CONVERSÃO POR MEIO DE RELÓGIO E CALENDÁRIO

Circundado por uma muralha dupla e poderosa, erguia-se na cidade tatara de Pequim o palácio imperial Sin-ching. Essa muralha tinha sete milhas de comprimento e trinta pés de altura, e doze cavaleiros dispostos em fila poderiam galopar nela. A intervalos regulares estavam colocados poderosos bastiões. De suas seteiras enristavam-se as lanças e fuzis das tropas, às quais cabia defender constantemente o palácio.

O imperador usava o título de “ Filho do Céu” , pois os deuses lhe haviam dado a incumbência de dirigir e governar o mundo, de acordo com a sabedoria do seu espírito. O nome do imperador era tão sublime que não podia ser pronunciado, e o bom súdito chinês evitava até mesmo o uso das letras que apareciam também no nome imperial. Ninguém, além dos funcionários da corte, tinha ingresso no palácio. Mesmo dentre esses mui poucos eram os que haviam alguma vez contemplado o imperador pessoalmente.

Mateo Rici, porém, havia muito se decidira a conquistar para Cristo o imperador da China também, pois só assim a sua obra no Império do Meio poderia na realidade ficar completa. Ele se instalou à frente da capital, e depois de ter travado conhecimento com um alto funcionário, pediu ao mesmo que levasse um presente ao imperador no palácio; esse presente era um precioso relógio europeu lindamente cinzelado. O chinês trouxe a dádiva do missionário a uma das portas do palácio e, ali, passou-a às mãos do funcionário da corte que se achava de serviço.

Esse, primeiro hesitou durante algum tempo, sem saber se deveria passar adiante o presente, mas quando observou o relógio mais minuciosamente, a sua admiração cresceu em tal medida que resolveu entregá-lo ao seu superior e chamou atenção do mesmo para a estranha maravilha. A partir daí o relógio do padre Rici percorreu toda a escala hierárquica do palácio, até que chegou às mãos do primeiro ministro e, finalmente, às do próprio imperador. Também o Filho do Céu não vira nunca um relógio de dar corda e ficou completamente maravilhado com isso. Na verdade estava muito aquém de sua dignidade o perguntar, com uma simples palavra que fosse, pelo mortal que lhe havia remetido o presente. Mas na manhã seguinte o relógio cessou, de repente, de caminhar. O imperador chamou a um de seus funcionários afim de que ele pusesse o instrumento outra vez em marcha, mas os esforços do mandarim foram em pura perda.

A corte inteira, uma pessoa depois da outra, tentou a sua sorte, mas nenhuma única conseguiu por em marcha o mecanismo. Então o imperador mandou, finalmente, perguntar quem é que, na verdade, trouxera, o relógio para o palácio e, em seguida, essa pergunta percorreu em sentido contrário toda a escala hierárquica do palácio, até ao porteiro. Pois o imperador não podia recobrar a sua tranqüilidade antes que o estrangeiro pusesse o relógio a caminhar de novo.

Sucedeu assim que, um belo dia, o sábio Doutor Li acompanhado por dois mandarins da corte transpôs o imenso portão do palácio imperial, subiu uma escadaria de mármore flanqueada por dois leões de cobre e caminhou ao longo da margem daquele riacho, que serpenteava por através de todo o palácio. Cheio de admiração contemplou ele os numerosos lagos e colinas artificiais, os muitos edifícios cobertos de telhas de vidro amarelo-ouro, a ponte dos dragões, de jaspe negro e os inumeráveis e magníficos vasos de mármore e porcelana. Depois de longa peregrinação os seus guias o conduziam por através de uma segunda muralha gigantesca que dava para um jardim, o qual parecia ainda maior e mais suntuoso do que o primeiro. Por sobre um terraço erguia-se um anlo átrio de mármore branco, e aí estava reunido um grande número de mandarins ilustres, metidos em vestimentas de seda brilhante.

Esses dignatários rodearam o estrangeiro e depois um lhe entregou o relógio e ordenou-lhe que o pusesse de novo em marcha. O Doutor Li inclinou-se com o respeito adequado, tomou o relógio na mão, abriu-o e executou alguns rápidos manejos dentro dele. Em seguida a isso devolveu-o ao mandarim e ei-lo a tiquetaquear de novo como dantes. Os mandarins manifestaram admiração cortês e agradeceram ao Doutor Li, com o que esse foi de novo levado para fora do palácio.

