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Um jovem de porte nobre, elegante e rico, apresentou-se um
dia no hospital Saint-Jacques, antes do pôr do sol:
- Desejo falar a um homem que acaba de entrar - disse ele - e
que é fácil reconhecer, não só pela sua túnica cinzenta, mas
também pelos seus compridos e desalinhados cabelos.
- Ah! sim, senhor, é o Santo, como todos lhe chamamos aqui;
venha comigo.
O jovem elegante foi apresentado ao nosso herói, que pensou
ver nele um desconhecido:
- Não me conhece, D, Ínigo?
- João de Madeva ! Sim meu amigo, reconheço-o muito bem!
- O senhor aflige viva e profundamente sua família, D. Ínigo.
Desonra-a com a sua vida aventureira e com a sua obstinação
em pedir esmola. É indigno do seu nascimento proceder assim!
Que quer que se pense de sua família? Supor-se-á, ou que ela
não tem meios para acudir às suas necessidades, ou que não
quer. Num ou noutro caso enganam-se, e a censura recairá
sobre ela, por que os seus bens são consideráveis e todo o
espanhol de raça nobre sabe quem são os ilustres Oñaz de
Loiola. Direi mais: um fidalgo do seu nascimento, que tem a
fortuna que o senhor tem, não pode viver á custa da caridade
pública, como o senhor vive, sem se tornar culpado para com a
própria família, que desonra, para com Deus, que ofende, e
para com os pobres, que espolia em proporção do que recebe.
- Talvez o sr. D. João tenha razão; vou esclarecer este ponto
e agradeço-lhe o interesse, que toma pela minha família.
No dia seguinte, Inácio de Loiola fez esta pergunta, por
escrito, à Sorbona:
" Um fidalgo que, por amor de Deus, renunciou ao mundo e
abraçou a pobreza voluntária, ofende a Deus vivendo de
esmolas nos diversos países que percorre?"
Todos os teólogos responderam por escrito:
"Não há pecado, nem sequer sombra de pecado".
Inácio apressou-se a comunicar esta decisão a D. João de
Madeva, acrescentando
- Foi menos para minha justificação que procurei esclarecer a
V. Ex.a, do que pelo respeito que se deve ter pela pobreza
voluntária, de que o nosso soberano Senhor Jesus Cristo nos
deu exemplo.
Não encontrando João de Madeva nada que opor, não mais o
inquietou e prometeu-lhe não revelar o seu nome.
Entretanto, os parentes e amigos dos discípulos do nosso
Santo renovavam, sempre sem resultado, as suas tentativas,
para os afastarem do caminho em que tinham entrado. A
inutilidade dos seus esforços determinou-os a adoptarem de
combinação o meio mais eficaz.
Uma manhã, ao romper da aurora, apresenta-se a força armada,
leva os três jovens e entrega-os a suas famílias.
Submetem-nos a um interrogatório na esperança de que as suas
respostas dêem motivo para acusar o seu mestre; mas os jovens
falam de Inácio com a mais profunda veneração e a mais, viva
ternura. Não importa! O inferno, que já treme só ao ouvir
pronunciar o nome de Inácio, saberá inspirar aqueles de que
se serviu para lhe arrebatar os seus discípulos.
Entrementes, o nosso herói recebe uma carta de Diogo, aquele
que o espoliou das esmolas de que Inácio, o fizera
depositário. Diogo acusa-se desta infidelidade, da desordem
em que se lançou, da miséria que a isso se seguiu, e
acrescenta que, achando-se detido em Rouen pela doença e mais
completa miséria, pede a Inácio que o alude a voltar a
Espanha, buscando-lhe alguns socorros.
