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7. A mensagem messiânica de Cristo e a sua actividade
entre os homens terminam com a Cruz e a Ressurreição.
Se quisermos exprimir totalmente a verdade acerca da
misericórdia, com a plenitude com que foi revelada na
história da nossa salvação, devemos penetrar de maneira
profunda nesse acontecimento final que, particularmente na
linguagem conciliar, é definido como mysterium paschale
(mistério pascal). Chegados a este ponto das nossas
considerações, impõe-se aproximarmo -nos ainda mais
do conteúdo da Encíclica Redemptor Hominis. Se a
realidade da Redenção, na sua dimensão humana, revela
a grandeza inaudita do homem que talem ac tantum meruit
habere Redemptorem (mereceu tal e tão grande
Redemptor) [70], a dimensão divina da Redenção
permite-nos descobrir de modo, iria a dizer, mais
empírico e «histórico», a profundidade do amor que
não retrocede diante do extraordinário sacrifício do
Filho, para satisfazer à fidelidade de Criador e Pai
para com os homens, criados à sua imagem e escolhidos
neste mesmo Filho desde o «princípio», para a graça e
a glória.
Os acontecimentos de Sexta-Feira Santa e, ainda
antes, a oração no Getsémani introduzem mudança
fundamental em todo o processo de revelação do amor e da
misericórdia, na missão messiânica de Cristo. Aquele
que «passou fazendo o bem e curando a todos» [71] e
«sarando toda a espécie de doenças e enfermidades»
[72], mostra-se agora Ele próprio, digno da maior
misericórdia e parece apelar para a misericórdia, quando
é preso, ultrajado, condenado, flagelado, coroado de
espinhos, pregado na cruz e expira no meio de tormentos
atrozes [73]. É então que Ele se apresenta
particularmente merecedor da misericórdia dos homens a
quem fez o bem; mas não a recebe. Até aqueles que mais
de perto contactam com ele não têm a coragem de o
proteger e arrancar da mão dos seus opressores. Na fase
final do desempenho da função messiânica cumprem-se em
Cristo as palavras dos Profetas e sobretudo as de
Isaías, proferidas a respeito do Servo de Javé:
«Fomos curados pelas suas chagas» [74].
Cristo, enquanto homem, que sofre realmente e de um modo
terrível no Jardim das Oliveiras e no Calvário,
dirige-se ao Pai, àquele Pai cujo amor Ele pregou aos
homens e de cuja misericórdia deu testemunho com todo o
seu agir. Mas não lhe é poupado, nem sequer a Ele, o
tremendo sofrimento da morte na cruz: «Aquele que não
conhecera o pecado, Deus tratou-o por nós como pecado»
[75], escrevia São Paulo, resumindo em poucas
palavras toda a profundidade do mistério da Cruz e a
dimensão divina da realidade da Redenção.
É precisamente a Redenção a última e definitiva
revelação da santidade de Deus, que é a plenitude
absoluta da perfeição: plenitude da justiça e do amor,
pois a justiça funda-se no amor, dele provém e para ele
tende. Na paixão e morte de Cristo — no facto de o
Pai não ter poupado o seu próprio Filho, mas «o ter
tratado como pecado por nós» [76] — manifesta-se a
justiça absoluta, porque Cristo sofre a paixão e a cruz
por causa dos pecados da hurnanidade. Dá-se na verade a
«superabundância» da justiça, porque os pecados do
homem são «compensados» pelo sacrifício do
Homem-Deus. Esta justiça, que é verdadeiramente
justiça «à medida» de Deus, nasce toda do amor, do
amor do Pai e do Filho, e frutifica inteiramente no
amor. Precisamente por isso, a justiça divina revelada
na cruz de Cristo é «à medida» de Deus, porque nasce
do amor e se realiza no amor, produzindo frutos de
salvação. A dimensão divina da Redenção não se
verifica somente em ter feito justiça do pecado, mas
também no facto de ter restituído ao amor a força
criativa, graças à qual o homem tem novamente acesso à
plenitude de vida e de santidade, que provém de Deus.
Deste modo, Redenção traz em si a revelação da
misericórdia na sua plenitude.
