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"Tendo Jesus tomado o vinagre, disse:
`Tudo está consumado'.
E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito".
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As palavras que propusemos, caríssimos, são curtas mas
excelentíssimas, pois são as que nos descrevem a
consumação da nossa redenção. Na morte de Cristo
consumaram-se todos os enigmas das figuras antigas que a
Ele se referiam, e todos os vaticínios dos profetas que
sobre Ele profetizaram. De onde que o próprio Senhor
disse aos apóstolos:
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"Eis que vamos para Jerusalém, e será cumprido tudo o
que está escrito pelos profetas relativo ao Filho do
homem".
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"Tudo está consumado": na morte de Cristo, segundo a
significação alegórica, consumou-se Deus ter feito
Eva do lado de Adão que dormia (Gen. 2,
21-22), pois isto significava que do sangue que
fluía do lado de Cristo morto seria redimida a santa
Igreja. Consumou-se Caim pela inveja ter matado a
Abel seu irmão (Gen. 4, 3-8), pois isto foi
sinal de que o povo judeu, pela sua inveja, teria
entregue Cristo para ser crucificado por Pilatos.
Consumou-se, segundo a mística significação,
Abraão ter colocado Isaac seu filho sobre um altar
coberto de lenha para oferecê-lo a Deus (Gen. 22,
1-4), pois isto figurava que o gênero humano
ofereceria a Cristo, nascido de si segundo a carne, na
cruz. Consumou-se, segundo a mesma significação,
Deus ter libertado os filhos de Israel da servidão do
Egito na morte do Cordeiro Pascal (Ex. 12,
1-13), pois isto designava que os israelitas
espirituais seriam libertados do jugo dos demônios pela
morte de Cristo. Consumou-se Moisés ter adoçado as
águas amargas com sua vara (Ex. 15, 22-25) e
feito jorrar as águas da pedra (Ex. 17, 1-7),
pois isto significava que Cristo, pela amargura de sua
morte, converteria para nós a austeridade da Lei em
doçura, e que de si, verdadeira pedra, faria jorrar
para nós as águas espirituais. Consumou-se o bode
expiatório ter levado para o deserto os pecados do povo
(Lev. 16, 20-22), pois isto era símbolo de
Cristo que tomaria os nossos pecados. Consumou-se a
mulher de Sarepta ter juntado duas madeiras (I Reis
17, 12), pois isto expressava que a gentilidade
haveria depois de receber a fé na paixão de Cristo.
Consumou-se o anjo Rafael ter ligado, nas núpcias de
Tobias, o demônio pelo fel retirado do peixe (Tobias
8, 3), pois isto significava que Cristo, tendo
bebido fel e amargurado pela morte, venceria o demônio.
Consumaram-se os vaticínios dos profetas. Consumou-se
o que Moisés disse:
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"É maldito de Deus aquele que está pendente do
lenho".
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Por isto é que o Apóstolo diz que
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"Cristo remiu-nos da Lei, feito maldição por nós,
porque está escrito:
`Maldito todo aquele que está pendurado no lenho'".
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Consumou-se o que disse Davi:
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"Deram-me fel por comida, e em minha sede deram-me
vinagre para beber".
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Consumou-se também o vaticínio de Isaías, quando
disse:
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"Eu o feri por causa da maldade de meu povo";
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e também:
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"Foi oferecido porque Ele mesmo o quis".
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Muitos enigmas de figuras se consumaram, caríssimos, e
consumaram-se muitas predições de profetas que figuravam
e anunciavam a morte de Cristo. Quem, porém, poderá
enumerar a todos, e para que isto aproveitaria? Tudo
está consumado. Tudo o que antes da morte de Cristo
convinha fazer consumou-se na morte de Cristo.
