2. Nota sobre Josef Pieper[7]

Josef Pieper nasceu a 4 de maio de 1904 em Elte (Westfália). Cursou Filosofia, Sociologia e Direito nas Universidades de Berlim e Münster.

Doutorou-se em Filosofia em 1928 pela Universidade de Münster com a tese Die ontische Grundlage des Sittlichen nach Thomas von Aquin, depois publicada com o título Die Wirklichkeit und das Gute nach Thomas von Aquin.

De 1928 a 1932 foi assistente no Forschungsinstitut für Organisationslehre und Soziologie.

De 1932 a 1940, anos em que atua como escritor free-lancer, publicou muitos livros (diversos deles proibidos e apreendidos pelo governo totalitário). A apreensão de Grundformen sozialer Spielregeln (1933), por ser um livro antitotalitário; a selvageria do expurgo de 1934, bem como a destituição do pai, injustamente desligado do magistério, produziram em Pieper, já desde o primeiro momento, "uma certeza definitiva: com esse regime não há compactuação possível"[8].

Suas convicções antinazistas possibilitaram que fosse um dos primeiros alemães a visitar, pouco depois da guerra, a Inglaterra (convidado pelo British Council) e os convites para lecionar em universidades americanas.

Casou-se em 1935 e teve com sua esposa Hildegard - falecida em 1984 - três filhos: Thomas, Monika e Michael.

Lecionou em diversas universidades, sobretudo na de Münster, onde ensina há quarenta anos e ainda hoje - como catedrático emérito -, ministra seus cursos e seminários.

É doutor honoris causa em Teologia pelas Universidades de Munique e Münster e em Filosofia pela Universidade de Eichstätt. Foi também professor visitante em diversas universidades dos Estados Unidos (Stanford e Notre Dame), Índia, Japão e Canadá (Centennial Professor em Toronto).

Entre outras distinções, destacam-se a "Aquinas Medal" da American Catholic Philosophical Association (1968) e o prêmio Balzan de 1982 (primeiro alemão a receber este prêmio internacional considerado o Nobel das Ciências Humanas). É membro da Rheinisch-Westfälischer Akademie der Wissenschaften, da Deutsche Akademie für Sprache und Dichtung (Darmstadt) e da Pontificia Accademia Romana di S. Tommaso d'Aquino.

Pelos dados que extraimos do Schriftenverzeichnis de 1974, vê-se que a difusão de seus livros é invulgar para um filósofo (sobretudo quando se tem em conta que nestes últimos treze anos sua atividade continua constante). Quanto às traduções, por exemplo, em 1974 já mais de cem livros de Pieper estavam publicados em uma dúzia de línguas (inglês, português, francês, holandês, italiano, japonês, norueguês, polonês, sueco, castelhano, tcheco e húngaro). Destes, vinte e cinco publicados nos Estados Unidos, dezessete na Inglaterra, quatorze na Itália, vinte na Espanha, cinco no Japão, três na Polônia etc.

Destacaremos a seguir alguns aspectos relativos à formação de seu pensamento.

Como muitos jovens alemães do atribulado período imediatamente posterior à Primeira Guerra, Pieper participou da Jugendbewegung[9]. A primeira grande influência intelectual e que mais profundamente o marcou naqueles começos do anos vinte, foi a excursão a Rothenfels[10] e o encontro com Romano Guardini, que, de modo vivo e apaixonante, abriu àqueles jovens, amplos horizontes de cristianismo e da realidade do "cúltico-sacramental". A Guardini - em seus oitenta anos - Pieper dedicaria Über die platonischen Mythen.

Sessenta anos depois daquele contato em Rothenfels, Pieper, nos Buchstabier-Übungen[11], julga necessário lembrar ao nosso tempo aqueles mesmos critérios que lhe foram apontados por Guardini sobre Liturgia algo que reitera no seu Lesebuch (preparado pelo próprio Pieper)[12].

Outro ensinamento de Guardini e freqüentemente citado por Pieper, em tema que lhe é tão essencial como a Criação, é o que se encontra no capítulo sobre o caráter verbal das coisas do livro Welt und Person. Aí se diz, por exemplo: "Ora é do Verbo em Deus que provêm todas as coisas, e por isso estão todas elas marcadas por um caráter verbal. Não são meras realidades ou significações privadas de sentido num espaço mudo[13]; passagem de evidente sabor pieperiano.

Aliás, o tema Das Wort, tão profundamente arraigado no autor que estudamos, foi objeto de seu primeiro contato com a obra de Santo Tomás[14], único pensador a quem Pieper designa pela expressão "meu mestre"[15], "meu venerado mestre''[16]. Tinha então dezoito anos e, por sugestão de um professor, pôs-se a ler um texto que o fascinou: o comentário do Aquinate ao Prólogo do Evangelho de São João. Um homem que pensa e escreve com muito vagar, diz Pieper de si mesmo[17], com o que, na realidade, expressa que os temas de que se ocupa são extremamente profundos; transcorridos mais de sessenta anos, relata-nos: "Meu tema no Thomas Colloquium será 'Palavra e Logos' e devo ler e (tentar) interpretar o Comentário de S. Tomás ao Prólogo de S. João"[18].