O mistério pascal é o ponto culminante da revelação e
actuação da misericórdia, capaz de justificar o homem,
e de restabelecer a justiça como realização do desígnio
salvífico que Deus, desde o princípio, tinha querido
realizar no homem e, por meio do homem, no mundo,
Cristo, ao sofrer, interpela todo e cada homem e não
apenas o homem crente. Até o homem que não crê poderá
descobrir nele a eloquência da solidariedade com o destino
humano, bem como a harmoniosa plenitude da dedicação
desinteressada à causa do homem, à verdade e ao amor.
A dimensão divina do mistério pascal situa-se,
todavia, numa profundidade ainda maior. A cruz erguida
sobre o Calvário, na quaI Cristo mantém o seu último
diálogo com o Pai, brota do âmago mais íntimo do
amor, com que o homem, criado à imagem e semelhança de
Deus, foi gratuitamente beneficiado, de acordo com o
eterno desígnio divino. Deus, tal como Cristo O
revelou, não permanece apenas em estreita relação com o
mundo, como Criador e fonte última da existência; é
também Pai: está unido ao homem por Ele chamado à
existência no mundo visível, mediante um vínculo mais
profundo ainda do que o da criação. É o amor que não
só cria o bem, mas que faz com que nos tornemos
participantes da própria vida de Deus, Pai, Filho e
Espírito Santo. Quem ama deseja dar-se a si
próprio.
A cruz de Cristo sobre o Calvário surge no caminho
daquele «admirabile commercium», daquela comunicação
admirável de Deus ao homem, que encerra o chamamento
dirigido ao homem para que, dando-se a si mesmo a Deus e
oferecendo consigo todo o mundo visível, participe da
vida divina, e, como filho adoptivo, se torne
participante da verdade e do amor que estão em Deus e
vêm de Deus. No caminho da eterna eleição do homem
para a dignidade de filho adoptivo de Deus, ergue-se na
história a cruz de Cristo, Filho unigênito, que,
como «Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro» [77] veio para dar o último testemunho da
admirável aliança de Deus com a humanidade, de Deus
com o homem: com todos e com cada um dos homens. Esta
aliança tão antiga como o homem — pois remonta ao
próprio mistério da criação, e foi renovada depois
muitas vezes com o único Povo eleito — é igualmente
nova e definitiva aliança; ficou estabelecida ali, no
Calvário, e não é limitada a um único povo, o de
Israel, mas aberta a todos e a cada um.
Que nos ensina a cruz de Cristo que é, em certo
sentido, a última palavra da sua mensagem e da sua
missão messiânica? Em certo sentido — note-se bem —
porque não é ela ainda a última palavra da Aliança de
Deus. A última palavra seria pronunciada na madrugada,
quando, primeiro as mulheres e depois os Apóstolos, ao
chegarem ao sepulcro de Cristo crucificado o vão
encontrar vazio, e ouvem pela primeira vez este anúncio:
«Ressuscitou». Depois, repetirão aos outros tal
anúncio e serão testemunhas de Cristo Ressuscitado.
Mas mesmo na glorificação do Filho de Deus, continua
a estar presente a Cruz que, através de todo o
testemunho messiânico do Homem-Filho que nela morreu,
fala e não cessa de falar de Deus-Pai, que é
absolutamente fiel ao seu eterno amor para com o homem,
pois que «amou tanto o mundo — e portanto, o homem no
mundo — que lhe deu o seu Filho unigénito para que todo
aquele que n'Ele crer não pereça, mas tenha a vida
eterna» [78]. Crer no Filho crucificado significa
«ver o Pai» [79] significa crer que o amor está
presente no mundo e que o amor é mais forte do que toda a
espécie de mal em que o homem, a humanidade e o mundo
estão envolvidos. Crer neste amor significa acreditar na
misericórdia. Esta é, de facto, a dimensão
indispensável do amor, é como que o seu segundo nome e,
ao mesmo tempo, é o modo específico da sua revelação e
actuação perante a realidade do mal que existe no mundo,
que assedia e atinge o homem, que se insinua mesmo no seu
coração e o «pode fazer perecer, na Geena» [80].
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