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D. Garcia não entrava no quarto do seu jovem irmão que o não
encontrasse ocupado a ler ou a escrever.
- Achais interesse na vida dos Santos, caro Ínigo? - lhe
disse um seu irmão.
- Sim, senhor, acho nela coisas surpreendentes, que
ultrapassam tudo o que os cavaleiros imaginários têm
empreendido para conquistar um nome glorioso. No primeiro
momento, ou fosse por ser privado dos romances que eu
desejava, ou por outra razão, este livro pareceu-me insípido.
Mas forçando-me o aborrecimento a lê-lo, terminei por
achar-lhe. muito interesse.
- Tanto melhor, caro Ínigo, porque esta longa reclusão é
dolorosa para uma natureza tão viva como a vossa.
- Sofro menos, meu caro irmão, desde que leio este livro.
Contudo, vede: condeno-me a este suplício para não perder a
minha influência junto das damas da corte, ao passo que todos
estes Santos teriam sofrido tudo isto, e mais ainda, só para
agradarem a Deus. Eles ganharam uma eternidade de felicidade
em recompensa da sua vida penitente ou do martírio que
aceitaram; e eu apenas terei sorrisos de mulheres ou louvores
cortesãos como única recompensa! Pergunto a mim mesmo o que
me ficará de tudo isso, quando eles e eu tenhamos
envelhecido?
- Sempre assim foi o mundo, meu bom Ínigo; o importante, para
um fidalgo do vosso nascimento e do vosso valor, não é ser um
Santo, como aqueles cuja vida estais lendo, mas portar-vos
sempre com honra, e aumentar a glória que já vos mereceu a
vossa valente espada.
É precisamente o que eu penso, meu caro irmão. Demais estou
na idade dos triunfos, desejo-os, e ser-me-ia impossível
sacrificá-los. O meu destino não é imitar estes heróis
evangélicos incontestavelmente nunca serei um Santo!
Inácio não acrescentou,-só o confessou mais tarde -que tinha
perguntado muitas vezes a si mesmo, ao ler a vida dos Santos,
porque não procuraria imitá-los; por que não podia fazer o
que os Santos puderam; por que não procuraria, como eles
glorificar a Deus na terra, com a esperança de ser um dia
participante da sua glória no céu. É verdade que esses bons
sentimentos eram imediatamente abafados pelos sonhos de
ambição e de vaidade, e que, indo-se-lhe pouco a pouco
distendendo a perna, a esperança de não ficar coxo quando
saísse do seu quarto o preocupava mais que tudo. Entretanto,
lia relia as grandes ações dos Santos, e, querendo conservar
a recordação delas, escrevia aquelas que mais o
impressionavam. Passado pouco tempo, sentiu-se muito comovido
ao entregar-se a esta ocupação, e perguntou de novo a si
mesmo:
- Por que não hei-de ter a coragem que tiveram os Santos?
Vejo entre eles alguns que eram de estirpe tão boa como a
minha; vejo-os até que se sentaram em tronos ou foram
oriundos de sangue real... Por que não hei-de eu procurar a
única glória que eles ambicionaram? Hoje estão eles em posse
duma felicidade que os prazeres e a glória desta vida não
podem dar, e têm esta felicidade garantida por toda a
eternidade! Esta felicidade eterna conquistaram-na
renunciando às grandezas, aos prazeres, às vaidades deste
mundo, e calcando-as aos pés, para só viverem da renúncia, da
oração e da mortificação... Por que me parece tão estimável o
que eles tanto desprezaram?... De que lado está a razão?
Onde está a verdade? Eles só procuraram a glória da
eternidade; eu ambiciono a do tempo... De que lado está a
sabedoria? Onde o verdadeiro e solido interesse? Tenho trinta
anos, sou de nobre raça adornado de todos os dotes que
agradam ao mundo. Se a minha perna ficar de novo curta quando
a tirar desta máquina, eis-me forçado a afastar-me da corte e
dos prazeres. da minha idade! Os meus triunfos estão, pois,
dependentes dum movimento de nervos, duma ferida, duma
doença, dum incidente que a coisa mais insignificante pode
provocar! Eis o que vale a felicidade que o mundo pode
oferecer!... Não será uma loucura procurá-la e viver para
ela?"
