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Aceitando o cargo que o vice-rei impusera à sua honra, o
nobre Inácio de Loiola praticou um ato heróico de dedicação à
Espanha e ao seu soberano.
A Navarra, sempre independente, e governada pelos seus reis
hereditários havia setecentos anos, tinha sido conquistada
por Fernando, o Católico, em 1512, e era então uma província
espanhola. Os navarros, sofrendo com pesar a humilhante
posição em que se achavam, lançavam frequentes vezes os olhos
para além dos Pirenéus, e chamavam com todos os seus votos
Henrique de Albret, filho e herdeiro de D. João III, que
Fernando tinha destronado e espoliado pelo direito da força.
Além disso, o restabelecimento da monarquia navarra e a
restituição deste reino ao seu legítimo soberano tinham-lhes
sido solenemente garantidos pelo tratado de Noyorl, e Carlos
V havia faltado à promessa. Nestas condições o nosso herói
poderia esperar que a guarnição, quase inteiramente composta
de soldados e oficiais navarros, o secundaria um só instante
ao primeiro ataque dos franceses? Poderia contar também com
as tropas que D. Antônio Manrique fora buscai? E não seria
para recear que todas as populações fossem com alegria ao
encontro dos franceses e os acolhessem como libertadores?
Inácio de Loiola, via, com um só volvei de olhos, todas as
dificuldades, todos os perigos da situação. Sabia que em caso
de ataque antes da chegada do vice-rei, seria impossível
vencer; mas sabia também que lhe seria possível morrer
combatendo, e tinha aceitado a morte, prometendo vender caro
a vida.
Os navarros receberam efetivamente com satisfação 0 exército
que se apresentava em nome de Henrique de Albret; em todo o
caminho, a marcha dos franceses não encontrou obstáculos e
parecia um triunfo. No dia z 8 de Maio, véspera Pentecostes,
cercaram Pamplona, que não tinha ainda recebido nenhum
reforço e o não podia esperar antes de alguns dias.
As autoridades civis pediram ao comandante da praça que se
rendesse e não tentasse nenhuma resistência, porque não tinha
força suficiente para defender a cidade contra um exército
tão numeroso. Os oficiais da guarnição uniram-se aos
habitantes da cidade e todos a uma voz pediram a rendição da
praça nas condições impostas pelo chefe do exército francês
[6]:
- O vice-rei não pode estar de volta antes da tonada da
praça, - diziam os antigos capitães; para que servirá o
sangue espalhado numa defesa impossível?
- Henrique de Albret é nosso rei legítimo, - exclamava o
povo. Não queremos defesa! Abramos as portas ao conde de
Esparra!
- Viva Henrique de Albret! - exclamavam os soldados gavarros.
Viva o rei de Navarra! Viva o exército francês!
O governador da cidadela propõe também a evacuação imediata.
Inácio de Loiola é o único de opinião contrária; só ele se
opõe, em nome da honra, em nome do soberano, a entregar a
praça ao inimigo. Fala ao povo e aos soldados; censura aos
oficiais a sua fraqueza e quer fazer-lhes compreender que
podem esperar da severidade do vice-rei e da indignação de
Carlos V. Vãos esforços! Aquela voz amada parece desconhecida
de todos; glacial silêncio responde ao seu entusiástico
apelo; ninguém se quer opor à entrada dos franceses, a o
nobre Inácio tem a dor de ver abrirem-se para os soldados
franceses as portas da praça, que ele se comprometera a
defender ate á morte.
Retira-se então para a cidadela; é ali que esperará o inimigo
e lhe provará que há, pelo menos, um homem de coração na
guarnição desta fortaleza. Mas o governador quer parlamentar
e vai descer à cidade com os seus mais antigos oficiais.
Inácio teme as condições do vencedor; quer conhecê-las e
acompanha os oficiais. André de Foix propõe uma capitulação
vergonhosa, que o governador está disposto a assinar. Inácio
encara altivamente os dois, e, dirigindo-se aos oficiais que
estavam a distância
- Senhores,- disse - se me deixarem só na defesa da cidadela,
defendê-la-ei até à última gota do meu sangue! A história não
dirá à posteridade que entrego a minha espada artes de a
tirar da bainha. Quem de vós me seguirá neste caminho da
honra?
- Eu ! eu ! meu valente comandante! - exclamaram ao mesmo
tempo alguns valorosos oficiais.
- Pois bem! - replicou o nosso herói -não capitulemos!
Subamos à cidadela e saibamos morrer como valentes! Viva o
imperador Carlos V!
