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Dois Padres da casa do Loreto tinham ido em missão a
Macerata, e deviam encontrar-se ali durante os três dias que
precediam a quaresma daquele ano, 1555. Preveniram-nos de que
alguns jovens se preparavam para dar ao povo, durante estes
três dias, a representação de peças de teatro, que se
assegurava serem muito imorais. Os dois jesuítas, em
reparação dum mal que não podiam impedir, anunciam no púlpito
que o Santíssimo Sacramento estará exposto durante aqueles
dias, e convidaram os fiéis a virem adorá-lo. A multidão
corre à igreja. Os jesuítas pregam, obtêm algumas conversões
e participam este resultado ao bom Padre Geral, que quer
saber tudo.
Inácio chora de alegria ao receber esta notícia; tem um
pensamento que o seduz e cuja fecundidade pressente. Ordena
imediatamente a todas as casas da Companhia que exponham o
Santíssimo Sacramento durante os três dias, que precedem a
quaresma, em reparação dos crimes que se cometem durante
estes dias de prazer; depois falou deste pensamento de
reparação ao Papa e aos Cardeais; daí, a instituição do
exercício das Quarenta Horas.
Fica-se como aturdido lançando um olhar sobre todas as
instituições criadas por Inácio de Loiola, ou das que ele
teve o primeiro pensamento. É a ele que se deve a criarão dos
orfanatos, das casas de refúgio, dos asilos para os judeus
convertidos, dos seminários, do Colégio Romano, do Colégio
Germânico, e enfim a instituição das quarenta Horas. O
pensamento duma associação de orações para a conversão da
Inglaterra não é novo: Santo Inácio havia estabelecido essa
associação na sua Companhia, que a conservou. Juntem-se agora
a todas estas obras, tão importantes, os magníficos trabalhos
da santa Companhia de Jesus desde a sua fundação até os
nossos dias e compreender-se-á tudo o que a Igreja e o mundo
devem a Inácio de Loiola..
As forças do nosso Santo declinavam de novo. Decidiu-se a
chamar o Padre Nadal e confiou-lhe o governo, assim como aos
Padres Polanco e Cristóvão de Madrid. Já no mês de Março,
Inácio tinha encarregado de todo o temporal o Padre Pezano, o
que lhe era de grande alívio; mas a sua fraqueza aumentava de
dia para dia; sentia o próximo fim e desejava-o. Quando ouvia
um dos seus religiosos falar do que tencionava fazer para a
glória de Deus no ano seguinte, dizia-lhe:
- Como tem Vossa Reverência a coragem de pensar que viverá
até então? Visto que a incerteza lhe permite a esperança de
ir gozar a Deus muito mais cedo, não compreendo que suporte
um pensamento que não pode ser senão uma ilusão e que devia
causar-lhe grande dor.
Todavia, teria aceitado com alegria a prolongação do exílio
para o serviço e a glória de Deus. Num momento em que
conversava com os Padres Ribadeneira, Laynez e Oviedo, disse
ao segundo:
- Padre Laynez, se Nosso Senhor se apresentasse diante de
Vossa Reverência neste momento e lhe dissesse: "Queres morrer
agora? Dar-te-ei a glória eterna, mas se preferes viver ainda
sobre a terra, deixar-te-ei sem te garantir a salvação;
julgar-te-ei segundo o estado em que estiveres na hora da tua
morte". Se Nosso Senhor lhe falasse assim, e lhe desse ao
mesmo tempo o pensamento de que, permanecendo neste mundo,
Vossa Reverência podia prestar alguns serviços à divina
Majestade, que escolheria?
- Confesso-lhe, meu Padre, - respondeu Laynez -, que tomaria
o partido mais seguro e certamente sem hesitação.
