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Recordar-se-ão os nossos leitores da heróica dedicação de
Francisco Xavier pelos doentes duma esquadra espanhola, forçada a
arribar em Ambóino na ocasião em que ele ali chegava;
lembrar-se-ão também dos prodígios da sul, singular caridade, da
sua heróica mortificação, do completo esquecimento de si próprio
para salvar todos os doentes atacados de escorbuto.
Entre aqueles doentes, achava-se D. Cosme de Torres, padre
espanhol, um dos homens mais sábios daquela época, e que pelo seu
amor pelas ciências se deixara arrastar à Índia na esquadra de
Carlos V.
Tomara grande parte nos cuidados ternos e delicados do nosso Santo, e
aquela vida de sublime abnegação parecera-lhe uma maravilha que não
acreditaria, se lhe não tivesse sido permitido vê-Ia e
admirá-la, durante quatro meses seguidos, sem diminuir de coragem.
Por seu lado, Francisco Xavier impressionara-se também com as
virtudes e piedade de D. Cosme de Torres, cuja reputação de
ciência e de santa vida, conhecia desde há muito terno e um a outro
se ligaram por uma sincera amizade. Na partida da esquadra o apóstolo
das Índias dera ao seu novo amigo uma carta de recomendação para o
Padre reitor do colégio de Goa, onde ele foi recebido de braços
abertos.
A vida tão perfeita dos Padres daquele colégio havia excitado a
admiração do sacerdote espanhol, a. ponto de lhe fazer desejar
ardentemente a entrada na Companhia de Jesus.
O Padre Lanciloti dirigia-o nos Exercícios espirituais; e quanto
mais vivo se tornava o seu desejo, mais ele adiava os votos e queria
esperar ainda. Flutuava nesta penosa incerteza, quando o grande
apóstolo chegou a Goa para ali passar o inverno, e encontrando-o no
colégio, acolheu-o como a um dos seus irmãos, abraçou-o e
estreitou-o ao coração exclamando:
- Cosme de Torres! que feliz me sinto por vos ver aqui, meu
queridíssimo irmão!
- Sim, meu caro Padre, se me quereis, eu serei dos vossos;
achava-me ainda numa constante incerteza; mas vendo-vos,
abraçando-vos, fez-se luz em mim; sinto que Deus me quer aqui.
Francisco Xavier tinha toda a segurança naquele apelo. Agradeceu a
Deus por uma tal aquisição, e reservando para a conquista do
Japão, na qual seriamente meditava, a ciência do novo
missionário, encarregou-o de instruir três japoneses, a fim de o
familiarizar com as dificuldades da sua língua.
Estes três japoneses, que o nosso Santo mandara embarcar no navio de
Jorge Álvares, quando este deixava Malaca, eram um jovem de
família nobre e muito rica, chamado Angelo, e dois dos seus
domésticos; o apóstolo do Oriente esperava penetrar no império do
Japão, por seu intermédio, com mais facilidade e maiores
esperanças de bom resultado.
Ângelo vai contar-nos, ele mesmo, como a divina Providência o
levou ao conhecimento do Cristianismo e ao desejo de o abraçar.
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PAULO ÂNGELO, PRIMEIRO CRISTÃO JAPONÊS
AOS PADRES E IRMÃOS DA COMPANHIA DE
JESUS EM ROMA
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Goa, 27 de Novembro de 1548.
Que a paz e a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam convosco!
Amem.
Já que foi do agrado daquele que me criou procurar-me como a ovelha
perdida no meio das trevas, para me chamar à luz do seu Evangelho
arrancar-me das prisões da morte e dar-me a liberdade e a vida,
julgo-me obrigado a recorrer a vós todos para render a sua divina
Majestade ações de graças proporcionadas aos grandes favores com que
a sua misericórdia infinita se dignou agraciar-me.
Compenetrado e confundido pela minha incapacidade, peço-vos, meus
queridíssimos irmãos, que suprais a minha indignidade, e para vos
convencer dela, vou expôr-vos aqui os meios extraordinários pelos
quais o Pai celeste me conduziu ao grêmio da Igreja do seu Filho
único e muito amado.
