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Com o correr do tempo os padres vieram a descobrir em seus
protegidos uma aptidão admirável para a imitação exata dos
padrões europeus. Se se mostrava a um índio uma cruz, um
candelabro ou um objeto semelhante, com a incumbência de que
ele mesmo fabricasse essas coisas, então o índio, em seguida,
fazia uma cópia que quase não se podia diferençar do
original. As mulheres conseguiram imitar fielmente os
desenhos mais preciosos das rendas brabantinas, e um grupo de
operários índios chegou mesmo a fabricar um órgão excelente,
de acordo com um modelo europeu. Gravavam eles figuras em
bronze e faziam cópias de missais, de tal maneira perfeitas
que ninguém mais podia dizer qual era o exenlar impresso e
qual o manuscrito. As trombetas fabricadas pelos índios eram
absolutamente iguais aos produtos da indústria musical de
Nuremberg, e os seus relógios não cediam na mínima coisa às
mais formosas obras de Augsburgo. Além d isso, esses
trabalhos proporcionavam aos índios grande alegria, e eles
punham mãos à obra espontaneamente, e com o máximo ardor,
quando se tratava de fabricar coisas que pudessem servir para
o embelezamento de suas festas e igrejas ou para os seus:
exercícios musicais. Os padres pela maneira inteligente e
disfarçada com que exigiam tais atividades, conseguiram fazer
com que os índios dominassem a sua ingênita aversão ao
trabalho, por assim dizer brincando ; mas d aí, foi
crescendo, pouco a pouco, no meio da floresta virgem do
Paraguay, uma indústria organizada. Por fim existiam já
marceneiros, ferreiros, tecelões, alfaiates, sapateiros,
curtidores, torneiros, funileiros, relojoeiros, escultores,
pintores, fundidores de sinos e fabricantes de instrumentos;
as oficinas geralmente, estavam situadas junto à casa da
Missão. “ No pátio estava a moenda de açúcar” , escreve M.
Bach, “ e nos aposentos de em torno do pátio encontravam-se
os ocupados com a fabricação do açúcar, os ferreiros, os
prateiros, os carpinteiros, os ebanistas, os torneiros, os
branqueadores de cera, os curtidores e os tecelões com
quarenta ou cinqüenta teares...” Além d isso cada uma das
reduções tinha o seu ramo industrial especializado; assim é
que em Loreto eram fabricadas estatuas_ e obras de talha, em
São João Batista, por sua vez, os melhores fabricantes de
instrumentos estavam no seu elemento, ao passo que nas outras
reduções havia preferencia pelo preparo do couro. As crianças
eram, em uma certa idade, levadas pelos padres às oficinas e
tinham licença para escolher o oficio aquele para o qual
sentissem maior inclinação. D essa maneira os padres
procuravam obter que “ a profissão fosse determinada pelas
tendências naturais” . Com a mesma inteligência e brandura,
com que os jesuítas aí souberam colocar as boas qualidades
dos selvagens ao serviço da civilização, combateram eles
também os seus erros e defeitos. Haviam eles reconhecido logo
que, se os índios dispunham de grande aptidão para a música e
para os trabalhos manuais e possuíam também compreensão para
a leitura e para a escrita, em compensação não lhes foi
possível, de maneira alguma, ensiná-los a contar; a maioria d
eles não possuía compreensão para os números. A custa de
grandes esforços conseguiam eles, quando muito, contar com
ajuda dos dedos dos pés e das mãos até vinte, mas para tudo
que excedesse d isso usavam eles apenas o conceito geral de “
muitos” . Essa falta trazia consigo também neles uma
incapacidade absoluta para toda e qualquer espécie de “
economia domestica” e para “ cuidar do futuro” ; dado que
eles, além d isso, eram dominados por uma glutonaria
indomável, resultou d aí ser tanto mais difícil habituá-los a
uma divisão racional das suas reservas de gêneros
alimentícios. Se os padres, no principio, por exemplo, ainda
tinham entregue a um chefe de família uma vaca, com cuja
carne ele deveria passar três dias, juntamente com os seus,
sucedia que o índio, as mais das vezes, devorava a vaca em
uma só refeição e depois, já no dia seguinte, aparecia todo
lamuriento junto aos missionários, queixando-se de fome.
