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Conservando, pois, viva na memória a imagem que de maneira tão
perspicaz e autorizada traçou o II Concílio do Vaticano,
procuraremos, uma vez mais ainda, adaptar este quadro aos «sinais dos
tempos», bem como às exigências da situação que muda continuamente
e evolui em determinadas direcções.
O homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que
produz; ou seja, pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda
mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligência e das tendências
da sua vontade. Os frutos desta multiforme actividade do homem, com
muita rapidez e de modo muitas vezes imprevisível, passam a ser, não
tanto objecto de «alienação», no sentido de que são simplesmente
tirados àquele que os produz, quanto, ao menos parcialmente e num
círculo consequente e indirecto dos seus efeitos, tais frutos se
voltam contra o próprio homem. Eles passam então, de facto, a ser
dirigidos, ou podem ser dirigidos contra o homem. E nisto assim
parece consistir o capítulo principal do drama da existência humana
contemporânea na sua mais ampla e universal dimensão. O homem,
portanto, cada vez mais vive com medo. Ele teme que os seus
produtos, naturalmente não todos e não na maior parte, mas alguns e
precisamente aqueles que encerram uma especial porção da sua
genialidade e da sua iniciativa, possam ser voltados de maneira radical
contra si mesmo; teme que eles possam tornar-se meios e instrumentos
de uma inimaginável autodestruição, perante a qual todos os
cataclismas e as catástrofes da história, que nós conhecemos,
parecem ficar a perder de vista. Deve pôr-se, portanto, uma
interrogação: por que razão um tal poder, dado desde o princípio
ao homem, poder mediante o qual ele devia dominar a terra, se volta
assim contra ele, provocando um compreensível estado de inquietude,
de consciente ou inconsciente medo, e de ameaça que de diversas
maneiras se comunica a toda a família humana contemporânea e se
manifesta sob vários aspectos?
Este estado de ameaça contra o homem, da parte dos seus mesmos
produtos, tem várias direcções e vários graus de intensidade.
Parece que estamos cada vez mais cônscios do facto de a exploração
da terra, do planeta em que vivemos, exigir um planeamento racional e
honesto. Ao mesmo tempo, tal exploração para fins não somente
industriais mas também militares, o desenvolvimento da técnica não
controlado nem enquadrado num plano com perspectivas universais e
autenticamente humanístico, trazem muitas vezes consigo a ameaça para
o ambiente natural do homem, alienam-no nas suas relações com a
natureza e apartam-no da mesma natureza. E o homem parece muitas
vezes não dar-se conta de outros significados do seu ambiente
natural, para além daqueles somente que servem para os fins de um uso
ou consumo imediatos. Quando, ao contrário, era vontade do Criador
que o homem comunicasse com a natureza como «senhor» e «guarda»
inteligente e nobre, e não como um «desfrutador» e «destrutor» sem
respeito algum.
O progresso da técnica e o desenvolvimento da civilização do nosso
tempo, que é marcado aliás pelo predomínio da técnica, exigem um
proporcional desenvolvimento também da vida moral e da ética. E no
entanto este último, infelizmente, parece ficar sempre atrasado.
Por isso, este progresso, de resto tão maravilhoso, em que é
difícil não vislumbrar também os autênticos sinais da grandeza do
mesmo homem, os quais, em seus germes criativos, já nos são
revelados nas páginas do Livro do Génesis, na descrição da sua
mesma criação, este progresso não pode deixar de gerar multíplices
inquietações. Uma primeira inquietação diz respeito à questão
essencial e fundamental: Este progresso, de que é autor e fautor o
homem, torna de facto a vida humana sobre a terra, em todos os seus
aspectos, «mais humana»? Torna-a mais «digna do homem»? Não
pode haver dúvida de que, sob vários aspectos, a torna de facto
tal. Esta pergunta, todavia, retorna obstinadamente e pelo que
respeita àquilo que é essencial em sumo grau: se o homem, enquanto
homem, no contexto deste progresso, se torna verdadeiramente melhor,
isto é, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da
dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto para com o
outros, em particular para com os mais necessitados e os mais fracos,
e mais disponível para proporcionar e prestar ajuda a todos.
Esta é a pergunta que os cristãos devem pôr-se, precisamente
porque Cristo os sensibilizou assim de modo universal quanto ao
problema do homem. E a mesma pergunta devem também pôr-se todos os
homens, especialmente aqueles que fazem parte daqueles ambientes
sociais que se dedicam activamente ao desenvolvimento e ao progresso nos
nossos tempos. Ao observar estes processos e tomando parte neles,
não podemos deixar que se aposse de nós a euforia, nem podemos
deixar-nos levar por um unilateral entusiasmo pelas nossas conquistas;
mas todos devemos pôr-nos, com absoluta lealdade, objectividade e
sentido de responsabilidade moral, as perguntas essenciais pelo que se
refere à situação do homem, hoje e no futuro. Todas as conquistas
alcançadas até agora, bem como as que estão projectadas pela
técnica para o futuro, estão de acordo com o progresso moral e
espiritual do homem? Neste contexto o homem, enquanto homem,
desenvolve-se e progride, ou regride e degrada-se na sua humanidade?
Prevalece nos homens, «no mundo do homem» — que é em si mesmo um
mundo de bem e de mal moral — o bem ou o mal? Crescem verdadeiramente
nos homens, entre os homens, o amor social, o respeito pelos direitos
de outrem — de todos e de cada um dos homens, de cada nação, de
cada povo — ou, pelo contrário, crescem os egoísmos de vário
alcance, os nacionalismos exagerados em vez do autêntico amor da
pátria, e, ainda, a tendência para dominar os outros, para além
dos próprios e legítimos direitos e méritos, e a tendência para
desfrutar de todo o progresso material e técnico-produtivo
exclusivamente para o fim de predominar sobre os outros, ou em favor
deste ou daqueloutro imperialismo?
Eis as interrogações essenciais que a Igreja não pode deixar de
pôr-se, porque, de maneira mais ou menos explícita, as põem a si
próprios biliões de homens que vivem hoje no mundo. O tema do
desenvolvimento e do progresso anda nas bocas de todos e aparece nas
colunas de todos os jornais e nas publicações, em quase todas as
línguas do mundo contemporâneo. Não esqueçamos, todavia, que
este tema não contém somente afirmações e certezas mas também
perguntas e angustiosas inquietudes. Estas últimas não são menos
importantes do que as primeiras. Elas correspondem à natureza
dialéctica fundamental da solicitude do homem pelo homem, pela sua
própria humanidade e pelo futuro dos homens sobre a face da terra. A
Igreja, que é animada pela fé escatológica, considera esta
solicitude pelo homem, pela sua humanidade e pelo futuro dos homens
sobre a face da terra e, por consequência, pela orientação de todo
o desenvolvimento e progresso, como um elemento essencial da sua
missão, indissoluvelmente ligado com ela. E o princípio de uma tal
solicitude encontra-o a mesma Igreja no próprio Jesus Cristo, como
testemunham os Evangelhos. E é por isso mesmo que ela deseja
acrescê-la continuamente n'Ele, ao reler a situação do homem no
mundo contemporâneo, segundo os mais importantes sinais do nosso
tempo.
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