VII. NO COLÉGIO DE SANTA BÁRBARA

Era de uso, no colégio de Santa Bárbara, reunir os estudantes de filosofia todos os domingos e dias santificados. Faziam-nos argumentar, na presença de alguns professores, juízes competentes dos seus progressos, e dessas reuniões frequentes e cheias de interesse resultava uma viva emulação, um zelo ardente pelo estudo e pelo trabalho. Inácio de Loiola não comparecia a estas reuniões.

Começando a estudar filosofia, prometeu trabalhar de maneira que pudesse conseguir rápidos progressos. Para isso teve de recalcar no fundo do seu coração o zelo que o devorava pela santificação das almas. Em Alcalá e Salamanca viu que a ciência infusa é tida em pouca consideração pelos homens, e que, sem a ciência adquirida, não poderia nunca exercer o apostolado com a liberdade, autoridade e garantias exigidas pelos teólogos encarregados de velar pela ortodoxia dos ensinos cristãos. Inácio dissera a si mesmo: - "Saibamos sacrificar tudo, até a glória de Deus, para maior glória de Deus!"

E tinha sacrificado tudo para atingir este fim que foi o de toda a sua vida depois da estada em Manresa.

Entretanto, quando encontrava ocasião, sem a procurar, aproveitava-a para fazer amar esse Deus, cuja glória era a mais ardente paixão da sua alma. Conseguia assim levar alguns dos seus condiscípulos à reforma dos costumes, à prática das virtudes cristãs e à frequência dos sacramentos.

O dr. João Penha, professor de filosofia, notou dai a pouco nos seus alunos uma mudança que lhe desagradou.

Vigia, interroga, informa-se e descobre a causa. Chama Inácio em particular e diz-lhe com ira, que não pode dissimular

- Tenho duas censuras a fazer-lhe: a primeira é que não aparece às nossas reuniões de domingo; a segunda é que impede alguns dos seus condiscípulos de comparecer nelas. A estas censuras ajuntarei uma advertência: trate dos seus negócios e não se intrometa nos dos outros, se não quiser ser vítima do seu zelo ridículo e exagerado.

- Se não venho às reuniões, mestre Penha, é unicamente porque me julgo obrigado a obedecer à Igreja, que me ordena que santifique os dias mais especialmente consagrados a Deus; penso que o mesmo motivo afasta aqueles dos meus condiscípulos que se gloriam igualmente de ser cristãos.

- Eles não pensavam nisso antes que o senhor os viesse afastar daquilo que deviam considerar um dever. Tenha, pois, cautela !

O dr. Penha renovou sem resultado, por três vezes, esta advertência. Inácio não deixou, porém, de aproveitar todas as ocasiões que a Providência lhe proporcionava para ganhar para Deus mais uma alma.

Um dia, o dr. Penha, abrasado em cólera, apresentou-se ao reitor do colégio, dr. Diogo de Gouveia

- Mestre, - lhe disse - as nossas reuniões dos estudantes de filosofia estão a tal ponto reduzidas em número que seremos obrigados a suprimi-Ias se não tomar providências enérgicas. E a culpa é desse Ínigo, desse mendigo desconhecido, que se apresenta como inspirado e que parece pago para recrutar jovens para os conventos!

- Foi esse miserável que perdeu Amatore e Peralto no ano passado, - exclamou o reitor furioso. Eu empreguei todos os esforços junto do Inquisidor para o prender; mas o hipócrita teve artes de persuadi-lo de que era um Santo...

- Alguns dos meus alunos - disse João Penha - desapareceram do mundo, há alguns meses para cá, e tomaram o hábito ! Ao domingo, alguns outros deixam de vir argumentar para irem ao sermão, e, de lá, entreter-se acerca de espiritualidades com o seu Ínigo. Não será indigno, da parte desse homem, trazer uma tal desordem ao colégio?

O reitor pareceu reflectir um momento, e depois disse ao professor, com certa satisfação:

- Muito bem, mestre Penha; tem razão; é necessário acabar com este ridículo personagem. Tome providências para que tudo esteja pronto, a fim de o fazer passar pela sala amanhã de manhã, quando chegue do colégio.

Durante o dia houve frequentes segredinhos entre o mestre Penha e seus alunos privilegiados, assim como entre os professores; era evidente que um grave negócio preocupava todos os espíritos, e a curiosidade daqueles que não estavam iniciados na conspiração achava-se muito excitada. Durante as horas de estudo houve muitas distrações; os ouvidos estavam mais atentos às palavras trocadas em voz baixa do que às explicações do Aristóteles.

Ao sair do colégio, Inácio de Loiola foi abordado por um dos jovens estudantes a quem tinha convertido e que ternamente o amava

- Ínigo, - lhe disse - está-se tramando uma horrível conspiração, acerca da qual ouvi algumas palavras, poucas mas suficientes para me esclarecerem... Peço-lhe que não venha amanhã a Santa Bárbara.

- Porquê, meu amigo?

- Porque querem fazê-lo passar pela sala. Oh! é uma infâmia !

- Que quer dizer isso?

- Que quer dizer? Quer dizer que aquele que sofre este castigo fica desonrado para sempre l

- Explique-se meu amigo; em que consiste esse castigo?

