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Ficara decidido que os discípulos de Inácio partiriam no dia
25 de janeiro de 1537; mas tendo rebentado a guerra e estando
já invadidas as fronteiras do Meio-Dia pelas tropas
destinadas a defendê-las, foram forçados a entrar pela Lorena
e a irem à Itália pela Alemanha. e Suíça, o que exigia mais
tempo, e os obrigava a partir mais cedo. A partida foi, pois,
fixada para 15 de Novembro de 1536; mas, não tendo alguns
deles podido terminar os seus negócios a tempo, foi resolvido
que os outros iriam na frente e que todos se reuniriam em
Meaux poucos dias depois.
Simão Rodrigues era do número daqueles que primeiro partiram.
Chegado a Meaux, caiu doente e receou não poder seguir os
seus irmãos; porque o seu estado era inquietador, e, se
curasse, o que era provável, a convalescença podia ser mais
demorada do que a doença. Os seus irmãos preveniram-no de que
não partiriam sem ele, embora tivessem que esperar muito
tempo; mas Rodrigues não quer ser obstáculo à sua reunião com
o seu santo mestre no dia tão desejado e propõe que se peça a
sua cura a Deus. A proposta é acolhida como uma inspiração;
ajoelham-se, oram com fervor, o doente adormece e acorda
curado. Algumas horas depois, aqueles que estavam em Paris
chegavam a Meaux, e a pequena caravana, completa, põe-se a
caminho, a pé, de bordão na mão, com uma pequena mala aos
ombros que continha livros e manuscritos e o terço ao pescoço
caindo sobre o peito em testemunho da ortodoxia da sua fé.
Marcham a três de frente, um Padre e dois leigos,
santificando os seus passos com o salmodiar do seu breviário,
cantando à meia voz, meditando ou orando. Todos os dias os
Padres ofereciam o santo sacrifício e os leigos comungavam.
Entretanto, Simão Rodrigues tinha deixado em Paris um de seus
irmãos, Diogo, a quem falara da sua partida, mas sem lhe
dizer o fim da viagem e o tempo da ausência. Alguns dias
depois, um amigo de Simão soube que ele partira para a Itália
com os seus associados, que todos se foram juntar a Inácio de
Loiola e que nenhum voltará. Corre a dar esta notícia a Diogo
Rodrigues; ambos montam a cavalo, e vão a toda a brida, em
perseguição do fugitivo, a quem encontram no dia seguinte.
Diogo lança-se nos braços de Simão banhado em lágrimas e
pede-lhe que não abandone a sua família;
- Como poderei voltar a Portugal - lhe disse - e confessar
que tu renunciaste aos parentes, aos amigos, ao teu país, a
tudo enfim para seguires Inácio de Loiola, a quem nos
preferes? A nossa boa mãe não morrerá de dor por te ter
perdido para sempre? Queres que eu a ouça todos os dias
censurar-me por te ter deixado afastar dela para sempre?
- E vela também -acrescentou o seu amigo-que a fuga é prova
duma grande ingratidão para com o seu soberano. O rei de
Portugal fez todas as despesas com os seus estudos e o meu
amigo quer levar o fruto dos benefícios do seu rei a outro
país?
Simão Rodrigues escutou o irmão e o amigo sem os interromper.
Quando acabaram de falar, disse-lhes simplesmente
- Deus chama-me e nenhum poder humano me impedirá de obedecer
ao seu chamamento. Não é a Inácio de Loiola que eu obedeço
afastando-me de vós, é a Deus; ser-me-ia mais fácil
arrastar-vos para o caminho em que entrei pela graça de Nosso
Senhor do que a vós reconduzir-me ao que eu abandonei para
sempre.
Tendo esta firmeza feito perder toda a esperança ao irmão e
ao amigo de Simão, separaram-se dele, e, deixando-o continuar
o seu caminho para Lorena, retomaram o de Paris.
