III. NO COLÉGIO DE SANTA BÁRBARA - XAVIER E FABRO

Francisco encetou o curso de filosofia com desejos e propósito firme de se distinguir entre todos os seus condiscípulos e assim o conseguiu, porque a sua inteligência não admitia dificuldades, e trabalhava com ardor insano. Dele se dizia, que "nunca estudante algum conseguira, em Paris, tanto com tanta facilidade".

De entre todos os alunos da sua classe, Francisco extremou Pedro Fabro, um dos mais notáveis pela sua assiduidade ao estudo, mais atraente e simpático pelas qualidades da sua alma e do seu coração. Xavier, encantado da sua modéstia, da sua afabilidade e da tranquilidade do seu espírito, desejou aproximar-se dele, e Pedro, que pelo seu lado admirava a vasta e robusta inteligência do jovem Navarrês, assim como apreciava o seu nobre caráter e o encanto que derramava em torno de si, julgou-se muito feliz por se ver por ele estimado. Bem depressa os dois amigos não tiveram mais que um só quarto e partilhavam os seus entretenimentos e trabalhos, os seus prazeres e desgostos; tudo, finalmente, se tornou comum entre eles, e os progressos de cada um faziam a alegria de ambos.

Deus preparava assim a execução de seus altos desígnios num e noutro, porque uma tal intimidade estava em oposição com as idéias da época.

Pedro Fabro, filho dum agricultor de Villaret, próximo de Gênova, tinha sido guardador de gado na sua infância. A sua terna piedade, o desenvolvimento extraordinário da sua inteligência e o desejo que tinha de estudar o latim, resolveram seu pai a confiá-lo a um professor da vizinhança, cujo mérito conhecia.

Pedro estudou ali com tal aproveitamento, que D. Jorge Fabro, seu tio, prior dum mosteiro em Chartreuse, reconhecendo aquelas disposições julgou conveniente adiantá-lo nos estudos, quanto possível fosse, e obteve de seu irmão que se fizessem os arranjos precisos para o mandar para a Universidade de Paris a fim de ali seguir um curso de filosofia.

Era um sacrifício para a mediocridade da sua fortuna, porém o pai de Fabro, verdadeiro cristão, para não resistir à vontade de Deus para com seu filho, resignou-se a sofrer faltas pecuniárias, e as saudades que esta separação e longa ausência lhe deixavam, e enviou Pedro para o colégio de Santa Bárbara.

Xavier, ligando-se a este jovem estudante, reconhecera nele uma modéstia original e uma simplicidade rústica provenientes, sem dúvida, do seu nascimento e das suas ocupações anteriores; mas, coisa admirável no século XVI, o soberbo espanhol, o descendente dos reis de Navarra, aquele cujos irmãos eram admitidos com distinção na corte de Aragão e de Castela, sendo ele também, com a maior honra, recebido na de Francisco I [11], escolheu para o seu íntimo amigo o filho dum pobre agricultor, dum aldeão da Sabóia, com quem vivia em fraternal intimidade!

Que diferença, pois, nos seus caracteres, nos seus hábitos, na educação, nos gostos e nas idéias! Pedro era duma piedade de anjo. Francisco, educado sob princípios religiosos, conservava e acatava os seus deveres e preceitos essenciais, mas não passava disso. Era orgulhoso e altivo, delicado em pontos de honra, algum tanto vaidoso da sua pessoa e da superioridade das suas brilhantes faculdades. Pedro era humilde, ingênuo, modesto, chegando a ser algum tanto tímido e não se orgulhando dos seus progressos e dos louvores que recebia dos professores pelo seu grande mérito.

Os dois amigos trabalhavam com igual ardor nesta aprazível intimidade, que nem por um momento fora interrompida, e calculavam, com alegria, que, continuando a seguir por aquele modo os seus estudos, e com tão igual resultado, receberiam os graus no mesmo dia e partilhariam, ainda juntos, deste último aplauso e triunfo. Não tinham, pois, tempo a perder; este pensamento animava-os, incitava-os, e eles trabalhavam com mais ardor cada dia, e com tal assiduidade que nada os distraía.

