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Lemos nas páginas do Velho Testamento que Rute, a
Moabita, seguindo a Noemi sua sogra, e obedecendo aos
seus preceitos, mereceu unir-se em matrimônio a Booz,
homem poderoso e rico.
Noemi, nome que traduzido quer dizer `formosa' (Rute
1,20), significa também o doutor e pastor da Igreja
ornamentado não apenas exteriormente, mas também
interiormente pelos vários dons da graça celeste,
renunciando, segundo o Apóstolo, à oculta
indecência, não caminhando na astúcia e não
adulterando a palavra de Deus. Ele é figurado por uma
mulher, pois não cessa de dar à luz e de educar para
Deus, pelo seu ensino, uma prole espiritual. Por isto
é que o Apóstolo, escrevendo aos Gálatas, diz:
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"Meus filhinhos, por quem eu sinto de novo as dores de
parto, até que Jesus Cristo se forme em vós".
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Rute, nome que traduzido quer dizer `a que se
apressa', significa a alma que obedece prontamente aos
santos conselhos de seu prelado, não buscando pretextos
para demorar-se na execução de seus preceitos, sabendo
que
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"o Senhor deseja não tanto holocaustos ou vítimas como
quer que se obedeça à sua voz, e que a obediência vale
mais do que as vítimas e escutar mais do que oferecer a
gordura dos carneiros, já que a rebelião é como o
pecado da adivinhação, e não querer ser dócil é como
o delito da idolatria".
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Rute, portanto, se apressa verdadeiramente e bem na
medida em que a alma obediente inclina prontamente o ouvido
a todas as coisas que lhe são ordenadas, quer elas lhe
pareçam honrosas ou desprezíveis.
A obediência, entretanto, às vezes é nula, se possui
algo de seu; outras vezes é mínima, mesmo que não
possua nada de seu. De fato, se nos é ordenado subir a
um lugar elevado, quem a isto anela esvazia para si a
virtude da obediência pelo próprio desejo. Se,
porém, nos é ordenado o desprezo de nós próprios, a
não ser que a alma apeteça isto por si mesma, quem
descesse a isto descontente diminuiria para si o mérito da
obediência. Foi por isto que Moisés humildemente
recusou o principado do povo (Ex. 3,11), e Paulo
diz audaciosamente:
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"Estou pronto não só para ser atado, mas até para
morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus".
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Rute, portanto, por causa de Noemi abandona a sua terra
e os seus deuses (Rute 1,14), quando a alma
verdadeiramente obediente, estimulada pelo exemplo ou pela
palavra do doutor da Igreja, deixa para trás todas as
coisas terrenas e prazerosas que lhe foram oferecidas pelos
demônios. E a segue inseparavelmente (Rute
1,16), na medida em que oferece amigavelmente o
assentimento aos preceitos de sua doutrina. Acompanha-a
por todos os caminhos pelos quais passa (Rute 1,17)
quando o imita nos vícios que abandona e nas virtudes que
exercita. Finalmente, mora com ela em Belém (Rute
1,19) quando, dentro da santa Igreja, sob o seu
conselho ou governo, convivem santa e honestamente.
Booz, nome que traduzido quer dizer `fortaleza de
Deus', homem poderoso e de grandes riquezas (Rute
2,1), que possuía segadores e de quem era o campo em
que Rute colheu espigas (Rute 2,3), significa
Cristo. Cremos, de fato, e confessamos com o
Apóstolo que Cristo é virtude de Deus e sabedoria de
Deus, e é também homem poderoso, porque
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"Foi-lhe dado todo poder no Céu e na Terra".
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Ele é também homem de grandes riquezas, porque
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"Nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e
da ciência".
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Seu campo é a Sagrada Escritura. Este campo possui
cevada pelo Velho Testamento e trigo pelo Novo
Testamento. Os segadores são os pregadores que
quotidianamente colhem neste campo as sentenças pelas
quais alimentam os fiéis e os apascentam esplendidamente.
Já os imperfeitos e os enfermos não segam com as
foices, mas recolhem as espigas, porque não entendem as
coisas maiores, mas apenas as menores. Os quais fazem
bem em permanecer no campo, assim como Rute, desde a
manhã até à tarde (Rute 2,7), pois trabalham
virilmente para que, desde o próprio início possam
chegar à perfeição. De onde que Booz ordenou aos seus
segadores que se estes últimos quisessem colher com eles,
isto é, investigar e compreender as coisas maiores, não
os proibissem; antes, ao contrário, que lhes
oferecessem do trabalho de suas foices (Rute
2,15-16), isto é, ordenou-lhes que não os
instruíssem negligentemente mesmo a respeito de suas
sentenças. Ordenou também Booz aos seus segadores que
ninguém molestasse a Rute quando recolhesse as espigas
(Rute 2,9), porque deve-se evitar de todos os modos
que a alma que se inicia no bem, isto é, que se aproxima
da fé ou é recém chegada à boa conversação, encontre
uma pedra de tropeço. Por isto é que nos diz o
Salvador:
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"O que receber em meu nome um pequenino como este, é a
mim que recebe".
