QUARTA PARTE

FUNDADOR DA COMPANHIA DE JESUS

(1534-1541)


I. UMA ASSOCIAÇÃO SECRETA

Dois espanhóis apresentaram-se um dia em casa do Inquisidor-mor, prior dos Dominicanos da rua Saint-Jacques, Mateus Ori; era em Fevereiro de 1535.

- Reverendo Padre, - lhe disse um deles-cumprimos um dever de consciência advertindo Vossa Reverência de que se passam coisas graves entre os estudantes.

- Fale; de que se trata?

- Reverendo Padre, um estudante de teologia, que Vossa Reverência conhece bem, formou uma associação secreta que parece ser uma religião nova. Não sabemos se são as doutrinas de Calvino as que eles adoptaram, ou se é uma seita que começa a formar-se, porque os filiados guardam segredo absoluto; o que é certo, é que eles têm reuniões, nas quais não admitem toda a gente e aparentam uma santidade com a qual ninguém se deixa iludir. É numerosa essa associação?

- São sete, entrando no número o chefe, Ínigo de Loiola, que perverteu as mais belas inteligências, os mais robustos talentos, aqueles que maior honra faziam à Universidade de Paris. Quase todos são espanhóis, e não podemos ver com indiferença incutir aos nossos compatriotas o veneno da heresia, sem suplicar a Vossa Reverência que dê remédio a isto.

- Mas D. Ínigo não é herético, - disse o Inquisidor porque diariamente me traz jovens que os partidários de Lutero e de Calvino haviam seduzido e que ele converteu; a sua doutrina pareceu-me sempre ortodoxa; fiquem os senhores tranqüilos.

Esta resposta não agradou a Miguel Navarro, o mais ardente denunciante de Inácio.

Miguel, abatido por um momento pelo acontecimento sobrenatural que o tinha impedido de realizar o seu projecto criminoso contra a vida do santo apóstolo, sentiu reviver todo o seu ódio quando descobriu a existência dum laço secreto entro D. Francisco e Inácio de Loiola; e, quando teve conhecimento das frequentes reuniões, tão recomendadas aos seus discípulos pelo nosso Santo, prometeu a si mesmo empregar todos os esforços para perder aquele a quem o Céu o havia forçado a poupar a vida. Insistiu, pois, com o Inquisidor e acrescentou

- Meu Reverendo Padre, conhece o livrinho de que se serve Ínigo de Loiola para seduzir a juventude?

- Não; que livro é esse?

- Ah ! aí é que está o grande mistério! Ele não o comunica. senão àqueles que querem escutar os seus discursos. Para isso, faz desaparecer o seu homem, encerra-o -Deus sabe onde! - com esse pequeno livro, e ao cabo dum mês, pouco mais ou menos, o recluso reaparece. Mas está tão mudado que ninguém o reconhece, e algum tempo depois vai encerrar-se provavelmente num convento da nova seita. Meu Padre, Vossa Reverência deve compreender que este livro é para nós motivo de inquietação. Se é ortodoxo, porque - o oculta e só dá conhecimento dele aos iniciados? Se o não é, porque o deixa a Inquisição nas mãos daquele que o emprega para seduzir e perder as almas?

- Repito, - replicou o Inquisidor levantando-se - tenho a doutrina de D. Ínigo por muito conforme à da Igreja. Quanto à associação de que me fala e ao livro cujo perigo o preocupa; tomarei informações.

Miguel e o seu cúmplice retiraram-se descontentes das disposições de Mateus Ori. Tinham pouca confiança no resultado das informações e teriam preferido que o Inquisidor procedesse doutra maneira, e ordenasse provisoriamente a captura do nosso Santo.

Entretanto, as dores de estômago voltaram a apoquentar Inácio, o que não impedia de se entregar a austeridades espantosas, a longas orações, aos cuidados dos doentes nos hospitais, ao apostolado e aos seus estudos teológicos. Ninguém compreendia como ele podia atender a tantas coisas. Passava longas horas na igreja de Nossa Senhora des Camps, mui pouco freqüentada, e onde estava sempre quase só. Muitas vezes retirava-se ao fundo dum caminho de Montmartre e abandonava-se ali à oração; certo de não ser incomodado, e aproveitava esta solidão para se disciplinar valentemente.

Agravando este regime os seus sofrimentos, Inácio cedeu às instâncias dos seus amados discípulos e consultou médicos, que lhe ordenaram como único remédio eficaz fosse tomar os ares pátrios. O nosso Santo hesitou em separar-se daqueles que acabava de dar a Deus e à sua Igreja havia tão pouco tempo; mas, depois de ter implorado as luzes do céu, decidiu empreender a viagem. Xavier, Laynez e Salmeron deviam fazer uma renúncia legal dos bens que possuíam em Espanha. Enviá-los pessoalmente a regular estes negócios, seria expô-los a todas as seduções de suas famílias, que não se poupariam a esforços para os afastar da sua vocação.

