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2. Deus, que «habita numa luz inacessível» [8],
fala também ao homem através da linguagem de todo o
universo: «Desde a criação do mundo as perfeições
invisíveis de Deus, tanto o seu poder eterno como a sua
divindade, tornam-se reconhecíveis quando as obras por
Ele realizadas são consideradas pela mente
humana»[9].
O conhecimento indirecto e imperfeito, obra da
inteligência que procura Deus por meio das criaturas,
através do mundo visível, não é ainda «visão do
Pai». «Ninguém jamais viu a Deus», escreve S.
João para dar maior relevo à verdade segundo a qual «o
Filho unigénito, que está no seio do Pai, é que O
deu a conhecer» [10]. A «revelação» manifesta
Deus no insondável mistério do seu ser -uno e trino-
rodeado de «luz inacessível» [11]. Mediante esta
«revelação» de Cristo, conhecemos Deus, antes de
mais nada na sua relação de amor para com o homem: na
sua «filantropia» [12]. É precisamente aqui que
«as suas perfeições invisíveis» se tornam de maneira
particular «reconhecíveis», incomparavelmente mais
reconhecíveis do que através de todas as outras «obras
por Ele realizadas». Tornam-se visíveis em Cristo e
por meio de Cristo, por intermédio das suas acções e
palavras e, por fim, mediante a sua morte na cruz e a sua
ressurreição.
Deste modo em Cristo e por Cristo, Deus com a sua
misericódia torna-se também particularmente visível;
isto é, põe-se em evidência o atributo da divindade,
que já o Antigo Testamento, servindo-se de diversos
conceitos e termos, tinha chamado «misericórdia».
Cristo confere a toda a tradição do Antigo Testamento
quanto à misericórdia divina sentido definitivo. Não
somente fala dela e a explica com o uso de comparações e
parábolas, mas sobretudo Ele próprio encarna-a e
personifica-a. Ele próprio é, em certo sentido, a
misericórdia. Para quem a vê n'Ele — e n'Ele a
encontra — Deus torna-se particularmente «visível»
como Pai «rico em misericórdia»[13].
A mentalidade contemporânea, talvez mais do que a do
homem do passado, parece opor-se ao Deus de
misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e a
tirar do coração humano a própria ideia da
misericórdia. A palavra e o conceito de misericórdia
parecem causar mal-estar ao homem, o qual, graças ao
enorme desenvolvimento da ciência e da técnica, nunca
antes verificado na história, se tornou senhor da terra,
a subjugou e a dominou [14]. Tal domínio sobre a
terra, entendido por vezes unilateral e superficialmente,
parece não deixar espaço para a misericórdia.
A este propósito, podemos reportar-nos com proveito à
imagem da «condição do homem no mundo contemporâneo»,
como está delineada no início da Constituição Gaudium
et Spes, onde lemos, entre outras, as afirmações
seguintes: «Assim, o mundo actual apresenta-se
simultaneamente poderoso e débil, capaz do melhor e do
pior; abre-se na sua frente o caminho da liberdade ou da
escravidão, do progresso ou da regressão, da
fraternidade ou do ódio. Além disso, o homem toma
consciência de que depende dele a boa orientação das
forças que suscitou, as quais tanto o podem esmagar como
servir» [15].
A situação do mundo contemporâneo não só manifesta
transformações que fazem esperar um futuro melhor do
homem sobre a terra, mas apresenta também múltiplas
ameaças, que ultrapassam largamente as conhecidas até
agora. Sem deixar de denunciar tais ameaças (por
exemplo, com intervenções na ONU, na UNESCO,
na FAO e noutras sedes), a Igreja deve também
examiná-las à luz da verdade recebida de Deus.
A verdade revelada por Cristo a respeito de Deus «Pai
das misericórdias» [16], permite-nos «vê-l'O»
particularmente próximo do homem, sobretudo quando este
sofre, quando é ameaçado no próprio coração da sua
existência e da sua dignidade. Por este motivo, na
actual situação da Igreja e do mundo, muitos homens e
muitos ambientes, guiados por vivo sentido de fé,
voltam-se quase espontaneamente, por assim dizer, para a
misericórdia de Deus. São impelidos a fazê-lo
certamente pelo próprio Cristo, o qual, mediante o seu
Espírito, continua operante no íntimo dos corações
humanos. O mistério de Deus «Pai das misericórdias»
revelado por Cristo torna-se, no contexto das hodiernas
ameaças contra o homem, como que um singular apelo
dirigido à Igreja.
Na presente Encíclica, pretendo acolher tal apelo;
desejo inspirar-me na linguagem da revelação e da fé,
linguagem eterna e ao mesmo tempo incomparável pela sua
simplicidade e profundidade, para com ela exprimir, uma
vez mais, diante de Deus e dos homens, as grandes
preocupações do nosso tempo.
A revelação e a fé ensinam-nos, efectivamente, não
tanto a meditar de modo abstracto sobre o mistério de
Deus, «Pai das misericórdias», quanto a recorrer a
esta mesma misericórdia em nome de Cristo e em união com
Ele. Cristo não disse, porventura, que o nosso Pai,
Aquele que «vê o que é secreto» [17], está
continuamente à espera, por assim dizer, de que nós,
apelando para Ele em todas as necessidades, perscrutemos
cada vez mais o seu mistério: o mistério do Pai e do
seu amor? [18]
É meu desejo, portanto, que estas considerações sirvam
para aproximar mais de todos tal mistério e se tornem, ao
mesmo tempo, um vibrante apelo da Igreja à
misericórdia, de que o homem e o mundo contemporâneo
tanto precisam. E precisam dessa misericórdia, mesmo
sem muitas vezes o saberem.
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