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"Exultarão os santos na glória, e se alegrarão nos
seus leitos".
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Já expusemos estas palavras segundo o sentido moral.
Elas podem, porém, ser também expostas segundo o
sentido anagógico, ao qual parecem pertencer com mais
propriedade.
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"Exultarão os santos na glória".
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Exultarão não apenas porque agora, no tempo, exultam
na glória pela boa consciência, mas também porque
depois do tempo exultarão na eternitdade pela glória da
retribuição. Quanto mais esta glória agora nos é
desconhecida para o nosso sentido e quanto mais ela nos é
inexperienciada para o nosso afeto, tanto mais se nos
torna difícil descrevê-la para o nosso falar. Pois
esta glória, de fato, é o próprio Deus, a quem
incompreensível para o pensamento, mas que ao iluminar os
seus santos no céu pela luz de sua claridade, torna-os
perfeitamente participantes da bem aventurança de sua
glória. Para que de algum modo esta glória nos fosse
significada foi escrito que
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"resplandecerão os justos como o Sol no Reino de seu
Pai".
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Quem poderá considerar qual será este resplendor em que
inumeráveis milhares de justos se associarão a
inumeráveis milhares de anjos? E se tão inestimável
claridade haverá nestas criaturas, quem, pergunto eu,
poderá estimar o resplendor da Suma Majestade, não
apenas aquela que há na divindade, mas também aquela que
há na humanidade glorificada de Cristo, que
certissimamente transcende incomparavelmente a claridade de
toda criatura? Pois dela, antes de sua paixão, antes
mesmo da glória de sua ressurreição e ascensão, ficou
escrito que, por ocasião de sua transfiguração,
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"resplandecia seu rosto como o Sol".
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No Apocalipse lemos também, a respeito do anjo que
apareceu ao bem aventurado João na semelhança do Filho
do homem, que
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"seu rosto era como o Sol quando brilha em toda a sua
força".
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Ao dizer que o seu rosto brilhava como o Sol quando está
em toda a sua força, isto é, ao meio dia, João se
utilizou, para dar a entender algo do esplendor de sua
glória, da mais resplandecente criatura existente entre
todas as coisas visíveis. Considere, pois, quem o
puder, qual deve ser o eterno e imenso esplendor da
incompreensível e inefável divindade, se tão admirável
foi a semelhança que apareceu a João da humanidade
glorificada de Cristo. Ver a glória, portanto, da
Suma Divindade e da humanidade de Cristo e poder
contemplá-la sem fim será para os justos a sua bem
aventurada glória ou a sua gloriosa bem aventurança. De
onde que por uma segunda vez encontramos escrito no
Apocalipse que
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"A cidade do alto, a Jerusalém celeste, não tem
necessidade de Sol nem de Lua para que a iluminem;
porque a glória de Deus a iluminará, e a sua lâmpada
é o Cordeiro".
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Considere, portanto, quem o puder, embora não haja,
segundo creio, quem o poderá fazer, quanta será a
glória dos santos, quando
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"o servo bom e fiel entrar no gozo de seu Senhor".
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Quando o bom operário, depois do labor de sua obra,
tiver recebido o seu dinheiro (Mat. 20, 9); quando
as virgens prudentes, entrando no celeste tálamo como
esposas juntamente com seu esposo forem para sempre bem
aventuradas (Mat. 25, 10); quando os que os
receberem nos tabernáculos eternos
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"lhes lançarem em seu seio uma medida boa, cheia,
recalcada e acogulada";
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quando Deus enxugar toda lágrima dos olhos dos seus
santos, e já não houver mais choro, nem clamor, nem
dor,
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"porque tudo isto já terá passado".
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Quando forem possuídos de gozo e de alegria, quando
tiverem cessado a dor e o pranto, quando
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"nos tivermos saciado com a abundância da casa de Deus,
tivermos bebido da torrente de suas delícias, e na sua
luz veremos a luz";
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quando para o nosso ser não houver mais morte, para o
nosso conhecer não houver mais erro, para o nosso amar
não houver mais ofensa; quando repousarmos e virmos,
quando virmos e amarmos, quando amarmos e louvarmos a
magnificência de nosso Criador, que é Deus, bendito
seja sobre todas as coisas por todos os séculos.
Grande, portanto, é a glória, conforme dissemos no
sermão anterior, em ter uma boa consciência; muito
maior, porém, é a glória de possuir a vida eterna.
Muito grande é se fores justo; incomparavelmente maior,
porém, é se fores bem aventurado.
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"E se alegrarão em seus leitos".
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Pelos leitos dos santos podemos entender aqui suas moradas
celestes, das quais diz o Salvador:
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"Na casa de meu Pai há muitas moradas".
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Também o profeta, louvando esta casa, diz dela:
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"Ó Israel, quão grande é a casa de Deus, e
espaçoso o lugar de sua possessão, e não possui fim,
é excelso e imenso".
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Deste lugar, diz também o Salvador:
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"Vou preparar-vos o lugar".
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Os santos como que repousam suavemente em leitos quando
vivem segura, pacifica e quietamente nas moradas desta
casa ou deste lugar. Note-se que o salmo diz "em
leitos", e não "no leito", porque segundo a
diferença dos méritos será a diferença dos prêmios.
