|
Narra o Livro de Números que por três vezes Balac
convidou Balaão para que amaldiçoasse os filhos de
Israel. Em vez disso, porém, por três vezes Balaão
os abençoou. Depois da terceira bênção, Balac,
irado contra Balaão e batendo as mãos, disse-lhe:
|
"Para amaldiçoares os meus inimigos eu te chamei, e
tu, pelo contrário, os abençoaste três vezes. Volta
para o teu lugar. Eu havia determinado honrar-te
magnificamente, mas o Senhor privou-te da honra que te
estava preparada".
|
|
O demônio, como pode reconhecer-se manifestamente por
estas palavras, ira-se tanto mais violentamente quanto
mais freqüentemente experimenta de modo patente que as
tentativas de sua malícia não apenas são ineficazes como
também cooperam para o bem dos justos, pois Deus lhes
concede que as tentações os ajudem para o seu
aproveitamento. De fato, o demônio se aflige e se
lamenta pesadamente quando os povos vãos e profanos se
esforçam pelos seus impropérios para destruir a vida
gloriosa e o aproveitamento dos justos mas a sentença,
pela divina providência, volta-se para o outro lado.
Três vezes a vida dos justos é abençoada pelo povo vão
quando por ele são proclamados benditos os seus
pensamentos, as suas palavras e as suas ações. O povo
vão é privado da honra que lhe havia sido preparada pelo
demônio, quando não se vê mais favorecido pelo vão
louvor que, com suas detrações, teria merecido pela
destruição ou diminuição da glória dos justos.
Retorna ao seu lugar, à torpeza de suas ocupações,
quando, abandonando a consideração e o louvor dos
justos, recai em sua vida costumeira. Mas, conforme diz
a Escritura,
|
"Também Balac, pelo caminho por onde tinha vindo,
voltou ao seu lugar".
|
|
Balac volta ao seu lugar quando o demônio, vendo
frustrado o efeito de sua má intenção, recolhe-se no
oculto de sua malícia para pensar na maquinação de novos
enganos.
O povo vão, finalmente, não presumindo servir-se
manifestamente de palavras perversíssimas contra os
justos, porém ainda instigado pela inveja, enfurece-se
algumas vezes contra eles por meio de ocultos conselhos.
Por isto é que Balaão, voltando para o seu povo,
diz:
|
"Contudo, voltando para o meu povo, darei um conselho
sobre o que teu povo faça a este povo no fim dos
tempos",
|
|
isto é, no último tempo, antes que dele seja separado.
O conselho dado por Balaão foi que fossem enviadas às
tendas dos filhos de Israel as virgens de Madian por cuja
aparência poder-se-ia iludir a castidade, e que estas
se esforçassem para induzir os jovens que a elas se
inclinassem a transgredirem as leis de seus pais, passando
a cultuar deuses estranhos. Deste modo, irado o seu
Deus, haveriam de ser humilhados pelo menos por algum
tempo. O que, conforme lemos no vigésimo quinto
capítulo de Números, foi efetivamente o que veio a
acontecer.
Antes disso, porém, elevado ainda por uma quarta vez
pelo espírito de profecia, Balaão retomou sua parábola
e proferiu algumas coisas sobre Cristo e sobre um povo
espiritual que em uma posteridade ainda distante haveria de
vir:
|
"Eu o verei, mas não agora",
|
|
disse então Balaão;
|
"eu o contemplarei, mas não de perto".
|
|
|
"Surgirá uma estrela de Jacó, e levantar-se-á uma
vara de Israel, e percutirá os chefes de Moab, e
devastará todos os filhos de Set, e a Iduméia será a
sua possessão.
A herança de Seir passará para os seus inimigos,
Israel, porém, agirá com fortaleza; de Jacó sairá
quem dominará, e perderá os restos da cidade".
|
|
Depois destas palavras, e após prever o fim de algumas
nações (Num. 24, 20-24), Balaão retornou
então para o seu lugar. Se não fosse notório, por
vários testemunhos das Sagradas Escrituras, que também
os maus podem ter não só o dom da profecia, como também
outros dons espirituais, seria muito para se admirar como
pôde este adivinho, elevado pelo espírito profético,
profetizar coisas tão sublimes de Cristo e do povo dos
justos.
|
"Eu o verei, mas não agora, contemplá-lo-ei, mas
não de perto".
|
|
Como se dissesse:
|
`O conselho iníquo, que agora vos dou, poderá ser
cumprido quando os filhos de Israel passarem por vossa
terra; mas aqueles que acrescento se cumprirão em um
tempo longínquo. Então, quando estes se cumprirem,
"surgirá uma estrela de Jacó, e levantar-se-á uma
vara de Israel' ".
|
|
Cristo é a estrela, e Cristo é também a vara. É
estrela, porque ilumina; é vara, porque castiga.
