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Hoje, caríssimos, é a solenidade pascal, que por
causa de sua excelência pode ser dita a solenidade das
solenidades, assim como se diz Cântico dos Cânticos,
Deus dos deuses, Rei dos reis, Senhor dos senhores.
Ela, de fato, não é celebrada apenas anualmente
segundo o costume das demais solenidades, como o estamos
fazendo hoje, mas é comemorada também de modo contínuo
e singular em cada um dos dias de domingo, e no dia do
Juízo, quando
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"este corruptível se revestir de incorruptibilidade, e
este imortal se revestir de imortalidade",
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se consumará de modo geral e perfeito.
Quanto mais célebre é esta solenidade, tanto mais
copioso, lauto e delicado deve ser hoje o preparo dos
manjares. E já que na solenidade de hoje é costume
cristão que todos os cristãos, os pequenos e os
grandes, os leigos com os clérigos, se sentem juntos à
mesa do rico, poderoso e sábio Salomão, consideremos
atentamente o que nos é oferecido.
Nosso Salomão, de fato, é
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"Rico para com todos os que o invocam".
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É poderoso, porque lhe foi dado
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"todo o poder, no céu e na terra".
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É sábio, porque
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"nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e
da ciência".
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As riquezas e as delícias reais de sua mesa são tipica e
abertamente declaradas no Terceiro Livro dos Reis, onde
se diz:
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"A comida de Salomão era, em cada dia, trinta coros
de flor de farinha, sessenta coros de farinha, dez bois
gordos e vinte de pasto, cem carneiros, além da caça de
cervos, cabras montesas, búfalos e aves cevadas".
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Todas estas coisas encontramo-las espiritualmente na mesa
de nosso Salomão. De fato, na mesa de Cristo
encontramos trinta coros de flor de farinha pela fé na
santa Trindade, sessenta coros de farinha pela boa obra.
A flor de farinha, efetivamente, por ser sem farelo,
corretamente significa a fé, por causa da sinceridade da
fé. Já a farinha, que não é sem farelo, significa a
boa obra por causa da inquietação da ação. Deste
farelo está escrito:
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"Marta, Marta, tu te preocupas e te inquietas com
muitas coisas".
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Os dez bois gordos são os dez preceitos da Lei; são
bois, porque preceituam a boa continência; são gordos,
porque contém a dupla caridade. Porventura não haverá
gordura na caridade, onde se diz:
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"Amarás o Senhor teu Deus
de todo o teu coração,
com toda a tua alma
e com todo o teu entendimento,
e ao teu próximo como a ti mesmo?"
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E não se designará a continência, onde se diz:
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"Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem coisa
alguma que lhe pertença?"
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Havia também na mesa diária de Salomão
Os bois de pasto são todos os demais preceitos legais,
pois assim como os bois de pasto são mais magros do que os
que são submetidos à engorda, assim também os demais
preceitos legais não descrevem tão expressa e
autenticamente quando o Decálogo as virtudes maiores que
mencionamos, isto é, a caridade e a continência. Os
preceitos do Decálogo, de fato, foram escritos pelo
dedo de Deus, enquanto que os demais preceitos foram
escritos pelo dedo do homem. Os bois, ademais,
significam a continência, pelo fato de carecerem de
órgãos genitais, assim como os touros a luxúria, pelo
fato de os possuírem. Os mandamentos inferiores que se
seguem ao Decálogo, conforme já foi mostrado,
corretamente são descritos como bois por causa da caridade
e da continência que os mesmos ensinam; e são vinte, na
medida em que, pelo obséquio da piedade, são
dispensados de dois modos, ora aos amigos, ora aos
inimigos.
Os carneiros, finalmente, por diferirem das ovelhas no
serem dotados de chifres e percutirem durissimamente o
adversário com sua duríssima cabeça, designam
convenientemente os mais eminentes sentidos das
Escrituras, os quais, quando anunciados, ferem e
dissipam gravissimamente o seu inimigo, o demônio e o seu
vizinho, o homem mau. Corretamente também os carneiros
são descritos pelo número centenário, o que designa a
sua perfeição.
Na mesa de Cristo, portanto, são servidos trinta coros
de flor de farinha, sessenta coros de farinha, dez bois
gordos e vinte de pasto e cem carneiros quando as mentes
dos fiéis, graças à dedicação dos que ensinam, fazem
uma completíssima refeição pela doutrina da fé, das
boas obras do Decálogo e de quaisquer outros preceitos
legais e dos mais excelentes sentidos das Sagradas
Escrituras.
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"Além da caça de cervos, cabras montesas, búfalos e
aves cevadas".
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Trazemos a caça à mesa de nosso Salomão quando pelo
estudo e pela meditação, percorrendo diversos livros
como se fossem diversas selvas, caçamos alguns sentidos
novos e raramente ouvidos, e os dispensamos aos nossos
ouvintes por um certo novo e inusitado modo de dizer.
Aqueles que mais delicadamente se alimentaram nas
Escrituras se regalam avidissimamente com a doçura nova e
salutar destes sentidos e palavras, assim como aqueles
que, vivendo nos aposentos da realeza e alimentando-se
cotidianamente das iguarias reais, saboreiam
prazerosamente a caça abundante e recente.
