|
|
"Tu quebraste o pesado jugo que o oprimia, e a vara que
lhe rasgava as espáduas, e o cetro de seu exator, como o
fizeste na jornada de Madian".
|
|
Caríssimos, estas palavras proféticas se referem
principalmente a Cristo. De onde que, um pouco mais
adiante, o mesmo profeta, isto é, o profeta Isaías,
de quem são estas palavras, no-las profetiza abertamente
de Cristo, dizendo:
|
"Porquanto um menino nasceu para nós, e um filho nos
foi dado, e foi posto o principado sobre o seu ombro; e
será chamado Admirável, Conselheiro, Deus Forte,
Pai do século futuro, Príncipe da Paz. O seu
império se estenderá cada vez mais, e a paz não terá
fim; sentar-se-á sobre o trono de Davi e sobre o seu
reino, para o firmar e fortalecer pelo direito e pela
justiça, desde agora e para sempre. Fará isto o zelo
do Senhor dos exércitos".
|
|
"Tu quebraste o pesado jugo que o oprimia". Este jugo
é a culpa. "A vara que lhe rasgava as espáduas".
Esta vara é a pena em que incorremos pela culpa. "E o
cetro de seu exator". Este cetro é a condenação
eterna. Pelo jugo éramos oprimidos, pela vara feridos,
pelo cetro condenados. O exator é o demônio, o
vencedor é Cristo. Cristo, de fato, entrou no mundo
assumindo nossa carne, conforme no-lo ensina o
Evangelho:
|
"Quando um homem forte e armado guarda a entrada de sua
casa, estão em segurança os bens que possui; porém,
sobrevindo outro mais forte do que ele, há de vencê-lo
e aprisioná-lo. Só então poderá despojá-lo de seus
bens".
|
|
O homem forte e armado é o demônio; a entrada de sua
casa é o mundo; o outro homem mais forte é Cristo;
seus bens são as almas; o despojo destes bens é a obra
da Redenção; o aprisionamento do homem forte é o
acorrentamento do demônio. Vencido, pois, o nosso
exator e quebrado o seu jugo, a sua vara e o seu cetro,
faremos uso daquela parábola profética que o mesmo
profeta Isaías no-la preceitua, ao dizer, cinco
capítulos mais adiante:
|
"E naquele tempo em que o Senhor te tiver dado
descanso, depois de teu trabalho e de tua opressão, e da
dura servidão a que estiveste sujeito, usarás desta
parábola contra o rei de Babilônia, e dirás:
Como terminou o exator, e como se acabou o tributo? O
Senhor despedaçou o bastião dos ímpios, a vara dos
dominadores, e o que na sua indignação feria os povos
com uma chaga incurável, o que sujeitava as nações no
seu furor, o que cruelmente as perseguia. Toda a terra
está em descanso e em paz, ela se encheu de prazer e de
regozijo. Até as faias e os cedros do Líbano se
alegraram com a tua perda. Desde que tu morreste, não
subirá quem nos corte".
|
|
Merecidamente, pois, devemos louvar o vencedor, pois
nos foi retirado o jugo que prendia as nossas faces,
destruída a vara que nos percutia, e quebrado o cetro de
nosso exator. Vejamos, porém, como se realizou esta
batalha espiritual, e como se alcançou esta vitória.
Foi, no-lo diz Isaías,
|
"como na jornada de Madian".
|
|
Ora, lemos no livro de Juízes que, depois da morte de
Débora, os filhos de Israel pecaram contra o Senhor,
o qual os entregou na mão dos madianitas durante sete
anos, pelos quais foram muito oprimidos. Depois disto,
tendo-o ordenado o Senhor, lutou Gedeão contra os
madianitas e, vencendo-os, libertou o povo de Israel
(Jz.6-8). A história é conhecida, e sei
estar-me dirigindo a quem também já conhece as
Escrituras. Parece-me, pois, tratar-se de coisa
longa e supérflua repetir todo o episódio. Omitiremos,
portanto, a narrativa histórica, para que possamos
dirigir toda a nossa atenção ao seu entendimento
espiritual e nele vejamos de que modo Cristo, que luta
por nós e nos salva, quebrou "o pesado jugo que nos
oprimia, a vara que rasgava nossas espáduas e o cetro de
nosso exator, como na jornada de Madian".
Madian, traduzido, significa iniqüidade. O povo de
Madian é, portanto, a multidão dos demônios, que
nunca tem a eqüidade por objeto de suas obras, mas a
iniqüidade.
