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O processo histórico — aqui apresentado com brevidade — que
indubiamente já saiu da sua fase inicial, mas continua ainda e tende
mesmo para se tornar extensivo às relações entre nações e
continentes, exige um esclarecimento também sob um outro ponto de
vista. Quando se fala da antinomia entre trabalho e capital não se
trata, como é evidente, apenas de conceitos abstractos e de «forças
anónimas» que agem na produção económica. Por detrás de um e de
outro dos dois conceitos há homens, os homens vivos e concretos. De
um lado, aqueles que executam o trabalho sem serem proprietários dos
meios de produção; e do outro lado, aqueles que desempenham a
função de patrões e empresários e que são os proprietários de tais
meios, ou então representam os proprietários. E assim, portanto,
vem inserir-se no conjunto deste difícil processo histórico, desde o
início, o problema da propriedade. A Encíclica Rerum Novarum,
que tem por tema a questão social, põe em realce também este
problema, recordando e confirmando a doutrina da Igreja sobre a
propriedade e sobre o direito de propriedade privada, mesmo quando se
trata dos meios de produção. E a Encíclica Mater et Magistra fez
a mesma coisa.
O princípio a que se alude, conforme foi então recordado e como
continua a ser ensinado pela Igreja, diverge radicalmente do programa
do colectivismo, proclamado pelo marxismo e realizado em vários
países do mundo, nos decénios que se seguiram à publicação da
Encíclica de Leão XIII. E, ao mesmo tempo, ele difere
também do programa do capitalismo, tal como foi posto em prática pelo
liberalismo e pelos sistemas políticos que se inspiram no mesmo
liberalismo. Neste segundo caso, a diferença está na maneira de
compreender o direito de propriedade, precisamente. A tradição
cristã nunca defendeu tal direito como algo absoluto e intocável;
pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito
comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira: o direito à
propriedade privada está subordinado ao direito ao uso comum,
subordinado à destinação universal dos bens.
Por outras palavras, a propriedade, segundo o ensino da Igreja,
nunca foi entendida de maneira a poder constituir um motivo de contraste
social no trabalho. Conforme já foi recordado acima, a propriedade
adquire-se primeiro que tudo pelo trabalho e para servir ao trabalho.
E isto diz respeito de modo particular à propriedade dos meios de
produção. Considerá-los isoladamente, como um conjunto à parte
de propriedades, com o fim de os contrapor, sob a forma do
«capital», ao «trabalho» e, mais ainda, com o fim de explorar o
trabalho, é contrário à própria natureza de tais meios e à da sua
posse. Estes não podem ser possuídos contra o trabalho, como não
podem ser possuídos para possuir, porque o único título legítimo
para a sua posse — e isto tanto sob a forma da propriedade privada como
sob a forma da propriedade pública ou colectiva — é que eles sirvam
ao trabalho; e que, consequentemente, servindo ao trabalho, tornem
possível a realização do primeiro princípio desta ordem, que é a
destinação universal dos bens e o direito ao seu uso comum. Sob este
ponto de vista, em consideração do trabalho humano e do acesso comum
aos bens destinados ao homem, é também para não excluir a
socialização, dando-se as condições oportunas, de certos meios de
produção. No espaço dos decénios que nos separam da publicação
da Encíclica Rerum Novarum, o ensino da Igreja tem vindo sempre a
recordar todos estes princípios, remontando aos argumentos formulados
numa tradição bem mais antiga, por exemplo aos conhecidos argumentos
da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino.
No presente documento, que tem por tema principal o trabalho humano,
convém confirmar todo o esforço com o qual o ensino da Igreja sobre a
propriedade sempre procurou e procura assegurar o primado do trabalho
e, por isso mesmo, a subjectividade do homem na vida social e,
especialmente, na estrutura dinâmica de todo o processo
económico.Deste ponto de vista, continua a ser inaceitável a
posição do capitalismo «rígido», que defende o direito exclusivo
da propriedade privada dos meios de produção, como um «dogma»
intocável na vida económica. O princípio do respeito do trabalho
exige que tal direito seja submetido a uma revisão construtiva, tanto
em teoria como na prática. Com efeito, se é verdade que o capital
— entendido como o conjunto dos meios de produção — é ao mesmo
tempo o produto do trabalho de gerações, também é verdade que ele
se cria incessantemente graças ao trabalho efectuado com a ajuda do
mesmo conjunto dos meios de produção, que aparecem então como um
grande «banco» de trabalho, junto do qual, dia-a-dia, a presente
geração dos trabalhadores desenvolve a própria actividade.
