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55. Da história da salvação resulta, infelizmente, que essa
proximidade e presença de Deus ao homem e ao mundo, essa admirável
«condescendência» do Espírito, depara, na nossa realidade
humana, com resistência e oposição. Como são eloquentes, sob
este ponto de vista as palavras proféticas daquele ancião, chamado
Simeão, que, «movido pelo Espírito», veio ao Templo de
Jerusalém, para anunciar, diante do recém-nascido de Belém, que
«Ele é destinado a ser ocasião de queda e de ressurgimento para
muitos em Israel, a ser sinal de contradição». [232] A
oposição a Deus, que é Espírito invisível, nasce já, em certa
medida, no plano da radical diversidade do mundo em relação a Ele;
ou seja, da «visibilidade» e «materialidade» do mundo em confronto
com Ele, que é «invisível» e «Espírito, no sentido
absoluto»; da sua essencial e inevitável imperfeição em confronto
com Ele, Ser perfeitíssimo. Mas a oposição torna-se conflito,
rebelião no campo ético, por causa do pecado que se apodera do
coração humano, no qual «a carne... tem desejos contrários aos
do espírito e o espírito desejos contrários aos da carne».
[233] O Espírito Santo deve «convencer o mundo» quanto a
este pecado, como dissemos.
É São Paulo quem descreve, de modo particularmente eloquente, a
tensão e a luta, que agitam o coração humano. «Eu digo-vos —
lemos na Epístola aos Gálatas — : Procedei segundo o Espírito e
não dareis satisfações aos desejos da carne. Pois a carne tem
desejos contrários aos do espírito, e o espírito, desejos
contrários aos da carne; há oposição radical entre eles; é por
isso que não fazeis o que quereríeis». [234] No homem,
porque é um ser composto, espírito e corpo, já existe uma certa
tensão, trava-se uma certa luta de tendências entre o «espírito»
e a «carne». Mas esta luta, de facto, faz parte da herança do
pecado, é uma consequência do mesmo pecado e, simultaneamente, uma
sua confirmação. É algo que faz parte da experiência quotidiana.
Assim escreve o Apóstolo: «Ora, as obras da carne são bem
conhecidas: fornicação, impureza, libertinagem... embriaguez,
orgias e coisas semelhantes a estas». São os pecados que se poderiam
qualificar como «carnais». Mas o Apóstolo ainda acrescenta
outros: «inimizades, discórdias, ciúmes, disputas, divisões,
facciosismos, invejas». [235] Tudo isto constitui «as obras
da carne».
A estas obras, porém, que são indubitavelmente más, São Paulo
contrapõe «o fruto do Espírito», que é «caridade, alegria,
paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão e
temperança». [236] Do contexto, resulta com clareza que,
para o Apóstolo, não se trata de discriminar e condenar o corpo
que, juntamente com a alma espiritual, constitui a natureza do homem e
a sua subjectividade pessoal. Ele quis tratar sobretudo, das obras,
ou melhor, das disposições estáveis — virtudes e vícios —
moralmente boas ou más, que são fruto de submissão (no primeiro
caso) ou, pelo contrário, de resistência (no segundo caso) à
acção salvífica do Espírito Santo. Por isso o Apóstolo
escreve: «Se, portanto, vivemos pelo espírito, caminhemos também
segundo o espírito». [237] E numa outra passagem: «De
facto, os que vivem segundo a carne ocupam-se das coisas da carne; ao
contrário, os que vivem segundo o espírito ocupam-se das coisas do
espírito». «Vós, porém ... viveis segundo o espírito se é
que o Espírito de Deus habita em vós». [238] A
contraposição que São Paulo estabelece entre a vida «segundo o
espírito» e a vida «segundo a carne» dá origem a uma ulterior
contraposição: entre a «vida» e a «morte». «Os desejos da
carne levam à morte, enquanto que os desejos do Espírito levam à
vida e à paz». Daqui a advertência: «Se viverdes segundo a
carne, por certo morrereis; mas, se pelo Espírito fizerdes morrer
as obras do corpo, vivereis». [239]
Se pensarmos bem, estamos perante uma exortação a viver na verdade,
ou seja, segundo os ditames da consciência recta; e, ao mesmo
tempo, trata-se de uma profissão de fé no Espírito da verdade,
Aquele que dá a vida. O corpo, efectivamente, «está morto por
causa da pecado, mas o espírito vive por causa da justificação»;
«portanto... somos devedores, mas não para com a carne para
vivermos segundo a carne». [240] Nós somos devedores
sobretudo para com Cristo, que no mistério pascal operou a nossa
justificação, obtendo-nos o Espírito Santo. «Na verdade,
fomos comprados por um alto preço». [241]
Nos textos de São Paulo sobrepõem-se e compenetram-se
reciprocamente a dimensão ontológica (a carne e o espírito), a
dimensão ética (o bem e o mal moral) e a dimensão pneumatológica
(a acção do Espírito Santo na ordem da graça). As suas
palavras (especialmente nas Epístolas aos Romanos e aos Gálatas)
levam-nos a conhecer e a sentir ao vivo o vigor daquela tensão e
daquela luta, que se trava no homem, entre a abertura à acção do
Espírito Santo e a resistência e oposição a Ele, ao seu dom
salvífico. Os termos ou pólos em contraposição, aqui são: da
parte do homem, as suas limitações e pecaminosidade, pontos
nevrálgicos da sua realidade psicológica e ética; e, da parte de
Deus, o mistério do Dom, o incessante doar-se da vida divina no
Espírito Santo. A quem caberá a vitória? Aquele que souber
acolher o Dom.