Tais eram os homens que Inácio atraíra a si para a obra
divina que ele tinha a missão de cumprir.
Curando miraculosamente Simão Rodrigues no começo da viagem,
parecia que Deus quisera provar aos nossos fervorosos
peregrinos que a Providência os acompanharia até ao fim com a
sua doce proteção. Eles, caminhavam, pois, cheios de
confiança e ardor, quando um dia Francisco Xavier declara aos
seus amigos que não pode dar mais um passo. Pedro Fabro, que
já havia notado a mudança do seu querido Francisco,
perguntou-lhe a causa do sofrimento que ele não pode
dissimular por mais tempo, e soube então que era um excesso
de mortificação.
Francisco Xavier, duma agilidade maravilhosa como todos os
habitantes das províncias vascas, tinha sido muito admirado
em Paris, quando se entregava a todos os jogos que mostravam
a elasticidade dos seus membros, a elegância das suas formas
e a graça dos seus movimentos.
A sua vaidade foram agradáveis esses aplausos, e, no extremo
desejo de expiar um passado que amargamente deplorava, tinha
posto um cordão em volta das pernas e apertou-o com tal força
que lhe resultou uma grande inflamação. O Santo, contente com
o sofrimento que experimentava, tinha continuado a andar sem
calcular o perigo a que se expunha; a inflamação fez rápidos
progressos e agora não podia dar mais um passo e sentia-se
devorado por uma febre ardente. Suplicava aos seus irmãos que
o deixassem ficar e não interrompessem por sua causa a
viagem; mas estes, longe de cederem ao seu desejo,
transportaram-no à próxima vila e chamaram um cirurgião.
Descobriu-se então toda a extensão do mal, e todos
perguntavam como, sem ser por milagre, Francisco Xavier pôde
sofrer por tanto tempo, e andando sempre, um tal gênero de
sofrimento e tão mofentas dores. O cordão que lhe apertava as
pernas estava completamente coberto pela inflamação e não
havia possibilidade de o tirar ! O cirurgião declarou que o
estado , do doente era desesperado, que, dada a inflamação,
era impossível qualquer operação e que só Deus o podia curar.
Imagine-se a aflição dos nossos peregrinos!
Meus bons irmãos, - disse Francisco - o doutor tem razão, só
Deus me pode curar; e, visto como me não querem deixar aqui,
e eu desejo ardentemente não ser causa da vossa demora,
peçamos-lhe esta cura como mais uma prova da sua bênção à
nossa associação.
- Oh ! sim, sim, peçamos-lhe esta graça! - exclamaram todos
ao mesmo tempo.
E puseram-se em oração: o doente passou bem a noite, e ao
despertar, no dia seguinte, os laços das pernas tinham caído
em pequenos fragmentos; a inchação e a inflamação haviam
desaparecido; não restava o menor traço da heróica
mortificarão do Santo.
Os nossos peregrinos seguiram o seu caminho com mais ardor
ainda, por terem recebido mais um testemunho da proteção
divina.. Chegados às fronteiras da Alemanha, encontraram um
troço de soldados na sua passagem:
- Onde vão? - lhes perguntaram.
- É fácil vê-lo, - disse um homem que parara a olhá-los - vão
converter algum país.
- Passem.
E passaram sem dificuldade. Este homem, profeta sem o saber,
não seria instrumento da Providencia para facilitar aos seus
apóstolos aquela perigosa passagem? Porque, como todos eram
espanhóis, podia haver grandes inconvenientes em confessá-lo.
- Atravessando as cidades onde dominava a heresia de Lutero,
os nossos viajantes eram assaltados pelos propagadores e
pelos ministros dessa. religião nova. Não compreendendo que
houvesse alguém que tivesse a temeridade de mostrar-se com um
terço ao pescoço, primeiro insultavam-nos e depois atacavam a
fé da Igreja Romana, convidando-os a defendê-la. Os
discípulos de Inácio não deixavam nunca de responder ao
desafio e sempre saiam vencedores da luta.