Os quatro príncipes de Madian, Oreb, Zeb, Zebee e
Salmana, são figuras dos príncipes de todos os
demônios, os quais podem ser designados por um número
quaternário por nos perseguirem e nos moverem guerra pelas
quatro partes do mundo; ou certamente porque nos conduzem
aos quatro vícios que são significados pelas quatro
partes do mundo. O Oriente, de fato, de onde se
origina a luz, significa a astúcia, pois, conforme diz
o Evangelho,
|
"os filhos deste século são mais hábeis no trato com os
seus semelhantes do que os filhos da luz".
|
|
O Ocidente, por nele morrer o Sol, e nele também
perder a luz a parte superior da terra, significa a
ignorância. Deste modo também o Sul, por ser quente,
significa a luxúria, e o Norte, por ser frio,
significa a malícia. Os príncipes dos demônios são
genericamente quatro, na medida em que nos dissipam por
meio destes quatro vícios, como se se utilizassem dos
quatro ventos principais para nos distrair e dispersar.
Julgo também que estes sejam os quatro anjos que lemos no
Apocalipse terem sido proibidos de causar dano à terra,
ao mar e às árvores, naquela passagem onde está
escrito:
|
"E vi outro anjo que subia da parte do Oriente tendo o
selo do Deus vivo. E clamou em alta voz aos quatro
anjos, a quem fora dado o poder de fazer mal à terra e ao
mar, dizendo: `Não façais mal à terra, nem ao mar,
nem às árvores, até que assinalemos sobre a sua fronte
os servos de nosso Deus'".
|
|
A terra são aqueles que vivem estavel e firmemente na
conversação de uma vida santa. O mar são aqueles que
flutuam nas ações exteriores, movidos pela necessidade
da vida presente. As árvores são aqueles que frutificam
crescendo no alto da contemplação divina. A todos estes
os príncipes dos espíritos malignos são proibidos de
fazerem mal, na medida em que são impedidos, por uma
oculta disposição divina, de lhes causarem dano. A
estes mesmos, porém, infligem danos que nos movem à
admiração e à comiseração quando, por causa de
pecados cometidos, relaxa-se esta mesma disposição
divina e é-lhes permitido prevalecer sobre os homens.
De onde que corretamente se afirma no livro de Juízes
que os filhos de Israel foram muito oprimidos pelos
madianitas:
|
"Porque eles vinham com todos os seus rebanhos e tendas
e, à maneira de gafanhotos, esta multidão inumerável
de homens e camelos cobria todas as coisas, destruindo
tudo o que tocava".
|
|
Eles cobriam a terra dos Israelitas como gafanhotos,
porque são leves e voam em círculos, oprimindo os
sentidos carnais e os afetos com as suas maldades.
Conforme a mesma história nos conta, o acampamento dos
madianitas estava situado num vale, ao norte de um alto
outeiro. Este vale é a profundidade do desespero, o
norte é a frieza da malícia, o alto outeiro a
proximidade do orgulho. Sempre, efetivamente encontramos
o orgulho unido aos demônios.
Os camelos em que os madianitas eram trazidos são os
homens réprobos, curvados ao que é terreno, enormes e
carregados pela corcova do pecado. Os quais camelos são
inumeráveis como a areia do mar pois, conforme diz o
Eclesiastes,
|
"o número dos insensatos",
|
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estéreis em boas obras,
"E os madianitas, com os seus camelos, talavam tudo
quanto os filhos de Israel haviam semeado quando ainda
estava em erva" (Jz. 6,3), porque os demônios,
pelas perseguições promovidas pelos homens réprobos
sobre aqueles que pareciam viver retamente,
destróem-lhes as virtudes e as boas obras quando ainda
são tenras. "Não deixavam aos israelitas nada do que
é necessário à vida" (Jz. 6,4), na medida em
que matam-lhes as principais virtudes; "nem ovelhas,
nem bois, nem jumentos" (Jz. 6,4), porque
roubam- lhes a continência, a inocência e a
paciência. Assim os israelitas espirituais se viram
obrigados a servir aos madianitas espirituais durante sete
anos (Jz. 6,1), isto é, durante todo o tempo em
que haviam abandonado a Deus, submetendo-se aos
vícios, envolvidos no pecado, carecendo de virtudes,
destituídos de boas obras. E, embora a história nos
diga que os israelitas fizeram para si
|
"covas e cavernas nos montes, e lugares muito fortes para
resistirem",
|
|
nem assim podiam resistir aos inimigos e escapar de suas
mãos, porque, conforme diz Jeremias, quando
abandonamos a Deus e somos por Ele abandonados,
|
"Nossos inimigos se tornam mais velozes do que as águias
do céu, perseguem-nos sobre os montes, armam-nos
ciladas no deserto".
