XIV. PLANO DAS CONSTITUIÇÕES

O plano das Constituições estava, enfim, redigido. Eis como foi apresentado pela Bula de Paulo III, que autoriza a Companhia de Jesus. Reproduzimos por inteiro este documento

PAULO, BISPO, SERVO DOS SERVOS DE DEUS.

PARA PERPÉTUA MEMÓRIA.

Proposto, apesar da nossa indignidade, por disposição do Senhor, para o governo da Igreja militante, e compenetrado, para a salvação das almas, de todo o zelo que nos exige o cargo de Pastor, dispensamos todo o favor apostólico aos fiéis, quaisquer que sejam, que abaixo nos expõem os seus desejos, reservando-nos para ordenar depois, segundo o que um maduro exame dos tempos e dos lugares nos façam útil e salutar no Senhor.

Assim, acabamos de saber que os nossos queridos filhos Inácio de Loiola, Pedro Fabro, Diogo Laynez, Cláudio Lejay, Pascásio Broet, Francisco Xavier, Afonso Salmeron, Simão Rodrigues, João Codure e Nicolau Bobadilha, todos sacerdotes das cidades e dioceses respectivas de Pamplona, Genebra, Siguenza, Toledo, Viseu, Embrun, Placência, todos mestres em artes, graduados na Universidade de Paris e exercitados durante alguns anos nos estudos teológicos, soubemos, como dizíamos, que estes homens, impelidos, como piamente se deve crer, pelo sopro do Espírito Santo, se reuniram de diferentes lugares do mundo, e depois de terem renunciado aos prazeres do século, consagraram para sempre a sua vida ao serviço de Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso e dos outros Pontífices Romanos, nossos sucessores. Já têm trabalhado duma maneira louvável na vinha do Senhor, pregando publicamente a palavra de Deus, depois de terem obtido a necessária autorização; exortando os fiéis em particular a levarem uma vida santa e meritória da felicidade eterna, e convidando-os a fazer piedosas meditações; servindo nos hospitais, instruindo as crianças e os simples acerca das coisas necessárias para a educação cristã; numa palavra exercendo com ardor digno de todo o elogio, em todos os países que têm percorrido, todos os ofícios da caridade e todas as funções próprias para a consolação das almas.

Enfim, depois de se terem dirigido a esta ilustre cidade, persistindo sempre no laço da caridade, a fim de conservar e cimentar a união da sua Sociedade em Jesus Cristo, formularam um plano de vida conforme aos conselhos evangélicos, às decisões canônicas dos Padres, segundo o que a sua experiência lhes ensinou ser mais útil ao fim que se propõem. Ora, este gênero de vida, expresso na fórmula de que falamos não somente merece os elogios de homens sábios e cheios de zelo pela honra de Deus, mas agradou tanto a alguns deles, que tomaram a resolução de a abraçar.

Eis essa fórmula de vida, tal como foi concebida:

"Qualquer que na nossa Companhia, a qual desejamos que tenha o nome de Jesus, pretenda alistar-se sob o estandarte da cruz, para ser soldado de Cristo e servir somente a Nosso Senhor e à sua Esposa, a Santa Igreja, sob a direção do Romano Pontífice, Vigário de Cristo na terra, persuada-se de que, depois dos três votos solenes de perpétua Castidade, Pobreza e Obediência, fica feito membro desta mesma Companhia. Foi ela principalmente instituída para trabalhar no aperfeiçoamento das almas na vida e doutrina cristã, e na propagação da fé, por prédicas públicas e pelo ministério da palavra de Deus, por exercícios espirituais e obras de caridade, principalmente ensinando o catecismo às crianças e àqueles que não estão instruídos no Cristianismo, e ouvindo as confissões dos fiéis para sua consolação espiritual. Deve também proceder de modo que tenha sempre diante dos olhos em Primeiro lugar a Deus, e em seguida a fórmula deste instituto, que abraçou. É um caminho que a ele conduz, e deve empregar todos os esforços para atingir este fim que o próprio Deus lhe propõe, segundo todavia a medida da graça que recebeu do Espirito Santo, e segundo o grau peculiar da sua vocação, com receio de que algum se deixe arrastar a um-zelo que não seja segundo a ciência. É o geral ou prelado que nós escolhermos que decidirá desse grau peculiar a cada um, assim como dos empregos, os quais estarão todos na sua mão, a fim de que a ordem, tão necessária em qualquer comunidade bem dirigida, seja observada. Este geral terá autoridade de fazer Constituições conformes ao fim do instituto, com o consentimento daqueles que lhe sejam associados e num conselho onde tudo será decidido pela pluralidade dos sufrágios."

