|
21. Segundo o Antigo Testamento, o conhecimento não
se baseia apenas numa atenta observação do homem, do
mundo e da história, mas supõe como indispensável
também uma relação com a fé e os conteúdos da
Revelação. Aqui se concentram os desafios que o Povo
Eleito teve de enfrentar e a que deu resposta. Ao
reflectir sobre esta sua condição, o homem bíblico
descobriu que não se podia compreender senão como «ser
em relação»: relação consigo mesmo, com o povo,
com o mundo e com Deus. Esta abertura ao mistério, que
provinha da Revelação, acabou por ser, para ele, a
fonte dum verdadeiro conhecimento, que permitiu à sua
razão aventurar-se em espaços infinitos, recebendo
inesperadas possibilidades de compreensão.
Segundo o autor sagrado, o esforço da investigação
não estava isento da fadiga causada pelo embate nas
limitações da razão. Sente-se isso mesmo, por
exemplo, nas palavras com que o livro dos Provérbios
denuncia o cansaço provado ao tentar compreender os
misteriosos desígnios de Deus (cf. 30, 1-6).
Todavia, apesar da fadiga, o crente não desiste. E a
força para continuar o seu caminho rumo à verdade provém
da certeza de que Deus o criou como um «explorador»
(cf. Coel 1, 13), cuja missão é não deixar nada
sem tentar, não obstante a contínua chantagem da
dúvida. Apoiando-se em Deus, o crente permanece, em
todo o lado e sempre, inclinado para o que é belo, bom e
verdadeiro.
22. S. Paulo, no primeiro capítulo da carta aos
Romanos, ajuda-nos a avaliar melhor quanto seja incisiva
a reflexão dos Livros Sapienciais. Desenvolvendo com
linguagem popular uma argumentação filosófica, o
Apóstolo exprime uma verdade profunda: através da
criação, os «olhos da mente» podem chegar ao
conhecimento de Deus. Efectivamente, através das
criaturas, Ele faz intuir à razão o seu «poder» e a
sua «divindade» (cf. Rom 1, 20). Deste modo,
é atribuída à razão humana uma capacidade tal que
parece quase superar os seus próprios limites naturais:
não só ultrapassa o âmbito do conhecimento sensorial,
visto que lhe é possível reflectir criticamente sobre o
mesmo, mas, raciocinando a partir dos dados dos
sentidos, pode chegar também à causa que está na origem
de toda a realidade sensível. Em terminologia
filosófica, podemos dizer que, neste significativo texto
paulino, está afirmada a capacidade metafísica do
homem.
Segundo o Apóstolo, no projecto originário da
criação estava prevista a capacidade de a razão
ultrapassar comodamente o dado sensível para alcançar a
origem mesma de tudo: o Criador. Como resultado da
desobediência com que o homem escolheu colocar-se em
plena e absoluta autonomia relativamente Àquele que o
tinha criado, perdeu tal facilidade de acesso a Deus
criador.
O livro do Génesis descreve de maneira figurada esta
condição do homem, quando narra que Deus o colocou no
jardim do Éden, tendo no centro «a árvore da ciência
do bem e do mal» (2, 17). O símbolo é claro: o
homem não era capaz de discernir e decidir, por si só,
aquilo que era bem e o que era mal, mas devia apelar-se a
um princípio superior. A cegueira do orgulho iludiu os
nossos primeiros pais de que eram soberanos e autónomos,
podendo prescindir do conhecimento vindo de Deus. Nesta
desobediência original, eles implicaram todo o homem e
mulher, causando à razão traumas sérios que haveriam de
dificultar-lhe, daí em diante, o caminho para a verdade
plena. Agora a capacidade humana de conhecer a verdade
aparece ofuscada pela aversão contra Aquele que é fonte
e origem da verdade. O próprio apóstolo S. Paulo nos
revela como, por causa do pecado, os pensamentos dos
homens se tornaram «vãos» e os seus arrazoados
tortuosos e falsos (cf. Rom 1, 21-22). Os
olhos da mente deixaram de ser capazes de ver claramente:
a razão foi progressivamente ficando prisioneira de si
mesma. A vinda de Cristo foi o acontecimento de
salvação que redimiu a razão da sua fraqueza,
libertando-a dos grilhões onde ela mesma se tinha
algemado.