- Consiste no seguinte: - Quando aquele que o deve sofrer se apresenta na aula, fecham-se todas as portas, toca o sino e todos os alunos se colocam em volta da sala; os regentes chegam armados de varas, batem no culpado um após outro, e o infeliz é declarado infame, depois do que os pais de família não permitem aos seus filhos que lhe dirijam a palavra.

- E qual é o crime por que me condenam? - perguntou o nosso Santo.

- Pelo bem que nos tem feito, Ínigo.

- É então pela glória de Deus! Reflectirei nisso, e agradeço-lhe ter-me prevenido.

- Não volte mais, peço-lhe! Vá continuar os seus estudos no colégio de Beauvais. Quem ensina lá é D. Francisco Xavier, e o senhor nada perde, porque ele é um dos talentos mais brilhantes.

- Vou consultar a Deus e Ele me inspirará o que devo fazer.

O mestre e o discípulo separaram-se, depois de se terem apertado cordialmente a mão.

O primeiro movimento do nosso herói, quando soube da infame conspiração tramada contra ele, foi o da indignação. Toda a sua orgulhosa natureza se revoltou ao pensamento dum tal castigo; mas o motivo por que lho queriam infligir bastava para o acalmar. Foi mais longe: agradeceu a Deus ter-lhe permitido sofrer esta amarga humilhação e pediu-lhe que o esclarecesse num assunto em que a Sua glória estava tão interessada. No dia seguinte, depois de ter aceitado o sacrifício com a generosidade que lhe conhecemos, encaminhou-se para o colégio de Santa Bárbara. No momento em que entrava, perturba-se, empalidece, sente que ainda é Inácio de Loiola! A sua natureza recusa-se ao ignóbil suplício que o espera; mas olha para o alto... Todos os seus sentimentos humanos são esmagados no mesmo instante e vai transpor o limiar... Uma luz divina o esclarece de repente... Deus está contente com a sua aceitação, e não lhe pede mais; ao contrário, fá-lo parar, porque a salvação de algumas almas está dependente da justificação do seu heróico apóstolo. Inácio sabe o que deve fazer: a vontade divina é-lhe conhecida.

Entra e todas as portas se fecham atrás dele; não se comove e pede para falar ao reitor sobre um negócio importante. Vai ao encontro do dr. Diogo de Gouveia e diz-lhe com nobre e modesta firmeza

- Senhor reitor, um suplício infamante está preparado em punição da bênção que Deus se dignou de espalhar sobre os fracos esforços do seu indigno servo. V. Ex.a deve compreender que, depois de ter sido posto a ferros na prisão de Salamanca e confundido com os últimos malfeitores, por ter cometido o mesmo crime que em Santa Bárbara e por ter ganho algumas almas para Deus, eu sofreria da melhor vontade este castigo, se Deus tivesse nisso alguma glória. Fui prevenido do que me espera aqui esta manhã, e não procurei fugir; vim; mas não sou o único interessado neste negócio; dele depende a salvação de algumas almas; é por isso que apelo para o julgamento de V. Ex.a e tomo a liberdade de perguntar se a justiça cristã ordena que se puna como perturbador aquele que não cometeu outro crime senão trabalhar para fazer conhecer e amar o Mestre de todos nós, o Soberano Senhor Jesus Cristo! Será permitido fazer-me sofrer um castigo ignominioso, com o único fim de afastar de mim as almas que Jesus Cristo me entregou pela sua graça?

O reitor derramava lágrimas. Não respondeu. Depois de alguns instantes, tomou Inácio pela mão, e conduziu-o à, sala onde os regentes, de varas na mão, o esperavam, bem como os alunos. Ao dar o sinal, pôs-se de joelhos diante do apóstolo do colégio e disse, banhado em lágrimas

- Peço-lhe me perdoe o ter acreditado tão levianamente todas as calúnias que espalharam contra si. Perdoe-me a injúria que lhe quis fazer, e que teria feito a Deus na sua pessoa. Com profunda dor o reconheço!

E, deixando-se erguer por Inácio, a quem a comoção impedia de falar, disse a todos os presentes:

- O estudante Ínigo deve ser doravante respeitado por todos como se fora um Santo; tenho-o nessa conta. Ouso dizê-lo na sua presença, apesar da sua humildade, porque a reparação deve ser pública.

Esta cena produziu imenso efeito no colégio. O dr. João Penha exprimiu também o seu pesar ao nosso herói, e desde então teve para com ele a mais alta consideração e afeiçoou-se-lhe sinceramente. Os professores Moseralo e Valho tornaram-se os seus mais calorosos partidários. Na Universidade só se falava da alta santidade do estudante Ínigo; e tendo o dr. Marcial pedido para o ver e conversado com ele algumas vezes, declarou-o mais sábio em teologia do que todos os doutores da Sorbona:

- Na minha qualidade de doutor em teologia, -disse um dia ao nosso Santo - ser-me-ia fácil fazer com que o senhor recebesse este grau antes do fim dos seus estudos. Peço-lhe que o aceite, porque é evidente que o senhor é mais esclarecido que nenhum de nós e que o próprio Deus foi seu mestre.

- Não, senhor doutor, -lhe respondeu a apóstolo todos os obstáculos que tenho encontrado no meu caminho apostólico, provam-me que aos olhos do maior número são indispensáveis os conhecimentos humanos, e eu quero poder afirmar que trabalhei para os adquirir. Com a graça de Deus espero que o conseguirei.