IX. O DISCÍPULO TENTADO

A pouca distância da cidade de Bassano, numa pequena montanha fértil e mui arborizada, erguia-se uma igreja dedicada a S. Vito, à qual se dirigiam todos os anos numerosos peregrinos. A montanha, à qual o vulgo tinha dado o nome de S. Vito por causa da peregrinação, era desabitada na parte mais elevada e continha apenas um pequeno número de choupanas disseminadas no sopé virado para a cidade.

Um santo personagem, o Padre Antônio, - não o conheciam por outro nome - vivia solitário num eremitério situado não longe da igreja de S. Vito. Vinham consultá-lo muitas vezes, pedir-lhe a sua bênção, trazer-lhe esmolas, mas não descia nunca da sua querida montanha, não sala jamais do seu retiro e vivia na contemplação e nos exercícios da mais austera penitência. Todos o veneravam como um santo vivo. Algumas vezes os homens de grande virtude e de eminente piedade tinham-lhe pedido o favor de serem admitidos na sua companhia, e viverem, como ele, de orações e de penitências, sob a sua direção. O Padre Antônio tinha consentido; mas nenhum tinha ainda podido sustentar esse regime de macerações corporais, de oração contínua, de solidão absoluta, de silêncio não interrompido; depois de alguns dias de ensaio, todos renunciavam a imitar o Padre Antônio e o eremita venerado ficava só na montanha, onde havia envelhecido e queria morrer.

Quando chegaram a Bassano, Simão Rodrigues e Cláudio Lejay tinham ouvido falar do eremita de S. Vito, foram vê-lo, e, tendo-lhes o bom velho oferecido um asilo no seu eremitério, apressaram-se a aceitá-lo.

Foi ali que o Padre Rodrigues, sucumbindo às fadigas. do apostolado e ao excesso das mortificações, fora atacado duma doença violenta, que lhe pôs a vida em perigo.

Recebendo Inácio de Loiola esta notícia, esqueceu a febre que o devorava, deixou Diogo Laynez doente no hospital:. e João Codure bastante incomodado, chamou Pedro Fabro e partiu para Bassano, afastado de Viena sete léguas aproximadamente [44]. Andava com tal ligeireza, que Fabro o não pôde seguir; Inácio viu isto, parou, ajoelhou-se, orou, levantou-se logo que o Padre Fabro se aproximou dele, e depois continuava a andar com a mesma rapidez, parando de novo e orando à espera do seu amigo. A sua caridade sobrepuja o seu valor. Depois duma dessas pausas, disse ao Padre Fabro, com a alegria a transluzir-lhe no rosto

- Pedro [45], o nosso querido Simão não morrerá.

Desde aquele momento, moderou o passo e não caminhou adiante do Padre Fabro. Chegando a S. Vito, encontraram o doente deitado numa tábua. Inácio abraça-o com toda a ternura do seu coração, e diz-lhe:

- Nada tema, meu querido Simão, porque será curado; mas quero que tenha melhor cama.

Mandou vir da cidade uma cama menos dura, na qual colocou o doente, que se achou melhor; poucos dias depois estava curado e ia ter com o nosso Santo a Bassano. Inácio estava alojado numa pobre hospedaria da cidade, com os Padres Fabro e Lejay, esperando que Simão Rodrigues se curasse.

O eremita Antônio, a quem os seus hóspedes tinham falado da grande santidade do seu Padre Inácio, deseja vê-lo, e aproveitando a sua visita ao Padre Rodrigues, havia conversado com ele sobre espiritualidade e ficara encantado. Apresentava-se, todavia, uma dificuldade ao seu espírito:

"- Como é - dizia ele - que um homem chamado por Deus a tão alta perfeição pode gastar toda a sua vida na santificação dos outros e privar-se assim das consolações que só se encontram na solidão, limitando-se à perfeição pessoal?"

Uma outra coisa lhe atraiu a atenção. Sendo Padres Inácio e os seus discípulos, usavam agora sotaina como todos os clérigos; nada, exteriormente, os distinguia dos outros, e o bom Padre Antônio não compreendia uma santidade excepcional sob aparência tão simples. Não é provável que ele tivesse comunicado estas reflexões a Rodrigues; mas é certo que este último teve por um instante o pensamento de se separar do seu mestre e de viver na solidão de S. Vito, ao lado do santo eremita.

Comparando as grandes fadigas, os grandes trabalhos a vida agitada do seu Padre Inácio com a vida tranqüila, doce e contemplativa do Padre Antônio, Rodrigues dizia que o último tinha certamente escolhido a melhor parte, que a sua salvação era mais certa e que essa separação do mundo, essa solidão contínua o punham ao abrigo dos perigos a que se está exposto na vida apostólica como a entendia Inácio.

