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O II Concílio do Vaticano, ao elaborar a partir dos próprios
fundamentos a imagem da Igreja como Povo de Deus — mediante a
indicação da tríplice missão do mesmo Cristo, participando na qual
nós nos tornamos verdadeiramente Povo de Deus — pôs em realce
também aquela característica da vocação cristã que se pode definir
«real». Para apresentar toda a riqueza da doutrina conciliar sobre
isto, seria necessário fazer aqui referência a numerosos capítulos e
parágrafos da Constituição Lumen Gentium, bem como a muitos
outros Documentos conciliares. No meio de toda esta riqueza,
porém, há um elemento que parece emergir: a participação na
missão real de Cristo, isto é, o facto de redescobrir em si e nos
outros aquela particular dignidade da nossa vocação, que se pode
designar por «realeza». Uma tal dignidade exprime-se na
disponibilidade para servir, segundo o exemplo de Cristo, o qual
«não veio para ser servido, mas para servir».
Se, portanto, à luz da atitude de Cristo, se pode verdadeiramente
«reinar» somente «servindo», ao mesmo tempo este «servir» exige
uma tal maturidade espiritual, que se tem de definí-la precisamente
como «reinar». Para se poder servir os outros digna e eficazmente,
é necessário saber dominar-se a si mesmo, é preciso possuir as
virtudes que tornam possível um tal domínio. A nossa participação
na missão real de Cristo — exactamente na sua «função real»
(munus) — anda intimamente ligada com toda a esfera da moral cristã
e também humana.
O II Concílio do Vaticano, ao apresentar o quadro completo do
Povo de Deus, recordando qual o lugar que nele ocupam, não apenas
os sacerdotes, mas também os leigos, e não apenas os representantes
da Hierarquia, mas também as e os representantes dos Institutos de
vida consagrada, não deduziu essa imagem somente de uma premissa
sociológica. A Igreja, enquanto sociedade humana, pode sem dúvida
alguma ser examinada e definida segundo aquelas categorias de que se
servem as ciências humanas. Mas tais categorias não são
suficientes. Para toda a comunidade do Povo de Deus e para cada um
dos seus membros, não se trata somente de um específico «pertencer
socialmente», mas sobretudo é essencial, para cada um e para todos,
uma particular «vocação» A Igreja, realmente, enquanto Povo de
Deus — segundo a doutrina acima aludida de São Paulo, recordada de
modo admirável por Pio XII — é também «Corpo Místico de
Cristo». O pertencer a tal «Corpo» deriva de um chamamento
particular, junto com a acção salvífica da graça. Portanto, se
quisermos ter presente esta comunidade do Povo de Deus, tão vasta e
sumamente diferenciada, devemos antes de mais ver Cristo, que diz,
de um certo modo, a cada um dos membros desta mesma comunidade:
«Segue-me». Esta é a comunidade dos discípulos, cada um dos
quais, de maneira diversa, por vezes muito consciente e
coerentemente, e por vezes pouco conscientemente e muito
incoerentemente, segue Cristo. Nisto manifesta-se também o aspecto
profundamente «pessoal» e a dimensão desta sociedade, a qual — não
obstante todas as deficiências da vida comunitária, no sentido humano
desta palavra — é uma comunidade precisamente pelo facto de que todos
a constituem juntamente com o mesmo Cristo, se não por outro motivo,
ao menos porque têm nas suas almas o sinal indelével de quem é
cristão.
O II Concílio do Vaticano aplicou uma atenção muito particular
em demonstrar de que maneira esta comunidade «ontológica» dos
discípulos e dos confessores se deve tornar cada vez mais, também
«humanamente», uma comunidade consciente da própria vida e
actividade. As iniciativas do Concílio quanto a isto encontraram a
sua continuidade em numerosas iniciativas ulteriores, de carácter
sinodal, apostólico e organizativo. Devemos ter sempre presente, no
entanto, a verdade de que toda e qualquer iniciativa em tanto serve
para uma verdadeira renovação da Igreja e em tanto contribui para
aportar a autêntica luz de Cristo, em quanto se baseia sobre uma
adequada consciência da vocação e da responsabilidade por esta graça
singular, única e que não se pode repetir, mediante a qual cada um
dos cristãos na comunidade do Povo de Deus edifica o Corpo de
Cristo. Este princípio, que é a regra-chave de toda a prática
cristã — prática apostólica e pastoral, e prática da vida interior
e da vida social — deve ser aplicado, em proporção adequada, a
todos os homens e a cada um deles. Também o Papa, assim como todos
os Bispos, o devem aplicar a si mesmos. A este princípio devem
igualmente ser fiéis os sacerdotes, os religiosos e as religiosas.
