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"Graça e glória dará o Senhor".
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Caríssimos, o homem foi feito à imagem e semelhança de
Deus para isto: para que pudesse ser participante pela
graça daquele bem que Deus é por natureza. À imagem de
Deus foi feito segundo a razão, à semelhança de Deus
segundo o amor. À imagem segundo o conhecimento da
verdade, à semelhança segundo o amor da virtude. À
imagem segundo o intelecto, à semelhança segundo o
afeto. Deus artífice fêz assim a criatura à sua imagem
e semelhança para que, sendo feito à semelhança de
Deus, a Deus amasse e, conhecendo e amando, possuísse
a Deus, e possuindo pudesse ser bem aventurado, assim
como em um só elemento, a saber, o fogo, há duas
coisas diversas e distintas entre si, isto é, o
esplendor e o calor. Nem o esplendor é o calor, nem o
calor é o esplendor, porque o esplendor brilha e é
visto, enquanto que o calor arde e é sentido; nem o
esplendor arde ou é sentido, nem o calor brilha ou é
visto. Assim também na criatura humana a imagem e a
semelhança de Deus parecem ser diversas e de certo modo
distintas entre si, pois segundo aquele bem pelo qual foi
feito à imagem de Deus a própria criatura humana brilha
para o conhecimento e segundo aquele bem pelo qual foi
feito à semelhança de Deus aquece-se ao amor. Que,
porém, a imagem e a semelhança de Deus possam ser
tomadas segundo as precedentes distinções, os doutores o
declaram ao exporem as palavras do salmista, onde se lê:
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"Levanta sobre nós a luz do teu rosto, ó Senhor!
Infundiste a alegria no meu coração".
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Pela luz que se levanta sobre nós ou em nós
distingüem, de fato, a divina imagem, que a apontam na
discrição da razão; já pela alegria distingüem a
divina semelhança, que a apontam na radiosidade do amor.
O homem, portanto, criado à imagem e semelhança de
Deus, foi ele próprio constituído como que na parte
mais excelente da providência divina como senhor do mundo
no paraíso das delícias. A mesma divina providência
acrescentou à razão do homem a advertência necessária
para conservar o bem que possuía e o instruíu na busca e
na obtenção dos bens que ele ainda não possuía pelo
preceito da obediência juntamente com a operação da
graça. O demônio porém viu e invejou que aquele homem
subiria pela obediência ao lugar de onde ele próprio pela
soberba havia caído. Como, porém, não poderia
causar-lhe dano pela violência, voltou-se para a
fraude, para poder vencer pela trapaça ao homem, a quem
não poderia superar pela virtude. Enganando assim o
demônio ao homem, inflingiu-lhe dois males principais
que se opõem a estes dois bens principais, ferindo-o com
duas chagas mortais. Onde o homem havia sido feito à
imagem de Deus segundo a razão, feriu-o pela
ignorância do bem. Onde o homem havia sido feito à
semelhança de Deus segundo o amor, feriu-o pelo desejo
do mal. Estes são os dois males principais a partir dos
quais procedem todos os demais males do homem. Da
ignorância procede o delito, da concupiscência procede o
pecado. O delito ocorre quando não se faz o que deveria
ser feito. O pecado ocorre quando se faz o que não se
deve fazer. O homem, portanto, espoliado e ferido,
espoliado dos bens, ferido pelos males, foi deixado
semivivo, pois ainda que na natureza humana a divina
semelhança que consiste no amor possa ser inteiramente
corrompida, todavia a imagem divina, que está na
razão, não pode ser totalmente apagada. De fato,
embora a malícia possa tomar conta de alguém a tal ponto
que nada mais ele possa desejar de bom, ninguém pode,
porém, tornar-se cego por uma tamanha ignorância que
nada mais possa conhecer da verdade. Isto é patente no
próprio demônio, o príncipe do mal, o qual, embora
tenha-se corrompido a tal ponto que nada mais ame do bem,
ainda assim não lhe foi possível tornar-se cego a tal
ponto que nada mais conheça da verdade. Corretamente,
portanto, se diz que o homem foi deixado semivivo, pois
ainda que pelos males primordiais tivesse se corrompido em
parte, não está, todavia, inteiramente cego. Não é
de se admirar, pois, que mesmo depois de assim ser
ferido, tenha vivido aquele ao qual foi deixada uma
centelha de algum entendimento; a espada do inimigo não
pôde extingüir completamente o homem, na medida em que
nele não pôde destruir completamente a dignidade do bem
da natureza.
O salmista canta este entendimento onde diz:
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"Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova em
mim um espírito reto".
