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15. A Igreja proclama a verdade da misericórdia de
Deus, revelada em Cristo crucificado e ressuscitado, e
proclama-a de várias maneiras. Procura também praticar
a misericórdia para com os homens por meio dos homens,
como condição indispensável da sua solicitude por um
mundo melhor e «mais humano», hoje e amanhã.
Mas, além disso, em nenhum momento e em nenhum período
da história, especialmente numa época tão crítica como
a nossa, pode esquecer a oração que é um grito de
súplica à misericórdia de Deus, perante as múltiplas
formas do mal que pesam sobre a humanidade e a ameaçam.
Tal é o direito e o dever da Igreja, em Cristo
Jesus: direito e dever para com Deus e para com os
homens. Quanto mais a consciência humana, vítima da
secularização, esquecer o próprio significado da
palavra «misericórdia», e quanto mais, afastando-se
de Deus, se afastar do mistério da misericórdia, tanto
mais a Igreja tem o direito e o dever de apelar «com
grande clamor» [135] para o Deus da misericórdia.
Este «grande clamor», elevado até Deus para implorar
a sua misericórdia há-de caracterizar a Igreja do nosso
tempo. A mesma Igreja professa e proclama que a
manifestação clara de tal misericórdia se verificou em
Jesus crucificado e ressuscitado, isto é, no Mistério
pascal. É este Mistério que contém em si a mais
completa revelação da misericórdia, isto é, daquele
amor que é mais forte do que a morte, mais poderoso do
que o pecado e que todo o mal, do amor que ergue o homem
das suas quedas, mesmo mais profundas, e o liberta das
maiores ameaças.
O homem contemporâneo sente estas ameaças. O que se
disse acima a este propósito não é mais do que simples
esboço. O homem contemporâneo interroga-se com
profunda ansiedade quanto à solução das terríveis
tensões que se acumulam sobre o mundo e se entrecuzam nos
caminhos da humanidade. Se algumas vezes o homem não tem
a coragem de pronunciar a palavra «misericórdia», ou
não lhe encontra equivalente na sua consciência despojada
de todo o sentido religioso, ainda se torna mais
necessário que a Igreja pronuncie esta palavra, não só
em nome próprio, mas também em nome de todos os homens
contemporâneos.
É, pois, necessário que tudo o que acabamos de dizer no
presente documento, sobre a misericórdia, se transforme
continuamente em fervorosa oração, num clamor a suplicar
a misericórdia, segundo as necessidades do homem no mundo
contemporâneo. E que este clamor esteja impregnado de
toda a verdade sobre a misericórdia que tem expressão
tão rica na Sagrada Escritura e na Tradição, e
também na autêntica vida de fé de tantas gerações do
Povo de Deus. Com este clamor apelamos, como fizeram
os Autores sagrados, para o Deus que não pode desprezar
nada daquilo que Ele criou [136], para o Deus que
é fiel a si próprio, à sua paternidade e ao seu amor.
Como os Profetas, apelamos para o amor que tem
características maternais e, à semelhança da mãe, vai
acompanhando cada um dos seus filhos, cada ovelha
desgarrada, ainda que houvesse milhões de extraviados,
ainda que no mundo a iniquidade prevalecesse sobre a
honestidade e ainda que a humanidade contemporânea
merecesse pelos seus pecados um novo «dilúvio», como
outrora sucedeu com a geração de Noé. Recorramos,
pois, a tal amor, que permanece amor paterno, como nos
foi revelado por Cristo na sua missão messiânica, e que
atingiu o ponto culminante na sua Cruz, morte e
ressurreição! Recorramos a Deus por meio de Cristo,
lembrados das palavras do Magnificat de Maria, que
proclamam a misericórdia «de geração em geração».
Imploremos a misericórdia divina para a geração
contemporânea! Que a Igreja, que procura, a exemplo
de Maria ser em Deus, mãe dos homens, exprima nesta
oração a sua solicitude maternal e o seu amor confiante,
donde nasce a mais ardente necessidade da oração.
