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Diante da realidade dos dias de hoje, em cuja estrutura se encontram
marcas bem profundas de tantos conflitos, causados pelo homem, e na
qual os meios técnicos — fruto do trabalho humano — desempenham um
papel de primeira importância (pense-se ainda, aqui neste ponto, na
perspectiva de um cataclismo mundial na eventualidade de uma guerra
nuclear, cujas possibilidades de destruição seriam quase
inimagináveis), deve recordar-se, antes de mais nada, um
princípio ensinado sempre pela Igreja. É o princípio da prioridade
do «trabalho» em confronto com o «capital». Este princípio diz
respeito directamente ao próprio processo de produção, relativamente
ao qual o trabalho é sempre uma causa eficiente primária, enquanto
que o «capital», sendo o conjunto dos meios de produção, permanece
apenas um instrumento, ou causa instrumental. Este princípio é uma
verdade evidente, que resulta de toda a experiência histórica do
homem.
Quando lemos no primeiro capítulo da Bíblia que o homem tem o dever
de «submeter a terra», nós ficamos a saber que estas palavras se
referem a todos os recursos que o mundo visível encerra em si e que
estão postos à disposição do homem. Tais recursos, no entanto,
não podem servir ao homem senão mediante o trabalho. E com o
trabalho permanece igualmente ligado, desde o princípio, o problema
da propriedade. Com efeito, para fazer com que sirvam para si e para
os demais os recursos escondidos na natureza, o homem tem como único
meio o seu trabalho; e para fazer com que frutifiquem tais recursos,
mediante o seu trabalho, o homem apossa-se de pequenas porções das
variadas riquezas da natureza: do subsolo, do mar, da terra e do
espaço. De tudo isso ele se apropria para aí assentar o seu
«banco» de trabalho. E apropria-se disso mediante o trabalho e para
poder ulteriormente ter trabalho.
O mesmo princípio se aplica, ainda, às fases sucessivas deste
processo, no qual a primeira fase continua a ser sempre a relação do
homem com os recursos e as riquezas da natureza. Todo o esforço do
conhecimento com que se tende a descobrir tais riquezas e a determinar
as diversas possibilidades de utilização das mesmas por parte do homem
e para o homem, leva-nos a tomar consciência do seguinte: que tudo
aquilo que no complexo da actividade económica provém do homem —
tanto o trabalho, como o conjunto dos meios de produção e a técnica
a eles ligada (isto é, a capacidade de utilizar tais meios no
trabalho) — pressupõe estas riquezas e estes recursos do mundo
visível, que o homem encontra, mas não cria. Ele encontra-os, em
certo sentido, já prontos e preparados para serem descobertos pelo seu
conhecimento e para serem utilizados correctamente no processo de
produção. Em qualquer fase do desenvolvimento do seu trabalho, o
homem depara com o facto da principal doação da parte da
«natureza», o que equivale a dizer, em última análise, da parte
do Criador. No princípio do trabalho humano está o mistério da
Criação. Esta afirmação, já indicada como ponto de partida,
constitui o fio condutor do presente documento e será mais desenvolvida
ainda, na parte final das presentes reflexões.
A consideração do mesmo problema, que se fará em seguida, há-de
confirmar-nos na convicção quanto à prioridade do trabalho humano no
confronto com aquilo que, com o tempo, passou a ser habitual
chamar-se «capital». Com efeito, se no âmbito deste último
conceito entram, além dos recursos da natureza postos à disposição
do homem, também aquele conjunto de meios pelos quais o homem se
apropria dos recursos da natureza, transformando-os à medida das suas
necessidades (e deste modo, nalgum sentido, «humanizando-os»),
então há que fixar desde já a certeza de que tal conjunto de meios é
o fruto do património histórico do trabalho humano. Todos os meios
de produção, desde os mais primitivos até aos mais modernos, foi o
homem que os elaborou: a experiência e a inteligência do homem.
Deste modo foram aparecendo não só os instrumentos mais simples que
servem para o cultivo da terra, mas também — graças a um adequado
progresso da ciência e da técnica — os mais modernos e os mais
complexos: as máquinas, as fábricas, os laboratórios e os
computadores. Assim, tudo aquilo que serve para o trabalho, tudo
aquilo que, no estado actual da técnica, constitui dele
«instrumento» cada dia mais aperfeiçoado, é fruto do mesmo
trabalho.
Esse instrumento gigantesco e poderoso — qual é o conjunto dos meios
de produção, considerados, até certo ponto, como sinónimo do
«capital» — nasceu do trabalho e é portador das marcas do trabalho
humano. No presente estádio do avanço da técnica, o homem, que é
o sujeito do trabalho, quando quer servir-se deste conjunto de
instrumentos modernos, ou seja, dos meios de produção, deve
começar por assimilar, no plano do conhecimento, o fruto do trabalho
dos homens que descobriram tais instrumentos, que os projectaram, os
contruiram e aperfeiçoaram, e que continuam a fazê-lo. A
capacidade de trabalho — quer dizer, de participar eficazmente no
processo moderno de produção — exige uma preparação cada vez maior
e, primeiro que tudo, uma instrução adequada. Obviamente,
permanece fora de dúvidas que todos os homens que participam no
processo de produção, mesmo no caso de executarem só aquele tipo de
trabalho para o qual não são necessárias uma instrução particular e
qualificações especiais, todos e cada um deles continuam a ser o
verdadeiro sujeito eficiente, enquanto que o conjunto dos
instrumentos, ainda os mais perfeitos, são única e exclusivamente
instrumentos subordinados ao trabalho do homem.
Esta verdade, que pertence ao património estável da doutrina da
Igreja, deve ser sempre sublinhada, em relação com o problema do
sistema de trabalho e igualmente de todo o sistema sócio-económico.
É preciso acentuar e pôr em relevo o primado do homem no processo de
produção, o primado do homem em relação às coisas. E tudo aquilo
que está contido no conceito de «capital», num sentido restrito do
termo, é somente um conjunto de coisas. Ao passo que o homem, como
sujeito do trabalho, independentemente do trabalho que faz, o homem,
e só ele, é uma pessoa. Esta verdade contém em si consequências
importantes e decisivas.
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