|
Em muitos lugares das Sagradas Escrituras aprendemos
Deus ser admirável e louvável em seus santos, e tanto
mais louvável quanto mais admirável. O santo salmista
nos propõe diversos modos do louvor divino no último
salmo de seu livro, onde diz:
|
"Louvai-O no som da trombeta,
louvai-O no saltério a na cítara,
louvai-O no tímpano e no coro,
louvai-O nas cordas e no órgão.
Louvai-O em címbalos bem sonoros,
louvai-O em címbalos de júbilo".
|
|
E para nos prevenir de que todas estas coisas não devem
ser entendidas dos instrumentos corporais, mas dos
espirituais, logo em seguida acrescenta:
|
"Todo espírito louve o Senhor".
|
|
Todo espírito, isto é, o angélico e o humano.
Vejamos, portanto, o que significam espiritualmente
estas coisas.
A trombeta possui um som que aterroriza, e por isso
significa aquela pregação que nos impressiona fortemente
sobre a brevidade da vida presente ou sobre a perenidade da
condenação futura. Sobre a brevidade da vida presente
quando, por exemplo, nos diz João Batista:
|
"O machado já está posto à raiz da árvore",
|
|
ou sobre a perenidade da condenação futura, quando nos
diz Isaías:
|
"Seu verme não morrerá, e seu fogo não se
extinguirá".
|
|
Visto que, porém, já falamos suficientemente em algum
outro sermão sobre a diferença das trombetas, isto é,
sobre o modo das pregações, agora não nos ocuparemos em
repetir as mesmas coisas.
|
"Louvai-O no saltério a na cítara".
|
|
O saltério é a divina contemplação e a cítara a boa
ação, porque o saltério soa por cima, enquanto que a
cítara soa por baixo. O saltério é corretamente
chamado de dez cordas na Sagrada Página, porque toda a
ordem da Lei se consuma verdadeira e perfeitamente na
contemplação divina. E também corretamente esta
cítara espiritual tem seis cordas, que são as seis obras
de misericórdia, as quais são dar de comer aos que têm
fome, dar de beber aos que têm sede, hospedar os
peregrinos, vestir os nus, curar os enfermos, visitar os
presos (Mt. 25, 35-36). O próprio Cristo
nos exorta a tocar esta cítara e a cantar por meio dela o
louvor de Deus onde nos diz:
|
"Dai esmolas, e todas as coisas serão puras para
vós".
|
|
E aos antigos, culpando-os pelo desprezo, diz por meio
do profeta:
|
"Reparai as forças dos que estão fatigados, este é o
meu refrigério, mas não quisestes ouvir-me".
|
|
Continua, porém, o salmista:
|
"Louvai-O no tímpano e no coro".
|
|
O tímpano é um instrumento feito com couro seco
estendido sobre um aro de madeira, com o qual as jovens
timpanistas costumam divertir-se, na ausência de um
instrumento melhor. O tímpano, portanto, significa
adequadamente a abstinência, pela qual a carne é
secada, adelgaçada e estendida. O apóstolo Paulo
parece referir-se a este tímpano quando diz:
|
"Os que são de Cristo crucificaram a sua própria carne
com os vícios e as concupiscências".
|
|
Quando a abstinência, porém, não é acompanhada da
concórdia, ela de nada vale. Por este motivo, depois
que o salmista diz: "Louvai-O no tímpano",
acrescenta corretamente: "e no coro". O coro, de
fato, é um conjunto coordenado de vozes e por isto
designa a concórdia dos costumes. É com direito,
portanto, que se reprova o jejum daqueles que louvam o
Senhor no tímpano da abstinência mas não procuram
louvá-Lo também no coro da concórdia, conforme
afirmado pelo profeta:
|
"Vós jejuais para prosseguirdes demandas e contendas, e
feris com o punho sem piedade. Não jejueis daqui por
diante, como o tendes feito até hoje, para que seja
ouvido no alto o vosso clamor. Acaso o jejum que eu
aprecio consiste em afligir um homem a sua alma por um
dia?"
|
|
E a seguir, pouco depois:
|
"Porventura o jejum que eu aprecio não consiste nisto:
em desatar as ligaduras da impiedade, em descarregar os
fardos que oprimem, em deixar ir livres aqueles que estão
quebrantados, e em quebrar toda a espécie de jugo?"
|
|
Aqueles, portanto, que quiserem agradar o Senhor
louvando-O no tímpano da abstinência, cuidem também
de agradá-Lo louvando-O igualmente no coro da
concórdia.
|
"Louvai-O nas cordas e no órgão".
|
|
As cordas designam as virtudes. Para que produzam som,
as cordas devem ser estendidas. Assim também ocorre com
as virtudes: para que dêem fruto, devem ser exercidas.
A extensão das cordas é, portanto, o exercício das
virtudes, e o som das cordas é a utilidade das virtudes.
Louvam a Deus nas cordas todos aqueles que, retamente
vivendo, louvam-nO pelas santas virtudes. Suas cordas
soam em concordância quando suas virtudes concorrem
harmoniosamente para manifestar uma louvável justiça.