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"Aquele que, porém, escandalizar um destes pequeninos
que crêem em mim, melhor seria para ele que se lhe
pendurasse ao pescoço uma mó de moinho e que o lançassem
ao fundo do mar".
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E, logo adiante:
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"Vede, não desprezeis um só destes pequeninos, pois
vos declaro que os seus anjos nos céus vêem
incessantemente a face de meu Pai, que está nos
céus".
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O pequenino é aquele que se inicia no bem e que ainda
não se elevou à fortaleza da virtude ou à altura da
perfeição. Não apenas Jesus, mas também o bem
aventurado Paulo se refere à malícia do escândalo que
não deve ser oferecido aos irmãos enfermos:
diz o Apóstolo,
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"pois, uns aos outros; propondo antes não pôr tropeço
ou escândalo ao vosso irmão".
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E também:
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"Não queiras perder, por causa de teu alimento, aquele
por quem Cristo morreu".
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E a mesma coisa a repete novamente, quando diz:
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"Se um alimento serve de escândalo a meu irmão, nunca
mais comerei carne, para não escandalizar meu irmão".
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E finalmente, concluindo:
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"Não sejais motivo de escândalo nem para os judeus,
nem para os gentios, nem para a Igreja de Deus; como
também eu em tudo procuro agradar a todos, não buscando
o meu proveito, mas o de muitos, para que sejam
salvos".
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Booz também concedeu a Rute que comesse o pão com as
suas moças, que molhasse o seu bocado no vinagre (Rute
2,14), e que bebesse da água que havia nas
sarcínulas (Rute 2,9), pequenos recipientes em
forma de trouxas ou fardéis, pois Cristo, que é
clementíssimo pai de família, de bom grado concede à
alma recém convertida o pão da sã doutrina para que não
desfaleça no caminho da virtude e da boa obra, assim como
o vinagre do temor amargamente pungente, do qual está
escrito:
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"Crava pelo teu temor as minhas carnes, pois temi os
teus julgamentos",
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para que não se dissipe na properidade, e a água da
refrescante consolação, para que não se quebre na
adversidade. De fato, o pão sustenta, o vinagre
punge, a água refrigera.
disse ainda Booz,
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"vai às sarcínulas, e bebe as águas de que bebem os
meus criados".
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A respeito desta água deve-se notar que se lhe ordena
procurá-la nas sarcínulas, pois ao que livremente
oferecer o ombro para apoiar o fardel da virtude a ser
exercida e da boa obra a ser exibida se promete o
refrigério da própria consolação divina. Por isto é
que diz o salmista:
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"Segundo a multidão das minhas dores no meu coração,
tuas consolações alegram a minha alma".
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E também:
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"No dia de minha tribulação busquei a Deus, de noite
estendem-se as minhas mãos para Ele, e não sou
enganado.
Minha alma recusa-se a ser consolada, recordei-me de
Deus e fui consolado".
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Quando ele diz que sua alma recusava-se a ser consolada,
refere- se à consolação terrena; acrescentando,
porém, que ao recordar-se de Deus foi consolado, nos
mostra ter aceito a consolação divina. Aqueles que,
portanto, se afastam do piedoso ônus da virtude e da boa
obra, defraudam-se a si próprios do refrigério da
consolação do alto. De onde que corretamente se diz da
Sabedoria que
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"Não se encontra na terra dos que vivem nas
suavidades".
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Quem quer que deseje, portanto, beber a água da
sabedoria da salvação, dirija-se para os fardéis,
isto é, aos exercícios e ao trabalho da virtude e da boa
obra.
Booz, porém, fala de sarcínulas, e não de sarcinas,
o que está de acordo com a palavra do Senhor, quando
diz:
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"O meu jugo é suave, e o meu peso é leve".
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O mesmo também no-lo diz o bem aventurado João:
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"Seus mandamentos não são pesados".
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De fato, os mandamentos divinos, que para os réprobos
parecem impossíveis de cumprir, para os principiantes e
os enfermos são um pouco pesados, mas para os perfeitos
são comprovadamente leves. Para os que amam
perfeitamente a Deus o salmista no-los demonstra serem
leves, ao dizer:
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"Corri pelo caminho dos teus mandamentos, pois dilataste
o meu coração".
