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Jerónimo Nadal, que deixámos em Paris, recusando ceder às
instâncias de Inácio de Loiola, tinha-se retirado para a sua
família, em Maiorca, e procurava conhecer a vontade de Deus a
seu respeito, porque se sentia chamado ao apostolado, unas
ignorava em que gênero de vida o devia exercer. Tinha, por
momentos, desejos de se associar a alguns homens de virtude e
de talento para trabalhar com eles na santificação das almas;
depois rejeitava este projecto para voltar a alimentá-lo. Um
dia deram-lhe a ler a cópia duma carta de Francisco Xavier
dando conta à Companhia de Jesus do seu apostolado nas
Índias. Jerónimo, maravilhado com os magníficos trabalhos do
jovem professor que tanto admirara em Paris, exclamou: "Ah! é
realmente uma grande obra!" Recorda-se de todos os esforços
de Inácio para o determinara entrar na Sociedade, que ele
formara então; recorda-se deque, parecendo-lhe muito perfeita
essa vida, respondeu: "O Evangelho me basta", e que fugiu
para se subtrair a novas instâncias daquele a quem acusava de
o perseguir. Depois de alguns dias de viva agitação interior,
Jerónimo, muito resolvido a não entrar na Companhia de Jesus,
peio único motivo de que ela exigia dos seus membros uma
grande perfeição, quis todavia consultar Inácio de Loiola e
ouvir os seus conselhos espirituais. Partiu para Roma; o
Padre Laynez acabava de chegar à Cidade Eterna, e Nadal
encontrou também, no número dos Padres, um dos seus antigos
amigos, Jerónimo Domenec. Ambos o convidaram a fazer com eles
os Exercícios Espirituais. Nadal, furioso com a proposta,
corre a queixar-se ao bom Padre Geral:
- Meu reverendo Padre, - lhe diz - Diogo Laynez. e Jerónimo
Domenec querem armar-me laços para, contra minha vontade, me
alistarem na Companhia de Jesus! Vossa Reverência sabe que
não tenho talentos nem virtudes necessárias para isso.
- Não se inquiete, - respondeu-lhe Inácio - os Exercícios
Espirituais não trazem nenhum compromisso e só lhe podem
fazer bem à alma. Faça-os, sem se ocupar com o pensa mento de
se juntar a nós. Este pensamento só deve vir de Deus, e se
ele lho der, saberá bem em que deve empregá-lo para sua
glória. Deixe Deus obrar. Nadal seguiu este conselho; fez o
retiro dirigido pelo Padre Laynez, e não cessou de lutar
consigo mesmo à medida que conhecia o chamamento de Deus.
Enfim, chegado à meditação das Duas Bandeiras, confessou-se
subjugado; está vencido, e contudo quer lutar ainda. Mas a
sua agitação é muito violenta e não pode resistir mais;
levanta-se no meio da noite e escreve estas linhas:
"Reconheço agora que as razões com que tanto combati contra
mim mesmo e que me impediam de ligar-me ao serviço do Senhor,
não merecem sequer que eu procure refutá-las. Ao contrário,
tudo o que até aqui me afastava dele, atrai-me agora e
consola-me, porque, depois de um rigoroso exame, compreendi
que o amor de mim mesmo e a revolta da natureza foram os
únicos agentes que me fizeram combater e duvidar. Vejo tanto
mais a vontade de Deus na minha presente determinação, quanto
é certo que aos sentidos, bem como ao mundo, repugna essa
determinação: nenhum deles pode compreender ou gostar o
espírito de Deus e o seu reino nas nossas almas. É por isso
que nem as perturbações que tenho até hoje sentido, nem as
mais rudes provas de que um homem possa ser cumulado, nem
nenhum sofrimento inventado pelos próprios demônios poderão
afastar-me da resolução, que tomei em nome da Santíssima
Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, de praticar os
conselhos evangélicos e de fazer os votos e tomar os
compromissos da Companhia de Jesus. Estou pronto a fazer tudo
o que de mim se exija, em conformidade com esses votos,. que
eu pronuncio aqui com fervor e respeito, mas com uma. grande
confiança na misericórdia de Deus, de quem tenho, recebido
tantos benefícios. É de toda a minha alma, de toda a minha
vontade que faço estes votos: para glória de Deus ! Assim
seja. - Aos 23 de Novembro, décimo oitavo dos Exercícios".