Elevemos as nossas súplicas, guiados pela fé, pela
esperança e pela caridade, que Cristo implantou nos
nossos corações. Esta atitude é, ao mesmo tempo,
amor para com Deus, que o homem contemporâneo por vezes
afastou tanto de si, que O considera um estranho e de
várias maneiras O proclama «supérfluo». É, ainda,
amor para com Deus, em relação ao Qual sentimos
profundamente quanto o homem contemporâneo O ofende e O
rejeita; e por isso estamos prontos para clamar com
Cristo na cruz: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem
o que fazem» [137]. Tal atitude é também amor
para com os homens, para com todos os homens, sem
excepção e sem qualquer discriminação: sem diferenças
de raça, de cultura, de língua, de concepção do
mundo e sem distinção entre amigos e inimigos. Tal é o
amor para com todos os homens, que deseja todo o bem
verdadeiro a cada um deles, e a toda comunidade humana, a
cada família, nação, grupo social, aos jovens, aos
adultos, aos pais, anciãos e doentes, enfim, amor para
com todos sem excepção. Tal é o amor, esta viva
solicitude para garantir a cada um todo o bem autêntico e
afastar e esconjurar todo o mal.
Se alguns contemporâneos não compartilharem comigo a fé
e a esperança que me impelem, como servo de Cristo e
ministro dos mistérios de Deus [138], a implorar
nesta hora da história a misericórdia do mesmo Deus para
a humanidade, que esses procurem ao menos compreender o
motivo desta solicitude. Ela é ditada pelo amor para com
o homem, para com tudo o que é humano e que, segundo a
intuição de grande parte dos nossos contemporâneos,
está ameaçado por perigo imenso. O mistério de Cristo
que, revelando-nos a alta vocação do homem, me levou a
pôr em evidência na Encíclica Redemptor Hominis a
incomparável dignidade do mesmo homem, obriga-me
igualmente a proclamar a misericórdia, como amor
misericordioso de Deus, manifestado no mistério de
Cristo. Impele-me ainda a recorrer à misericórdia e a
implorá-la, nesta fase difícil e crítica da história
da Igreja e do mundo, ao aproximarmo-nos do final do
segundo Milénio.
Em nome de Jesus Cristo crucificado e ressucitado, e no
espírito da sua missão messiânica que continua presente
na história da humanidade, elevemos as nossas vozes e
supliquemos que nesta fase da história, se manifeste uma
vez mais o Amor que está no Pai e que, por obra do
Filho e do Espírito Santo, tal Amor manifeste no
nosso mundo contemporâneo a sua presença, mais forte do
que o mal, e o pecado e a morte. Pedimos isto por
intercessão d'Aquela que não cessa de proclamar «a
misericórdia, de geração em geração»; e também
pela intercessão daqueles em que já se realizaram até ao
fim as palavras do Sermão da Montanha,
«Bem-aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia» [139].
Prosseguindo na grande tarefa de dar cumprimento ao
Concílio Vaticano II, no qual podemos justamente
descobrir nova fase da auto-realização da Igreja — na
medida adaptada à época que nos coube viver — a própria
Igreja deve ser constantemente guiada pela plena
consciência de que não lhe é permitido, em hipótese
alguma, esmorecer nesta tarefa e fechar-se sobre si
mesma. A sua razão de ser, efectivamente, é revelar
Deus, isto é, o Pai, que nos permite «vê-l'O»,
em Cristo [140]. Por mais forte que possa ser a
resistência da história humana, por mais marcante que se
apresente a heterogeneidade da civilização contemporânea
e, enfim, por maior que possa ser a negação de Deus no
mundo humano, ainda maior deve ser, apesar de tudo, a
nossa aproximação de tal mistério que, oculto desde
toda a eternidade em Deus, foi depois, no tempo,
realmente comunicado ao homem por meio Jesus Cristo.
Com a minha Bênção Apostólica!
Dado em Roma, junto de São Pedro, aos trinta dias do
mês de Novembro, Primeiro Domingo do Advento, do ano
de 1980, terceiro do meu Pontificado.
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