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É necessário, pois, que venha um homem valente que
estava, como diz a Escritura,
|
"limpando o trigo no lagar",
|
|
e que era, na expressão do anjo,
|
"o mais valente dos homens".
|
|
Estamos nos referindo a Gedeão, aquele que havia
destruído no mundo o altar da idolatria e o bosque da
ignorância que o circundava (Jz. 6, 25), que
ofereceu um touro, ou melhor, um novilho engordado, isto
é, ele próprio, oferecido em sacrifício a Deus Pai
(Jz. 6, 25), e que buscou um sinal não apenas no
véu, nem no orvalho, mas naquilo que foi significado por
ambos (Jz. 6, 36-40). Era necessário que este
homem se manifestasse visivelmente, vencesse os inimigos,
libertasse e salvasse o seu povo.
Como?
Pelo som das trombetas, pela quebra das ânforas, pelo
acender das lâmpadas (Jz. 7,16).
Cristo também, assim como Gedeão, pregando o
Evangelho, fêz soar a trombeta. Sustentando os
sofrimentos de sua paixão, quebrou a ânfora.
Realizando seus milagres, acendeu a lâmpada.
Cristo, de fato, tocou a trombeta ao louvar o Pai:
dizia Jesus,
|
"ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste
estas coisas aos sábios e aos prudentes, e as revelastes
aos pequeninos".
|
|
Pois, assim como existe a trombeta do ensino, existe
também a trombeta do louvor. De fato, está escrito:
|
"Tocai a trombeta na neomênia, no plenilúnio, nesse
dia solene, porque é um preceito para Israel, e uma
ordem do Deus de Jacó".
|
|
e também:
|
"Louvai o Senhor ao som da trombeta, louvai-O com o
saltério e a cítara".
|
|
Cristo também quebrou a sua ânfora, conforme o profeta
o havia anunciado, ao dizer:
|
"Eis que o dominador, o Senhor dos exércitos,
quebrará a ânfora no terror, e os de estatura agigantada
serão cortados".
|
|
A ânfora é a carne humana, e o Senhor "quebrou a
ânfora no terror" quando, por ocasião da morte de
Cristo, estremeceram os homens e estremeceram os
demônios. Diz, de fato, São Lucas:
|
"Estremeceram os homens, e toda a multidão daqueles que
assistiam a este espetáculo, vendo a terra tremer, e as
demais coisas que sucediam, retiravam-se batendo no
peito".
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|
Os demônios também estremeceram, porque viram-se em
seguida serem aprisionados, as portas do abismo serem
abertas, as profundezas da morte serem invadidas e os
eleitos serem libertos do cativeiro com poder. "E os de
estatura agigantada foram cortados", porque os homens
orgulhosos foram privados de seus antigos domínios.
Cristo também, à semelhança de Gedeão, acendeu a
lâmpada, manifestando ao mundo uma multidão de boas
obras. Ele mesmo disse aos judeus:
|
"Tenho-vos mostrado muitas boas obras por virtude de meu
Pai".
|
|
Gedeão chamou para a batalha cerca de trinta mil homens,
mas venceu a luta com apenas trezentos (Jz. 7,8).
Assim também, no exército de Cristo,
|
"muitos são os chamados; poucos, porém, os
escolhidos".
|
|
Estes trezentos homens, de fato, significam todos os
escolhidos que estão verdadeiramente armados pela fé na
santa e indivisa Trindade, ou pelas três principais
virtudes que são a fé, a esperança e a caridade.
Estes são os que não dobraram os seus joelhos, nem
beberam das águas da torrente submergindo nela as suas
bocas (Jz. 7,6), pois das coisas que passam buscam
apenas o necessário, nunca o supérfluo. Os réprobos,
porém, dobrando os joelhos, para beberem a água
submergem os lábios de suas bocas na torrente, assim como
se submergem inteiramente nos prazeres das coisas
temporais.
Gedeão venceu os seus inimigos não apenas aquém, mas
também além do Jordão. Assim também Cristo derrotou
o demônio não apenas na Judéia, mas também entre os
gentios.