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Pelo coração puro, de fato, o salmista designa a
semelhança divina, e pelo espírito reto designa a divina
imagem. Enquanto pede que lhe seja criado um coração
puro, pede que lhe seja renovado o espírito reto,
indicando com correção que a divina semelhança pode ser
inteiramente corrompida, enquanto que a divina imagem
nunca pode ser totalmente destruída. Ali, de fato,
onde nada restou de bom, se o bem é restaurado, estará
sendo criado, e ali, onde algo de bom ainda existe, ele
se renova. A pureza do coração consiste no perfeito
amor de Deus e a retidão do espírito na saúde da
razão. Concorda também com este sentido aquele outro
verso do Salmo 103:
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"Todos, Senhor, esperam de ti. Envia o teu
espírito, e serão criados, e renovareis a face da
terra".
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O homem, portanto, foi honrado por estes dois bens
principais. Não entendeu, porém, a honra a que tinha
sido elevado; e, consentindo ao demônio, corrompeu em
si estes dois bens pelos males de que já falamos. Não
podendo, depois disto, nem desfazer-se deste mal, nem
sendo capaz de reformar o bem que ainda possuía, a divina
providência concedeu-lhe estes dois principais remédios
pelos quais poderia curar-se dos males que lhe haviam sido
inflingidos e recuperar os bens que havia perdido; são
estes o conselho e o auxílio.
Para que o homem conhecesse a sua enfermidade, foi em
primeiro lugar entregue inteiramente a si próprio, para
não suceder que viesse a julgar a graça como coisa
supérflua, não conhecendo antes o defeito de sua
enfermidade. Veio assim o tempo da lei natural, para que
a natureza operasse por si própria, não porque pudesse
alguma coisa por si mesma, mas para que conhecesse a sua
impossibilidade. Entregue a si mesmo, começou a
afastar-se da verdade pela ignorância; obrigado a
admitir a sua cegueira, seria depois também obrigado a
admitir a sua enfermidade. Foi-lhe dado, então, a lei
escrita, para que iluminasse a sua ignorância, mas não
fortalecesse a sua enfermidade, para que o homem pudesse
ser ajudado naquela parte em que tivesse reconhecido o seu
defeito, sendo abandonado, porém, a si próprio ali
onde ele ainda achava que poderia sustentar-se por si
próprio. Recebida, assim, a ciência da verdade que
lhe veio através da lei, principiou o homem a
esforçar-se para progredir; pressionado, porém, pelo
desejo do mal, pois não possuía o auxílio da graça,
foi incapaz de entregar-se à obra da virtude. A
sentença do apóstolo concorda perfeitamente com este
sentido, ali onde diz:
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"Pois pelas obras da lei não será justificado nenhum
homem diante de Deus".
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E também:
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"A lei nenhuma coisa levou à perfeição".
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Por que? O que nos vem pela lei? Apenas o conhecimento
do pecado a que estamos submetidos. Pela lei nos vem
apenas o conhecimento do pecado, não a sua extinção.
A lei preceitua ensinando, mas o homem que possuía o
conselho da lei sem possuir o auxílio da graça era
incapaz de praticá-la. A lei dava o conhecimento do que
deveria ser feito, não, porém, o vigor para
fazê-lo. O pobre enfermo continuaria em sua fraqueza a
não ser que o médico que lhe havia dado o conselho de
escapar dela lhe oferecesse também o seu remédio. Não
pode o homem enfraquecido pelo pecado justificar-se apenas
pela lei, a não ser que se lhe ofereça a graça, que é
o remédio do pecado. O homem foi assim obrigado a
admitir ambas estas coisas, isto é, que por si próprio
não poderia nem conhecer a verdade, nem realizar o bem.
No tempo da lei natural foi obrigado a admitir a sua
cegueira; no tempo da lei escrita a sua enfermidade. Foi
assim que o profeta Davi, vendo que nem a natureza, nem
a lei poderiam ser suficientes para libertar o homem,
compreendendo a graça ser necessária e observando na lei
a benevolência divina para com o gênero humano, exortou
a si próprio e a todos para que confiassem não nas obras
da lei mas na graça de Deus, dizendo:
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"A graça e a glória dará o Senhor".
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Assim, depois que o homem conheceu sua cegueira e sua
enfermidade, convenientemente lhe foi dada a graça, pela
qual se iluminaria o cego e se sararia o enfermo;
iluminaria a ignorância, esfriaria o desejo do mal;
iluminaria para o conhecimento da verdade, inflamaria ao
amor da virtude. Por causa disto o Espírito foi dado em
fogo, para que tivesse luz e chama. Luz para o
conhecimento, chama para o amor.
