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39. «O Espírito, que perscruta as profundezas de Deus», foi
chamado por Jesus, no discurso do Cenáculo, o Paráclito. Ele,
de facto, desde o princípio «é invocado» [145] para
«convencer o mundo quanto ao pecado».É invocado, de modo
definitivo, por meio da Cruz de Cristo. Convencer do pecado quer
dizer demonstrar o mal nele contido. Isto equivale a desvendar o
«mysterium iniquitatis» [mistério da iniquidade]. Não é
possível atingir o mal do pecado em toda a sua dolorosa realidade sem
«perscrutar as profundezas de Deus». O obscuro mistério do pecado
apareceu no mundo, desde o princípio, no quadro da referência ao
Criador da liberdade humana. E apareceu como um acto da vontade da
criatura-homem contrário à vontade de Deus: contrário a vontade
salvífica de Deus; ou melhor, manifestou-se em oposição à
verdade, com base na mentira já definitivamente «julgada» — mentira
que colocou em estado de acusação, em estado de permanente
suspeição o próprio Amor criador e salvífico. O homem seguiu o
«pai da mentira», pondo-se contra o Pai da vida e o Espírito da
verdade.
O «convencer quanto ao pecado», portanto, não deveria significar
também revelar o sofrimento, revelar a dor, inconcebível e
inexprimível, que, por causa do pecado, o Livro Sagrado, na sua
visão antropomórfica, parece entrever nas «profundezas de Deus»
e, em certo sentido, no próprio coração da inefável Trindade? A
Igreja, inspirando-se na Revelação, crê e professa que o pecado
é of ensa a Deus. O que é que, na imperscrutável intimidade do
Pai, do Verbo e do Espírito Santo, corresponde a esta
«ofensa», a esta recusa do Espírito que é Amor e Dom? A
concepção de Deus, como ser necessariamente perfeitíssimo,
exclui, por certo, em Deus, qualquer espécie de sofrimento,
derivante de carências ou feridas; mas nas «profundezas de Deus»
há um amor de Pai que, diante do pecado do homem, reage, segundo a
linguagem bíblica, até ao ponto de dizer: «Estou arrependido de
ter criado o homem». [146] «o Senhor viu que a maldade dos
homens era grande sobre a terra ... E o Senhor arrependeu-se de
ter criado o homem sobre a terra ... O Senhor disse: "Estou
arrependido de os ter feito"». [147] Mas o Livro Sagrado,
mais frequentemente, fala-nos de um Pai que experimenta compaixão
pelo homem, como que compartilhando a sua dor. Esta imperscrutável e
indizível «dor» de Pai, em definitivo, gerará sobretudo a
admirável economia do amor redentor em Jesus Cristo, para que,
através do «mistério da piedade», o amor possa revelar-se mais
forte do que o pecado, na história do homem. Para que prevaleça
o«Dom»!
O Espírito Santo, que, segundo as palavras de Jesus, «convence
quanto ao pecado», é o Amor do Pai e do Filho; e, como tal, é
o Dom trinitário e, simultaneamente, a eterna fonte de toda a
dádiva divina às criaturas. N'Ele, precisamente, nós podemos
conceber como que personificada e actuada de uma maneira transcendente a
virtude da misericórdia, que a tradição patrística e teológica,
na linha do Antigo e do Novo Testamento, atribui a Deus. No
homem, a misericórdia inclui a dor e a compaixão pelas misérias do
próximo. Em Deus, o Espírito que é Amor faz com que a
consideração do pecado humano se traduza em novas dádivas do amor
salvífico. D'Ele, na unidade com o Pai e o Filho, nasce a
economia da salvação, que enche a história do homem com os dons da
Redenção. Se o pecado, rejeitando o amor, gerou o «sofrimento»
do homem que, de algum modo, se estendeu a toda a criação,
[148] o Espírito Santo entrará no sofrimento humano e
cósmico com uma nova efusão de amor, que redimirá o mundo. E nos
lábios de Jesus Redentor, em cuja humanidade se concretiza o
«sofrimento de Deus», ressoará com frequência uma palavra em que
se manifesta o Amor eterno e cheio de misericórdia: «Misereor»
(tenho compaixão). [149] Assim, «o convencer quanto ao
pecado», por parte do Espírito Santo, torna-se um manifestar
diante da criação «submetida à caducidade» e, sobretudo, no mais
íntimo das conciências humanas, que o pecado é vencido pelo
sacrifício do Cordeiro de Deus: este tornou-se «até à morte» o
servo obediente que, reparando a desobediência do homem, opera a
redenção do mundo. É deste modo, que o Espírito da verdade, o
Paráclito, «convence quanto ao pecado».
