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Ao tratar-se do trabalho humano, encarado pela dimensão fundamental
do seu sujeito, isto é, do homem-pessoa que executa esse trabalho,
partindo deste ponto de vista deve fazer-se uma apreciação pelo menos
sumária dos processos que se verificaram, ao longo dos noventa anos
transcorridos após a Encíclica Rerum Novarum, em relação com a
dimensão subjectiva do trabalho. Com efeito, embora o sujeito do
trabalho seja sempre o mesmo, isto é, o homem, deram-se todavia
notáveis modificações quanto ao aspecto objectivo do mesmo trabalho.
E embora se possa dizer que o trabalho, em razão do seu sujeito, é
um (um e, de cada vez que é feito, irrepetível) todavia,
considerando os seus sentidos objectivos, tem de se reconhecer que
existem muitos trabalhos: um grande número de trabalhos diversos. O
desenvolvimento da civilização humana proporciona neste campo um
enriquecimento contínuo. Ao mesmo tempo, porém, não se pode
deixar de notar que, no processar-se de um tal desenvolvimento, não
somente aparecem novas formas de trabalho humano, mas há também
outras que desaparecem. Admitindo muito embora, em princípio, que
isto é um fenómeno normal, importa, no entanto, ver bem se nele se
não intrometem, e em que medida, certas irregularidades que podem ser
perigosas, por motivos ético-sociais.
Foi precisamente por causa de uma dessas anomalias com grande alcance
que nasceu, no século passado, a chamada questão operária,
definida por vezes como «questão proletária». Tal questão — bem
como os problemas com ela ligados — deram origem a uma justa reacção
social e fizeram com que surgisse e, poder-se-ia mesmo dizer, com
que irrompesse um grande movimento de solidariedade entre os homens do
trabalho e, em primeiro lugar, entre os trabalhadores da indústria.
O apelo à solidariedade e à acção comum lançado aos homens do
trabalho — sobretudo aos do trabalho sectorial, monótono e
despersonalizante nas grandes instalações industriais, quando a
máquina tende a dominar sobre o homem — tinha um seu valor importante
e uma eloquência própria, sob o ponto de vista da ética social.
Era a reacção contra a degradação do homem como sujeito do trabalho
e contra a exploração inaudita que a acompanhava, no campo dos
lucros, das condições de trabalho e de previdência para a pessoa do
trabalhador. Uma tal reacção uniu o mundo operário numa
convergência comunitária, caracterizada por uma grande
solidariedade.
Na esteira da Encíclica Rerum Novarum e dos numerosos documentos do
Magistério da Igreja que se lhe seguiram, francamente tem de se
reconhecer que se justificava, sob o ponto de vista da moral social, a
reacção contra o sistema de injustiça e de danos que bradava ao Céu
vingança e que pesava sobre o homem do trabalho nesse período de
rápida industrialização. Este estado de coisas era favorecido pelo
sistema sócio-político liberal que, segundo as suas premissas de
«economismo», reforçava e assegurava a iniciativa económica somente
dos possuidores do capital, mas não se preocupava suficientemente com
os direitos do homem do trabalho, afirmando que o trabalho humano é
apenas um instrumento de produção, e que o capital é o fundamento,
coeficiente e a finalidade da produção.
Desde então, a solidariedade dos homens do trabalho e,
simultaneamente, uma tomada de consciência mais clara e mais
compromissória pelo que respeita aos direitos dos trabalhadores da
parte dos outros, produziu em muitos casos mundanças profundas.
Foram excogitados diversos sistemas novos. Desenvolveram-se diversas
formas de neo-capitalismo ou de colectivismo. E, não raro, os
homens do trabalho passam a ter a possibilidade de participar e
participam efectivamente na gestão e no controlo da produtividade das
empresas. Por meio de associações apropriadas, eles passam a ter
influência no que respeita às condições de trabalho e de
remuneração, bem como quanto à legislação social. Mas, ao mesmo
tempo, diversos sistemas fundados em ideologias ou no poder, como
também novas relações que foram surgindo nos vários níveis da
convivência humana, deixaram persistir injustiças flagrantes ou
criaram outras novas. A nível mundial, o desenvolvimento da
civilização e das comunicações tornou possível uma diagnose mais
completa das condições de vida e de trabalho do homem no mundo
inteiro, mas tornou também patentes outras formas de injustiça, bem
mais amplas ainda do que aquelas que no século passado haviam
estimulado a união dos homens do trabalho para uma particular
solidariedade no mundo operário. E isto assim, nos países em que
já se realizou um certo processo de revolução industrial; e assim
igualmente nos países onde o local de trabalho a predominar continua a
ser o da cultura da terra ou doutras ocupações congéneres.
Movimentos de solidariedade no campo do trabalho — de uma
solidariedade que não há-de nunca ser fechamento para o diálogo e
para a colaboração com os demais — podem ser necessários, mesmo
pelo que se refere às condições de grupos sociais que anteriormente
não se achavam compreendidos entre estes movimentos, mas que vão
sofrendo no meio dos sistemas sociais e das condições de vida que
mudam uma efectiva «proletarização», ou mesmo que se encontram
realmente já numa condição de proletariado que, embora não seja
chamada ainda com este nome, de facto é tal que o merece. Podem
encontrar-se nesta situação algumas categorias ou grupos da
«intelligentzia» do trabalho, sobretudo quando, simultaneamente com
um acesso cada vez mais ampliado à instrução e com o número sempre
crescente das pessoas que alcançaram diplomas pela sua preparação
cultural, se verifica uma diminuição de procura do trabalho destas
pessoas. Um tal desemprego dos intelectuais sucede ou aumenta: quando
a instrução acessível não está orientada para os tipos de emprego
ou de serviços que são requeridos pelas verdadeiras necessidades da
sociedade; ou quando o trabalho para o qual se exige a instrução,
pelo menos profissional, é menos procurado e menos bem pago do que um
trabalho braçal. É evidente que a instrução, em si mesma,
constitui sempre um valor e um enriquecimento importante da pessoa
humana; contudo, independentemente deste facto, continuam a ser
possíveis certos processos de «proletarização».
Assim, é necessário prosseguir a interrogar-se sobre o sujeito do
trabalho e sobre as condições da sua existência. Para se realizar a
justiça social nas diversas partes do mundo, nos vários países e nas
relações entre eles, é preciso que haja sempre novos movimentos de
solidariedade dos homens do trabalho e de solidariedade com os homens do
trabalho. Uma tal solidariedade deverá fazer sentir a sua presença
onde a exijam a degradação social do homem-sujeito do trabalho, a
exploração dos trabalhadores e as zonas crescentes de miséria e mesmo
de fome. A Igreja acha-se vivamente empenhada nesta causa, porque a
considera como sua missão, seu serviço e como uma comprovação da
sua fidelidade a Cristo, para assim ser verdadeiramente a «Igreja
dos pobres». E os «pobres» aparecem sob variados aspectos;
aparecem em diversos lugares e em diferentes momentos; aparecem, em
muitos casos, como um resultado da violação da dignidade do trabalho
humano: e isso, quer porque as possibilidades do trabalho humano são
limitadas — e há a chaga do desemprego — quer porque são depreciados
o valor do mesmo trabalho e os direitos que dele derivam, especialmente
o direito ao justo salário e à segurança da pessoa do trabalhador e
da sua família.
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