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Rute tinha, deste modo, junto aos criados de Booz,
pão, vinagre e água, porque a alma verdadeiramente
penitente possui com as almas puras e eleitas dos que
crêem em Cristo o pão na doutrina, o vinagre na
repreensão e a água na visitação. Este pão confere a
virtude do sustento; o vinagre, a salubridade do temor;
a água, o refrigério da consolação.
Os restos de comida guardados por Rute (Rute 2,14)
podem ser entendidos como algumas palavras menores da
sagrada doutrina que os perfeitos deixam após si, na
medida em que exercitam a si mesmos nas maiores e as
distribuem aos outros. As quais menores Rute guardou de
boa vontade, porque para a alma faminta as coisas mínimas
e também amargas parecem grandes e doces.
Booz disse então a Rute:
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"Não vás respigar em outro campo, nem te afastes deste
lugar, mas junta-te com as minhas moças, e segue-as
por onde tiverem segado".
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O outro campo, o campo alheio, é todo livro dos
hereges, no qual Booz dissuade Rute de colher espigas,
pois Cristo adverte a alma que se converteu a Ele que
não receba as más asserções dos hereges. A qual alma
verdadeiramente se junta às suas moças e as segue para
onde tiverem segado quando, fielmente unida às almas
santas, as imita nas sagradas lições.
Rute, uma estrangeira, colhe portanto espigas no campo
de Booz quando a alma pecadora, mas convertida, estuda
atentamente a palavra de Deus.
Prossegue a narrativa declarando que Rute
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"Bateu, depois, com uma vara e sacudiu as espigas".
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Rute bate e sacode as espigas com uma vara na medida em
que, por uma perspicaz meditação, naquilo em que estuda
das Escrituras, distingue corretamente o verdadeiro do
falso e a inteligência espiritual da letra. Colhidas e
sacudidas as espigas, estas são conduzidas até a casa
(Rute 2,18), quando aquilo em que Rute lê e
medita no interior de sua santa conversação prepara o
efeito da boa obra. A casa em que vivemos, de fato,
significa a nossa conversação. De onde que certo sábio
nos diz:
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"Se não te mantiveres firmemente no temor do Senhor,
depressa a tua casa será arruinada",
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isto é, será arruinada a casa da tua boa conversação.
Pode-se entender também que conduzir a messe colhida e
batida para dentro de casa significa que as coisas
conhecidas e comprovadas pelo estudo e pela meditação
como sendo boas são colocadas no interior da consciência
pelo afeto e pelo efeito da virtude e da boa obra.
Feitas todas estas coisas, vendo Noemi a grande graça
que sua nora havia encontrado junto a Booz, dá-lhe o
conselho pelo qual poderia encontrar junto a este homem
graça ainda maior. Isto significa que todo bom pastor,
quando adverte que a alma que a si lhe foi confiada se
robustece pela graça de Cristo, empenha-se
cuidadosamente para que possa conseguir junto a Ele ainda
maior graça. É movida por estas intenções que diz,
portanto, Noemi a Rute:
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"Minha filha, procurarei para ti descanso, e
providenciarei para que fiques bem. Este Booz, com
cujas moças estiveste junto no campo, é nosso parente
próximo, e esta noite padejará a cevada na sua eira.
Lava-te, pois, e unge-te, toma os teus melhores
vestidos e desce à eira. Não te veja este homem até
que tenha acabado de comer e beber. Quando for dormir,
observa o lugar em que dorme. Irás, levantar-lhe-ás
a capa com que se cobre da parte dos pés, e ali te
colocarás e deitarás. Ele mesmo te dirá o que deves
fazer".
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Ora, sendo Noemi o pastor da Igreja, Rute o seu
súdito e Booz o Cristo, a parentela próxima é a
bondade. Esta proximidade de parentesco não é resultado
da relação do sangue e da carne, mas da afinidade da
santidade. Por isto é que nos diz o Salvador:
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"Todo aquele que fizer a vontade de meu Pai, que está
nos céus, esse é meu irmão e irmã e mãe".
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O que também no-lo diz o bem aventurado João:
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"A todos os que o receberam, deu-lhes o poder de se
tornarem filhos de Deus, aos que crêem no seu nome, os
quais não do sangue, nem da vontade da carne, nem da
vontade do homem, mas de Deus nasceram".
