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Se, portanto, o nosso tempo, o tempo da nossa geração, o tempo
que se vai aproximando do fim do segundo Milénio da nossa era
cristã, se nos manifesta como um tempo de grande progresso, ele
apresenta-se também como um tempo de multiforme ameaça contra o
homem, da qual a Igreja deve falar a todos os homens de boa vontade e
sobre a qual ela deve constantemente dialogar com eles. A situação
do homem no mundo contemporâneo, de facto, parece estar longe das
exigências objectivas da ordem moral, assim como das exigências da
justiça e, mais ainda, do amor social. Não se trata aqui senão
daquilo que teve a sua expressão na primeira mensagem do Criador
dirigida ao homem no momento em que lhe dava a terra, para que ele a
«dominasse». Esta primeira mensagem de Deus foi confirmada depois,
no mistério da Redenção, por Cristo Senhor. Isto foi expresso
pelo II Concílio do Vaticano naqueles belíssimos capítulos do seu
ensino que dizem respeito à «realeza» do homem, isto é, à sua
vocação para participar na função real — o «munus regale» — do
mesmo Cristo. O sentido essencial desta «realeza» e deste
«domínio» do homem sobre o mundo visível, que lhe foi confiado como
tarefa pelo próprio Criador, consiste na prioridade da ética sobre a
técnica, no primado da pessoa sobre as coisas e na superioridade do
espírito sobre a matéria.
É por isso mesmo que é necessário acompanhar atentamente todas as
fases do progresso hodierno: é preciso, por assim dizer, fazer a
radiografia de cada uma das suas etapas exactamente deste ponto de
vista. Está em causa o desenvolvimento da pessoa e não apenas a
multiplicação das coisas, das quais as pessoas podem servir-se.
Trata-se — como disse um filósofo contemporâneo e como afirmou o
Concílio — não tanto de «ter mais», quanto de «ser mais». Com
efeito, existe já um real e perceptível perigo de que, enquanto
progride enormemente o domínio do homem sobre o mundo das coisas, ele
perca os fios essenciais deste seu domínio e, de diversas maneiras,
submeta a elas a sua humanidade, e ele próprio se torne objecto de
multiforme manipulação, se bem que muitas vezes não directamente
perceptível; manipulação através de toda a organização da vida
comunitária, mediante o sistema de produção e por meio de pressões
dos meios de comunicação social. O homem não pode renunciar a si
mesmo, nem ao lugar que lhe compete no mundo visível; ele não pode
tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas económicos,
escravo da produção e escravo dos seus próprios produtos. Uma
civilização de feição puramente materialista condena o homem a tal
escravidão, embora algumas vezes, indubitavelmente, isso aconteça
contra as intenções e as mesmas premissas dos seus pioneiros. Na
raiz da actual solicitude pelo homem está sem dúvida alguma este
problema. E não é questão aqui somente de dar uma resposta
abstracta à pergunta: quem é o homem; mas trata-se de todo o
dinamismo da vida e da civilização. Trata-se do sentido das várias
iniciativas da vida quotidiana e, ao mesmo tempo, das premissas para
numerosos programas de civilização, programas políticos,
económicos, sociais, estatais e muitos outros.
Se nós ousamos definir a situação do homem contemporâneo como
estando longe das exigências objectivas da ordem moral, longe das
exigências da justiça e, ainda mais, do amor social, é porque isto
é confirmado por factos bem conhecidos e por confrontos que se podem
fazer e que, por mais de uma vez, já tiveram ressonância directa nas
páginas das enunciações pontifícias, conciliares e sinodais. A
situação do homem na nossa época não é certamente uniforme, mas
sim diferenciada de múltiplas maneiras. Estas diferenças têm as
suas causas históricas, mas também têm uma forte ressonância
ética. É assaz conhecido, de facto, o quadro da civilização
consumística, que consiste num certo excesso de bens necessários ao
homem e a sociedades inteiras — e aqui trata-se exactamente das
sociedades ricas e muito desenvolvidas — enquanto que as restantes
sociedades, ao menos largos estratos destas, sofrem a fome, e muitas
pessoas morrem diariamente por desnutrição ou inédia.
Simultaneamente sucede que se dá por parte de uns um certo abuso da
liberdade, que está ligado precisamente a um modo de comportar-se
consumístico, não controlado pela ética, enquanto isso limita
contemporâneamente a liberdade dos outros, isto é, daqueles que
sofrem notórias carências e se vêem empurrados para condições de
ulterior miséria e indigência.
Este confronto, universalmente conhecido, e o contraste a que
dedicaram a sua atenção, nos documentos do seu magistério, os
Sumos Pontífices do nosso século, mais recentemente João
XXIII assim como Paulo VI, representam como que um gigantesco
desenvolvimento da parábola bíblica do rico avarento e do pobre
Lázaro.
A amplitude do fenómeno põe em questão as estruturas e os mecanismos
financeiros, monetários, produtivos e comerciais, que, apoiando-se
em diversas pressões políticas, regem a economia mundial: eles
demonstram-se como que incapazes quer para reabsorver as situações
sociais injustas, herdadas do passado, quer para fazer face aos
desafios urgentes e às exigências éticas do presente. Submetendo o
homem às tensões por ele mesmo criadas, dilapidando, com um ritmo
acelerado, os recursos materiais e energéticos e comprometendo o
ambiente geofísico, tais estruturas dão azo a que se estendam
incessantemente as zonas de miséria e, junto com esta, a angústia,
a frustração e a amargura.
