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7. «Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o
qual no alto dos céus, nos abençoou com toda a sorte de bênçãos
espirituais em Cristo» (Ef 1, 3). Estas palavras da Carta aos
Efésios revelam o eterno desígnio de Deus Pai, o seu plano de
salvação do homem em Cristo. É um plano universal, que concerne
todos os homens criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gén
1, 26). Todos eles, assim como «no princípio» estão
compreendidos na obra criadora de Deus, assim também estão
eternamente compreendidos no plano divino da salvação, que se deve
revelar cabalmente na «plenitude dos tempos», com a vinda de
Cristo. Com efeito, «n'Ele», aquele Deus, que é «Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo» — são as palavras que vêm a seguir na
mesma Carta — «nos elegeu antes da criação do mundo, para sermos
santos e imaculados aos seus olhos. Por puro amor Ele nos predestinou
a sermos adoptados por Ele como filhos, por intermédio de Jesus
Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade, para louvor da
magnificência da sua graça, pela qual nos tornou agradáveis em seu
amado Filho. N'Ele, mediante o seu sangue, temos a redenção, a
remissão dos pecados segundo as riquezas da sua graça» (Ef 1,
4-7).
O plano divino da salvação, que nos foi revelado plenamente com a
vinda de Cristo, é eterno. Ele é também - segundo o ensino
contido na mesma Carta e noutras Cartas paulinas (cf. Col 1,
12-14; Rom 3, 24; Gál 3, 13; 2 Cor 5,
18-29) - algo que está eternamente ligado a Cristo. Ele
compreende em si todos os homens; mas reserva um lugar singular à
«mulher» que foi a Mãe d'Aquele ao qual o Pai confiou a obra da
salvação. Como explana o Concílio Vaticano II, «Maria
encontra-se já profeticamente delineada na promessa da vitória sobre
a serpente, feita aos primeiros pais caídos no pecado», segundo o
Livro do Génesis (cf. 3, 15). «Ela é, igualmente, a
Virgem que conceberá e dará à luz um Filho, cujo nome será
Emanuel» segundo as palavras de Isaías (cf. 7, 14). Deste
modo, o Antigo Testamento prepara aquela «plenitude dos tempos»,
quando Deus haveria de enviar «o seu Filho, nascido duma mulher
..., para que nós recebêssemos a adopção como filhos». A
vinda ao mundo do Filho de Deus e o acontecimento narrado nos
primeiros capítulos dos Evangelhos segundo São Lucas e segundo
São Mateus.
8. Maria é introduzida no mistério de Cristo definitivamente
mediante aquele acontecimento que foi a Anunciação do Anjo. Esta
deu-se em Nazaré, em circunstâncias bem precisas da história de
Israel, o povo que foi o primeiro destinatário das promessas de
Deus. O mensageiro divino diz à Virgem: «Salve, ó cheia de
graça, o Senhor é contigo» (Lc 1, 28). Maria
«perturbou-se e interrogava-se a si própria sobre o que significaria
aquela saudação» (Lc 1, 29): que sentido teriam todas aquelas
palavras extraordinárias, em particular, a expressão «cheia de
graça» (kecharitoméne).
Se quisermos meditar juntamente com Maria em tais palavras e,
especialmente, na expressão «cheia de graça», podemos encontrar
uma significativa correspondência precisamente na passagem acima citada
da Carta aos Efésios. E se, depois do anúncio do mensageiro
celeste, a Virgem de Nazaré é chamada também a «bendita entre as
mulheres» (cf. Lc 1, 42), isso explica-se por causa daquela
bênção com que «Deus Pai» nos cumulou «no alto dos céus, em
Cristo». É uma bênção espiritual, que se refere a todos os
homens e traz em si mesma a plenitude e a universalidade («toda a
sorte de bênçãos»), tal como brota do amor que, no Espírito
Santo, une ao Pai o Filho consubstancial. Ao mesmo tempo,
trata-se de uma bênção derramada por obra de Jesus Cristo na
história humana até ao fim: sobre todos os homens. Mas esta
bênção refere-se a Maria em medida especial e excepcional: ela,
de facto, foi saudada por Isabel como «a bendita entre as
mulheres».
