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"Ó minha alma, bendize ao Senhor, porque libertou
Jerusalém, sua cidade. Ditoso de mim, se restar
alguém de minha descendência para ver o esplendor de
Jerusalém.
As portas de Jerusalém serão construídas de safiras e
de esmeraldas, e de pedras preciosas todo o circuito de
seus muros. Todas as suas ruas serão calçadas de pedras
brancas e puras, e pelas suas vilas se cantará aleluia.
Bendito seja o Senhor, que a exaltou, que o seu reino
sobre ela seja pelos séculos dos séculos. Amén".
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Estas palavras que propusemos foram tomadas de Tobias.
São as palavras pelas quais ele louvou o Senhor depois
de ter recebido a luz de seus olhos.
Tobias, traduzido, significa "bem do Senhor".
Tobias, portanto, designa corretissimamente a
assembléia dos santos doutores e prelados que são,
verdadeiramente e de modo excelente, o bem do Senhor,
não apenas porque vivendo santamente conduzem os preceitos
do Senhor ao seu efeito, como também porque, pelo
ensino, conduzem as almas que lhes foram confiadas para a
fé e as formam para o reto viver. O bem aventurado
Santo Agostinho, cuja solenidade hoje celebramos, foi
membro eminente do número destes prelados e doutores, por
ter perfeitissimamente ensinado seus discípulos e sua grei
e por tê-los, não menos perfeitamente, instituído no
serviço de Deus. Também ele convidou merecidamente sua
alma ao louvor do Senhor, não ignorando a luz do
conhecimento do alto que lhe tinha sido concedida.
Pela cidade de Jerusalém entendemos a santa Igreja, a
qual em parte peregrina na terra, em parte está na
glória do céu. Aqui ela exulta, ali ela reina; aqui
ela é filha, ali ela é mãe. Uma só, porém, é a
cidade, uma só a Igreja, uma só a pomba, uma só a
amiga, uma só a esposa. Ela é cidade pela habitação
comum dos cidadãos, Igreja pela assembléia dos fiéis,
pomba pela simplicidade, amiga pelo amor, esposa pela
fé. Suas núpcias são celebradas em ambos os lugares,
tanto no mundo como no céu; aqui, porém, são
celebradas na fé, ali na visão; aqui são celebradas na
esperança, ali na substância. "Vemos agora", diz a
Escritura,
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"como por um espelho, em enigma; mas então veremos face
a face".
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Nestas núpcias brinda-se aqui o vinho da graça, lá
brinda-se o vinho da glória, assim como no princípio
das palavras que propusemos diz-se desta cidade que Deus
a libertou e no fim que Deus a exaltou. No início elas
dizem:
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"Ó minha alma, bendize ao Senhor, porque libertou
Jerusalém, sua cidade";
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e no fim dizem:
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"Bendito seja o Senhor, que a exaltou".
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De fato, Deus primeiramente a liberta; depois a
exalta. Liberta-a do mal, exalta-a no bem; liberta-a
na via, exalta-a na pátria. Liberta-a pela graça,
exalta-a pela glória.
Segue-se:
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"Ditoso de mim, se restar alguém de minha descendência
para ver o esplendor de Jerusalém".
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Considere, quem o puder, quão grande é a caridade
espiritual dos pais para com os filhos, os quais, como se
pode entender por estas palavras, consideram sua a
salvação dos filhos, e verdadeiramente a amam como se
fosse sua e a consideram como própria. Daqui é que
Paulo diz aos Tessalonicenses:
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"Qual é a nossa esperança, ou a nossa alegria, ou
coroa de glória? Porventura não o sois vós, diante do
Senhor Jesus Cristo, na sua vinda?"
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Paulo demonstra esta mesma caridade, onde diz aos
Gálatas:
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"Meus filhinhos, por quem eu sinto de novo as dores de
parto, até que Jesus Cristo se forme em vós".
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E deve-se notar que Tobias não diz "minha
descendência", mas
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"se restar alguém de minha descendência".
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De fato, ainda que muitos sejam os chamados, poucos,
todavia, são os escolhidos (Mat. 22, 14), e
entre os mesmos escolhidos muitos são os imperfeitos, e
menos ainda os perfeitos para verem o esplendor de
Jerusalém.