40. O valor redentor do sacrifício de Cristo é expresso com
palavras muito significativas pelo autor da Epístola aos Hebreus, o
qual, depois de ter recordado os sacrifícios da Antiga Aliança, em
que «o sangue dos cordeiros e dos touros ... santifica quanto à
pureza da carne», acrescenta: «Quanto mais o sangue de Cristo, em
virtude de um Espírito eterno se ofereceu a si mesmo sem mácula a
Deus, purificará a nossa consciência das obras mortas, para servir
o Deus vivo!». [150] Embora conscientes de que outras
interpretações são possíveis, as nossas considerações sobre a
presença do Espírito Santo em toda a vida de Cristo levam-nos a
reconhecer neste texto como que um convite a reflectir sobre a presença
do mesmo Espírito também no sacrifício redentor do Verbo
Incarnado.
Reflictamos primeiro sobre as palavras iniciais que tratam deste
sacrifício; depois, separadamente, sobre a «purificação da
consciência» que ele opera. Trata-se de facto, de um sacrifício
oferecido «em virtude de» (=por obra de) um Espírito eterno»,
que dele «recebe» a força do «convencer quanto ao pecado» em ordem
à salvação. É o mesmo Espírito Santo de que Jesus Cristo será
«portador» para os Apóstolos no dia da sua ressurreição, segundo
a promesa do Cenáculo, apresentando-se a eles com as feridas da
crucifixão, e que lhes «dará» «para a remissão dos pecados»:
«Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados,
ser-lhes-ão perdoados». [151]
Nós sabemos que «Deus ungiu com o Espírito Santo e com o poder a
Jesus de Nazaré», como dizia Simão Pedro em casa do centurião
Cornélio. [152] Conhecemos o mistério pascal da sua
«partida», segundo o Evangelho de Sao João. As palavras da
Epístola aos Hebreus explicam-nos, agora, de que maneira Cristo
«se ofereceu a si mesmo sem mácula a Deus», e como fez isto «em
virtude de um Espírito eterno». No sacrifício do Filho do homem,
o Espírito Santo está presente e age tal como agia na sua
concepção, na sua vinda ao mundo, na sua vida oculta e no seu
ministério público. Segundo a Epístola aos Hebreus, na caminhada
para a sua «partida», através do Getsémani e do Gólgota, o
próprio Jesus Cristo se abriu totalmente na sua humanidade à acção
do Espírito-Paráclito que, do sofrimento, faz emergir o eterno
amor salvífico. Ele, portanto, foi «atendido pela sua piedade.
Apesar de ser Filho de Deus, aprendeu a obedecer pelos sofrimentos
suportados». [153] Deste modo, a Epístola demonstra como a
humanidade, submetida ao pecado nos descendentes do primeiro Adão,
se tornou em Jesus Cristo perfeitamente submetida a Deus e a ele
unida, e, ao mesmo tempo, cheia de misericórdia para com os homens.
Aparece assim uma nova humanidade que, em Jesus Cristo, mediante o
sofrimento da Cruz, retornou ao amor, traído por Adão com o
pecado. Esta nova humanidade reencontra-se na mesma fonte divina do
dom original: no Espírito que «perscruta ... as profundezas de
Deus» e que é ele próprio Amor e Dom.