Na manhã do dia imediato, para grande pesar do imperador, o relógio parou de novo e os funcionários da corte se viram obrigados a chamar o Doutor Li outra vez ao palácio. Isso se repetiu uma terceira vez, e agora Li trouxe ainda consigo dois quadros religiosos e um relicário ornamentado com pedras preciosas. Pediu, submissamente, permissão para entregar essas coisas ao Filho do Céu como tributo, juntamente com uma petição desenhada em belíssimos caracteres chineses, na qual se podia ler:

“Vosso humilde súdito conhece exatamente a esfera celeste, a geografia, a geometria e a aritmética. Com auxílio de instrumentos observa ele as estrelas e sabe manejar o gnômon. Seus métodos concordam, em tudo e por tudo, com os dos sábios chineses. Se o imperador houver por bem não repelir um homem ignorante e indigno; se, pelo contrário, permitir ele ao mesmo, sejam os seus escassos dotes aproveitados, então é o seu mais vivo desejo colocar-se, inteiramente, ao serviço de um tão grande príncipe.”

Tributo e petição, de acordo com o cerimonial, foram primeiramente apresentados a Li-Pu, ministro dos ritos; esse os encaminhou ao grande conselho dos mandarins da corte com uma decisão pouco favorável. “A Europa” , escreveu Li-Pu, “não tem ligação de nenhuma espécie conosco e não aceita as nossas leis. Os quadros que Li Mateo oferece como tributo representam um “Senhor do Céu” e uma Virgem, e não possuem nenhum valor especial. O estrangeiro entregou também um estojo, o qual, segundo o seu dizer, deve conter ossos de imortais; como se os imortais, quando vão para o céu, não levassem consigo os seus ossos! Em um caso análogo o sábio Ran Yu decidiu que não se deveriam introduzir no palácio novidades dessa ordem, pois traziam desgraça. Somos, portanto, de opinião que não é oportuno aceitar os presentes e nem tão pouco permitir a estadia de Li ma-teo na corte. Será bom que o façam voltar para o seu país.” Mas ao Imperador aprouve decidir de outra maneira, e quando despediu o padre, depois da primeira audiência, já o Filho do Céu sabia, perfeitamente, a maneira pela qual o relógio poderia ser posto de novo em andamento, caso parasse; apesar disso ordenou ele ao Doutor Li que voltasse na manhã seguinte e a mesma coisa se repetiu no dia imediato. Pois Rici relatara ao imperador, naquela primeira manhã, cousas referentes a um novo aparelho astronômico, que estava sendo utilizado na Europa e que dava muito melhores resultados do que os antigos utensílios de medição. Agora o imperador desejava explicações mais minuciosas sobre a maneira por que esse gnômon europeu era construído. Depois que Rici explicara isso, minuciosamente, no dia seguinte surgiu ainda um outro setor da astronomia, cuja menção, aparentemente casual, pelo Doutor Li, despertou o interesse do imperador. Assim é que Rici sabia, por ocasião de todas as audiências, deixar cair uma observação, magistralmente, a qual deixava o soberano curioso e o induzia a mandar chamar o missionário de novo para junto dele.

Não se passou muito tempo até que o estrangeiro, que era dono de conhecimentos tão variados e extraordinários, veio a se tornar indispensável ao imperador. Mais tarde deu ele ao missionário até mesmo a incumbência de mandar vir para a corte, também, os seus conanheiros de crença, dos quais Rici a todo o instante falava; esses outros sacerdotes cristãos eram, assim o assegurava o mesmo Doutor Li, ainda mais versados na astronomia do que ele próprio. Dentro em breve os jesuítas estavam morando já no interior da “ muralha cor de rosa” , isto é, no recinto em que apenas os mais altos funcionários podiam se instalar, e o imperador lhes tinha fixado uma renda mensal, sob a forma de arroz e prata. Os piedosos quadro sobre os quais o ministro dos ritos se manifestara outrora de maneira tão desfavorável, pendiam agora da mais linda parede do salão de recepção, e, à frente deles, estava colocado sobre uma peanha suntuosa, ricamente trabalhada, o relicário; à frente dessas dádivas do doutor estrangeiro ardia, constantemente, o incenso em vasos de bronze de grandes dimensões, e nos candelabros que representavam pássaros de cores variegadas, ardiam noite e dia círios pintados com animais e flores. Em tão alta honra eram tidos agora os presentes do Doutor Li.

