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Já tratamos das coisas que estão escritas nas duas
primeiras bênçãos pelas quais Balaão abençoou os
filhos de Israel. Passeremos agora a declarar as que se
encontram na terceira.
Depois de ter abençoado por duas vezes os filhos de
Israel, Balac disse a Balaão:
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"Vem, e levar-te-ei a outro lugar, a ver se é do
agrado de Deus que tu lá os amaldiçoes".
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Balac então conduziu Balaão até o alto do monte
Fegor, de onde podia-se ver o deserto. A Escritura
nos diz que do alto do monte,
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"vendo Balaão que agradava o Senhor que abençoasse
Israel, não foi como antes procurar agouro mas,
voltando o seu rosto para o deserto e levantando os olhos,
viu Israel acampado nas tendas segundo as suas tribos.
Vindo sobre ele o Espírito de Deus, retomou a
parábola, dizendo:
`Disse Balaão, filho de Beor, disse o homem, cujo
olho está fechado, disse o ouvinte das palavras de
Deus, aquele que viu a visão do Onipotente, que cai,
e assim se lhe abrem os olhos:
Quão formosos são os teus tabernáculos, ó Jacó, e
as tuas tendas, ó Israel!
São como vales repletos de bosques, como jardins junto
aos rios que os irrigam, como tabernáculos fixados pelo
Senhor, como cedros próximos das águas.
Fluirá a água de seus baldes, e sua descendência
estará em muitas águas. O seu rei será rejeitado por
causa de Agag, e o seu reino será removido.
Deus o tirou do Egito, cuja fortaleza é semelhante à
do rinoceronte. As gentes devorarão seus inimigos,
quebrarão seus ossos, e com flechas os trespassarão.
Deitando-se, dormiu como o leão, e como a leoa, que
ninguém ousará acordar. Quem te abençoar, ele mesmo
será abençoado; quem te amaldiçoar, será tido por
amaldiçoado'".
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De lugar a lugar Balaão é chamado por Balac para que
amaldiçoe o povo de Deus, porque é de diversos modos
que o demônio inflama os homens vãos a blasfemarem os
justos para que, não podendo diminuir o seu louvor de um
modo, possa fazê-lo de outro. O demônio procura
também conduzí-los a lugares elevados quando, o tanto
quanto lhe é possível, os eleva contra os justos pela
soberba. Mas o povo vão, quanto mais freqüente e
violentamente é tentado para amaldiçoar os justos, tanto
mais freqüentemente é ensinado com maior plenitude sobre
a benevolência que Deus tem para com eles. Torna-se,
com isto, mais propenso não a amaldiçoá-lo, mas a
bendizê-lo. Foi assim que Balaão, vendo desta
terceira vez o quanto agradava ao Senhor que abençoasse a
Israel,
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"não foi, como antes, procurar agouro mas, voltando o
seu rosto para o deserto e levantando os olhos, viu
Israel acampado nas tendas segundo as suas tribos e,
vindo sobre ele o Espírito de Deus, disse:
Quão formosos são os teus tabernáculos, ó Jacó, e
as tuas tendas, ó Israel!'"
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O povo vão volta o seu rosto para o deserto quando
examina diligentemente em seus pensamentos ocultos o que
ocorre na vida dos homens espirituais. Eleva os olhos
para ver Israel quando exalta a mente na contemplação
destes homens. Coibido então pelo temor para que não
profira o mal, compelido pela admiração para que não
silencie os bens dos justos, prorrompe em vozes de
bênção, dizendo:
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"Quão formosos são os teus tabernáculos, ó Jacó,
e as tuas tendas, ó Israel!"
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Designam-se melhor por tabernáculos os que são feitos
com folhas e ramos, e por tendas as que são costuradas e
estendidas com materiais de peles e de telas. Os
tabernáculos, portanto, por serem de material menos
caro, são os efeitos das boas obras; já as tendas, por
serem feitas de material melhor e mais precioso, designam
mais corretamente o exercício das virtudes. A bondade
das virtudes, de fato, excede a das obras, pois sem as
obras pode salvar-se quem não tenha a quem
oferecê-las, mas sem as virtudes, a caridade
principalmente e algumas outras, ninguém poderá
fazê-lo. Há também muitos que exibem boas obras mas
que, por não possuírem a caridade, não podem alcançar
com elas a glória do alto.