O Filho de Deus, Jesus Cristo — como homem — , na oração
ardente da Sua paixão, permitiu ao Espírito Santo, que já tinha
penetrado até ao mais profundo a sua humanidade, transformá-la num
sacrifício perfeito mediante o acto da sua morte, como vítima de amor
na Cruz. Foi Ele, sozinho, quem fez esta oblação. Como único
Sacerdote, «ofereceu-se a si mesmo sem mácula a Deus».
[154] Na sua humanidade Ele era digno de se tornar um tal
sacrifício, porque Ele só era «sem mácula». Mas ofereceu-o
«em virtude de um Espírito eterno»: o que equivale a dizer que o
Espírito Santo agiu de um modo especial nesta autodoação absoluta
do Filho do homem, para transformar o sofrimento em amor redentor.
41. No antigo Testamento, por mais de uma vez se fala do «fogo do
céu», que queimava as oferendas apresentadas pelos homens.
[155] Por analogia, pode dizer-se que o Espírito Santo é
«fogo do céu» que age no mais profundo do mistério da Cruz.
Provindo do Pai, Ele encaminha para o Pai o sacrifício do Filho,
introduzindo-o na divina realidade da comunhão trinitária. Se o
pecado gerou o sofrimento, agora o sofrimento de Deus em Cristo
crucificado adquire, pelo Espírito Santo, a sua plena expressão
humana. Encontramo-nos assim diante de um mistério paradoxal de
amor: em Cristo, sofre um Deus rejeitado pela sua própria
criatura: «Não crêem em mim!»; mas, ao mesmo tempo, à
profundeza deste sofrimento — e indirectamente à profundeza do
próprio pecado «de não ter acreditado» — o Espírito Santo vai
buscar uma nova medida do dom feito ao homem e à criação desde o
princípio. Nas profundezas do mistério da Cruz está operante o
Amor, que reconduz o homem a participar novamente na vida, que está
no próprio Deus.
O Espírito Santo como Amor e Dom desce, em certo sentido, ao
próprio coração do sacrifício que é oferecido na Cruz.
Referindo-nos à tradição bíblica podemos dizer: Ele consuma este
sacrifício com o fogo do Amor, que une o Filho ao Pai na comunhão
trinitária. E dado que o sacrifício da Cruz é um acto próprio de
Cristo, também neste sacrifício Ele «recebe» o Espírito
Santo. E recebe-o de tal modo, que depois Ele mesmo — e Ele
somente com Deus Pai — o pode «dar» aos Apóstolos, à Igreja e
à humanidade. Ele só o «envia» de junto do Pai. [156]
Ele só se apresenta diante dos Apóstolos reunidos no Cenáculo,
«sopra sobre eles» e diz: «Recebei o Espírito Santo. Aqueles a
quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados», [157]
como tinha preanunciado João Baptista: «Ele baptizar-vos-á com
o Espírito Santo e com O fogo». [158] Com estas palavras
de Jesus o Espírito Santo é revelado e ao mesmo tempo é tornado
presente como Amor que está operante no mais profundo do mistério
pascal, como fonte do poder salvífico da Cruz de Cristo, como Dom
da vida nova e eterna.
Esta verdade sobre o Espírito Santo é expressa quotidianamente na
Liturgia romana, quando o Sacerdote, antes da comunhão, profere
estas palavras significativas: «Senhor Jesus Cristo, Filho de
Deus vivo, que, por vontade do Pai, cooperando o Espírito
Santo, destes vida ao mundo pela vossa morte ...». E na
Oração Eucarística III, referindo-se à mesma economia
salvífica, o Sacerdote pede a Deus que o Espírito Santo «faça
de nós uma of erenda permanente» que lhe seja agradável.
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