3.8. A Liberdade Acadêmica

A liberdade, no sentido das artes liberais, é também a mesma liberdade que corresponde ao sentido genuíno de liberdade acadêmica, que é algo de muito mais significativo "que um mero caso particular da liberdade política da palavra ou que a possibilidade reconhecida ao estudante de organizar seus estudos a seu próprio arbítrio"[213].

A verdadeira liberdade acadêmica está na ausência de vínculos com qualguer fim utilitário[214] e no ocupar-se da verdade e de nada mais[215].

Pieper trata diretamente da liberdade acadêmica no capítulo IV de Was heisst Akademisch?, no capítulo IV da Verteidigunsrede für die Philosophie, no artigo "Missbrauch der Sprache-Missbrauch der Macht" (in Über die Schwierigkeit heute zu glauben, pp. 255 a 282) e no debate The Foundations of Freedom.

Na Verteidigungsrede enfatiza a necessidade de defesa da liberdade acadêmica contra os inimigos de fora, contra qualquer "diretriz oficial" emanada do poder político; e, principalmente, a liberdade acadêmica deve ser fomentada e facilitada "por dentro", "pela veemente vontade de verdade que, ainda que seja só por este momento, se interessa afinal por uma só coisa: que o tema em questão seja enfocado tal como é na realidade''[216].

Nesse contexto evoca a experiência paradigmática que viveu no tempo em que ainda era possível ter círculos de estudo com a participação de estudantes vindos - um tanto camufladamente - da Alemanha Oriental. Num desses debates, discutia-se uma novela que esses estudantes "do outro lado" afirmavam que havia sido proibida pelo governo da Alemanha Oriental porque continha grosseiros erros históricos sobre a revolução soviética.

É evidente que tais questões - prossegue Pieper narrando o curso daquela discussão, que evidenciou-lhe o sentido da liberdade acadêmica - são passíveis de comprovação objetiva; mas isto só será possível se houver na sociedade um setor livre, onde se possa discutir a fundo e imparcialmente com independência da "luta de classes", do plano qüinqüenal, da política em geral e de todo e qualquer interesse coletivo ou privado; a única preocupação deve ser a verdade das coisas[217].

A liberdade acadêmica se perde precisamente na medida em que se perde o caráter filosófico dos estudos universitários ou, dito de outro modo, na medida em que as aspirações totalitárias do mundo do trabalho conquistam o âmbito da Universidade; e eis aí a raiz metafísica; o que se chama "politização" é apenas conseqüência e sintoma[218].

Um tal setor livre, imune, independente "é o que se designa precisamente com o antigo nome de scholé, que significa ao mesmo tempo escola e lazer''[219].

A scholé é - diz Pieper em Scholastik[220] - tão essencial para a educação quanto a existência de professores ou a viva vontade de aprender por parte dos alunos. Uma tal "imunidade" exigida pela Filosofia da Educação pode realizar-se sociologicamente de diversos modos: "no caso da Academia de Platão, o que garante o âmbito livre do filosofar é a riqueza da leisure class, do estrato alto de uma sociedade fundamentada na escravatura[221]. Mas, complementa em Actualité de la Scolastique, não se deve esquecer o outro traço: o fato da academia platônica "ser uma associação cultual, que se reunia a datas fixas para oferecer sacrifícios, uma sociedade religiosa que garantia a seus membros essa liberdade de que falávamos"[222].

Também é ao abrigo da religião - como se mostra no cap. II de Scholastik - que se dá a scholé medieval, mesmo em meio à tormenta do século VI (Pieper analisa o caso paradigmático de Cassiodoro e seu mosteiro Vivarium): "É certo que a intangibilidade do 'espaço livre' do claustro reside também no fato de que os poderes temporais o respeitavam''[223].

É este o momento de aludir ao que Pieper considera o fundamento último do direito (e também da liberdade acadêmica): o caráter criado da pessoa humana, fundamento talvez insuspeitado mas sem o qual nada se sustenta (cf. Was heisst Akademisch?, p. 35).

A este propósito, recolhemos aqui trechos das "Duas Pequenas Meditações sobre a Justica", onde Pieper mostra a necessidade ineludível de recorrer à instância divina para garantir a intangibilidade do direito e da liberdade:

Em que deve residir então a causa de que todo aquele que traz uma face humana, simplesmente pelo seu ser-homem, inalienavelmente algo lhe seja devido? Por exemplo que sua honra como pessoa seja respeitada? A noção de pessoa, de fato é aqui decisiva - enquanto se compreende "pessoa" como um ente que existe para seu próprio aperfeiçoamento e complementação. Mesmo assim, em caso de conflito, ao se chegar aos extremos, não basta retroceder ao ser-pessoa (como supunham alguns filósofos idealiatas). É necessário nestes casos, poder colocar em jogo uma instância absoluta, mais além de qualquer instância humana. Dizendo-o de outra maneira: o outro deve ser-me intocável por eu o ver como ente criado por Deus como pessoa.

