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25. «A Igreja "prossegue a sua peregrinação no meio das
perseguições do mundo e das consolações de Deus", anunciando a
paixão e a morte do Senhor até que ele venha (cf. 1 Cor
11,26)». «Assim como Israel segundo a carne, que peregrinava
no deserto, é já chamado Igreja de Deus (cf. Esdr 13, 1;
Núm 20, 4; Dt 23, 1 ss.), também o novo Israel... se
chama Igreja de Cristo (cf. Mt 16,18), porque Ele a
adquiriu com o seu próprio sangue (cf. Act 20, 28), a encheu
com o seu Espírito e a dotou com os meios adequados para a unidade
visível e social. A todos aqueles que olham com fé para Jesus,
como autor da salvação e princípio de unidade e de paz, Deus
convocou-os e constituiu com eles a Igreja, a fim de que ela seja
para todos e cada um sacramento visível desta unidade salvífica».
O Concílio Vaticano II fala da Igreja que ainda está a caminho,
estabelecendo uma analogia com o Israel da Antiga Aliança em
peregrinação através do deserto. A peregrinação possui um
carácter também externo, visível no tempo e no espaço, em que ela
se efectua historicamente. A Igreja, de facto, «devendo
estender-se a toda a terra», «entra na história dos homens, mas
simultaneamente transcende os tempos e as fronteiras dos povos».
Porém, o carácter essencial desta peregrinação da Igreja é
interior: trata-se de uma peregrinação mediante a fé, pela
«virtude do Senhor ressuscitado», de uma peregrinação no
Espírito Santo, que foi dado à Igreja como Consolador invisível
(paraklétos) (cf. Jo 14,26; 15, 26; e 16,7):
«Por entre as tentações e tribulações que vai encontrando no seu
peregrinar, a Igreja é confortada pela força da graça de Deus,
que lhe foi prometida pelo Senhor, para que... não cesse nunca de
renovar-se, com o auxílio do Espírito Santo, até que, pela
Cruz, chegue àquela luz que não conhece ocaso».
Precisamente ao longo desta caminhada-peregrinação eclesial,
através do espaço e do tempo e, mais ainda, através da história
das almas, Maria está presente, como aquela que é «feliz porque
acreditou», como aquela que avançava na peregrinação da fé,
participando como nenhuma outra criatura no mistério de Cristo. Diz
ainda o Concílio que «Maria ... pela sua participação íntima
na história da salvação, reúne, por assim dizer, e reflecte em si
os imperativos mais altos da fé». Ela é, entre todos os que
acreditam, como um «espelho», em que se reflectem da maneira mais
profunda e mais límpida «as maravilhas de Deus» (Act 2, 11).
26. Edificada por Cristo sobre os Apóstolos, a Igreja
tornou-se plenamente cônscia destas «maravilhas de Deus» no dia do
Pentecostes, quando os que estavam congregados no Cenáculo de
Jerusalém «ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a
falar outras línguas, segundo o Espírito Santo lhes concedia que se
exprimissem» (Act 2, 4). A partir desse momento começa também
aquela caminhada de fé, a peregrinação da Igreja através da
história dos homens e dos povos. É sabido que, ao iniciar-se essa
caminhada, Maria se encontrava presente; vemo-la no meio dos
Apóstolos no Cenáculo de Jerusalém, «implorando com as suas
orações o dom do Espírito».
A sua caminhada de fé, em certo sentido, é mais longa. O
Espírito Santo já tinha descido sobre ela, que se tornou sua fiel
esposa na Anunciação, acolhendo o Verbo de Deus vivo, rendendo
«o obséquio pleno da inteligência e da vontade e prestando o
voluntário assentimento à Sua revelação»; ou melhor,
abandonando-se totalmente nas mãos de Deus, «mediante a obediência
de fé», pelo que respondeu ao Anjo: «Eis a serva do Senhor!
Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). Assim, a
caminhada de fé de Maria, que vemos a orar no Cenáculo, é «mais
longa» do que a dos outros que aí se encontravam reunidos: Maria
«precede-os», «vai adiante» deles. O momento do Pentecostes em
Jerusalém foi preparado pelo momento da Anunciação em Nazaré.