O Santo não hesita. Diz a um amigo o motivo duma ausência
cuja duração ignora. Vai pôr-se em oração na igreja dos
Dominicanos; e depois de ter consultado com Deus, parte, a
pé, pedindo sempre esmola, esperando ao menos consolar e
fortificar o seu inimigo, se não lhe for possível fazer-lhe
mais. Parte em jejum; e convencido de que andará mais
depressa se tirar o pesado calçado, caminha de pés descalços,
oferecendo a Deus as fadigas e os seus sofrimentos pelo pobre
pecador que vai socorrer. O seu coração bate, docemente
comovido, ao pensamento de que talvez recolha suficientes
esmolas no caminho para ser ainda mais útil a Diogo. E,
contudo, apenas fora de Paris, experimenta uma espécie de
apreensão das fadigas desta viagem; sente-se pesado, quase
desanimado. Prometera nada tomar e estar em jejum até Rouen;
agora, perguntava a si se poderia sustentar aquele longo
jejum, e temia-o. Todavia, renova esta resolução como se
estivesse certo de a cumprir, porque conta com o auxílio de
Deus.
Está perto de Argenteuil quando, de repente, se sente cheio
duma força e de um vigor que só lhe podia vir do céu.
Caminhou com tanta ligeireza e vivacidade que andou dez
léguas durante o dia, parando apenas de longe a longe para
louvar e agradecer a Deus, que o cumulava dos seus favores.
A noite, parou numa pequena cidade, pediu um leito no
hospital somente para a noite, e aceitou com alegria metade
de uma cama que lhe ofereceram; a outra metade era ocupada
por um pobre mendigo, cujo aspecto causava repulsa. Inácio de
Loiola agradeceu a Deus mais este favor, que terminava, tão
bem para ele, aquele belo dia. Como poderia testemunhar a
Deus o seu reconhecimento e o seu amor, se não tivesse tido
tão bela ocasião de vencer a natureza?
A segunda noite foi menos meritória, na sua opinião: passou-a
numa meda de palha, onde esteve só. Era quase luxo,
comparativamente.
Na terceira noite estava em Rouen, tratava Diogo, abraçava-o,
animava-o, prometia procurar-lhe socorro no dia imediato, e
sobretudo mostrava-lhe a sua amizade e assegurava-o do
completo esquecimento da falta cometida para com ele. Apenas
raiou o dia, foi mendigar para Diogo, obteve-lhe passagem
gratuita num navio mercante e deu-lhe cartas de recomendação
para Espanha.
Foi esta a vingança que Inácio tirou.
Enquanto ele se ocupava desta obra, o inferno trabalhava.
As pessoas que lhe tinham arrancado os seus três discípulos,
fizeram uma queixa em forma ao Inquisidor mor, Mateus Ori,
prior dos jacobinos. Acusavam Inácio de perverter a juventude
das escolas e exercer sobre ela uma influência que só podia
ter origem na magia. Mateus Ori chamou o culpado ao seu
tribunal; mas Inácio não se achava em Paris naquele momento,
e, daí, uma multidão de suposições, que, por absurdas, não
convenciam ninguém.
- Inácio estava ralado de remorsos, - diziam uns e fugiu para
se subtrair à fogueira.
- Toda aquela aparência de santidade, - diziam outros se
esvaiu como fumo; vendo-se prestes a ser desmascarado, fugiu
para não ser enforcado.
- Isso prova, - acrescentavam aqueles que se tinham na conta
de prudentes e moderados - que se deve sempre desconfiar da
exageração e tê-la par muito perigosa.
O amigo a quem o nosso Santo confiara as razões porque
partia, escreveu-lhe imediatamente e enviou-lhe um
mensageiro. Este encontrou o Santo numa praça pública em
Rouen e entregou-lhe a carta.
Inácio leu-a, manda dizer a Diogo que o não pode abraçar
porque tem pressa de voltar, a Paris, e entra em casa de um
tabelião, acompanhado das pessoas que com ele se achavam.
Apresenta ao tabelião a carta que acaba de receber,
pedindo-lhe para a ler às suas testemunhas; e declara que,
sem voltar à hospedaria onde está o amigo que veio visitar, e
sem comunicar com ninguém, vai pôr-se a caminho de Paris.