Aconteceu também mais de uma vez, que o pessoal abatesse em
pleno cano os bois que lhe haviam sido confiados para os
trabalhos de arado, e os comessem. Dentro de tais
circunstancias não era possível convence-los de que se
tornava necessário reservar da colheita uma certa quantidade
de grãos para a sementeira do ano seguinte e reservas para
casos de desgraças imprevistas. Não restou outra solução para
os jesuítas senão construir celeiros especiais, nos quais o
produto da agricultura era guardado debaixo de sete chaves, e
d aí os índios todos iam recebendo, diariamente, a sua razão
exata. As terras pertenciam, em parte, aos índios, mas na
maior parte à coletividade. Cada qual podia plantar o que
quisesse no seu terreno particular, o chamado “ abamba” , ou
“ cano do homem” ; o amanho do “ cano de Deus” , porém
realizava-se sob a direção dos padres; a produção devia ser
depositada nos celeiros. A propriedade fundiária privada não
podia ser vendida, e também as casas eram inalienáveis. Não
havia direito de herança de nenhuma espécie, razão pela qual
todas as crianças eram sustentadas com os recursos da
comunidade, e, quando completavam a maioridade, recebiam por
sua vez, “ abambae” . Da produção dos “ canos de Deus” ,
porém, eram mantidos igualmente os doentes, os velhos e os
incapazes ; eram também d aí tirados os recursos para a
construção de casas, igrejas, e edifícios de administração da
mesma maneira que os inostos anuais devidos à coroa de
Espanha. Os missionários mesmos não tinham aí nenhuma quota e
viviam de uma pequena renda, que Lhes fora fixada pelo rei.
Mas os padres não cuidavam apenas de uma divisão
econômica de plano dos gêneros alimentícios guardados nos
armazéns ; eles zelavam também pelo vestuário dos índios. As
viuvas conservadas nas “ casas de viuvas” especiais e as
suas respectivas filhas recebiam, regularmente, d eles o
algodão que tinham de fiar; com o fio eram então fabricados
os tecidos nas tecelagens. Os homens e mulheres recebiam
roupas uma vez por ano, e as crianças duas vezes, e sucedeu
assim que os índios das reduções jesuítas, a despeito de toda
simplicidade, ainda andavam mais bem vestidos do que todos os
espanhóis das regiões coloniais limítrofes.
A repartição rigorosamente organizada dos produtos
correspondia, igualmente, a uma organização cuidadosa do
trabalho a ser prestado pelos índios. Para todos os
cidadãos desse Estado existia uma obrigação de trabalho
proporcional, pois os padres cuidavam de que ninguém ficasse
super-fatigado, pelo contrário vigiavam eles para que os
índios tivessem de sobra tempo bastante para o descanso e a
escola. As necessidades econômicas do país eram, em geral,
cobertas por uma distribuição inteligente de um tempo de
trabalho diário constante de oito horas. Durante três dias
da semana os índios tinham de lavrar os “ canos de Deus” , ao
passo que os demais dias, eles os podiam enregar no amanho da
sua propriedade particular; somente aquele que descurasse o
próprio terreno, estava na obrigação de consagrar uma grande
parte do seu tempo de trabalho ao. bem da comunidade.
A economia natural pura que predominava nesse pais
tornava o dinheiro como meio de pagamento absolutamente
dispensável. Toda a operação comercial se realizava mediante
troca: quem quisesse conrar um boi ou uma vaca, dava em troca
uma certa quantidade de tecido ; uma faca era trocada por um
cavalo, um anzol por uma vitela.