Nadal, fiel às suas promessas, entrou no noviciado logo
depois do retiro e foi um dos membros mais úteis e mais
distintos da Companhia de Jesus.
Entretanto o santo fundador via desenvolver-se a sua. obra
cada vez mais. Francisco Xavier fundara um colégio nas cidade
de Goa, metrópole das colônias portuguesas nas. Índias; Simão
Rodrigues estabeleceu em Portugal, por ordem. e a expensas do
rei D. João III, que obteve que o colégio de Coimbra tivesse
um noviciado da Companhia. Em Valência, Alcalá, Gandia e
Barcelona pediam também colégios e noviciados. Da Alemanha,
da Bélgica, de toda a parte, enfim, eram dirigidas as mesmas
súplicas ao nosso Santo, cuja reputação, assim como a da
Companhia, era universal. Os aspirantes afluíram a Roma de
todas as partes da Europa; por isso, querendo conservar o
espírito de união e de caridade entre homens de nações
diversas e algumas vezes inimigas, Inácio obrigava-os a falar
italiano e fazia-os estudar esta língua logo que entravam na
casa. Queria que cada um deles, depois da sua profissão
estudasse a língua do país para onde era enviado, de maneira
que a pudesse falar sempre sem se preocupar com a sua língua
nacional. O Jesuíta devia ser o apóstolo do mundo e não duma
cidade ou dum país.
A obstinação nas idéias era um dos principais motivos de
exclusão ou de expulsão para o santo fundador. Um espanhol de
grande capacidade, duma ciência pouco comum e duma virtude
reconhecida, entrou na Companhia e exercia o cargo de
ministro [54] na casa professa de Roma. Desempenhava o cargo
com habilidade; mas quando se lhe metia uma idéia na cabeça,
não lhe saía mais. Inácio tirou-lhe o cargo, julgando inapto
para mandar aquele que não sabia obedecer. Obrigou-o a fazer
os Exercícios Espirituais, e Marino, assim se chamava esse
Padre, prometeu emendar-se. Inácio restabeleceu-o então no
cargo, mas daí a pouco o Padre Marino esforçava-se por lhe
provar que ele entendia muito pouco das coisas temporais, o
que fazia dizer ao Padre Nadal.
- Marino fará perder o bom nome aos Exercícios Espirituais!
Acaba de os fazer e não é um homem novo.
Com efeito, Marino parecia tão aferrado à sua opinião como
nunca. Uma noite, já tarde, Inácio soube que ele acabava de
dar uma nova prova da sua teimosia; no mesmo instante
envia-lhe ordem de abandonar a casa sem esperar para o dia
seguinte.
- Será um exemplo para os outros; - acrescentou sabe-se
porque o tenho dito muitas vezes, que não quero passar a
noite sob o mesmo tecto com homens cujo espírito de
obstinação é incorrigível.
Outro espanhol, também chamado Marino, doutor da Universidade
de Paris, ensinava filosofia no colégio de Roma. Observava
com algum desagrado algumas regras da Companhia, dizia-o
abertamente e mostrava com toda a franqueza a sua opinião
acerca das mudanças que deviam fazer-se. Inácio chamou-o em
particular algumas vezes e esforçou-se por provar-lhe que
Aristóteles não podia razoavelmente pretender -reformar o
Evangelho; mas, não conseguindo convencer nem esclarecer o
professor, despediu-o. Naquele momento o colégio de Roma
tinha poucos professores e não era possível substituir Marino
- Ah! meu reverendo Padre, - disse Luís Gonçalves ao santo
fundador - lamento, no interesse do colégio, que Vossa
Reverência despedisse Marino; talvez ele se corrigisse!
- Pois bem; - respondeu-lhe Inácio sorrindo-se - vá o meu
querido Luís procurar convertê-lo.
Um alemão teve a singular pretensão de possuir o espírito =de
S. Paulo. Não tinha outro defeito; mas este era mais que
suficiente. Inácio, vendo a impossibilidade de lho tirar,
despediu o noviço.
