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Antes de abandonar Alcalá, o nosso santo apóstolo despiu o
vestuário dos estudantes, que lhe tinham imposto, e retomou a
sua pobre túnica cinzenta, o chapéu da mesma cor e o bordão
de peregrino; conservou, porém, calçado.
Foi assim que ele se apresentou diante do Arcebispo de
Toledo. O Prelado acolheu-o com uma bondade paternal, animou
o seu zelo, prometeu-lhe proteção e aconselhou-o a que não
voltasse a Alcalá, onde os seus inimigos podiam renovar as
perseguições, mas se dirigisse a Salamanca, onde poderia
continuar os estudos e ocupar-se das suas costumadas obras.
Dado este conselho, o Arcebispo entregou-lhe uma esmola
considerável para a viagem de Valhadolid a Salamanca.
Chegado a esta última cidade, Inácio experimentou tanto
desprazer pelo estudo como em Alcalá; sentia que Deus o
chamava a outra parte; mas aonde? Ignorava-o ainda. Esperando
conhecer a vontade divina, pôs-se sob a direção de um
religioso dominicano, e empreendeu a conversão dos estudantes
e dos pecadores que encontrava. Falava em público e em
particular todas as vezes que achava ocasião, e, quinze dias
depois da sua chegada, tinha operado tão numerosas
conversões, que a opinião pública alarmou-se.
"- Será conveniente, - dizia-se - que um leigo, um mendigo,
se permita pregar, dirigir as almas, como se fora um doutor
em teologia? Será possível que as suas pregações não sejam
cheias de erros? Deve prevenir-se a autoridade eclesiástica".
Um dia, o confessor do nosso herói convida-o para jantar no
domingo seguinte, em nome do subprior da sua comunidade, e
previne-o de que o desejam interrogar sobre a sua doutrina;
porque os Dominicanos foram advertidos do bom resultado das
suas pregações e querem assegurar-se da sua ortodoxia. Inácio
aceita o convite. Depois de jantar, conduzem-no a uma capela,
onde se encontra o substituto da Inquisição e o subprior que
ocupava o lugar do prior ausente. O religioso que conduzia o
apóstolo era o seu confessor; este último, encarregado de
usar da palavra, submeteu-o a um interrogatório, que terminou
deste modo
-Num tempo em que a heresia causa tantos males, o senhor
recusa dar a conhecer a sua doutrina àqueles que têm direito
de a julgar? Se ela é pura, por que se cala? Se não é, por
que a ensina?
Inácio guardou silêncio.
- E que significa o estranho vestido que usa o seu
companheiro?
Isto dirigia-se a Calisto, que tinha acompanhado Inácio, e
que trazia uma espécie de saia curta, tanto mais ridícula
quanto era elevada a estatura de Calisto. Este último
respondeu:
- Meu Padre, bem sei que este vestido é ridículo; mas
encontrei um desgraçado tão pouco coberto, que lhe dei parte
da minha roupa.
O subprior, olhando Calisto com uma espécie de desprezo,
acompanha o seu olhar com um sorriso de incredulidade, e
dirigindo-se a Inácio
- Como recusa dar a conhecer a sua doutrina, saberemos
forçá-lo a isso.
Depois destas palavras, pronunciadas no tom da mais viva
indignação, retira-se com os seus irmãos e deixa Inácio e
Calisto a sós na capela; fecham as portas do convento, em
seguida vêm procurar Inácio e conduzem-no a uma cela. O nosso
herói passa três dias no convento comendo com a comunidade,
recebendo na sua cela os religiosos que vêm vê-lo e ouvi-lo
falar de Deus e esperando que à Providência aprouvesse
decidir da sua sorte.
No quarto dia, o substituto da Inquisição apresenta-se e
manda levar Inácio e Calisto para uma prisão. São encerrados
com os maiores criminosos, num lugar onde se exala um cheiro
fétido e cujos muros ressumam humidade por toda a parte.
Acorrentam-nos um ao outro com uma cadeia tão curta que os
pés de ambos se tocam e não podem fazer movimento algum sem
incômodo e dor e sem que um arraste o outro. É uma verdadeira
tortura! Passam a noite em oração e bendizem a Deus do fundo
do coração. Sabendo-se no dia seguinte que foram presos,
apressam-se pessoas amigas a visitá-los e levando-lhes camas,
alimentos, tudo, enfim, que pudesse dulcificar a sua
intolerável posição.
O bacharel Frias, vigário geral do Bispo, vem interrogar
Inácio e Calisto na prisão, cada um separadamente. Depois de
ter respondido a todas as perguntas que lhe foram dirigidas,
o nosso herói entregou ao vigário geral o seu livro dos
Exercícios Espirituais e pediu-lhe que o examinasse. Alguns
dias depois, fizeram comparecer Inácio diante de um conselho
composto de quatro doutores em teologia: Isidro, Paravinha,
Frias e o vigário geral, que também se chamava Frias. Cada um
por sua vez o interrogou sobre as mais delicadas e difíceis
questões: sobre a Santíssima Trindade, a Encarnação, a
Eucaristia e até sobre o direito canônico. Inácio pediu
indulgência, por humildade. Bem sabia que nenhum homem sem
estudos possuía a ciência que o próprio Deus lhe dera; mas,
forçado a obedecer, enche de admiração os doutores que o
escutam. Fazem-lhe perguntas sobre o primeiro mandamento...