Por fim Rici foi incumbido da missão de ministrar o ensino de matemática, de ciências e de moral ao filho predileto do imperador. Não podia deixar de suceder agora, que os ministros também o convidassem e igualmente o solicitassem para explicações das ciências matemáticas e da moral. Dentro em pouco houve na corte de Pequim muitos batismos. Quando Rici morreu, bimbalhavam no império chinês já mais de trezentos sinos cristãos; o imperador declarou-se disposto a cuidar da sepultura de Rici e para esse fim fez presente aos missionários de um grande terreno. Os novos padres que haviam seguido ao Doutor Li, desfrutavam agora também de elevadíssimo prestígio junto à corte e em todos os assuntos do Estado as seus conselhos eram solicitados. Quando alguns mandarins, no norte do império, manifestaram objeções contra o poder crescente dos padres estrangeiros, o ministro da corte publicou um decreto, no qual os serviços dos jesuítas eram louvados em palavras entusiásticas: “ Mestre Li foi o primeiro que, vindo do longínquo ocidente, entrou na China para aqui ensinar o cristianismo. O imperador o recebeu como seu hóspede, fixou- lhe uma pensão e pagou o seu sepultamento. Desde então os sábios do ocidente sucederam-se uns aos outros na capital... Os príncipes e ministros, os vice-reis, governadores e chefes de distritos honram e amam os estrangeiros e os tomam como seus modelos...”

“Vós, habitantes do país, vos considerais, porventura, mais inteligentes do que o imperador iluminado pelo céu, do que os ministros, discípulos do sábio Confúcio? Acreditai, no peito desses sábios vindos do remoto ocidente não se aninham nem a sede de glória e nem a cobiça! Viajaram eles nove vezes dez mil milhas, para chegar até nós, e afrontaram monstros e antropófagos somente para poder nos salvar da condenação eterna. Que misericórdia!...”

“Por isso eu vos digo, sábios e povo, despojai-vos de vossos preconceitos, dominai vossa antipatia, tomai em vossas mãos os livros dos sábios do ocidente e estudai-os profundamente. Obtereis, assim, iluminação e depois ficareis ruborizados de repulsa pelos vossos antigos erros!”

A lei suprema da China era o Tao, a lei do universo, segundo a qual se moviam os astros, a lua peregrinava no céu, o sol se ensombrecia, os caules brotavam do solo, as árvores se copavam em coroas de folhas, os arroios murmuravam e os mares oscilavam na vazante e na cheia. O homem deveria envidar todos os esforços para harmonizar a sua vida e a sua atividade com a força do Tao; só então lhe era lícito esperar, posto em harmonia com essa ordem divina, alcançar felicidade e bem-estar. Mas ao imperador fora pelos deuses inosta a missão de guiar o povo por meio de leis e regras, de maneira que o Tao humano entrasse em consonância com o Tao celeste; para esse fim o soberano tinha que aperceber os seus súditos, de ano a ano, antes de mais nada, com um calendário exato.

Já havia muito tempo antes, o imperador Jao ordenara a publicação de um “livro das indicações do tempo” , e, desde então, não se passava ano sem que “ o imperial tribunal da matemática” tivesse de estabelecer, com a ajuda de instrumentos colocados na muralha sul do palácio, rigorosos cálculos astronômicos. Já havia muito se sabia durava o ano trezentos e sessenta a cinco dias e seis horas; sabia-se que dezenove revoluções do sol coincidiam com trezentas e vinte e cinco lunações, e com o auxílio de clepsidras haviam-se calculado as épocas de culminação dos astros mais importantes e as revoluções da lua e dos planetas, com grande exatidão. Assim é que os astrônomos chineses possuíam coordenadas bastantes para poder determinar com antecipação, de maneira aproximativamente exata, os fenômenos celestes que se iam dar cada ano. Depois de um ritual especial, o calendário era então dado à publicidade. Os funcionários do tribunal matemático dirigiam-se, vestidos de gala, ao “ pavilhão dos dragões” e ali depositavam uns exenlares destinados ao imperador e às suas esposas; depois eram depositados nos outros pavilhões os calendários para as princesas e os mais altos dignatários, sobre mesas vermelhas, e, finalmente, como sinal de respeito para com a nova lei do ano, seguia-se uma procissão solene por através do palácio inteiro. No calendário estavam fixadas todas as ações que podiam ser praticadas e todas as que o não deveriam ser de maneira exata, conforme pontos de vista macrocósmicos. Com letras vermelhas e pretas anunciava ele os dias e horas favoráveis e os dias e horas nefastos ao trabalho agrícola, à celebração dos casamentos, às mudanças de residência, às reparações em navios, à caça, à pastagem do gado, aos sepultamentos e execuções. Quem observasse essas indicações do calendário, poderia estar sempre certo de um resultado feliz nos seus empreendimentos.

