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Lemos em Êxodo, a respeito da mesa da proposição, ter
dito o Senhor a Moisés:
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"Farás também uma mesa de madeira de cetim, que tenha
dois côvados de comprimento, um côvado de largura e
côvado e meio de altura. Cobri-la-ás de ouro
puríssimo, far-lhe-ás um lábio de ouro em roda, e
(porás) sobre o mesmo lábio uma coroa entalhada, de
quatro dedos de altura; e, sobre esta, uma outra coroa
aureolada. Farás também quatro argolas de ouro, e as
porás nos quatro cantos da mesma mesa, uma em cada pé.
As argolas de ouro estarão da parte de baixo da coroa
para se meterem por ela varais, a fim da mesa poder ser
transportada. Farás varais de madeira de cetim, e os
cobrirás de ouro; servirão para transportar a mesa.
Prepararás também acetábulos, vasos preciosos,
turíbulos e taças de ouro puríssimo, em que se deverão
oferecer as libações. Porás sempre sobre a mesa os
pães da proposição na minha presença".
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Que é mesa é esta, irmãos caríssimos, se não a
Sagrada Escritura? Pois quantas são as vezes em que
ela nos exorta a bem viver, tantas são as vezes em que
ela nos oferece o pão da vida.
Lemos que esta mesa foi feita de madeira de cetim, pois,
assim como a verdade da Sagrada Escritura, não deveria
corromper-se pelo envelhecimento. À semelhança desta
mesa, as Escrituras possuem também dois côvados de
comprimento, pois nos ensinam as duas partes da fé,
pelas quais cremos no Criador e no Redentor. Possuem
igualmente um côvado e meio de altura, pois nos ensinam
qual é a altura da esperança e o início da
contemplação. Possuem, finalmente, um côvado de
largura, quando nos ensinam qual é a amplitude da
caridade. Assim as Sagradas Escrituras, tal como a
mesa, possuem comprimento, altura e largura, na medida
em que nos ensinam perfeitamente a fé, a esperança com o
início da contemplação, e a caridade.
Esta mesa espiritual é toda coberta de ouro, pois ela
resplandece não apenas pelos seus milagres, mas também
pela caridade da sabedoria celeste. Seu lábio são as
bocas dos doutores, que a circundam em toda a roda porque
nada,em lugar algum, foi deixado pelos santos doutores
sem correção. Pela autoridade que emana das Sagradas
Escrituras, repreendendo de todos os lados aos maus pelo
mal, e ensinando aos bons o melhor, são, efetivamente,
os santos doutores, como o lábio ao redor desta mesa.
As duas coroas que se seguem, das quais uma é dita
entalhada e a outra é dita aureolada, significam os dois
bens do homem justo, o primeiro dos quais está neste
mundo e o outro no céu. A primeira destas coroas, de
fato, é a justiça, e a segunda é a recompensa eterna;
a primeira é o mérito e a segunda é o prêmio; a
primeira é a boa consciência e a segunda é a glória que
se lhe há de seguir. E ambos estes bens comparam-se
corretamente a uma coroa, seja porque são perfeitos,
seja porque efetivamente nos conferem a coroa.
A primeira coroa foi preceituada entalhada, pois o efeito
da boa obra no tempo presente é múltiplo e variado, e
possuindo quatro dedos de altura, porque a justiça dos
santos, operando pela graça do Espírito Santo,
ergue-se pelo exercício das quatro virtudes principais.
Nos dedos estão figurados os dons do Espírito Santo
e, no número quaternário, as quatro virtudes da
prudência, fortaleza, justiça e temperança. Unida ao
lábio da mesa, esta coroa nos mostra que a justiça se
consuma segundo as exortações dos santos doutores.
Sobre a primeira coroa, porém, havia uma outra
aureolada. É assim também que a glória não apenas
segue, como também excede a justiça. Foi preceituada
aureolada, pois pelo ouro significa-se o fulgor da
contemplação. Note-se que ela nos é descrita não
como sendo de ouro, mas aureolada; as Escrituras nos
insinuam, por meio deste diminutivo, o quanto é
pequeno, diante da plenitude do bem que se lhe há de
seguir, tudo o que agora pode por nós ser apreendido,
mesmo pela contemplação. As Escrituras, de fato, nos
narram Isaías ter visto o Senhor sentado sobre um alto e
elevado trono. Desta visão que teve do Senhor o profeta
nos diz que
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"as coisas que estavam abaixo dEle preenchiam todo o
Templo".
