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Para continuar a nossa análise do trabalho em aderência às palavras
da Bíblia, em virtude das quais o homem tem o dever de submeter a
terra, é preciso concentrarmos agora a nossa atenção no trabalho no
sentido subjectivo; e isto muito mais do que fizemos pelo que se refere
ao significado objectivo do trabalho, porquanto tocámos só com
brevidade aquela vasta problemática, que é perfeita e
pormenorizadamente conhecida dos estudiosos nos vários campos e também
dos mesmos homens do trabalho, segundo as suas especializações. As
palavras do Livro do Génesis, a que nos referimos nesta nossa
análise, falam de maneira indirecta do trabalho no sentido objectivo;
e de modo análogo falam também do sujeito do trabalho; no entanto,
aquilo que elas dizem é assaz eloquente e carregado de um grande
significado.
O homem deve submeter a terra, deve dominá-la, porque, como
«imagem de Deus», é uma pessoa; isto é, um ser dotado de
subjectividade, capaz de agir de maneira programada e racional, capaz
de decidir de si mesmo e tendente a realizar-se a si mesmo. É como
pessoa, pois, que o homem é sujeito do trabalho. É como pessoa que
ele trabalha e realiza diversas acções que fazem parte do processo do
trabalho; estas, independentemente do seu conteúdo objectivo, devem
servir todas para a realização da sua humanidade e para o cumprimento
da vocação a ser pessoa, que lhe é própria em razão da sua mesma
humanidade. As principais verdades sobre este tema foram recordadas
ultimamente pelo II Concílio do Vaticano, na Constituição
Gaudium et Spes, especialmente no capítulo primeiro dedicado à
vocação do homem.
E assim aquele «domínio» de que fala o texto bíblico, sobre o qual
estamos a meditar agora, não se refere só à dimensão objectiva do
trabalho, mas introduz-nos ao mesmo tempo na compreensão da sua
dimensão subjectiva. O trabalho, entendido como processo, mediante
o qual o homem e o género humano submetem a terra, não corresponderá
a este conceito fundamental da Bíblia senão enquanto, em todo esse
processo, o homem ao mesmo tempo se manifestar e se confirmar como
aquele que «domina». Este domínio, num certo sentido, refere-se
à dimensão subjectiva ainda mais do que à objectiva: esta dimensão
condiciona a mesma natureza ética do trabalho. Não há dúvida
nenhuma, realmente, de que o trabalho humano tem um seu valor ético,
o qual, sem meios termos, permanece directamente ligado ao facto de
aquele que o realiza ser uma pessoa, um sujeito consciente e livre,
isto é, um sujeito que decide de si mesmo.
Esta verdade, que constitui num certo sentido a medula fundamental e
perene da doutrina cristã sobre o trabalho humano, teve e continua a
ter um significado primordial para a formulação dos importantes
problemas sociais ao longo de épocas inteiras.
A Idade Antiga introduziu entre os homens uma própria
diferenciação típica em categorias, segundo o tipo de trabalho que
realizavam. O trabalho que requeria do trabalhador o emprego das
forças físicas, o trabalho dos músculos e das mãos, era
considerado indigno dos homens livres, e por isso eram destinados à
sua execução os escravos. O Cristianismo, ampliando alguns
aspectos já próprios do Antigo Testamento, neste ponto operou uma
transformação fundamental de conceitos, partindo do conteúdo global
da mensagem evangélica, e sobretudo do facto de Aquele que, sendo
Deus, se tornou semelhante a nós em tudo, ter passado a maior parte
dos anos da vida sobre a terra junto de um banco de carpinteiro,
dedicando-se ao trabalho manual. Esta circunstância constitui por si
mesma o mais eloquente «evangelho do trabalho»; aí se torna patente
que o fundamento para determinar o valor do trabalho humano não é em
primeiro lugar o género de trabalho que se realiza, mas o facto de
aquele que o executa ser uma pessoa. As fontes da dignidade do
trabalho devem ser procuradas sobretudo não na sua dimensão
objectiva, mas sim na sua dimensão subjectiva.
Em tal concepção quase desaparece o próprio fundamento da antiga
diferenciação dos homens em grupos, segundo o género de trabalho que
eles faziam. Isto não quer dizer que o trabalho humano não possa e
não deva ser de algum modo valorizado e qualificado de um ponto de
vista objectivo. Isto quer dizer somente que o primeiro fundamento do
valor do trabalho é o mesmo homem, o seu sujeito. E relaciona-se
com isto imediatamente uma conclusão muito importante de natureza
ética: embora seja verdade que o homem está destinado e é chamado ao
trabalho, contudo, antes de mais nada o trabalho é «para o homem» e
não o homem «para o trabalho». E por esta conclusão se chega a
reconhecer justamente a preeminência do significado subjectivo do
trabalho sobre o seu significado objectivo. Partindo deste modo de
entender as coisas e supondo que diversos trabalhos realizados pelos
homens podem ter um maior ou menor valor objectivo, procuramos todavia
pôr em evidência que cada um deles se mede sobretudo pelo padrão da
dignidade do mesmo sujeito do trabalho, isto é, da pessoa, do homem
que o executa. Por outro lado, independentemente do trabalho que faz
cada um dos homens e supondo que ele constitui uma finalidade — por
vezes muito absorvente — do seu agir, tal finalidade não possui por
si mesma um significado definitivo. De facto, em última análise, a
finalidade do trabalho, de todo e qualquer trabalho realizado pelo
homem — ainda que seja o trabalho mais humilde de um «serviço» e o
mais monótono na escala do modo comum de apreciação e até o mais
marginalizador — permanece sempre o mesmo homem.
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