Entretanto, para o imperador, o calendário era o utensílio por meio do qual ele conseguia garantir a ordem no império. A obediência absoluta, que todo o chinês estava pronto a demonstrar com relação ao Tao celeste, manifestava- se na submissão completa ao soberano, pois esse havia presenteado o seu povo com o mais importante de todos os livros. Se o começo do ano era fixado exatamente pelo tribunal matemático, começo esse que era denominado o “tscheng” e, com isso, o calendário estava certo, então a ordem estava assegurada em todo o reino: O imperador governava, assim, de acordo com as leis do céu, os funcionários exerciam as suas funções fielmente, o lavrador podia contar com boas colheitas. Mas se o “ tscheng” estava errado, ou se se tinham insinuado erros nos cálculos dos astrônomos, então o calendário, ao invés de guiar o povo com mão firme, segundo o Tao, desviava-o do caminho do universo; então surgiam aquelas temíveis perturbações, contra as quais já o sábio Juc’ling pusera de sobreaviso tão instantemente. Eis que agora estava sucedendo, desde havia muitos anos, que as colheitas se tornavam sempre piores, que as execuções se amontoavam, que os ministros governavam egoisticamente e roubavam como corvos. O imperador Wan-Li, da dinastia dos Mings, já mal conseguia fazer valer as suas ordens, pois o império todo era uma só fermentação. Cada vez mais abertamente falava-se na corte imperial, nos palácios dos mandarins e nas pobres cabanas dos Coolies que o Império do Meio tombara nas garras da desordem; porque o governo não estava mais de posse do verdadeiro Tao celeste. Profundamente inquieto passou o imperador a deliberar dia e noite com os seus ministros sobre a maneira pela qual era possível por um termo à desgraça progressiva, e na sua perplexidade acabou ele se voltando para os jesuítas. Os padres refletiram longamente, tomaram medidas, cobriram resmas de papel com cálculos de toda a espécie é afirmaram, por fim, que o tribunal matemático cometera erros grosseiros no estabelecimento do calendário; que, desde havia muito tempo já, os cálculos astronômicos do tribunal estavam errados e, por causa disso, o celeste império vinha sendo regido por decênios inteiros, de acordo com falsos calendários. Essa afirmação produziu uma consternadora impressão no palácio imperial. Naturalmente que a princípio dignos mandarins protestaram contra o fato de que os sacerdotes estrangeiros ousassem censurar instituições antiquíssimas, e o fizeram zelosamente como guardiães da grande tradição; mas, dentro em breve, o próprio céu se encarregou de dar testemunho a favor dos jesuítas.

Na China os eclipses solares eram considerados fenômenos sumamente importantes; o imperador tinha que ser avisado disso já um mês antes, e todos os altos mandarins eram obrigados a se reunir no pátio do tribunal astronômico na hora aprazada, revestido com as insígnias dos seus cargos. Eis que agora os jesuítas haviam predito um eclipse solar para um determinado dia e haviam dado mesmo a hora exata desse acontecimento, muito embora nada constasse sobre isso no calendário oficial.