Inácio não é senhor de si, deixa falar o seu coração, a sua
alma, e parece ter esquecido tudo, exceto Deus e o ardente
amor que o inspira. Os seus examinadores estavam
admiradíssimos e também julgavam amar a Deus naquele momento
tanto como Inácio o amava.
Havia ainda uma dificuldade relativa aos Exercícios
Espirituais. Como é que um homem sem estudos pode distinguir
claramente. o pecado venial do pecado mortal?
- Não o acusamos de incorrer em erro; mas censuramos-lhe a
temeridade.
- A vós cumpre julgar e não a mim; - respondeu Inácio - se os
princípios postos são ortodoxos, absolvei-nos; se são
errôneos, condenai-nos.
Ninguém ousou condená-los.
Por negligência inexplicável, e que a Providência permitiu
sem dúvida em favor do santo apóstolo, a porta da prisão
ficou aberta uma noite inteira. Todos os prisioneiros se
aproveitaram disso para se evadirem. Inácio e Calisto foram
os únicos que se recusaram a aproveitar-se disso para
readquirir a liberdade. Este facto provava suficientemente a
sua inocência; assim o compreenderam, mas o processo
eclesiástico devia fazer-se com todas as formalidades
exigidas, e o cativeiro teve que prolongar-se alguns dias
ainda; todavia, foi suavizado. Tiraram-lhe a cadeia que o
ligava a Calisto e deram-lhe um quarto por cima das enxovias
destinadas aos malfeitores. Uma coluna, colocada no centro,
sustentava o tecto do quarto. A esta coluna estava presa uma
cadeia que terminava por duas pontas, a cada uma das quais
prenderam um dos pés dos nossos prisioneiros. Um deles não
podia mover-se sem arrastar o seu companheiro; mas, ao menos,
estavam sós.
Este quarto, assaz espaçoso, tornou-se logo uma espécie de
lugar público; tudo ali ia para ver e ouvir o Santo. D.
Francisco de Mendonça [34], que o visitava freqüentemente,
disse-lhe um dia
- Como deve ser dolorosa esta prisão! Como esta cadeia deve
ser pesada!
Não, senhor, - lhe respondeu o nosso herói - não há
cativeiro, por duro que seja, que me não agrade sofrer por
Jesus Cristo; não há pesadas cadeias que não esteja disposto
a arrastar com prazer para lhe testemunhar o meu amor!
Uma piedosa e nobre senhora escreveu-lhe para exprimir a
parte que tomava nos seus sofrimentos imerecidos; Inácio
respondeu-lhe imediatamente
- "V. Ex.a parece ignorar que a cruz encerra um tesouro de
glória. Não me pranteie, felicite-me antes, porque estou
alegre. O meu mais ardente desejo é sofrer ainda mais se, com
isso, eu for mais agradável ao soberano Senhor, que tenho a
honra de servir".
Vinte e três dias depois da sua prisão, Inácio e Calisto
compareceram de novo diante dos juízes e ouviram pronunciar a
sua sentencia nestes termos:
"A vida de Ínigo é pura, a sua doutrina é ortodoxa. Ele e
seus discípulos podem instruir o povo. É-lhes proibido,
todavia, explicar a diferença entre pecado mortal e pecado
venial antes de terem estudado teologia durante quatro anos.
Sob esta condição, serão postos em liberdade".
Inácio de Loiola inclinou-se e disse aos seus juízes:
- Conformar-me-ei com a condição que me é imposta durante o
tempo que esteja sob a vossa jurisdição.
Esta proibição de definir a natureza dos pecados, de que ele
falava, pareceu ao zelo do nosso Santo um obstáculo
invencível. Julgou ver nisso uma manifestação da Providência
e preparou a sua partida. Os seus discípulos, pouco dispostos
a segui-lo doravante numa vida tão aventurosa, fizeram
inúteis esforços para o convencerem a ficar:
- A vontade de Deus chama-me a outra parte, - lhes disse -
mas vós não sois obrigados a seguir-me; sou forçado a partir,
separemo-nos pois, mas permaneçamos unidos de espírito e de
coração, e que Deus nos conduza a todos aonde nos chama.
Os seus amigos censuram-no por aquela resolução, que os
privava da sua presença e da edificação que lhes dava. Nada,
porém, o pôde abalar. Pôs os livros e os manuscritos sobre um
jumento e dirigiu-se para Barcelona.
Foi enorme a alegria à sua chegada àquela cidade, onde
contava numerosos amigos; mas a esta alegria sucedeu logo uma
profunda tristeza, porque Inácio declarou que apenas se
demoraria alguns dias e desejava abandonar a Espanha o mais
breve possível. Empregaram-se todos os esforços para o deter,
mas em vão; a sua firmeza triunfou de todas as instâncias e
de toda as lágrimas da amizade.
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