III. EXPANSÃO MARAVILHOSA E INCIDENTES DOMÉSTICOS

O santo fundador da Companhia de Jesus, - pode-se julgar pelos fragmentos que ficam transcritos - vivia entre o céu e a terra, e nunca estava longe de Deus pelo pensamento. Deve surpreender que o inferno o perseguisse com o seu ódio e lhe suscitasse tão frequentes perseguições? Deve surpreender que o céu o cobrisse sempre com a sua proteção e o fizesse triunfar tão gloriosamente dos seus inimigos?

Não havia ainda um ano que a Companhia fora erecta em Ordem religiosa, que, devido à reputação de ciência e de virtude dos seus membros, todos os Estados europeus pediam para possuir alguns deles. Não podendo o rei de Portugal conseguir a conservação em Lisboa dos dois santos apóstolos que lhe tinham sido dados, enviou Francisco Xavier para as Índias, segundo a decisão de Inácio, e conservou Simão Rodrigues, a quem encarregou de fundar um colégio de apóstolos da sua santa Companhia para as necessidades de Portugal e das suas possessões nas Índias, e tomou a seu cargo todas as despesas deste estabelecimento.

D. Pedro Ortiz, que tinha obtido do Papa o favor de levar consigo Pedro Fabro para a dieta de Worms, aonde se dirigia como embaixador de Carlos V, solicitou depois autorização para o levar para a Espanha, onde esperava ver-lhe fazer tanto bem como na Alemanha. Mas Pedro Fabro tinha operado prodígios para a glória de Deus em Worms, em Viena e em Ratisbona; estas duas últimas cidades não consentiram em perdê-lo senão com a condição de que lhe dariam um outro membro da Companhia para o substituir. O Papa concedeu dois à Alemanha: Nicolau Bobadilha, que tirou da ilha de Ischia, e Cláudio Lejay.

A Irlanda fez ver o perigo a que a apostasia de Henrique VIII expunha a fé católica das suas populações, e o Soberano Pontífice pediu ao nosso Santo dois dos seus apóstolos para ali a manterem com o seu zelo e a santidade da sua vida; Inácio designou os Padres Salmeron e Broet. Tinha escolhido a princípio João Codure, mas tendo sido adiada a partida para a Irlanda, o Padre Codure caiu doente e de modo que se receou pela sua vida. A 29 de Agosto desse mesmo ano de 1541, Santo Inácio, acompanhado do Padre Laynez, ia dizer missa pelo seu querido doente, à igreja de S. Pedro in Montorio, quando, passando pela ponte de Sixto, parou de repente e disse ao Padre Laynez:

- Voltemos a casa, porque o nosso Codure está morto.

Tinha morrido com efeito, no momento em que o nosso Santo teve a revelação. Notou-se que o Padre João Codure, nascido a 24 de junho, festa do nascimento do seu padroeiro, recebeu as sagradas ordens a 24 de junho e faleceu no mesmo dia e na mesma idade que o santo precursor.

Salmeron substituiu-o na missão da Irlanda. O Papa deu-lhe, assim como ao Padre Broet, o título e os poderes de Núncio apostólico, como tinha dado a Francisco Xavier ao partir para o Oriente.

O santo fundador estava, pois, espoliado dos seus primeiros, dos seis mais queridos discípulos; restava-lhe ainda o Padre Laynez; a república de Veneza pediu-o com tanta instância, que lhe foi concedido.

Ë verdade que o número dos noviços era já considerável. É sabido que alguns esperavam apenas uma palavra do Santo para virem submeter-se a tudo o que ele deles exigia. Recebeu-os logo que a Companhia foi aprovada pelo Papa, e o noviciado era tanto mais fácil ao seu fervor, que Santo Inácio os havia preparado de há muito tempo. Encontramos ali o querido sobrinho do Santo, Antônio de Araoz; Francisco Estrada, a quem ele tinha impedido de ir alistar-se no exército de Nápoles; Diogo de Eguia, o amigo que o ajudara nas boas obras de Alcalá, e que encontrou em Veneza e Pedro Ribadeneira. Todos lembravam a Inácio a virtude dos seus primeiros discípulos, todos se amavam com incomparável caridade. A sua vida angélica espalhava ao longe um perfume. que atraia as almas e as fixava junto deles, ou as ligava a Deus para sempre.