O motivo desta dupla saudação, portanto, está no facto de se ter
manifestado na alma desta «filha de Sião», em certo sentido, toda
a «magnificência da graça», daquela graça com que «o Pai ...
nos tornou agradáveis em seu amado Filho». O mensageiro,
efectivamente, saúda Maria como «cheia de graça»; e chama-lhe
assim, como se este fosse o seu verdadeiro nome. Não chama a sua
interlocutora com o nome que lhe é próprio segundo o registo terreno:
«Miryam» ( = Maria); mas sim com este nome novo: «cheia de
graça». E o que significa este nome? Por que é que o Arcanjo
chama desse modo à Virgem de Nazaré?
Na linguagem da Bíblia «graça» significa um dom especial, que,
segundo o Novo Testamento, tem a sua fonte na vida trinitária do
próprio Deus, de Deus que é amor (cf. 1 Jo 4, 8). É fruto
deste amor a «eleição» - aquela eleição de que fala a Carta aos
Efésios. Da parte de Deus esta «escolha» é a eterna vontade de
salvar o homem, mediante a participação na sua própria vida divina
(cf. 2 Pdr 1, 4) em Cristo: é a salvação pela
participação na vida sobrenatural. O efeito deste dom eterno, desta
graça de eleição do homem por parte de Deus, é como que um gérmen
de santidade, ou como que uma nascente a jorrar na alma do homem, qual
dom do próprio Deus que, mediante a graça, vivifica e santifica os
eleitos. Desta forma se verifica, isto é, se torna realidade aquela
«bênção» do homem «com toda a sorte de bênçãos espirituais»,
aquele «ser seus filhos adoptivos ... em Cristo», ou seja,
n'Aquele que é desde toda a eternidade o «Filho muito amado» do
Pai.
Quando lemos que o mensageiro diz a Maria «cheia de graça», o
contexto evangélico, no qual confluem revelações e promessas
antigas, permite-nos entender que aqui se trata de uma «bênção»
singular entre todas as «bênçãos espirituais em Cristo». No
mistério de Cristo, Maria está presente já «antes da criação do
mundo», como aquela a quem o Pai «escolheu» para Mãe do seu
Filho na Incarnação — e, conjuntamente ao Pai, escolheu-a
também o Filho, confiando-a eternamente ao Espírito de santidade.
Maria está unida a Cristo, de um modo absolutamente especial e
excepcional; e é amada neste «Filho muito amado» desde toda a
eternidade, neste Filho consubstancial ao Pai, no qual se concentra
toda «a magnificência da graça». Ao mesmo tempo, porém, ela é
e permanece perfeitamente aberta para este «dom do Alto» (cf. Tg
1, 17) Como ensina o Concílio, Maria «é a primeira entre os
humildes e os pobres do Senhor, que confiadamente esperam e recebem
d'Ele a salvação».
9. A saudação e o nome «cheia de graça» dizem-nos tudo isto;
mas, no contexto do anúncio do Anjo, referem-se em primeiro lugar
à eleição de Maria como Mãe do Filho de Deus. Todavia, a
plenitude de graça indica ao mesmo tempo toda a profusão de dons
sobrenaturais com que Maria é beneficiada em relação com o facto de
ter sido escolhida e destinada para ser Mãe de Cristo. Se esta
eleição é fundamental para a realização dos desígnios salvíficos
de Deus, a respeito da humanidade, e se a escolha eterna em Cristo e
a destinação para a dignidade de filhos adoptivos se referem a todos
os homens, então a eleição de Maria é absolutamente excepcional e
única. Daqui deriva também a singularidade e unicidade do seu lugar
no mistério de Cristo.
O mensageiro divino diz-lhe: «Não temas, Maria, pois achaste
graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho,
ao qual porás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado
Filho do Altíssimo» (Lc 1, 30-32). E quando a Virgem,
perturbada por esta saudação extraordinária, pergunta: «Como se
realizará isso, pois eu não conheço homem?», recebe do Anjo a
confirmação e a explicação das palavras anteriores. Gabriel
diz-lhe: «Virá sobre ti o Espírito Santo e a potência do
Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso mesmo o Santo
que vai nascer será chamado Filho de Deus» (Lc 1, 35).