- Viva o imperador! - repetiram os oficiais e soldados de
Inácio. Viva o nosso valente comandante!
D. Inácio de Loiola, seguido dos seus poucos companheiros,
encerrou-se na fortaleza e esperou o inimigo. Não tem ali
sacerdote algum: pede a um fidalgo, seu irmão de armas, que
ouça a sua confissão, e confessa os seus pecados àquele
guerreiro com verdadeiro sentimento de humildade, porque sabe
que pode estar morto daí a algumas horas [7].
No dia seguinte, 20 de Maio, segunda-feira de Pentecostes, ao
romper do dia, os franceses começam o ataque.
O valente Inácio está nas trincheiras, e, com a palavra e com
o exemplo, anima os seus, que se defendem com igual ardor. Os
inimigos sobem ao assalto; Inácio repele-os à medida que se
apresentam. A artilharia francesa troa formidavelmente, mas a
coragem de Inácio não se quebranta; os inimigos continuam a
cair sob os seus golpes e enchem o fosso com os seus
cadáveres.
Os chefes do exército francês admiram a valentia e habilidade
do jovem oficial, que só por si vale uma companhia de velhos
guerreiros, e sentem que ele não seja dos seus.
Entretanto, a artilharia redobra as suas espantosas descargas
contra o bastião defendido pelo nosso herói. É abatido um
lanço da muralha, uma lasca de pedra fere Inácio na perna
esquerda a, e ao mesmo tempo uma bala de canhão, lançada
contra a muralha oposta, ricocheteia e quebra-lhe a perna
direita. O valente Inácio cai gloriosamente no meio dos seus
soldados. Estes, desanimados com a perda do seu chefe, depõem
as armas e entregam a fortaleza aos vencedores [8].
Inácio transportado ao quartel general dos franceses, é ali
tratado como herói, prodigalizando-lhe todos os maiores
cuidados. O conde de Esparra manda pedir-lhe a honra de lhe
apertar a mão e de o felicitar pelo seu nobre procedimento e
altos feitos; D. Inácio recebe-o. Mas vendo-o, diz-lhe:
Senhor, deixaram-me a espada e contudo eu sou vosso
prisioneiro.
- Um oficial do merecimento de V. Ex.a nunca é vencido - lhe
respondeu André de Foix; V. Ex.a é livre e não ficará junto
de nós senão o tempo indispensável para curar as suas
gloriosas feridas. Entretanto, aceite a minha amizade e
honre-me com a sua.
- Da melhor vontade, senhor, - lhe disse o nobre ferido
apertando-lhe a mão; - e visto que a sua generosidade me
trata como irmão de armas e não como prisioneiro, permita-me
que lhe exprima um desejo.
- Fale, senhor; dou-lhe a minha palavra de honra de que o
que eu puder fazer para ser-lhe agradável, o farei.
- O vice-rei de Navarra é meu parente e meu segundo pai, -
disse Inácio. Ele marcha sobre Pamplona com o exército
destinado a repelir-vos; peço-vos que lhe envieis um dos seus
oficiais a informá-lo de que o serdes vós senhor da praça e
da fortaleza é sinal de que eu caí como homem de honra.
- Como herói! - acrescentou o conde abraçando cordialmente o
seu novo amigo.
Alguns dias depois, tendo os cirurgiões declarado que Inácio
podia ser transportado sem perigo, André de Foix disse-lhe
- Chegou o momento de nos separarmos, com grande pesar meu;
mas V. Ex.a será melhor e mais agradavelmente tratado no seio
da família. Mandei preparar uma boa liteira; os soldados de
V. Ex.a o conduzirão e escoltarão; a sua gente segue-o; todos
aqueles que lhe pertencem são livres. Confesso que esta
separação me é penosa e faço votos para que as nossas espadas
não mais tenham que cruzar-se.
- Desejo-o tanto como vós, - lhe respondeu o nosso herói; mas
se os nossos soberanos, a quem Deus guarde, se puseram em
frente um do outro, não ouvirei, juro-vo-lo, outra voz senão
a da honra e do dever!
- E isso é digno de V. Ex:a! E eu também espero ser fiel à
divisa do rei de França: "Faze o que deves, suceda o que
suceder".
- Salvo a honra, , caro conde, para a vida e para a morte !
Os dois cavaleiros abraçaram-se, e Inácio foi colocado alguns
instantes depois numa liteira e levado ao castelo de Loiola,
pouco distante de Pamplona.
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