No Cenáculo, o «itinerário» de Maria encontra-se com a
caminhada da fé da Igreja. E de que modo?
Entre aqueles que eram assíduos à oração no Cenáculo,
preparando-se para ir «por todo o mundo» depois de receber o
Espírito Santo, alguns tinham sido chamados por Jesus, uns após
outros, sucessivamente, desde os primórdios da sua missão em
Israel. Onze dentre eles tinham sido constituídos Apóstolos; e a
estes Jesus tinha transmitido a missão que ele próprio recebera do
Pai: «Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós»
(Jo 20, 21), tinha Ele dito aos mesmos Apóstolos depois da
Ressurreição. E, passados quarenta dias, antes de voltar para o
Pai, tinha acrescentado ainda: «quando o Espírito Santo tiver
descido sobre vós..., sereis minhas testemunhas até às
extremidades da terra» (cf. Act 1, 8). Esta missão dos
Apóstolos teve início a partir do momento da sua saída do Cenáculo
de Jerusalém. A Igreja nasce e começa então a crescer, mediante
o testemunho que Pedro e os demais Apóstolos dão acerca de Cristo
crucificado e ressuscitado (cf. Act 2, 31-34; 3,
15-18; 4, 10-12; 5, 30-32).
Maria não recebeu directamente esta missão apostólica. Não se
encontrava entre aqueles que Jesus enviou «por todo o mundo para
ensinar todas as gentes» (cf. Mt 28, 19), quando lhes
conferiu tal missão. Estava, porém, no Cenáculo, onde os
Apóstolos se preparavam para assumir esta sua missão com a vinda do
Espírito da Verdade: Maria estava com eles. No meio deles ela era
«assídua na oração» como Mãe de Jesus» (cf. Act 1,
13-14), ou seja, de Cristo crucificado e ressuscitado. E esse
primeiro núcleo daqueles que se voltavam «com fé para Jesus
Cristo, autor da salvação», estava consciente de que o mesmo
Jesus era o Filho de Maria e que ela era sua Mãe; e como tal desde
o momento da concepção e do nascimento, ela era uma testemunha
especial do mistério de Jesus, daquele mistério que tinha sido
expresso e confirmado diante dos seus olhos com a Cruz e a
Ressurreição. A Igreja, portanto, desde o primeiro momento,
«olhou» para Maria através de Jesus, como também «olhou» para
Jesus através de Maria. Ela foi para a Igreja de então e de
sempre uma testemunha singular dos anos da infância de Jesus e da sua
vida oculta em Nazaré, período em que ela «conservava todas estas
coisas, ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19; Lc 2,
51).
Mas na Igreja de então como na Igreja de sempre, Maria foi e é,
sobretudo, aquela que é «feliz porque acreditou»: foi quem primeiro
acreditou. Desde o momento da Anunciação e da concepção e depois
do nascimento na gruta de Belém, Maria acompanhou passo a passo
Jesus, na sua materna peregrinação de fé. Acompanhou-o ao longo
dos anos da sua vida oculta em Nazaré; acompanhou-o também durante
o período da separação externa, quando ele começou a dedicar-se
às «obras e ao ensino» (cf. Act 1, 1 ) no seio de Israel; e
acompanhou-o, sobretudo, na experiência trágica do Gólgota. E
agora, enquanto Maria se encontrava com os Apóstolos no Cenáculo
de Jerusalém, nos albores da Igreja, recebia confirmação a sua
fé, nascida das palavras da Anunciação. O Anjo tinha-lhe dito
então: «Conceberás e darás à luz um filho, ao qual porás o nome
de Jesus. Ele será grande ... e reinará eternamente sobre a casa
de Jacob e o seu reinado não terá fim» (Lc 1, 32-33). Os
acontecimentos do Calvário, havia pouco ainda, tinham envolvido em
trevas esta promessa; e contudo, mesmo aos pés da Cruz, não tinha
desfalecido a fé de Maria. Ela, ainda ali, permanecia aquela que,
como Abraão, «acreditou, esperando contra toda a esperança»
(Rom 4, 18). E assim, depois da Ressurreição, a esperança
tinha desvelado o seu verdadeiro rosto e a promessa tinha começado a
transformar-se em realidade. Com efeito, Jesus, antes de voltar
para o Pai, dissera aos Apóstolos: «Ide e ensinai todas as
gentes... Eis que eu estou convosco, todos os dias, até ao fim do
mundo» (cf. Mt 28, 19. 20). Dissera assim aquele que,
com a sua Ressurreição, se tinha revelado como o triunfador da
morte, como o detentor de um reinado «que não terá fim», conforme
o Anjo tinha anunciado.