Que não se pense ser esta uma concepção especificamente cristã, ou mesmo teológica. Foi um chinês confuciano quem declarou aos seus presumivelmente atônitos colegas da comissão da Unesco para a reformulação dos direitos humanos que lhe havia sido transmitido por tradição que: "O Céu ama o povo; e o que exerce o poder deve obedecer ao Céu". E Emanuel Kant - que não era propriamente um teológo - diz: "Temos um santo regedor; e o que ele deu ao homem de sagrado é o direito dos homens" (...)

Conforme já dissemos, não se pode indicar qual seja o fundamento do direito e, conseqüentemente, do dever de Justiça - a não ser que se tenba uma determinada concepção do homem, da natureza humana. Mas como, se se proclama que não há natureza humana 'il n'y a pas de nature humaine (puisqu'il n'y a pas de Dieu pour la concevoir - Sartre)?

Na verdade é esta a formal justificação de toda ordem totalitária - esteja ou não tal vínculo no espírito dos autores daquela tese. Se não há uma natureza humana em virtude da qual algo de inviolável pode ser atribuído ao homem, como poder-se-á evitar o corolário: Faz do homem o que bem entenderes?...

Como se vê, Pieper enraíza-se numa concepção onde o divino não entra como mera referência cultural, mas real. Recolho aqui - como importante termo de comparação - um parágrafo de uma das mais lúcidas empresas de refutação do permissivismo e do totalitarismo. Ainda que de uma perspectiva bem diferente da de Pieper, coloca-se a inviolabilidade do direito como sacrum:

Somos herdeiros do mundo greco-romano e do cristianismo e, por conseguinte, de uma forma de situar o homem no mundo e de valorizá- lo. E nessa mundividência, a que estamos profundamente vinculados por uma riquíssima herança, a cultura não é concebida como um amálgama de traços que se acumulam de qualquer modo, mas como idéia inseparável da formação pessoal, para a qual os valores não se equivalem, mas obedecem a determinados princípios e se articulam em função de regras que decorrem de um ideal humano que se poderia talvez exprimir, na sua formulação mais elevada, no dito famoso de Sêneca: Homo sacra res homini, o homem, coisa sagrada para o homem (Epistolae ad Lucilium, XCV)[224]

Assim, "a raiz oculta"[225] de que se nutre a Pedagogia das Artes Liberais e a liberdade acadêmica é o culto, no sentido de afirmação da realidade criada. O único meio de preservar um setor livre dos tentáculos da politização ou do utilitarismo do mundo do trabalho "é subtraí-lo tão perfeitamente ao domínio da utilidade que - como diziam os antigos romanos - fique reservado como 'propriedade exclusiva dos deuses'"[226].

Sem a consciência de uma instância superior - dada precisamente pelo culto - o poder político "deixa de respeitar a intangibilidade jurídica da liberdade acadêmica, como se esta fosse um 'absurdo liberal'"[227].

Certamente, Pieper não pretende dar normas concrentas de atuação no sentido de restauração da consciência do caráter criado da realidade[228]; no entanto em Missbrauch... enumera três convicções fundamentais sobre o homem e o mundo, que a Universidade deve viver em grau máximo, caso queiramos defender a liberdade acadêmica não só dos inimigos de fora mas dos de dentro (não por acaso, no parágrafo com que inicia o tratamento deste assunto, lembra o velho adágio: corruptio optimi pessima, o ótimo, quando corrompido, torna-se péssimo):

1) O bem do homem consiste em ver as coisas, na medida do possível, tal como são, e viver e agir a partir da verdade assim captada.

2) O homem se alimenta da verdade; a existência é tanto mais rica quanto mais amplo e profundo é o mundo que o ilumina e lhe é acessível.

3) O lugar natural da verdade é o diálogo entre os homens, a linguagem não deve dificultar o acesso à realidade nem desfigurá- la[229].

E indica alguns dos elementos que atentam contra a Universidade: a simplificação partidarista, o apaixonamento ideológico, a afetividade cega, o culto da mera forma, a terminologia arbitrária, etc.

