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Estava-se no fim de julho[21]; o calor era sufocante e tinha
soado a hora da sesta para todos, exceto para o nosso jovem
penitente, que percorria os campos, inteiramente desertos
naquele momento.
A seiscentos passos aproximadamente da pequena cidade de
Manresa, não longe do confluente do Cardoner e do Llobregat,
no lindo vale que os habitantes do país chamavam Vale do
Paraíso, Inácio ajoelhava-se junto duma cruz de pedra,
plantada à beira do caminho, chamada a Cruz de Tort. Por
detrás, do outro lado do caminho, corria o Cardoner; na
frente, do outro lado da cruz, elevava-se uma montanha
rochosa cujas saliências lhe atraíram a atenção. Levanta-se,
dirige-se para a montanha, parece interrogar cada uma das
escabrosidades, e, parando alguns instantes diante dum montão
de silvados e de grandes pedras, afasta as silvas e rola
algumas pedras. Fere as mãos; está banhado de suor; suspende
por vezes o seu rude trabalho, descansa alguns momentos e
retoma-o depois com novo ardor. Por fim abaixa-se, curva-se,
entra por uma abertura que acaba de desentulhar e alargar, e
penetra no interior da montanha. Encontra-se então numa gruta
de trinta passos de comprido sobre dez de largo e outros
tantos de altura. Do lado de Monserrate, uma larga fenda
deixa penetrar um frouxo raio de luz e permite ver a igreja
que coroa o monte bendito; o solo e as paredes são cobertos
de saliências duras e pedregosas. Inácio, contentíssimo com
esta descoberta, estabeleceu ali a sua morada, e, só, sob o
olhar de Deus, passava noites inteiras em oração, prescindia
de todo o alimento durante dias seguidos, disciplinava-se até
derramar sangue e feria o peito com uma pedra. Estas
austeridades alteravam-lhe a saúde e enfraqueciam a -sua
forte constituição. Tinha violentas dores de estômago,
sustentava-se a custo e muitas vezes caía em longos
delíquios.
Voltando um dia da capela de Nossa Senhora de Viladorsis, as
forças traíram-no à entrada da gruta; quando recobrou os
sentidos pelos cuidados das pessoas que o haviam descoberto,
foi levado ao hospital de Santa Lúcia, onde se apoderou dele
uma forte febre, que lhe pôs a vida em grande perigo. Durante
esta doença, Inácio julgou ouvir, um dia, uma voz interior
dizer-lhe:
"- Como poderás sustentar tantas austeridades durante
cinquenta anos, que ainda tens que viver?"
Inácio, reconhecendo nesta linguagem o espirito do mal,
respondeu-lhe logo:
"- Tu, que assim falas, podes assegurar-me uma só hora de
vida? Não é Deus o único senhor dos nossos dias? E, ainda que
eu vivesse mais cinquenta anos, que é isso comparado com a
eternidade?"
Entretanto a doença fazia rápidos progressos sobre aquele
corpo gasto pela mais rigorosa penitência; chegou a
desesperar-se da sua vida, e, não tendo podido o inimigo de
todo o bem fazê-lo cair no desalento, procurou vencê-lo pelo
orgulho. Persuadiu-o de que, depois duma penitência como
aquela que acabava de fazer durante meses, não devia temer a
justiça divina.
"- Por que hei-de chorar a vida? - pensava o nosso herói.
Tenho. vivido como um Santo anacoreta desde que estou em
Manresa; estou coberto com um cilicio, tenho trazido uma rude
cinta, tenho jejuado, orado, feito vigílias, tenho chorado a
minha vida passada... Não é isto o que fizeram os Santos, e
não devo ver o céu aberto e os anjos prontos a receber-me ?"
Mas conheceu esta nova tentação e esforçou-se por combatê-la
com a lembrança dos seus pecados.
"- Infeliz de mim! - dizia ele. Que proporção pode haver
entre uma vida inteira de pecado e alguns meses de penitência
?"
E, chamando em seu auxílio a misericórdia divina, pediu-lhe
que lhe concedesse o perdão das suas culpas e não a
recompensa das suas virtudes. Depois instou com as pessoas
que o rodeavam que lhe repetissem:
"- Inácio, recorda-te dos pecados que cometeste e das penas
que eles merecem; pensa que mereceste o inferno e nunca o
paraíso!"
A doença cedeu enfim; mas recobrando a saúde, Inácio ficou
exposto a uma provação mil vezes mais cruel que todos aos
sofrimentos que tinha padecido até então, e que só pode ser
compreendida e apreciada pelas almas a quem à Deus apraz
fazer passar por tão dolorosa tribulação.
O nosso santo penitente, aterrado por ter tido o pensamento
de que chegara à santidade pelo excesso dos rigores exercidos
sobre o seu corpo, não cessava de recordar-se da sua vida
passada, a fim de vencer o orgulho e de humilhar a vaidade.