27. Agora, nos albores da Igreja, no princípio da sua longa
caminhada mediante a fé, que se iniciava em Jerusalém com o
Pentecostes, Maria estava com todos aqueles que então constituíam o
gérmen do «novo Israel». Estava presente no meio deles como uma
testemunha excepcional do mistério de Cristo. E a Igreja era
assídua na oração juntamente com ela e, ao mesmo tempo,
«contemplava-a à luz do Verbo feito homem». E assim viria a ser
sempre. Com efeito, sempre que a Igreja «penetra mais profundamente
no insondável mistério da Incarnação», ela pensa na Mãe de
Cristo com entranhada veneração e piedade. Maria faz parte
indissoluvelmente do mistério de Cristo; e faz parte também do
mistério da Igreja desde o princípio, desde o dia do seu
nascimento. Na base daquilo que a Igreja é desde o inicio, daquilo
que ela deve tornar-se continuamente, de geração em geração, no
seio de todas as nações da terra, encontra-se «aquela que acreditou
no cumprimento das coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor»
(Lc 1, 45). Esta fé de Maria, precisamente, que assinala o
início da nova e eterna Aliança de Deus com a humanidade em Jesus
Cristo, esta sua fé heróica «precede» o testemunho apostólico da
Igreja e permanece no coração da mesma Igreja, escondida como uma
herança especial da revelação de Deus. Todos aqueles que, de
geração em geração, aceitando o testemunho apostólico da Igreja,
começam a participar nessa herança misteriosa, participam, em certo
sentido, na fé de Maria.
As palavras de Isabel «feliz daquela que acreditou», continuam a
acompanhar a Virgem Maria também no Pentecostes; seguem-na de
época para época, para onde quer que se estenda, através do
testemunho apostólico e do serviço da Igreja, o conhecimento do
mistério salvífico de Cristo. E assim se cumpre a profecia do
Magnificat: «Hão-de me chamar bem-aventurada todas as
gerações, porque fez em mim grandes coisas o Todo-poderoso. É
santo o seu nome» (Lc 1, 48-49). Ao conhecimento do
mistério de Cristo segue-se, efectivamente, a bênção de sua
Mãe, sob a forma de especial veneração para com a Theotókos. E
nessa veneração estão incluídas sempre as palavras abençoadoras da
sua fé. Com efeito, a Virgem de Nazaré, segundo as palavras de
Isabel na altura da Visitação, tornou-se ditosa sobretudo mediante
essa sua fé. Aqueles que, de geração em geração, no seio de
diversos povos e nações, acolhem com fé o mistério de Cristo,
Verbo Incarnado e Redentor do mundo, não só se voltam com
veneração e recorrem confiadamente a Maria como a sua Mãe, mas na
sua fé procuram também o apoio para a própria fé. E precisamente
esta participação viva na fé de Maria decide de uma sua presença
especial na peregrinação da Igreja, como novo Povo de Deus
espalhado por toda a terra.
28. Como diz o Concílio, «Maria ... pela sua participação
íntima na história da salvação... quando é exaltada e honrada,
atrai os fiéis ao seu Filho e ao sacrifício dele, bem como ao amor
do Pai» Por isso, a fé de Maria, atendo-nos ao testemunho
apostólico da Igreja, torna-se, de alguma maneira, incessantemente
a fé do Povo de Deus que está a caminho: a fé das pessoas e das
comunidades, dos encontros e das assembleias e, enfim, dos diversos
grupos que existem na Igreja. Trata-se de uma fé que se transmite
mediante o conhecimento e o coração ao mesmo tempo; de uma fé que se
adquire ou readquire continuamente mediante a oração. É por isso
que, «também na sua acção apostólica, a Igreja olha com razão
para aquela que gerou Cristo, o qual foi concebido por obra do
Espírito Santo e nasceu da Virgem precisamentepara nascer e crescer
também no coração dos fiéis, por meio da Igreja».