Com base nele, ainda, devem construir a sua vida os esposos, os
pais, as mulheres e os homens de condições e de profissões
diversas, a começar por aqueles que ocupam na sociedade os cargos mais
elevados e a acabar por aqueles que fazem os trabalhos mais simples. É
este justamente o princípio daquele «serviço real», que impõe a
cada um de nós, seguindo o exemplo de Cristo, o dever de exigir de
si próprio exactamente aquilo para que somos chamado, e a que — para
corresponder à vocação — nós nos obrigámos pessoalmente, com a
graça de Deus.
Uma tal fidelidade à vocação recebida de Deus, mediante Cristo,
acarreta consigo aquela solidária responsabilidade pela Igreja, para
a qual o II Concílio do Vaticano desejou educar todos os
cristãos. Na Igreja, de facto, enquanto na comunidade do Povo de
Deus, guiada pela acção do Espírito Santo, cada um possui «o
próprio dom», conforme ensina São Paulo. Este «dom», porém,
embora seja uma vocação pessoal e uma forma também pessoal de
participação na obra salvífica da Igreja, serve igualmente para os
outros e constrói a Igreja e as comunidades fraternas nas várias
esferas da existência humana sobre a terra.
A fidelidade à vocação, ou seja, a perseverante disponibilidade
para o «serviço real», tem um significado particular para esta
multíplice construção, sobretudo pelo que se refere às tarefas mais
compromissivas, as quais têm maior influência na vida do nosso
próximo e de toda a sociedade. Devem distinguir-se pela fidelidade
à própria vocação os esposos, como resulta da natureza
indissolúvel da instituição sacramental do matrimónio. Devem
distinguir-se por uma análoga fidelidade à própria vocação os
sacerdotes, dado o carácter indelével que o sacramento da Ordem
imprime nas suas almas. Ao receber este Sacramento, nós, na
Igreja Latina, consciente e livremente comprometemo-nos a viver no
celibato; e por isso, cada um de nós deve fazer todo o possível,
com a graça de Deus, por ser reconhecido por este dom e fiel ao
vínculo assumido para sempre. E isto não diversamente dos esposos:
eles devem tender, com todas as suas forças, para perseverar na
união matrimonial, construindo com este testemunho de amor a
comunidade familiar e educando as novas gerações de homens para serem
capazes de consagrar, também eles, toda a sua vida à própria
vocação, ou seja, àquele «serviço real» do qual nos foram dados
o exemplo e o modelo mais belo por Jesus Cristo.
A Igreja de Cristo, que nós todos formamos, é «para os
homens», no sentido de que, baseando-nos no exemplo do mesmo Cristo
e colaborando com a graça que Ele nos obteve, nós podemos atingir um
tal «reinar», que o mesmo é dizer, realizar uma maturada humanidade
em cada um de nós. Humanidade maturada significa pleno uso do dom da
liberdade, que recebemos do Criador, no momento em que Ele chamou à
existência o homem feito à sua imagem e semelhança. Este dom
encontra a sua plena realização na doação, sem reservas, de toda a
própria pessoa humana, em espírito de amor esponsal a Cristo e, com
o mesmo Cristo, a todos aqueles aos quais Ele envia homens e mulheres
que a Ele são totalmente consagrados segundo os conselhos
evangélicos. Este é o ideal da vida religiosa, assumido pelas
Ordens e Congregações, tanto antigas como recentes, e pelos
Institutos seculares.
Nos nossos tempos, algumas vezes julga-se, erroneamente, que a
liberdade é fim para si mesma, que cada homem é livre na medida em
que usa da liberdade como quer, e que para isto é necessário
tender-se na vida dos indivíduos e das sociedades. Mas a liberdade,
ao contrário, só é um grande dom quando dela sabemos usar
conscientemente, para tudo aquilo que é o verdadeiro bem. Cristo
ensina que o melhor uso da liberdade é a caridade, que se realiza no
dom e no serviço. Foi para tal liberdade «que Cristo nos libertou»
e nos liberta sempre. A Igreja vai haurir aqui a incessante
inspiração, o estímulo e o impulso para a sua missão e para o seu
serviço no meio de todos os homens. A verdade plena sobre a liberdade
humana acha-se profundamente gravada no mistério da Redenção. A
Igreja presta verdadeiramente um serviço à humanidade, quando tutela
esta verdade, com infatigável aplicação, com amor ardente e com
diligência maturada; e, ainda, quando, em toda a própria
comunidade, através da fidelidade à vocação de cada um dos
cristãos, a mesma Igreja a transmite e a concretiza na vida humana.
Deste modo é confirmado aquilo a que já nos referimos em
precedência, isto é, que o homem é e continuamente se torna a
«via» da vida quotidiana da Igreja.
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