Quando, depois, na hora profetizada o disco solar começou, de fato, a escurecer, quando todos os dignatários reunidos, de conformidade com o ritual prescrito, lançaram-se ao solo e deram com a fronte em terra, quando na cidade inteira o eco dos tambores e timbales ressoou, então os jesuítas tinham ganho a partida por longo tempo, pois, agora, estava evidenciado que os métodos de cálculo dos astrônomos chineses não valiam nada, e que o calendário, segundo o qual o império estava sendo governado, era realmente falso. O imperador ordenou imediatamente que, para o futuro, o tribunal matemático não se utilizasse mais dos métodos maometanos enregados até então, mas trabalhasse de acordo com os processos europeus; o padre jesuíta Adam Schal foi incumbido de executar a reforma do calendário. Nele passou-se a ver daí em diante um novo Confúcio, um sábio que o céu enviara expressamente para restabelecer a ordem destruída do universo. Esperava-se confiantemente de sua atividade, que, de agora em diante, as colheitas também melhorassem, que os funcionários não continuassem roubando e que as agitações no país cessassem. Mas, antes ainda que o padre Schal pudesse haver terminado as correções começadas dos antigos cálculos, caiu sobre a dinastia dos imperadores Ming a desgraça aquela que, necessariamente, teria que se seguir a um governo realizado de conformidade com calendários inexatos. As comoções intestinas não queriam mais terminar, e os tataros no norte e no oeste do império aproveitaram-se dessa circunstância para iniciar um ataque à muralha chinesa. De novo observaram os jesuítas fiel amizade ao imperador, mostrando-se tão versados agora nos assuntos estratégicos como já o haviam feito antes na astronomia. Quando os ministros e generais não sabiam mais como fazer frente ao ataque dos tártaros, o padre Schal se ofereceu para ensinar aos chineses a arte da fundição de canhões e para organizar a toda a pressa um arsenal talhado segundo modelos europeus. Agora, sob a direção dos padres, fundiam-se, afanosamente, canhões, e foram os missionários também a quem coube a tarefa de ministrar a instrução à tropa que iria servir a essas peças. Assim foi possível, dentro em breve, opor aos tataros o exército chinês com artilharia superior e, por fim, os inimigos tiveram outra vez que recuar por sobre a Grande Muralha. Entretanto os padres tinham chegado muito tarde à China, de modo que já não lhes era mais possível colocar de novo o governo dos Mings em harmonia completa com a lei do Tao. Pouco tempo depois explodiu de novo a sublevação. Um exército rebelde avançou até à capital e conquistou mesmo o palácio imperial. O Filho do Céu não vendo mais nenhuma possibilidade de se escapar da prisão, suicidou- se. Na confusão geral reinante, um general chinês resolveu chamar em socorro os mandchurianos tataricos contra os revoltosos. Eles vieram de fato, sufocaram a rebelião, mas depois dirigiram-se logo a Pequim afim de tomarem posse para si mesmos do império.

O último príncipe da geração dos Ming morreu banido no sul do país, depois de ter se convertido ao cristianismo juntamente com sua mãe e ter recebido na pia batismal o nome de Constantino. Mas os jesuítas passaram a servir, daí por diante, aos imperadores mandchús com a mesma fidelidade que haviam dedicado antes aos Mings, pois, no fim de contas lhes era completamente indiferente saber quem governava a China, desde que tivessem a possibilidade de conquistar o Império do Meio para Jesus Cristo, valendo-se de um trabalho lento, metódico. Os novos soberanos por sua vez, a despeito de sua origem tatarica, sentiram-se iguais ao “ filhos do céu” , os quais tinham a missão de governar o mundo segundo as leis do Tao; por isso necessitavam eles também de um calendário certo, e, portanto, dos astrônomos jesuítas.

Logo nos primeiros decênios do domínio Mandchú evidenciou-se também que, sob a nova dinastia, não reinava melhor ordem: o jovem imperador Chun-tsche perdeu a sua esposa favorita e o único filho havido com ela, e essa morte o abalou de tal maneira, que resolveu abdicar e recolher-se a um convento budista. Para que não se repetisse uma tal desgraça, foi dedicado cuidado especia1 ao calendário. Por isso o padre Schal foi nomeado diretor do tribunal matemático, recebendo também a dignidade de “ mandarim de primeira classe.”

Nesses dias o imperador publicou um edito, no qual era louvada entusiasticamente, não apenas a ciência européia, mas também “ a lei do soberano celestial” , quer dizer o cristianismo. Dez eunucos da corte, entre esses o criado favorito do imperador receberam o batismo e, se o Filho do Céu mesmo não se deixou induzir a dar esse passo, em compensação protegeu ele os missionários e permitiu-lhes prédica livre em toda a parte, chegando mesmo a consentir na edificação de uma igreja cristã em Pequim.

O padre Schal prestou também ainda grandes serviços, como conselheiro militar e prosseguiu com o seu curso de instrução de artilharia. O seu prestígio, no entretanto, foi crescendo de tal maneira, que, dentro em breve, começaram a surgir contra ele os invejosos inimigos e intrigantes de praxe. A época era tanto mais propícia a esses, quanto o conselho da regência que agora dirigia os negócios, durante a menoridade do imperador Kang-hi, sentia poucas sinatias por inovações.

