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4. O conceito de «misericórdia» no Antigo
Testamento tem longa e rica história. Devemos remontar
a essa história, para fazer resplandecer mais plenamente
a misericórdia que Cristo revelou. Revelando-a, quer
pelas suas obras quer pelo seu ensino, Cristo dirigia-se
a homens que não só conheciam o conceito de
misericórdia, mas também, como povo de Deus da Antiga
Aliança, tinham colhido da própria história
plurissecular uma peculiar experiência da misericórdia de
Deus. Esta íntima experiência foi tanto social e
comunitária, como particular e individual.
Israel foi o povo da aliança com Deus, aliança que
muitas vezes violou. Quando tomava consciência da
própria infidelidade apelava para a misericórdia . E ao
longo da história de Israel não faltaram Profetas e
outros homens que despertavam tal consciência. A este
propósito, os Livros do Antigo Testamento
apresentam-nos numerosos testemunhos. Entre os factos e
os textos mais salientes, podemos recordar: o início da
história dos Juízes [31], a oração de Salomão
ao ser inaugurado o Templo [32], uma parte das
intervenções proféticas de Miqueias [33], as
consoladoras garantias oferecidas por Isaías [34], a
súplica dos hebreus exilados [35] e a renovação da
Aliança depois do regresso do exílio [36].
É significativo o facto de os Profetas na sua pregação
apresentarem a misericórdia, a qual muitas vezes se
referem por causa dos pecados do povo, em ligação com a
incisiva imagem do amor da parte de Deus. O Senhor ama
Israel com amor de singular eleição, semelhante ao amor
de um esposo [37]; e por isso perdoa as suas culpas e
até as infidelidades e traições. Ao encontrar-se
perante a penitência, a conversão autêntica do povo,
retabelece-o novamente na graça [38]. Na pregação
dos Profetas, a misericórdia significa a especial força
do amor, que prevalece sobre o pecado e sobre a
infidelidade do povo eleito.
Neste amplo contexto «social», a misericórdia aparece
como o elemento correlativo da experiência interior de
cada uma das pessoas que se encontram em estado de culpa,
ou que suportam sofrimentos e desgraças de toda a
espécie. Tanto o mal físico como o mal moral, ou
pecado, fazem com que os filhos e as filhas de Israel se
voltem para o Senhor, apelando para a sua misericórdia.
Deste modo a Ele se dirige David, consciente da
gravidade da sua culpa [39]; igualmente a Ele se
dirige Job, depois das suas rebeliões, ao encontrar-se
na sua tremenda desventura [40]; assim se dirige ao
Senhor também Ester, consciente da ameaça mortal,
iminente, contra o seu povo [41]. E, além destes,
deparamos ainda com outros exemplos nos Livros do Antigo
Testamento [42].
Na origem desta multiforme convicção comunitária e
pessoal, como é comprovado por todo o Antigo Testamento
no decurso dos séculos, há que colocar a experiência
fundamental do povo eleito, vivido nos dias do êxodo: o
Senhor observou a aflição do seu povo, reduzido à
escravidão, ouviu os seus clamores, deu-se conta dos
seus sofrimentos e decidiu libertá-lo [43]. Neste
acto de salvação realizado pelo Senhor, o Profeta quis
ver o seu amor e a sua compaixão [44]. A segurança
de todo o povo e de cada um dos seus membros radica na
misericórdia divina que pode ser invocada em todas as
circunstâncias dramáticas.
A isto vem juntar-se o facto de que a miséria do homem
é também o seu pecado. O povo da Antiga Aliança
conheceu esta miséria desde os tempos do êxodo, quando
ergueu o bezerro de ouro. Mas o próprio Senhor triunfou
sobre este gesto de ruptura da Aliança, quando se
definiu solenemente a Moisés como «Deus compassivo e
misericordioso, lento para a ira e cheio de bondade e de
fidelidade» [45]. É nesta revelação central que o
povo eleito e cada um dos seus componentes irão
encontrar, depois de terem prevaricado, a força e a
razão para de novo se voltarem para o Senhor, para Lhe
recordarem exactamente aquilo que Ele tinha revelado
acerca de si próprio [46], e para Lhe implorarem
perdão.
O Senhor revelou a sua misericórdia tanto nas obras como
nas palavras, desde os primórdios do povo que escolheu
para si. No decurso da sua história, este povo, quer
em momentos de desgraça, quer ao tomar consciência do
próprio pecado, entregou-se continuamente com confiança
ao Deus das misericórdias. Na misericórdia do Senhor
para com os seus manifestam-se todos os matizes do amor:
Ele é para eles Pai [47], dado que Israel é seu
filho primogénito [48]; Ele é também o esposo
daquela a quem o Profeta anuncia um nome novo:
«bem-amada» (ruhama), porque usará de misericórdia
para com ela [49].
