3.2. A Contemplação

O homem é um ser tal que a sua realização, "a sua suprema felicidade se encontra na contemplação"[146].

Exclusivamente à interpretação e justificação dessa sentença, Pieper escreveu a obra Glück und Kontemplation. Recolheremos - dessa e de outras obras - aspectos pertinentes a este trabalho. Inicialmente, devemos observar que a sentença acima é de extraordinária relevância para a Antropologia Filosófica, para a Ética e para a Educação.

E mais: "Ela (a sentença acima) expressa toda uma concepção cósmica, especialmente uma concepção que busca as raízes da natureza do homem e do sentido da existência humana"[147].

Contemplação é simplesmente outro nome para teoria[148]. Pieper faz notar que contemplatio é a tradução latina de theoria[149] que é, como apontávamos, livre e "orientada exclusivamente para a verdade, algo que tem sentido em si mesmo"[150].

Tenha-se em conta que esse "ter sentido em si mesmo" refere-se também ao homem, desde que concebido segundo o tradicional conceito de pessoa, "um ser que existe para seu próprio aperfeiçoamento: assim poderíamos definir pessoa com uma fórmula simplificada, ainda que não demasiadamente arbitrária"[151].

Ora, o que é "bom em si mesmo" deve afetar o todo da existência humana, o que é bom não para isto ou aquilo, mas, em última instância, bom. Pieper assente à antiqüíssima resposta de Anaxágoras sobre o bem último do homem:

"Para que estás na terra?" A resposta de Anaxágoras foi: para a consideração contemplativa, eis theorian, do céu e da ordem do universo. Pois bem, exatamente o mesmo queremos expressar aqui com a tese que vamos examinar, a saber, que a consideração filosófica (...) é não só parte essencial do "bem do homem" (entendido como bem em si), mas também elemento imprescindível do bem comum[152].

Pois a realização, o bem, a felicidade do homem consiste em que ele tenha o que quer[153]. Ora, tão problemático quanto a definição - anteriormente discutida - do que o homem realmente quer, é o questionamento do ter: o que é, afinal, ter?

Pieper registra a profundidade dessa questão com uma epigramática frase de longínqua origem oriental: "'Meu jardim', disse o rico; o jardineiro, sorriu..."[154]

E é que conhecer, contemplar, ver com olhar de amor[155] a realidade tal como é - e aí se dá uma total coincidência entre os grandes da tradição ocidental -, é "nobilissimus modus habendi aliquid"[156], o modo mais nobre de se ter algo.

É claro, além disso, e a própria linguagem comum o atesta, que o "ter" transcende a compra ou outros atos jurídicos ou cartoriais.

Com relação a qualquer coisa que queiramos ou creiamos possuir (jardim, livro, obra de arte; mas também amigos, mestres, pessoa amada e até alguma vivência ou acontecimento que só experimentamos uma vez), diremos que "temos algo" só na medida em que mantenhamos viva a sua presença, vendo-o de novo uma e outra vez, contemplando, pensando nele, recordando-o. De nenhuma outra maneira nos é dada nossa verdadeira riqueza, o que verdadeiramente possuímos na vida. Para certificar-nos disso, pouca falta faz a confirmação da "sabedoria dos antigos"[157].

Ao final do cap. VII de Glück und Kontemplation, Pieper, também aí seguindo S. Tomás, explica a sentença expressa acima. O conhecimento é, no sentido mais estrito, assimilação: um assimilar em que o mundo objetivo, enquanto conhecido, chega a ser o próprio ser do sujeito cognoscente. Os entes não-cognoscentes limitam-se à sua própria forma; já os cognoscentes, além de possuírem (de modo natural) sua própria forma, possuem também (de modo intencional) as dos objetos conhecidos. Com especial profundidade e - como veremos - sem fronteiras, no caso do sujeito espiritual.

Aí onde está o espírito, aí está também a totalidade das coisas, aí "é possível que num só ente tenha existência a plenitude do universo (S. Tomás de Aquino, De Veritate II, 2). Aqui cabe também aquela grande sentença de Aristóteles que se tornou proverbial no Ocidente: "A alma é, no fundo (im Grunde), todos os entes, anima est quodammodo omnia (Sobre a alma 3, 8; 341-b)[158].

Ao comparar a contemplação própria da bem-aventurança final com a teoria filosófica, Pieper as conjuga, evitando, porém, identificá- las: se a visio beatifica é a plenitude de posse do anseio que já se dá no homo viator em prefiguração[159], o dirigir-se para a contemplação que se dá no filosofar é pergunta e procura e não ainda pleno achado e resposta[160].

Não só a felicidade "para além da outra margem da morte" se realizará como contemplação; "também o homem histórico, corporalmente existente é um ser dirigido em última instância para a contemplação, e que anseia pela contemplação"[161].

Tendo falado da contemplação e do ter, podemos entender melhor o que Pieper diz a respeito da verdadeira riqueza (e, também, da verdadeira pobreza) do homem.

A verdadeira Filosofia se apóia na crença de que a riqueza própria do homem (...) está em que sejamos capazes de ver aquilo que é, a totalidade daquilo que é[162].

... Ao mesmo tempo põe-se ante os olhos a imagem da extrema pobreza humana, não material mas existencial. Já seria desconsolador ter que viver num mundo em que só houvesse o útil e o disponível sem poder alegrar-se com algo sem finalidade imediata; se não houvesse mais que ciência aplicada, mas não uma reflexão filosófica da totalidade da existência[163].

Daí que o desumano do mundo totalitário do trabalho seja que seus tentáculos se lancem até mesmo sobre a existência espiritual do homem[164], negando tudo que não se submeta ao princípio de utilidade, que passa a ser encarado como sabotagem[165]: "Num mundo de trabalho total (... o filosofar ...) terá de fenecer, ou melhor, feneceria se fosse possível destruir totalmente a natureza humana''[166].