De fato, o Apóstolo nos ensina que
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"uma estrela difere de outra estrela na claridade; assim
também será na ressurreição dos mortos".
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E também, em outro lugar:
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"Cada um receberá a própria recompensa segundo o seu
trabalho".
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Segue-se:
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"As exultações de Deus estarão em suas gargantas".
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As exultações de Deus estarão em suas gargantas,
porque então louvarão a Deus eternamente por terem
findado os males e recebido os bens, aos quais passarão
perpetuamente sem nenhum detrimento. A este eterno louvor
dos santos se refere aquela passagem do salmista:
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"Cantarei eternamente as misericórdias do Senhor".
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Qual seja a exultação dos santos na glória celeste, e
a alegria nestes leitos, e também as exultações nas
suas gargantas, só o pode ser conhecido por aqueles aos
quais também foi dado possuir. De onde que alguém,
falando poeticamente da Jerusalém do alto, disse
belissimamente:
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"Como te louvam, como vivem felizes, que amor tão
grande os une, que jóias adornam os seus muros, se a
calcedônia ou o jacinto, só o sabem aqueles que estão
dentro".
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Já que, portanto, não há quem possa conhecer qual
seja a glória dos santos, a glória que será possuída
na visão de Deus, já que não há quem possa conhecer
qual seja o seu repouso no descanso dos leitos celestes,
quais sejam as exultações que soarão em suas gargantas
ao cantarem o louvor de Deus, investiguemos e sanemos,
enquanto isso, a nossa enfermidade para que um dia
possamos merecer alcançar aquele bem que no momento ainda
não nos é concedido ver. Trabalhemos com todas as
forças para alcançarmos aquela luz que brilha nas trevas
e que as trevas não podem compreender.
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"Terão espadas de dois gumes em suas mãos, para
exercer a vingança nas nações, e as repreensões entre
os povos: para acorrentar os reis em grilhões, e seus
nobres em algemas de ferro, para neles executar a
sentença promulgada. Esta é a glória para todos os
seus santos".
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Mencionados os bens celestes que os santos possuirão no
futuro, o salmista volta a mencionar o poder que, junto
com o Supremo Juiz, será por eles exercido sobre os
réprobos no dia do Juízo. De fato, é de se crer que
os apóstolos e todos os perfeitíssimos haverão de julgar
o mundo junto com Cristo. Em suas mãos haverá espadas
de dois gumes para exercer a vingança nas nações e as
repreensões entre os povos porque, segundo as palavras
das Escrituras, que eles observaram, e que outros
desprezaram, eles julgarão aos que tiverem que ser
eternamente punidos na alma e no corpo:
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"Então os justos se levantarão com grande afouteza,
contra aqueles que os atribularam, e que lhes roubaram o
fruto de seus trabalhos".
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Levantar-se-á então São Bento pelos seus monges,
levantar-se-á Santo Agostinho pelos seus clérigos,
levantar-se-á São Pedro e todos os apóstolos e os
prelados da Igreja pelos que lhes foram confiados,
levantar-se-ão todos estes contra os ímpios, os
injustos e os ladrões que os atormentaram e injustamente
lhes saquearam as possessões da Igreja e os bens dos
fiéis e, não permitindo que entrem pelas portas do
céu, os atirarão nas trevas exteriores. Pela vingança
nas nações podemos entender uma pena mais grave a ser
inferida aos que perpetraram delitos mais graves; pelas
repreensões entre os povos podemos entender um menor
tormento a ser imposto no inferno para aqueles que
cometeram crimes menores. Os adúlteros, de fato,
serão atormentados mais duramente do que os fornicadores.
Depois da pena geral para os maus, é atribuído um
tormento singular especialmente para os reis para os seus
nobres o que mostra, de modo evidente, que, conforme
está escrito,
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"o julgamento se tornará duríssimo para aqueles que
governam".
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E também:
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"Os poderosos serão poderosamente atormentados".
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"Aos mais fortes maior suplício ameaça".
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É justo, de fato, que os que foram antepostos aos
demais, agindo pior do que os outros pelo poder que lhes
foi concedido, sejam condenados com maior rigor e com
penas mais graves do que os demais, pelo que acrescenta o
salmista:
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"Para acorrentar os reis em grilhões, e seus nobres em
algemas de ferro".
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A sentença que no dia do Juízo será executada pelos
santos sobre os réprobos é dita sentença promulgada
porque encontra-se escrita e promulgada pelos Santos
Padres na Divina Página.
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"Esta é a glória para todos os seus santos".
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Esta é a glória, a saber, que em si mesmo
resplandeçam gloriosamente por toda a eternidade, e pelo
seu julgamento distinguam os ímpios que devem ser punidos
pelo eterno suplício.
Consideremos, portanto, irmãos caríssimos, o quanto
pudermos, quanta e qual seja a glória dos santos, e
trabalhemos para que mereçamos ser seus consortes na
pátria.
E que, para tanto, se digne vir em nosso auxílio Jesus
Cristo, nosso Senhor, que é Deus bendito pelos
séculos.
Amén.
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