"Nas coisas importantes e que devem subsistir no futuro, este conselho será a parte da sociedade que o geral puder reunir comodamente; e, para as coisas ligeiras e momentâneas, todos aqueles que se encontrarem no lugar da residência do geral. Quanto ao direito de mandar, pertencerá completamente ao geral. Saibam, pois, todos os membros da Companhia e lembrem-se, não -somente nos primeiros tempos da sua profissão, mas todos os dias da sua vida, que toda esta Companhia e todos aqueles que a compõem combatem por Deus sob as ordens do nosso Santo Padre o Papa e dos outros Pontífices Romanos seus sucessores. E, ainda que nós tenhamos sabido pelo Evangelho e pela fé ortodoxa, e que façamos profissão de crer firmemente que todos os fiéis de Jesus estão submetidos ao Pontífice Romano como ao seu chefe e ao vigário de Jesus Cristo; entretanto, a fim de que a humildade da nossa Companhia seja ainda maior, e que o desprendimento de cada um de nós e a abnegação das nossas vontades sejam mais perfeitos, julgamos que seria muito útil, além desse laço comum a todos os fiéis, ligarmo-nos também por um voto particular, de sorte que se alguma. coisa que o Pontífice Romano atual e os seus sucessores nos ordenarem, relativamente ao progresso das almas e à propagação da fé, sejamos obrigados a executá-lo no mesmo instante sem tergiversar nem nos desculparmos, seja qual for o pais a que nos enviem, quer seja aos. Turcos ou outros infiéis, mesmo nas Índias, quer aos heréticos: e cismáticos ou a quaisquer fiéis. Assim pois, aqueles que queiram juntar-se a nós examinem bem, antes de se sobrecarregarem com este fardo, se têm suficientes fundos espirituais para poderem, segundo- o conselho do Senhor, acabar esta torre; isto é, se o Espirito Santo, que os impele, lhes. promete bastantes graças para que possam esperar que hão-de levar, com seu auxilio, o peso desta vocação; e quando, por inspiração do Senhor, se hajam alistado nesta milícia de Jesus Cristo, é necessário que, cingidos os rins dia e noite, estejam, sempre prontos a pagar esta imensa dívida. Mas, a fim de que não possamos nem aspirar a estas missões nos diferentes países, nem recusá-las, todos e cada um se obrigarão a não fazei jamais a este respeito nem direta, nem indiretamente, nenhuma solicitação junto do Papa, mas se abandonarão completamente à vontade de Deus, do Papa como seu vigário e do geral. O próprio geral prometerá, como os outros, nada solicitar do Papa quanto ao destino e missão da sua pessoa, a não ser que sela com consentimento da Companhia."

"Todos farão voto de obedecer ao geral em tudo o que: diga respeito à observação da nossa regra, e o. geral prescreverá as coisas que possam convir ao fim que Deus e a sociedade têm em vista. No exercício do seu cargo, recorde-se sempre o geral da bondade, da doçura e da caridade de Jesus Cristo, assim como das palavras tão humildes de S. Pedro e de S. Paulo,, e ele e o seu conselho não se afastem nunca desta regra."

