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Diletíssimos irmãos, Cristo Jesus, Nosso
Salvador, esposo da santa Igreja universal, louva
elegantemente no Cântico dos Cânticos o variado e
múltiplo fruto de sua esposa. Ele deseja, por meio
deste louvor, incentivá-la e inflamá-la a coisas ainda
maiores. Dela Ele diz, em algum lugar, o seguinte:
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"Jardim fechado és, irmã minha esposa, jardim
fechado, fonte selada. Tuas procedências são um
paraíso de romãs com árvores frutíferas. Os cipres
com o nardo, o nardo com o açafrão, a cana aromática e
o cinamomo, com todas as árvores do Líbano; a mirra e
o aloés, com todos os primeiros ungüentos".
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Em todas estas coisas o esposo se alegra e se congratula
com a esposa, e o bem da esposa é louvado com elegância
pelo esposo. A própria santa Igreja no Cântico dos
Cânticos é chamada por vários nomes. Algumas vezes,
efetivamente, é chamada de esposa, outras de amiga, de
irmã, de pomba, de bela ou de formosa. Ela é, de
fato, esposa pela fé, amiga pelo amor, irmã pela
participação da herança celeste, pomba pela
simplicidade, formosa pela doçura da justiça.
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"Jardim fechado és, irmã minha esposa, jardim
fechado".
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Pelo jardim da santa Igreja entendemos a sua santa
conversação, da qual incessantemente vemos originar-se
o rebento das virtudes e das boas obras. Corretamente
este jardim é dito fechado, por ser defendido em toda a
sua volta pela forte guarnição da disciplina, para que
não aconteça que o inimigo traiçoeiro irrompa em algum
lugar e arranque e leve a plantação da justiça. Este
jardim é nomeado abertamente por duas vezes, para com
isto designar manifestamente seu duplo fruto, a saber, a
fé e a obra, ou os casados e os continentes, ou também
a distinção de Deus e do povo, ou certamente a vida
ativa e a contemplativa. Está, portanto, escrito:
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"Jardim fechado és, irmã minha esposa, jardim
fechado, fonte selada".
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Pela fonte deste jardim entende-se a sabedoria celeste.
Esta fonte, como para irrigar o paraíso, divide-se em
quatro rios, na medida em que a divina sabedoria se
estende sobre toda a Igreja pela pregação dos quatro
evangelhos. Este jardim também no-lo é corretamente
apresentado como selado, porque a sabedoria de Deus está
velada nas Sagradas Escrituras por muitos e diversos
enigmas. Por isto é que o Apóstolo Paulo diz:
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"Pregamos a sabedoria de Deus no mistério, que está
encoberto, que Deus predestinou antes dos séculos para a
nossa glória".
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Este é aquele livro selado, do qual diz Isaías:
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"Quando o derem a um homem que sabe ler, e lhe
disserem:
`Lê este livro';
ele responderá:
`Não posso, porque está selado'".
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Trata-se também do mesmo livro da vida, aquele sobre o
qual o bem aventurado João afirma ter visto
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"Na mão direita do que estava sentado sobre o trono, um
livro escrito por dentro e por fora, selado com sete
selos, que ninguém podia, nem no céu, nem na terra,
nem debaixo da terra, abrí-lo, nem olhar para ele,
senão o leão da tribo de Judá, a estirpe de Davi,
que venceu e era como um Cordeiro que parecia ter sido
imolado, o qual tinha sete chifres e sete olhos, que são
os sete espíritos de Deus mandados por toda a terra".
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Somente Ele pôde abrir esta fonte ou este livro.
Somente Ele pôde também, com todo o direito, dizer
aos seus discípulos:
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"A vós é concedido conhecer o mistério do Reino dos
Céus".
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Por isto é que está também escrito em outro lugar dEle
e de seus discípulos:
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"Abriu-lhes o entendimento, para que compreendessem as
Escrituras".
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Ninguém, portanto, poderá provar o gosto desta fonte
salutar senão aquele a quem o Salvador, o único que a
abre a a fecha, dignar-se abrir o seu selo. Mas não
poderá também possuir os frutos deste jardim aquele a
quem esta fonte não fornecer uma salutar irrigação, o
próprio Salvador demonstrando que abre a alguns e fecha a
outros o rio desta fonte, quando diz aos seus
discípulos:
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"A vós é concedido conhecer o mistério do Reino dos
Céus, mas a eles não lhes é concedido; por isso lhes
falo em parábolas, para que vendo não vejam, e ouvindo
não ouçam".
