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O nosso século tem sido até agora um século de grandes calamidades
para o homem, de grandes devastações, não só materiais, mas
também morais, ou melhor, talvez sobretudo morais. Não é fácil,
certamente, comparar épocas e séculos sob este aspecto, uma vez que
isso depende também dos critérios históricos que mudam. Não
obstante, prescindido muito embora de tais comparações, importa
verificar que até agora este século foi um tempo em que os homens
prepararam para si mesmos muitas injustiças e sofrimentos. Este
processo terá sido decididamente entravado? Em qualquer hipótese,
não se pode deixar de recordar aqui, com apreço e com profunda
esperança para o futuro, o esforço magnífico realizado para dar vida
à Organização das Nações Unidas, um esforço que tende para
definir e estabelecer os objectivos e invioláveis direitos do homem,
obrigando-se os Estados-membros reciprocamente a uma observância
rigorosa dos mesmos. Este compromisso foi aceito e ratificado por
quase todos os Estados do nosso tempo; e isto deveria constituir uma
garantia para que os direitos do homem se tornassem em todo o mundo, o
princípio fundamental do empenho em prol do bem do mesmo homem.
A Igreja não precisa de confirmar quanto este problema está
intimamente ligado com a sua missão no mundo contemporâneo. Ele
está, com efeito, nas mesmas bases da paz social e internacional,
como declararam a este propósito João XXIII, o II Concílio
do Vaticano e depois Paulo VI, com documentos pormenorizados. Em
última análise, a paz reduz-se ao respeito dos direitos invioláveis
do homem — «efeito da justiça será a paz» — ao passo que a guerra
nasce da violação destes direitos e acarreta consigo ainda mais graves
violações dos mesmos. Se os direitos do homem são violados em tempo
de paz, isso torna-se particularmente doloroso e, sob o ponto de
vista do progresso, representa um incompreensível fenómeno de luta
contra o homem, que não pode de maneira alguma pôr-se de acordo com
qualquer programa que se autodefina «humanístico». E qual seria o
programa social, económico, político e cultural que poderia
renunciar a esta definição? Nós nutrimos a convicção profunda de
que não há no mundo de hoje nenhum programa em que, até mesmo sobre
a plataforma de ideologias opostas quanto à concepção do mundo, não
seja posto sempre em primeiro lugar o homem.
Ora, se apesar de tais premissas, os direitos do homem são violados
de diversas maneiras, se na prática somos testemunhas dos campos de
concentração, da violência, da tortura, do terrorismo e de
multíplices discriminações, isto deve de ser uma consequência de
outras premissas que minam, ou muitas vezes quase anulam a eficácia
das premissas humanísticas daqueles programas e sistemas modernos.
Então impõe-se necessariamente o dever de submeter os mesmos
programas a uma contínua revisão sob o ponto de vista dos objectivos e
invioláveis direitos do homem.
A Declaração destes direitos, juntamente com a instituição da
Organização das Nações Unidas, não tinham certamente apenas a
finalidade de nos apartar das horríveis experiências da última guerra
mundial, mas também a finalidade de criar uma base para uma contínua
revisão dos programas, dos sistemas e dos regimes, precisamente sob
este fundamental ponto de vista, que é o bem do homem — digamos, da
pessoa na comunidade — e que, qual factor fundamental do bem comum,
deve constituir o critério essencial de todos os programas, sistemas e
regimes. Caso contrário, a vida humana, mesmo em tempo de paz,
está condenada a vários sofrimentos; e, ao mesmo tempo, junto com
tais sofrimentos, desenvolvem-se várias formas de dominação, de
totalitarismo, de neocolonialismo e de imperialismo, as quais ameaçam
mesmo a convivência entre as nações. Na verdade, é um facto
significativo e confirmado por mais de uma vez pelas experiências da
história, que a violação dos direitos do homem anda coligada com a
violação dos direitos da nação, com a qual o homem está unido por
ligames orgânicos, como que com uma família maior.
Já desde a primeira metade deste século, no período em que se
estavam a desenvolver vários totalitarismos de estado, os quais —
como se sabe — levaram à horrível catástrofe bélica, a Igreja
havia claramente delineado a sua posição defronte a estes regimes,
que aparentemente agiam por um bem superior, qual é o bem do estado,
enquanto que a história haveria de demonstrar que, pelo contrário,
aquilo era apenas o bem de um determinado partido, que se tinha
identificado com o estado. Esses regimes, na realidade, haviam
coarctado os direitos dos cidadãos, negando-lhes o reconhecimento
daqueles direitos invioláveis do homem que, pelos meados do nosso
século obtiveram a sua formulação no plano internacional. Ao
compartilhar a alegria de uma tal conquista com todos os homens de boa
vontade, com todos os homens que amam verdadeiramente a justiça e a
paz, a Igreja, cônscia de que a «letra» somente pode matar, ao
passo que só «o espírito vivifica», deve, conjuntamente com estes
homens de boa vontade, de contínuo perguntar se a Declaração dos
direitos do homem e a aceitação da sua «letra» significam em toda a
parte também a realização do seu «espírito». Surgem,
efectivamente, receios fundados de que muito frequentemente estamos
ainda longe de uma tal realização, e de que por vezes o espírito da
vida social e pública se acha em dolorosa oposição com a declarada
«letra» dos direitos do homem. Este estado de coisas, gravoso para
as respectivas sociedades, tornaria aqueles que contribuem para o
determinar particularmente responsáveis, perante essas sociedades e
perante a história do homem.
