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8. A cruz de Cristo sobre o Calvário é também
testemunha da força do mal em relação ao próprio Filho
de Deus: em relação Àquele que, único dentre todos
os filhos dos homens, era por sua natureza absolutamente
inocente e livre do pecado, e cuja vinda ao mundo foi
isenta da desobediência de Adão e da herança do pecado
original. E eis que precisamente n'Ele, em Cristo,
é feita justiça do pecado à custa do seu sacrifício,
da sua obediência «até à morte» [81], Aquele que
era sem pecado, «Deus o tratou por nós como pecado»
[82]. É feita justiça também da morte que, desde o
início da história do homem, se tinha aliado ao pecado.
E este fazer-se justiça da morte realiza-se à custa da
morte d'Aquele que era sem pecado e o único que podia,
mediante a própria morte, infligir a morte à morte
[83]. Deste modo, a Cruz de Cristo, na qual o
Filho consubstancial ao Pai presta plena justiça a
Deus, é também revelação radical da misericórdia,
ou seja, do amor que se opõe àquilo que constitui a
própria raiz do mal na história do homem: se opõe ao
pecado e à morte.
A Cruz é o modo mais profundo de a divindade se
debruçar sobre a humanidade e sobre tudo aquilo que o
homem-especialmente nos momentos difíceis e
dolorosos-considera seu infeliz destino. A cruz é como
que um toque do amor eterno nas feridas mais dolorosas da
existência terrena do homem, é o cumprir-se cabalmente
do programa messiânico, que Cristo um dia tinha
formulado na sinagoga de Nazaré [84] e que repetiu
depois diante dos enviados de João Baptista [85].
Segundo as palavras exaradas havia muito tempo na profecia
de Isaías [86], tal programa consistia na
revelação do amor misericordioso para com os pobres, os
que sofrem, os prisioneiros os cegos, os oprimidos e os
pecadores. No mistério pascal são superadas as
barreiras do mal multiforme de que o homem se torna
participante durante a existência terrena. Com efeito a
cruz de Cristo faz-nos compreender as mais profundas
raízes do mal que mergulham no pecado e na morte, e
também ela se torna sinal escatológico. Será somente
na realização escatológica e na definitiva renovação
do mundo que o amor vencerá, em todos os eleitos, os
germes mais profundos do mal, produzindo como fruto
plenamente maduro o Reino da vida, da santidade e da
imortalidade gloriosa. O fundamento desta realização
escatológica está já contido na cruz de Cristo e na sua
morte. O facto de Cristo «ter ressuscitado ao terceiro
dia» [87] constitui o sinal que indica o remate da
missão messiânica, sinal que coroa toda a revelação do
amor misericordioso no mundo, submetido ao mal. Tal
facto constitui ao mesmo tempo o sinal que preanuncia «um
novo céu e uma nova terra» [88], quando Deus
«enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não
haverá mais morte, nem pranto, nem gemidos,nem dor,
porque as coisas antigas terão passado» [89].
Na realização escatológica, a misericórdia
revelar-se-á como amor, enquanto que no tempo
presente, na história humana, que é conjuntamente
história de pecado e de morte, o amor deve revelar-se
sobretudo como misericórdia e ser realizado também como
tal. O programa messiânico de Cristo — programa tão
impregnado de misericórdia — torna-se o programa do seu
Povo da Igreja. Ao centro deste programa está sempre a
Cruz, porque nela a revelação do amor misericordioso
atinge o ponto culminante. Enquanto não passarem «as
coisas antigas» [90], a Cruz permanecerá como o
«lugar», a que se poderiam aplicar estas palavras do
Apocalipse de São João: «Eis que estou à porta e
bato. Se alguém ouvir a minha voz e me abrir, entrarei
em sua casa e cearemos juntos, eu com ele e ele comigo»
[91]. Deus revela também de modo particular a sua
misericórdia, quando solicita o homem, por assim dizer,
a exercitar a «misericórdia» para com o seu própio
Filho, para com o Crucificado.
Cristo, precisamente como Crucificado, é o Verbo que
não passa [92], é o que está à porta e bate ao
coração de cada homem [93], sem coarctar a sua
liberdade, mas procurando fazer irromper dessa mesma
liberdade o amor; amor que é não apenas acto de
solidariedade para com o Filho do homem que sofre, mas
também, em certo modo, uma forma de «misericórdia»,
manifestada por cada um de nós para com o Filho do
Eterno Pai. Porventura, em todo o programa messiânico
de Cristo, em toda a revelação da misericórdia pela
Cruz, poderia ser mais respeitada e elevada a dignidade
do homem, já que o homem, se é objecto da
misericórdia, é também, em certo sentido, aquele que
ao mesmo tempo «exerce a misericórdia»?
Em última análise, não é acaso esta a posição que
toma Cristo em relação ao homem quando diz: «Sempre
que fizestes isto a um destes meus irmãos... foi a mim
que o fizestes»? [94] As palavras do Sermão da
Montanha — «Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia» [95] — não
constituem, em certo sentido, uma síntese de toda a
Boa-Nova, de todo o «admirável intercâmbio»
(admirabile commercium) nela contido, que é uma lei
simples, forte e ao mesmo tempo «suave», da própria
economia da Salvação? Estas palavras do Sermão da
Montanha , mostrando desde o ponto de partida as
possibilidades do «coração humano» («ser
misericordiosos»), não revelarão talvez, na mesma
perspectiva, a profundidade do mistério de Deus: isto
é, aquela imperscrutável unidade do Pai, do Filho e
do Espírito Santo, em que o amor, contendo a
justiça, dá origem à misericórdia, a qual, por sua
vez, revela a perfeição da justiça?
O mistério pascal é Cristo na cúpula da revelação do
imperscrutável mistério de Deus. É precisamente então
que se verificam plenamente as palavras pronunciadas no
Cenáculo: «Quem rne vê, vê o Pai» [96]. De
facto, Cristo a quem o Pai «não poupou» [97] em
favor do homem e que na sua paixão assim como no suplício
da cruz não encontrou misericórdia humana, na sua
ressurreição revelou a plenitude daquele amor que o Pai
nutre para com Ele e, n'Ele para com todos os homens.
Este Pai «não é Deus de mortos, mas de vivos»
[98]. Na sua ressurreição Cristo revelou o Deus
de amor misericordioso, precisamente porque aceitou a
Cruz como caminho para a ressurreição. É por isso
que, quando lembramos a cruz de Cristo, a sua paixão e
morte a nossa fé e a nossa esperança concentram-se
n'Ele Ressuscitado naquele mesmo Cristo, aliás, que
«na tarde desse dia, que era o primeiro de semana...
se pôs no meio deles» no Cenáculo «onde se achavam
juntos os discípulos ... soprou sobre eles e lhes
disse: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem
perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados e àqueles
a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos» [99].
Este é o Filho de Deus que na sua ressurreição
experimentou em si de modo radical a misericórdia, isto
é, o amor do Pai que é mais forte do que a morte. Ele
é também o mesmo Cristo Filho de Deus, que no termo
— e, em certo sentido, já para além do termo — da sua
missão messianica, se revela a si mesmo como fonte
inexaurível de misericórdia, daquele amor que, na
perspectiva ulterior da história da Salvação na
Igreja, deve perenemente mostrar-se mais forte do que o
pecado. Cristo pascal é a encarnação definitiva da
misericórdia, o seu sinal vivo: histórico-salvífico
e, simultaneamente, escatológico. Neste mesmo
espírito a Liturgia do tempo pascal põe nos nossos
lábios as palavras do Salmo: Cantarei eternamente as
misericórdias do Senhor [100].
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