Pede ao tabelião um documento deste facto, insta com ele para
que o acompanhe, com as testemunhas, até fora dos muros da
cidade e parte.
Chegando a Paris, não pára em parte alguma; coberto da poeira
do caminho, apresenta-se diante de Mateus Ori; diz onde e
como recebeu a notícia das acusações que lhe fazem, e
acrescenta:
- Aqui estou à disposição de Vossa Reverência, pronto a
responder a tudo que julgue dever perguntar-me, pronto a
submeter-me a tudo o que quiser. Peço a Vossa Reverência
apenas uma coisa; é que me permita seguir o curso de
filosofia, que começa no dia de S. Remígio.
Foi fácil ao Inquisidor reconhecer a inocência do pretendido
culpado e apreciai a sua santidade. Inácio inspirou-lhe a
mais completa confiança e uma verdadeira veneração; foi este
o resultado da agitação e da perseguição dos seus inimigos.
Mas a pureza reconhecida da sua doutrina e a eminente
perfeição da sua vida não conseguiram mudar os sentimentos
dos seus inimigos, e os discípulos não lhe foram restituídos.
Rodearam-nos de vigilância e de perseguições até ao fim dos
estudos, depois levaram-nos para a sua pátria, e, mais tarde
João de Castro, sacerdote e grande pregador, entrou na ordem,
de S. Bruno; Peralto quis empreender a viagem à Terra Santa,
mas, não podendo obter autorização do Papa, voltou à Espanha.
Ignora-se o que foi feito de Amatore.
As férias aproximavam-se; Inácio formara o projecto de
empreender uma viagem à Inglaterra para recolher esmolas
necessárias à sua subsistência durante o ano escolar, que ia
seguir-se.
O Santo deplorava sempre o tempo que a distância do hospital
Saint-Jacques ao bairro Latino roubava todos os dias aos seus
estudos e perguntava a si mesmo muitas vezes o que deveria
fazer para se aproximar das aulas, sem aumentar ar as
despesas. Uma idéia, que só a sua admirável virtude lhe podia
sugerir, se lhe apresentou ao espirito: "Todos os professores
da Universidade têm criados; - disse ele - se um deles :me
aceitasse como tal, sem outra retribuição mais que as lições
que me desse, com a condição, todavia, de me: permitir que
seguisse o curso de filosofia!... Servi-lo-ia o melhor
possível, acostumando-me a ver Nosso Senhor Jesus Cristo na
sua pessoa e os apóstolos na pessoa dos seus alunos... Sim,
vou procurar obter isto"!
E o heróico Inácio procura e pede, com efeito, o lugar de
criado! Tinha já feito a Deus o maior de todos. os
sacrifícios, roubando algumas horas à oração para as dar ao
estudo, sem o qual sabia não poder chegar nunca ao livre
exercício do apostolado. Apresenta-se-lhe agora ao pensamento
outro sacrifício, que pode acelerar os seus desejos e
fazer-lhe atingir com segurança e prontidão o fim tão
desejado para glória de Deus: fá-lo-á sem hesitar. Ele, o
temido guerreiro, o nobre cortesão, o rico e magnifico Loiola
far-se-á criado dum professor, de quem teria feito muito
pouco caso alguns anos antes! Só a humildade o podia arrastar
a isso.
Deus não permitiu que Inácio encontrasse o lugar ambicionado.
Durante as férias fez à Inglaterra a viagem projectada.
Quando regressou, encontrou no hospital cartas de crédito que
alguns negociantes espanhóis, estabelecidos nos Países
Baixos, lhe enviaram, renovando-lhe a promessa de que
enviariam todos os anos igual quantia, e até que a
aumentariam tanto quanto ele desejasse para as suas boas
obras ou para si mesmo. Alguns dias depois, recebia também
consideráveis esmolas de Barcelona.
Assim provido do necessário, e mais que do necessário, pôde
permitir-se o luxo dum pobre aposento no bairro Latino junto
do colégio Santa Bárbara, onde ia começar o curso de
filosofia. Tinha então trinta e oito anos.
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