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A noite em que Booz padejaria a cevada é a vida
presente, na medida em que é sob o véu dos mistérios e
dos sacramentos que nos damos conta da graça dos dons
celestes. É noite também porque entre nós um não pode
enxergar a consciência do outro, e cada um ignora o que o
outro pensa de si. É noite, porque
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"Vemos como por um espelho e em enigma, não ainda face
a face; caminhamos pela fé, não ainda a descoberto".
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Nesta noite Booz padejará a cevada na sua eira porque
Cristo não apenas purga diligentemente a santa Igreja de
seus perseguidores ou dos homens de má vontade, como
também purifica cada uma das almas fiéis de seus maus
pensamentos e da inteligência falsa e carnal das Sagradas
Escrituras. Rute se lava para encontrar a Booz (Rute
3,3) quando a alma fiel e obediente pelas suas
lágrimas se purifica da imundície da antiga culpa. É
por isto que Jeremias nos aconselha, dizendo:
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"Derrama como que uma torrente de lágrimas, dia e
noite, não te dês descanso, nem repouse a pupila dos
teus olhos".
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Os ungüentos de que Rute se utilizou após lavar-se
(Rute 3,3) são os diversos dons espirituais. Assim
como os ungüentos aliviam as feridas e as dores dos
corpos, assim também pelos dons sagrados as feridas ou as
dores das almas são curadas e aliviadas. Destes dons o
Apóstolo assim nos fala:
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"A cada um é dada a manifestação do espírito para
utilidade; a um é dado pelo Espírito a linguagem da
sabedoria, a outro a linguagem da ciência, a outro a
fé, a outro o dom das curas, a outro o dom de operar
milagres, a outro a profecia, a outro o discernimento dos
espíritos, a outro a variedade das línguas, a outro a
interpretação das palavras".
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Deles também Isaías nos fala, dizendo:
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"E repousará sobre Ele o Espírito do Senhor,
Espírito de sabedoria e de entendimento, Espírito de
conselho e fortaleza, Espírito de ciência e de
piedade, e será cheio do Espírito de temor do
Senhor".
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Estes dons, irmãos, são verdadeiramente ungüentos, e
recebê-los é a verdadeira unção. Mas também as
virtudes que se originam destes dons são chamados não
inconvenientemente de ungüentos, porque o seu exercício
é a unção perfeita que em nós consome os vermes dos
vícios e restitui à saúde os afetos feridos pelos
pecados.
Os melhores vestidos com que Rute se dirige à eira de
Booz (Rute 3,3) são as principais boas obras, as
seis obras de misericórdia, que consistem em dar pão aos
que têm fome, dar de beber aos que têm sede, recolher
os peregrinos, vestir os nus, curar os enfermos e visitar
os presos (Mat. 25,35-36). Quando alguém
alguém se reveste com estas obras, espiritualmente
procede como se se ornamentasse com vestidos puros e
preciosos.
Rute, portanto, depois de colher e bater as espigas,
lava-se, unge-se e veste-se (Rute 3,6) porque a
alma fiel, depois de ter recebido o conhecimento da
verdade pelo estudo e pela meditação das Sagradas
Escrituras, lava-se pela compunção, unge- se pela
emulação dos carismas espirituais e pelo exercício das
virtudes, e veste-se pela boa ação. Assim
ornamentada, Rute desce à eira (Rute 3,6), o que
significa humilhar-se a si mesma, depois dos benefícios
recebidos, na planície do coração. Se, de fato,
pelo orgulho o homem se eleva sobre si mesmo, pela
humildade retorna e desce para si mesmo. Há uma outra
humildade que precede a esta, pela qual nos são
conferidos primeiros benefícios; por esta da qual
tratamos agora nos são aumentados estes benefícios.
Noemi pede a Rute que levante a Booz a capa da parte dos
pés e que ali se coloque e se deite (Rute 3,4).
Levantar a capa da parte dos pés significa considerar,
investigando humildemente, o mistério da nossa
Redenção; ali co,ocar-se e deitar-se significa pedir
humilde e incessantemente a perpétua união com Cristo
pela fé em sua Encarnação. Que a alma, porém, não
presuma de modo algum tanta proximidade e familiaridade se
antes Booz não tiver se satisfeito com a comida e a
bebida e não tiver se deitado no leito da paz e da
quietude. Ora, a comida e a bebida de Cristo é,
conforme Ele próprio no-lo diz, fazer a vontade de seu
Pai. Isto é o que Ele mesmo declarou aos seus
discípulos:
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"Tenho um alimento para comer que vós não sabeis".
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"A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou
e cumprir a sua obra".
