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"Eis que conceberás,
e darás à luz um filho".
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Irmãos caríssimos, vamos falar sobre a anunciação do Senhor.
Far-vos-emos um sermão compendioso, para não onerar o vosso
amor. Muitas Escrituras, de fato, expõem o modo da
sacratíssima concepção, as quais, sendo já de vosso
conhecimento, farão que seja de nosso agrado preterir a
exposição de seu modo ilibado e, em seu lugar, proferir algo
que possa edificar os vossos costumes.
Nós mesmos, irmãos, devemos ser mãe de Cristo, se quisermos
ser justos, se quisermos ser bem aventurados; se quisermos
ser justos pela graça, se quisermos ser bem aventurados pela
glória.
Nós mesmos devemos conceber a Cristo, gestar a Cristo, dar a
luz a Cristo e possuir a Cristo nascido.
Na geração carnal a primeira coisa é a concepção, a segunda a
gestação, a terceira o parto, a quarta a posse do nascido, em
que há alegria, pois quando
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"nasce um homem no mundo,
a mãe já não se lembra
de sua aflição".
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Já na geração espiritual a primeira é a fé, a segunda a boa
vontade, a terceira a boa ação, a quarta a eterna bem
aventurança.
Na geração carnal a primeira coisa é a união do homem e da
mulher em que esta é fecundada ao receber o sêmen. Depois vem
a gestação, que é a preparação para o parto. Na gestação se
dá o crescimento do feto concebido, a sua vegetação, a
formação e a disposição de seus membros, a sua sensificação e
o tornar-se o homem realidade perfeita. Segue-se finalmente o
parto, isto é, o nascimento do menino, no qual a dor, a
angústia, o trabalho e o clamor da mãe são máximos. Ao parto
se segue, por último, a posse do filho nascido, quando a mãe,
pela grande alegria de ter nascido um homem no mundo, já não
mais se lembra da aflição passada.
Assim também ocorre na geração espiritual, em que Deus é o
homem e a alma é a mulher.
Quando o próprio Deus se une à alma, a alma concebe a Cristo
pela fé. A fé, de fato, é o primeiro de todos os bens,
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"sem a qual é impossível
agradar a Deus",
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assim como também é impossível para a natureza gerar um homem
sem o sêmen. Segue-se-lhe a gestação, quando o conhecimento
do bem concebido cresce pela boa vontade, adquire sentidos
pelo afeto e como que adquire a disposição dos membros pelo
desejo de operar. Segue-se-lhe ainda o parto, quando o bem,
que antes estava contido interiormente na boa vontade, se
manifesta exteriormente pela ação, em que encontramos o
trabalho e o clamor da mãe, pois a alma é então afligida pela
enfermidade e pela murmuração da carne. Mas enquanto dura
este parto, enquanto se vive, sempre este feto está nascendo,
pois enquanto for tempo de viver, sempre será tempo de bem
agir. Quando, porém, o homem morre, a criança nasce
perfeitamente, porque somente no dia da morte é perfeitamente
declarada a virtude e o mérito da obra.
A posse do filho nascido é a eterna bem aventurança, na qual
veremos e saborearemos a Cristo. Ve-lo-emos pela
contemplação, saborearemo-lo pelo amor. Sobre a alegria e o
fruto deste nascimento está escrito:
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"Quando tiver dado o sono aos seus amados,
eis a herança do Senhor, os filhos;
a recompensa, o fruto do ventre".
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Concebemos, portanto, a Cristo pela fé, gestamo-lo pela boa
vontade, damo-lo à luz pela boa ação, alegramo-nos com o
filho nascido pela eterna retribuição.
Deve-se saber, porém, que a alma carnal não pode receber a
Cristo, assim como a janela de madeira não pode receber em si
o raio do Sol. E assim como a janela de vidro recebe em si o
raio do Sol, e este mesmo raio nela entra e nela penetra,
assim também a alma espiritual, purificada da sordidez dos
vícios e clarificada pelo Sol das virtudes, concebe a Cristo.
O que é a madeira da janela, senão o corpo? E o que é o seu
vidro, senão o espírito?
O ferro que liga as partes da janela significa o rigor da
severidade, pois todas as coisas são domadas pelo ferro. O
chumbo, por causa de seu peso, significa a virtude da
gravidade. As diversas lâminas são os diversos sentidos da
alma, dos quais alguns são dispostos para cima pela
contemplação de Deus, outros para baixo pelo cuidado de si,
outros para a direita pelo amor dos amigos, outros para a
esquerda pelo amor dos inimigos, outros ao redor pela
circunspecção dos movimentos.
A pureza natural do vidro significa as virtudes que nos foram
dadas pela natureza; a cor que se lhe é acrescentada, as
virtudes que nos foram concedidas pela graça. As pinturas das
imagens significam os exemplos dos santos, que nós devemos
diligentemente pintar em nós mesmos, refletindo sobre suas
virtudes: a inocência de Abel, a justiça de Noé, a fé de
Abraão, a perseverança de Isaac, a paciência de Jacó, a
castidade de José, a mansidão de Moisés, a constância de
Josué, a caridade de Samuel, a humildade de Davi, o zelo de
Elias, a abstinência de Daniel, a singular humildade de São
João Batista e a castidade da bem aventurada Maria. Pintemos
também em nós a cruz, refletindo continuamente sobre a paixão
que o Senhor padeceu por nós, assim como as imagens dos
outros santos, refletindo e imitando suas virtudes e seus
exemplos.
Deste modo, irmãos, nesta mística significação da janela de
vidro a madeira é o corpo, o vidro é o espírito. O ferro é a
severidade, o chumbo a gravidade, e cada uma das lâminas os
vários sentidos da alma. A pureza do vidro são as virtudes
que nos são dadas pela natureza, as cores acrescentadas as
virtudes que nos são concedidas pela graça e as pinturas das
imagens os exemplos dos santos.
Sejamos, portanto, irmãos caríssimos, espirituais para que
irradiemos pelo raio do Sol da justiça e para que
espiritualmente concebamos e demos à luz a Cristo, o filho da
virgem Maria.
Que Ele mesmo, vindo em nosso auxílio, nos conceda alcançar a
alegria da retribuição eterna, Ele que vive e reina pelos
séculos dos séculos.
Amén.
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