II. MIGUEL NAVARRO - O JOVEM PROFESSOR - RETRATO DE XAVIER

A Universidade de Paris era, no século XVI, a mais notável de todas; concorriam a frequentá-la estudantes de todos os pontos da Europa, e as províncias da Franca tinham ali alguns colégios, que, pela maior parte, foram fundados pelos bispos em benefício da mocidade das suas dioceses. Todos estes estabelecimentos agrupados entre a porta de S. Miguel e a abadia de S. Germano-das-Près, deram a este quarteirão o nome de País-Latino, e ainda há pouco, não obstante a desaparição dos seus numerosos colégios, se chamava Bairro-Latino.

Em um dia do mês de junho de 1533, por um calor abrasador, um mancebo que parecia ter de vinte e cinco a vinte e seis anos, subia precipitadamente a rua principal de S. Benedito-le-Bestournet [6], parecendo esquecer-se do copioso suor que em bagas lhe corria pelo rosto e do sol que o queimava com seus raios ardentes.

A sua cútis de cor trigueira e os seus cabelos dum negro de azeviche, indicavam nele um sangue meridional; o seu gibão listrado, suas calças de tufos e de fino estofo, mostravam que pertencia a classe superior à de simples artista; porém a ausência dos bordados e outros adornos ricos no fato, deixavam também supor que não pertencia à nobreza.

Dobrou pela rua das Noyers, tirou o gorro quando passou por diante da capela de Santo Ivo [7], e descobrindo grupos de estudantes que saíam dos colégios próximos, exclamou: "Muito bem; chego a propósito, as aulas acabam agora".

Estugou o passo, tomou pela rua de S. João de Beauvais e parou junto à casa que tem hoje o nº 7, e em cujo terreno se achava então situado o colégio de Beauvais [8]. Ali enxugou o rosto lavado de suor, cruzou os braços, encostou-se à ombreira da porta e esperou.

Deviam ser pouco agradáveis os pensamentos que naquele momento o preocupavam, porque as suas sobrancelhas enrugadas, os lábios apertados e o fulgor que lhe brotava dos olhos, davam à sua fisionomia um tal aspecto, que as patrulhas e os polícias que ali o vissem não o julgariam indigno de vigilância. Dirigindo a vista para a torre do muro de S. João de Jerusalém [9] lembrou-se, sem dúvida, que deixara de render homenagem àquele lugar santo, porque tirou em seguida o seu gorro, e, assim descoberto, fez um reverente sinal da cruz, que terminou por denunciar a sua nacionalidade. Era evidentemente um espanhol. Quando acabava de se cobrir, pondo o seu gorro inclinado sobre a orelha direita, sentiu ligeiros passos atrás de si, e voltando-se ràpidamente para aquele que, sem dúvida, esperava, disse-lhe este, apertando-lhe a mão

- Viva S. Tiago! eu não vos faltei, D. Francisco.

- Porque não entraste, Miguel? perguntou-lhe este último.

- Eu desejava ver-vos a sós por um instante e vós andais sempre entretido com a vossa classe. Anuís a que dêmos um passeio à volta da cerca do edifício? Tenho só duas palavras para vos dizer:

- Da melhor vontade.

Depois de atravessarem a rua, entraram na que seguia ao longo do muro da cerca do mosteiro, que se estendia até à rua de S. Jacques. Naquele momento o semblante de Miguel não apresentava o menor indício das paixões que nele se refletiam um momento antes; parecia gozar unicamente de alegria e confiança. Contudo, um observador atento e minucioso teria reconhecido a dissimulação no seu sorrir e a hipocrisia no seu olhar.

Francisco, a franqueza e a lealdade personificadas nada podia descobrir, porque nunca havia notado enganadoras diferenças nas maneiras naturalmente ásperas de Miguel Navarro. Conhecia-o, sim, algum tanto desregrado na sua conduta, leviano nas suas ações e volúvel nas suas afeições; porém sabia também que era dele afetuosamente estimado, e que Miguel não hesitaria em expor por si a sua vida. Muitas vezes havia já experimentado a sua dedicação, e ninguém mais sensível que Francisco para testemunhar verdadeira gratidão em prova duma amizade sincera.

Miguel estava, portanto, seguro de ser acolhido com a maior benevolência, não obstante a distância social que separava as duas famílias.

Miguel, como já se terá compreendido, pertencia à burguesia; circunstâncias particulares determinaram seus pais a fazê-lo estudar, e mais tarde, por conselhos e com auxílio dalguns fidalgos, mandaram-no para Paris, a fim de ali concluir os seus estudos, na esperança de que se abriria para ele a carreira literária.

Recomendado a Francisco, Miguel ganhou a sua simpatia pela natural viveza do seu temperamento e alegria do caráter espanhol; os benefícios que recebia, o apoio que nele encontrava e os amigáveis conselhos do seu jovem protetor, tudo contribuía para enraizar esta amizade.