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Portanto, nenhuma alma ouse de modo algum discutir,
tratar ou compreender o mistério de Cristo ou pedir-lhe
a felicidade que dEle emana se primeiro, exibidas santas
obras, não o reconhecer contente e pacífico para
consigo. De fato, assim diz a Escritura:
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"Que comunicará o caldeirão para a panela? Quando se
colidirem, ela quebrará".
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E também o Apóstolo:
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"Aquele que come e bebe indignamente, come e bebe para
si a condenação".
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Daqui também ocorreu que Moisés, após a morte de
Nadab e Abiu, repreendendo a Eleazar e Itamar por não
terem comido o bode que havia encontrado queimado,
respondeu-lhe Aarão:
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"Hoje foi oferecida a vítima pelo pecado, e o
holocausto diante do Senhor. A mim, porém,
aconteceu-me o que tu vês; como podia eu comer desta
vítima, ou agradar ao Senhor nas cerimônias, com o
espírito entristecido?"
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E da oração também está escrito que
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"Aquele que afasta o seu ouvido para não ouvir a Lei,
sua oração será execrável".
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Quem quer que, portanto, de algum modo queira
aproximar-se de Deus, ou pedir-lhe algo, é
necessário que cuide primeiro de sua consciência,
exercitando-se, em sua presença, nas boas obras e
serenando-se a si mesmo pela humildade. Por meio destas
coisas Cristo como que se alimentará e saciará pela
comida e pela bebida e então poderemos encontra-Lo
descansado para conosco. A comida e a bebida que Booz
tomou, porém, não lhe foram dadas por Rute, mas eram
do próprio Booz, já que nossas obras são um dom de
Cristo, e não pertencem à nossa faculdade, mas à
graça celeste, conforme mensina a Epístola aos
Romanos, quando nos diz:
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"Não depende do que quer, nem do que corre, mas de
Deus, que usa de misericórdia".
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Deitada aos pés de Booz, "ele mesmo", explica Noemi
a Rute,
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"te dirá o que deves fazer".
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Isto se repete sempre que, fazendo obedientemente aquilo
que nosso prelado nos preceitua, quanto ao demais a
unção de Cristo
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"nos ensina de todas as coisas".
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Vendo Rute deitada aos seus pés, Booz louva-a por
não ter buscado os jovens (Rute 3,10). É assim
também que Cristo louva a alma que com fidelidade se lhe
aproxima, não seguindo os demônios ou os homens
réprobos, hábeis e prontos para o mal.
Agora, portanto, irmãos caríssimos, retornemos a nós
mesmos e de tudo isto procuremos diligentemente
aprofundarmo-nos no conhecimento da verdade,
inflamarmo-nos ao amor da bondade, incentivarmo-nos ao
exercício da virtude e formarmo-nos ao efeito da boa
obra, para que possamos merecer o prêmio da salvação
pela renúncia de nossas maldades passadas e das sugestões
do demônio.
Sigamos nosso pastor, imitando-o nas coisas que ele
fizer com retidão. Unamo-nos a ele, amando-o
verdadeiramente. Obedeçamo-lo, cumprindo com empenho
tudo o que ele nos preceitua. Habitemos com ele em
Belém, honestamente convivendo com ele na santa
Igreja.
Colhamos a batamos as espigas no campo de Booz, e
levemo-las à nossa casa, estudando, meditando e
recordando em nossa memória ou nossa consciência,
conforme dissemos acima, as palavras de nosso Salvador.
Não respiguemos em campo alheio, repelindo as más
asserções dos hereges.
Lavemo-nos, então, deplorando nossos crimes; unjamo-
nos, emulando os dons espirituais e seguindo as virtudes,
principalmente a caridade, conforme no-lo ensina o
Apóstolo. Vistamo-nos, entregando-nos à execução
das seis obras de misericórdia. Desçamos, finalmente,
à eira, humilhando-nos em nosso coração.
Levantemos a capa com que Booz se cobre da parte dos pés
investigando, por uma humilde consideração, o mistério
de nossa Redenção; e ali, pela Paixão que foi o seu
fim, nos coloquemos e deitemos, pedindo-lhe humildemente
e sem cessar que nos conceda que nos unamos a Ele.
Insistindo deste modo dEle obteremos, assim como Rute o
obteve de Booz, receber primeiro, pela fé na santa e
indivídua Trindade, três módios de cevada (Rute
2,17); depois, pela perfeição de toda santidade,
mais seis módios (Rute 3,15), e finalmente nos
será concedido que nos unamos a Ele no tálamo nupcial
(Rute 4,13), no mundo pelo gozo da doçura
interior, no céu pela glória da bem aventurança.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus
Cristo, Nosso Senhor, que é Deus, bendito pelos
séculos.
Amén.
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