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"Só quem cala ouve" é uma sentença considerada por Pieper tão
importante que a inclui entre as regras fundamentais da vida do
espírito"[290] e a que se pode aplicar o juízo de Sócrates (no
Górgias, 508d): nunca é demais repeti-la[291].
É claro que não se refere ao âmbito meramente acústico, mas a um
nível mais profundo, que abranja a captação de toda e qualquer
realidade[292], toda espécie de compreensão e intuição, que só se
realiza sob a condição de silêncio interior.
Os inimigos deste silêncio-condição do filosofar, são apontados por
Pieper: a passividade (a atitude de indiferença com relação à
verdade), a suficiência de quem julga já saber o bastante, o deixar
entrar para dentro de si "a barulheira da rua e do mercado, a ruidosa
manchete do dia, o ressoar visual de vistosas baboseiras". E
acrescenta: "O surdo fruto de tudo isto - em segredo talvez desejado
- é que o homem se impede de ouvir. Mas se o que realmente importa
para o homem é poder ouvir..."[293]
Pieper detecta nessa atitude de recusa de ouvir a realidade um
"desespero oculto" que Kierkegaard chama de "desespero da fraqueza" e
que se encontra na mesma linha daquilo que a antiga Teologia designa
por acédia, o vício capital da acédia, que é a recusa à auto-
realização, a resistência a assumir a própria condição de ente
espiritual; um desespero profundo, ainda que se esconda por trás de
um mundo de agitação e novidades, do keep smiling e do happy
end[294].
O silêncio que se requer para quem filosofa não é, de modo algum, "um
silêncio vazio, conscientemente voltado contra qualquer objeto
(atitude recomendada por algumas doutrinas Orientais de
meditação)''[295], mas um silêncio que se dirige a ouvir, a captar o
ser das coisas. Daí que o silêncio, entendido nesse sentido, ligue-
se, também ele, ao conceito central de criação: "Não, as coisas não
são - como pretende um terrível dito filosófico - mudas", mas
procedem da Palavra criadora e trazem "uma mensagem de mil vozes
àquele que ouve calando. Mensagem cuja percepção traz em si a
verdadeira riqueza do homem"[296].
É claro que tal silêncio não é o de uma passividade apática; pelo
contrário, é solícita sede de verdade que "se nutre de um compromisso
alimentado no mais profundo da alma, a preocupação e a ânsia de não
descuidar nada do todo da realidade"[297].
É a diferença - que já apontávamos a propósito das duas formas de ser
crítico - entre a reflexão filosófica e a pesquisa científica.
Enquanto esta supõe somente uma fria inteligência apta para a
investigação (que mais se requer, por exemplo, para a demonstração de
um teorema de Geometria ou o balanceamento dos coeficientes de uma
equação na Química?); aquela pressupõe a "simplicitas" (não basta uma
talentosa inteligência para a compreensão "em si e em suas últimas
razões" da justiça, da liberdade, da morte ou do amor),
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uma abertura sem a menor tensão das mais ocultas faculdades de
resposta da alma, que não obedece a decisão alguma da vontade. Ao que
parece, na tradição sapiencial do Extremo Oriente conservou-se mais
viva que na ratio ocidental a sabedoria sobre essa matéria[298].
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Pieper caracteriza essa atitude a partir de um pensamento de Pascal e
de um lema de Goethe.
Em Über das Schweigen Goethes, descreve o silêncio (o genuíno
silêncio, o de Goethe) como um
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aspirar que penetra na câmara mais interna da alma. A ele diz
respeito a máxima de Goethe: "Negar-me tanto quanto possível a mim
mesmo e assimilar o objeto de um modo tão puro quanto ao homem é
dado". É a esse silêncio que Goethe se refere quando, de Roma,
informa a Herder do seu "exercitar-se" em "ver todas as coisas como
elas são" e "despojar-me completamente de toda pretensão"[299].
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Em Pascal, encontra-se o seguinte aforisma (n. 226 na ed.
Brunschvicg):
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Se não vos preocupais em saber a verdade, tendes suficiente verdade
para viver em paz. Mas se desejais de todo o coração conhecê-la,
então isso não basta[300].
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Trata-se, pois, de uma atitude que transcende o âmbito meramente
intelectual e atinge o centro da pessoa, requerendo "toda a energia,
sem freio algum, do coração e, ao mesmo tempo, sua vigília e sua mais
sismográfica sensibilidade"[301].
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