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3. Diante dos seus conterrâneos, em Nazaré, Cristo
expõe as palavras do profeta Isaías: «O Espírito do
Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu e me enviou
a anunciar a Boa-Nova aos pobres, a proclamar a
libertação aos captivos e o dom da vista aos cegos, a
pôr em liberdade os oprimidos e a promulgar um ano de
acolhimento por parte do Senhor» [19]. Segundo S.
Lucas, estas afirmações sãoa sua primeira declaração
messiânica, à qual se seguem os factos e as palavras
conhecidos por intermédio do Evangelho. Mediante tais
factos e palavras, Cristo torna o Pai presente no meio
dos homens.
É muito significativo que estes homens sejam sobretudo os
pobres, carecidos dos meios de subsistência, os que
estão privados da liberdade, os cegos que não vêem a
beleza da criação, os que vivem com a amargura no
coração, ou então os que sofrem por causa da injustiça
social e, por fim, os pecadores. Em relação a estes
últimos, de modo especial, o Messias torna-se sinal
particularmente legível de Deus que é amor, torna-se
sinal do Pai. Do mesmo modo que os homens de então,
também os homens do nosso tempo podem ver o Pai, neste
sinal visível.
É igualmente significativo que, quando os mensageiros
enviados por João Baptista vieram ter com Jesus e lhe
perguntaram — «Tu és Aquele que está para vir, ou
temos que esperar outro?» [20] — Ele,
referindo-se ao mesmo testemunho com que havia inaugurado
o seu ensino em Nazaré, lhes tenha respondido: «Ide
contar a João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem,
os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos
ouvem, os mortos ressuscitam, aos pobres é anunciada a
Boa-Nova»; e é ainda significativo que tenha depois
concluído: «Bem-aventurado aquele que não se
escandalizar a meu respeito» [21].
Jesus revelou, sobretudo com o seu estilo de vida e com
as suas acções, como está presente o amor no mundo em
que vivemos, amor operante, amor que se dirige ao homem e
abraça tudo quanto constitui a sua humanidade. Tal amor
transparece especialmente no contacto com o sofrimento,
injustiça e pobreza; no contacto com toda a «condição
humana» histórica, que de vários modos manifesta as
limitações e a fragilidade, tanto físicas como morais,
do homem. Precisamente o modo e o âmbito em que se
manifesta o amor são chamados na linguagem bíblica
«misericórdia».
Cristo, portanto, revela Deus que é Pai, que é
«amor», como se exprimiria S. João no sua primeira
Epístola [22]. Revela Deus «rico em
misericórdia», como lemos em S. Paulo [23].
Esta verdade, mais do que tema de ensino, é realidade
que Cristo nos tornou presente. Tornar presente o Pai
como amor e misericórdia, constitui na consciência do
próprio Cristo, ponto fundamental do exercício da sua
missão messiânica. Confirmam-no as palavras por Ele
pronunciadas, primeiro na sinagoga de Nazaré e,
depois, diante dos seus discípulos e dos enviados de
João Baptista.
Baseando-se neste modo de manifestar a presença de
Deus, que é Pai, amor e misericórdia, Jesus faz da
mesma misericórdia um dos principais temas da sua
pregação. Como de costume, também neste ponto ensina
antes de mais «em parábolas», porque exprimem melhor a
própria essência das coisas. Basta recordar a parábola
do filho pródigo [24], ou a parábola do bom
samaritano [25], ou ainda, por contraste, a do servo
sem compaixão [26]. Numerosas são ainda as
passagens do ensinamento de Cristo que manifestam o amor e
misericórdia sob um aspecto sempre novo. Basta ter
diante dos olhos o bom pastor que vai à busca da ovelha
tresmalhada [27], ou a mulher que varre a casa à
procura da dracma perdida [28]. O Evangelista que
trata de modo particular estes temas do ensino de Cristo
é S. Lucas, cujo Evangelho mereceu ser chamado «o
Evangelho da misericórdia».
Quando se trata da pregação, levanta-se um problema de
capital importância, no que diz respeito ao significado
dos termos e ao conteúdo do conceito de «misericórdia»
(em relação como conceito de «amor»). A recta
compreensão desse conteúdo é a chave para se entender a
própria realidade da misericórdia. E isto é o que para
nós mais importa.
Antes de dedicar uma parte das nossas considerações a
este assunto, ou seja, antes de estabelecer o significado
das palavras e o conteúdo próprio do conceito de
«misericórdia», devemos notar que Cristo, ao revelar
o amor-misericórdia de Deus, exigia ao mesmo tempo dos
homens que se deixassem guiar na própria vida pelo amor e
pela misericórdia. Esta exigência faz parte da própria
essência da mensagem messiânica e constitui a medula do
«ethos» evangélico. O Mestre exprime isto mesmo,
quer por meio do mandamento por Ele definido como «o
primeiro e o maior» [29], quer sob a forma de
bênção, ao proclamar no Sermão da Montanha:
«Bem-aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia» [30].
Deste modo, a mensagem messiânica sobre a misericórdia
conserva sempre particular dimensão divino-humana.
Cristo, enquanto é o cumprimento das profecias
messiânicas, ao tornar-se encarnação do amor que se
manifesta com particular intensidade em relação aos que
sofrem, aos infelizes e aos pecadores, torna presente e,
desse modo, revela mais plenamente o Pai, que é Deus
«rico em misericórdia». Ao mesmo tempo, tornando-se
para os homens modelo do amor misericordioso para com os
outros, Cristo proclama com obras, mais ainda do que com
palavras, o apelo à misericórdia, que é uma das
componentes essenciais do «ethos» do Evangelho. Não
importa cumprir somente um mandamento ou postulado de
natureza ética, mas também de satisfazer a uma
condição de capital importância, a fim de Deus se
poder revelar na sua misericórdia para com o homem: «Os
misericordiosos... alcançarão misericórdia».
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