Todas estas reflexões surgiam no espírito de D. Inácio
assaltavam-no de dia e de noite e o fatigavam tanto mais
quanto mais energicamente eram combatidas pelo respeito
humano e pelo atrativo dos prazeres entre os quais tinha
vivido até então...
- "Que se dirá na corte - perguntava ele a si mesmo - se eu
não reaparecer? Crer-se-á que fiquei defeituoso até ao
ridículo e que tenho vergonha de me deixar ver... Ou
pensar-se-á que perdi Pamplona por culpa minha...
Acusar-me-ão de inabilidade, dirão que me envergonho daquela,
derrota e que fugi por cobardia... Se se escrevesse assim a
história!..."
A este pensamento, todo o orgulho do nobre Inácio se
revoltava; lançava a vista para a sua gloriosa espada
suspensa perto do leito, com a qual quisera atravessar no
mesmo instante o corpo do historiador desleal ou mal
informado.
Prolongando-se esta luta na alma do nosso herói, perguntou um
dia a si mesmo se não seria já tempo de pôr termo a ela,
tomando uma resolução definitiva.
- "Há evidentemente em mim, - dizia ele - duas vontades
opostas; uma, que me impele para o bem, e por ele à
felicidade eterna; a outra, que me impele para o mal, e por
ele à eterna infelicidade. Quando reflito largamente sobre as
vantagens duma vida penitente, como a dos Santos, experimento
uma tranquilidade, uma paz de espírito, uma doçura. interior,
que são desconhecidas e que o mundo não pode dar-me. Quando,
ao contrário, me deixo arrastar pelo pesar e pelo desejo dos
prazeres e da glória desta vida, fico com uma perturbação,
uma inquietação, uma agitação que se assemelham ao remorso, e
me tornam desgraçado. É, pois, loucura hesitar no partido que
devo tomar... Farei o que fizeram os Santos!"
Esta importante resolução estava tomada e, com uma natureza
de Inácio de Loiola, devia ser executada. Aproxima-se o
momento em que ele podia tirar o aparelho da perna e
experimentar as suas forças; mas a estação era pouco
favorável, o inverno começava a fazer-se sentir e a prudência
recomendava que esta resolução fosse adiada por alguns
meses.. Entretanto o nosso recluso ocupava-se em ler e reler
a vida Nosso Senhor e a dos Santos, e escrevia sempre, mas
com muito mais cuidado, os traços que mais o impressionavam.
Fez este modo um livro de trezentas páginas, escritas no
gosto época, em diversas cores. Empregava a cor de ouro para
Nosso Senhor, a vermelha para a Santíssima Virgem e as outras
cores para os Santos [9].
Entretanto, Inácio tornara-se um homem novo. Ocupado de Deus
e do desejo de lhe agradar, dividia o seu tempo entre santas
leituras, a oração, a meditação e a escrita. Procurava trazer
à memória todas as faltas da sua vida passada, suspirando
pelo momento em que lhe fosse permitido expiá-las pelos
jejuns, vigílias, macerações e solidão. A sua família
estranhava-o a linguagem, maneiras, assuntos de conversação,
Mudara nele, e D. Garcia preocupava-se seriamente com isso,
Sabia que com um caráter enérgico e perseverante como o de
Inácio, tudo o que se tentasse para o afastar do caminho em
que ele entrara, encontraria a invencível barreira da sua
firmeza. Além disso, Inácio não lhe falava dos seus projetos,
nem lhe comunicava as suas impressões, e limitava-se deixar
adivinhar que agora era todo de Deus e que o mundo não valia
nada para ele.
Aguardando a cura completa, formava planos de vida que
acolhia e rejeitava; mas não abandonava a idéia de ir em
peregrinação à Palestina. Teve, um momento, o pensamento de
se retirar a um mosteiro dos Cartuxos. Chegou a enviar um dos
seus servos à Cartuxa de Burgos a pedir informações sobre a
regra de S. Bruno, ordenando-lhe que guardasse segredo acerca
da missão de que o encarregara. Guardá-lo-ia? É provável que
não, e que fosse este servo de Inácio que despertasse as
suspeitas de D. Garcia.