- Pois eu, - replicou o venerável Santo - não o faria. Se
julgasse que podia aumentar a glória de Deus em alguma coisa,
suplicar-lhe-ia que me deixasse viver. Parece-me que no fim
de contas, nada arriscava; porque, se um rei oferece uma
recompensa magnífica a um dos seus súbditos, e este a recusa
para ficar em condições de continuar a servir o seu soberano,
o príncipe não se julgaria obrigado, não só a conservar-lhe
esta recompensa, mas a aumentá-la em proporção dos seus
serviços prestados? E se os monarcas da terra ordinariamente
ingratos, procedem assim, que não devemos esperar do Rei dos
reis, que nos enche da sua graça e de quem recebemos tudo o
que temos e somos? Como poderíamos recear ser condenados por
termos sacrificado os nossos interesses à glória e ao serviço
do nosso Mestre? Pensem outros o que quiserem; mas eu nunca
pensarei de tal modo dum Deus, tão bom, tão magnífico, tão
fiel !
Era evidente para todos que o pensamento da morte não
abandonava o santo fundador e para convencer os seus queridos
filhos de que, chegado o momento, a sua morte não seria uma
perda para a Companhia, respondia a todos os pesares
exprimidos pelos superiores a quem tirava súbditos de grande
merecimento, e que eram mais úteis que outros na sua
residência
- Que faria Vossa Reverência se ele tivesse morrido?
Durante muito tempo os seus religiosos tinham instado com ele
para que deixasse memórias da vida; o Santo havia-se
recusado, dizendo que os primeiros Padres sabiam tudo; mas, a
novas instâncias, tinha terminado por fazer, por diversas
vezes, ao Padre Gonçalves da Câmara, a simples narração dos
factos desde o momento da sua conversão até ao ano de 1543.
Acabando este trabalho, o Santo acrescentou:
- Relativamente ao resto, pergunte-o Vossa Reverência ao
Padre Nadal.
Os Padres Laynez e Eguia podiam dizer muito mais, porque
tinham tido toda a sua confiança; mas a sua humildade não lhe
permitiu que os designasse.
Com receio de afligir os seus filhos, o venerável patriarca
evitava falar-lhes francamente do pressentimento da sua morte
próxima; mas preparava-os para isso. Assim, disse-lhes um
dia:
- Desejei três coisas, e graças a Deus vejo-as realizadas.
Estas três coisas eram ver a Companhia autorizada, o livro
dos Exercícios Espirituais aprovado pela Santa Sé, e as
Constituições acabadas e observadas por toda a Companhia.
Nosso Senhor dignou-se conceder-me tudo isso.
Os religiosos presentes compreenderam que o Santo
acrescentava interiormente: "Só me resta morrei". Escreveu,
poucos dias depois, a D. Leonor de Mascarenhas, que havia
sido aia do rei Filipe II, e dizia-lhe que aquela carta era a
última que lhe escrevia e que não tardaria a ir orar por ela
no céu. A fim de se preparar com mais tranquilidade para
aparecer diante de Deus, desejou ir para a casa de campo que
mandara construir para os doentes. Os Padres, temendo os
grandes calores dos arredores de Roma, consultaram o dr.
Petrônio, que os tranqüilizou. O nosso Santo retirou-se,
pois, para ali no meado de junho; ruas experimentou tão
frequentes desfalecimentos, ocasionados pelo calor, que foram
obrigados a trazê-lo para Roma. Os médicos prescreveram-lhe
apenas repouso absoluto, não o julgando mais doente do que
estava já há muito tempo. Sobreveio em seguida uma ligeira
febre, à qual não ligaram importância. Havia naquele momento
alguns doentes na casa; e, conquanto o Padre Geral fosse
aquele a quem mais estimavam, era o de que se ocupavam menos,
porque estavam tranqüilos acerca do seu estado. Inácio de
Loiola sabia entretanto que a sua hora chegara; mas, humilde
e desapegado de si mesmo até ao fim, queria que só se
ocupasse dele Deus e não procurava persuadir o que todos ao
redor dele se recusavam a crer. Continuou com as ocupações a
que se limitava desde que a sua extrema fraqueza o obrigara a
diminuir o trabalho; dava conselhos, informava-se dos
negócios e pedia notícias dos doentes algumas vezes ao dia,
com tanta tranquilidade como de costume. Os Padres Laynez e
Mendonça estavam gravemente doentes naquele momento,
principalmente o primeiro, que os médicos tinham declarado em
perigo. Inácio não devia ter a consolação de morrer nos
braços desse amigo. O único dos seus primeiros discípulos
presentes em Roma estava moribundo; Hocez, Codure, Fabro e
Xavier já estavam no céu; os outros, dispersos na Companhia.
