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Deus parecia querer testemunhar que ratificava a eleição
Inácio de Loiola.
No dia 15 de Abril, o nosso Santo acabava de abandonar os
seus irmãos, e havia-se encerrado durante três dias, como
dissemos, no convento dos Franciscanos, em. S. Pedro in
Montorio, quando o demônio se apossou de repente de Mateo,
jovem Biscainho empregado no serviço da casa. dos Padres.
Lançava-o por terra e segurava-o com tal força que eram
insuficientes dez homens para o levantar, e provocava-lhe no
corpo as mais súbitas e extraordinárias inchações locais. Se
um Padre fazia o sinal da cruz sobre alguma dessas inchações,
desaparecia no mesmo instante e aparecia noutra parte. Uma
das testemunhas destes estranhos factos, não podendo
atribuí-los senão ao demônio, disse-lhe:
- O Padre Inácio vai regressar e expulsar-te-á certamente do
corpo desse jovem e da casa.
- Não pronuncies sequer o seu nome! exclamou o espírito
infernal pela boca da sua vítima, da qual redobrava as
convulsões. É o maior e mais terrível dos inimigos que tenho
neste mundo
Inácio reentrou em sua casa no dia de Páscoa, soube do estado
deplorável de Mateo, foi procurá-lo, tomou-o pela mão,
levou-o ao seu quarto, fez-lhe uma breve oração, e livrou-o
para sempre dos ataques exteriores do demônio..
Na sexta-feira seguinte, 22 de Abril, todos os Padres foram
juntos, de madrugada, visitar as sete igrejas e terminaram
esta piedosa peregrinação pela de S. Paulo extramuros. Ali
confessaram-se todos uns aos outros, segundo nos diz o Padre
Ribadeneira, depois do que Inácio de Loiola celebrou o Santo
Sacrifício no altar da Santíssima Virgem situado então à
esquerda do altar-mor, junto do crucifixo miraculoso que
falou a Santa Brígida. Antes da comunhão voltou-se para a
assistência, tendo numa das mãos a patena, na qual repousava
o corpo de Nosso Senhor, e na outra a fórmula dos seus votos,
que pronunciou com voz forte e muito distinta. A fórmula era
assim concebida:
"Eu, Inácio de Loiola, prometo ao Deus Todo-Poderoso e ao
Sumo Pontífice, seu Vigário na terra, em presença da
Santíssima Virgem, sua Mãe, de toda a corte celeste e da
Companhia, aqui presente, viver na castidade, na pobreza e
ria obediência, como o exigem as Constituições da Companhia
de Jesus, de que se faz menção na Bula. Prometo também
obediência especial ao Sumo Pontífice no que toca às missões,
encerrado na mesma Bula. Prometo igualmente dedicar todos os
meus cuidados à instrução da juventude, em conformidade com a
dita Bula.".
O nosso Santo, voltando-se para o altar, tomou o corpo e o
sangue do Salvador; depois, virando-se de novo para os Padres
ajoelhados junto do altar, e pegando na patena na qual
estavam cinco hóstias, recebeu os votos de todos os seus
discípulos, cada um por sua. vez, que pronunciaram a mesma
fórmula, com a diferença de que Inácio fizera os seus votos
ao Papa e os Padres fizeram os seus ao seu chefe, a Inácio de
Loiola, seu geral. Pronunciados os votos, Inácio deu-lhes a
comunhão. Depois da ação de graças, fizeram juntos a visita
aos altares privilegiados daquela igreja, e terminaram pelo
altar-mor, diante do qual todos foram abraçar o geral -e
beijar-lhe a mão em sinal de submissão e respeito. Todos,
choravam de felicidade, e alguns dos assistentes não puderam
conter as lágrimas de enternecimento e de edificação. Os bons
Padres estavam tão contentes de ver chegar enfim este dia
desejado e tanto tempo esperado, que o Padre Ribadeneira,
presente a esta imponente e comovente cerimônia, diz-nos que
no regresso, não podendo João Codure dominar a sua alegria, o
ouviu exclamar:
- Estou oprimido pelo excesso da felicidade!