Estando ainda no Japão, há já alguns anos, e perseguido por
inimigos pessoais que conspiravam contra a minha vida, refugiei-me num
convento de bonzos.
Um navio português veio ao mesmo tempo fundear no porto, próximo do
qual se achava situado aquele convento.
Era precisamente o navio de D. Alvaro Vez que outrora conhecera, e
que se apressou em oferecer-me um asilo a bordo; porém, como os seus
negócios o demorariam naquele ancoradouro por muito tempo, para a
minha segurança teve a bondade de escrever a um dos seus amigos que
estava num porto muito afastado, rogando-lhe que me recebesse.
Munido daquela carta, despedi-me de Álvaro, e parti imediatamente
para o porto em que devia encontrar Fernando Álvares, a quem era
dirigida a recomendação de que eu era portador. Cheguei ali de
noite, e por engano remeti a carta a D. Jorge Álvares, capitão
dum outro navio, que me recebeu com amizade, dizendo-me que me
levaria consigo e me apresentaria ao reverendo Padre Francisco
Xavier, seu amigo íntimo. Consenti nisso.
Durante a viagem, quer fosse para me familiarizar com a idéia de ver
o Padre e inspirar-me de ante-mão estima e afeição por ele, quer
fosse para me dar algumas noções do Cristianismo, D. Jorge,
encaminhava sempre a conversação para Xavier, para as suas virtudes
suas grandes ações e efeitos maravilhosos da sua palavra.
Em resultado disso, concebi dois ardentes desejos: o primeiro de
conhecer pessoalmente o ilustre e santo personagem, cujas virtudes e
encantos me eram exaltados em termos tão magníficos, e o segundo de
estudar seriamente uma religião que produz homens tão perfeitos.
Achava-me já tão convencido da verdade daquela religião, que me
teria deixado baptizar logo que cheguei a Malaca, se o senhor vigário
geral não tivesse rosto no meu casamento um obstáculo àquela graça,
por isso que não me devia ser permitido, depois de baptizado, viver
com uma mulher idólatra. Causou-me isso um grande desgosto, mas a
este desprazer se acrescentou um outro não menos pungente.
Eu viera ver o Padre Xavier e ele achava-se ausente! A porta da
Igreja era-me fechada, e aquele que teria podido acalmar e adoçar a
minha dor não estava ali!
Desconsolado, desanimado, resolvi voltar para o Japão: a monção
era favorável embarquei em um navio que devia deixar-me num porto da
China, distante somente duzentas léguas da minha pátria. Cheguei
àquele porto e ali encontrei um barco que partia para o Japão;
passei para ele, e fazendo-se à vela em seguida, contava tornar a
vero meu país com seis ou sete dias de navegação.
Mas Aquele que governa tudo e que dirige as coisas de modo que fiquem
cumpridos os seus desígnios, me levou de novo ao ponto donde tinha
partido, por meios que só d'Ele são conhecidos.
A vinte léguas das costas do Japão, uma tempestade das mais
violentas ameaça-nos dos maiores perigos durante quatro dias, e acaba
por lançar-nos sobre as costas da China, que havíamos deixado.
O perigo que eu acabava de passar, trouxe-me muito sérias
reflexões. Achava-me fatigado, inquieto, ralado de remorsos,
quando vejo dirigir-se para mim D. Alvaro Vaz Foi grande a sua
surpresa por me encontrar na China, quando me supunha em Malaca.
Contei-lhe as minhas aventuras, e o perigo pelo qual acabava de
passar e de escapar-me; achava-me ainda todo molhado e coberto de
espuma do mar. Ofereceu-me de novo o seu navio e convenceu-me a
tentar ainda a viagem para Malaca.
D. Lourenço Botelho uniu-se a ele, e ambos me asseguraram que eu
ali encontraria o Padre Francisco Xavier, que ele me, consolaria de
todos os meus desgostos e sofrimentos, que me instruiria, me
baptizaria, me poria no seminário de Goa e me faria ir depois para o
Japão com os Padres da sua Companhia.