Inácio de Loiola encarregou-se, pois, da sua procuração, e ficou resolvido que, depois de ter regulado os seus próprios negócios, se dirigiria às famílias dos seus amigos para regular os deles.

Adoptado este plano, estava o nosso Santo chegado ao momento de o pôr em execução, quando soube que o Inquisidor mandou tirar informações sobre a sua pessoa, as suas ações e a sua doutrina; dizia-se que novas acusações feitas contra ele motivavam estas medidas.

Meus amigos, - disse ele logo aos seus discípulos - fui denunciado como herético, sectário, corruptor da juventude em matéria de fé... Se partir, não se deixará de dizer que quero subtrair-me pela fuga ao exame da minha doutrina e dos meus atos; prefiro, pois, antes de me afastar, adoptar todas as providências possíveis, não só para vós durante a minha ausência, mas para todos nós no futuro.

Dirigiu-se em seguida a casa do Inquisidor e disse-lhe com uma santa dignidade:

- Reverendo Padre, sei que me denunciaram como herético. Aqui estou para responder a todos os pontos de doutrina sobre que apraza a Vossa Reverência interrogar-me, e pronto a fazer uma profissão de fé, como Vossa Reverência a quiser formular. Deixei-me acusar, prender, acorrentar em Alcalá e Salamanca, sem me dar ao cuidado de me justificar, porque era. eu o único comprometido e pouco me importava com a minha pessoa. Mas hoje não se trata só de mim; tenho amigos, associados, todos homens de grande valor e de eminente virtude, que se destinam, como eu, às funções apostólicas. Ora, importa que a reputação dos ministros do Evangelho seja pura de toda a mancha de heresia.

- Não fiz caso algum das acusações que lhe assacaram; - lhe respondeu Mateus Ori - sei o que devo pensar sobre a pureza da sua fé; tomam-se informações com o único fim de confundir os seus caluniadores. Peço-lhe apenas que me deixe ver um livrinho com que eles fazem muito barulho e que dizem que o senhor oculta a todas as pessoas, menos aos seus discípulos.

- Aqui está, Padre, - disse Inácio, apresentando-lhe o livro dos Exercícios Espirituais. Muito me obsequia se quiser ter o incômodo de o examinar.

Alguns dias depois, o Inquisidor pediu ao nosso herói que lhe concedesse licença para copiar o livro

- Peço-o, - acrescentou ele - para que me possa servir para meu bem espiritual e para o das almas que dirijo.

- Consinto nisso da melhor vontade, - lhe respondeu o Santo -satisfeito por poder provar a Vossa Reverência que estou longe de querer fazer segredo dele, como se afirma.

Mas esta aprovação era insuficiente para Inácio de Loiola; era-lhe necessário um documento formal, duma autenticidade irrecusável, que pudesse apresentar, no caso de necessidade. Depois do Inquisidor ter já o livro copiado, o Santo apresentou-se-lhe de novo, acompanhado dum escrivão e de três doutores da Sorbona:

- Reverendo Padre, - lhe disse ele - venho pedir-lhe que me dê um documento declarando formalmente que fui caluniado em todas as acusações de que fui objecto; que Vossa Reverência não encontrou nada de repreensível na minha fé e que o livro dos Exercícios Espirituais é perfeitamente ortodoxo. O tabelião que está presente escreverá esse documento, e peço a Vossa Reverência que o assine e que também o assinem os doutores que fizeram o favor de vir comigo.

O Inquisidor fez o que desejava o santo apóstolo e. foi mais longe ainda; porque juntou à sua declaração o mais completo elogio daquele que venereva como Santo. A humildade de Inácio ficou humilhada; mas, apesar das suas instâncias, não pôde obter um testemunho menos favorável acerca da sua santa vida.

Estando a partir para Espanha, Inácio fez os preparativos, renovou as recomendações aos seus queridos discípulos e designou Pedro Fabro para os dirigir a todos na sua ausência, porque, sendo ele o único elevado ao sacerdócio, devia ter o respeito de todos. Quis partir a pé; mas os seus discípulos opuseram-se em razão da sua fraqueza e sofrimentos: compraram-lhe um pobre cavalo estropiado, que ele certamente montou sem escrúpulo, apesar do seu voto de pobreza.

Ignora-se a data precisa da partida, mas é provável que fosse a 26 de Março, porque levava uma carta de Xavier a seu irmão mais velho com data de 25 de Março de 1535