Já na universidade, Pieper empreendeu o trabalho sistemático da leitura da Summa de Santo Tomás[19]; os cursos, pouco motivantes, apoiados em "manuais tomistas de terceira classe", tiveram pelo menos a vantagem de lhe sugerir o contato com a fonte. Ainda que "meu interesse primário não fosse S. Tomás de Aquino. Eu queria saber 'não o que os outros pensavam mas a verdade das coisas'"[20].

Ainda uma vez em Rothenfels (verão de 1924) ao ouvir Guardini discorrer sobre o espírito clássico em S. Tomás de Aquino e Goethe - celebrava-se o 175º aniversário do nascimento do poeta - e mostrar que esse espírito consiste em voltar-se para a realidade, catalizou- se em Pieper - e pôde então formular claramente - uma convicção que já desde as primeiras leituras da Summa se lhe insinuava e que iria acompanhá-lo ao longo de toda a sua vida: a realidade como fundamento do dever, tema de sua tese de doutoramento.

Um curso importante para a sua formação foi o de Erich Przywara sobre a analogia entis, a analogia do ente, "a quinta-essência de seu pensamento", no qual foi introduzido ao fascinante e inesgotável primeiro artigo do De Veritate de S. Tomás de Aquino[21].

Em 1926 começa a interessar-se pela Sociologia e conhece Johann Plenge, de quem seria assistente durante quatro anos, e de quem aprenderia o senso do concreto próprio do sociólogo.

Uma primeira fase da obra de Pieper (de 1929 a 1934), será dedicada à Questão Social (procurando, por exemplo, o verdadeiro e radical sentido da doutrina social da Igreja contra as atenuações conservadoras das traduções oficiais)[22].

A segunda fase, a definitiva, de seu pensamento, que se estende até os dias de hoje, é a que nos interessa no presente trabalho, especialmente no que tange à Universidade e ao filosofar. Naturalmente, em geral, de especial destaque nesta fase da obra de Pieper, seriam os primorosos estudos sobre as virtudes, que não constituem objeto direto desta nossa pesquisa.

Uma diferença significativa entre os dois períodos pieperianos - além, é claro, da mudança temática -, vem registrada na retratação, ou melhor, complementação que Pieper fará - quase quinze anos depois -, referindo-se àquela primeira fase. Diz em Musse und Kult que a imunização dos espíritos contra o poder tentador das estruturas totalitárias deve-se esperar num nível mais profundo (grifado no original) que no da pura política[23].

E anota que suas próprias Thesen zur sozialen Politik necessitam de complementação nesse sentido (embota o autor estivesse limitando-se expressamente ao plano político e cônscio das limitações e da, por princípio, insuficiência desse plano). E conclui: "É bem característico daquela geração jovem ("Junge Generation", com aspas no original) do entre-guerras ter posto demasiada esperança no puramente político[24].

Em 1946, Pieper toma contato com a obra de um autor que depois citará freqüentemente e que, em colaboração com sua esposa, Hildegard, traduzirá para o alemão: o filósofo e teólogo anglicano C. S. Lewis[25].

Das dezenas de intelectuais contemporâneos que desfilam em seus livros autobiográficos, destacaríamos: Peter Wust, Hans Urs von Balthasar (ex-colega no círculo de Przywara), T. S. Eliot (que prefaciará a edição inglesa de Musse und Kult e Was heisst Philosophieren?), Christopher Dawson, o poeta Konrad Weiss (também muito citado por Pieper), Jacques Maritain e Werner Jaeger.

Dois outros autores que, pela especial afinidade de Pieper com eles, não poderiam deixar de ser referidos são Newman e Pascal. A mais lúcida das caracterizações do pensamento pieperiano é, parece- nos, a feita por Eliot e que vale a pena recolher aqui:

A raiz das extravagâncias da Filosofia moderna (...) reside no fato de que a Filosofia tenha se divorciado da Teologia. Ao fazer essa afirmação é necessário antecipar-se à resistência que ela suscita: uma resistência que procede de uma imediata reação sentimental que se expressa dizendo que qualquer dependência da Teologia seria uma limitação da liberdade de pensamento do filósofo. É preciso tornar claro o que se entende por necessária relação entre Filosofia e Teologia e a implicação que tem uma fé religiosa na Filosofia. Não empreenderei aqui a exposição desses pontos, pois isso já foi feito, e muito melhor, por Josef Pieper: desejo somente chamar a atenção para esse ponto central em seu pensamento. Ele, pessoalmente, é um filósofo católico que se baseia em Platão, Aristóteles e nos escolásticos: e deixa sua posição clara para os leitores. Mas seus escritos não constituem uma apologética cristã - que, a seu ver, é tarefa do teólogo. Para Pieper, uma Filosofia conectada com outra comunhão que não a de Roma, ou de alguma religião que não as cristãs, seria ainda genuína Filosofia. É significativo que, de passagem, encontre palavras de concordância com o existencialismo de Sartre, pois encontra aí pressupostos religiosos - totalmente diferentes dos que o próprio Dr. Pieper sustenta.

