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A pouca distância da cidade de Bassano, numa pequena montanha
fértil e mui arborizada, erguia-se uma igreja dedicada a S.
Vito, à qual se dirigiam todos os anos numerosos peregrinos.
A montanha, à qual o vulgo tinha dado o nome de S. Vito por
causa da peregrinação, era desabitada na parte mais elevada e
continha apenas um pequeno número de choupanas disseminadas
no sopé virado para a cidade.
Um santo personagem, o Padre Antônio, - não o conheciam por
outro nome - vivia solitário num eremitério situado não longe
da igreja de S. Vito. Vinham consultá-lo muitas vezes,
pedir-lhe a sua bênção, trazer-lhe esmolas, mas não descia
nunca da sua querida montanha, não sala jamais do seu retiro
e vivia na contemplação e nos exercícios da mais austera
penitência. Todos o veneravam como um santo vivo. Algumas
vezes os homens de grande virtude e de eminente piedade
tinham-lhe pedido o favor de serem admitidos na sua
companhia, e viverem, como ele, de orações e de penitências,
sob a sua direção. O Padre Antônio tinha consentido; mas
nenhum tinha ainda podido sustentar esse regime de macerações
corporais, de oração contínua, de solidão absoluta, de
silêncio não interrompido; depois de alguns dias de ensaio,
todos renunciavam a imitar o Padre Antônio e o eremita
venerado ficava só na montanha, onde havia envelhecido e
queria morrer.
Quando chegaram a Bassano, Simão Rodrigues e Cláudio Lejay
tinham ouvido falar do eremita de S. Vito, foram vê-lo, e,
tendo-lhes o bom velho oferecido um asilo no seu eremitério,
apressaram-se a aceitá-lo.
Foi ali que o Padre Rodrigues, sucumbindo às fadigas. do
apostolado e ao excesso das mortificações, fora atacado duma
doença violenta, que lhe pôs a vida em perigo.
Recebendo Inácio de Loiola esta notícia, esqueceu a febre que
o devorava, deixou Diogo Laynez doente no hospital:. e João
Codure bastante incomodado, chamou Pedro Fabro e partiu para
Bassano, afastado de Viena sete léguas aproximadamente [44].
Andava com tal ligeireza, que Fabro o não pôde seguir; Inácio
viu isto, parou, ajoelhou-se, orou, levantou-se logo que o
Padre Fabro se aproximou dele, e depois continuava a andar
com a mesma rapidez, parando de novo e orando à espera do seu
amigo. A sua caridade sobrepuja o seu valor. Depois duma
dessas pausas, disse ao Padre Fabro, com a alegria a
transluzir-lhe no rosto
- Pedro [45], o nosso querido Simão não morrerá.
Desde aquele momento, moderou o passo e não caminhou adiante
do Padre Fabro. Chegando a S. Vito, encontraram o doente
deitado numa tábua. Inácio abraça-o com toda a ternura do seu
coração, e diz-lhe:
- Nada tema, meu querido Simão, porque será curado; mas quero
que tenha melhor cama.
Mandou vir da cidade uma cama menos dura, na qual colocou o
doente, que se achou melhor; poucos dias depois estava curado
e ia ter com o nosso Santo a Bassano. Inácio estava alojado
numa pobre hospedaria da cidade, com os Padres Fabro e Lejay,
esperando que Simão Rodrigues se curasse.
O eremita Antônio, a quem os seus hóspedes tinham falado da
grande santidade do seu Padre Inácio, deseja vê-lo, e
aproveitando a sua visita ao Padre Rodrigues, havia
conversado com ele sobre espiritualidade e ficara encantado.
Apresentava-se, todavia, uma dificuldade ao seu espírito:
"- Como é - dizia ele - que um homem chamado por Deus a tão
alta perfeição pode gastar toda a sua vida na santificação
dos outros e privar-se assim das consolações que só se
encontram na solidão, limitando-se à perfeição pessoal?"
Uma outra coisa lhe atraiu a atenção. Sendo Padres Inácio e
os seus discípulos, usavam agora sotaina como todos os
clérigos; nada, exteriormente, os distinguia dos outros, e o
bom Padre Antônio não compreendia uma santidade excepcional
sob aparência tão simples. Não é provável que ele tivesse
comunicado estas reflexões a Rodrigues; mas é certo que este
último teve por um instante o pensamento de se separar do seu
mestre e de viver na solidão de S. Vito, ao lado do santo
eremita.
Comparando as grandes fadigas, os grandes trabalhos a vida
agitada do seu Padre Inácio com a vida tranqüila, doce e
contemplativa do Padre Antônio, Rodrigues dizia que o último
tinha certamente escolhido a melhor parte, que a sua salvação
era mais certa e que essa separação do mundo, essa solidão
contínua o punham ao abrigo dos perigos a que se está exposto
na vida apostólica como a entendia Inácio.
Nestas disposições é que ele chegou a Bassano. Não falou ao
seu pai espiritual da tentação que agitava o seu espírito, e,
vendo-se por outro lado ligado pelo seu voto, não pensava
poder dar cumprimento ao seu desejo. Entretanto o espírito
das trevas, procurando sempre dificultar a obra do nosso
Santo, que reconhecia ser obra do próprio Deus, esforçava-se
por lançar a ilusão no espírito de Rodrigues. No dia
seguinte, este, não podendo resistir-lhe mais, sai da
hospedaria, furtivamente como um criminoso, e dirige-se para
o eremitério de S. Vito, a fim de consultar o Padre Antônio.
