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Era meia-noite; todos dormiam em Jafanapatão depois de um dia de
vivas agitações e de cruéis angústias; reinava a tranquilidade por
toda a parte; a lua inundava o espaço com a sua suave luz, as
estrelas cintilavam no céu; era, finalmente uma das mais belas noites
das regiões tropicais.
No vale, do lado ocidental da cidade, a meia encosta, na extremidade
duma floresta de caneleiros, ouviu-se um ligeiro rumor, e um homem,
que pelo traje e pela cor fácil era reconhecer-se por um europeu,
saiu da floresta, olhou à direita e à esquerda, escutou como se
temesse alguma surpresa, e seguro, sem dúvida, pela sua
observação, desceu a vereda que separava a floresta duma vasta
plantação de canas de açúcar, cujas altas -varas o encobriam
completamente.
Chegado à base da colina, e entrando num terreno quase descoberto,
dirigiu-se a uma árvore que parecia conhecer, e pôs-se a cavar a
terra com toda a atividade, suspendendo o trabalho de espaço a espaço
para enxugar a fronte, observar de novo e prestar ouvidos por alguns
momentos.
Aquele trabalho foi longo porque o estrangeiro não estava, por
certo, habituado àquela espécie de fadiga. Quando conseguiu cavar
na extensão e profundidade das dimensões que pretendia, afastou-se
alguns passos do sítio; ajoelhou e inclinando-se para o solo
ergueu-se logo, levando nos braços o cadáver dum índio. Ainda
havia sangue no cadáver!...
O estrangeiro beijou aquele sangue, levou o índio morto para a cova
que acabava de abrir, tornou a deitar a terra que extraíra, orou
alguns momentos, e tomando de novo pela vereda por onde viera,
desapareceu na floresta.
Algumas horas depois, cada um voltava à sua vida habitual, e os
primeiros índios que passaram próximo do terreno onde o estrangeiro
enterrara o cadáver fizeram ouvir gritos de surpresa que atraíram de
muito longe todos os insulares disseminados pelos campos. Estes por
sua vez também soltam altos gritos; a grande nova espalha-se pela
cidade, o rei é sabedor, tudo corre ao vale ocidental, e os gritos
crescem com uma espécie de frenesi satânico.
Sobre a terra removida de fresco, via-se distintamente estampado o
sinal duma cruz; esta marca era tão perfeita que não parecia ser obra
de homem; daí os gritos de raiva do povo pagão excitado pelos
brâmanes que viam naquela aparição um infalível caminho para a
conversão dos idólatras.
O rei de Jafanapatão ordenou que se lançasse sobre a marca milagrosa
uma considerável quantidade de pedras misturadas com terra; porém
pouco depois a cruz formou-se de novo sobre aquele montão, tão
perfeita como de antes.
"Ordeno, disse a majestade indiana, que se remova tudo quanto ali
está, que se calque aos pés, que se destrua! Eu proíbo que a cruz
torne a aparecer!"
Foi obedecido com prontidão; a cruz não tornou a aparecer, a
multidão retira-se, e os brâmanes fazem ouvir gritos e exclamações
de vitória: triunfam finalmente, do Deus dos cristãos!
Na manhã seguinte novo alarme: a cruz reaparece tão bela, tão
perfeita como na véspera! O rei é logo avisado, corre para ali e
ordena que se revolva tudo de novo em sua presença; quer a todo o
preço obrigar o Deus dos cristãos a bater em retirada diante de si.
Põe mãos à obra...
Mas, oh! prodígio! aquela cruz, que trabalhavam por fazer
desaparecer, renasce luminosa! eleva-se e cresce à medida que se
distancia da terra! Chegando a uma grande altura e tomando gigantescas
proporções, conserva-se suspensa por muitas horas, e os pagãos
maravilhados, exclamam em altos gritos que o Deus dos cristãos é
todo-poderoso, que os seus ídolos nunca operaram coisa semelhante, e
que a religião do grande Padre de Travancor é a melhor, pois que é
a mais forte na luta.
Aquelas palavras são denunciadas ao rei pelos brâmanes; o rei, cuja
cólera não conhecia limites, fez publicar um édito pelo qual
ameaçava com a morte todo e qualquer vassalo de Jafanapatão que
mostrasse respeitar, por qualquer modo que fosse, a religião do
grande Padre Xavier, e preferisse o seu Deus aos ídolos
reconhecidos como únicas divindades do rei e de todo o país sujeito ao
seu domínio.
A sepultura sobre a qual apareceu a cruz maravilhosa está ali para
atestar que com um rei como aquele, que então reinava, a execução
segue de perto a ameaça, e que ninguém deve contar com a sua
clemência.
Aquela sepultura encerrava o corpo do seu próprio filho, o
primogênito da sua família; fora votado à morte por ordem do rei seu
pai! Ele fora degolado... só por que havia reconhecido a divindade
da religião cristã, e por que recusara voltar ao culto dos ídolos;
preferira morrer... e morrera com a coragem dos primeiros mártires!
Seu pai ordenara que o corpo fosse lançado ao campo para que servisse
de pasto aos animais ferozes; mas as feras respeitaram-no, e
Fernando da Cunha, negociante português que instruíra o jovem
príncipe nas verdades da fé, viera nas trevas da noite, dar
misteriosamente ao mártir a sepultura que lhe havia sido recusada por
seu pai...
Eis aqui o que havia excitado a cólera do rei de jafanapatão. Os
habitantes da ilha de Manaar, vassalos daquele príncipe, ouvindo
falar dos prodígios operados por Francisco Xavier em toda a Costa da
Pescaria, e das inumeráveis conversões que eram a sua
conseqüência, enviaram-lhe emissários para pedir que os viesse
instruir e baptizar.