Um ardente luterano, que foi a Roma para fazer propaganda herética, empregou meios tais de proselitismo que o prenderam. Era muito jovem e tinha assaz talento para dar esperança de voltar a abraçar a verdade; mas tudo o que se fez para o esclarecer, só conseguiu irritá-lo. Tiveram então a idéia de o meter na casa de Santo Inácio, e de se não ocuparem dele na aparência; não acreditavam que ele resistisse por muito tempo ao espetáculo que teria a todos os instantes diante dos olhos. Inácio acolheu-o com a sua benevolência e mansidão ordinárias, disse-lhe que seria completamente livre no interior e que se lhe não pedia outra coisa senão que evitasse o barulho, que perturbava o recolhimento, e as conversas fora das horas dos recreios, porque o silêncio era necessário naquela casa.

O jovem herege, satisfeito de respirar um ar tão puro, de viver numa atmosfera tão tranqüila, tão doce, tão embalsamada, acha-se vencido sem dar por isso. Procurou conhecer a mudança da sua disposição e a sua consciência respondeu-lhe que a tranquilidade de espírito, a paz da alma, a alegria do coração não se encontravam senão na verdade. O que ele via, o que admirava, era o Evangelho em ação; o que sentia, o que saboreava com delícia, era o perfume evangélico, era o espirito da verdadeira fé que se aproximava dele pelo efeito das orações e dos méritos da Companhia de Jesus.

Depois da sua conversão, um grande personagem perguntou-lhe como pudera resistir tanto tempo às razões e às provas dos mais sábios doutores

- Porque, - respondeu - a discussão é irritante, ao passo que o exemplo é poderoso. Depois de ver todas as virtudes, toda a santidade do Padre. Inácio e da sua Companhia, pareceu-me impossível que a verdadeira fé se não achasse unida a essa vida tão pura, tão doce, tão mortificada, tão angélica; foi isto somente ó que me comoveu e esclareceu.

E ele tinha sido testemunha das provas a que a virtude dos noviços era submetida. Santo Inácio não admitia senão Santos na sua Companhia de heróis. Se as provas não fortificavam os noviços de maneira a garantir verdadeiros Santos,. recusava promovê-los à profissão...

- Se eu desejasse que a minha vida fosse prolongada, - dizia ele-, seria para redobrar de vigilância na escolha dos nossos súbditos.

Antônio de Araoz, seu sobrinho, entrara no noviciado vestido com uma capa de veludo bordada a ouro, como todos os fidalgos; Inácio quis que ele trouxesse aquele fato, durante o seu noviciado, até cair a pedaços. Antônio, assim vestido, ia pedir esmola nas ruas de Roma, servir os doentes nos hospitais, lavar a louça na cozinha da casa,, fazer. os mais rudes serviços, sempre metido na sua capa de veludo recamada de bordados de ouro! Para o orgulho espanhol era uma rude prova. Antônio sofreu-a heroicamente durante dois anos, prova que se tornava de dia para dia mais meritória pela deterioração da capa, que era um objecto ridículo.

O santo fundador fez também suportar igual humilhação a D. João de Mendonça, governador do forte Santo Elmo,, em Nápoles, a quem Deus tinha chamado à Companhia. Quanto mais ilustre era, humanamente, o nascimento dos noviços,, tanto mais o fundador queria destruir o orgulho até às mais profundas raízes. Os noviços, realmente chamados, longe de se queixarem destas provas humilhantes, apreciavam-lhe as imensas vantagens e aceitavam-nas com avidez. Os homens mais sábios, os Padres mais distintos pelo seu mérito e virtudes, vinham colocar-se debaixo da bandeira do santo fundador e submeter-se às mesmas provas, de que nenhum noviço era. dispensado.

Inácio vigiava tudo e informava-se com exactidão dos progressos de todos. Ia surpreendê-los algumas vezes nos hospitais onde serviam os doentes, a fim de julgar por si mesmo da maneira como cumpriam este dever. Não deixava nunca impune a mais leve falta, nem conservava aqueles que eram aferrados à própria opinião, se lhes não via uma vontade bem determinada a desapegarem-se dela. Para os levar a este desapego, ordenava-lhes coisas sem utilidade aparente, ou que podiam parecer impossíveis; fazia-lhes abandonar uma ocupação para os empregar noutra. O noviço devia chegar à mais perfeita indiferença de vontade.