"Tenham a peito, sobre todas as coisas, a instrução das crianças e dos ignorantes no conhecimento da doutrina cristã, dos dez mandamentos e outros semelhantes elementos, segundo o que convenha, tendo em consideração as circunstâncias das pessoas, dos lugares e dos tempos. Porque é muito necessário que o geral e o seu conselho vigiem este artigo com muita atenção, quer porque não é possível construir sem fundamento o edifício da fé entre o próximo tanto como é conveniente, quer porque é de recear que suceda entre nós que, à proporção que se sela mais sábio, se recuse a esta função por ser menos bela e menos brilhante, apesar de a não haver mais útil, nem ao próximo para sua edificação, nem a nós mesmos para nos exercitar na caridade e na humildade. Quanto aos inferiores, tanto por causa das grandes vantagens que disso hão-de advir à ordem, como para-a prática assídua da humildade, que é uma virtude que não se pode assaz louvar, serão obrigados a obedecer sempre ao geral em todas as coisas que se refiram ao Instituto; e na sua pessoa deverão ver Jesus Cristo como se ele estivesse presente, e o reverenciarão tanto como é conveniente."

"Mas, como a experiência nos ensina que a vida mais pura, mais agradável e mais edificante para o próximo é aquela que mais afastada está do contágio da avareza, e é mais conforme à pobreza evangélica, e sabendo também que Nosso Senhor Jesus Cristo fornecerá o que for necessário para a vida e vestuário aos seus servos que não procurem senão o reino de Deus, queremos que todos os nossos, e cada um deles, façam voto de pobreza perpétua, declarando que não querem adquirir nem em particular, nem mesmo em comum, para a sustentação ou uso da Companhia, nenhum direito civil a bens imóveis ou a quaisquer rendas, mas devem contentar-se com o que se lhes der para os usos necessários da vida. Todavia, poderão ter nas universidades colégios que possuam rendas, censo e fundos aplicáveis ao uso e necessidades dos estudantes, conservando o geral e a sociedade toda a administração e superintendência sobre os ditos bens e sobre os referidos estudantes, acerca da escolha, recusa, recepção e exclusão dos superiores e dos estudantes, e sobre os regulamentos relativos à instrução, edificação e correção dos ditos estudantes, a maneira de os alimentar e vestir, e qualquer outro objecto de administração e de regime, de modo contudo que nem os estudantes possam abusar dos ditos bens, nem a Sociedade convertê-los em seu uso, mas somente acudir às necessidades dos estudantes. E os ditos estudantes quando haja certeza dos seus progressos na. piedade e na ciência, c depois duma suficiente prova, poderão ser admitidos na nossa Companhia, na qual todos os membros que tenham ordens sacras, ainda que não tenham benefícios nem rendas eclesiásticas, serão obrigados a dizer o ofício divino segundo o rito da Igreja Romana., cada um separadamente e em particular, e não em comum ou em coro. Tal é a imagem que nos foi possível traçar da nossa profissão sob os auspícios de nosso senhor, Paulo III e da Sé apostólica. O que fizemos com o fim de instruir, por este sumário escrito, aqueles que presentemente se informam do nosso Instituto, e aqueles que nos sucederão no futuro, se acontecer que, por vontade de Deus, tenham imitadores neste gênero de vida. Tem ele grandes e numerosas dificuldades, como sabemos por nossa própria experiência, julgamos por isso conveniente ordenar que ninguém seja admitido nesta Companhia senão depois de ter sido experimentado bastante tempo com muito cuidado. Só quando se tenha feito conhecer como prudente em Jesus Cristo, e se haja distinguido pela doutrina e pela pureza da vida cristã, é que poderá ser recebido na milícia de Jesus Cristo. Apraza ao mesmo Senhor favorecer as nossas pequenas empresas para glória de Deus Pai, ao qual só é devida glória e honra em todos os séculos. Amen."

Ora, não encontrando nesta exposição nada que não seja piedoso e santo, a fim de que esses mesmos associados, que nos fizeram apresentar a esse respeito a sua petição, abracem com tanto mais ardor o seu plano de vida quanto mais se sintam agraciados com o favor da Sé apostólica; Nós, em virtude da autoridade apostólica, pelo teor destas presentes e de ciência certa, aprovamos, confirmamos, abençoamos e garantimos duma perpétua estabilidade a precedente exposição, o seu conjunto e as suas minudências; e quanto aos associados, nós os tomamos sob a nossa proteção e a da Santa Sé apostólica; concedendo-lhes todavia que redijam livremente, e em pleno direito, as Constituições que julguem, conformes ao fim desta Companhia, à glória de Nosso Senhor Jesus Cristo e à edificação do próximo, não obstante as Constituições e ordenações apostólicas do concílio geral e do nosso predecessor de feliz memória, o Papa Gregório X, ou de outros quaisquer que lhes sejam contrários.