Segui os seus conselhos e voltei com eles a Malaca. A primeira
pessoa que vi quando desembarquei, foi D. Jorge Alvares!
Experimentámos grande alegria por nos tornarmos a ver, e no mesmo
instante ele me levou à catedral, onde o Padre Xavier abençoava um
casamento. Depois da cerimônia, o capitão apresentou-me a ele,
dizendo-lhe quem era e por que vinha.
Atento e com os olhos fixos no Padre Xavier, vi o seu amável
semblante expandir-se numa grande e santa alegria; depois voltando-se
para mim olhou-me ternamente, falou-me com tanta doçura e
testemunhou-me tão grande afecto, que me cativou o coração, e
julguei-me muito feliz por ver a minha extrema ternura tão
completamente correspondida! Na sua comovedora voz, e na doce
expressão, reconheci a divina Providência, admirei o seu poder, e
adorei os seus impenetráveis decretos!
O Padre Xavier destinou-me desde logo para o seminário de Goa;
mas não permitindo a sua visita aos cristãos de Comorim
acompanhar-me, enviou-me antes dele, no navio de Jorge Alvares.
Ele seguiu-nos de perto, porque nós chegámos no dia 1 de Março,
e ele a 4 ou 5 do mesmo mês [56]. Parecia que os ventos e o mar
se combinavam para satisfazer os meus desejos.
Eu suspirava por ele e suspirava ao mesmo tempo pelo batismo, e os
meus votos foram bem depressa cumpridos. Ele chegou; a minha
instrução concluiu-se no colégio, fui baptizado na manhã do
Pentecostes, com os dois domésticos que me haviam acompanhado do
Japão.
É esta a minha história. Espero que com a graça de Jesus Cristo,
Senhor e Criador, de todas as coisas nosso Redentor, que sofreu e
morreu na cruz para nos salvar, ela reverta não somente em meu
proveito pessoal, mas também em glória de Deus, na propagação da
fé e em honra de toda a Igreja.
Quanto a mim julgo-me bem recompensado de todos os meus sofrimentos!
Gozo do maior bem que jamais ousava esperar. Cada dia a fé enche a
minha alma de nova luz; a verdade e a santidade do Evangelho
desenvolvem-se cada vez mais a meus olhos; os benefícios com que
tenho sido favorecido, aqueles que constantemente recebo, as
alegrias, as consolações de que a minha alma se acha cheia,
tornam-me palpável, para assim dizer, o que eu não podia entrever.
Parece-me que adquiri uma vida nova, novas faculdades, e,
finalmente, que Deus me criou de novo. Aprendo o que me ensinam com
uma rapidez que me admira e me confunde. Foi-me necessário tão
poucos dias para eu ler e escrever em língua portuguesa, que a aninha
inteligência parece um prodígio que me faz espantar.
Decorei textualmente palavra por palavra, toda a explicação do
Evangelho de São Mateus que o Padre Cosme de Torres me repetiu
por duas vezes, e traduzi-a em língua japonesa.
O Padre Xavier propõe-se ir para o Japão e promete associar-me
ao seus trabalhos.
Orai, meus irmãos! rogai a Deus que se digne abençoar-nos. Pedi
para mim um reconhecimento, uma gratidão proporcionada aos benefícios
que tenho recebido! eles são tão grandes que Deus se verá, para
assim dizer, obrigado a dar-me forças para sofrer a morte confessando
o seu santo nome, para me não deixar na necessidade de ser ingrato.
O meu coração diz-me que não morrerei sem ter visto no Japão um
colégio da vossa Companhia para o progresso da fé e para glória de
Deus, pela qual eu sou, meus Padres, vosso servo.
Paulo de Santa-Fé.
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Depois do seu batismo, pedira Paulo Angelo a Xavier permissão para
usar o apelido de Santa-Fé, em memória do colégio onde encontrara
a felicidade; autorizado pelo santo apóstolo adoptou aquele nome e
não o deixou nunca.
Um dos seus domésticos chamou-se João e o outro Antônio; eles
imitavam perfeitamente seu amo no fervor da sua piedade e na prática de
todas as virtudes cristãs.
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