Ilumina no bem, castiga do mal. Ilumina os ignorantes,
castiga os delinqüentes.
|
"E percutirá os chefes de Moab, e devastará todos os
filhos de Set, e a Iduméia será a sua possessão.
A herança de Seir passará para os seus inimigos,
Israel, porém, agirá com poder".
|
|
Por meio de todos estes que a Escritura prediz que serão
percutidos pela vara que haverá de levantar-se em Israel
significa-se manifestamente a conversão dos povos.
Cristo, de fato, percutiu os povos quando, pela fé
nEle, mortificou-os para o mundo, para que vivessem
para Deus. O que Balaão predisse de Cristo ao
mencionar que percutiria os chefes de Moab e tomaria posse
da Iduméia foi depois também cantado por Davi, na
pessoa de Cristo, ao dizer:
|
"Meu é Galaad, e meu é Manassés, e Efraim é a
fortaleza da minha cabeça; Judá é o meu rei.
Moab é a panela de minha esperança, estenderei o meu
calçado até a Iduméia: são para mim súditos
estrangeiros".
|
|
"Moab é a panela" de Cristo quando os gentios, bem
cozidos de sua crueldade pelo amor, tornam-se com sua
vida santa refeição para Cristo, esfomeado pelo desejo
de nossa salvação. "Seu calçado, estendido até a
Iduméia", significa a fé na sua Encarnação;
Cristo, de fato, estende o seu calçado até a Iduméia
ao entregar à gentilidade a fé na sua humanidade. Os
gentios são para Ele "súditos estrangeiros" quando,
embora não sendo de Israel, mesmo assim crêem nEle.
É a Igreja primitiva que é significada onde se diz:
|
"Meu é Galaad, e meu é Manassés, e Efraim é a
fortaleza da minha cabeça; Judá é o meu rei".
|
|
Depois dela figura-se a conversão dos gentios, onde se
diz:
|
"Moab é a panela de minha esperança, estenderei o meu
calçado até a Iduméia: são para mim súditos
estrangeiros".
|
|
Cristo pertence a todos estes quando, mortificando-os
para o mundo, torna-os vivos para si.
|
"A herança de Seir passará para os seus inimigos,
Israel, porém, agirá com fortaleza".
|
|
"A herança de Seir passará para os seus inimigos e
Israel agirá com fortaleza" quando a gentilidade submete
os pescoços às palavras dos que ensinam, e a comunidade
dos que ensinam a dispõe vigorosamente para a boa obra.
A fortaleza espiritual de Israel refulgiu primeiramente
nos apóstolos, depois brilhou subseqüentemente nos
demais justos. De fato, aos apóstolos foi dito:
|
"Sede fortes no combate, e lutai contra a antiga
serpente".
|
|
Consta, porém, que isto não foi dito apenas para os
apóstolos. De fato, conforme no-lo declara o
Evangelho, Jesus também lhes disse:
|
"O que eu digo a vós, o digo a todos".
|
|
Segue-se:
|
"De Jacó sairá quem dominará, e perderá os restos
da cidade".
|
|
"De Jacó sairá quem dominará", isto é, Cristo;
"e perderá os restos da cidade" da Babilônia
espiritual. Cristo, de fato, perde aos que abandona
para a condenação, condenação designada pelas
profecias da ruína dos povos submetidos com que Balaão
encerra a sua parábola. Assim no-lo narra a
Escritura:
|
"Olhando para Amalec, continuou Balaão a sua
parábola:
`Amalec é o princípio dos povos, cujas extremidades
haverão de se perder'.
Viu também o Cineu, e prosseguiu a parábola,
dizendo:
`Verdadeiramente forte é a tua habitação, mas se na
pedra colocares o teu ninho, e fores escolhido da estirpe
de Cin, por quanto tempo poderás permanecer? Assur,
de fato, te fará cativo'.
