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A maior parte dos da Companhia que naquele tempo viviam no Brasil estavam na casa
e Capitania de São Vicente, ocupados no serviço espiritual dos próximos, e muitos mais no
cuidado de sua perfeição, sem outro estudo nenhum, por falta de mestre.
O padre Provincial com seu santo zelo, e práticas espirituais os trazia a todos abrasados
em fervor de devoção, mortificação e mais virtudes, sendo ele em todas um vivo exemplo, que
os mais trabalhavam seguir e imitar. E com isto os quis Nosso Senhor exercitar e dispor para
que as letras depois fizessem neles melhor assento.
Chegando o irmão José, o padre Provincial o recebeu com muito amor e gasalhado pela
notícia que já tinha de sua muita virtude e grandes partes, e se ajudou muito dele em suas
santas ocupações, em especial depois que soube a língua, e lhe servia de intérprete com o
gentio.
FAZ A ARTE DA LÍNGUA
Encarregou-lhe logo a escola de gramática, e foi o primeiro que leu latim nestas partes,
e pouco depois na Bahia começou a ler latim o Irmão Antonio Blásquez.
Tina o Irmão José na sua escola alguns dos nossos e muitos moços filhos dos
portugueses; continuou esta ocupação por alguns anos, na vila de São Paulo, chamada pelo
nome de terra Piratininga, com muito proveito dos estudantes, e merecimento seu. Porque
além da modéstia do ler, tomava ele outra bem pesada, de suprir com sua pena, a falta de artes
latinas, por onde os discípulos aprendessem.
E como quer que as ocupações lhe não davam lugar para o fazer de dia, era-lhe
necessário ajudar-se das noites, cortando de ordinário pelas horas do sono, e passando muitas
delas inteiras sem dormir, escrevendo até a manhã. Por tudo isso passava o bem irmão com
muita paciência e rosto alegre, por ver que com estes seus trabalhos se começavam de criar
obreiros idôneos para a conversão de tantas almas.
Entre estas ocupações e outras muitas, em que o padre Provincial Manuel da Nóbrega
se aproveitava de sua diligência, indústria e conselho, começou a aprender a língua da terra e
tão de propósito se deu a ela, além da facilidade que Deus lhe tinha comunicado para línguas,
que não somente chegou a entendê-la e a falá-la com perfeição, mas também a compor a Arte
dela, em espaço brevíssimo de seis meses, segundo daí a muitos anos ele mesmo disse a um
padre.
Esta Arte, pelo tempo em diante, sendo por ele e por outros padres línguas, examinada
e aperfeiçoada, se imprimiu em Portugal e é o instrumento principal de que se ajudam os
nossos padres e irmãos, que se ocupam na conversão da gentilidade, que há por toda a costa
do Brasil.
Esta língua é a geral, começando acima do Rio do Maranhão e correndo por todo o
distrito da Coroa de Portugal, até o Paraguai, e outras Províncias sujeitas à Coroa de Castella.
Aqui entram os pitiguares até Pernambuco, os tupinambás da Bahia, os tupiniquins e
tumininós da Capitania do Espírito Santo e os tamoios do Rio de Janeiro e muitas outras
nações, a quem serve a mesma língua com pouca mudança de palavras.
Desta Arte há no Colégio da Bahia lição em casa, para os que de novo começam
aprender a língua. Trasladou mais o Irmão José o Catecismo, deu princípio ao Vocabulário, fez a
Doutrina e Diálogo das coisas da fé, e a Instrução das perguntas para confessar, e a que serve para
ajudar a bem morrer.
E com este bom exemplo meteu fervor e emulação aos nossos, para irem por diante no
desejo da salvação do gentio, como sempre foram com a divina graça, por toda esta costa,
assim nas cidades e vilas em que os nossos residem, que são oito, como nas aldeias em que
estão de assento, que são dez, além de outras muitas que têm a cargo, por visita, e também as
missões que fazem ao sertão, para trazerem gentio para as Igrejas, quando são enviados por
seus superiores.
MAROMOMIS
Não cessou com a idade o santo zelo que tinha de procurar, por todas as vias a
conversão do gentio; antes daí a muitos anos, sendo superior da casa de São Vicente, ajudou a
fazer a arte da língua dos maromomis, (no original são várias as grafias deste apelativo. Fixar-nos-
emos nesta maromomis, de acordo com a fixação estabelecida em Latim, antigos missionários da
Companhia) dos quais, para dar alguma notícia, me ajudarei do que o mesmo Padre José
escreve, no livro que fez da Vida dos primeiros padres desta Província, capítulo quarenta e três.