Ao sair da cidade, vê vir direito a ele um homem de rosto
severo, olhar terrível, com uma espada na mão direita e
parecido resolvido a impedir-lhe que avance. Rodrigues
perturba-se um momento; mas logo envergonhado da sua
fraqueza, tenta arcar com o perigo e passar além. O mesmo
personagem ameaça-v, corre para ele, quer feri-lo... O Padre
Rodrigues retrocede, espantado, anda precipitadamente a ponto
de causar admiração aos transeuntes, que, não tendo rosto
nada, não compreendem a fuga, e estava já próximo da
hospedaria quando vê Inácio vir-lhe ao encontro; o nosso
Santo estende-lhe os braços e diz-lhe apenas estas palavras
- Simão, por que duvidaste?
Esclarecido por uma luz sobrenatural, o Padre Inácio tinha
conhecido a tentação e a fuga do seu filho espiritual.
Rodrigues confessou-lhe toda a verdade e ligou-se desde
então, mais fortemente que nunca, à santa obra a que tinha a
felicidade de ser chamado [46].
Enquanto isto se passava em Bassano, o Padre Antônio, em
oração no seu querido eremitério, recebia também uma luz
extraordinária. Deus revelava-lhe a alta santidade a que
tinha chegado o humilde Padre Inácio; e o venerável eremita,
muito contrito pelo juízo que tinha formado, humilhava-se
todas as vezes que ouvia falar do santo apóstolo e dizia:
- O Padre Inácio é um grande Santo diante de Deus! Aprendi a
não julgar da seiva duma árvore pela casca.
E contava a revelação que tinha tido a este respeito,
lamentando a sua primeira opinião acerca do nosso Santo.
Regressando a Vicência Inácio de Loiola chamou todos os seus
irmãos e reuniu-os nas ruínas do mosteiro de S. Pietro in
Vivarolo, onde todos prepararam o seu acampamento à maneira
do mestre. Todos, à exceção do nosso Santo, ofereceram o
Santo Sacrifício em Vicência pela primeira vez e regaram em
seguida na cidade com igual êxito. Francisco avier, já
exausto pelas mortificações de todo o gênero que não cessava
de fazer e pelas rudes austeridades que se tinha imposto
durante o retiro, não pôde sustentar estas primeiras fadigas
do apostolado e caiu doente. Os seus irmãos levaram-no, ao
hospital, onde pouco depois também conduziram um dos outros
Padres, que acabava de sucumbir igualmente à fadiga e ao
excesso das rigorosas privações que tinha sofrido.
Quando ficaram curados, aproximando-se o momento fixado para
a viagem à Palestina e havendo os mesmos obstáculos, Inácio
de Loiola reuniu os seus irmãos e disse-lhes que, não sendo
provável que a guerra, que lhes fechava a. entrada da Terra
Santa, terminasse, convinha pensar no cumprimento do seu
segundo voto, o de se porem à disposição do Sumo Pontífice
para o serviço da Santa Igreja. Convidou-os a implorar as
luzes do Espirito Santo, a fim de deliberarem em seguida
acerca das medidas a tomar, para maior glória de Deus, antes
de se separarem.
Alguns dias depois, os Padres, de novo reunidos decidiram que
iriam trabalhar na salvação das almas nas principais cidades
onde as universidades atraíam os jovens, e que o seu zelo se
exerceria principalmente na obra da sua conversão.. Inácio
designou Xavier e Bobadilha para Bolonha, Rodrigues e Lejay
para Ferrara, Broet e Salmeron para Siena, Codure e Hoces
para Pádua. O nosso Santo devia dirigir-se a Roma com Fabro e
Laynez.
Ficou resolvido que, para conservar o espírito de humildade e
de obediência, um seria o superior do outro durante uma
semana, cada um por sua vez. Deviam viver de esmolas e
habitar nos hospitais; pregar nas praças públicas e por toda
a parte onde lhes fosse permitido fazê-lo; falar das virtudes
de maneira que as fizessem amar, dos vícios para lhes
inspirar horror, mas não consultar senão o espírito de Deus e
ter em pouca consideração a eloqüência humana; enfim,
aproveitar as ocasiões de serem úteis ao próximo, mas não
aceitar nunca honorários e ficarem satisfeitos por terem
contribuído para a glória de Deus.
Sendo aprovadas todas estas resoluções, Inácio acrescentou
que, tendo-se a sua companhia formado para glória de Deus, em
nome de Jesus, devia chamar-se doravante Companhia de
Jesus...
Aprovadas estas disposições, os primeiros Padres da Companhia
de Jesus despediram-se ternamente, prometeram amar-se sempre,
estarem unidos em Deus como irmãos, escreverem-se o mais
possível e orarem uns pelos outros; depois, abraçaram-se e
cada um dirigiu-se para o ponto que o bom Padre Inácio lhes
designou.
O santo fundador partiu para Roma ao mesmo tempo, com os dois
Padres que o deviam acompanhar [47].
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