Antes de finalizar este tópico, registremos um importante texto de Pieper sobre a liberdade acadêmica confrontando-o com o ponto de vista marxista.

No debate sobre os fundamentos da liberdade, ante a hesitação do oponente em aceitar o caráter teorético do filosofar como único fundamento da liberdade, Pieper responde:

Vejamos concretamente (a concepção clássica) em termos contempôraneos. O que estou dizendo é que no momento em que começarmos a encarar o elemento teorético da razão como de secundária importância quando comparado à utilidade prática, a partir desse momento perderemos a possibilidade de estabelecer uma base sólida para nossos anseios de liberdade da ciência e de defendê-la contra ameaças externas.

Penso que esse momento crítico no desenvolvimento das idéias pode ser apontado com razoável precisão na História da Filosofia. É o momento em que se afirmou que deveríamos substituir a velha filosofia teorética por uma nova filosofia prática que nos habilitaria a tornar-nos senhores da natureza, que o pensamento humano não era outra coisa que uma ferramenta na "indústria intelectual" e que o último propósito de todo conhecimento seria a satisfação das necessidades da humanidade.

Estas três últimas formulações são, na realidade, citações. A primeira procede de Descartes. Sua visão da Filosofia "prática" constitui o começo de uma nova era e seu surgimento marca o fim do período clássico. A segunda citação, relativa à "indústria intelectual", é de John Dewey, o fundador do moderno pragmatismo. E a terceira que, como o senhor admitirá, se enquadra na mesma linha de pensamento, foi na realidade engenhosamente extraída da Enciclopédia soviética. Parece-me que este último ponto fornece uma indicação de que há uma surpreendente uniformidade no conjunto das idéias que se estendem a partir de Descartes ("senhores e dominadores da natureza") até os iniciadores dos planos qüinqüenais. É uma unidade de perspectiva, estruturada na convicção comum de que a Ciência deve ser posta a serviço de objetivos que se encontram fora das leis que a regulam internamente.

Resumindo, quando encontramos no Estado totalitário dos "trabalhadores a ciência constantemente argüida a responder a questão: "Em que isto contribui para o plano qüinqüenal?", isto não é mais que a estrita conseqüência lógica da proposição de Descartes relativa à Filosofia prática que nos tornará "senhores da natureza"[230].

Até que ponto o posicionamento clássico de Pieper atinge a raiz do problema e como quem quer que defenda a liberdade acadêmica deve ater-se ao fundamento último da liberdade da teoria, tudo isto se torna mais claro pela consideração de um texto ostensivamente polêmico, no qual se diz que a Universidade necessariamente está a serviço de ideologias e que pretender o contrário - neutralidade de idéias, objetividade do conhecimento - é "filosoficamente besteira, historicamente mentira, politicamente demagogia e eticamente imoralidade"[231].

Pois na perspectiva "liberal-ilustrada" (no dizer da professora Chauí) "as idéias são aceitas quando reguladas pelos critérios da verdade teórica", mas - sempre segundo a professora - a verdade teórica é um "valor" e pretender pautar a pesquisa pela "verdade" (conceito ideológico a serviço dos exploradores) é uma "besteira filosófica", uma "hipocrisia da direita": "Por que tanto empenho na 'neutralidade' se esta não resiste ao menor exame reflexivo?"[232].

De fato, é o que estamos dizendo: fora do fundamento clássico não há sustentação para a liberdade da Ciência e para a liberdade acadêmica. Se o conhecimento humano não atingisse a verdade das coisas, se não fosse a sua medida a ipsa res[233], a própria coisa, então que fundamento lhe restaria senão o de sujeitar-se a programas de ação? O conceito de ideologia nada mais é que o Ersatz da Prudência (no sentido legítimo e autêntico que tem essa virtude cardeal) numa concepção que já não aceita que a objetiva verdade das coisas seja a medida do conhecimento e do agir humanos.

Na base do conceito marxista de ideologia estão as seguintes convicções:

- O real não é constituído por coisas[234].

e

- É, portanto, das relações sociais que precisamos partir para compreender o quê, e como e por quê os homens agem e pensam de maneiras determinadas[235].

É por isto que - como já em 1936 apontava Pieper - a antiga doutrina sobre a Prudência, vale dizer sobre a possibilidade de um conhecimento humano da verdade das coisas, "pode lançar uma luz totalmente surpreendente sobre o conceito sociológico de ideologia (...) que não é senão falta de objetividade na percepção da realidade''[236].