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E, em outro lugar, diz ao Pai:
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"Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra,
porque escondestes estas coisas aos sábios e aos
prudentes, e as revelaste aos pequeninos".
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O jardim, portanto, é fechado, e a fonte é selada.
O jardim é fechado pela disciplina, a fonte é selada
pela alegoria. O jardim é fechado para que nela não
irrompa o inimigo traiçoeiro; a fonte é selada para que
o estranho não beba dela. O jardim é a justiça; a
fonte, a sabedoria. O esposo fala primeiro do jardim
florescente e da fonte irrigante. Depois expõe mais
amplamente o fruto do florescimento e da irrigação,
dizendo:
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"Tuas procedências são um paraíso de romãs com
árvores frutíferas".
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Procedem da santa mãe Igreja os seus partos
espirituais. Nesta passagem, porém, mencionam-se
principalmente os mártires, designados pelo nome de
romãs, os quais são admitidos no céu saindo do mundo e
procedendo da Igreja. A Igreja não os perde, mas os
envia e confia ao Cristo. As romãs, pelo seu suco,
são azedas em seu interior e contém sementes rubras.
São, por isto, figuras dos mártires, os quais podem
ser ditos rubros não apenas exteriormente, como também
interiormente, porque há dois gêneros de martírio, um
interior e outro exterior, um no coração e outro na
carne, e de nada vale o que é exterior se falta o que
deve ser interior. De fato, de nada aproveita a paixão
da carne a quem falta a compaixão do coração, conforme
está escrito:
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"Toda a glória do rei provém do interior".
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As romãs que procedem deste jardim são comparadas ao
paraíso porque assim como o paraíso é repleto de
diversas árvores, assim também a santa Igreja é
repleta e densamente ornamentada de inúmeros mártires.
Quem, de fato, entre os calculadores mais peritos
poderá compreender ainda que apenas o número talvez
centenário ou milenário dos mártires? Dos quais,
conforme clama a Escritura, alguns foram mortos em
ferros, outros queimados pelas chamas, outros ainda
açoitados pelo chicote, afogados na água, escalpelados
vivos, perfurados pelos narizes, atormentados no
patíbulo, aprisionados às correntes, outros tiveram
suas línguas cortadas, foram mortos por apedrejamento,
sofreram frio e fome, tiveram cortadas mãos e partes do
corpo ou foram entregues, por causa do nome do Senhor que
levavam, como espetáculo ao desprezo do povo (Heb.
11,35-38).
Pode ser causa de admiração como o martírio se compara
ao paraíso, se o martírio possui amargura enquanto que o
paraíso possui alegria. Isto não será causa de
espanto, porém, se examinarmos o assunto com mais
diligência. Todos os gêneros de tormentos foram causa
de alegria para os santos mártires, e tudo para eles era
doce. O que o poder adverso lhes podia infringir pelo
nome da cristandade era tido por eles como pouco, conforme
está escrito dos apóstolos:
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"Saíram os apóstolos da presença do Conselho
contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas
pelo nome de Jesus".
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E o Apóstolo Paulo, considerando quão grande dom era
para ele poder sofrer por Cristo, diz, escrevendo aos
Filipenses, que
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"A vós é dado por amor de Cristo não somente que
creiais nele, mas também que sofrais por ele".
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Diz ainda o Cântico dos Cânticos:
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"De ti procede um paraíso de árvores frutíferas".
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Os santos mártires têm frutos no mundo e têm frutos no
céu. No mundo têm os frutos da justiça, no céu têm
os frutos da glória. No mundo, os frutos do mérito;
no céu, os frutos do prêmio.
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"Os cipres com o nardo, o nardo com o açafrão".
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O cipre é uma erva aromática do Egito, de semente
branca e odorífera, que se cozinha no óleo para depois
espremer-se. Dele se prepara um ungüento chamado real.
O cipre, portanto, é o dom de reinar. Designa o
discernimento, e pode-se entender com certeza que ele
significa convenientemente os reitores de almas.
O nardo é uma erva de pouca estatura; designa, por
isso, os súditos humildes.
O açafrão, sendo de cor dourada, designa corretamente
aqueles que ensinam resplandecendo de sabedoria celeste.