Porém a presença de Francisco fazia cada vez maior falta no solar de Xavier. Os dias pareciam ali mais longos, os serões não tinham encantos desde o dia em que o espírito alegre, a animação e o caráter amável do jovem estudante deixara de dar vida àquela solidão. Decorrera dois anos depois da sua partida, e dois anos de separação do filho, era já longo tempo para os corações daqueles pais!

D. Maria esforçava-se por dissimular a sua tristeza, porém D. João era mais franco, por isso falava muitas vezes em chamar para junto de si o seu filho mais novo; e D. Maria conseguia sempre dissuadi-lo desta idéia, a bem dos interesses do seu muito querido Francisco, continuando ambos a sofrer a ausência e o isolamento, cheios da maior abnegação e paciência.

D. Madalena, sua filha, então abadessa do mosteiro de Santa Clara, gozava de tão grande fama de santidade, que de muito longe a vinham consultar, e provado estava que ela recebia luzes proféticas, porque os factos o justificavam.

D. João escreveu-lhe consultando-a se devia ou não determinar o regresso de Francisco [12]. A santa abadessa, inspirada por Deus, respondeu a seu Pai: -"Se a glória de Deus vos é cara, deixai meu irmão em Paris, a fim de que depois da filosofia ele estude a teologia, porque Deus me revelou que Francisco era o vaso de eleição destinado a levar para as Índias o facho da Fé".

Esta magnífica e inesperada nova produziu uma inexprimível mistura de impressões no nobre solar!... Que esperanças lhes restavam agora de tornar a ver aquele que espalhava ali tanta alegria e tanto encanto!... Qual seria o destino que a Providência tinha em vista dar-lhe?...

Que direção tomaria ele para ir... para as Índias? pelo meio de povos infiéis cuja selvageria e natural crueldade inspiravam terror?!... E ao mesmo tempo, que felicidade, que glória para aquele pai e aquela mãe, aos quais Deus se dignava fazer anunciar, por um de seus filhos, cuia santidade era conhecida em todo o reino de Valentia, que o seu Francisco tão querido era o "vaso de eleição" destinado a levar o Evangelho aos vastos países de além-mar, de pouco conquistados pelas armas européias...

D. João e D. Maria souberam agradecer a Deus esta grada, oferecendo-lhe o doloroso sacrifício cujo preço era aquele Xavier conservou-se, pois, em Paris; ali continuou o seu curso de filosofia e terminou-o duma maneira tão distinta, que se lhe ofereceu imediatamente uma cadeira daquela faculdade no colégio de Beauvais; porque então ninguém podia ser agregado à Universidade, e obter o grau de doutor em teologia se não tivesse ensinado a filosofia por sete anos consecutivos.

Assim como o haviam desejado os dois amigos, Pedro Fabro foi recebido como professor em artes ao mesmo tempo que Xavier, e também por distinção.

Ao receber a sua nomeação para a cadeira do colégio de Beauvais, Francisco tomou a mão de seu amigo e disse-lhe com o sentimento de franca cordialidade que fazia o encanto da sua vida de estudante

- Pedro, eu lecionarei no colégio de Beauvais, porém, conservarei o meu quarto de estudante de Santa Bárbara é não nos separaremos.

- Considerar-me-ei muito feliz, respondeu-lhe Pedro, porque estou resolvido a seguir um segundo curso de filosofia, antes de começar os estudos de teologia, assim gozarei muitos anos mais da vossa companhia.

- Era isso o que eu desejava, replicou Xavier; vós podíeis mesmo seguir o curso de teologia morando no colégio de Santa Bárbara, e conquanto os nossos trabalhos sejam hoje diferentes, ser-nos-á mais agradável a vida comum, porque trabalha-se mais e descansa-se melhor, quando se está ligado como nós.

- Assim gozaremos, pois, esses tantos anos; mais tarde... o futuro pertence a Deus!...

- Sim, não pensemos, por agora, na nossa separação; falaremos nisso em 1534, e, por tanto, temos muito tempo.