4.13. Sofistica e Reverência

O espírito acadêmico que procuramos caracterizar ao longo deste trabalho é desenvolvido por Pieper em confronto com seu oposto, o espírito sofista, a que implicitamente temos nos referido freqüentes vezes. Porém, para os propósitos deste trabalho pareceu-nos mais oportuno este tópico à parte.

Inicialmente, devemos notar que o espírito sofístico significa para Pieper precisamente o oposto do acadêmico: "Acadêmico quer dizer anti-sofístico"[372].

E, assim como o filosofar de Platão tem caráter atemporal, do mesmo modo o sofista, presente também em nossa época[373].

Na sofística, à admiração (como arché do filosofar) opor-se-á a dúvida; à reverência (diante de uma realidade criada), a crítica; à contemplação, o fim prático; a simplicitas, a sedução; etc.

O sofista é mais anti-acadêmico que o "trabalhador", na medida em que "o mentiroso 'sim' é pior que o rotundo 'não'"[374]. E corresponde à natureza da sofística sua difícil identificação, como o fez notar o filósofo norteamericano John Wild: "o sofista tem a mesma aparência de um filósofo, fala exatamente como um filósofo; pode-se mesmo dizer: parece-se muito mais a um filósofo que o próprio filósofo"[375].

Seja como for, Pieper aponta diversas formas de sofística a partir dos personagens que aparecem nos diálogos platônicos: o relativista Protágoras ("o homem é a medida de todas as coisas" - primeiro princípio do humanismo sofista); o erudito Hípias; Pródico, o "desmistificador" de tudo que se apresente como grande e digno de respeito e Górgias, o elegante nihilista.

O que há de comum a todas essas formas particulares de sofística é exatamente o que as separa daquele esforço, permanente através do tempo, de conhecer com base na realidade e no ser, esforço este que tem como grandes testemunhas Sócrates e Platão[376].

Procurando as constantes sofísticas, Pieper indicará em Begeisterung und göttlicher Wahnsinn três delas[377]:

1) Perfeição formal do discurso: "Quem procura analogias atuais para o fenômeno sofista, terá que fazê-lo entre os representantes modernos da haute littérature".

2) O vanguardismo (o que não significa que todo vanguardismo seja necessariamente sofístico).

3) O êxito, entendido como virtude e programa de vida, tal como é enunciado por Protágoras[378]. Quando se tem em conta a idéia de homem num mundo como o de hoje, em que a utilidade e a eficiência se apresentam como se fossem valores supremos, vê-se até que ponto está presente e atual o programa sofista de Protágoras.

O sofista não aceita

que a riqueza espititual própria do homem só se realiza participada na atitude de silenciosa teoria voltando-se para a verdade como um ouvinte que recebe sua medida da realidade do mundo precisamente isto o sofista nunca aceita. Ele afastará de si o pensamento de que possa existir algo como "tradição sagrada", proveniente de uma fonte acima do homem (...) Ele escolhe uma liberdade que se realiza precisamente pelo esquecimento da sabedoria desde sempre atestada, por mais que esta liberdade seja vazia (...). Rompe também com o vínculo profundo e essencial que orienta o espírito à norma objetiva do ser. Para ele o conteúdo torna-se indiferente diante do formal. O sofista não suspeita de que essa dupla negação o torna, por assim dizer, maduro para entrar a serviço das forças totalitárias. Quem nega que a norma do espírito é a verdade objetiva torna possível e até mesmo necessária a submissão a fins estranhos, isto é aos fins arbitrários de qualquer práxis[379].

Assim a retórica sofista, erudição desvinculada da realidade, promove uma dupla corrupção da palavra: em relação à realidade que cede seu lugar à forma, e a conseqüente corrupção do caráter comunicativo, onde o decisivo passa a ser a persuasão, instrumento de múltiplas formas de poder[380].

Mas, para além de todas as divergências mais ou menos superficiais, encontra-se algo de mais profundo, onde a sofística deturpa o acadêmico no que este tem de mais íntimo: a atitude de reverência, seja na formação, seja na pesquisa, seja no ensino. Se o mundo é criação, então a realidade não é mera matéria-prima para a ação pragmática, antes é objeto de reverência (e admiração, e contemplação, etc.):

Sempre que o elemento "crítico" se torna tão determinante que praticamente torna impossível a atitude reverencial, aí se dá também a forma mais extrema de sofística anti-acadêmica, que destrói o núcleo do que é acadêmico, apesar de uma perfeição formal talvez extrema. Por crítica não entendemos aqui a integridade do pensamento apoiado em evidência mas aquela presunçosa auto-suficiência que se fecha intransigentemente (...).

Mas por que a reverência é a atitude mais profunda do espírito acadêmico, e por que se fere a substância desse espírito quando se abandona essa atitude? Porque sem reverência a teoria num sentido pleno (isto é a recepção silenciosa da realidade, atitude que se encontra por excelência no ato filosófico, que, por sua vez, constitui a essência da atividade acadêmica) se torna irrealizável[381].