Deus permitiu que esta vista contínua de culpas tão
amargamente deploradas, trouxesse a perturbação à sua alma e
lhe fizesse sofrer todas as incertezas, todas as dúvidas,
todos os terrores, todas as torturas do escrúpulo. Inácio
receava ter feito mal a sua confissão geral em Monserrate;
não ter sufi-cientemente explicado as circunstâncias, ter
diminuído a gravidade dos seus pecados pelo modo de os
confessar; persuadia-se principalmente de ter esquecido;
lembrando-se de coisas que não eram de modo algum pecados,
julgava ver nelas uma. ofensa à Majestade divina. Os
escrúpulos estendiam-se mesmo A sua vida atual; tudo lhe
parecia pecado: os pensamentos, as palavras, as ações, até os
menores movimentos. Se era forçado a confessar que o facto em
si mesmo não era mal, imaginava falta de pureza da intenção,
a qual pensava não podia deixar de ser má, pelo facto de vir
dele. A graça parecia tê-lo abandonado: nem sentimentos, nem
confiança, nem atrativos, Ausência completa -de consolações,
que o haviam sustentado até então. O céu parecia fechado para
ele, Deus mostrava-se surdo às suas orações, e sucedia que o
último raio de esperança se obscurecia totalmente na sua alma
desolada. E, contudo, nunca ele amara tanto a Deus! Nunca
experimentara tão ardente sede da sua graça, tão fervoroso
desejo de lhe agradar!...
Os religiosos dominicanos do convento de Manresa,
compadecendo-se do seu estado, tiraram-no do hospital,
deram-lhe uma cela no convento e prodigalizaram-lhe os
cuidados. da mais terna caridade.
Inácio comungava todos os domingos; mas por vezes sucedia que
o- sentimento da sua indignidade, na perturbação em que o
lançavam os seus escrúpulos, o afastava da Sagrada Eucaristia
no mesmo momento em que se ia aproximar dela. Receava cometer
um sacrilégio; o Deus do amor era para ele um juiz irritado,
pronto a exercer as suas vinganças. O nosso Santo caiu numa
melancolia que nada podia dissipar, e, num momento em que as
trevas do seu espírito lhe pareciam mais espessas que nunca,
desesperou da misericórdia infinita a ponta de querer pôr
termo à vida: olhava para a janela da sua cela, media com a
vista a altura que o separava do solo e dizia que era
preferível todo o suplício àquele que torturava a sua alma...
Um pensamento o deteve: Deus seria ofendido, e ele amava-o
com todas as potências da sua alma! Então o desolado
penitente cai de joelhos, chora copiosamente e exclama:
"- Meu Deus! soberano senhor de todas as coisas, eu vos peço
que socorrais o vosso indigno servo! Vede o meu triste
estado, tende piedade de mim!..."
Naquele momento, recordando-se de que um santo ermita, cuja
vida lera, recusou toda a alimentação até que lhe fosse
concedida uma graça há muito solicitada: - "Pois bem, - disse
o nosso Santo - usarei o mesmo processo, e talvez Deus se
apiade de mim".
E jejuou rigorosamente, sem comer nem beber, durante oito
dias. Sabendo-o seu confessor, ordenou-lhe que quebrasse esse
jejum, que não pudera, sem milagre, sustentar tanto tempo.
Inácio, dócil como uma criancinha, obedeceu imediatamente; e
Deus, agradado sem dúvida mais da sua obediência do que do
jejum, restituiu-lhe a tranquilidade e inundou-o, durante
três dias, das mais deliciosas consolações; mas, depois de
lhe ter renovado deste modo as forças, pareceu que o
abandonava de novo. Todos os terrores, dúvidas, desesperos o
assaltavam novamente com maior ímpeto. O religioso que
dirigia a sua consciência proibiu-lhe formalmente que
detivesse de então por diante o pensamento nas faltas da sua
vida passada; o Santo obedeceu e reconquistou então uma doce
paz, que não tornou a perder.
Nos desígnios de Deus a experiência era suficiente.
Em alguns meses, Inácio de Loiola tinha experimentado todas
as alegrias e todas as dores, todas as consolações e todas as
amarguras da vida espiritual; tinha percorrido todas as vias,
conhecia os diversos atalhos em que havia de dirigir um dia
numerosos discípulos, destinados a tornar-se mestres.
Entretanto a saúde, fortemente abalada por tão violentas
provas, inquietava todos os numerosos corações que o
estimavam, porque toda a cidade e arredores o olhavam como um
Santo e como tal o veneravam. D. André Ferreira de Ami
suplicando aos Dominicanos que deixassem ir Inácio para sua
casa, a fim, de lhe prodigalizar os cuidados necessários a
tanto esgotamento de forças, obteve este favor. Inácio
recebeu ordem de ir para casa do seu amigo até ao completo
restabelecimento, e desde então, D. André de Amigante foi
chamado Simão e sua mulher Marta.
- Não se lhes deve dar outros nomes, - diziam os habitantes
de Manresa - porque tiveram a felicidade de ter em sua casa a
mais viva imagem do divino Salvador.
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