Nestas disposições é que ele chegou a Bassano. Não falou ao seu pai espiritual da tentação que agitava o seu espírito, e, vendo-se por outro lado ligado pelo seu voto, não pensava poder dar cumprimento ao seu desejo. Entretanto o espírito das trevas, procurando sempre dificultar a obra do nosso Santo, que reconhecia ser obra do próprio Deus, esforçava-se por lançar a ilusão no espírito de Rodrigues. No dia seguinte, este, não podendo resistir-lhe mais, sai da hospedaria, furtivamente como um criminoso, e dirige-se para o eremitério de S. Vito, a fim de consultar o Padre Antônio. Ao sair da cidade, vê vir direito a ele um homem de rosto severo, olhar terrível, com uma espada na mão direita e parecido resolvido a impedir-lhe que avance. Rodrigues perturba-se um momento; mas logo envergonhado da sua fraqueza, tenta arcar com o perigo e passar além. O mesmo personagem ameaça-v, corre para ele, quer feri-lo... O Padre Rodrigues retrocede, espantado, anda precipitadamente a ponto de causar admiração aos transeuntes, que, não tendo rosto nada, não compreendem a fuga, e estava já próximo da hospedaria quando vê Inácio vir-lhe ao encontro; o nosso Santo estende-lhe os braços e diz-lhe apenas estas palavras

- Simão, por que duvidaste?

Esclarecido por uma luz sobrenatural, o Padre Inácio tinha conhecido a tentação e a fuga do seu filho espiritual. Rodrigues confessou-lhe toda a verdade e ligou-se desde então, mais fortemente que nunca, à santa obra a que tinha a felicidade de ser chamado [46].

Enquanto isto se passava em Bassano, o Padre Antônio, em oração no seu querido eremitério, recebia também uma luz extraordinária. Deus revelava-lhe a alta santidade a que tinha chegado o humilde Padre Inácio; e o venerável eremita, muito contrito pelo juízo que tinha formado, humilhava-se todas as vezes que ouvia falar do santo apóstolo e dizia:

- O Padre Inácio é um grande Santo diante de Deus! Aprendi a não julgar da seiva duma árvore pela casca.

E contava a revelação que tinha tido a este respeito, lamentando a sua primeira opinião acerca do nosso Santo.

Regressando a Vicência Inácio de Loiola chamou todos os seus irmãos e reuniu-os nas ruínas do mosteiro de S. Pietro in Vivarolo, onde todos prepararam o seu acampamento à maneira do mestre. Todos, à exceção do nosso Santo, ofereceram o Santo Sacrifício em Vicência pela primeira vez e regaram em seguida na cidade com igual êxito. Francisco avier, já exausto pelas mortificações de todo o gênero que não cessava de fazer e pelas rudes austeridades que se tinha imposto durante o retiro, não pôde sustentar estas primeiras fadigas do apostolado e caiu doente. Os seus irmãos levaram-no, ao hospital, onde pouco depois também conduziram um dos outros Padres, que acabava de sucumbir igualmente à fadiga e ao excesso das rigorosas privações que tinha sofrido.

Quando ficaram curados, aproximando-se o momento fixado para a viagem à Palestina e havendo os mesmos obstáculos, Inácio de Loiola reuniu os seus irmãos e disse-lhes que, não sendo provável que a guerra, que lhes fechava a. entrada da Terra Santa, terminasse, convinha pensar no cumprimento do seu segundo voto, o de se porem à disposição do Sumo Pontífice para o serviço da Santa Igreja. Convidou-os a implorar as luzes do Espirito Santo, a fim de deliberarem em seguida acerca das medidas a tomar, para maior glória de Deus, antes de se separarem.

Alguns dias depois, os Padres, de novo reunidos decidiram que iriam trabalhar na salvação das almas nas principais cidades onde as universidades atraíam os jovens, e que o seu zelo se exerceria principalmente na obra da sua conversão.. Inácio designou Xavier e Bobadilha para Bolonha, Rodrigues e Lejay para Ferrara, Broet e Salmeron para Siena, Codure e Hoces para Pádua. O nosso Santo devia dirigir-se a Roma com Fabro e Laynez.

Ficou resolvido que, para conservar o espírito de humildade e de obediência, um seria o superior do outro durante uma semana, cada um por sua vez. Deviam viver de esmolas e habitar nos hospitais; pregar nas praças públicas e por toda a parte onde lhes fosse permitido fazê-lo; falar das virtudes de maneira que as fizessem amar, dos vícios para lhes inspirar horror, mas não consultar senão o espírito de Deus e ter em pouca consideração a eloqüência humana; enfim, aproveitar as ocasiões de serem úteis ao próximo, mas não aceitar nunca honorários e ficarem satisfeitos por terem contribuído para a glória de Deus.

Sendo aprovadas todas estas resoluções, Inácio acrescentou que, tendo-se a sua companhia formado para glória de Deus, em nome de Jesus, devia chamar-se doravante Companhia de Jesus...

Aprovadas estas disposições, os primeiros Padres da Companhia de Jesus despediram-se ternamente, prometeram amar-se sempre, estarem unidos em Deus como irmãos, escreverem-se o mais possível e orarem uns pelos outros; depois, abraçaram-se e cada um dirigiu-se para o ponto que o bom Padre Inácio lhes designou.

O santo fundador partiu para Roma ao mesmo tempo, com os dois Padres que o deviam acompanhar [47].