A pouca distância de Constança, entraram na hospedaria de um
bairro completamente luterano, quando viram aproximar-se o
ministro, seguido da maior parte dos habitantes.
O ministro, Padre apóstata, propôs-lhes uma controvérsia
esperando que ele só venceria os nove adversários, e quis que
todos aqueles que o acompanhavam fossem testemunhas da sua
vitória.
- Não podemos todos responder-lhe ao mesmo tempo, - disse-lhe
Diogo Laynez - vou eu começar, e, quando 0 senhor me houver
reduzido ao silêncio, suceder-me-á um dos meus irmãos.
Travada a discussão, daí a pouco o luterano tinha esgotado o
arsenal das razões e passou às injúrias. Laynez observou-lhe
que as injúrias não convencem ninguém.
- Concordo, - disse ele - mas estou fatigado; jantemos
juntos, e depois continuaremos a controvérsia.
O herege comeu sòzinho e comeu tão abundantemente e bebeu com
tanto excesso, que escandalizou os seus devotos
- Pastor, - lhe disse um deles - cautela! O Senhor bebe
demais.
- É necessário animar-me um pouco, - respondeu o ministro -
para poder bater-me com esse papista caturra, sem falar dos
outros.
Os nossos viajantes tomaram uma refeição frugal, mui pobre,
depois do que, não querendo ser acusados de bater em retirada
diante do inimigo, esperaram que o' luterano terminasse.
Tendo recomeçado a discussão, o ministro, mais que nunca em
estado de se não sustentar, foi forçado a confessar-se
vencido.
- Como o senhor reconhece que a verdade está do nosso lado, -
disse um dos discípulos de Inácio -seja conseqüente, renuncie
ao erro e torne a entrar no seio da Igreja.
Ouvindo estas palavras tão simples e tão justas, a cólera do
ministro tornou-se em verdadeiro furor. Deixando de empregar
a língua latina, profere em alemão todas as blasfêmias, todas
as invectivas que o demônio lhe sugeriu e terminou por dizer
que na manhã do dia seguinte se defenderá com outros
argumentos, que mandará prender os ferrenhos papistas e que
justiça será feita.
Traduziram esta ameaça aos nossos peregrinos, convidando-os a
partir durante a noite, porque não tendo a pequena cidade
onde eles estavam um só católico, corriam ali os maiores
perigos. Mas os apóstolos, escolhidos pelo nosso Santo, não
podiam aceitar essa proposta. Dignos discípulos do seu
heróico mestre espiritual, decidiram que não podiam abandonar
pela fuga a defesa da lei, pela qual estavam prontos a
derramar o seu sangue. Esperarão, confiados na Providência, e
dispor-se-ão durante a noite para sofrer os maus tratos que
lhes queiram infligir.
No dia seguinte, de manhã, um jovem apresenta-se aos
peregrinos; parece ter uns trinta anos; é de estatura
elevada, porte nobre, traços distintos, olhar doce e
benévolo, maneiras simples e graciosas.
Fala alemão e não é compreendido; mas faz sinal aos viajantes
para que o sigam, e estes, persuadidos de que os vêm buscar
para os conduzir diante dos juízes não hesitam um instante. O
jovem sai do bairro atravessando os campos, voltando-se de
tempos a tempos para dar sinal aos peregrinos de que nada
receiem, e, depois de os ter dirigido assim durante bastante
tempo, põe-nos na estrada de Constança e deixa-os,
testemunhando-lhes o maior interesse.
Quem era este misterioso condutor? Quem era este enviado da
Providência? Ninguém pode responder a estas perguntas. Os
discípulos de Inácio diziam:
- Se não é um anjo revestido da forma humana, é pelo menos um
instrumento providencial que desempenha o ofício pium anjo a
nosso respeito; somos-lhe devedores da liberdade e
provavelmente da vida.
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