Como Gedeão, assim também Cristo lutou e venceu. E
assim também nós, caríssimos irmãos, consideremos
como lutamos, para que possamos alcançar a vitória:
disse Gedeão aos seus homens,
|
"fazei-o vós também. E gritai todos a uma: Ao
Senhor, e a Gedeão".
|
É assim igualmente que Cristo quer que com Ele lutemos,
gritemos e vençamos. Ele, efetivamente, nos deu o
exemplo, e assim como Ele fêz, assim também nós o
façamos. É isto que Ele parecia esperar de nós,
quando dizia:
|
"Aquele que crê em mim, fará também as obras que eu
faço, e fará outras ainda maiores".
|
|
Temos, porém, para lutar por nós e nos salvar não
apenas a Cristo, mas também nossos prelados, que fazem
as vezes de Cristo, os quais nos devem preceder na
batalha e nos mostrar, pelo seu exemplo, como se luta.
Sejam eles como Gedeão, não como Abimelec (Jz.
9,1-57).
Abimelec é o prelado réprobo e iníquo, que busca o que
é seu, não o que é de Cristo. Abimelec trucidou os
seus irmãos sobre uma pedra. O prelado iníquo destrói
os seus irmãos pela sua dureza. Abimelec matou os homens
de sua cidade e semeou-a com sal. O prelado iníquo
mata, na Igreja, pela palavra e pelo exemplo, os
súditos que lhe foram confiados, sem deixar nela, o
tanto quanto lhe permitir a sua maldade, nem sábios nem
sabedoria. Os homens de Siquém tinham a Abimelec;
tomara nós que tenhamos a Gedeão.
|
"Foram as árvores para eleger sobre si um rei, e
disseram à oliveira, à figueira e à videira:
`Reina sobre nós'.
Todas, porém, se recusaram a reinar e a serem
superiores entre as árvores. Disseram então as árvores
ao espinheiro:
`Vem, e reina sobre nós'.
E ele respondeu-lhes:
`Se vós deveras me constituís vosso rei, vinde, e
repousai debaixo da minha sombra; mas, se não o
quereis, saia fogo do espinheiro e devore os cedros do
Líbano'".
|
|
As árvores da floresta são, segundo a parábola de
Joatão, os homens de Siquém, e o espinheiro é
Abimelec. Segundo sua significação mística, porém,
o que pode-se entender mais corretamente pelas árvores da
floresta senão as nações ou qualquer multidão
infrutuosa, os homens acostumados e envelhecidos no
pecado, prontos para o incêndio eterno?
Pela oliveira podemos entender qualquer homem fiel,
excelso pela virtude da misericórdia. Pela videira,
devido a que Cristo, sendo a sabedoria de Deus, ter
dito de si próprio:
e devido também a estar escrito que
|
"o vinho, moderadamente tomado, aguça o engenho",
|
|
entendemos qualquer homem justo, exímio pela virtude da
sabedoria. Pela figueira, finalmente, entendemos
aqueles que se sobressaem pela graça de uma doçura
interior. O fruto da figueira, de fato, prima pela sua
doçura.
As árvores silvestres se dirigem à oliveira, à videira
e à figueira para fazer delas seus reis quando quaisquer
homens cujos pensamentos não produzem frutos pedem para si
um prelado misericordioso, sábio, manso ou doce. Mas a
oliveira, a videira e a figueira rejeitam semelhante
reinado porque os eleitos, quando investidos do poder para
reger os maus, temem verem-se privados de seus próprios
frutos por causa da malícia dos seus súditos, além de
com isto em nada poderem ser-lhes de proveito. As
árvores, então, elegem o espinheiro para serem o seu
rei todas as vezes que os homens iníquos escolhem outro
iníquo, envolvido pelos espinhos do pecado, como seu
governante. Ambos então são devorados por um fogo
mútuo, na medida em que os súditos perversos e o seu
perverso prelado são consumidos um pelo furor do outro.
De tais homens, consumidos por tais chamas, o profeta
assim se expressa:
|
"O vosso espírito como fogo vos devorará".
|
|
De fato, invejando-se mutuamente, mordem-se também
mutuamente e mutuamente se consomem. Voltemos, porém,
ao nosso assunto.
Cristo, conforme dizíamos, quebrou o pesado jugo que
nos oprimia e o cetro de nosso exator, como na jornada de
Madian, porque pela trombeta de sua pregação, pela
paixão de sua morte e pela manifestação de suas boas
obras venceu o demônio e nos libertou de seu domínio.