Pensamos que as Escrituras nos apresentam aqui os cipres
no plural, enquanto que todos as demais coisas que se lhe
seguem no-las são apresentadas no singular, para que por
isto possamos entender que qualquer prelado deve ser,
entre todos, rico de todas as virtudes e boas obras. Eis
o motivo pelo qual o bem aventurado Agostinho preceituava
sobre o prelado, dizendo:
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"Ofereça-se para com todos como exemplo de boas obras.
Corrija os inquietos, console os pusilânimes, socorra
os enfermos, seja paciente para com todos. Siga a
disciplina com alegria, mas saiba também impô-la com
respeito. E, embora ambas estas coisas sejam
necessárias, todavia mais deseje ser amado do que ser
temido".
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Ensinados por estas palavras do bem aventurado
Agostinho, os prelados devem dedicar-se a todos os que
lhe forem confiados com toda a bondade, e esforçar-se
para que, pela plenitude de suas virtudes, feitos tudo
para todos, aproveitem a todos. Os cipres com o nardo
são, portanto, os prelados quando se submetem
humildemente aos preceitos divinos juntamente com os seus
súditos. Por isso é que está escrito:
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"Se te constituírem para governar, não te
ensoberbeças por isso; permanece entre eles como um deles
mesmos".
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Quando, de fato, os santos reitores, conforme o devem,
dizem o que é reto e juntamente com os seus súditos fazem
humildemente o que dizem, verdadeiramente então serão
cipres com nardo.
O nardo está com o açafrão quando as multidões dos
humildes súditos, aproximando-se dos santos doutores
resplandecentes de sabedoria celeste, ouvem de boa vontade
sua doutrina salutar e, crendo e operando com fidelidade,
assentem às suas palavras, cumprindo o preceito do
Apóstolo Tiago, quando diz:
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"Seja todo homem pronto para ouvir, tardo porém para
falar e tardo para se irar".
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Nestes também cumpre-se o testemunho de Moisés, que
diz destes homens:
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"Os que se aproximam dos pés do Senhor, recebem de sua
doutrina".
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Os pés do Senhor, de fato, são os santos doutores,
que pelo seu ensino conduzem o coração dos que os ouvem.
Recebem por meio deles a doutrina do Senhor aqueles que
se aproximam com humildade de seus pés, porque está
escrito:
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"Aquele que anda com os sábios, será sábio; o amigo
dos insensatos, porém, tornar-se-á semelhante a
eles".
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Continua o Cântico:
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"A cana aromática e o cinamomo".
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A cana é uma pequena árvore aromática, de casca
robusta e purpúrea, útil para curar as doenças das
vísceras. Pode significar, portanto, todos os que pelo
temor de Deus, que é princípio da sabedoria, se
arrependem de seus pecados e que, pela verdadeira
confissão, purificam as vísceras de seus corações
espirituais do pernicioso amontoado dos torpes
pensamentos. De fato, os que se arrependem
verdadeiramente se tornam como aqueles que pela cana
aromática são curados das doenças de suas vísceras
quando, pela perfeita confissão do que se oculta em suas
mentes, se purificam de sua maldade. São, portanto,
cana aromática todos aqueles que, pela graça do
arrependimento, da confissão, ou mesmo de admoestações
mais eficazes, expelem as doenças interiores dos pecados
ocultos, tanto em si mesmos como nos outros.
O cinamomo é uma árvore pequena, odorífera, doce, de
cor cinzenta, duas vezes mais útil para uso medicinal do
que a cana aromática. Chama-se cinamomo porque sua
casca se forma ao modo da cana. E porque a cana, quando
cortada para este fim, costuma emitir sons na boca das
crianças, pode-se designar pelo cinamomo a confissão
dos santos sacerdotes, como Jerônimo, Gregório,
Agostinho e Ambrósio, e todos os que foram como eles.
De fato, na medida em que estes não apenas creram pelo
coração para a justiça, mas também pela boca
confessaram para a salvação (Rom. 10,10),
estendendo para longe a escuta da salvação, podem- se
entender pelo cinamomo, cuja casca se forma circunflexa ao
modo da cana sonora, os santos confessores. Assim como,
portanto, entendemos pela cana aromática os arrependidos
e aqueles que, pela verdadeira confissão, expelem de
seus corações as doenças dos pecados, assim também,
pelo cinamomo, entendemos os santos confessores.
