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No pensamento providencial, tudo devia concorrer não somente
para a justificação de Inácio de Loiola e dos seus muitos
discípulos, mas também para a manifestação brilhante e menos
procurada, da eminente santidade e do valor excepcional
destes novos campeões da. Igreja de Jesus Cristo. Em Storta,
é verdade, Nosso Senhor tinha mostrado a sua cruz à Companhia
que o Pai Eterno lhe apresentava para seu serviço e sua
glória; mas, mostrando aos apóstolos da sua escolha este
sinal da contradição e do sofrimento, o Senhor Jesus tinha-os
envolvido num olhar cheio de amor e havia-lhes dito:
"Ser-vos-ei propício".
Inácio de Loiola e os seus discípulos hauriram nesta visão e
nesta promessa uma força incomparável e viam nelas todo o
fruto da sua santa Companhia; porque, se a cruz é o sinal da
contradição, é-o também da vitória; se promete humilhações,
assegura o triunfo; se traz sofrimentos, garante a glória,
que é a recompensa dos sofrimentos.
No fim do ano de 1538, á. cidade de Roma viu-se a braços com
a mais terrível fome. Os pobres, morrendo de inanição,
arrastavam-se dolorosamente para fora de suas casas e
estendiam-se nas ruas para receberem o socorro da caridade ou
o da morte. Era um espetáculo aterrador!
O santo fundador da Companhia de Jesus não possuía nada e os
seus discípulos estavam nas mesmas circunstâncias; todos
viviam de esmolas. Acabavam de ser reabilitados na opinião
pública, mas tinham ainda inimigos, principalmente entre o
povo, que tinham procurado irritar contra eles com as mais
absurdas calúnias. Inácio sabe tudo isso... Não importa! É
precisamente porque não vê meio algum de socorrer os pobres,
que terá mais confiança na Providência. Todos os Padres metem
mãos à obra com ele. Percorrem as ruas, tomam. o r,
moribundos nos braços ou aos ombros, transportam-nos sua
casa, assaz vasta para ser transformada num pequeno hospital,
e recebem deste modo até quatrocentos. Vão mendigar socorros
à porta dos ricos, encontram suficientes esmolas para acudir
a esta grande necessidade, e, socorrendo o corpo, dando-lhe a
vida que lhe fugia, salvam a alma do pobre que a sua caridade
recolheu. Mas a casa tem, limites e a sua caridade não os
conhece. Recorrem sempre e sem cessar à generosidade dos
grandes e levam a alimentação do corpo com a da alma aos
pobres que não podem recolher em casa.
A notícia da admirável caridade de Inácio e dos seus,
discípulos atrai muitos curiosos à torre Melangolo; querem
ver em ação estes dedicados apóstolos, tão descuidados de si
e tão ocupados com os sofrimentos do pobre; esses homens,,
reputados tão sábios, alguns dos quais são de nobre linhagem
e parecem não saber nem conhecer outra coisa senão a
humildade,, a mortificação e a dedicação levadas ao mais
sublime grau. E aqueles a quem só impele a curiosidade,
comovidos até ao Fundo da alma pelos afetuosos - cuidados
prodigalizados pelos heróicos Padres a todos os infelizes,
despojavam-se do ouro, da prata, duma parte dos vestidos para
contribuírem para esta obra maravilhosa da mais engenhosa
caridade.
O número dos pobres socorridos pelos Padres da Companhia de
Jesus durante esta fome, elevou-se à cifra de quatro mil,
pouco mais ou menos. Estes prodígios de caridade atraíam para
o Santo todos os espíritos e todos os corações; na cidade só
contava amigos e admiradores. O povo corria para junto dos
bons Padres, nas ruas e praças públicas, com as maiores
demonstrações de reconhecimento e de respeito. Os ricos e os
grandes punham-se à disposição de Inácio para o secundar em
todas as suas boas obras. Margarida de Austria, filha de
Carlos V, quis entregar-lhe a direção da sua alma. Enfim,.
Sumo Pontífice, ufano de possuir tais homens, mostrou desejo
de os empregar no serviço da Igreja.