Assim, o santo fundador ordenava a um pregador que se ocupasse dos negócios da casa, sem cessar as suas pregações; queria que o professor de teologia ensinasse gramática; enviava o professor de teologia à cozinha. Um Padre preparava-se para celebrar a Santa Missa e estava já revestido dos paramentos; vinham adverti-lo de que o Padre geral lhe queria falar e o Padre devia tirar os paramentos e ir onde a obediência o chamava. Chegado diante do Padre geral, este dizia-lhe simplesmente

- Vá dizer missa.

O noviço, satisfeito por ter de oferecer a Deus este ato de obediência imprevista, agradecia ao superior do fundo do coração, porque sabia que a virtude se fortifica pela prova.

Se sucedia que um noviço adiava a execução duma ordem, pela interpretação que dava à vontade do superior, Inácio mandava-o chamar no momento em que ele menos esperava, e impunha-lhe uma penitência. Foi o que aconteceu um dia a um Padre que confessava e quis acabar a confissão começada : foi punido pela demora. Pedindo-lhe um dia um Padre licença para fazer uma peregrinação, o Santo recusou-lha; o noviço insiste e o Santo pune-o, dizendo-lhe que mereceu a punição, não pelo pedido em si, mas pela sua disposição em preferir a sua própria satisfação à obediência.

O Padre Emerio de Bonis foi empregado na sacristia, durante o primeiro ano do seu noviciado, e era então muito jovem. Todos os dias encontrava à porta da igreja as mais nauseabundas imundícies, e contentava-se de as limpar humildemente. Tendo Inácio adquirido a certeza de que as imundícies eram postas, por maldade, por uma pessoa que morava em frente da igreja e cuja vida era escandalosa, ordenou a Emerio de Bonis que fosse pedir a essa mulher que lançasse as imundícies de sua casa noutra parte. O jovem noviço, um pouco tímido e duma modéstia angélica, não podendo resolver-se a dirigir a palavra a uma mulher daquelas, pediu a um outro que desempenhasse aquela comissão tão pouco agradável. Inácio soube-o, aprovou a modéstia de Emerio, mas censurou-lhe a desobediência e puniu-o: impôs-lhe por penitência que fosse todos os dias, ao refeitório, com uma campainha ao pescoço, e dissesse em voz alta, uma vez em cada refeição, estas palavras: "O quero e não quero não moram nesta casa".

O fervoroso e modesto noviço sofreu esta penitência durante seis meses.

Quando um noviço vinha pôr-se de joelhos diante de Inácio, para lhe pedir perdão e penitência, o Santo concedia um e impunha a outra, e, depois de algumas palavras, terminava dizendo: Levante-se. Se o noviço não se levantava imediatamente, Inácio deixava-o de joelhos e saía, dizendo: "A humildade não tem mérito quando é contrária à obediência".

Um dia o nosso Santo conversava com um fidalgo, quando um Irmão coadjutor, que ele tinha chamado se apresenta. Inácio fez-lhe sinal para se assentar; mas o Irmão, temendo faltar ao respeito ao seu superior e ao visitante, ficou de pé. Santo Inácio ordenou-lhe que pusesse sobre a cabeça o banco em que devia assentar-se e fê-lo estar assim até que o fidalgo se retirou.

Um Padre flamengo, muito escrupuloso, levava muito tempo a recitar o ofício divino, recomeçando sempre e querendo chegar a dizê-lo sem distração; mas a sua pretensão só lhe fazia perder muito tempo e ter mais escrúpulos. Todos os conselhos que lhe deram não tinham dado resultado satisfatório; Santo Inácio, sabendo que ele era assaz obediente para aceitar todos os remédios que lhe fossem dados, imaginou um, violento é verdade, mas que salvou o doente. Proibiu-lhe que empregasse mais duma hora a recitar o ofício, e, dando-lhe um relógio de areia disse-lhe que havia de acabar apenas o último grão de areia caísse; fosse qual fosse a parte do ofício que lhe restasse, devia renunciar a ele. O pobre flamengo via-se entre dois fogos! Se não terminasse a tempo, era forçado pela obediência a faltar a uma obrigação rigorosa; se cumpria esta obrigação tão importante, como Padre, pecava gravemente contra a obediência, como religioso. Entre estes dois escolhos, tomou a resolução da corrida, e, evitando-os a ambos, acabava sempre antes que o último grão de areia caísse; foi deste modo curado desse gênero de escrúpulos.