Hoje, quando nesta peregrinação de fé já nos aproximamos do final
do Segundo Milénio cristão, a Igreja, por intermédio do
magistério do Concílio Vaticano II, chama a atenção para aquilo
que ela reconhece ser, em si mesma: um «só Povo de Deus ... que
se encontra radicado em todas as nações do mundo»; e, igualmente,
para a verdade segundo a qual todos os féis, embora «espalhados pelo
mundo, comunicam com os restantes por meio do Espírito Santo», de
sorte que pode dizer-se que nesta união se realiza continuamente o
mistério do Pentecostes. Ao mesmo tempo, os apóstolos e os
discípulos do Senhor, em todas as nações da terra, «entregam-se
assiduamente à oração, em companhia de Maria, a mãe de Jesus»
(cf. Act 1, 14). Constituindo de geração em geração o
«sinal do Reino» que «não é deste mundo», eles estão cônscios
de que no meio deste mundo devem congregar-se em torno daquele Rei,
ao qual foram dadas em posse as nações, para seu domínio (cf. Sl
2, 8), e ao qual Deus e Senhor deu «o trono de David, seu
pai», de modo que ele «reinará eternamente na casa de Jacob e o seu
reinado não terá fim» (cf. Lc 1, 33).
Neste tempo de vigília, Maria, mediante a mesma fé que a tornou
feliz a ela, especialmente a partir do momento da Anunciação, está
presente na missão da Igreja, presente na obra da Igreja que
introduz no mundo do Reino do seu Filho. Esta presença de Maria,
nos dias de hoje, como aliás ao longo de toda a história da Igreja,
encontra múltiplos meios de expressão. Possui também um multiforme
raio de acção: mediante a fé e a piedade dos fiéis; mediante as
tradições das famílias cristãs ou «igrejas domésticas», das
comunidades paroquiais e missionárias, dos institutos religiosos e das
dioceses; e mediante o poder de atracção e irradiação dos grandes
santuários, onde não apenas as pessoas individualmente ou grupos
locais, mas por vezes inteiras nações e continentes procuram o
encontro com a Mãe do Senhor, com Aquela que é feliz porque
acreditou, que é a primeira entre aqueles que acreditaram e por isso
se tornou a Mãe do Emanuel. Na mesma linha se enquadra o apelo da
Terra da Palestina, pátria espiritual de todos os cristãos, porque
foi a pátria do Salvador do mundo e da sua Mãe; de igual modo, o
apelo dos numerosos templos que a fé cristã ergueu no decorrer dos
séculos em Roma e no mundo inteiro; e, ainda, o apelo de centros
como Guadalupe, Lourdes, Fátima e os outros espalhados pelos
diversos países, entre os quais, como poderia eu deixar de recordar o
da minha terra natal, Jasna Góra? Talvez se pudesse falar de uma
«geografia» específica da fé e da piedade marianas, a qual abrange
todos estes lugares de particular peregrinação do Povo de Deus;
este busca o encontro com a Mãe de Cristo, procurando achar no clima
de especial irradiação da presença materna «daquela que
acreditou», a consolidação da própria fé.
Com efeito, na fé de Maria, já aquando da Anunciação e de forma
completa aos pés da Cruz, reabriu-se para o homem um certo espaço
interior, no qual o eterno Pai pode locupletar-nos com «toda a sorte
de bênçãos espirituais»: o espaço da «nova e eterna Aliança»
Este espaço subsiste na Igreja que, em Cristo, é como que «um
sacramento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género
humano».
É pela fé, pois, aquela fé que Maria professou na Anunciação
«como serva do Senhor» e com a qual constantemente «precede» o
Povo de Deus que está a caminho sobre a terra, que a Igreja «tende
eficaz e constantemente à recapitulação de toda a humanidade...
sob a Cabeça, Cristo, na unidade do seu Espírito».
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