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52. No mistério da Incarnação, a obra do Espírito, «que dá
a vida», atinge o seu vértice. Não é possível dar a vida, que
está em Deus de um modo pleno, senão fazendo dela a vida de um
Homem, como é Cristo na sua humanidade personalizada pelo Verbo na
união hipostática. Ao mesmo tempo, com o mistério da Incarnação
jorra, de um modo novo, a fonte dessa vida divina na história da
humanidade: o Espírito Santo. O Verbo «gerado antes de toda a
criatura», torna-se «o primogénito entre muitos irmãos»
[210] e torna-se assim também a cabeça do Corpo que é a
Igreja — que nascerá da Cruz e será revelada no dia do Pentecostes
— e, na Igreja, a cabeça da humanidade: dos homens de cada
nação, de todas as raças, de todos os países e culturas, de todas
as línguas e continentes, todos eles chamados à salvação. «O
Verbo fez-se carne, (aquele Verbo no qual) estava a vida e a vida
era a luz dos homens... A quantos o receberam deu-lhes o poder de
se tornarem filhos de Deus». [211] Mas tudo isto se realizou
e se realiza incessantemente «por obra do Espírito Santo».
«Filhos de Deus» são, com efeito — como ensina o Apóstolo —
«todos aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus».
[212] A filiação pela adopção divina nasce nos homens sobre
a base do mistério da Incarnação; e, portanto, graças a
Cristo, que é o Filho eterno. Todavia, o nascer ou renascer
dá-se quando Deus Pai «envia aos nossos coracões o Espírito do
seu Filho». [213] É então que, na verdade, «recebemos o
espírito de adopção filial, pelo qual bradamos: "Abbá, ó
Pai!"». [214] Portanto, esta filiação divina, enxertada
na alma humana com a graça santificante, é obra do Espírito
Santo. «O próprio Espírito atesta ao nosso espírito que somos
filhos de Deus. E, se somos filhos, somos igualmente herdeiros:
herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo». [215] A graça
santificante é no homem o princípio e a fonte da vida nova: vida
divina, sobrenatural.
A dádiva desta vida nova é como que a resposta definitiva de Deus ao
grito do Salmista, no qual ecoa, de certo modo, a voz de todas as
criaturas: «Se enviais o vosso Espírito, serão criados e renovais
a face da terra». [216] Aquele que, no mistério da
criação, dá ao homem e ao cosmos a vida sob as suas múltiplas
formas, visíveis e invisíveis, renova-a ainda pelo mistério da
Incarnação. A criação é assim completada pela Incarnação e,
desde esse momento, penetrada pelas forças da Redenção, que
investem a humanidade e a criação inteira. É o que nos diz São
Paulo, cuja visão cósmico-teológica parece retomar os termos do
antigo Salmo: a criação «aguarda ansiosamente a revelação dos
filhos de Deus», [217] ou seja, daqueles que Deus,
tendo-os «conhecido desde sempre», também os «predestinou para
serem conformes à imagem do seu Filho». [218] Dá-se,
assim, uma «adopção filial» sobrenatural dos homens, da qual é
origem o Espírito Santo, Amor e Dom. Como tal Ele é dado com
prodigalidade aos homens. E na superabundâcia do Dom incriado tem
início, no coração de cada homem, aquele particular dom criado,
mediante o qual os homens «se tornam participantes da natureza
divina». [219] Deste modo, a vida humana é impregnada pela
participação na vida divina e adquire também ela uma dimensão
divina, sobrenatural. Tem-se assim a vida nova, pela qual, como
participantes do mistério da Incarnação, «os homens ... têm
acesso ao Pai no Espírito Santo». [220] Existe, pois,
uma estreita dependência de causalidade entre o Espírito, que dá a
vida, e a graça santificante, com aquela vitalidade sobrenatural
multiforme que dela deriva no homem: entre o Espírito incriado e o
espírito humano criado.
53. Pode dizer-se que tudo isto é abrangido no âmbito do grande
Jubileu, acima mencionado. Com efeito, impõe-se ir além da
dimensão histórica do facto, considerado somente à superficie. É
necessário chegar a atingir, no próprio conteúdo cristológico do
facto, a dimensão pneumatológica, abarcando com o olhar da fé o
conjunto dos dois milénios da acção do Espírito da verdade, o
qual, ao longo dos séculos, indo haurir do tesouro da Redenção de
Cristo, foi dando aos homens a vida nova, realizando neles «a
adopção filial» no Filho unigénito e santificando-os, de tal modo
que eles podem repetir com São Paulo: «Recebemos o Espírito que
vem de Deus». [221]
Mas ao considerar este motivo do Jubileu, não é possível
limitar-se aos dois mil anos decorridos desde o nascimento de Cristo.
