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Pieper, tal como os grandes filósofos antigos e medievais, considera
a linguagem, a linguagem comum[70], sempre campo privilegiado onde
se manifesta (e também se esconde...) a realidade.
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É de se supor que Platão, Aristóteles, S. Agostinho e S. Tomás sabiam
muito bem o que faziam quando começavam sempre por inquirir a
linguagem comum: Que pensam os homens quando dizem "liberdade",
"alma", "vida", "felicidade", "amor" ou "fé"? É evidente que os
patriarcas da Filosofia Ocidental não consideravam isto um mero
expediente didático; antes sustentaram a opinião de que sem tal
conexão com a linguagem realmente falada pelos homens o pensamento
perde sua força, convertendo-se em algo fantástico e carente de
base[71].
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A linguagem, dizíamos, manifesta, mas também esconde, a realidade:
daí o trabalho de análise feito pela intuição do filósofo que, como é
óbvio, não pode ingenuamente endossar sem mais o mero uso quotidiano
das palavras, pois nesse uso "há, sem dúvida, abusos; e, como é
claro, justamente as palavras-chave do falar humano são as que mais
sofrem tais assédios''[72]. Um exemplo, extraído da obra Über die
Liebe: "Basta ir folheando uma revista ilustrada enquanto esperamos a
nossa vez no barbeiro, para dar vontade de nunca mais trazer aos
lábios a palavra 'amor', nem mesmo em futuro longínquo"[73].
E é que o filósofo deve fazer um esforço de depuração e
aprofundamento para ser conduzido da linguagem à realidade:
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A averiguação do que é verdadeiramente pensado na linguagem viva dos
homens não pode, em caso algum, ser considerada tarefa fácil (...) É
quase impossível esgotar e circunscrever de modo preciso a
significação plena, principalmente das palavras fundamentais (...)
Cada indivíduo, ao utilizar de modo espontâneo as palavras, costuma
exprimir com elas mais do que realmente diz conscientemente[74].
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A seguir, exemplifica com a palavra "semelhança, que é "coincidência
em alguns traços" - uma definição aparentemente precisa e que, além
do mais, foi tirada do conhecido dicionário filosófico de Johannes
Hoffmeister. Pieper mostra que só o uso vivo da linguagem pode
manifestar que tal definição é falsa, incompleta, pois carece de um
elemento essencial, a saber: a relação de dependência. Só damos por
isso quando - voltando-nos para a linguagem viva - nos damos conta de
que não se diz que "um pai é semelhante ao filho", mas, que "o filho
é que é semelhante ao pai".
E, o texto prossegue:
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é uma empresa de máxima dificuldade tentar esquadrinhar a
significação integral de uma palavra fundamental (...) e é necessário
imunizar-se contra a tentação de perfeição que pode esconder-se por
detrás de definições demasiado precisas.
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Como se pode notar, o assunto é bastante problemático, sobretudo
quando se tem em conta que é um procedimento constante e de
extraordinária importância.
Numa de suas recentes micromeditações, Pieper explicitou uma lei
fundamental que subjaz a essas suas análises de linguagem: "Nota-se
que uma palavra está sendo usada em sentido impróprio quando sem
alteração de sentido (num dado contexto) pode ser substituída por
outra"[75].
Por tudo o que acima fica dito, o leitor não se surpreenderá de
encontrá-lo sempre extremamente atento - o filósofo ideal, diz Eliot
no seu estudo sobre Pieper, deveria estar familiarizado com todas as
línguas - não só às peculiaridades da língua alemã[76], mas também
às do latim e do grego[77], do inglês[78], do francês[79], do
russo[80], do indiano[81] etc.; ao que a linguagem comum diz (ou
deixa de dizer).
Um outro problema importante no campo da interpretação da linguagem,
sobretudo quando se quer compreender um autor de outra época (o que
para Pieper é decisivo) é o que ele denomina "captar o não-dito".
Pela especial importância, transcrevemos o texto essencial a
respeito:
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Sobre o que é evidente não se fala; o que de per si é compreendido
"goes without saying", passa sem dizer. A questão é saber o que é
óbvio e, portanto, pode ficar inexpresso.
Nesta, por assim dizer, inocente consideração (também ela de algum
modo evidente) resite a máxima e real dificuldade de toda
interpretação de texto, na medida em que, no texto que vai ser
interpretado, algumas coisas permaneceram sem ser expressas por causa
de sua evidência; coisas que para quem o interpreta de modo algum são
óbvias porque ele não as capta sem mais.
E isto significa que, para quem interpreta, a clave da real captação
também se alterou.
Na interpretação de um texto, sobretudo de um texto de época ou
cultura alheia à nossa, o que é pura e simplesmente decisivo (e, ao
mesmo tempo, dificultoso) reside nisto: captar os óbvios
fundamentais, que subrepticiamente entretecem o que foi dito, dar com
a clave invisível que subjaz ao expressamente dito. Pode-se até dizer
que a doutrina de um pensador "esteja no que diz sem dizer"
(Heidegger)[82].
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Pieper propõe como detector e solução para o problema dos "ditos não-
ditos", a atenção às "brechas", aos saltos lógicos no discurso (isto
é, ao que aparece a quem interpreta como tais), pois é aí que o autor
que está sendo interpretado tem suas evidências inexpressas.
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