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Ora, se as coisas que estavam abaixo dEle preenchiam
todo o Templo, quem poderá considerar quais e quantas
são, e o que são as coisas que estão nEle? Eis,
pois, o motivo pelo qual daquela recompensa eterna que nos
é apresentada como uma coroa superior e aureolada
encontramos também escrito:
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"Dai, e dar-se-vos-á; uma medida boa, cheia,
recalcada e acogulada vos será lançada no seio".
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O princípio desta mesa, ou desta coroa aureolada, pode
ser discernido e apreendido por alguns já no tempo desta
vida presente pela contemplação; completar-se-á,
contudo, na vida futura, quando o próprio Deus, que é
a recompensa e a coroa dos justos, for visto não como por
um espelho ou em enigmas, mas face a face.
Em primeiro lugar, pois, coloquemos a mesa; depois o
seu lábio; em terceiro, a coroa entalhada; em quarto,
a coroa aureolada. A mesa é a Escritura, o lábio são
as exortações dos doutores, a coroa entalhada a justiça
dos santos, a coroa aureolada a retribuição eterna.
As quatro argolas são os quatro livros dos Evangelhos,
que são chamados com propriedade de argolas, pois, sendo
circulares, significam o que é perfeito. Os
Evangelhos, de fato, nos trazem a perfeita doutrina da
fé e das obras, do mérito e do prêmio. Colocam-se
nos quatro cantos da mesa, um em cada pé, na medida em
que, pela sua autoridade e pela sua perfeição fortificam
os quatro sentidos das Escrituras e as tornam aptas para
que, em seus quatro sentidos, sejam levadas pela
pregação do Evangelho às quatro partes do mundo. Esta
mesa, de fato, possui quatro pés porque as palavras do
oráculo celeste podem ser entendidas em seu sentido
histórico, alegórico, moral ou anagógico.
A história ocorre quando, através do sentido manifesto
das palavras usadas, nos é narrado literalmente como algo
sucedeu em seus fatos ou dizeres. É deste modo que nos é
narrado como o povo que saiu do Egito salvou-se pelo
sangue do cordeiro, e como um tabernáculo foi erguido no
deserto.
A alegoria ocorre quando por palavras ou por coisas são
significados os mistérios da presença de Cristo e da
sacralidade da Igreja. A profecia de Isaías, no lugar
onde se lê:
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"Sairá uma vara do tronco de Jessé, e uma flor
brotará de sua raiz",
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é uma alegoria que se utiliza de palavras. Significa o
mesmo que dizer que da estirpe de Davi nascerá a Virgem
Maria, e que de sua estirpe nascerá o Cristo. No povo
de Israel salvado do Egito pelo sangue do cordeiro
encontramos uma alegoria que se utiliza de coisas;
significa a Igreja, libertada da condenação do demônio
pela paixão de Cristo.
O sentido moral se realiza quando, por palavras
manifestas ou de modo figurativo, há um discurso que quer
nos corrigir ou instituir nos costumes. Quando o
Apóstolo João nos diz:
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"Filhinhos, não amemos de palavra e com a língua, mas
por obra e em verdade",
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temos o sentido moral manifesto. Quando lemos no
Eclesiastes:
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"Os teus vestidos sejam em todo o tempo brancos, e não
falte o óleo que unja a tua cabeça",
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estamos diante das Escrituras utilizando-se
figurativamente das palavras para nos proporem o discurso
moral.
A anagogia, isto é, algo que conduz ao que é elevado,
é um discurso que, seja com palavras manifestas, seja
figurativamente, versa sobre a recompensa eterna e a vida
do céu. "Bem aventurados os puros de coração, porque
verão a Deus" (Mt. 5, 8): eis a anagogia
utilizando-se de palavras manifestas. "Bem aventurados
aqueles que lavam as suas vestes no sangue do Cordeiro,
para terem parte na árvore da vida e entrarem pelas portas
da cidade" (Apoc. 22, 14): temos aqui outra
anagogia; esta se utiliza, porém, figurativamente das
palavras.
Colocam-se, portanto, quatro argolas nos quatro pés da
mesa para que, introduzidos nelas os varais, a mesa possa
ser carregada, pois os quatro sentidos da Escritura se
unem aos livros dos Evangelhos para que, pela sua
autoridade, a própria Escritura possa ser ensinada pelos
doutores em toda a parte. Estas argolas são de ouro
porque os livros dos Evangelhos brilham pela sabedoria de
Deus, que é Cristo. As argolas também situam-se
abaixo das coroas, tanto da primeira como da segunda,
porque pela ordem primeiro vem a doutrina do Evangelho;
depois, à doutrina seguir-se-á a justiça, e à
justiça seguir-se-á a glória. Os varais, pelos
quais a mesa é carregada, são aqueles que ensinam,
pelos quais são anunciadas as Escrituras. São de
madeira de cetim, pois é justo que aqueles que devem
ensinar aos demais a santidade, vivam eles próprios sem a
corrupção dos vícios. Refulgem pela sabedoria divina;
são também por isto recobertos de ouro.