Santo Inácio inaugurou o exercício do governo da Companhia
duma maneira digna, da sua humildade. Dirigiu-se à cozinha,
ajudou aquele que dela estava encarregado, ocupou-se em
seguida do serviço da casa, varrendo, lavando, não
encontrando nenhum trabalho inferior a si, desempenhando os
mais baixos misteres, transpirando alegria no meio destes
humildes trabalhos.
Mas não negligenciava ao mesmo tempo nenhum dos negócios
importantes do seu cargo. Depois de algumas semanas
consagradas especialmente à organização do serviço, deu
quarenta dias seguidos o catecismo às crianças na Igreja de
Santa Maria da Estrada, igreja que Pedro Codure, oficial do
Papa, e que gozava de muito crédito em Roma, fizera entregar
à Companhia. A estas instruções concorriam ainda mais adultos
do que crianças. Iam ali pessoas de todas as idades e
condições, mesmo Cardeais e príncipes.
O nosso Santo, falando sobretudo com o coração, produzia as
mais vivas e salutares impressões sobre os pecadores que o
escutavam. Segundo diz o Padre Laynez, freqüentemente chamado
para os confessar, eles não podiam confessar-se senão no meio
de muitos soluços, tão viva e profunda era a sua dor de
haverem ofendido a Deus. O Padre Ribadeneira diz-nos que
Santo Inácio falava com tanto calor, que parecia abrasado de
amor divino, e que o seu rosto era brilhante, mesmo quando
tinha acabado de falar. A explicação da doutrina cristã era
sempre seguida de uma calorosa e patética exortação terminada
por estas simples palavras, pronunciadas com inefável
expressão de amor:
- É necessário amar Deus Nosso Senhor com todo o nosso
coração, com toda a nossa alma, com toda a nossa vontade!
Eu era muito jovem então, - acrescenta o autor contemporâneo,
Pedro Ribadeneira - e repetia no dia seguinte, no catecismo,
o que o Padre Inácio tinha dito na véspera na sua instrução.
Receando que os seus pensamentos, tão belos e tão próprios a
impelir os homens para a piedade e virtude, fossem muito
negligenciados na forma, e obscurecidos algumas vezes pela
impropriedade das palavras, convidava-o a polir mais os seus
discursos. Escutando então apenas a sua modéstia e a.
humildade profunda que nele dominava, respondia-me com a sua
candura habitual e sempre tão persuasiva
- Agradeço-lhe a advertência, Pedro; obsequeia-me se
continuar a advertir-me das faltas do meu italiano.
Continuei pois, mas o número das faltas era tão considerável
que desesperei de poder notá-las todas, tão sobrecarregada
era a sua linguagem italiana de locuções espanholas. Dei-lhe
parte do meu embaraço e ele disse-me com doçura:
- Pois bem, que fazer? É um mal sem remédio. Que podemos nós
contra Deus?
A partir da sua eleição de geral, eis a ordem que o nosso
Santo tinha adoptado para todos os dias.
Começava pela oração, depois da qual celebrava missa.
Se qualquer negócio o chamava fora, saía em seguida. com
qualquer companheiro; no caso contrário, recebia aqueles. que
tinham necessidade de lhe falar, quer fossem de casa_ quer da
cidade. Acolhia a todos com uma doçura e amável benevolência
que, cativava os corações e com uma alegria que tranqüilizava
os espíritos mais agitados. Sem lhes testemunhar
desconfiança, era sempre prudente e reservado com as pessoas
do mundo. Depois de jantar, conversava com os seus irmãos
acerca dos negócios da Companhia e de assuntos instrutivos e
edificantes. Ocupava-se em seguida dos deveres do seu cargo e
da correspondência que lia, corrigia e assinava.
A noite, depois da ceia, regulava as ocupações para o dia
seguinte, indicava a cada um o que tinha a fazer, segundo o
emprego que exercia; depois trabalhava com o seu secretário.
Quando este último se retirava, o santo fundador passeava no
quarto apoiado no seu bastão, refletindo, meditando ou
orando. Não dormia nunca mais de quatro horas.
Dividia a noite em três partes: a primeira para os deveres do
seu cargo, como acabamos de dizer; a segunda para o descanso,
que não tomava nunca sem ter o terço na mão; a terceira para
a oração.