Temos, porém, um outro Gedeão, isto é, alguém que
nesta batalha faz as vezes de Cristo que luta e nos
salva, que é o nosso prelado, o qual vence todos os
dias, mediante o auxílio de Cristo, nossos inimigos.
É necessário que ele ofereça, juntamente com Gedeão,
pães ázimos pela simplicidade de sua doutrina, um
cabrito pela penitência, cozido pelo amor, e que derrame
incenso sobre eles pela compunção (Jz.
6,19-23). Ofereça também um touro (Jz.
6,24-27), isto é, a si próprio, pois ainda que
não aconteça ter que por obra morrer pelo povo a si
confiado, deve estar todavia sempre pronto a isto pela sua
vontade.
diz Gedeão,
|
"por um lado do acampamento; imitai, então, o que eu
fizer".
|
|
É assim que todo prelado deve mostrar a forma de bem viver
aos que lhes forem confiados, sem ser do número daqueles
que "dizem mas não fazem" (Mt. 23,3),
"colocando sobre os ombros dos homens cargas pesadas e
impossíveis de levar, não querendo movê-las, porém,
eles próprios, nem com um dedo" (Mt. 23,4).
Entrem no acampamento inimigo não apenas providenciando
ou dispondo as coisas úteis ou necessárias para evitar o
mal ou exercitar o bem, mas principalmente colocando-as
em prática por obras. Entrem por um lado do
acampamento, exercendo o seu ministério. Entrem por um
lado do acampamento, porque ninguém pode fazer tudo
sozinho, pois são pesadas as mãos de Moisés, e
necessitam de auxílio para se sustentarem (Ex.
17,12). Faça soar a sua trombeta ensinando e
cantando, quebre a ânfora jejuando e vigiando, acenda a
tocha exercitando as virtudes e as boas obras. E nós
clamemos juntos ao Senhor e a Gedeão, imitando-o em
todas as coisas.
Há, porém, alguns homens carnais, inclusive
revestidos do hábito da religião, cujo som da trombeta
é inteiramente carnal. Nunca falam das coisas de Deus,
nem das coisas puras, pois, segundo a sentença do
Apóstolo,
|
"Não gostam das coisas que são do espírito, mas das
que são da carne".
|
|
Dormimos pouco, dizem eles, comemos pouco, vivemos
pauperrimamente. Se não os contentarmos, não apenas
murmuram, como se revoltam, e devemos dar-nos por
satisfeitos se, feitas as suas vontades, conseguem
permanecer em paz. Não os repreendemos, todavia, por
falarem de coisas necessárias ao corpo; o que é
admirável aos nossos olhos é que eles falam sempre do que
é carnal, nunca do que é espiritual. Falar do que é
necessário ao corpo, dentro da medida do conveniente, é
coisa louvável, porque
|
"nunca ninguém odiou a sua própria carne; antes, a
nutre e cuida dela".
|
|
Falar, porém, das coisas que pertencem ao espírito é
inteiramente necessário, pois o espírito humano é a
parte principal do homem ou certamente, como diz certo
filósofo, é o próprio homem. "A mente de cada um",
diz ele, "é o próprio homem". Há outros que no
refeitório abrem a sua boca com satisfação para comer e
beber, enquanto que, no coro, para ler e cantar, o mais
das vezes ou sempre a fecham. Outros ainda, não com
menor culpa, mas com maior demência, confiantes em
Deus, movem a cabeça, falsificam as vozes, efeminam o
canto e, tomados pelo espírito de vanglória, mais
gritam ou assobiam os louvores divinos do que os cantam.
Pouco com o coração, muito com a boca.
Agora, portanto, caríssimos, corrijamo-nos e sejamos
corrigidos de todas estas coisas, mutua e fraternalmente,
para que nossa trombeta produza um bom som e afugentemos o
acampamento inimigo. Com muita correção a palavra de
Deus, ensinada ou cantada, que neste história nos foi
figurada pela trombeta, nesta mesma história nos é
também subentendida pelo pão e pela espada:
|
"Aproximando-se Gedeão do acampamento madianita, um
deles contava ao seu companheiro o seu sonho, e deste modo
lhe referia o que tinha visto:
`Tive um sonho, e parecia-me ver como que um pão de
cevada cozido debaixo do rescaldo, que rolava, e ia cair
sobre o acampamento de Madian. E, tendo-se chocado
contra uma tenda, a sacudiu com a pancada e a lançou de
todo por terra'.