Énecessário retroceder no tempo, abarcar toda a acção do Espírito
Santo mesmo antes de Cristo, desde o princípio, em todo o mundo e,
especialmente, na economia da Antiga Aliança. Esta acção, de
facto, em todos os lugares e em todos os tempos, ou antes, em cada
homem, desenrolou-se segundo o eterno desígnio de salvação, no
qual ela anda estreitamente unida ao mistério da Incarnação e da
Redenção; este mistério já tinha exercido a sua influência
naqueles que acreditavam em Cristo que havia de vir. Isto é
atestado, de modo particular, na Epístola aos Efésios.
[222] A graça, portanto, comporta um carácter cristológico
e, conjuntamente, um carácter pneumatológico, que se realiza
sobretudo naqueles que expressamente aderem a Cristo: «N'Ele (em
Cristo) ... fostes marcados com o selo do Espírito Santo, que
fora prometido, o qual é o penhor da nossa herança, enquanto
esperamos a completa redenção». [223]
No entanto, sempre na perspectiva do grande Jubileu, também devemos
alargar as nossas vistas para mais longe, «para o largo»,
conscientes de que «o vento sopra onde quer», segundo a imagem usada
por Jesus no colóquio con Nicodemos. [224] O Concílio
Vaticano II, centrando a atenção sobretudo no tema da Igreja,
recorda-nos a acção do Espírito Santo mesmo «fora» do corpo
visível da Igreja. Ele fala precisamente de «todos os homens de boa
vontade, no coração dos quais invisivelmente opera a graça. Na
verdade, se Cristo morreu por todos e a vocação última do homem é
realmente uma só, a saber, a divina, nós devemos manter que o
Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a
possibilidade de serem associados ao mistério pascal». [225]
54. «Deus é espírito, e os seus adoradores em espírito e
verdade é que devem adorá-lo». [226] Jesus pronunciou estas
palavras num outro dos seus colóquios: aquele que teve com a
Samaritana. O grande Jubileu, que será celebrado no final deste
Milénio e no início do seguinte, deve constituir um forte apelo
dirigido a todos aqueles que «adoram a Deus em espírito e verdade».
Deve ser para todos uma ocasião especial para meditar no mistério de
Deus uno e trino que, em si mesmo, é absolutamente transcendente em
relação ao mundo, de modo especial em relação ao mundo visível;
é, na realidade, Espírito absoluto: «Deus é espírito».
[227] Mas, simultaneamente e de um modo admirável, não só
está próximo deste mundo, mas está aí presente e, em certo
sentido, imanente, compenetra-o e vivifica-o por dentro. Isto é
válido, em especial, quanto ao homem: Deus está no íntimo do seu
ser, como pensamento, consciência e coração; é uma realidade
psicológica e ontológica que levava Santo Agostinho, ao
considerá-la, a dizer de Deus: «interior intimo meo» [mais
íntimo do que o meu íntimo]. [228] Estas palavras
ajudam-nos a compreender melhor as que Jesus dirigiu à Samaritana:
«Deus é espírito». Somente o Espírito pode ser «mais íntimo
do que o meu íntimo», quer no ser quer na experiência espiritual;
só o Espírito pode ser a tal ponto imanente ao homem e ao mundo,
permanecendo inviolável e imutável na sua transcendência absoluta.
Mas, em Jesus Cristo, a presença divina no mundo e no homem
manifestou-se de uma maneira nova e sob forma visível. N'Ele,
verdadeiramente, «manifestou-se a graça». [229] O amor de
Deus Pai, dom, graça infinita e princípio de vida, tornou-se
patente em Cristo e, na sua humanidade, tornou-se «parte» do
universo, do género humano e da história. Esta «manifestação»
da graça na história do homem, mediante Jesus Cristo, realizou-se
por obra do Espírito Santo, que é o princípio de toda a acção
salvífica de Deus no mundo: Ele, «Deus escondido», [230]
que como Amor e Dom «enche o universo». [231] Toda a vida
da Igreja, tal como se irá manifestar no grande Jubileu, significa
um caminhar ao encontro de Deus escondido, ao encontro do Espírito,
que dá a vida.
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