Querendo Inácio de Loiola aproveitar esta favorável
disposição para lhe submeter o seu plano de Constituições da
Companhia, preparava-o ativamente. Forçado a interromper este
longo trabalho durante a calamidade que acabava de afligir a
cidade, continuou-o pouco depois, sempre com o concurso dos
seus discípulos, à aprovação dos quais submetia artigo por
artigo, convidando-os a reflectirem nele diante de Deus e a
pedir-Lhe luzes antes de responderem, deixando-lhes liberdade
para aceitarem ou discutirem o assunto proposto. Inácio
apresentava-lhes as coisas, não como superior, que o não
queria ser, mas como irmão mais velho da família. Até então
não havia superior reconhecido. Os discípulos obedeciam ao
mestre com a docilidade que dá uma confiança cega, e o mestre
nunca ordenava, apenas propunha. O nosso Santo, na sua
profunda humildade esforçava-se sobretudo por não ser
considerado como fundador; e nisto empregava tanta
simplicidade como firmeza. Isto explica-se: a idéia de fundar
a Companhia não era dele.
Em Manresa, na sua gruta mil vezes bendita, Inácio de Loiola,
cumulado das graças e dos favores do Soberano, ao serviço do
qual ele queria viver e morrer, pedira-lhe a graça de
empregar, em honra da sua divina Majestade, a força e o ardor
que tinha prodigalizado até então para glória e honra dos
príncipes da terra. E o Monarca eterno, aceitando a sua
dedicação e os seus serviços, tinha-o encarregado duma missão
digna do seu mérito e do seu valor.
Escolhera-o para formar uma Companhia, destinada não somente
a combater os seus mais temíveis inimigos, mas também a
dilatar indefinidamente os limites do seu império: esse corpo
privilegiado, no qual só os valentes e os fortes podiam ser
admitidos, devia recrutar-se, estender-se e dividir-se sem se
desunir, porque "a união faz a força". Devia ter por chefe
Jesus Cristo e não reconhecer outra bandeira senão a sua
cruz; devia ter um comandante supremo com o título de geral,
submetido ao Vigário de Cristo na terra.
Mas Deus, na sua misericórdia e no seu amor, não se limitara
a dar a idéia da santa Companhia de Jesus àquele a quem
encarregara de a formar; tudo devia ser divino nessa obra de
salvação para os homens e de glória para a Igreja; tudo devia
ter impresso o selo do seu autor; o próprio Deus quis indicar
ao nosso herói os principais pontos da admirável organização
que devia assegurar-lhe a força e garantir-lhe a duração.
Qual seria o momento em que o plano das Constituições da
santa Companhia de Jesus desceu do céu à terra? Inácio de
Loiola não o revelou nunca.
Santo Inácio não se considerava, pois, fundador da Companhia;
considerava-se simplesmente como o instrumento que a devia
organizar e estabelecer. Havia recebido esta missão em 1522,
e, prosseguindo este fim havia dezassete anos, tinha arcado
com todos os perigos, vencido as maiores dificuldades, domado
obstáculos de todos os gêneros, sofrido todas as privações,
suportando as mais duras fadigas, tudo sem se desanimar um só
instante. Sabia que a obra não era sua, mas de Deus; daí essa
paciência, essa coragem, essa perseverança que não pode assaz
admirar-se, sobretudo recordando a natureza impetuosa do
nosso herói e o seu empenho em tomar de assalto tudo o que
ousasse resistir-lhe antes da sua conversão.
O santo fundador não tinha escrito todo o plano das
Constituições; tinha-o gravado na alma em caracteres
indeléveis, e, chegado o momento de o tornar conhecido, quis
comunica-lo aos seus discípulos, como se viu, propô-lo às
suas meditações, entrega-lo à sua discussão artigo por
artigo, e não impor-lho como um pensamento do alto.
Este trabalho exigia tempo, e os Padres tinham muito pouco,
absorvidos como estavam pelas funções do apostolado; porque
todos procuravam o seu santo ministério com tal empenho que
lhes não era possível reunirem-se senão à noite.
Vemos, segundo uma carta do Santo, que nessa época Deus lhe
deu a consolação de fazer a conquista do seu querido
sobrinho, Antônio de Araoz, que se tornou membro da Companhia
de Jesus.
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