A sagrada solenidade desta dádiva excelente e perfeita,
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"que vem do alto e descende do Pai das luzes",
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não é coisa nova, desconhecida e repentina, mas é
antiga, célebre e autêntica, já celebrada
figuradamente por Moisés e pelos filhos de Israel no
monte Sinai. A lei, de fato,
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"foi dada por Moisés, a graça e a verdade foram feitas
por Jesus Cristo".
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A lei foi dada no alto do monte, a graça foi dada no
alto do cenáculo. A lei foi dada nos fulgores do fogo,
a graça foi dada em línguas de fogo. A lei foi dada
para doze tribos, a graça foi dada primeiro para doze
apóstolos. A lei foi escrita em duas tábuas, a graça
se consuma nos dois preceitos da caridade. A lei foi
escrita pelos dedos de Deus em tábuas de pedra, a graça
foi escrita pelo Espírito Santo em corações humanos.
A lei foi dada no qüinquagésimo dia depois de ter sido
celebrada a Páscoa na terra do Egito, a graça foi dada
no qüinquagésimo dia depois da ressurreição do
Senhor. De fato,
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"quando se completaram os dias do Pentecostes, estavam
os discípulos igualmente no mesmo lugar; e, de repente,
veio do céu um estrondo, como de um vento que soprava
impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. E
apareceram-lhes repartidas umas como línguas de fogo, e
pousou uma sobre cada um deles. E foram todos cheios do
Espírito Santo".
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O Espírito, cuja plenitude está na cabeça, a
participação está nos membros. A cabeça é Cristo,
o membro é o cristão. A cabeça é uma, os membros
são muitos; e o corpo é constituído de cabeça e
membros, e um só Espírito em um só corpo. Se,
pois, há um só corpo e um só Espírito, quem não
está no próprio corpo não pode ser vivificado pelo
Espírito, assim como está escrito:
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"Se alguém não tem o Espírito de Cristo, este não
é dele".
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Quem, portanto, não possui o Espírito de Cristo,
não é membro de Cristo. Um só corpo, um só
Espírito. Nada há de morto no corpo, nada há de vivo
fora do corpo. Esta é aquela unção na cabeça a qual
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"desce sobre a barba, a barba de Aarão, que desce até
a orla de seu vestido".
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A cabeça, conforme dissemos, significa Cristo, que é
a cabeça de todos os fiéis. A barba, que está junto
à cabeça e é sinal de virilidade, designa os
apóstolos, que aderiram a Cristo enquanto ele vivia no
mundo, junto com ele comeram e beberam, ouviram a sua
doutrina de salvação, viram seus milagres e, depois de
sua ascensão, tendo recebido o Espírito Santo, mais
plenamente fortalecidos, agiram com virilidade, pregando
a fé em Cristo pelos reinos do mundo, sendo levados por
causa de seu nome aos tribunais, flagelados nas
sinagogas, conduzidos diante de reis e governantes: e em
tudo isto foram vencedores. A unção, portanto, do
Espírito Santo, que está na cabeça em sua plenitude,
"desce", por participação, "sobre a barba", isto
é, sobre os apóstolos, quando Cristo lhes diz:
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"Recebei o Espírito Santo";
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e também quando, depois de sua ascensão, ele lhes
enviou o mesmo Espírito. Desceu "até a orla de seu
vestido", porque o mesmo Espírito é concedido aos
santos que haverá no futuro até o fim do mundo.
E agora, caríssimos, volvamos nosso olhar a nós
mesmos, e observemos se nos purificamos de toda mácula da
carne e do espírito, para que possamos dignamente nesta
solenidade sagrada possuir ou receber o Espírito Santo:
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"Na alma maligna não entrará a sabedoria, nem
habitará no corpo sujeito ao pecado, porque o Espírito
Santo, que a ensina, foge das ficções, afasta-se dos
pensamentos que são sem entendimento, e é expulso pela
iniqüidade superveniente".
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Imitemos, pois, os nossos pais, os santos apóstolos,
de cujas obras recebemos nosso odor. Imensamente
recomendável e digno de imitação é o que deles foi
escrito:
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"Estavam todos igualmente no mesmo lugar".
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Estejamos também nós, irmãos, igualmente não apenas
no mesmo lugar da casa, mas também em uma só fé,
esperança, caridade, devoção, oração, invocação
e expectativa do Espírito Santo, para que igualmente
mereçamos sua aceitação e participação para que,
assim como sejamos por Ele justificados no tempo,
igualmente sejamos glorificados na eternidade.
Digne-se para tanto Jesus Cristo, Nosso Senhor, vir
em nosso auxílio, ele que é Deus, bendito por todos os
séculos.
Assim seja.
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