Francisco era em tudo diametralmente oposto a Miguel. Amável, belo, de porte elegante, airoso em seus ademanes, distinto em suas maneiras, e bastava vê-lo para se reconhecer nele a nobreza da sua origem. Sua admirável inteligência, a sua paixão pelo estudo, as brilhantes qualidades do seu espírito, davam-lhe uma incontestável superioridade sobre todos os mancebos da sua idade.

A sua fronte alva e pura, a frescura e viveza das suas cores, a tranquilidade nas suas ações, indicavam completa ausência das paixões más.

A franqueza e energia do seu caráter, a elevação e a delicadeza dos seus sentimentos, a bondade e generosidade do seu, coração, reflectiam-se nos seus grandes olhos azuis, onde muitas vezes se revelava o gênio, e cujo olhar meigo e penetrante exercia uma atração magnética em todo aquele que dele se aproximava.

Tinha o nariz bem feito, a boca expressiva: e agradável, o sorrir amável e benevolente; os cabelos castanhos, cujas ondulações pronunciadas faziam sobressair o vivo da sua cor e a alvura da sua fronte; a altura, um pouco acima da mediana e admiravelmente proporcionada; e, finalmente, todo este conjunto duma harmonia perfeita, fazia de Francisco um tipo da maior distinção, e dava-lhe um encanto irresistível. Era impossível vê-lo sem experimentar desejos de o conhecer de mais perto, e não se podia conhecer sem se amar.

Tendo apenas a idade de 27 anos era já professor de filosofia no colégio de Beativais com notável distinção, e acabava de sair da sua aula no momento em que Miguel Navarro chegava à porta do colégio para o esperar à saída.

Quando os dois amigos entraram na pequena rua de L'Enclos, Miguel apressou-se em aproveitar os curtos momentos que havia pedido.

- D. Francisco, disse ele, sem o menor embaraço, ao jovem professor, deixei-me arrastar na segunda-feira a S. Dinis, e...

- E a bolsa ficou exausta, não é assim?

- Oh! não me resta mais que um pobre maravedi, senhor!

- Confesso-vos, Miguel, que não compreendi ainda o encanto do Landi [10]; é de um tão mau gosto, duma tal loucura, que lamento sinceramente ver-vos tomar parte naquilo. Ajudar-vos-ei, contudo, uma vez que estais necessitado; a demora dum mensageiro meu tem-me em apuros neste momento, mas pedirei recursos a um amigo para vos ser útil: vinde amanhã a Santa Bárbara.

- A Santa Bárbara! exclamou Miguel; vós sabeis, D. Francisco, que não gosto dos exortadores!

- Confesso que ele é pouco agradável, mas descubro-lhe, cada dia, novas e admiráveis virtudes que me fazem apreciá-lo e estimá-lo.

- Não vejo que chegue a tanto. O que ele procura é aproximar-se de vós com o fim de conquistar a vossa confiança e amizade, e arrastar-vos a mendigar como ele.

- Tranquilizai-vos, Miguel, eu não me deixarei arrastar até tão baixo.

- Seria isso um novo trarão de nobreza para a vossa ilustre família!... Este Ínigo sabe demais que vós não sois plebeu como ele!...

- D. Ínigo é de nobre linhagem, Miguel; pertence a uma das mais distintas famílias da Espanha; sei isso por D. João de Madeva que a conhece, e eu também conheço alguns membros dela.

Miguel mordeu os lábios, empalideceu, os músculos do seu rosto contraíram-se, abafava. Ninguém melhor do que ele conhecia a origem daquele que chamava, com o fim de ridicularizar, "o homem das exortações"; mas mui poucos espanhóis em Paris conheciam este Ínigo que se ocultava sob as mais pobres e humildes aparências, e Miguel supunha que D. Francisco também o ignorasse ainda. Dissimulou o melhor que pôde a violenta contrariedade que experimentava, e respondeu:

- É um motivo a mais, senhor, para se recear a sua influência sobre vós. Noutro tempo evitáveis-lo e não respondíeis às suas sentenças senão por epigramas; hoje estimai-lo e viveis juntos; ele seduziu já o Padre mestre Pedro, e estou certo que...

- Vejamos, Miguel, replicou Francisco, a vossa dedicação por mim cega-vos; deixemos este assunto, e vinde amanhã de manhã a hora em que eu esteja só.

E sem notar a expressão que se pintava no rosto lívido de Miguel Navarro, o jovem professor tirou da sua bolsa algumas moedas que lhe deu para as primeiras necessidades, e separaram-se.

Miguel voltou pelo mesmo caminho, e Francisco dirigiu-se para o colégio de Santa Bárbara, onde morava.