Queremos entretanto que as pessoas que desejarem fazer profissão deste gênero de vida, não possam ser admitidas na Sociedade, nem nela serem aceitas, além do número de sessenta.

Ninguém, pois, tenha a temeridade de infringir ou de contradizer nenhum dos pontos aqui expressos de nossa aprovação, de nosso acolhimento, de nossa concessão e de nossa vontade. Se alguém ousar atentá-lo, saiba que incorrerá na indignação de Deus todo-Poderoso e dos bem-aventurados Apóstolos S. Pedro e S. Paulo.

Dado em Roma, em S. Marcos, no ano da Encarnação do Senhor de 1540, quinto das calendas de Outubro, sexto do nosso pontificado.

Redigido e aceito o plano pelos seus discípulos, Inácio, de Loiola fê-lo apresentar e submeter ao Papa pelo Cardeal Gaspar Contarini. Tendo Paulo III acolhido com benevolência a fórmula que lhe foi apresentada, entregou-a a Tomás Badia, dominicano, mestre do sacro palácio, encarregando-o de a examinar. Tomás Badia, depois de a ter em seu poder dois meses, mandou-a, aprovando-a em todos os pontos, ao Cardeal Contarini, a fim de que a entregasse ao Papa, então em Tivoli. O Cardeal dirigiu-se ali no dia seguinte e leu o projecto a Paulo III que, depois de o ter escutado atentamente, pronunciou estas notáveis palavras: "O dedo de Deus está aí". O Cardeal apressou-se a escrever ao nosso Santo a dar-lhe esta boa notícia. Mas esta aprovação verbal do Soberano Pontífice não bastava para fazer redigir e expedir a Bula erigindo a Companhia em ordem religiosa. Havia formalidades a cumprir,, que de ordinário levam muito tempo. O Papa nomeou uma comissão de três Cardeais, reputados como os mais virtuosos, prudentes e sábios e declarou que se conformaria com a sua opinião. Um dos três Cardeais escolhidos devia dirigir este importante negócio e ninguém, mais que ele, era oposto à aceitação duma nova ordem religiosa. Era o Cardeal Bartolomeu Guidiccioni a quem a sua elevada virtude e talento haviam feito julgar digno da Santa Sé, e de quem o Papa Paulo III disse, quando soube a notícia da sua morte: "Acaba de falecer o meu sucessor".

O Cardeal Guidiccioni queria reduzir a quatro as ordens religiosas existentes; tinha muitas vezes exprimido esse desejo e chegou até a fazer essa proposta ao Sumo Pontífice.

E foi ele o escolhido para decidir acerca da autorização apostólica solicitada pela Companhia de Jesus I Não parece que a Providência queria provar de todas as maneiras, que a obra de Inácio de Loiola não era obra de homem, mas realmente obra de Deus?

Ouvindo falar deste projecto, o Cardeal Guidiccioni declarou francamente que se não ocuparia dele:

- É - disse ele - um pensamento condenável por si mesmo, porque é contrário ao bem da Igreja ; pois degenerando uma ordem religiosa com o tempo, termina por ser mais prejudicial do que foi útil no seu princípio.

A opinião dum homem deste valor arrastou a dos outros Cardeais, e o Papa só encontrou oposição numa questão cujo triunfo desejava, e na qual havia reconhecido "o dedo de Deus".

Sabendo desta decisão, Inácio de Loiola disse aos seus discípulos:

- O Cardeal Guidiccioni é-nos oposto, toda a comissão é contra nós, mas Jesus Cristo Nosso Senhor é por nós, e ser-nos-á favorável, porque temos a sua promessa: oremos e esperemos.