|
O espírito acadêmico que procuramos caracterizar ao longo deste
trabalho é desenvolvido por Pieper em confronto com seu oposto, o
espírito sofista, a que implicitamente temos nos referido freqüentes
vezes. Porém, para os propósitos deste trabalho pareceu-nos mais
oportuno este tópico à parte.
Inicialmente, devemos notar que o espírito sofístico significa para
Pieper precisamente o oposto do acadêmico: "Acadêmico quer dizer
anti-sofístico"[372].
E, assim como o filosofar de Platão tem caráter atemporal, do mesmo
modo o sofista, presente também em nossa época[373].
Na sofística, à admiração (como arché do filosofar) opor-se-á a
dúvida; à reverência (diante de uma realidade criada), a crítica; à
contemplação, o fim prático; a simplicitas, a sedução; etc.
O sofista é mais anti-acadêmico que o "trabalhador", na medida em que
"o mentiroso 'sim' é pior que o rotundo 'não'"[374]. E corresponde à
natureza da sofística sua difícil identificação, como o fez notar o
filósofo norteamericano John Wild: "o sofista tem a mesma aparência
de um filósofo, fala exatamente como um filósofo; pode-se mesmo
dizer: parece-se muito mais a um filósofo que o próprio
filósofo"[375].
Seja como for, Pieper aponta diversas formas de sofística a partir
dos personagens que aparecem nos diálogos platônicos: o relativista
Protágoras ("o homem é a medida de todas as coisas" - primeiro
princípio do humanismo sofista); o erudito Hípias; Pródico, o
"desmistificador" de tudo que se apresente como grande e digno de
respeito e Górgias, o elegante nihilista.
|
O que há de comum a todas essas formas particulares de sofística é
exatamente o que as separa daquele esforço, permanente através do
tempo, de conhecer com base na realidade e no ser, esforço este que
tem como grandes testemunhas Sócrates e Platão[376].
|
|
Procurando as constantes sofísticas, Pieper indicará em Begeisterung
und göttlicher Wahnsinn três delas[377]:
|
1) Perfeição formal do discurso: "Quem procura analogias atuais para
o fenômeno sofista, terá que fazê-lo entre os representantes modernos
da haute littérature".
2) O vanguardismo (o que não significa que todo vanguardismo seja
necessariamente sofístico).
3) O êxito, entendido como virtude e programa de vida, tal como é
enunciado por Protágoras[378]. Quando se tem em conta a idéia de
homem num mundo como o de hoje, em que a utilidade e a eficiência se
apresentam como se fossem valores supremos, vê-se até que ponto está
presente e atual o programa sofista de Protágoras.
|
|
O sofista não aceita
|
que a riqueza espititual própria do homem só se realiza participada
na atitude de silenciosa teoria voltando-se para a verdade como um
ouvinte que recebe sua medida da realidade do mundo precisamente isto
o sofista nunca aceita. Ele afastará de si o pensamento de que possa
existir algo como "tradição sagrada", proveniente de uma fonte acima
do homem (...) Ele escolhe uma liberdade que se realiza precisamente
pelo esquecimento da sabedoria desde sempre atestada, por mais que
esta liberdade seja vazia (...). Rompe também com o vínculo profundo
e essencial que orienta o espírito à norma objetiva do ser. Para ele
o conteúdo torna-se indiferente diante do formal. O sofista não
suspeita de que essa dupla negação o torna, por assim dizer, maduro
para entrar a serviço das forças totalitárias. Quem nega que a norma
do espírito é a verdade objetiva torna possível e até mesmo
necessária a submissão a fins estranhos, isto é aos fins arbitrários
de qualquer práxis[379].
|
|
Assim a retórica sofista, erudição desvinculada da realidade, promove
uma dupla corrupção da palavra: em relação à realidade que cede seu
lugar à forma, e a conseqüente corrupção do caráter comunicativo,
onde o decisivo passa a ser a persuasão, instrumento de múltiplas
formas de poder[380].
Mas, para além de todas as divergências mais ou menos superficiais,
encontra-se algo de mais profundo, onde a sofística deturpa o
acadêmico no que este tem de mais íntimo: a atitude de reverência,
seja na formação, seja na pesquisa, seja no ensino. Se o mundo é
criação, então a realidade não é mera matéria-prima para a ação
pragmática, antes é objeto de reverência (e admiração, e
contemplação, etc.):
|
Sempre que o elemento "crítico" se torna tão determinante que
praticamente torna impossível a atitude reverencial, aí se dá também
a forma mais extrema de sofística anti-acadêmica, que destrói o
núcleo do que é acadêmico, apesar de uma perfeição formal talvez
extrema. Por crítica não entendemos aqui a integridade do pensamento
apoiado em evidência mas aquela presunçosa auto-suficiência que se
fecha intransigentemente (...).
Mas por que a reverência é a atitude mais profunda do espírito
acadêmico, e por que se fere a substância desse espírito quando se
abandona essa atitude? Porque sem reverência a teoria num sentido
pleno (isto é a recepção silenciosa da realidade, atitude que se
encontra por excelência no ato filosófico, que, por sua vez,
constitui a essência da atividade acadêmica) se torna
irrealizável[381].
|
|
|
|