56. Infelizmente, a resistência ao Espírito Santo, que São
Paulo sublinha, na dimensão interior e subjectiva, como tensão,
luta e rebelião que acontece no coração humano, assume, nas várias
épocas da história e, especialmente, na época moderna, a sua
dimensão exterior, concretizada no conteúdo da cultura e da
civilização, como sistema filosófico, como ideologia e como
programa de acção e de formação dos comportamentos humanos. Esta
dimensão exterior encontra a sua expressão mais importante no
materialismo, tanto na sua forma teórica — enquanto sistema de
pensamento — como na sua forma prática, enquanto método de leitura e
de avaliação dos factos e, ainda, como programa dos comportamentos
correspondentes. O sistema que mais desenvolveu esta forma de
pensamento, de ideologia e de práxis, e que o levou às extremas
consequências no plano da acção foi o materialismo dialéctico e
histórico, ainda hoje reconhecido como substancia vital do marxismo.
Por princípio e de facto, o materialismo exclui radicalmente a
presença e a acção de Deus, que é espírito, no mundo e,
sobretudo, no homem, pela razão fundamental de que não aceita a sua
existência, sendo em si mesmo e no seu programa um sistema ateu. O
ateismo é fenómeno impressionante do nosso tempo, ao qual o Concilio
Vaticano II dedicou algumas páginas significativas. [242]
Embora não se possa falar do ateismo, de modo unívoco, nem se possa
reduzi-lo exclusivamente à filosofia materialista — dado que existem
várias espécies de ateismo e talvez se possa afirmar que, com
frequência, se usa a palavra num sentido equívoco — o certo é que
um verdadeiro materialismo, no sentido próprio do termo tem um
carácter ateu, quando é entendido como teoria explicativa da
realidade e assumido como princípio-chave da acção pessoal e
social. O horizonte dos valores e dos fins do agir, que o
materialismo determina, está estreitamente ligado com a
interpretação de toda a realidade como «matéria». Se, por
vezes, também fala do «Espírito» e das «questões do
espírito», no campo, por exemplo da cultura ou da moral, fá-lo
apenas enquanto considera certos factos como derivados (epifenómenos)
da matéria, a qual, segundo este sistema é a única e exclusiva
forma do ser. Daqui se segue que, segundo esta interpretação, a
religião só pode ser entendida como uma espécie de «ilusão
idealista», que deve ser combatida dos modos e com os métodos mais
apropriados, conforme os lugares e as circunstancias históricas, para
eliminá-la da sociedade e do próprio coração do homem.
Pode dizer-se, portanto, que o materialismo é o desenvolvimento
sistemático e coerente da «resistência» e oposição denunciadas por
São Paulo quando escreve: «A carne ... tem desejos contrários
aos do espirito». Esta realidade conflitual, no entanto, é
recíproca, como põe em realce o mesmo Apóstolo, na segunda parte
do seu aforismo: «o espírito tem desejos contrários aos da carne».