Ordinariamente começava a oração de pé; alguns momentos
depois, inclinava-se profundamente como se visse Deus
presente; então dobrava o joelho e adorava-o; ficava
ajoelhado, se as forças lho permitiam; no caso contrário,
tomava uma cadeira muito pequena e ficava numa atitude de
humildade e respeito, como se tivesse visto com os olhos do
corpo a presença da divina Majestade: as lágrimas corriam sem
dar a menor agitação ao rosto, a menor contração às feições;
parecia fruir a felicidade do céu.
Gastava pelo menos uma hora na celebração do Santo Sacrifício
da Missa, e muitas vezes sucedeu que, apoderando-se das suas
faculdades o espírito de Deus, conservava-se no altar mais
tempo ainda. Tinha decidido que os Padres não deviam levar
mais de meia hora a celebrar missa, e sempre o primeiro a dar
exemplo, da mais perfeita observância, não queria infringir
esta parte da regra; mas teria podido responder, como
respondeu a respeito das suas locuções espanholas: "Que
podemos nós contra Deus?" O Padre Nicolau Lannoy, assistindo
um dia à sua missa, viu na ocasião do Memento, uma chama
sobre a sua cabeça; correu para ele a fim de a apagar, mas
parou de repente à vista do belo rosto de Inácio de Loiola
reflectindo raios celestes e do seu brilhante olhar, que
parecia mergulhado no próprio seio da divindade.
O ardor do seu amor para com Deus devorava-o a ponto que não
podia celebrar a missa regularmente todos os dias, tão
exausto ficava pelos longos êxtases que o prendiam ao altar.
Um dia de Natal, depois de ter celebrado duas missas,
achou-se tão fraco que se viram obrigados a levá-lo ao seu
quarto, julgando-o moribundo. As palpitações do coração no
altar eram visíveis para os assistentes. Tendo um homem do
povo um dia presenciado isto, e vendo-o ao mesmo tempo verter
muitas lágrimas, aproximou-se cautelosamente de Francisco
Estrada, que acabava de acolitar à missa do nosso Santo, e
disse-lhe:
- O sacerdote que acaba de dizer a missa é um grande pecador,
não é? É de crer que Deus lhe haja perdoado, porque chorou
muito!
Depois da missa, Santo Inácio encerrava-se no seu quarto e
dedicava duas horas à ação de graças. Não era permitido a
ninguém perturbá-lo durante estas duas horas, a não ser que
fosse para negócio muito grave e que exigisse pronta solução.
"Quando eu não podia deixar de ir interrompê-lo, - diz o
Padre Luís Gonçalves da Câmara, que exercia na casa o cargo
de ministro - encontrava-lhe sempre o rosto brilhante e
inflamado. Coxas o espírito muito ocupado no negócio que ali
me levava, ficava surpreendido ao vê-lo, porque não era
somente o recolhimento que lhe estava impresso no rosto, era
uma expressão celeste que me atraía, e alguma coisa de
sobrenatural, que eu não vi nunca noutros".
O quarto do Padre geral era separado da igreja por um muro;
Inácio mandou apear esse muro a fim de gozar sempre a
presença de Nosso Senhor. Esta tribuna estava precisamente
diante do tabernáculo; era o único luxo do quarto do nosso
Santo. A mobília não era mais do que no quarto dos outros
religiosos: um leito, uma cadeira, uma mesa, um candieiro.
Toda a sua biblioteca: uma Bíblia, um Missal e a Imitação de
Cristo, da qual lia um capítulo todos os dias, e algumas
linhas, de tempos a tempos, quando abria o livro: chamava-lhe
a pérola dos livros.
A mais curta oração, como o Benedicite, o Angelus ou somente
o santo nome de Deus ou o de Jesus, bastavam para inflamar a
sua alma: era para ele uma faísca elétrica. Era muitas vezes
forçado a evitar os entretenimentos espirituais para
dissimular a sua disposição; deixar-se-ia arrastar pelo
espírito de Deus, e, sabendo que os seus irmãos eram nisso
menos favorecidos que ele, a sua humildade esforçava-se por
encobrir as graças que recebia. Algumas vezes escapavam-lhe
as lágrimas a seu pesar, e vendo que o coração estava prestes
a explodir, abandonava os seus irmãos, fugia para o alto dá
torre e exclamava: "Oh! como a terra é vil e desprezível,
quando se contempla o céu!" Muitas vezes elevava os olhos
para o céu; depois, concentrando-se, ficava como absorto..