Santo Inácio esforçava-se por manter o espírito de união e de perfeita caridade entre os noviços, a fim de que eles o levassem às casas aonde fossem enviados; queria que cada um deles, quando abandonasse os seus irmãos, encontrasse novos irmãos em toda a parte onde vivesse com membros da Companhia. Para obter este espírito de caridade entre os membros de uma família destinada a tão grande aumento, punia severamente a menor palavra pouco favorável dum noviço a respeito doutro. Sabendo um dia que um deles se permitira falar dos singulares efeitos do delírio que a febre dava a um de seus irmãos, Inácio infligiu-lhe uma penitência de alguns dias.

O nosso Santo empregava todos os meios de doçura e de persuasão para levar os noviços a sentir e apreciar as vantagens destas provas; quando via que não podia alcançar o completo desprendimento da sua opinião ou da sua vontade,, despedia-os sem ter em consideração as outras qualidades de que eram dotados, e fossem quais fossem as suas outras virtudes ou as ciências que possuíssem. Não tinha mais contemplações com o nascimento. Expulsou D. Teotónio, filho do duque de Bragança e sobrinho de D. Manuel, rei de Portugal, com receio de que o seu espírito irrequieto semeasse a agitação e a desunião entre os irmãos; despediu também um primo do duque de Bivona, parente do vice-rei da Sicília, que era seu amigo e benfeitor. Pedro Ribadeneira pediu, suplicou ao Santo que perdoasse a esse jovem, que se oferecia para sofrer os mais severos castigos; as lágrimas e as petições de Ribadeneira não puderam vencer o santo fundador.

- Quando o Padre Inácio decide uma expulsão, - dizia D. Teotónio, que o sabia por experiência - não há nada que o mova a misericórdia.

A sua misericórdia não se deixou vencer também a respeito de Cristóvão Laynez, irmão do Padre Diogo. Cristóvão, depois duma vida dissipada nos prazeres, quis entrar na Companhia, mas Inácio, não lhe reconhecendo vocação alguma, despediu-o, apesar de todas as suas instâncias e as de seus parentes. Ribadeneira pediu-lhe que lhe fornecesse meios para voltar a Espanha, porque ele tinha gasto o seu patrimônio e achava-se na miséria:

- Meu Pedro, - respondeu-lhe o Santo - ainda que eu possuísse todos os tesouros da terra, não daria um óbolo àqueles que se tornam indignos de ficar na Companhia. Eles não podem esperar, quando a abandonam, que ela os reembolse das fadigas que padeceram, como se as não tivessem dado gratuitamente a Deus Nosso Senhor, mas as tivessem apenas emprestado à Companhia; assim como não podem esperar, que, depois de terem recebido todos os dias o necessário, como interesse, tenham direito ainda a exigir a título de dívida, que lhe restituam o capital.

Desde a sua eleição ao generalato, o nosso Santo trabalhava nas Constituições da sua Ordem e dedicava-lhe algumas horas todos os dias. Se durante o dia lhe faltava o tempo, tomava à noite essas horas de trabalho, apesar dos seus sofrimentos e da sua fraqueza. Meditava muito tempo cada constituição, orava muito, escrevia em seguida, e quando terminava uma parte, colocava-a de manhã sobre o altar em que dizia missa, oferecia-a a Nosso Senhor, e pedia-lhe que lhe fizesse conhecer se a aceitava assim, ou se devia ser modificada, acrescentada ou cortada em alguns pontos. João Borelli, que ajudava à missa, foi muitas vezes testemunha disso. Conquanto Santo Inácio tivesse recebido, a respeito das Constituições, as luzes mais certas, a sua profunda humildade fazia-o proceder como se tivesse sido privado de qualquer revelação do alto. Disse um dia ao Padre Laynez:

- Diogo, não crês que Deus haja revelado a todos os fundadores as Constituições próprias da Ordem que haviam de estabelecer?

- Penso que sim, meu Padre, estou intimamente persuadido disso.

- É também o que eu penso, - replicou o nosso Santo [53].