As cordas que produzem um som claro são aquelas que foram
secadas de toda a umidade. Assim também as virtudes que
soam suavemente diante de Deus são aquelas que não são
umedecidas pelo fluxo dos vícios. As cordas também não
soam se não forem tocadas, porque as virtudes nunca
resplandecem se não forem exercitadas pelos seus
adversários.
O som das cordas é formado e fortalecido pela concavidade
da madeira que lhe é próxima. De modo semelhante, a
bondade das virtudes é recomendada pela intenção
interior e escondida do que a opera.
O órgão é como uma torre construída com tubos
diversos, que soam pelo sopro de um fole. O que devemos
entender pelos foles, senão os mais perfeitos entre os
doutores, repletos de doutrina espiritual? E que devemos
entender pelo órgão, senão a assembléia dos
discípulos que os ouvem? Pelos foles o órgão é
preenchido para produzir o som pelos seus tubos; assim
também pelos doutores plenos do Espírito Santo a
multidão dos discípulos é plenificada pela doutrina
espiritual, para que pelos seus sentidos, pelos seus
membros ou certamente pelas suas virtudes e pelas suas
obras anunciem o louvor de Deus. Deus, portanto, é
por nós louvado ao órgão quando pela nossa doutrina
espiritual é glorificado em nossos ouvintes pela sua boa
conversação. Cumprimos, deste modo, o que está
escrito:
|
"Glorificai o Senhor em doutrinas".
|
|
O órgão, ademais, possui forma de torre porque a
multidão dos discípulos deve ser sempre forte e sublime
para resistir aos inimigos.
Nas cordas, portanto, louvamos o Senhor quando
exercitamos em nós mesmos as virtudes; no órgão
louvamos o Senhor quando de um modo ou de outro promovemos
os demais ao louvor de Deus.
|
"Louvai-O em címbalos bem sonoros, louvai-O em
címbalos de júbilo".
|
|
Tocam-se os címbalos percutindo-os um contra o outro.
É desta maneira que eles produzem o seu som. Os
címbalos significam, por isto, a honra mútua que os
justos se atribuem entre si e as exortações pelas quais
se auxiliam um ao outro, para que operem sempre melhor e
louvem a Deus sempre mais devotamente. Destes
címbalos, assim como de sua mútua percussão ou
consonância, o bem aventurado Paulo nos diz:
|
"Amai-vos reciprocamente com caridade fraternal,
adiantando-vos em honrar uns aos outros".
|
|
E também:
|
"Estou convencido, irmãos meus, a vosso respeito, de
que vós estais cheios de toda a ciência, de maneira que
vos podeis admoestar uns aos outros".
|
|
E estes são os címbalos bem sonoros, os mútuos santos
conselhos pelos quais os santos se incentivam a um melhor
adiantamento.
Já os címbalos de júbilo designam os nossos lábios.
Quando estes, louvando a Deus, se percutem mutuamente,
declaram suavemente a alegria de seu júbilo. Chamamos de
júbilo, de fato, a uma alegria inefável, a qual nem
pode ser calada, nem pode ser expressa, o qual a Igreja
representa em suas principais festividades formando várias
melodias com uma mesma sílaba, como ocorre no Natal do
Senhor, quando canta como um esposo que não consegue
expressar a alegria de sua alma.
Agora, pois, caríssimos, louvemos o Senhor no som da
trombeta, conforme dissemos, pelo ensino. Louvemo-Lo
no saltério, pela contemplação; na cítara, pela boa
obra. Louvemo-Lo no tímpano pela abstinência e no
coro, pela concórdia. Louvemo-Lo nas cordas,
exercitando em nós mesmos as virtudes; e no órgão,
admoestando e incentivando pela doutrina espiritual os
outros ao louvor divino. Louvemo-Lo em címbalos bem
sonoros, exortando-nos mutuamente ao que é melhor; e em
címbalos de júbilo, sempre cantando seu louvor em nossos
lábios.
Louvemos o Senhor, porque o seu louvor é, para nós,
um cântico de especial alegria. Louvemos o Senhor,
porque se o louvarmos conforme devemos, seremos seu povo,
do qual Ele mesmo diz:
|
"Eu formei este povo para mim, ele publicará o meu
louvor".
|
|
Louvemos o Senhor, porque
|
"O sacrifício de louvor o honrará, e ali mesmo estará
o caminho em que Ele nos mostrará a sua salvação".
|
|
Louvemos o Senhor, de quem a Escritura testemunha ser
louvado por todas as suas obras, não somente as
sensatas, como também as insensatas e até mesmo as
insensíveis.
E já que todos não podemos todas as coisas, e cada um
tem o seu dom de Deus, que cada um de nós, operando de
modo excelente, cante o louvor divino naquilo em que
reconhecer possuir como que uma graça especial.
Louvemos, portanto, todos o Senhor, louvemo-Lo cada
um de nós. Louvemo-Lo pelos costumes, louvemo-Lo
pelas vozes. Louvemo-Lo, juntamente com os homens
justos, na terra e no tempo, para que, pelos méritos e
pelas preces dos santos, cuja solenidade hoje celebramos,
mereçamos louvá-Lo no céu com os anjos por toda a
eternidade.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus
Cristo, Nosso Senhor, que é Deus, bendito pelos
séculos.
Amén.
|
|