Conquanto não perdesse nunca a presença da Majestade divina
tinha adquirido o hábito de examinar de hora em hora, como
tinha passado a hora precedente. Uma tarde perguntou a um
Padre quantas vezes tinha já examinado a sua alma durante o
dia
- Já a examinei sete vezes, - lhe respondeu.
- Somente sete vezes? - replicou o nosso Santo-; e contudo V.
Rev.a teve muitos momentos livres durante o dia.
Estes frequentes exames não lhe bastavam; fazia também um
exame da sua alma ao meio-dia e à noite, além do exame
particular que recomendava com muita instância. As forças
humanas são insuficientes para esta vida de contínua oração
ou contenção de espírito e só um milagre permanente podia
sustentar o Santo; e ele sabia-o. Por isso um dia deixou
escapar estas notáveis palavras
- Se eu não tivesse outras forças senão as da natureza para
sustentar a minha existência, certamente que há muito teria
morrido.
O que o sustentava era ao mesmo tempo o que o devorava; era a
sua ardente sede da glória de Deus. Não podia exigir que
todos os membros da Companhia experimentassem um amor
semelhante àquele com que era favorecido; mas exigia que
dessem ao menos a Deus toda a sua vontade, e que gastassem
todas as forças no seu serviço e na sua glória. Vendo um dia
que um irmão coadjutor desempenhava coxas frouxidão a tarefa
de que estava encarregado naquele momento, Santo Inácio
aproxima-se, encara-o por um instante e diz-lhe:
- Ao serviço de quero entrou na Companhia, meu irmão?
- Ao serviço de Deus, reverendo Padre.
- Para quem trabalha neste momento? A quem serve?
- Trabalho para Deus, e é a Ele a quem sirvo.
- Com certeza? Duvidava-o. Se servisse os homens, compreendia
eu a sua indolência e pouco zelo; mas, quando se tem a honra
de estar empregado no serviço da divina Majestade, diante da
qual nunca cumpriremos todos os nossos deveres, apesar dos
maiores esforços, como é que não se lhe dá tudo o que se
possui de força e de vontade?
Uma das mais agradáveis distrações para o bom Padre geral era
ouvir os seus queridos Padres cantarem cânticos. Confessava
que era tão grande nele este prazer, que a sua. saúde
melhorava, se estava combalida. Sentia talvez um antegosto
das harmonias dos anjos. E talvez fosse apenas um gosto
natural da música.
Como a todos os espanhóis, a música eletrizava-o, mas nunca a
procurava e falava dela com extrema reserva; só o rosto traía
as suas impressões quando ouvia uma bela execução de música
sacra.
Gostava também muito de flores, e admirava, em todos os
pormenores que lhe constituíam o conjunto, a anão divina que
as formou. Os Padres gostavam de vê-lo, das suas janelas, só
no jardim da casa, colhendo flores, aspirando-lhes o perfume,
admirando-lhes a beleza, levantando os olhos ao céu,
bendizendo a Deus, louvando-o, agradecendo-lhe e quedando-se
algumas vezes muito tempo, numa espécie de êxtase, com a flor
nos dedos; as lágrimas caíam-lhe então uma a uma sem que
desse por isso.
Quando recitava o ofício divino, ficava às vezes tão
impressionado com o sentido dum versículo, que parava
esquecido; perdia-se em Deus com tal abundância de lágrimas
que os olhos se lhe enfraqueciam sensivelmente. O Papa,
receando que ele perdesse a vista, dispensou-o do breviário e
ordenou-lhe que o substituísse por algumas curtas orações.
Para conservar a lembrança dos favores extraordinários com
que era tão abundantemente agraciado, o nosso Santo
escrevia-os dia-a-dia; infelizmente, a sua humildade destruiu
antes da sua morte esses preciosos escritos e apenas
escaparam alguns fragmentos cuidadosamente recolhidos e
conservados pelos seus discípulos.
Vamos reproduzi-los como se encontram no Padre Bartoli.
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