O outro, a quem ele falava, respondeu:
`Isto não é outra coisa senão a espada de Gedeão,
filho de Joás, homem israelita; porque o Senhor lhe
entregou Madian em suas mãos, e todo o seu acampamento'".
|
|
A palavra de Deus, pois é trombeta, é pão e é
espada. É trombeta porque soa aos ouvidos. É pão
porque revigora a mente dos que têm fome de justiça. É
espada porque penetra os segredos dos corações. Por
isto diz o Apóstolo:
|
"A Palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante
do que a espada de dois gumes; e chega até à separação
da alma e do espírito, das junturas e das medulas, e
discerne os pensamentos e intenções do coração, e não
há nenhuma criatura invisível na sua presença".
|
|
É necessário, pois, que não somente façamos soar a
trombeta, conforme expusemos, ensinando e cantando, mas
que também quebremos a ânfora, crucificando nossa carne
com os seus vícios e concupiscências. Muitos há que
professam a religião, mas aborrecem a sua salutar
aspereza, desejando viver num confortável repouso,
afirmando que Deus não exige que molestemos a carne.
Nós, porém, caríssimos, quebremos esta ânfora na
fome e na sede, no frio e na nudez, no trabalho e na
tribulação, e em todas as demais coisas como estas.
Acendamos nossas lâmpadas, para que exercitemos as
virtudes e as boas obras. Com estas armas venceremos
nossos inimigos, alcançaremos a vitória, possuiremos a
palma. Refiro-me à palma dourada, como lemos de
Gedeão, que pediu e recebeu de seu exército os brincos
de ouro da presa dos inimigos. Assim também nós,
caríssimos, se lutarmos corretamente, possuiremos esta
palma dourada, que outra coisa não é senão a glória
celeste.
E que a tanto se digne vir em nosso auxílio Cristo
Jesus.
Amén.
Lemos no texto deste sermão que Hugo de S. Vitor,
comentando o décimo primeiro de Mateus, afirma que
|
"assim como existe a trombeta do ensino, existe também a
do louvor".
|
|
Desta e de outras passagens de sua obra depreende-se
que, segundo a doutrina de Hugo de São Vítor, o
louvor e o ensino são dois aspectos de uma mesma atitude,
e ambos procedem do dom do Espírito Santo de
entendimento, conforme diz o Salmo:
|
"Publicarei todas as tuas obras às portas da filha de
Sião".
|
|
Pelas portas da filha de Sião deve-se entender, de
fato, a incoação da contemplação que se dá pelo dom
de entendimento, conforme diz o Salmo 86:
|
"O Senhor ama as portas de Sião, mais do que todas as
tendas de Jacó".
|
|
Louvar, de fato, é, na concepção dos vitorinos,
aprovar com entusiasmo. Diz, por exemplo, neste
sentido, Ricardo de S. Vitor:
|
"Laudare est ex admiratione approbare".
|
|
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Benjamin Minor C. 11
PL 196, 8
|
Ora, para aprovar com entusiasmo é preciso primeiro
entender cristalinamente, e isto é precisamente o efeito
do dom de entendimento. O verdadeiro ensinar, assim,
provém da mesma origem de onde procede o louvor. Por
meio do dom de entendimento produz-se uma aprovação
entusiástica proveniente de um entendimento límpido da
obra divina a qual, não se contentando em manifestar-se
apenas poeticamente, vê a necessidade de também
evidenciar aos homens a extensão das maravilhas de Deus.
Comentando Ricardo de S. Vitor, Josef Pieper afirma
que
|
"o louvor de Deus é a forma extrema que existe de
aprovação da realidade".
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Hugo de São Vitor poderia muito bem acrescentar a esta
reflexão que, do mesmo modo, ensinar é a forma extrema
que existe do louvor.
Cabe dizer também que no primeiro sermão da série da
qual o presente é o 63, Hugo de São Vitor afirma
que na construção material de uma igreja os sinos
representam aqueles que, no Corpo Místico de Cristo,
têm a função de ensinar. Entendida neste contexto,
esta afirmação tem também o sentido mais amplo segundo o
qual os sinos não têm apenas a função de chamar o povo
para as celebrações; sua majestosa sonoridade foi
freqüentemente usada para exprimir o louvor a Deus.
Assim também é o ensino; quando se realiza em sua forma
mais autêntica, é ele a mais acabada expressão de
louvor que o homem pode oferecer à obra de Deus.
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