23. Deste modo, a relação do cristão com a
filosofia requer um discernimento radical. No Novo
Testamento, especialmente nas cartas de S. Paulo,
aparece claramente este dado: a contraposição entre «a
sabedoria deste mundo» e a sabedoria de Deus revelada em
Jesus Cristo. A profundidade da sabedoria revelada
rompe o círculo dos nossos esquemas de reflexão
habituais, que não são minimamente capazes de
exprimi-la de forma adequada.
O início da primeira carta aos Coríntios apresenta
radicalmente este dilema. O Filho de Deus crucificado
é o acontecimento histórico contra o qual se desfaz toda
a tentativa da mente para construir, sobre razões
puramente humanas, uma justificação suficiente do
sentido da existência. O verdadeiro ponto nodal, que
desafia qualquer filosofia, é a morte de Jesus Cristo
na cruz. Aqui, de facto, qualquer tentativa de reduzir
o plano salvífico do Pai a mera lógica humana está
destinada à falência. «Onde está o sábio? Onde
está o erudito? Onde está o investigador deste
século? Porventura, Deus não considerou louca a
sabedoria deste mundo?» (1 Cor 1, 20) —
interroga-se enfaticamente o Apóstolo. Para aquilo que
Deus quer realizar, não basta a simples sabedoria do
homem sábio, requer-se um passo decisivo que leve ao
acolhimento duma novidade radical: «O que é louco
segundo o mundo é que Deus escolheu para confundir os
sábios (...). O que é vil e desprezível no
mundo, é que Deus escolheu, como também aquelas coisas
que nada são, para destruir as que são» (1 Cor 1,
27-28). A sabedoria do homem recusa ver na própria
fragilidade o pressuposto da sua força; mas S. Paulo
não hesita em afirmar: «Quando me sinto fraco, então
é que sou forte» (2 Cor 12, 10). O homem não
consegue compreender como possa a morte ser fonte de vida e
de amor, mas Deus, para revelar o mistério do seu
desígnio salvador, escolheu precisamente o que a razão
considera «loucura» e «escândalo». Usando a
linguagem dos filósofos do seu tempo, Paulo chega ao
clímax da sua doutrina e do paradoxo que quer exprimir:
«Deus escolheu, no mundo, aquelas coisas que nada
são, para destruir as que são» (cf. 1 Cor 1,
28). Para exprimir o carácter gratuito do amor
revelado na cruz de Cristo, o Apóstolo não tem medo de
usar a linguagem mais radical que os filósofos empregavam
nas suas reflexões a respeito de Deus. A razão não
pode esgotar o mistério de amor que a Cruz representa,
mas a Cruz pode dar à razão a resposta última que esta
procura. S. Paulo coloca, não a sabedoria das
palavras, mas a Palavra da Sabedoria como critério,
simultaneamente, de verdade e de salvação.
Por conseguinte, a sabedoria da Cruz supera qualquer
limite cultural que se lhe queira impor, obrigando a
abrir-se à universalidade da verdade de que é
portadora. Como é grande o desafio lançado à nossa
razão e como são enormes as vantagens que terá, se ela
se render! A filosofia, que por si mesma já é capaz de
reconhecer a necessidade do homem se transcender
continuamente na busca da verdade, pode, ajudada pela
fé, abrir-se para, na «loucura» da Cruz, acolher
como genuína a crítica a quantos se iludem de possuir a
verdade, encalhando-a nas sirtes dum sistema próprio.
A relação entre a fé e a filosofia encontra, na
pregação de Cristo crucificado e ressuscitado, o
escolho contra o qual pode naufragar, mas também para
além do qual pode desembocar no oceano ilimitado da
verdade. Aqui é evidente a fronteira entre a razão e a
fé, mas torna-se claro também o espaço onde as duas se
podem encontrar.
|
|