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É fora de dúvida que o trabalho, como problema do homem, se encontra
mesmo ao centro naquela «questão social», para a qual se têm
voltado de modo especial, durante os quase cem anos decorridos desde a
publicação da mencionada Encíclica, o ensino da Igreja e as
múltiplas iniciativas tomadas em continuidade com a sua missão
apostólica. Dado que é meu desejo concentrar as reflexões que se
seguem no trabalho, quero fazê-lo não de maneira deforme, mas sim
em conexão orgânica com toda a tradição deste ensino e destas
iniciativas. Ao mesmo tempo, porém, quero fazê-lo segundo a
orientação do Evangelho, para extrair do património do mesmo
Evangelho «coisas novas e coisas velhas». O trabalho, certamente,
é uma coisa «velha», tão antiga quanto o homem e a sua vida sobre a
face da terra. A situação geral do homem no mundo contemporâneo,
diagnosticada e analisada nos vários aspectos geográficos, de cultura
e de civilização, exige todavia que se descubram os novos
significados do trabalho humano e, além disso, que se formulem as
novas tarefas que neste sector se deparam indeclinavelmente a todos os
homens, à família, a cada uma das nações e a todo o género humano
e, por fim, à própria Igreja.
Neste espaço dos noventa anos que passaram desde a publicação da
Encíclica Rerum Novarum, a questão social não cessou de ocupar a
atenção da Igreja. São testemunho disso os numerosos documentos do
Magistério, emanados quer dos Sumos Pontífices, quer do II
Concílio do Vaticano; são testemunho disso, igualmente, as
enunciações dos diversos Episcopados; e é testemunho disso,
ainda, a actividade dos vários centros de pensamento e de iniciativas
concretas de apostolado, quer a nível internacional, quer a nível
das Igrejas locais. É difícil enumerar aqui, de forma
pormenorizada, todas as manifestações da viva aplicação da Igreja
e dos cristãos no que se refere à questão social, porque elas são
muito numerosas. Como resultado do Concílio, tornou-se o principal
centro de coordenação neste campo aPontifícia Comissão «Justitia
et Pax». A mesma Comissão encontra Organismos seus
correspondentes no âmbito das Conferências Episcopais singularmente
consideradas. O nome desta instituição é muito significativo. Ele
indica que a questão social deverá ser tratada no seu aspecto integral
e complexo. O empenhamento em favor da justiça deve andar intimamente
unido à aplicação em prol da paz no mundo contemporâneo.
Constitui, certamente, um pronunciamento a favor deste dúplice
empenhamento a dolorosa experiência das duas grandes guerras mundiais
que, ao longo dos últimos noventa anos, abalaram muitos países,
tanto do continente europeu, quanto, ao menos parcialmente, dos
outros continentes. E pronuncia-se a seu favor, especialmente desde
o fim da segunda guerra mundial para cá, a ameaça permanente de uma
guerra nuclear e, a emergir por detrás dela, a perspectiva de uma
terrível autodestruição.
Se seguirmos a linha principal de desenvolviménto dos documentos do
supremo Magistério da Igreja, encontramos neles a confirmação
explícita precisamente de um tal modo de enquadrar o problema. Pelo
que diz respeito à questão da paz no mundo, a posição-chave é a
da Encíclica Pacem in Terris do Papa João XXIII. Por outro
lado, se se considera o evoluir da questão da justiça social, deve
notar-se o seguinte: enquanto no período que vai desde a Rerum
Novarum até à Quadragesimo Anno de Pio XI, o ensino da Igreja
se concentra sobretudo em torno da justa solução da chamada questão
operária no âmbito de cada uma das nações, na fase sucessiva o
mesmo ensino alarga o horizonte às dimensões do mundo inteiro. A
distribuição desproporcionada de riqueza e de miséria e a existência
de países e continentes desenvolvidos e de outros não-desenvolvidos
exigem uma perequação e que se procurem as vias para um justo
desenvolvimento de todos. Nesta direcção procede o ensino contido na
Encíclica Mater et Magistra do Papa João XXIII, bem como na
Constituição pastoral Gaudium et Spes do II Concílio do
Vaticano e na EncíclicaPopulorum Progressio do Papa Paulo VI.
Esta direcção seguida no desenvolvimento do ensino e também da
aplicação da Igreja, quanto à questão social, corresponde
exactamente ao reconhecimento objectivo do estado das coisas. Com
efeito, se em tempos passados se punha em relevo no centro de tal
questão sobretudo o problema da «classe», em época mais recente é
posto em primeiro plano o problema do «mundo». Por isso, deve ser
tomado em consideração não apenas o âmbito da classe, mas o âmbito
mundial das desigualdades e das injustiças; e, como consequência,
não apenas a dimensão da classe, mas sim a dimensão mundial das
tarefas a assumir na caminhada que há-de levar à realização da
justiça no mundo contemporâneo. A análise completa da situação do
mesmo mundo dos dias de hoje manifestou de maneira ainda mais profunda e
mais cabal o significado da anterior análise das injustiças sociais;
e é o significado que hoje em dia se deve atribuir aos esforços que
tendem a construir a justiça na terra, não encobrindo com isso as
estruturas injustas, mas demandando a revisão e a transformação das
mesmas numa dimensão mais universal.
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