A morte de Cristo é para nós, portanto, a perfeita
restauração da vida, é para nós a reconciliação
divina. A morte de Cristo é a remoção da culpa, a
morte de Cristo é a atribuição da justiça, a morte de
Cristo é para nós o fechamento do inferno, a morte de
Cristo é a abertura do céu, a morte de Cristo é a
destruição da pena, a morte de Cristo é a
recuperação da glória. Portanto,
Está consumado tudo o que pertence à extensão do mal;
está consumado tudo o que pertence à consumação do
bem. Está consumado o que foi predito pelo justo
Simeão (Luc. 2, 25-35). Está consumado o
que profetizou Caifás, ainda que fosse réprobo (Jo.
11, 49-52). Está consumado o que o detestável
Judas prometeu aos fariseus (Mc. 14, 10-11).
Está consumado o que Pilatos, injusto juiz,
injustamente julgou que deveria ser feito (Luc. 23,
24). Está consumado o que o infeliz judeu escolheu
para a sua própria perda (Mt. 27, 25). Está
consumado o que Deus proveu para nossa utilidade. Está
consumada a Lei. Está consumada a profecia. Está
consumado o anúncio angélico. Está consumado o que os
justos esperaram no mundo. Está consumado o que depois
aguardaram nos infernos. Está consumado que, santamente
vivendo, mereceram possuir o céu. Portanto,
Está consumada em nós a justiça pela graça, e pela
justiça será consumada a glória. A justiça está
consumada no efeito, a glória está consumada na causa.
Todos, de fato, os que verdadeiramente crêem em Cristo
já são justos, bem aventurados na causa, bem
aventuráveis no efeito. O apóstolo Paulo nos fala da
causa desta bem aventurança quando assim se refere a
Cristo:
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"Consumado, tornou-se para todos os que lhe obedecem
causa de salvação eterna".
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"E se o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dos
mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou a Jesus
Cristo dos mortos, também dará vida aos vossos corpos
mortais, por meio de seu Espírito, que habita em
vós".
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Corretamente diz, portanto, o Evangelho que
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"Tendo Jesus tomado o vinagre, disse:
`Tudo está consumado'.
E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito".
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O gosto do vinagre significa o amargor da morte, a
inclinação da cabeça a dignidade da humildade, enquanto
que a rendição do espírito é a consumação da
redenção humana. Na morte de Cristo, pois,
consumaram-se todas as coisas, na medida em que no
presente consuma-se a justiça e no futuro
consumar-se-á a glória. Quando?
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"Quando este corruptível se revestir de
incorruptibilidade, e quando este mortal se revestir de
imortalidade";
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Quando, de fato,
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"Aparecer Cristo, que é a vossa vida, então também
vós aparecereis com Ele na glória".
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Porém, caríssimos, não podemos descrever
suficientemente, nem louvar dignamente a paixão de
Cristo e a redenção do gênero humano. Voltemos, por
isso, para nós mesmos o nosso discurso e examinemos se,
no que comporta a nossa pequena medida, seguimos os
vestígios de Cristo tolerando o mal. E já que hoje
celebramos a solenidade da santa cruz e fazemos lembrança
da Paixão do Senhor, parece justo que nos exortemos
mutuamente a respeito da paciência:
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"Se, de fato, sofremos com Ele, reinaremos com Ele;
e se participarmos de suas dores, estaremos também juntos
nas suas consolações".
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O que a esposa, considerando atentamente, diz:
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"O meu amado é para mim como um ramalhete de mirra,
colocado sobre o meu peito".
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Procuremos, portanto, entrar pela porta estreita, subir
pelo caminho árduo, porque não há em outro lugar
entrada para a justiça, nem subida para a glória.
Caríssimos, estando já consumado para nós neste livro
este centésimo sermão, consideremos também com ele
consumado este mesmo livro. Procuremos consumar,
portanto, as coisas que estão escritas neste sermão e
neste livro, crendo, esperando e amando, para que
mereçamos chegar à glória suprema.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus
Cristo, nosso Senhor, que é Deus bendito, pelo
séculos dos séculos.
Amén.
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