Quem quiser viver segundo o Espírito , na aceitação e
correspondência à sua acção salvifica, não pode deixar de rejeitar
as tendências e pretensões, internas e externas, da «carne»,
também na sua expressão ideológica e histórica de «materialismo»
anti-religioso. Sobre este pano de fundo, tão característico do
nosso tempo, devem ser postos em evidência os «desejos do espírito»
na preparação para o grande Jubileu, como apelos que ecoam na noite
de um novo período de advento, no termo do qual, como há dois mil
anos, «todo o homem verá a salvação de Deus». [243]
Está nisto uma possibilidade e uma esperança, que a Igreja confia
aos homens de hoje. Ela sabe que o encontro ou o choque entre os
«desejos contrários ao espírito» — que caracterizam tantos aspectos
da civilização contemporânea, especialmente em alguns dos seus
ambientes - e os «desejos contrários aos da carne» — com o facto de
Deus se ter tornado próximo de nós, com a sua Incarnação e com a
comunicação sempre nova de si mesmo no Espírito Santo — podem
apresentar, em muitos casos, um carácter dramático e virem a
redundar, talvez, em novas derrotas humanas. Mas a Igreja acredita
firmemente que, da parte de Deus, haverá sempre um comunicar-se
salvífico, uma vinda salvífica e, se for o caso, um salvífico
«convencer quanto ao pecado», por obra do Espírito.
57. Na contraposição paulina do «espírito» e da «carne»
encontra-se inscrita também a contraposição da «vida» à
«morte». Trata-se de um grave problema, acerca do qual é
necessário dizer, de imediato, que o materialismo, como sistema de
pensamento, em todas as suas versões, significa a aceitação da
morte como termo definitivo da existência humana. Tudo o que é
material é corruptível e, por isso, o corpo humano (enquanto
«animal») é mortal. Se o homem, na sua essência, é
simplesmente «carne», então a morte permanece para ele uma fronteira
e um termo intransponível. Compreende-se assim como se possa dizer
que a vida humana é exclusivamente um «existir para morrer».
Deve acrescentar-se que, no horizonte da civilização contemporânea
— especialmente onde ela se apresenta mais desenvolvida, no sentido
técnico-científico — os vestígios e os sinais de morte tornaram-se
particularmente presentes e frequentes. Basta pensar na corrida aos
armamentos e no perigo que ela comporta de uma autodestruição
nuclear. Por outro lado, para todos se tem tornado cada vez mais
manifesta a grave situação de vastas regiões do nosso planeta,
marcadas pela indigência e pela fome, que são portadoras de morte.
Não se trata só de problemas meramente económicos; mas também e,
acima de tudo, de problemas éticos. E no entanto, no horizonte da
nossa época, adensam-se «sinais de morte» ainda mais sombrios:
difundiu-se o costume — que em algumas partes corre o risco de se
tornar como que uma instituição — de tirar a vida a seres humanos
ainda antes do seu nascimento, ou antes de atingirem o termo natural da
morte. E mais ainda: apesar de tantos esforços nobres em favor da
paz, deflagraram e prosseguem novas guerras, que privam da vida ou da
saúde centenas de milhares de seres humanos. E como não recordar os
atentados à vida humana por parte do terrorismo organizado, até mesmo
em escala internacional?
E isto, infelizmente, é só um esboço parcial e incompleto do
quadro de morte que está em vias de composição na nossa época, ao
mesmo tempo que nos vamos aproximando cada vez mais do final do segundo
Milénio cristão. Mas das tintas sombrias da civilização
materialista e, em particular, dos «sinais de morte» que se
multiplicam no quadro sociológico-histórico, em que ela se
desenvolveu, não se ergue, porventura, uma nova invocação, mais
ou menos consciente, ao Espírito que dá a vida? Em todo o caso,
mesmo independentemente da amplitude das esperanças ou dos desesperos
humanos, bem como das ilusões ou dos logros derivados do
desenvolvimento dos sistemas materialistas de pensamento e de vida,
permanece a certeza cristã de que o Espírito sopra onde quer, de que
nós possuímos «as primícias do Espírito» e de que, por
consequência, poderemos ter de sujeitar-nos aos sofrimentos do tempo
que passa, mas «gememos em nós mesmos aguardando... a redenção
do nosso corpo». [244] ou seja, de todo o nosso ser humano,
que é corporal e espiritual. Sim, gememos, mas numa expectativa
carregada de esperança indefectível, porque Deus, que é
Espírito, se aproximou precisamente deste ser humano. Deus Pai
enviou «o próprio Filho em carne semelhante à carne pecadora e,
para expiar o pecado, condenou o pecado na carne». [245] No
ponto culminante do mistério pascal, o Filho de Deus, feito homem e
crucificado pelos pecados do mundo, apresentou-se no meio dos
Apóstolos, após a Ressurreição, soprou sobre eles e disse:
«Recebei o Espírito Santo». Este «sopro» continua sempre. E
assim «o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza». [246]
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