O matemático maometano Yan-kan-siem, que aspirava mesmo à presidência do tribunal matemático, levantou contra o padre Schal a acusação da traição à pátria; afirmou que a estadia dele na China servia a objetivos hostis ao Estado e constituía para o governo um grande perigo. O conselho da regência não estava nem um pouquinho seguro do seu domínio e, por isso, farejava conspirações por toda a parte; assim é que o padre Schal foi preso, levado diante do tribunal e, finalmente, condenado à morte. As correções introduzidas no cálculo do calendário pelos jesuítas tinham que ser suprimidas, seus livros, queimados. A direção do tribunal matemático foi conferida a Yan-kan-siem. Não obstante Schal não iria terminar no cadafalso e nem Yan-kan-siem na cadeira presidencial: sucedeu na verdade, que, depois que o calendário começara de novo a ser calculado segundo os antigos métodos, os mandarins se reuniram, um dia, debalde, no pátio do tribunal matemático, afim de aguardarem um eclipse solar anunciado por Yan-kan-siem; o astro luminoso não fazia a menor menção de se adaptar aos cálculos do novo presidente da astronomia. Em compensação a padre jesuíta Verbiest declarara já havia algumas semanas antes, que o eclipse solar se realizaria em um outro dia e em uma outra hora; dado, porém, que agora ninguém mais dera atenção às palavras do missionário, as autoridades deixaram de saudar esse tão importante fenômeno celeste, da maneira solene prescrita pelo ritual, quando ele se realizou, de fato, de acordo com as profecias de Verbiest. Com isso fora dada, de novo, uma demonstração frisante para a incapacidade de Yan- kan-siem e para a exatidão dos cálculos jesuíticos. Se o império não queria soçobrar, então não lhe restava outra coisa senão confiar de novo aos jesuítas a determinação do calendário. Por isso, o padre Verbiest foi chamado para junto do imperador e declarou logo a esse que os cálculos dos astrônomos chineses não apenas estavam errados, mas que, mais ainda, os instrumentos da época ainda de Kublai Khan, em uso no observatório de Pequim, não funcionavam mais com exatidão. Em troca disso, porém, ele se propunha a construir aparelhos novos e de absoluta confiança, iguais aqueles que usava o grande astrônomo europeu Tycho Brahe.

Apenas decorrera um ano e já se erguia em uma colina o novo observatório jesuítico, com os seus instrumentos: uma esfera armilar para determinar a posição das estrelas, um astrolábio para avaliar a latitude e a longitude dos astros, um instrumento para calcular as altitudes e o azimute e um telescópio; Verbiest mandara fabricar todos esses aparelhos rigorosamente de acordo com as indicações de Tycho Brahe e, além disso, não se esquecera de ornamentá-los, conforme o gosto chinês, com cabeças de dragões e letras de toda a espécie.

A partir daí os eclipses solares começaram a concordar de novo com o calendário, pois Yan-kan-siem tinha sido expulso com insultos e opróbrios e substituído por Verbiest. O ministério dos ritos que se manifestara decisivamente contra o cristianismo, no tempo do processo Schal, chegou, agora, à opinião igualmente decisiva de que a religião dos estrangeiros não continha absolutamente nada que pudesse prejudicar o bem do Estado, pelo contrário, a lei moral cristã deveria ser designada como “ excelente”. Todos os dispositivos decretados contra os missionários foram revogados e os jesuítas que estavam presos, receberam indenizações do governo. Depois da morte de Verbiest o imperador ordenou a celebração de exéquias solenes, como, aliás, só cabiam aos dignatários de categoria mais elevada. Mandarins ilustres, no meio deles o cunhado do imperador, o comandante da guarda de corpo e o comandante do palácio, tiveram de acompanhar a cavalo o esquife. Os cristãos da capital e das localidades circunjacentes marcharam a frente do cortejo levando à mão círios acesos e bandeiras, seguindo- se-lhes os missionários com paramentos brancos, e cinqüenta cavaleiros da guarda imperial encerravam o cortejo. Quando algum tempo mais tarde o vice-rei de uma província quis tomar atitude hostil contra os missionários e os seus catecúmenos chineses, o imperador Kang-hi publicou um edito de tolerância em forma.

“Os homens do ocidente” , proclamou o soberano, “ puseram em ordem o cálculo do calendário; durante a guerra repararam eles os antigos canhões e fabricaram outros novos. Em conseqüência disso muito fizeram eles pelo bem do império e sempre se deram a grandes trabalhos. Muito embora seja permitido a qualquer um, visitar os templos lamaistas, budistas e quaisquer outros, afim de ali queimar perfumes, vós pretendeis proibir aos europeus, que aliás não praticam nada proibido, que façam isso. Essa diferença de tratamento nos parece destituída de lógica e somos de opinião que, daqui por diante, ninguém possa ser inedido de queimar perfumes nos templos ao senhor celestial.”

Com esse edito fora reconhecida, de agora em diante, na China formalmente também, a liberdade da religião cristã.