Um dos pontos mais importantes da pesquisa que o Dr. Pieper empreende é a fundamentação de uma reta relação entre Filosofia e Teologia, que deixa o filósofo com autonomia no seu próprio campo de pesquisas. De um modo mais amplo, sua influência vai dirigida ao restabelecimento da Filosofia na dignidade de algo importante para o homem culto e pensante, em vez de ser confinada a atividades esotéricas que só indiretamente podem atingir o público, de modo insidioso e freqüentemente distorcido. Ele põe no devido lugar o que o conhecimento comum insistentemente nos diz: que o insight e a sabedoria são componentes da Filosofia[26].

Antecipando alguns aspectos que desenvolveremos nos próximos capítulos, diremos que a temática central do filosofar de Pieper é a Antropologia Filosófica, onde a intuição - guiada principalmente pelos quatro grandes mestres da tradição ocidental: Platão, Aristóteles, S. Agostinho e S. Tomás - volta-se para o aprofundamento do sentido do fenômeno, sobretudo a partir da linguagem comum. É, diríamos nós, empregando linguagem cara a Pieper, uma Weisheit fundamentada num Weistum[27].

Junte-se a tudo isto seu talento de escritor e teremos - dentro da intrínseca dificuldade, por vezes extrema dos assuntos de que trata - um estilo brilhante, com a clareza da simplicidade e da comunicação serena e direta com o leitor. Pieper - na feliz formulação de D. João Mehlmann - nos dá S. Tomás em pequenas doses: a sobriedade de seu estilo condensa, por vezes, em meditações de uma página[28] temas de extraordinária abrangência. Aprecia também enunciados sintéticos, que recolhem em poucas palavras grandes intuições[29].

Essa sua clareza o leva a evitar a erudição hermética que encontramos em tantos filósofos (mesmo Wahrheit der Dinge, considerado por Pieper o "mais erudito de todos os meus escritos"[30] não é leitura árdua).

Mas não se trata apenas de uma questão de estilo. Na realidade, as raízes da simplicitas de Pieper encontram-se em convicções filosóficas. No posfácio[31] que escreveu para a edição alemã do livro sobre a dor de C. S. Lewis, Pieper tece considerações, referindo-se a esse autor, que podem perfeitamente aplicar-se à sua própria obra: ainda que nem todos a considerem uma leitura "leve" - assim começa o texto - ninguém pode pôr em dúvida a simplicidade, virtude cada vez mais rara nos escritos filosóficos.

A simplicidade é - prossegue Pieper - o "selo de credibilidade" do filósofo e onde não a encontrarmos devemos desconfiar.

Distingue a seguir "linguagem" (Sprache) de "terminologia" (Terminologie). Esta é artificial, fabricada, limitada a especialistas; aquela, a linguagem comum, quotidiana, possui a originariedade e a força da palavra natural. A simplicidade do filósofo mostra-se no fato de estar praticamente livre de terminologia. Hans Urs von Balthasar resume as razões dessa característica do autor de Was heisst Philosophieren?:

Pieper mostra que as ciências particulares, ao prescindir do sentido do ser como um todo, podem-se permitir uma linguagem precisa (ou devem contentar-se com ela), enquanto o filósofo, que visa o "sagrado e manifesto mistério" (Goethe) do ser na totalidade e do seu significado, deve sempre considerar a linguagem comum, a que se faz a partir da sabedoria dos que filosofam inconscientemente. "A palavra da linguagem comum humana encerra mais realidade que o termo artificial". E ajunta a surpreendente mas acertada afirmação: "Não só Lao-tse, Platão e S. Agostinho, mas também Aristóteles e S. Tomás - por improvável que isso possa parecer - ignoram toda terminologia especializada". Estes nomes afiançam que a simplicidade a que Pieper alude - selo de credibilidade - de modo algum se confunde com uma trivial clareza de banalidade. Por que não? Porque o método de cada ciência só é correto quando se deixa determinar pelo objeto. A História ou a Psicologia têm um modo diferente de precisão do que a Física ou a Biologia. Para Pieper, esta sentença fundamental sempre tem sido o seu ponto de partida: acolher e admitir o fato tal como ele se dá, na sua própria verdade, bondade e beleza é o pressuposto para se aprender algo dele[32].

Para finalizar esta nota, destacamos um aspecto do trabalho de Pieper como escritor e professor: sua incansável constância. Na bibliografia encontram-se obras de 1928 (como a primeira redação de Die Wirklichkeit und das Gute) até os dias de hoje, em que, entre outros[33], escreve o terceiro volume de suas Autobiographische Aufzeichnungen.

Sendo um dos mais famosos e difundidos filósofos da Alemanha de hoje, Pieper é freqüentemente solicitado como conferencista por diversas universidades da Europa e da América do Norte.

Seu ritmo de trabalho continua intenso. Professor infatigável, recém- completados os 82 anos de idade, somente no mês de maio de 1986 - além do curso que regularmente ministra na Universidade de Münster -, viajou para a Irlanda e para a Suiça a fim de ministrar conferências nas Universidades de Dublin e Zürich[34].