“Além dos índios que moram pela costa do Brasil, há pelo sertão adentro muitas outras
nações de diferentes línguas, com as quais os que têm comércio com os portugueses trazem
contínua guerra e lhes chamam tapuias, como quem diz selvagens.
Entre estes há uns chamados maromomis, que são muitos; mas a maior força deles vive
pelos matos e serras da capitania de São Vicente, obra de duzentas léguas pelo sertão adentro,
e obra de outro tanto até a capitania do Espírito Santo. A língua é fácil de aprender a quem
sabe a geral da costa. São amigos dos portugueses, e ordinariamente não têm mais que uma
mulher; não curam de criações, porque vivem pela flecha da caça do mato.
E quando ao comer carne humana passa o que direi: geral fama ou infâmia é do gentio
do Brasil, que come carne humana, mas isto não fazem os que têm trato com os portugueses,
ainda que gentios, nem usam as nações que têm pazes umas com outras, mas somente com
seus contrários, que tomam em guerra, como por honra e bárbara vingança. E não por
mantimento ordinário, cortada em açougue, como se diz de alguma gente de Guiné, nem
sacrificando primeiro os homens a seus ídolo e depois comendo-os, como usavam os
bárbaros motaçumas, antigos reis do México (trata-se de Montezuma e sua dinastia. As Canárias
constituíram elo da navegação espanhola para o México. Aí, donde saiu Anchieta para Coimbra em
1548, bem se conhecia o México a recente história de sua conquista por Fernão Cortez).
Porém os maromomis nem ainda com este título de vingança, nem com outro, comem
a seus contrários, antes se honram e prezam de serem nisso particulares.
Desceram una poucos destes da serra à barra de São Vicente, chamada Bertioga; acudiu
logo a os agasalhar o Capitão da Vila. Veio também com ele o Padre José, que então era
Superior e por seu companheiro, o Padre Manuel Viegas, e em quinze dias que ali esteve, por
meio de uma escrava, intérprete, fez o padre um pedaço de vocabulário e também o princípio
da arte, mas como por ocupação do cargo, e outras que lhe sobrevieram, não podia ali assistir,
deixou o negócio ao Padre Manuel Viegas, que tomou esta nova empresa tão de propósito e
começou a tratar este gentio com tanto amor e zelo, que aprece que não cuidava nem tratava
de outra coisa.
Andava em busca deles para os ajuntar e ensinar, por serras, campos, vales e praias;
levava à casa os filhos deles pequenos, para que aprendendo a língua geral, depois lhe
servissem de intérpretes. Venceu muitas dificuldades, sofreu muitas contradições, e
incomodidades nesta santa obra, por lhe dizerem que trabalhava debalde, por ser gente que
anda sempre inquieta, nem se ajuntar em aldeias.
Mas a tudo resistia prosseguindo seu intento; e entretanto não fazia senão batizar e
mandar à glória muitos inocentes que morriam batizados, e alguns adultos que batizava in
extremis. E pouco a pouco com sua paciência e continuação, sem nunca se enfadar de os tratar,
acabou com eles, depois de muito tempo e trabalho, que fizessem assento em alguns lugares
da mesma capitania.
E da mesma maneira vindo ao Rio de Janeiro, daí há muitos anos, fez com eles se
ajuntassem em outro lugar, junto à aldeia de São Barnabé, onde estão quietos, fazendo suas
roças ou lavouras de legumes e mantimento da terra, a seu modo, onde tem deles cuidado o
Irmão Pero de Gouveia, de nação alemã, e de muita facilidade para aprender estas línguas, no
que faz muito serviço a Deus há muitos anos.
O Padre Manuel Viegas trasladou nesta nova língua, a doutrina que estava feita para os
índios da costa, fez vocabulário muito copioso, e ajudou ao Padre José a compor a arte da
gramática, com que facilmente se aprende, e com isto vai por diante a conversão e salvação
destes pobres”. (o trecho que colocamos entres aspas é de estilo nitidamente anchietano. Contém
afirmação que contraria a opinião de Rodrigues, a respeito de quem é autor principal da gramática dos
maromomis. Cita o nome do Ir. Pero de Gouveia, que depois veio a sair da Companhia. É de Anchieta,
sem dúvida).
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