O sentido essencial do Estado, como comunidade política, consiste
nisto: que a sociedade e, quem a compõe, o povo é soberano do
próprio destino. Um tal sentido não se torna uma realidade, se, em
lugar do exercício do poder com a participação moral da sociedade ou
do povo, tivermos de assistir à imposição do poder por parte de um
determinado grupo a todos os outros membros da mesma sociedade. Estas
coisas são essenciais na nossa época, em que tem crescido enormemente
a consciência social dos homens e, conjuntamente com ela, a
necessidade de uma correcta participação dos cidadãos na vida
política da comunidade, tendo em conta as reais condições de cada
povo e o necessário vigor da autoridade pública. Estes são, pois,
os problemas de primária importância sob o ponto de vista do progresso
do mesmo homem e do desenvolvimento global da sua humanidade.
A Igreja sempre tem ensinado o dever de agir pelo bem comum; e,
procedendo assim, também educou bons cidadãos para cada um dos
Estados. Além disso, ela sempre ensinou que o dever fundamental do
poder é a solicitude pelo bem comum da sociedade; daqui dimanam os
seus direitos fundamentais. Em nome precisamente destas premissas,
respeitantes à ordem ética objectiva, os direitos do poder não podem
ser entendidos de outro modo que não seja sobre a base do respeito
pelos direitos objectivos e invioláveis do homem. Aquele bem comum
que a autoridade no Estado serve, será plenamente realizado somente
quando todos os cidadãos estiverem seguros dos seus direitos. Sem
isto, chega-se ao descalabro da sociedade, à oposição dos
cidadãos contra a autoridade, ou então a uma situação de
opressão, de intimidação, de violência, ou de terrorismo, de que
nos forneceram numerosos exemplos os totalitarismos do nosso século.
É assim que o princípio dos direitos do homem afecta profundamente o
sector da justiça social e se torna padrão para a sua fundamental
verificação na vida dos Organismos políticos.
Entre estes direitos insere-se, e justamente, o direito à liberdade
religiosa ao lado do direito da liberdade de consciência. O II
Concílio do Vaticano considerou particularmente necessário elaborar
uma mais ampla Declaração sobre este tema. É o Documento que se
intitula Dignitatis humanae, no qual foi expressa, não somente a
concepção teológica do problema, mas também a concepção sob o
ponto de vista do direito natural, ou seja da posição «puramente
humana», em base àquelas premissas ditadas pela própria experiência
do homem, pela razão e pelo sentido da sua dignidade. Certamente, a
limitação da liberdade religiosa das pessoas e das comunidades não é
apenas uma sua dolorosa experiência, mas atinge antes de mais nada a
própria dignidade do homem, independentemente da religião professada
ou da concepção que elas tenham do mundo. A limitação da liberdade
religiosa e a sua violação estão em contraste com a dignidade do
homem e com os seus direitos objectivos. O Documento conciliar acima
referido diz com bastante clareza o que seja uma tal limitação e
violação da liberdade religiosa. Encontramo-nos em tal caso, sem
dúvida alguma, perante uma injustiça radical em relação àquilo que
é particularmente profundo no homem e em relação àquilo que é
autenticamente humano. Com efeito, até mesmo os fenómenos da
incredulidade, da a-religiosidade e do ateísmo, como fenómenos
humanos, compreendem-se somente em relação com o fenómeno de
religião e da fé. É difícil, portanto, mesmo de um ponto de vista
«puramente humano», aceitar uma posição segundo a qual só o
ateísmo tem direito de cidadania na vida pública e social, enquanto
que os homens crentes, quase por príncipio, são apenas tolerados,
ou então tratados como cidadãos de segunda categoria, e até mesmo —
o que já tem sucedido — são totalmente privados dos direitos de
cidadania.
É necessário, embora com brevidade, tratar também deste tema,
porque ele realmente faz parte do complexo das situações do homem no
mundo actual, e porque ele também está a testemunhar quanto esta
situação está profundamente marcada por preconceitos e por
injustiças de vários géneros. Se me abstenho de entrar em
pormenores neste campo precisamente, no qual me assistiria um especial
direito e dever para o fazer, isso é sobretudo porque, juntamente com
todos aqueles que sofrem os tormentos da discriminação e da
perseguição por causa do nome de Deus, sou guiado pela fé na força
redentora da cruz de Cristo. Desejo, no entanto, em virtude de meu
múnus, em nome de todos os homens crentes do mundo inteiro,
dirigir-me àqueles de quem, de alguma maneira, depende a
organização da vida social e pública, pedindo-lhes ardentemente
para respeitarem os direitos da religião e da actividade da Igreja.
Não se pede nenhum privilégio, mas o respeito de um elementar
direito. A actuação deste direito é um dos fundamentais meios para
se aquilatar do autêntico progresso do homem em todos os regimes, em
todas as sociedades e em todos os sistemas ou ambientes.
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