No dia 30 de julho, Inácio de Loiola, depois de ter comungado
e dado ação de graças por longo tempo, chama o Padre Polanco;
este apresenta-se, e o santo doente, tendo mandado sair o
enfermeiro, diz ao Padre:
- Chegou o momento de mandar dizer a Sua Santidade que eu
estou prestes a morrer, que não creio que a minha vida se
prolongue muito e que lhe peço humildemente a sua bênção para
mim e para um dos nossos Padres, que não tardará a falecer
[57]. Diga também a Sua Santidade que, depois de ter orado
muito por ele neste mundo, continuarei no céu a fazê-lo, se a
divina Bondade se dignai de receber-me lá.
- Padre, - lhe respondeu Polanco - os médicos estão longe de
julgar Vossa Reverência tão mal como pensa, e asseguraram-me
que não há nenhum sintoma alarmante no estado de Vossa
Reverência. Espero que a misericórdia divina nos conservará o
nosso Pai muito tempo ainda.
- Padre Polanco, - replicou o Santo - sinto-me tão fraco que
só me resta soltar o derradeiro suspiro.
- Para lhe obedecer, - disse Polanco - irei falar ao Papa;
mas tenho algumas cartas que expedir esta tarde para Espanha;
poderei adiar a incumbência para amanhã?
- Faça como quiser, - respondeu o humilde doente abandono-me
à sua vontade.
Que abnegação, que humildade, que espirito de obediência
nestas doces e simples palavras do grande Loiola! E que
admiração excita quando essas palavras se aproximam das
grandes coisas que ilustram tão bela vida!
O Padre Polanco, sempre cheio de esperanças, tinha adiado a
visita ao Papa para o dia seguinte. Algumas horas depois,
falou ao dr. Petrônio acerca dos pressentimentos do santo
fundador e pediu-lhe o seu parecer:
- Até agora, - respondeu-lhe o. doutor - nada vejo de
inquietador; virei vê-lo amanhã de manhã, e direi a Vossa
Reverência a minha opinião, se achar mudança.
À noite, os Padres Madrid e Polanco foram para junto do nosso
Santo, assistiram à sua frugal ceia, não o acharam pior e
trataram com ele alguns assuntos relativos aos colégios.
Inácio ouviu-os, examinou as coisas, deu a sua opinião com a
liberdade de espírito, perfeito juízo, calma, capacidade
ordinárias. Os Padres retiraram-se, convencidos de que o
teriam ali por muito tempo e que o seu estado não era
perigoso.
No dia seguinte, sexta-feira, antes do nascer do sol, os
mesmos Padres entram no quarto do venerável patriarca...
Inácio estava agonizante!... E não chamara ninguém! Passara a
noite só e deixava-se morrer sem testemunhas; havia-se
abandonado à vontade de um dos seus religiosos, que não
queria acreditar na sua morte, e Inácio não falava dela senão
a Deus.
O Padre Polanco corre ao palácio do Papa, apesar da hora
matutina. Os Padres Madrid e Frúsio, pensando que a fraqueza
é a causa única do estado em que vêm o seu muito amado Geral,
pedem-lhe que tome um caldo; Inácio recusa-o com doçura e
diz:
- Não é necessário.
O Sumo Pontífice mostrou viva dor quando soube a notícia que
lhe levou o Padre Polanco e concedeu a sua bênção ao santo
moribundo. O Padre voltou a toda a pressa e deu a bênção
apostólica ao nosso Santo. Duas horas depois, Inácio de
Loiola junta as descoradas mãos, ergue os belos olhos para o
céu, pronuncia o doce e santo nome de Jesus e evola-se para o
seio de Deus!