Dois são os esplendores da santa Igreja. Um deles
está no tempo, o outro na eternidade. Um consiste na
justificação, o outro na bem aventurança; um no
mérito, o outro no prêmio. Exteriormente, porém,
ela se escurece, não importando o quanto resplandeça
interiormente, pois
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"todos os que desejam viver piedosamente em Jesus
Cristo, padecerão perseguição".
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Deste esplendor e deste escurecimento a própria santa
Igreja nos fala no Cântico dos Cânticos:
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"Eu sou negra, mas formosa, ó filhas de
Jerusalém".
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A Igreja, de fato, é exteriormente negra pela
angústia da perseguição, mas interiormente formosa pelo
esplendor da caridade. A este respeito o Apóstolo
também afirma que
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"embora se destrua em nós o homem exterior, todavia o
interior se renova de dia a dia".
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Mas as palavras de Tobias, ao dizer:
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"Ditoso de mim, se restar alguém de minha descendência
para ver o esplendor de Jerusalém",
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mais parecem referir-se à glória futura da Igreja que
Isaías lhe promete, quando afirma:
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"Não haverá mais para ti Sol para luzir de dia, nem o
esplendor da Lua te iluminará, mas o Senhor será para
ti luz eterna, e o teu Deus será a tua glória. Não
mais se porá o teu Sol, e a tua Lua não minguará,
porque o Senhor será para ti luz eterna, e terão
acabado os dias de teu pranto".
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Qualquer santo prelado, portanto, reconhece-se como
ditoso se houver alguém de sua descendência para ver o
esplendor de Jerusalém porque o será verdadeiramente se
chegar a ver contemplando consigo no céu a glória suprema
da santa Igreja alguns daqueles que agora parecem
imitá-lo no mundo. Ditoso será pela sua boa obra,
ditoso será também pela boa conversação dos que lhe
tiverem sido confiados. Embora, pois, haja de existir
para todos os santos uma dupla glória, a de um vestido
talar tanto para o corpo como para a alma, todavia nos
santos prelados haverá de se cumprir de um modo especial o
que foi escrito:
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"Em sua terra possuirão uma dupla porção".
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Neles, de fato, haverá de se cumprir esta passagen
tanto pela sua justiça como pela justiça dos que lhes
tiverem sido confiados.
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"As portas de Jerusalém serão construídas de safiras
e de esmeraldas, e de pedras preciosas todo o circuito de
seus muros".
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A esmeralda pelo seu verdor significa a fé. A safira,
que traz diante de si a cor do firmamento, significa a boa
obra.
O verdor da esmeralda significa a fé pois assim como o
verdor é a primeira coisa que surge no que germina, assim
também a fé é a primeira pela ordem entre as virtudes,
sem a qual, diz a Escritura,
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"é impossível agradar a Deus".
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Deste modo, a primeira porta da santa Igreja é a fé,
figurada pela esmeralda, a segunda das pedras
mencionadas. A sua segunda porta é a obra, a obra que
se faz pelo amor de Deus e do próximo, designada pela
safira, a primeira pela ordem das pedras mencionadas.
Para abrir a primeira porta, que é a fé, é
necessário abrir as duas metades de que esta porta é
constituída, metades estas que são como que as suas duas
partes. Estas partes, embora sejam duas, são também
uma única. Elas são o Criador e o Salvador os quais,
embora difiram pelo nome, mas são um só na realidade.
Os nomes de Criador e de Salvador, todavia, também
designam coisas diversas. Deus é Criador, porque nos
fêz; é Salvador, porque nos salvou. O Criador, e
tudo o que se refere ao Criador, eis uma parte da fé; o
Salvador, e tudo o que se refere ao Salvador, eis a
outra parte da fé. Quanto à primeira parte, pertence
à fé confessar o Criador e por ele terem sido feitas
todas as coisas que possuem ser; quanto à segunda parte,
pertence à fé venerar o Salvador e confessar ter ele
restaurado os que estavam perdidos, aos quais foi dada ou
será dada a bem aventurança. A primeira parte da fé
diz respeito à dívida da natureza, a segunda diz
respeito à dívida da graça. Naquela devemos crer
porque fomos criados segundo a nossa natureza; nesta
devemos crer por termos sido restaurados pela graça.