Encontramo-nos aqui perante o grande drama, que não pode deixar
ninguém indiferente. O sujeito que, por um lado, procura auferir o
máximo proveito, bem como aquele que, por outro lado, paga as
consequências dos danos e das injúrias, é sempre o homem. E tal
drama é ainda mais exacerbado pela proximidade com os estratos sociais
privilegiados e com os países da opulência, que acumulam os bens num
grau excessivo e cuja riqueza se torna, muitas vezes por causa do
abuso, motivo de diversos mal-estares. A isto ajuntem-se a febre da
inflação e a praga do desemprego: e eis outros sintomas de tal
desordem moral, que se faz sentir na situação mundial e que exige por
isso mesmo resoluções audaciosas e criativas, conformes com a
autêntica dignidade do homem.
Uma tal tarefa não é impossível de realizar. O princípio de
solidariedade, em sentido lato, deve inspirar a busca eficaz de
instituições e de mecanismos apropriados: quer se trate do sector dos
intercâmbios, em que é necessário deixar-se conduzir pelas leis de
uma sã competição, quer se trate do plano de uma mais ampla e
imediata redistribuição das riquezas e dos controlos sobre as mesmas,
a fim de que os povos que se encontram em vias de desenvolvimento
económico possam, não apenas satisfazer às suas exigências
essenciais, mas também progredir gradual e eficazmente.
Não será fácil avançar, porém, neste difícil caminho, no
caminho da indispensável transformação das estruturas da vida
económica, se não intervier uma verdadeira conversão das mentes,
das vontades e dos corações. A tarefa exige a aplicação decidida
de homens e de povos livres e solidários. Com muita frequência se
confunde a liberdade com o instinto do interesse individual e
colectivo, ou ainda com o instinto de luta e de domínio, quaisquer
que sejam as cores ideológicas de que eles se revistam. E óbvio que
esses instintos existem e operam; mas não será possível ter-se uma
economia verdadeiramente humana, se eles não forem assumidos,
orientados e dominados pelas forças mais profundas que se encontram no
homem, e que são aquelas que decidem da verdadeira cultura dos povos.
E é precisamente destas fontes que deve nascer o esforço, no qual se
exprimirá a verdadeira liberdade do homem, e que será capaz de a
assegurar também no campo económico. O desenvolvimento económico,
conjuntamente com tudo aquilo que faz parte do seu modo próprio e
adequado de funcionar, tem de ser constantemente programado e realizado
dentro de uma perspectiva de desenvolvimento universal e solidário dos
homens tomados singularmente e dos povos, conforme recordava de maneira
convincente o meu Predecessor Paulo VI na Encíclica Populorum
Progressio. Sem isso, a simples categoria do «progresso
económico» torna-se uma categoria superior, que passa a subordinar o
conjunto da existência humana às suas exigências parciais, sufoca o
homem, desagrega as sociedades e acaba por desenvolver-se nas suas
próprias tensões e nos seus mesmos excessos.
É possível assumir este dever; testemunham-no os factos certos e os
resultados, que é difícil enumerar aqui de maneira mais
pormenorizada. E uma coisa, contudo, é certa: na base deste campo
gigantesco é necessário estabelecer, aceitar e aprofundar o sentido
da responsabilidade moral, que tem de assumir o homem. Ainda uma vez
e sempre, o homem. Para nós cristãos uma tal responsabilidade
torna-se particularmente evidente, quando recordamos — e devemos
recordá-lo sempre — a cena do juízo final, segundo as palavras de
Cristo, referidas no Evangelho de São Mateus.
Essa cena escatológica tem de ser sempre «aplicada» à história do
homem, deve ser sempre tomada como «medida» dos actos humanos, como
um esquema essencial de um exame de consciência para cada um e para
todos: «Tive fome e não Me destes de comer...; estava nú e
não Me vestistes...; estava na prisão e não fostes
visitar-Me». Estas palavras adquirem um maior cunho de
admoestação ainda, se pensamos que, em vez do pão e da ajuda
cultural a novos estados e nações que estão a despertar para a vida
independente, algumas vezes, se lhes oferecem, não raro com
abundância, armas modernas e meios de destruição, postos ao
serviço de conflitos armados e de guerras, que não são tanto uma
exigência da defesa dos seus justos direitos e da sua soberania,
quanto sobretudo uma forma de «chauvinismo» , de imperialismo e de
neo-colonialismo de vários géneros. Todos sabemos bem que as zonas
de miséria ou de fome, que existem no nosso globo, poderiam ser
«fertilizadas» num breve espaço de tempo, se os gigantescos
investimentos para os armamentos, que servem para a guerra e para a
destruição, tivessem sido em contrapartida convertidos em
investimentos para a alimentação, que servem para a vida.
Esta consideração talvez permaneça parcialmente «abstracta»;
talvez dê azo a uma e à outra «parte» para se acusar
reciprocamente, esquecendo cada qual as próprias culpas; talvez
provoque mesmo novas acusações contra a Igreja.
Esta, porém, não dispondo de outras armas, senão das do
espírito, das armas da palavra e do amor, não pode renunciar a
pregar a Palavra, insistindo oportuna e inoportunamente. Por isso,
ela não cessa de solicitar a cada uma das partes e de pedir a todos,
em nome de Deus e em nome do homem: Não mateis! Não prepareis
para os homens destruições e extermínio! Pensai nos vossos irmãos
que sofrem a fome e a miséria! Respeitai a dignidade e a liberdade de
cada um!
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