Foi no dia 31 de julho de 1556, dia aniversário da aprovação,
pela Santa Sé, do livro dos Exercícios Espirituais.
Inácio de Loiola tinha sessenta e cinco anos. Havia trinta e
cinco que se havia dado a Deus; vinte e dois anos que tinha
consagrado os seus primeiros discípulos na capela subterrânea
de Montmartre, em Paris, e dezasseis anos que a Companhia de
Jesus estava constituída em Ordem religiosa e que, autorizada
pelo Sumo Pontífice, se podia desenvolver livremente.
Nestes dezasseis anos, Inácio vira-a aumentar e desenvolver
maravilhosamente. Deixava-a com doze provincial, mais de cem
colégios e tendo tido a glória de enviar ao céu três
mártires, saídos do seu seio: os Padres Antônio Criminale nas
índias orientais, Pedro Correia e João de Sousa no Brasil.
O corpo do grande Loiola ficou no quarto donde a sua alma
voara ao céu. Toda a cidade de Roma foi ali vê-lo com a mais
terna veneração. Este movimento foi compreendido pelo Padre
Laynez, a quem tinham ocultado a morte do seu amigo. Os
outros Padres sucediam-se junto dele, a fim de vigiar para
que a triste verdade não fosse sabida por ele, porque Laynez
estava em grande perigo. Algumas vezes por dia, pedia
noticias do seu querido Pai e o movimento desusado daquele
dia, a tristeza involuntária que se lia no rosto de seus
irmãos, tudo concorria para o esclarecer.
- O nosso Pai morreu? - perguntou ele.
Ninguém lhe respondeu. Então, erguendo os olhos e juntando as
mãos, ofereceu a Deus o seu sacrifício interiormente; depois,
levantando a voz tanto quanto lho permitia a sua fraqueza,
disse:
"Eterno Pai, eu, que sou apenas uma miserável criatura, ouso
suplicar-vos, a vós que nos destes por mestre, por pai e por
chefe o vosso servo Inácio, e que tirastes hoje deste mundo a
sua alma puríssima, que liberteis a minha dos laços que a
prendem ao corpo! Peço-vos, pelos seus méritos e por suas
santas orações, que me chameis breve a vós, para que eu vá,
apesar da minha indignidade, juntar-me ao meu muito amado
Pai, é gozar com ele da vossa divina e eterna presença!"
O Padre Ribadeneira, que nos dá estas informações, acrescenta
que o Padre Laynez foi curado, e não ouvido, o que não
surpreendeu ninguém, porque, alguns anos antes, Santo Inácio
tinha-lhe dito: "Será Vossa Reverência, Padre Laynez que me
sucederá no generalato".
Entretanto a multidão aumentava e acotovelava-se junto do
despojo venerado, a ponto que um dos Cardeais lutou com
grandes dificuldades para conseguir beijar a mão do santo
fundador. No dia seguinte de manhã, as portas ficaram
fechadas, a fim de se proceder ao embalsamamento; nesta
operação descobriram que o estômago estava contraído, as
entranhas dessecadas, o fígado endurecido e com três pedras.
Os médicos declararam que ele não podia ter vivido tanto
tempo sem milagre, e atribuíram o estado de dessecamento dos
órgãos a jejuns muito prolongados. Um autor já muito citado,
o Padre Ribadeneira, diz que o Santo passava algumas vezes
sete dias inteiros sem tomar o menor alimento.
Depois de embalsamado, a porta abriu-se de novo aos fiéis. O
concurso foi imenso, como na véspera. O corpo havia sido
posto num caixão de madeira, que ficou descoberto e foi assim
levado, depois de vésperas, para a igreja de Santa Maria da
Estrada, pertencente aos jesuítas. Depois da cerimônia
fúnebre, o caixão foi coberto e descido ao ,modesto túmulo
preparado para o receber, à direita do altar-mor.
A Companhia de Jesus não pôde chorar Inácio de Loiola, porque
sabia que, se perdia um pai na terra, ganhava um poderoso
protetor no céu.
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