Sordevila, Padre catalão, e excelente teólogo, tinha
imaginado um método de oração, por meio do qual se obtinham à
vontade, segundo ele dizia, êxtases, visões, arroubamentos
sem igual. Procurava fazer adoptar o seu método aos noviços
mais jovens, e tinha ganho alguns, cujo espírito perturbado
chegava por vezes ao delírio. Inácio, advertido deste facto,
censurou o Padre catalão em pleno refeitório e mandou-o
provocar visões e arroubamentos a outra parte que não nos
noviciados da Companhia.
Dois Padres espanhóis: Francisco Onéfrio e André de Oviedo,
ardendo em desejos de viverem, na Companhia, uma vida
puramente contemplativa, escreveram neste sentido ao Padre
geral. Este respondeu-lhes que não era esse o fim da
Companhia, e que, se preferiam a vida do deserto, deviam
abandoná-la. Mas os dois Padres, primeiro que tudo
obedientes, compreenderam por esta resposta que o seu desejo
era uma tentação, e renunciaram logo a ele.
O nosso Santo, como já dissemos, era igualmente inflexível
para as faltas que podiam perturbar a caridade entre os
membros da sua numerosa família. Uma noite, pelas i z horas,
vieram dizer-lhe:
- Meu reverendo Padre, Francisco Zapata viu pregar o Padre
Nadal nas ruas e zombou dele publicamente, tratando de
charlatanismo, o que todos nós fizemos, segundo o uso da
Companhia em Itália. E não quis atender a razões a este
respeito.
Inácio não respondeu, deixou afastar-se aquele que o veio
advertir, orou bastante tempo, foi em seguida procurar
Francisco Zapata, que dormia, acordou-o, fê-lo levantar,
ordenou-lhe que abandonasse a casa antes de romper o dia e
entrou depois no seu quarto.
De ordinário, Inácio não dava uma ordem de expulsão sem ter
conferenciado com os seus conselheiros; nesta causa decidiu
só e todos o souberam de manhã. Quando Inácio propunha uma
expulsão, e os Padres defendiam o culpado o Santo dizia-lhes:
- Agora Vossas Reverências pedem por ele; mas se o tivessem
conhecido melhor, tê-lo-iam admitido? Não, certamente. Pois
bem, despeçamo-lo agora, porque a prova que se segue à
admissão não tem outro fim senão assegurarmo-nos sobre se ele
convém ou não à Companhia. Deixo a Vossas Reverências a
admissão, deixem-me a expulsão.
Quando um estrangeiro vinha ver a casa, Inácio, despedindo-o,
dizia-lhe:
- Viu a nossa prisão; esta dispensa-nos qualquer outra.
Compreende-se isto facilmente, porque ele não queria senão
Santos, ou pelo menos aqueles que prometessem tornar-se tais.
Um dia de Pentecostes despediu doze noviços ao mesmo tempo, e
nunca o seu rosto apareceu mais tranqüilo, mais doce, mais
sereno do que depois desta despedida. Inácio exigia dos
superiores a mesma severidade não só para com os noviços, mas
também para os que tinham já votos; porque julgava que a
Companhia não podia ter força e duração senão pela virtude
dos seus membros. Tendo sabido que não era rigorosamente
observada a obediência numa casa de Portugal, escreveu
imediatamente ao provincial censurando-o e mandando-lhe, em
virtude da obediência que lhe prometera, que trabalhasse sem
demora na repressão deste abuso, e que expulsasse da
Companhia, fosse qual fosse a classe a que pertencessem,
todos os que se mostrassem insubordinados.
O Padre Leonardo Clesélio, reitor do Colégio de Colônia,
tinha apenas quinze súbditos; um dia despediu oito. Mas,
depois da despedida, receou ter sido demasiado severo, e
escreveu imediatamente ao Padre geral acusando-sedo que
fizera, expondo-lhe as coisas como se tinham passado e
pedindo-lhe que lhe infligisse a penitência que reconhecia
merecer, qualquer que ela fosse, e à qual se submetia
antecipadamente com toda a humildade; pedia ao mesmo tempo ao
seu bom Pai que lhe perdoasse. Inácio apressou-se a
responder-lhe que só lhe dava elogios e a sua bênção, com a
ordem positiva de renovar, no caso de necessidade, o que
acabava de fazei com tanta prudência.