Por fim, o nosso ferido readquiriu a liberdade dos
movimentos; pôde levantar-se e andar, mas tão longa inação e
tão doloroso tratamento haviam-lhe enfraquecido a perna
direita. Foi necessário fortificá-la com o ar puro e um
exercício moderado. Inácio submeteu-se a este regime, cujo
resultado devia secundar os projetos que lhe alimentavam o
espirito. Todos os dias dava um pequeno passeio, sem perder o
recolhimento; todas as noites se levantava para se entregar à
oração por mais tempo e com mais tranquilidade que durante o
dia. Gozava consolações tais neste exercício, que o desejo de
retiro, de solidão e de mortificação, tornara-se para a sua
alma um verdadeiro sofrimento.
Uma noite, sofrendo mais ainda que de ordinário. pela
necessidade imperiosa de abandonar tudo por Deus, e estando a
sua perna assaz fortificada para lhe permitir a execução dos
seus projetos, prostrou-se diante duma imagem da Santíssima
Virgem, pediu-lhe que aceitasse o compromisso, que ele tomava
a seus pés, de só viver para a glória do seu divino Filho, e
jurou-lhe, na sua linguagem de guerreiro, ser sempre fiel à
sua bandeira, não servir senão na sua milícia e sob suas
ordens, e ser do Filho e da Mãe, na vida e na morte. No mesmo
instante, um estrondo, semelhante a uma forte detonação,
faz-se ouvir no interior do castelo e o abala até aos
alicerces. O abalo foi sentido em todos os cantos da casa,
mas não deixou sinais senão no quarto de D. Inácio, mais
violentamente atingido, e cujos muros, dalguns pés de
espessura, sofreram um abalo tão forte que produziu uma larga
fenda, que ainda existe.
Não foi um tremor de terra, porque só o castelo sofreu o
abalo; as dependências nada sofreram. Qual a causa deste
fenômeno? Procurou-se, mas não se encontrou. Preveria o
demônio os temíveis e incessantes golpes que lhe viria a dar
a santa Companhia de Jesus, e quereria manifestar a sua raiva
impotente contra aquele que Deus tinha escolhido para ser o
fundador da mesma? Os historiadores do Santo são dessa
opinião.
D. Garcia continuava a preocupar-se com a transformação de
Inácio e procurava ocasião de comunicar-lhe os receios que o
agitava; esta apresentou-se breve. Inácio, sentindo-se mais
forte, deu um passeio a cavalo sem prevenir o irmão, e,
quando regressou, encontrou D. Garcia que o esperava na
escadaria
- Julgastes, meu irmão, que fosse nosso tio Manrique? -
perguntou.
- Não, meu irmão, - respondeu gravemente o chefe da família -
sabia que vos tínheis ausentado a cavalo, e quando ouvi o som
da busina corri para ver se os vossos criados entravam sós ou
se vos seguiam.
- Fui experimentar as forças, meu caro irmão. É conveniente
readquirir o exercício de cavalgar.
À noite os dois conversavam sem testemunhas no quarto de
Inácio.
- Confesso, - dizia D. Garcia - que a vossa saída a cavalo me
inquietou bastante, em conseqüência do silêncio, que guardais
sobre os vossos projetos. Por que me não prevenistes ?
- É verdade que vo-lo podia ter dito, mas que receais?
- Meu caro Ínigo com toda a franqueza vo-lo digo porque tenho
necessidade de expandir. o coração. A vossa mudança é tal que
receio tudo. A vossa. imaginação está exaltada com a leitura
da vida de Jesus Cristo e dos Santos; renunciastes à corte, à
guerra, às honras, à glória, a tudo o que amáveis.
Só viveis para Deus, não comunicais a ninguém os vossos
projetos, e, na vossa idade, deveis tê-los certamente. É,
pois, de temer que, deixando-vos levar por indiscreto fervor,
faiais mais do que deveis.
- Espero, caro irmão, não ir mais longe do que devo, -
respondeu Inácio; - peço-vos que fiqueis tranqüilo a esse
respeito.
D. Garcia prolongou a conversa mais alguns momentos, e, vendo
que não podia esperar confidência alguma sobre os projetos do
irmão, deixou-o, recomendando-lhe que reflectisse.
Na noite seguinte, quando Inácio estava em oração, a
Santíssima Virgem apareceu-lhe rodeada de brilhante luz,
trazendo Jesus Menino nos braços. Não lhe falou; mas a sua
celestial presença inundou-lhe a alma de inefável consolação,
e pareceu-lhe que a graça o purificava inteiramente, que tudo
nele fora renovado. A partir daquele momento, ficou livre de
toda a tentação, de todo o pensamento contrário à virtude da
pureza.