O comércio exterior da republica índia também se processava
sem intervenção de dinheiro; trocavam-se produtos agrícolas e
mercadorias manufaturadas do interior do país tais como
açúcar, cera, mel, tabaco, couros, tamarindos, produtos de
algodão, peles, traba1hos de torno e outros iguais, por
mercadorias européias. Um resultado especial obtiveram os
padres com a elaboração da “ Ilex paraguayensis” nativa, a
qual foi selecionada transformando-se em uma espécie de
planta de chá ; o” chá paraguaio” constituiu durante longo
tempo um dos artigos de exportação mais importantes das
reduções. Todas as mercadorias destinadas à venda eram
levadas a Santa Fé ou Buenos Aires, onde os jesuítas em
pessoa regulavam as trocas. Os lucros d aí resultantes
serviam para a execução de melhorias e para a criação de
novos estabelecimentos de natureza industrial ou agrícola,
Muitas vezes não era possível se evitar que os
comerciantes espanhóis fossem convidados a vir às reduções,
afim de que ali examinassem as mercadorias que iam ser
conradas ou para que exibissem os produtos que traziam. Mas
os jesuítas haviam posto tento em que os índios não entrassem
em contato nem mesmo com esses mercadores itinerantes.
“ Em algumas aldeias, como por exemplo São Xavier, São José e
Santa Corazon” , escreve M. Bach, “ eram construídas fora da
localidade as chamadas ramadas, as quais eram apercebidas de
todo o necessário e nas quais os comerciantes estrangeiros
tinham que se alojar. Recebiam eles aí boa comida e boa
bebida e uma cama confortável e tinham todas as comodidades
desejáveis e isso, na verdade, de graça, mas eram, por assim
dizer, vigiados como prisioneiros do Estado. Logo depois da
chegada d eles todas as estradas da ramada eram guarnecidas
com sentinelas e sobre essas paraiva a proibição rigorosa de
não trocarem com eles uma palavra sequer. O comerciante
estrangeiro podia permanecer na ramada três dias.” Não
somente os índios estavam protegidos contra as tentações do
dinheiro, em conseqüência da economia natural de trocas, mas
também os chefes d esse Estado original nunca ficavam em
condições de amontoar riquezas. Eles próprios haviam
conseguido da coroa espanhola a determinação de que nada
procedente da fortuna das reduções poderia ser enregado pelos
padres, pelo contrário, que o produto total rio comércio
deveria reverter em beneficio dos índios. Por isso os chefes
das reduções estavam obrigados a prestar contas exatas ao
provincial, regularmente, de suas despesas e da receita
Cada redução constituía uma comuna independente; dois
padres dirigiam a redução e atuavam, simultaneamente, como
sacerdotes, médicos, professores e inspetores dos trabalhos a
ser executados. A administração civil estava nas mãos de um
corregedor eleito pela comuna, de vários regedores e alcaides
assim como de um conselho comunal; todos esses funcionários
eram índios, pois que os jesuítas procuravam manter de pé uma
autonomia nacional na medida mais alta possível. Os índios
distribuíam justiça sob a direção dos padres, administravam
os armazéns de gêneros e inspecionavam a marcha normal do
trabalho. Abstraindo d essa organização política, existiam
ainda sindicatos regulares com os seus funcionários nativos;
assim é que os tecelões, os ferreiros, os marceneiros e
outros operários tinham os seus alcaides próprios, as
mulheres elegiam uma superiora e, além d isso, havia um
alcaide para a juventude, o qual inspecionava as crianças até
que atingissem elas os dezessete anos de idade. O padre
Peramas descreve a disposição exterior de uma d essas
reduções como se segue: “ O ponto central da colônia toda,
regular, formava-o sempre a igreja; ela era espaçosa,
construída de material solido e, as mais das vezes,
lindamente ornamentada. Em um dos flancos encontrava-se o
cemitério, no outro o colégio, o qual continha, ao mesmo
tempo, a escola. Ao lado d esse erguia-se a casa comunal com
as armazéns destinados aos produtos públicos e com as
oficinas do operariado. Ao lado do cemitério estava situada a
casa das viuvas, da qual uma parte era utilizada também como
hospital. A frente da igreja estendia-se sempre uma praça com
uma estatua, e em redor d esta alinhavam-se, quase sempre em
disposição quadrangular, as casas de moradia dos índios, de
um só andar, com os seus telhados salientes ou suas
galerias.”
