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5. No limiar do Novo Testamento repercute-se no
Evangelho de S. Lucas singular correspondência entre
duas vozes que proclamam a misericórdia divina, nas quais
ecoa intensamente toda a tradição do Antigo
Testamento. Nelas encontram expressão os conteúdos
semânticos, ligados à terminologia diferenciada dos
Livros Antigos. A primeira destas vozes é a de Maria
que, entrando em casa de Zacarias, engrandece o Senhor
louvando-O com toda a alma «pela sua misericórdia»,
da qual se tornam participantes, «de geração em
geração», os homens que vivem no temor de Deus.
Pouco depois, comemorando a eleição de Israel,
proclama a misericórdia, da qual «se recorda» desde
sempre Aquele que a escolheu [60].
A outra voz é a de Zacarias que, na mesma casa, por
ocasião do nascimento de João Baptista, seu filho,
bendizendo o Deus de Israel, glorifica a misericórdia
que Ele quis «usar... para com os nossos pais e
lembrar-se da sua santa aliança» [61].
No ensino do próprio Cristo esta imagem, herdada do
Antigo Testamento, torna-se mais simples e, ao mesmo
tempo, mais profunda. É o que se manifesta com especial
evidência na parábola do filho pródigo [62], na
qual a essência da misericórdia divina — embora no texto
original não seja usada a palavra «misericórdia» —
aparece de modo particularmente límpido. Contribui para
isso, não tanto a terminologia, como nos Livros do
Antigo Testamento, mas a analogia, que permite
compreender com maior profundidade o próprio mistério de
misericórdia, como drama profundo que se desenrola entre
o amor do pai e a prodigalidade e o pecado do filho.
Este filho, que recebe do pai a parte da herança que lhe
toca e deixa a casa paterna para esbanjar essa herança
numa terra longínqua «vivendo dissolutamente», em certo
sentido é o homem de todos os tempos, a começar por
aquele que foi o primeiro a perder a herança da graça e
da justiça original. Neste ponto a analogia é muito
vasta. Indirectamente a parábola estende-se a todas as
rupturas da aliança de amor: a toda a perda da graça, e
todo o pecado.
Ao contrário do que acontecia na tradição profética,
esta analogia, embora se possa estender também a todo o
povo de Israel, não o visa em primeiro lugar.
Aquele filho, «depois de ter esbanjado tudo...,
começou a passar privações», tanto mais que sobreveio
grande carestia «naquela terra» para onde ele tinha ido
depois de abandonar a casa paterna. Em tal situação,
«bem desejava matar a fome» com qualquer coisa, até
mesmo «com as alfarrobas que os porcos comiam», animais
que ele guardava, ao serviço de «um dos habitantes
daquela terra». Mas até isso lhe era recusado. A
analogia desloca-se claramente para o interior do homem.
A herança que o jovem tinha recebido do pai era
constituída por certa quantidade de bens materiais.
Mas, mais importante do que esses bens era a sua
dignidade de filho na casa paterna. A situação em que
veio a encontrar-se quando se viu sem os bens materiais
que dissipara, é natural que o tivesse também feito cair
na conta da perda dessa dignidade. Quando pediu ao pai
que lhe desse a parte de herança que lhe tocava, para se
ausentar para longe, não reflectiu por certo nisso.
Parece que nem mesmo agora está bem consciente dessa
realidade, quando diz para si próprio: «Quantos
jornaleiros na casa de meu pai têm pão em abundância, e
eu aqui morro de fome!». Avalia-se a si mesmo pela
medida dos bens que tinha perdido e que já «não
possui», enquanto os criados na casa de seu pai
«continuam a possuí-los». Estas palavras exprimem
principalmente a sua atitude perante os bens materiais.
No entanto, por detrás delas esconde-se também o drama
da dignidade perdida, a consciência da condição de
filho malbaratada.
É então que toma a decisão: «Levantar-me-ei, irei
ter com o meu pai e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o
céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu
filho; trata-me como a um dos teus jornaleiros»
[63]. Tais palavras permitem descobrir mais
profundamente o problema essencial. Através da complexa
situação material de penúria a que o filho pródigo
chegou, por causa da sua leviandade, por causa do
pecado, amadureceu nele o sentido da dignidade perdida.
Quando tomou a decisão de voltar para a casa paterna e de
pedir ao pai para ser recebido, não já gozando dos
direitos de filho, mas na condição de assalariado, o
jovem parece à primeira vista agir por motivo da fome e da
miséria em que caiu. Subjacente a esse motivo, porém,
está a consciência de perda mais profunda: ser um
assalariado na casa do próprio pai é com certeza grande
humilhação e vergonha. Apesar disso, o filho pródigo
está disposto a arrostar com tal humilhação e vergonha.
Caiu na conta de que já não tem mais direito algum,
senão o de ser um empregado na casa do pai. Esta
reflexão, brota em primeiro lugar da plena consciência
da perda que mereceu e do que, doutro modo, poderia vir a
possuir. Este raciocínio, precisamente, demonstra
que, no âmago da consciência do filho pródigo, se
manifesta o sentido da dignidade perdida, daquela
dignidade que brota da relação do filho com o pai. Com
essa decisão empreendeu o caminho de regresso.
Na parábola do filho pródigo não é usado, nem uma vez
sequer, o termo «justiça», assim como também não é
usado no texto original, o termo «misericórdia».
Contudo, a relação da justiça com o amor que se
manifesta como misericórdia aparece profundamente vincada
no conteúdo desta parábola evangélica. Torna-se claro
que o amor se transforma em misericórdia quando é preciso
ir além da norma exacta da justiça: norma precisa mas,
por vezes, demasiado rigorosa.
O filho pródigo, depois de ter gasto os bens recebidos
do pai, ao regressar merece apenas ganhar para viver,
trabalhando na casa paterna como empregado e,
eventualmente, ir amealhando, pouco a pouco, certa
quantidade de bens materiais, mas sem dúvida nunca em
quantidade igual aos que tinha esbanjado. Tal seria a
exigência da ordem da justiça, até porque aquele
filho, com o seu comportamento, não tinha somente
dissipado a parte de herança que lhe competia, mas tinha
também magoado profundamente e ofendido o pai. Na
verdade o seu comportamento, que a seu juízo o tinha
privado da dignidade de filho não podia deixar indiferente
o pai; devia fazê-lo sofrer e fazer com que se
sentisse, de algum modo, envolvido nesse procedimento.
Tratava-se com efeito do seu próprio filho, e esta
relação não podia ser alienada nem destruída, fosse
qual fosse o seu comportamento. O filho pródigo tem
consciência disso, e é precisamente essa consciência
que lhe mostra claramente a dignidade perdida e o leva a
avaliar correctamente o lugar que ainda lhe poderia tocar
na casa do pai.
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