"Prepararás também acetábulos, vasos preciosos,
turíbulos e taças de ouro puríssimo": estes vários
recipientes em que se deveriam oferecer as libações são
as várias distinções da palavra de acordo com a
capacidade dos ouvintes. Pois nem tudo convém a todos.
A palavra dirigida ao sábio deve sê-lo de modo diverso
daquela que é dirigida ao ignorante. Assim também, é
de modo diverso que devem ser ensinados o rico e o pobre,
o são e o enfermo, o ancião e o moço, o homem e a
mulher, o solteiro e o casado, o prelado e o súdito.
Os acetábulos são os ensinamentos mordazes, os vasos
preciosos são a doutrina fecunda e abundante, os
turíbulos são a oração devota, as taças de ouro
puríssimo são a elevada ciência. Todos estes
recipientes pertencem à mesa do tabernáculo para o
oferecimento das libações, pois toda esta diversidade de
coisas, ensinadas segundo a diversidade dos ouvintes,
são encontradas todas nas Sagradas Escrituras e
estimulam o coração dos que as ouvem a oferecerem a Deus
o desejo das boas obras.
"E porás sobre a mesa os pães da proposição na minha
presença": os pães da proposição são as palavras da
sabedoria celeste, corretamente chamadas de pães da
proposição, porque a palavra da salvação deve
permanecer sempre manifesta para todos os fiéis, e na
Igreja jamais deverá faltar a palavra de auxílio.
Através dos pregadores que vivem na Sua presença, o
Senhor quis que a Igreja estivesse perpetuamente repleta
destes bens, preparados para todos aqueles que têm fome e
sede de justiça, até o fim dos tempos.
Esta mesa, irmãos caríssimos, é repleta de todas as
riquezas, servida de todas as delícias. Se quereis
,pães e peixes, tomai nela "cinco pães e dois peixes"
(Mt. 14,17), ou certamente "sete pães e alguns
peixinhos" (Mt. 15, 34). Com aqueles
saciaram-se cinco mil homens, e com os seus restos
encheram-se doze cestos; com estes saciaram-se quatro
mil homens, e com seus restos encheram-se sete alcofas.
Tomai, portanto, estes e aqueles pães, e também estes
peixes, ainda que poucos, e sabei que o alimento
abundará e sobejará. Se quiserdes carne, tomai "um
novilho gordo" (Luc. 15, 23), "touros e animais
cevados" abatidos para vós (Mt. 22, 4). Se
quiserdes o sabor, tomai o "grão de mostarda, que é na
verdade a menor de todas as sementes, mas lançado à
terra cresce e se torna maior do que todas as hortaliças"
(Mt. 13, 32). Se quiserdes manteiga e mel,
comei ambas com o Emmanuel, para que saibais com ele
"rejeitar o mal e escolher o bem" (Is. 7, 15).
Se quiserdes frutos de gêneros diversos, tomai-os
todos, "de toda a qualidade, os novos e os velhos",
que a esposa guardou para o esposo (Cant. 7, 13),
e comei as nozes do "jardim das nogueiras" (Cant. 6,
10). Se quiserdes bebida, tomai o vinho escolhido,
do qual foi escrito:
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"Tu, porém, tiveste guardado o bom vinho até
agora".
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Se quiserdes ainda mais bebida,
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"comprai sem dinheiro e sem nenhuma troca, vinho e
leite",
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e bebei com a esposa "vosso vinho com o vosso leite"
(Cant. 5, 1). Se desejais saborear o néctar,
tomai as consolações de Deus, pois
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"A tua misericórdia, Senhor, foi o meu auxílio.
Segundo a multidão das minhas dores em meu coração,
tuas consolações alegraram a minha alma".
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Se quiserdes aromas, tomai
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"os cipres com o nardo, o nardo e o açafrão, a cana
aromática e o cinamomo, com todas as árvores do
Líbano, a mirra e o aloés, com todos os primeiros
ungüentos".
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E sendo perigoso, e torpe também, que estando próximos
de tal e tamanha mesa. definhemos moribundos, vítimas da
fome, e encontremos a morte por inanição, a própria
Escritura nos convida, dizendo:
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"Comei, amigos, e bebei, e inebriai-vos,
caríssimos",
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isto é, com todas as coisas que agora, pela graça,
são servidas para nós nesta mesa, para que depois, pela
glória, as possamos possuir ainda mais perfeitamente.
E que, para tanto, digne-se vir em nosso auxílio
Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Amén.
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