Trata-se aqui, como é óbvio, das diversas espécies de trabalho,
não somente do trabalho chamado manual mas também das várias
espécies de trabalho intelectual, desde o trabalho de concepção até
ao de direcção.
Sob esta luz, as numerosas proposições enunciadas pelos peritos da
doutrina social católica e também pelo supremo Magistério da Igreja
adquirem um significado de particular relevo. Trata-se de
proposições que dizem respeito à compropriedade dos meios de
trabalho, à participação dos trabalhadores na gestão e/ou nos
lucros das empresas, o chamado «accionariado» do trabalho, e coisas
semelhantes. Independentemente da aplicabilidade concreta destas
diversas proposições, permanece algo evidente que o reconhecimento da
posição justa do trabalho e do homem do trabalho no processo de
produção exige várias adaptações, mesmo no âmbito do direito da
propriedade dos meios de produção. Ao dizer isto, tomam-se em
consideração, não só as situações mais antigas, mas também e
antes de mais nada a realidade e a problemática que se criaram na
segunda metade deste século, pelo que se refere ao Terceiro Mundo e
aos diversos novos países independentes que foram aparecendo —
especialmente na África, mas também noutras latitudes — no lugar dos
territórios coloniais de outrora.
Se, por conseguinte, a posição do capitalismo «rígido» tem de
ser continuamente submetida a uma revisão, no intuito de uma reforma
sob o aspecto dos direitos do homem, entendidos no seu sentido mais
amplo e nas suas relações com o trabalho, então, sob o mesmo ponto
de vista, deve afirmar-se que estas reformas múltiplas e
tão-desejadas não podem ser realizadas com a eliminação
apriorística da propriedade privada dos meios de produção.
Convém, efectivamente, observar que o simples facto de subtrair
esses meios de produção (o capital) das mãos dos seus
proprietários privados não basta para os socializar de maneira
satisfatória. Assim, eles deixam de ser a propriedade de um
determinado grupo social, os proprietários privados, para se tornarem
propriedade da sociedade organizada, passando a estar sob a
administração e a fiscalização directas de um outro grupo de pessoas
que, embora não tendo a propriedade, em virtude do poder que exercem
na sociedade dispõem deles a nível da inteira economia nacional, ou
então a nível da economia local.
Este grupo dirigente e responsável pode desempenhar-se das suas
funções de maneira satisfatória, do ponto de vista do primado do
trabalho; mas pode também cumpri-las mal, reivindicando ao mesmo
tempo para si o monopólio da administração e da disposição dos
meios de produção, sem se deter quanto a isso nem sequer diante da
ofensa aos direitos fundamentais do homem. Desde modo, pois, o
simples facto de os meios de produção passarem para a propriedade do
Estado, no sistema colectivista, não significa só por si,
certamente, a «socialização» desta propriedade. Poder- se- á
falar de socialização somente quando ficar assegurada a subjectividade
da sociedade, quer dizer, quando cada um dos que a compõem, com base
no próprio trabalho, tiver garantido o pleno direito a considerar-se
comproprietário do grande «banco» de trabalho em que se empenha
juntamente com todos os demais. E uma das vias para alcançar tal
objectivo poderia ser a de associar o trabalho, na medida do
possível, à propriedade do capital e dar possibilidades de vida a uma
série de corpos intermediários com finalidades económicas, sociais e
culturais: corpos estes que hão-de usufruir de uma efectiva autonomia
em relação aos poderes públicos e que hão-de procurar conseguir os
seus objectivos específicos mantendo entre si relações de leal
colaboração recíproca, subordinadamente às exigências do bem
comum, e que hão-de, ainda, apresentar-se sob a forma e com a
substância de uma comunidade viva; quer dizer, de molde a que neles
os respectivos membros sejam considerados e tratados como pessoas e
estimulados a tomar parte activa na sua vida.
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