Deste modo a matéria dos tabernáculos parece ser
principalmente o senário das obras de misericórdia. Já
a matéria das tendas parece ser o ternário ou o
setenário das virtudes. O senário das obras de
misericórdia é, conforme no- lo ensina o Evangelho de
Mateus,
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"Dar de comer aos que têm fome, dar de beber aos que
têm sede, hospedar os peregrinos, vestir os nús,
socorrer os enfermos, visitar os presos".
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O ternário das virtudes são a fé, a esperança e a
caridade; o seu setenário é constituído pelas sete
virtudes contidas nas bem aventuranças do Sermão da
Montanha, das quais a primeira é a humildade, a segunda
a mansidão, a terceira a compunção da mente, a quarta
o desejo da justiça, a quinta a misericórdia, a sexta a
pureza do coração, e a sétima a paz interior da mente
(Mt. 5,3-9).
Há muitas outras virtudes de que nos lembram as Sagradas
Escrituras, pelas quais, quando bem exercitadas,
estende-se a obra das tendas espirituais.
Estendêmo-las, de fato, pelo seu exercício. A
construção dos tabernáculos espirituais é a exibição
das boas obras e o exercício das virtudes é o estender
das tendas ou pavilhões.
Quanta beleza haja nestes tabernáculos ou pavilhões e
quão belo seja permanecer nos mesmos no-lo é
belissimamente descrito pelas quatro comparações que se
acrescentam:
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"São como vales repletos de bosques, como jardins junto
aos rios que os irrigam, como tabernáculos fixados pelo
Senhor, como cedros próximos das águas".
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Os tabernáculos e as tendas dos justos, constituídos
pela obra e pela virtude, são como vales repletos de
bosques. São como vales pela humildade, e repletos de
bosques pela proteção. De fato, é da humildade, como
de um estável fundamento, que surgem as virtudes e as
boas obras. É aos humildes que são concedidos os dons da
graça, dos quais se originam as obras e as virtudes,
assim como dos vales férteis se originam bosques densos e
elevados, e para estes vales correm as águas das
nascentes, em cujas confluências se originam árvores
sublimes. Os homens também se deleitam nos vales pelo
refrigério das sombras de árvores densas e elevadas que
os protegem do ardor do Sol, assim como todos os justos,
em sua humildade, gozam do refrigério e da proteção das
virtudes e das boas obras para não serem queimados pelo
calor da concupiscência carnal e pela repreensão da ira
celeste.
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"Como jardins junto aos rios que os irrigam".
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Os dois jardins mais comumente encontrados são os de
hortaliças e os de especiarias aromáticas. Estes
jardins ou hortas costumam ser divididos em diversos
canteiros, nos quais se plantam sementes diversas, das
quais se originam por sua vez espécies também diversas.
Em alguns plantamos hortaliças, tais como cebolas,
alhos ou couves. Todas estas espécies, extraindo seu
alimento da terra, crescem em direção à sua
perfeição. O mesmo ocorre nos jardins de especiarias
aromáticas, onde cada espécie, aqui e ali, tem o seu
lugar e o seu alimento para crescer. Assim como pelos
tabernáculos designam-se as obras e pelas tendas as
virtudes, aqui também pelas hortaliças entendemos as
obras e pelas especiarias aromáticas as virtudes. Deste
modo, à beleza e à utilidade das hortaliças
correspondem a beleza e a utilidade das obras, e à beleza
e à utilidade das especiarias aromáticas correspondem as
das virtudes. Pelos rios que irrigam estes dois jardins
entendemos convenientemente dois gêneros de compunção
que perfluem os corações humanos para produzirem em ambos
estes lugares os seus frutos. Quando, de fato, aqui e
ali o temor e o amor estimulam os corações,
imediatamente emanam os rios da compunção, os quais,
irrigando os canteiros dos corações, fecundam-nos
copiosamente para que produzam os renovos das virtudes e
das boas obras.
Os tabernáculos de Jacó, isto é, as obras dos
ativos, e as tendas de Israel, isto é, as virtudes dos
contemplativos, são, portanto, como vales repletos de
bosques, porque protegem, e como jardins junto aos rios
que os irrigam, porque dão parto. E embora façamos
distinção, atribuindo as obras aos ativos e as virtudes
aos contemplativos, deve-se saber, porém, que também
os ativos exercem as virtudes, assim como os
contemplativos exibem as boas obras, mesmo que aos ativos
mais pareça pertencer a exibição das obras e aos
contemplativos o exercício especial de algumas virtudes.
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"Como tabernáculos fixados pelo Senhor".