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"Com todas as árvores do Líbano".
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Líbano, traduzido, significa a ação de alvejar. As
árvores do Líbano, ademais, se destacam entre todas as
árvores pelo modo como crescem para o alto. Assim é que
encontramos, na profecia de Ezequiel, que para poder
descrever-se a sublimidade, ou melhor, a soberba de
Assur, esta foi comparada às árvores do Líbano:
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"Eis Assur como o cedro no Líbano, formoso pelos
ramos, frondoso pela folhagem e excelso pela altura, e
entre as suas densas ramadas elevou a sua copa".
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Pelas árvores do Líbano, portanto, pode-se
convenientemente entender o coro das santas virgens, que
se erguem para o alto pela elevação de sua pureza, e
que, pelos dons da mesma, mais alto do que os demais se
aproximam dos bens celestes. De fato, a perfeição das
virgens é mais celeste do que terrena. Sua vida é mais
angélica do que humana, pois a virgindade tem como que um
parentesco com os anjos. As árvores do Líbano são as
santas virgens como Inês, Cecília, Ágata, Lúcia e
todas as outras cujos nomes não podem ser aqui
enumerados. A santa mãe Igreja, com todas as plantas
precedentes, possui também as árvores do Líbano,
porque juntamente com os santos mencionados possui também
as santas virgens, alvejantes pela sua pureza e
elevando-se sublimemente aos bens celestes.
Estas duas espécies possuem tal amargor que quando se
ungem os corpos com elas, ficam protegidos da
putrefação. Como a mirra, porém, possui maior força
do que o aloés, por causa disto entendemos por ela a
continência e pelo aloés a abstinência. A
abstinência, de fato, é pesada, mas a continência é
ainda mais pesada. A mirra e o aloés repelem os vermes e
a podridão dos corpos; a continência e a abstinência
repelem as corrupções dos vícios do coração e do
corpo. Ou, mais corretamente, entendemos melhor nesta
passagem pela mirra e pelo aloés os próprios continentes
e abstinentes que se exercitam a si mesmos por estas
virtudes.
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"Com todos os primeiros ungüentos".
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Os primeiros ungüentos são os dons principais, isto
é, a caridade e a profecia. O apóstolo Paulo, após
enumerar os dons espirituais, acrescenta:
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"Vou mostrar-vos um caminho ainda mais excelente.
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos,
se não tivesse caridade, seria como o bronze que soa, ou
o címbalo que tine; nada seria, nada me aproveitaria".
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E a seguir, pouco depois:
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"Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a
caridade, mas a maior delas é a caridade".
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"Segui a caridade", diz ainda São Paulo, "emulai
os dons espirituais" (I Cor. 14, 1), isto é,
amai os dons divinos.
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"Sobretudo, porém, a profecia",
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isto é, o ensino. Assim, em primeiro lugar São
Paulo nos recomenda a caridade; recomenda, depois, que
profetizemos, isto é, que ensinemos, pois o ensino é
aquilo que mais próximo reside do fruto da caridade.
Caríssimos, estas são as riquezas espirituais da santa
mãe Igreja, deste jardim tão fértil, desta fonte da
qual emana tanta riqueza. Imitemos, caríssimos, a mãe
Igreja em todas estas coisas, para que com ela mereçamos
contemplar o esposo em seu esplendor, e com a esposa
alcancemos a glória no céu. Tenhamos também nós um
paraíso de romãs, padecendo constantemente adversidades
por Cristo e compadecendo-nos cotidianamente dos
oprimidos. Tenhamos cipres, regendo-nos com
discernimento. Tenhamos o nardo, submetendo-nos
humildemente aos nossos prelados; o açafrão, expelindo
nossos pecados pelo pranto e pela confissão de nossos
corações; o cinamomo, entoando ação de graças pelos
benefícios recebidos; as árvores do Líbano, exibindo
obras de pureza; a mirra, contendo-nos dos afagos da
carne; o aloés, abstendo-nos também das comidas
lícitas; e todos os primeiros ungüentos, pela posse dos
principais dons.
Esta é a via, por ela caminhemos, para que possamos
chegar à felicidade que possuem milhares de santos.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus
Cristo, Nosso Senhor, que é Deus, bendito pelos
séculos.
Amén.
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