Xavier, que não podia naquela ocasião abandonar os seus neófitos,
mandara para ali um dos seus Padres, que em tempo obtivera a mais rica
colheita.
Os brâmanes perdiam, assim, os meios de viver comodamente à custa
da credulidade dos índios; desnorteados por se verem privados das suas
oferendas, e não tendo também o direito de as exigir em nome dos seus
ídolos, queixaram-se ao rei dos progressos do Cristianismo nos seus
estados, e pediram justiça para um povo que ousava menosprezar a
religião professada pelo seu soberano, destruir por toda a parte os
pagodes, quebrar os ídolos e desacatar todos os deuses.
O rei, já inimigo da religião que reprovava os vícios a que ele se
entregava, deu imediatamente ordem de massacre a todos os cristãos de
Manaar, sem distinção de classes e de sexo, e aquela ordem bárbara
foi fielmente executada; soubera ao depois que seu filho se dispunha
secretamente a receber o batismo, e seu filho havia sido sentenciado à
morte, como vimos!
A irmã daquele tirano era igualmente cristã de coração e de
vontade; ela instruíra e educara naqueles preceitos o filho mais novo
do rei e o seu próprio, e ambos anelavam o batismo; porém vendo a
crueldade de seu irmão levada àquele excesso de raiva, a princesa
temeu pelas vidas de seu filho e sobrinho, e resolveu afastá-los
conquanto lhe fosse muito dolorosa aquela separação.
Confiou-os, pois, a Fernando da Cunha que os tirou secretamente de
Jafanapatão e os levou a Manaar, onde deviam encontrar o pai de
todos os cristãos das Índias, o nosso Santo, Francisco Xavier,
cujo coração se achava dilacerado por aquela monstruosa
perseguição. Ele recebeu-os com ternura inteiramente paternal;
consolou-os e animou-os com a sua agradável e enérgica palavra,
fazendo-os partir em seguida para Goa, onde encontraram, no colégio
da Santa-Fé, uma nova família e os ternos cuidados da caridade
cristã.
Sabedor o rei de Jafanapatão da fuga de seu filho e de seu sobrinho,
expediu ordens para que os perseguissem e os conduzissem à sua
presença a fim de os mandar matar.
Fez mais ainda: seu irmão mais velho, a quem ele usurpara o trono e
o poder, havia-se retirado para o continente; despachou emissários
com ordem de o descobrir, de o anatar e de lhe apresentarem a sua
cabeça.
O fugitivo, a esta nova, apressou-se a tomar o caminho de Goa;
ali, vendo-se em segurança, sob a proteção dos portugueses,
instruiu-se na religião que seu irmão perseguia cozas tanto
encarniçamento, e arrebatado de prazer pela sua sã doutrina, pediu o
batismo; logo que o recebeu prometeu solenemente fazer pregar o
Cristianismo nos seus estados, se algum dia recobrasse seus direitos
ao trono de Jafanapatão.
O nosso Santo experimentava então uma grande e bem intensa dor, por
ver assim perseguidos e ameaçados todos aqueles que desejassem
renunciar os ídolos e reconhecer Jesus Cristo; derramava perante
Deus lágrimas abundantes, mas gozava ao mesmo tempo de grandes
consolações e escrevia aos seus irmãos de Roma:
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"Agradeçamos a Jesus Cristo Nosso Senhor que se digna
consolar-nos com o espetáculo do martírio, e que na sua infinita
misericórdia e pela sua providência faz reverter em sua glória a
perversidade dos homens, servindo-se da crueldade dos réprobos para
preencher os tronos reservados aos escolhidos".
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O infatigável apóstolo não se deixou ficar inactivo à vista daquela
desolação.
Achava-se o vice-rei então em Cambaia, porém o coração de
Xavier não cedia senão ante a vontade divina e nunca perante as
dificuldades materiais, nem pela má vontade dos homens.
Chamou o Padre Mandas, confiou-lhe o cuidado das povoações da
Costa da Pescaria e partiu.
Chegou a Cochim a 20 de janeiro de 1545; ali se deteve para
tratar dos interesses daquela cristandade com D. Miguel Vaz,
vigário geral de Goa, que ali trabalhava, incansavelmente pela
salvação das almas, sob a sua direção, e viu coxas pesar que os
obstáculos que se opunham aos progressos do Cristianismo eram bastante
difíceis de vencer.
A cobiça dos portugueses, os desregramentos dos se costumes, a sua
severidade e dureza para os indígenas, era espinhos que em extremo
mortificavam o coração do nosso Santo.
Os funcionários do governo, longe de secundarem os desejos de D.
João III, prestando à religião o apoio das suas autoridades,
deixavam-se seduzir pelo oiro dos brâmanes e toleravam o culta dos
ídolos na cidade de Goa.
Os cargos públicos eram vendidos aos muçulmanos, ao passo que os
cristãos eram deles excluídos. Concedia-se ao rei de Cochim,
tributário do de Portugal, a liberdade de confiscar os bens de todos
os seus vassalos que abraçassem o Cristianismo.
D. Miguel deplorava amargamente um semelhante estado de coisas que
punha entraves a todos os esforços do seu zelo; desejava que
Francisco Xavier fosse levar as suas queixas aos pés do trono;
porém o grande apóstolo não podia ausentar-se sem perigo para as
suas cristandades, e ficou combinado que D. Miguel Vaz embarcaria
no primeiro navio a fazer-se à vela, e iria apresentar ao rei, em
nome de Xavier, as queixas da religião.
Francisco Xavier escreveu a D. João III com tanta energia,
dignidade e santa liberdade, que não podemos resistir ao desejo de
reproduzir integralmente a sua admirável carta, na convicção de que
ela agradará, não obstante ser algum tanto longa.
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