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Os tabernáculos dos justos são sempre fixados e sempre
movidos. São sempre fixados pelo firme e contínuo
estabelecimento da justiça; são sempre movidos pelo
contínuo incremento desta mesma justiça. São sempre
fixos para que não careçam de justiça; são sempre
movidos para que possam sempre crescer nesta justiça.
São sempre fixos porque é
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"ditoso o homem que se compadece e empresta, que dispõe
suas palavras com justiça, porque não vacilará
eternamente".
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São sempre movidos porque, conforme disse Saul a
Davi:
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"Fazendo farás, e podendo poderás".
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E, logo em seguida, encontramos escrito de Davi:
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"Crescia Davi, e fortificava-se cada vez mais".
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Os tabernáculos dos justos, fixados pelo Senhor,
permanecem sempre, pois, conforme diz o Evangelho,
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"caíu a chuva, e transbordaram os rios, e sopraram os
ventos, e investiram contra aquela casa, e ela não
caíu, porque estava fundada sobra a rocha".
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São sempre movidos quando suas ações e virtudes, pelo
fruto da justiça, aumentam sempre. De onde que Paulo,
escrevendo aos Coríntios, diz:
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"Aquele que subministra semente ao semeador, dará
também pão para comer e multiplicará a vossa semente e
aumentará sempre mais os frutos da vossa justiça".
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Segue-se:
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"Como cedros próximos das águas".
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Os cedros são árvores altíssimas as quais, quando
crescem junto às águas, como é possível depreender
destas palavras, erguem-se mais elevados do que de
costume. Pelas águas entendem-se convenientemente os
sete dons do Espírito Santo, isto é, o espírito de
sabedoria e de entendimento, o espírito de conselho e de
fortaleza, o espírito de ciência e de piedade, e o
espírito de temor do Senhor (Is. 11, 2-3).
Pela água, efetivamente, pode-se designar o Espírito
Santo, conforme o próprio Senhor o demonstra no
Evangelho, onde diz:
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"Se alguém tem sede, venha a mim e beba. O que crê
em mim, como diz a Escritura, de seu seio correrão rios
de água viva. Ora, ele dizia isto falando do Espírito
Santo que haveriam de receber os que cressem nele".
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Os tabernáculos, portanto, e as tendas dos justos,
isto é, as suas ações e virtudes, são como cedros
junto às águas porque, recebendo alimento dos dons do
Espírito Santo, não somente transcendem a obra e a
fortaleza humana, como também chegam até o céu. De
onde que Paulo diz:
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"Nossa conversação está nos céus".
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Os tabernáculos, pois, e as tendas dos justos,
conforme dissemos, as suas ações e as suas virtudes,
são como vales repletos de bosques porque protegem; são
como jardins irrigados, porque dão parto; são como
tabernáculos fixados pelo Senhor, porque estáveis;
são como cedros junto às águas, porque elevados pela
sublimidade.
Emulemo-nos, irmãos caríssimos, para que habitemos
nos tabernáculos e nas tendas dos justos. Emulemo-nos
para que imitemos as suas obras e as suas virtudes.
Emulemo-nos, para que descansemos com os justos nos
vales repletos de bosques e nos jardins irrigados, nos
tabernáculos fixados pelo Senhor, sob os cedros junto
às águas.
Embora muito mais possa ser dito de todas estas coisas,
pudemos pelo menos percorrê-las em sua superfície,
deixando para vós o trabalho de investigá-las em toda a
sua profundidade. Mas por haver na seqüência desta
terceira bênção muitas outras palavras de que não
tratamos, decidimos encerrar este sermão com as já
declaradas e reservar as que restam para o próximo, para
que não ocorra que, estendendo mais demoradamente o nosso
discurso, possamos vir a entediar- vos.
Procuremos, portanto, irmãos caríssimos, com o que
já dissemos, viver santa e honestamente, para que
possamos silenciar a ignorância dos homens imprudentes.
E para que, se houver quem imite Balaão e queira nos
injuriar como malfeitores, sejam estes confundidos. Que
estes, considerando nossa boa conversação em Cristo,
mais se vejam obrigados a proclamar de nós o que é reto.
Procuremos, finalmente, progredir com os justos de
virtude em virtude. Que deste modo, ajudados pelos seus
méritos e preces, mereçamos um dia ser admitidos com
eles na pátria da eterna promissão.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus
Cristo, Nosso Senhor, que é Deus bendito, pelos
séculos dos séculos.
Amén.
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