Compreende-se a admiração que em toda a parte excitavam
homens tão dignos, tão sábios, tão enérgicos, grande número
dos quais pertenciam às mais opulentas e ilustres famílias, e
que, tendo abandonado tudo para viverem de pobreza, humildade
e obediência, conservavam no meio dos grandes trabalhos e dos
triunfos do apostolado, uma submissão de crianças a todas as
vontades dos seus superiores.
O Padre Araoz operava em Barcelona um bem prodigioso; toda a
cidade caia a seus pés, todas as classes da sociedade o
amavam e ele não podia ser indiferente por aqueles que tanto
lhe queriam. Santo Inácio ordenou-lhe que abandonasse
Barcelona e se dirigisse a outra província de Espanha. O
Padre Antônio de Araoz respondeu-lhe logo com estas linhas
tão comoventes pela sua simplicidade
"Quanto à ordem que Vossa Reverência me dá para me dirigir a
outra parte, no princípio de Setembro, obedecer-lhe-ei, pela
graça do nosso bom Mestre, com grande alegria de coração,
ainda que aqui não agrade por causa do bem que se ia fazendo;
estou convencido de que a voz de Vossa Reverência é para mim
a de Jesus Cristo, voz que compreendem sempre aqueles que
pertencem ao rebanho. É certo que tenho tanto em que
ocupar-me aqui, que, querendo atender a tudo, não me sobra
tempo para me ocupar de mim, e sou obrigado a trabalhar pela
noite dentro, por não ter liberdade alguma durante o dia.
Ouvir confissões, a maior parte das quais gerais, dar os
Exercícios Espirituais, trabalhar em reconciliações
importantes entre certos nobres, tudo isto me ocupa de tal
modo, que muitas vezes (e digo-o para que Vossa Reverência
tenha compaixão da minha pobre alma) não me sobra tempo para
celebrar a santa missa".
Tal é o espírito de obediência e de humildade que sempre se
tem conservado na santa Companhia de Jesus.
Era bem o espirito divino que inspirava Santo Inácio no
governo da Companhia, porque vemos S. Francisco Xavier
empregar, ao mesmo tempo, os mesmos meios nas Índias, e
governar do mesmo modo. Xavier é tão difícil como Inácio na
escolha e na admissão dos súbditos; tão firme, tão rigoroso
nas virtudes que deles exige; tão pronto e tão inflexível nas
expulsões que julga necessárias. S. Francisco Xavier não
conhecia, quando partiu de Roma para Portugal e para as
Índias, das Constituições da Companhia senão o plano
apresentado ao Papa; não cessava de pedir a Santo Inácio, em
todas as suas cartas, que o ajudasse com os seus conselhos, a
fim de que as casas que ele fundasse no Oriente não
diferissem em nada das da Europa. E, contudo, Xavier segue o
mesmo caminho que o santo fundador, dá o mesmo espírito,
imprime a mesma direção aos diversos colégios, às diversas
missões e residências, que criou numa extensão de três mil
léguas, antes de ter recebido os conselhos e a direção que
pediu ao seu Padre Geral. Santo Inácio admira nisto a obra de
Deus, e no fundo do seu coração promete chamar um dia a Roma
aquele a quem o Espírito Santo tão maravilhosamente esclarece
para bem da sua querida Companhia e abandonar-lhe as rédeas
do governo.
Enquanto formava numerosos operários apostólicos, Francisco
Xavier pedia-os à Europa. Suplicava a Santo Inácio, ao rei de
Portugal e a Simão Rodrigues, provincial em Portugal, que lhe
enviasse o maior número possível. E quando estes Padres
chegavam às residências da Índia, julgavam estar nas da
Europa, quanto ao interior e ao seu espírito; por que a
organização, a administração temporal ou espiritual tudo era
igual; nada tinham a mudar senão relativamente aos usos e às
exigências do país, que deviam evangelizar.
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