E retomando novamente a parábola, falou:
`Ai! Quem há de viver, quando Deus fizer estas
coisas? Virão da Itália em trirremes, vencerão os
Assírios, devastarão os hebreus, e por fim também
eles perecerão'".
|
|
Pela destruição destes povos, portanto, entendemos a
condenação de todos os maus.
Com estas palavras, caríssimos, termina Balaão a sua
parábola. A Escritura nos diz então que
|
"Levantou-se Balaão e voltou para a sua terra; Balac
também voltou pelo caminho de onde tinha vindo".
|
|
Mas, logo a seguir, a mesma Escritura nos narra como os
filhos do povo de Israel pecaram com as filhas de Moab:
|
"Habitava Israel naquele tempo em Setim, e fornicou o
povo com as filhas de Moab, que os convidaram para os
seus sacrifícios. E eles comeram, e adoraram os deuses
delas, e Israel foi iniciado a Beelfegor. E o
Senhor, irado, disse a Moisés:
`Toma todos os príncipes do povo, e pendura-os em
patíbulos virados para o Sol'".
|
|
Notai que, ao que parece, o Senhor preceituou a
Moisés que punisse os príncipes de Israel por não
terem eles punido os prevaricadores. `Setim',
traduzido, significa espinhos. Corretamente, portanto,
se diz dos filhos de Israel que, ao pecarem, habitavam
em Setim, isto é, habitavam nos espinhos, porque
deve-se crer que foram os espinhos dos pecados anteriores
que exigiram que eles caíssem em tão graves delitos.
"Um abismo", de fato, "chama outro abismo" (Salmo
41, 8), porque a culpa gera outra culpa. E, em
outro lugar, está escrito dos pecadores:
|
"Minha é a vingança, e eu lhes retribuirei a seu
tempo, para que resvale o seu pé".
|
|
Por terem sacrificado ao ídolo, entendemos toda
infidelidade; por terem fornicado, entendemos toda má
ação. Resvalaram, portanto, em ambos os pés, a
saber, o da fé e o da ação, quando caíram nos
referidos delitos.
|
"E disse Moisés aos juízes de Israel:
`Cada um mate os seus vizinhos, que foram iniciados a
Beelfegor'.
E pereceram naquele dia vinte e quatro mil homens".
|
|
Antes disso, porém,
|
"Um dos filhos de Israel trouxe para junto de seus
irmãos uma madianita, sob os olhos de Moisés e de todo
o povo, que choravam diante da porta do tabernáculo".
|
|
"Vendo isto", continua a Escritura,
|
"Finéias, filho de Eleázaro, filho do sacerdote
Aarão, levantou-se do meio do povo e tomou uma
lança".
|
|
Admirável e louvável foi a vingança que Finéias tomou
desta fornicação. Fervoroso no zelo pela justiça,
atravessou com aquela lança, na altura dos órgãos
genitais (Num. 25, 8), a Zambri, juiz das tribos
de Judá (Num. 25, 14), e a Cozbi, a mulher
madianita, de uma das casas patriarcais dos madianitas
(Num. 25, 15), que se entretinham em sua
cópula. Com isto aplacou Finéias a ira de Deus
enfurecida sobre o povo e, por este motivo, diz a
Escritura,
|
"O Senhor estabeleceu com ele uma aliança de paz,
constituindo-o príncipe dos santos e de seu povo, para
que a dignidade sacerdotal pertencesse a ele e à sua
descendência para sempre".
|
|
|
Ecl. 45, 30
Num. 25, 12-13
|
E agora, irmãos caríssimos, consideremos
cuidadosamente tudo quanto nos foi dito. Examinemos com
atenção a nós mesmos para que, se não padecemos
detrimento de nossa glória pelas maldições do povo
vão, não caiamos no pecado pelos seus maus conselhos.
Se virmos alguns de nós incorrendo na culpa pelos enganos
do demônio ou do povo vão, removamos imediatamente o mal
de nosso meio. Que nós possamos, seguindo o exemplo de
Finéias, fervorosos no zelo pela justiça, puní-los
pela espada do nosso discernimento. Deste modo, se assim
procedermos, seja-nos concedido, juntamente com os
justos e auxiliados pelos seus méritos e pelas suas
preces, ser admitidos na terra onde mana o leite e o mel.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus
Cristo, nosso Senhor, que é Deus bendito, pelos
séculos dos séculos.
Amén.
|
|