O nosso Santo tinha experimentado as forças: prolongando a
sua estada sob o tecto da família, expunha-se a novas
observações, a novas tentativas da parte do irmão para o
afastar de seguir a voz que o chamava. Era, pois, urgente
apressar a partida. Dois dias depois deu as necessárias
ordens, e, entrando nos aposentos de D. Garcia, disse-lhe:
- Meu querido irmão, o tempo é favorável e vou aproveitá-lo
para ir ver meu tio Manrique; estarei ausente alguns dias...
- Ínigo, - exclamou D. Garcia - enganais-me!
- Não, senhor, digo-vos a verdade, vou a Navarrete.
-Sim, mas de lá aonde ireis? Conheço-vos, Ínigo, e estou
certo que há muito tempo alimentais um projecto de futuro,
que não pode ser agradável à vossa família. Não posso
afastar-vos dele, porque sei como sois firme nas resoluções
tomadas. Mas, por Deus! não me direis nada? Afastais-vos dum
irmão que vos ama sem lhe dizer aonde ides e o que fareis?
Receio que a imaginação vos tenha iludido. Quereis viver
longe do mundo, bem o sei. Mas não podeis estar aqui só e tão
retirado como um solitário, ficando conosco? Deus não estará
em toda a parte? Não consultastes ninguém; cedeis a um
impulso de fervor inspirado pelo exemplo dos Santos; bem
está. Todavia deveis ter em consideração também a honra da
vossa família. Ides abraçar a pobreza evangélica e estender a
mão aos viandantes?
Inácio não respondeu.
- Se me engano, - acrescentou D. Garcia - por que me não
desenganais e tranqüilizais?
O mesmo silêncio da parte de Inácio. Seu irmão continuou:
- Nada posso para vos fazer mudar de resolução, mas ao menos,
meu irmão, meu caro irmão, se não voltardes de Navarrete, se
vos afastardes de nós, como receio, prometei-me, a mim vosso
irmão mais velho, que nunca desonrareis o nobre nome que
usais! Prometei-me que em qualquer lugar em que vos acheis,
não esquecereis o sangue que corre nas vossas veias, e que
nunca adoptareis um modo de viver que nos faça corar! Enfim,
prometei-me que nunca vos tornareis indigno dos nossos
gloriosos antepassados.
Prometo-vo-lo, meu irmão; não tenho e espero nunca ter a
intenção de faltar à honra. Disse-vos a verdade. vou a
Navarrete fazer uma visita dalguns dias a meu tio Duque de
Nájera que veio ver-me durante a doença, e a quem devo este
testemunho de reconhecimento e de afeição.
- Estais assaz vigoroso para empreender tão longa viagem
através das montanhas?
- Sim, senhor, estou certo que posso efetuá-la, a não ser que
um incidente, que ninguém pode prever, mo impeça e pararei em
Biscate para ver minha irmã.
- Pois bem, acompanhar-vos-ei até casa dela e em seguida
deixar-vos-ei para irdes com os vossos criados a casa do tio
Manrique.
No dia seguinte, os dois irmãos partiram a cavalo, seguidos
dos seus escudeiros e criados, e só se separaram em Onate,
como fora combinado. As despedidas fizeram-se à noite porque
Inácio devia partir de madrugada. Mas quando todos estavam
deitados o nosso herói, que tinha tomado todas as precauções,
dirigiu-se à igreja de Nossa Senhora de Arancuza e ali passou
a noite. Ao romper do dia montou a cavalo, e, seguido de dois
criados, dirigiu-se para Navarrete.
Abandonando para sempre a opulenta casa dos pais, não levara
mais nada que os seus manuscritos; não tomara sequer a bolsa.
Chegado a casa de seu tio, recorda-se que tem algumas dividas
e quer solvê-las; em casa de seu tio Manrique devem-lhe uma
certa quantia, que ele reclama, encarrega o seu escudeiro de
pagai as dívidas, e, julgando-se rico com o que lhe resta,
manda fazer uma imagem da Santíssima Virgem, que trará sempre
consigo; porque ela será agora a sua única Senhora.
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