“ Uma polícia comunal índia cuidava da manutenção da
tranqüilidade e da ordem, com a qual se procurava estabelecer
o princípio da máxima brandura’ e da conlacência máxima. Se
era necessário chamar a contas um violador da lei, então o
corregedor, primeiramente, lhe passava uma reprimenda a sós ;
somente quando isso não dava resultado algum é que podiam ser
aplicadas penas de prisão e de açoites. A pena de morte
estava fundamentalmente abolida em todas as reduções, e
malfeitores absolutamente incorrigíveis eram castigadas,
exclusivamente, com a sua transferencia para reduções mais
afastadas. As mulheres podiam ser condenadas a uma reclusão
maior na casa das viuvas, a título de expiação,”
“ Do ponto de vista juridico-politico, o Paraguay podia ser
designado, principalmente, como uma confederação, dado que as
reduções eram completamente independentes em seus assuntos
internos e somente certos setores da administração, tais como
o comércio exterior e o serviço militar eram regulados em
comum. A situação em que se achava para com o reino espanhol
correspondia à de um moderno domínio: o Paraguay estava
sujeito, imediatamente, à coroa e, mediante privilegio real,
gozava de uma administração absolutamente autônoma, possuía a
sua justiça própria e o seu próprio exercito. As reduções
estavam obrigadas exclusivamente ao pagamento de um inosto
anual e à ajuda militar, dentro da América do Sul, em caso de
guerra, apenas; no demais o governo de Madri tinha que se
abster de toda e qualquer ingerência na sua administração.”
Assim é que os jesuítas, partindo da exata observado das
aptidões e fraquezas de seus índios, realizaram no Paraguay
justamente aquele Estado comunista, o qual ainda hoje,
duzentos anos mais tarde, é inculcado à humanidade como a
situação ideal, especialmente digna de ser aspirada. Tudo
quanto os utopistas algum dia esperaram de uma organização
econômica comunista, fora aí realizado de fato: comunidade
dos meios de produção e de consumo, eliminação da funesta
economia monetária, igualdade geral de todo o cidadão,
supressão de toda a miséria material, assistência aos ve1hos,
doentes, viuvas e órfãos, obrigação geral de trabalho de oito
horas, educação das crianças pelo Estado, livre escolha da
profissão.
Também do ponto de vista técnica-administrativo esse Estado
índio correspondia às exigências democráticas mais modernas,
pois aí os cidadãos não constituíam uma massa oprimida sob um
domínio de funcionários despóticos; pelo contrário, a
liberdade do povo só era limitada ao ponto em que os
interesses da coletividade o exigissem; o funcionário nativo,
livremente eleito, d essa republica não era nada mais do que
um órgão altruísta do bem estar publico.
Apesar de tudo isso, a propriedade privada não fora, de
nenhuma maneira, completamente suprimida, e aí, ao lado da
propriedade comum, existia também a propriedade individual, a
qual, não obstante, não fora adquirida nem mediante
exploração, e nem podia vir a constituir um perigo para a
coletividade, em conseqüência da acumulação. Toda essa
organização fora introduzida sem nenhum emprego de violência,
pelo contrário com grande alegria por parte dos beneficiados,
e o Estado no qual essas instituições-modelo dominaram,
existiu, de verdade, por espaço de cento e cinqüenta anos.
Mercê d esse fato, igualmente mercê da circunstancia de que a
sua inlantação nunca foi conquistada à custa da vida de
pessoas orientadas diferentemente, o império comunista dos
jesuítas no Paraguai se diferencia, vantajosamente, d essa
outra idêntica experiência dos nossos dias, a qual, a
despeito das numerosas vítimas humanas, até hoje, ficou
sendo, em sua maior parte, apenas uma utopia traçada no
papel.
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