Nos cervos encontramos a timidez, nas cabras montesas a
velocidade, nos búfalos a fortaleza, nas aves a
elevação do vôo. Portanto, trazemos cervos à mesa de
Cristo quando falamos do temor; cabras montesas, quando
falamos da velocidade da boa obra; búfalos, quando
falamos da fortaleza destas mesmas obras; aves, quando
falamos da contemplação. E deve-se notar que, ao
falarem as Sagradas Escrituras das aves, acrescentaram
De fato, a contemplação que diante de Deus é
louvável é aquela que se eleva para o alto não somente
pelo conhecimento da verdade, mas aquela que também
cresce pelo amor da virtude.
Podemos também verter toda esta sentença em outro
sentido de modo a entender pela flor de farinha e pela
própria farinha a doutrina que está contida nos preceitos
dos dois Testamentos, e pelos animais domésticos os
exemplos dos santos mortos por causa de Cristo pelos
gentios, de tal modo que tenhamos assim uma dupla
refeição, uma nos preceitos e outra nos exemplos.
Pelos bois podemos entender aqueles que no Velho
Testamento perseveravam com fortaleza no exercício das
boas obras; pelos carneiros aqueles que pelos chifres de
sua fortaleza arremetendo poderosamente contra seus
inimigos os expulsavam de suas fronteiras; pelos animais
silvestres podemos entender aqueles que procedendo dos
gentios, são fiéis ativos; pelas aves, os que são
contemplativos. Não são apenas os santos mártires,
com os seus exemplos, que são alimento para a nossa
salvação. Também os santos confessores, juntamente
com todos os santos, nos administram pelo seu exemplo o
alimento da vida; ainda que não tenham morrido pela
espada, todavia pelos jejuns, pelas vigílias e pelas
suas fadigas crucificaram a sua carne com os vícios e as
concupiscências. E não somente temos alimento nos
preceitos e nos exemplos, mas também nos sacramentos,
dos quais o maior é o sacramento do corpo e sangue do
Senhor, ao qual todos nós devemos hoje nos aproximar
para, com grande veneração, recebê-lo para nossa
salvação. Em louvor deste sacramento o bem aventurado
São Gregório Magno assim nos fala no sexto livro dos
Diálogos, dizendo:
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"Qual dos fiéis poderá duvidar que na própria hora da
imolação, à voz do sacerdote se abrem os céus, e
neste mistério de Jesus Cristo se faz presente o coro
dos anjos, as coisas do alto se aproximam com as de
baixo, o que é terreno se une ao celeste, e do visível
e do invisível se produz uma só coisa? Mas é
necessário que, quando isto fizermos, em nosso coração
nos imolemos a nós mesmos pela contrição".
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Nós, porém, que celebramos os mistérios da paixão do
Senhor, devemos imitar o que fazemos. O quanto porém
seja salutar, o quão necessário, o quão bem aventurado
receber santamente o corpo e o sangue de Cristo, Ele
mesmo se dignou no-lo manifestar, dizendo:
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"Se não comerdes a carne do Filho do homem, e não
beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. O que
come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida
eterna".
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O quanto porém o mesmo é danoso para os que o recebem
indignamente no-lo mostra o apóstolo Paulo, onde diz:
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"Aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor
indignamente, será réu do corpo e sangue do Senhor.
Examine-se, pois, a si mesmo o homem e assim coma deste
pão e beba deste cálice, porque aquele que o come e bebe
indignamente come e bebe para si a condenação, não
distingüindo o corpo do Senhor".
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"Não distingüindo" significa não fazendo distinção
pela veneração entre o corpo e o sangue do Senhor e os
demais alimentos. Deveria, portanto, examinar-se a si
mesmo e purificar- se pelo arrependimento, ou então com
certeza abster-se do sacramento. Por isto é que
Pascásio nos diz, no Livro do Corpo do Senhor:
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"Quem quer que se torne membro de uma meretriz, ou
membro do demônio por algum grave delito, este decaíu do
Corpo de Cristo e por isto não lhe é lícito
aproximar-se do corpo de Cristo. O que, portanto,
come e bebe o pecador? Certamente não recebe a carne e o
sangue para sua utilidade, mas sim o julgamento. Por
qual motivo? Porque não se examinou primeiro".
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Se alguém, portanto, decaído do Corpo de Cristo,
tornado membro da meretriz ou do demônio, presumir tocar
este sacrossanto corpo, não tenha dúvida que por este
motivo será julgado e associado a Judas na perversidade
de sua culpa, não apenas por ter caído, mas também
porque, condenado em sua consciência, ousou, sem o
arrependimento e o perdão da correção, profanar os
santos mistérios.
Longe de vós, irmãos, tal perigo e também a causa
deste perigo. Efetivamente, vós não estais nas
trevas, para que estes perigos se vos aproximem:
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"Todos vós sois filhos da luz e filhos do dia; não
sois filhos da noite, nem das trevas".
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De vós, com efeito,
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"esperamos melhores coisas e mais próximas da
salvação, embora assim falemos".
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Portanto, caríssimos, freqüentai este mistério com
humildade e reverência, aproximai-vos freqüentemente à
sua glória, amai tornar-vos sempre seus participantes.
Este é o mistério que nos vivos modera as dores
interiores, sana as feridas, expulsa o inimigo, liberta
dos males, auxilia nos bens, confere a graça, aumenta a
justiça; nos mortos diminui a culpa, perdoa a pena,
abre o céu, confere a vida.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus
Cristo, nosso Senhor, que é Deus bendito, pelos
séculos dos séculos.
Amén.
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