A Anunciação, portanto, é a revelação do mistério da
Incarnação exactamente no início da sua realização na terra. A
doação salvífica que Deus faz de si mesmo e da sua vida, de alguma
maneira a toda a criação e, directamente, ao homem, atinge no
mistério da Incarnação um dos seus pontos culminantes. Isso
constitui, de facto, um vértice de todas as doações de graça na
história do homem e do cosmos. Maria é a «cheia de graça»,
porque a Incarnação do Verbo, a união hipostática do Filho de
Deus com a natureza humana, se realiza e se consuma precisamente
nela. Como afirma o Concílio, Maria é «Mãe do Filho de Deus
e, por isso, filha predilecta do Pai e templo do Espírito Santo;
e, por este insigne dom de graça, leva vantagem a todas as demais
criaturas do céu e da terra».
10. A Carta aos Efésios, falando da «magnificência da graça»
pela qual «Deus Pai ... nos tornou agradáveis em seu amado
Filho», acrescenta: «N'Ele temos a redenção pelo seu sangue»
(Ef 1, 7). Segundo a doutrina formulada em documentos solenes da
Igreja, esta «magnificência da graça» manifestou-se na Mãe de
Deus pelo facto de ela ter sido «redimida de um modo mais sublime».
Em virtude da riqueza da graça do amado Filho e por motivo dos
merecimentos redentores d'Aquele que haveria de tornar-se seu
Filho, Maria foi preservada da herança do pecado original. Deste
modo, logo desde o primeiro instante da sua concepção, ou seja da
sua existência, ela pertence a Cristo, participa da graça
salvífica e santificante e daquele amor que tem o seu início no
«amado Filho», no Filho do eterno Pai que, mediante a
Incarnação, se tornou o seu próprio Filho. Sendo assim, por
obra do Espírito Santo, na ordem da graça, ou seja, da
participação da natureza di vina, Maria recebe a vida d'Aquele,
ao qual ela própria, na ordem da geração terrena, deu a vida como
mãe. A Liturgia não hesita em chamá-la «genetriz do seu
Genitor» e em saudá-la com as palavras que Dante Alighieri põe na
boca de São Bernardo: «filha do teu Filho». E, uma vez que
Maria recebe esta «vida nova» numa plenitude correspondente ao amor
do Filho para com a Mãe, e por conseguinte à dignidade da
maternidade divina, o Anjo na Anunciação chama-lhe «cheia de
graça».
11. No desígnio salvífico da Santíssima Trindade o mistério da
Incarnação constitui o cumprimento superabundante da promessa feita
por Deus aos homens, depois do pecado original, depois daquele
primeiro pecado cujos efeitos fazem sentir o seu peso sobre toda a
história do homem na terra (cf. Gén 3, 15). E eis que vem ao
mundo um Filho, a «descendência da mulher», que vencerá o mal do
pecado nas suas próprias raízes: «esmagará a cabeça» da
serpente. Como resulta das palavras do Proto-Evangelho, a vitória
do Filho da mulher não se verificará sem uma árdua luta, que deve
atravessar toda a história humana. «A inimizade», anunciada no
princípio, é confirmada no Apocalipse, o livro das realidades
últimas da Igreja e do mundo, onde volta a aparecer o sinal de uma
«mulher», desta vez «vestida de sol» (Apoc 12, 1).
Maria, Mãe do Verbo Incarnado, está colocada no próprio centro
dessa «inimizade», dessa luta que acompanha o evoluir da história da
humanidade sobre a terra e a própria história da salvação. Neste
seu lugar, ela, que faz parte dos «humildes e pobres do Senhor»,
apresenta em si, como nenhum outro dentre os seres humanos, aquela
«magnificência de graça» com que o Pai nos agraciou no seu amado
Filho; e esta graça constitui a extraordinária grandeza e beleza de
todo o seu ser. Maria permanece, assim, diante de Deus e também
diante de toda a humanidade, como o sinal imutável e inviolável da
eleição por parte do mesmo Deus, de que fala a Carta paulina: «em
Cristo nos elegeu antes da criação do mundo ... e nos predestinou
para sermos seus filhos adoptivos» (Ef 1, 4. 5). Esta
eleição é mais forte do que toda a experiência do mal e do pecado,
do que toda aquela «inimizade» pela qual está marcada toda a
história do homem. Nesta história, Maria permanece um sinal de
segura esperança.
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