maneira, a verdadeira significação do bramanismo: “ Existe aqui uma raça de homens que se denominam brahmanes... É a raça mais abjeta do mundo.” Assim escreveu ele uma vez aos seus irmãos da Ordem. Os discípulos, no entretanto, que operavam na Índia depois de sua morte, já reconheceram mais claramente quão pouco prometia o grande sucesso da catequese junto a pescadores, escravos e mesmo príncipes, enquanto a casta dos brahmanes permanecesse fechada ao cristianismo. Pois esses jesuítas já apreciavam agora a enorme inortância do sistema hindu das castas, coisa que Xavier ainda não percebera por completo; se não se conquistarem as castas mais elevadas, então os resultados conseguidos junto às castas mais baixas poderão ficar isolados e não ser de duração. Mas os brahmanes assumiram em face do cristianismo uma atitude extraordinariamente desconfiada; os colonizadores e soldados portugueses que se confessavam adeptos dessa religião, de acordo com os conceitos hindus, só podiam ser considerados párias, pois comiam carne, bebiam vinho e conviviam indistintamente com todas as castas, ao passo que o brahmane já se sentia contaminado, se porventura caísse sobre ele a sombra, apenas, de um pária.

Assim sendo os brahmanes tinham que ver também nos sacerdotes cristãos, párias, e a passagem para o cristianismo parecia-lhes equivalente à perda da casta. O missionário jesuíta Roberto de Nobile, sobrinho do cardeal Belarmino, e rebento de uma antiga família da nobreza italiana, foi o primeiro a tomar a peito também a conversão dos brahmanes, defrontando-os ele mesmo como brahmane. Quando ele, depois de longa preparação, apareceu na cidade de Madura, na Índia Meridional, não se assemelhava em nada àqueles irmãos da Ordem, que trafegavam pelo país metidos em sotainas molambentas, que ouviam em confissão os pobres e escravos nos hospitais e corriam às aldeias de pescadores com a canainha na mão.

Igual aos hindus de castas elevadas usava ele uma comprida vestimenta de lã amarelada, um turbante e sandálias de madeira, quando os brahmanes lhe perguntavam se ele não era português, repelia essa conjectura com orgulho ofendido e declarava que era um príncipe romano e brahmane; somente a admiração que nutria pelos irmãos da Índia, de cuja profunda sabedoria ouvira falar em sua pátria, o induzira a vir até ali. Dentro em breve os brahmanes reconheceram que não somente o vestuário e a atitude do estrangeiro correspondiam em absoluto às de sua casta, mas que ele também observava, de maneira rigorosíssima, os mandamentos e proibições da doutrina hindu.

Da mesma maneira que eles, nunca o padre cristão comia carne, não tocava em vinho e vivia exclusivamente de arroz, leite, legumes e água. Ele se instalou no bairro distinto dos brahmanes e rodeou-se de uma criadagem puramente brahmânica. Nunca dirigia ele a palavra a um pertencente às castas mais baixas; sim, ele evitava até mesmo, de maneira escrupulosíssima, todo e qualquer convívio com os sacerdotes brancos que, metidos em suas batinas molambentas, se esforçavam pela salvação das almas dos párias. Mas o que os brahmanes sobretudo admiravam nele era o conhecimento extraordinário de sua própria sagrada doutrina. Nobile dominava a sua língua fluentemente e quase que sem nenhum sotaque estrangeiro, sabia também ler os mais difíceis textos sanscriticos e sobrepujava os sacerdotes mais eruditos, introduzindo em todas as discussões religiosas e filosóficas uma imensidade de citações tiradas das grandes obras da poesia nacional.

Escutavam eles o missionário com verdadeiro fervor, quando ele recitava com a entonação de um sábio retirado do mundo, frases dos Vedas, dos Apastamba-Sutras e das Puranas; além disso redigia ele mesmo em sânscrito, eruditos escritos de edificação e os traçava depois em folhas de palmeiras. Muitas vezes extasiava ele os seus ouvintes também com a recitação de cânticos hindus, pois ele conhecia as mais antigas “ragas” e sabia variá-las, magnificamente, durante horas a fio, de acordo com todas as regras da arte. Dera ele provas tão irretorquíveis da sua extraordinária cultura, que os brahmanes não ousaram mais duvidar um só instante da veracidade de suas palavras, quando ele, então, vinha a falar, ocasionalmente, sobre as concordâncias existentes entre as sagradas escrituras da Índia e a doutrina cristã. No fundo, explicava ele, tratava-se, numa e noutra, do mesmo credo, com a diferença apenas de que o cristianismo constituía um desenvolvimento e um aperfeiçoamento do sistema religioso brahmânico. Dentro em breve já não havia em Madura mais nem um brahmane que não tivesse visto em Nobile um seu igual, e muitos já acreditavam que esse estrangeiro era até mesmo mais perfeito do que todos eles.

Os que assim pensavam já estavam de bom grado inclinados a seguir o exemplo de um homem tão piedoso e sábio e, mais ainda a se tornar “ brahmanes-cristãos”. Assim é que Nobile conseguiu alcançar aquilo em que todos os outros missionários haviam fracassado; um grande número de hindus ilustres, pertencentes às castas mais elevadas, fizeram-se batizar e, daí em diante, a ninguém mais era lícito afirmar que o cristianismo fosse uma religião boa apenas para os párias. Mas a princípio parecera que esse grande sucesso tivesse de só ser conrado à custa do sacrifício da atividade missionaria junto às castas mais baixas; pois Nobile vinha evitando rigorosamente todo e qualquer convívio com eles. Entretanto ele mesmo achou, dentro em breve, uma solução para esse complicado dilema; sabia ele que havia na Índia uma classe de homens que podiam entrar em contato com todas as outras castas, sem se inurificarem; eram eles os yogis, os penitentes. Em conseqüência disso propôs ele aos irmãos de sua Ordem que, a partir daí, se dividissem em dois grupos separados de missionários, dos quais um tinha que aparecer como formado de brahmanes e o outro como de yogis. Enquanto Nobile mesmo, também, daí por diante, continuou convivendo apenas com seus amigos brahmânicos, um belo dia apareceu o jesuíta Da Costa, envergando o traje de um yogi e, em breve, seguiram-no outros yogis jesuítas, que tinham em vista, agora, também, conversões entre as castas inferiores. Sucedeu assim que a missão em Madura tomou rapidamente um grande incremento. Quando Nobile abandonou o seu cano de trabalho, havia nessas regiões mais de quarenta mil nativos convertidos, entre eles um grande número de brahmanes. Dos nove missionários que continuavam a atuar em Madura sete se intitulavam yogis e dois se intitulavam brahmanes. A maioria deles dominava o sânscrito com grande perfeição e, da mesma maneira que Nobile, conheciam os sagrados livros hindus com tanta exatidão que, em toda a parte, passaram a ser considerados como doutores em escritura, bastante sábios. Nessa ocasião o padre Calmete, um desses missionários, pode escrever para Roma, com ar triunfante: “ Desde que os Vedas se encontram em nossas mãos, extraímos deles certas passagens que servem para convencer os pagãos das verdades fundamentais aquelas, que deverão destruir a sua idolatria; pois a unidade de Deus, os atributos do verdadeiro Deus e o estado de bem-aventurança e condenação, tudo isso está contido nos Vedas.