Mesmo quando o Senhor, exasperado pela infidelidade do
seu povo, decide acabar com ele, são ainda a compaixão
e o amor generoso para com os seus que O levam a suster a
sua indignação [50]. E então, torna-se fácil
compreender a razão pela qual os Salmistas, ao quererem
cantar ao Senhor os mais sublimes louvores, entoarão
hinos ao Deus do amor, da compaixão, da misericórdia e
da fidelidade [51].
De tudo isto se deduz que a misericórdia faz parte não
somente da noção de Deus, mas caracteriza também a
vida de todo o povo de Israel e de cada um dos seus filhos
e filhas: é a essência da intimidade com o seu Senhor,
a essência do seu diálogo com Ele. Precisamente sob
este aspecto, a misericórdia é apresentada em cada um
dos Livros do Antigo Testamento com grande riqueza de
expressões. Seria difícil, talvez, procurar nestes
livros resposta meramente teórica à pergunta: o que é a
misericórdia em si mesma. Contudo, a própria
terminologia que neles é usada pode dizer-nos muitíssimo
a tal respeito [52].
O Antigo Testamento proclama a misericórdia do Senhor
mediante numerosos termos com significados afins. Estes
termos são diferenciados no seu conteúdo particular, mas
tendem a convergir, se assim se pode dizer, de vários
pontos de vista para um único conteúdo fundamental, a
fim de exprimir a riqueza transcendental da misericórdia
e, ao mesmo tempo, para aproximá-la do homem sob
aspectos diversos. O Antigo Testamento encoraja os
homens desventurados, sobretudo os que estão oprimidos
pelo pecado — como também todo o povo de Israel, que
tinha aderido à Aliança com Deus — a fazerem apelo à
misericórdia e permite-lhes contar com ela. Recorda-a
nos tempos de queda e de desalento. Em seguida, dá
graças e glória a Deus pela misericórdia, todas as
vezes que ela se tenha manifestado e realizado, tanto na
vida do povo como na das pessoas individualmente.
Deste modo, a misericórdia é contraposta , em certo
sentido, à justiça divina; e revela-se, em muitos
casos, não só mais poderosa, mas também mais profunda
que ela. Já no Antigo Testamento se ensina que,
embora a justiça no homem,seja autêntica virtude e em
Deus signifique perfeição transcendente contudo o amor
é «maior» do que a justiça. E é maior no sentido de
que, relativamente a ela, é primário e fundamental. O
amor condiciona, por assim dizer, a justiça; e, em
última análise, a justiça serve a caridade. O primado
e a superioridade do amor em relação à justiça — ponto
característico de toda a Revelação — manifestam-se
precisamente através da misericórdia. Isto pareceu tão
claro aos Salmistas e aos Profetas que o próprio termo
justiça acabou por significar a salvação realizada pelo
Senhor por meio da sua misericórdia [53]. A
misericórdia difere da justiça, mas não se lhe opõe,
se admitirmos na história do homem — como faz o Antigo
Testamento precisamente — a presença de Deus, o qual
já como Criador se ligou com particular amor às suas
criaturas.
O amor, por natureza, exclui o ódio e o desejo do mal
em relação àquele a quem alguma vez se deu a si mesmo
como dom: Nihil odisti eorum quae fecisti, «não
aborreceis nada do que fizestes» [54]. Tais palavras
indicam o fundamento profundo da conexão entre a justiça
e a misericórdia em Deus, nas suas relações com o
homem e com o mundo. Dizem-nos também que devemos
procurar as raízes vivificantes e as razões íntimas
desse nexo, remontando ao «princípio», no próprio
mistério da criação. No contexto da Antiga
Aliança, essas palavras preanunciam a plena revelação
de Deus, que «é amor» [55].
O mistério da criação está em conexão com o mistério
da eleição, que de modo especial plasmou a história do
povo cujo pai espiritual é Abraão, como mérito da sua
fé. Por meio deste povo que caminha através da
história, tanto da Antiga como da Nova Aliança,
aquele mistério de eleição refere-se a todos e a cada
um dos homens e a toda a grande família humana.
«Amo-te com amor eterno, por isso ainda te conservo os
meus favores»[56]. «Ainda que os montes sejam
abalados ... o meu amor jamais se apartará de ti, e a
minha aliança de paz não será alterada»[57]. Esta
verdade, anunciada outrora a Israel, encerra em si a
perspectiva de toda a história do homem, perspectiva que
é simultaneamente temporal e escatológica [58].
Cristo revela o Pai na mesma perspectiva, na perspectiva
e no estado dos espíritos já preparados, como o
demonstram numerosas páginas do Antigo Testamento.
Como remate desta revelação, na véspera da sua morte,
diz ao Apóstolo Filipe aquelas memoráveis palavras:
«Há tanto tempo que estou convosco e não me
conheces?... Quem me vê, vê o Pai» [59].
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