Se, portanto, crês naquela, tens uma metade da
primeira porta; se crês nesta, tens a outra metade.
Não é suficiente, porém, entrar apenas pela primeira
porta, a não ser que se entre também pela segunda,
porque
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"a fé, sem as obras, é morta".
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A obra é a segunda porta, figurada pela primeira pedra,
a safira. De fato, toda obra que é empreendida pelo
amor de Deus e do próximo é mais celeste do que
terrena, porque não é feita por causa das coisas da
terra, mas pelas do céu, sendo este o motivo de ser
figurada pela safira.
A segunda porta também se nos apresenta possuindo duas
metades como partes. Se, de fato, operares o que é bom
amando a Deus, tens aí uma metade; se operares o bem
amando ao próximo, tens aí a outra metade.
Se quiseres, portanto, seja no presente como no futuro,
ser cidadão de Jerusalém, é necessário entrar por
ambas as portas, a da fé e a da obra, daquela obra que
se empreende pelo amor, pois assim como a fé sem a obra
é morta, assim também a obra sem o amor é vã.
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"E de pedras preciosas será construído todo o circuito
de seus muros",
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porque a santa Igreja em seus méritos é circundada por
todos os lados pela solidez da virtude, e no prêmio é
ornamentada em todo o seu redor pelo esplendor dos
prêmios, firme no mérito e resplandecente no prêmio.
No mérito nada lhe falta da virtude e no prêmio nada lhe
falta da bem aventurança. Ela, todavia, resplandece em
ambos e é sólida também em ambos, pois resplandece
agora pela virtude para depois ser confirmada para sempre
em seu esplendor.
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"Suas ruas serão calçadas de pedras brancas e puras",
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porque são ladrilhadas no bem pelas pedras brancas e
purificadas do mal pelas puras. Suas ruas são calçadas
com estas duas pedras quando os imperfeitos que se utilizam
das coisas da terra são com muita ordem dispostos no tempo
pela pureza das boas obras e na eternidade pelo ornamento
dos prêmios. Ainda que careçam da cor rubra da
paixão, são todavia alvos pelo linho da sua
justificação, que possuem pela pureza da boa ação e
pelo ornamento da honesta conversação.
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"E pelas suas vilas se cantará aleluia".
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Há muitas ordens na santa Igreja, tanto no mundo como
no céu. Embora difiram entre si pelo mérito ou pelo
prêmio, são como suas muitas vilas. Por todas elas se
canta aleluia quando jorra o louvor divino tanto dos que
estão no céu como dos que estão na terra. De onde que
está escrito:
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"Seu louvor está acima do céu e da terra".
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Tudo tudo quanto dissemos até aqui expusemo-lo segundo
ambos os estados da santa Igreja. Devemos reconhecer,
porém, que todas estas coisas dizem melhor respeito à
Igreja que é futura, motivo pelo qual o próprio Tobias
acrescenta:
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"Bendito seja o Senhor, que a exaltou, que o seu reino
sobre ela seja pelos séculos dos séculos. Amén".
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Embora, de fato, o reino de Deus sobre a Igreja
também seja no presente, haverá porém de ser visto
muito maior no futuro, quando tiver cessado toda a
calúnia do pecado, quando nem a morte nem a mortalidade
dominar mais sobre nós, quando
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"este corruptível se tiver revestido de
incorruptibilidade, este mortal se tiver revestido de
imortalidade, quando o Filho tiver entregue o Reino a
Deus e ao Pai, e Deus for tudo em todos".
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E agora, caríssimos, vejamos se somos da descendência
de nosso bem aventurado pai Agostinho. O que significa
dizer: vejamos se somos seus imitadores como o devemos
ser.
Vejamos se, contemplando o seu exemplo, amamos a palavra
de Deus, estudando-a, meditando-a, escrevendo sobre
ela, ensinando-a, conforme a graça que nos foi
concedida. Vejamos se imitamos a sua honestíssima
religião, vivendo santamente com todas as nossas
forças. Se tudo isto fazemos, somos verdadeiramente sua
descendência, e verdadeiramente contemplaremos com ele o
esplendor da Jerusalém celeste.
E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus
Cristo, nosso Senhor, que é Deus bendito, pelos
séculos dos séculos.
Amén.
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