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"No princípio criou Deus o céu e a terra".
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No primeiro dia fêz Deus a luz primordial, no segundo o
firmamento, no terceiro congregou as águas inferiores em
um único lugar, no quarto fêz os luminares, no quinto
as aves e os peixes, no sexto os animais. Criado,
pois, o mundo, ordenado e ornamentado, e preparado
primeiro tudo o que fosse necessário, cômodo e
agradável ao corpo do homem, naquele mesmo sexto dia fêz
também Deus o homem, constituindo-o senhor de tudo e
possuidor de todas as coisas. Deste modo, embora tenha
sido criado posteriormente no tempo, por causa de sua
dignidade, o homem é anterior e superior a todas as
demais criaturas. Deus fêz, efetivamente, o mundo
sensível por causa do homem, para que o mundo estivesse
submetido ao seu corpo, o corpo ao espírito, e o
espírito ao Criador.
Preparou também o Criador dois bens para o homem, visto
ele ter sido feito de uma dupla natureza. Um destes bens
era visível, o outro invisível; um era corporal, o
outro espiritual; um transitório e outro eterno, ambos
plenos e perfeitos em seus gêneros. O primeiro destes
bens foi feito para o corpo, o segundo para o espírito,
para que pelo primeiro os sentidos do corpo fossem
favorecidos à alegria e pelo segundo os sentidos da alma
se saciassem pela felicidade. Para o conforto do corpo e
para a alegria do espírito, os bens visíveis haviam sido
feitos para o corpo e os invisíveis para o espírito. O
primeiro destes bens foi concedido por Deus para que fosse
gratuitamente possuído; o segundo foi prometido para que
fosse buscado pelo mérito. O bem que era visível foi
concedido gratuitamente, para que, pelo dom gratuito,
ficasse demonstrada a excelência da promessa; e o que era
invisível foi proposto para que fosse buscado pelo
mérito, para que pudesse também ser demonstrada a
fidelidade de quem o prometia. Depois que o homem,
porém, obscurecido pelas trevas do pecado, perdeu o olho
da contemplação, a totalidade das coisas visíveis não
somente continuou a lhe oferecer o amparo para a
sustentação do corpo, como também passou a lhe prestar
o auxílio para a apreensão do conhecimento divino. De
fato, está escrito:
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"As coisas invisíveis de Deus, depois da criação do
mundo, tornaram-se visíveis ao entendimento pelas coisas
que foram feitas".
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Três são as coisas invisíveis de Deus: a potência,
a sabedoria e a benignidade, e destas três procede tudo o
que foi feito. A potência cria, a sabedoria governa, a
benignidade conserva. Estas três coisas, porém, assim
como em Deus são inefavelmente apenas uma única, assim
também não podem ser separadas nas operações exteriores
de Deus. Nelas a potência divina cria pela benignidade
com sabedoria, a sabedoria governa pela potência
benignamente e a benignidade conserva pela sabedoria com
poder. A imensidade das criaturas manifesta a potência
divina, a beleza a sua sabedoria, e a utilidade a sua
benignidade. A criação das coisas visíveis é um
grande dom de Deus e um grande bem para homem pois por
elas o corpo é sustentado e a alma, iluminada pela
contemplação das mesmas, é admiravelmente sublimada ao
conhecimento, à admiração e ao amor de seu Criador.
Efetivamente, o Deus escondido chega à notícia do
homem de quatro maneiras, das quais duas são interiores e
duas são exteriores. Interiormente, pela razão e pelo
desejo; exteriormente, pela criatura e pela doutrina. A
razão e a criatura pertencem à natureza, o desejo e a
doutrina pertencem à graça.
Ditas estas coisas, e tendo mencionado brevemente a obra
dos seis dias, vejamos que ensinamentos morais se
encontram escondidos nas mesmas e investiguemos com
diligência o que nos poderá ser de proveito para a nossa
edificação.
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"No princípio criou Deus o céu e a terra".
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O céu é o espírito, a terra é o corpo. Pelo céu,
de fato, pode-se convenientemente entender o espírito do
homem, formado à imagem e semelhança de Deus, criado
para o conhecimento, para o amor e para a busca e a posse
dos bens celestes. Pela terra entendemos o corpo do
homem, que é de terra, e à terra muito brevemente
haverá de retornar, conforme se encontra escrito:
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"Tu és terra, e à terra hás de voltar".
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Céu, que na língua latina se diz `coelum', vem de
`celare', que significa ocultar. O céu, assim, é o
espírito, porque ao seu bel prazer nos oculta as coisas
que há nele, do mesmo modo como também está escrito:
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"Qual dos homens conhece as coisas que são do homem,
senão o espírito do homem, que está nele?"
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A terra, por sua vez, é o corpo, porque cotidianamente
esmagado, - `teritum' na língua latina -, até que
à terra retorne. O céu, também, é o espírito e a
terra é o corpo porque assim como o céu é mais sublime e
mais sólido do que a terra, assim também o espírito é
mais excelente do que o corpo.
O mundo, em seu caos primordial, é o homem em sua
iniqüidade. Assim como, de fato, no mundo ainda
envolvido no caos primordial não havia nem luz nem
aparência de ordem futura, assim também para o homem
submetido à iniqüidade nem a luz brilha pelo conhecimento
da verdade, nem a ordem se faz presente pela disposição
da eqüidade.
Em meio ao caos Deus cria, no primeiro dia da vida
espiritual, a luz primordial, quando, pelos raios de uma
luz interior, ilumina o pecador imerso na confusão de
seus diversos pecados, para que conheça não só o que
ele é como também e o que deve ser, e se disponha a si
mesmo segundo a norma do reto viver. A luz primordial
significa, portanto, o conhecimento do pecado.
O firmamento entre as águas superiores e inferiores é o
discernimento entre os vícios e as virtudes. As águas
inferiores, de fato, designam os vícios, e as águas
superiores as virtudes. Coloca-se um firmamento entre
ambas as águas quando pela virtude do discernimento
distingüem-se as virtudes dos vícios e os vícios das
virtudes.
Sucede-se depois a congregação das águas que estavam
sob o firmamento. A congregação das águas significa o
domínio dos vícios. Os vícios, de fato, não podem
nesta vida ser inteiramente evacuados ou eliminados dos
recônditos da natureza humana por causa de seus aguilhões
que residem naturalmente em nós; devem, portanto, o
quanto for possível, mediante o auxílio da graça
divina, ser dominados, diminuídos e reduzidos a um
único lugar, para que não se disseminem pelo todo, tudo
ocupem e corrompam, impedindo nossos sentidos da busca da
verdade, nossos desejos do exercício da virtude e nossos
membros da exibição da boa obra. Assim como, de fato,
a terra ocupada pelas águas não pode germinar, assim
nós, imersos nos vícios, não entenderemos o sentido da
busca da verdade, nem desejaremos o exercício das
virtudes ou poderemos usar de nossos próprios membros para
a exibição das boas obras. As águas, congregadas em
um só lugar, fazem com que o ar se torne claro e aquecido
e com que a terra germine porque, dominados os vícios, a
nossa alma brilha pelo conhecimento, aquece-se pelo
amor, e a carne frutifica pela boa ação.
A criação dos luminares significa, removida a nebulosa
cegueira da ignorância, a perfeita visão da verdade. O
Sol pode significar o conhecimento das coisas que
pertencem à Santa Igreja; as estrelas o conhecimento
das coisas que pertencem a qualquer criatura ou a qualquer
alma fiel.
Os peixes, que vivem no mundo inferior, isto é, nas
águas, significam as solicitudes das boas ações,
exercidas entre as ondas escorregadias da vida. As aves,
que voam nas alturas, significam a contemplação dos bens
celestes, pela qual nos elevamos das coisas inferiores às
superiores.
Os animais terrestres significam os sentidos de nosso
corpo, pois os animais tem os sentidos em comum com os
homens. Ademais, quando nossos sentidos corporais,
antes corrompidos pela vaidade, são restaurados pela
graça divina, eles se tornam em nós como os animais
feitos por Deus no sexto dia da obra da criação.
Realizadas que foram todas estas coisas, por último é
criado o homem à imagem e semelhança de Deus pois,
ordenadas desta maneira em nós todas as coisas pelas
virtudes e pelas boas obras, o pecador, que antes era
deforme e dessemelhante pela culpa, torna-se conforme e
consemelhante a Deus pela justiça. O homem, assim
criado, é finalmente transportado para o paraíso das
delícias, pois o pecador regenerado no mundo pela graça
é sublimado ao céu pela glória.
Eis, irmãos caríssimos, um outro mundo. Tanto este
mundo maior como o mundo sensível foram criados antes de
todos os dias. Nos três primeiros ambos foram ordenados
e nos três seguintes ambos foram ornamentados.
Vejamos, pois, caríssimos, se assim como possuímos a
existência pela criação, também possuímos a
ordenação pela graça, e o ornamento pela excelência da
vida. Vejamos se existe em nós a luz primordial pelo
conhecimento dos nossos pecados, se existe o firmamento
pelo discernimento dos vícios e das virtudes, se as
águas se congregam pelo domínio dos vícios, se as
árvores e a erva verde germinam pelo exercício das
virtudes. Vejamos também se há em nós luminares pelo
conhecimento da verdade, se há peixes pela exibição das
boas obras, aves pelo vôo da contemplação, animais por
uma sensualidade já imaculada. Vejamos se em nós a
dignidade humana foi restaurada pela justiça, aquela
mesma que havia sido foi deformada pela culpa, e se,
finalmente, podemos constatar que tudo quanto fizemos
para que possamos descansar com Deus e em Deus pela boa
consciência.
Se for tudo assim, também pela glória poderemos nelas
descansar, para que se cumpra em nós o que se encontra em
Isaías, onde se diz:
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"De sábado em sábado, toda a carne virá prostrar-se
diante de mim e me adorará, diz o Senhor".
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E que, para tanto, digne-se vir em nosso auxílio
Jesus Cristo, Senhor Nosso, que é Deus, bendito
por todos os séculos.
Amén.
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