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Sendo o objetivo deste trabalho estabelecer um paralelismo entre o
filosofar e o educar, agora que vamos tratar das características do
professor universitário (além das que já foram analisadas), cumpre
recordar que, tanto no caso do educar como no do filosofar, o
fundamental é uma atitude humana, que nenhuma metodologia pode
conferir.
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Aqui (na atitude do autêntico professor) situa-se algo que escapa
totalmente ao âmbito "metodológico" da "didática", da habilidade
pedagógica, ou antes, aqui liga-se o que se pode adquirir metódica e
disciplinadamente, a arte pedagógica, com algo muito mais profundo e
que propriamente não se pode aprender[346].
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Essa atitude do genuíno professor, que nenhuma cadeira de Faculdade
de Pedagogia pode por si ensinar, será objeto da análise de Pieper a
partir de um caso concreto, o professor por excelência, S. Tomás de
Aquino.
Pieper, como dissemos[347], nunca filosofa "em abstrato" e, quando
se trata de refletir sobre atitudes humanas (como a de quem ensina),
o fenômeno, o que nos é manifestado, está aí realizado na vida dos
homens. Pieper, a seu modo, faz em suas reflexões o mesmo que
observou a respeito da obra de Platão: que não separa as teses
filosóficas do personagem vivo e concreto[348]. Pieper analisa o que
é ensinar a partir de S. Tomás de Aquino, que foi "essencialmente um
professor" que realizou em si as características essenciais do
verdadeiro e grande mestre, de maneira intensa e apaixonada[349].
É escusado dizer que a doutrina de S. Tomás sobre o ensinar é
compartilhada por Pieper.
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Ensinar é, diz S. Tomás, uma das formas mais elevadas e perfeitas da
vida espiritual, pois no ensino se enlaçam as duas formas
fundamentais da existência humana: a vita contemplativa e a vita
activa.
E isto não como uma justaposição externa artificial, mas de forma
orgânica, natural e por necessidade interna[350].
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O aspecto contemplativo se dá porque o autêntico professor volta-se
para a verdade das coisas: é a dimensão contemplativa do ensinar, a
dimensão do silêncio que ouve: "voltar-se apaixonadamente para a
verdade das coisas (...) é o primeiro pressuposto do grande
professor", sem o qual "não se pode sequer pensar em ensino no
sentido maior e genuíno"[351].
De modo muito sucinto, ao longo do artigo "Thomas von Aquin als
Lehrer", Pieper indica as características contemplativas do mestre: a
capacidade de abrir-se para a verdade das coisas; de ouvir
silenciosamente a realidade; de, com simplicitas, abrir-se para o
todo e reconhecer o mistério do ser[352].
Essa simples enumeração já basta para que se torne evidente o
filosofar no mestre. Um pressuposto que se faz necessário, dada a
própria natureza do homem e a da educação:
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A formação se dirige ao todo: culto e formado é aquele que sabe o que
acontece com o mundo em sua totalidade. A formação atinge o homem
todo enquanto é capax universi, enquanto é capaz de apreender a
totalidade das coisas que são[353].
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Ora, numa filosofia como a de Pieper, o abalo da admiração está na
base "de todo conhecimento profundo e não só do filosofar"[354], e
então é necessário, pela própria natureza das coisas, que o aluno
seja guiado a descoblir esse caráter admirável da matéria de que se
trata (evidentemente, com isto não estamos nos referindo ao fato
banal de que o professor deve tornar a matéria amena e
interessante)[355].
"O sentido íntimo do aprender consiste no conhecimento do mundo real
e de sua estrutura" e, por isso, para que haja verdadeira
aprendizagem é necessário que o aluno seja guiado pelo caminho da
admiração, de percepção do mirandum, onde o mundo perde seu caráter
evidente e quotidiano[356].
Ora, o que é a admiração senão a arché, o princípio do filosofar?
Deste modo, já nos fundamentos da atitude do verdadeiro ensinar e do
verdadeiro aprender encontramos componentes do ato de filosofar: o
voltar-se para a verdade das coisas e a admiração.
Pois do professor se exige - também dele - a capacidade de admirar-
se. A admiração não é apanágio do aluno, que reflete sobre aquele
tema por vez primeira. Precisamente um dos momentos em que a
filosofia do ensino de Pieper toma-se mais penetrante é quando trata
da comunicação professor-aluno: nessa mútua relação, cada um se
apropria do que, em princípio, era só do outro.
Assim, o professor deve ter o carisma de algo muito mais profundo do
que o mero domínio de "técnicas didáticas": deve ser capaz, tal como
Tomás de posicionar-se com os principiantes[357]. "É justamente isto
o que caracteriza o professor: que ele se esforça e consegue e sai-se
bem na tarefa de não só falar e formular, mas pensar a partir da
situação do primeiro encontro"[358].
No contato com os alunos, o mestre adquire a simplicidade e a
capacidade de admirar a realidade sem no entanto perder a maturidade
e a experiência do espírito formado[359], uma simplicitas de atitude
que deve se transformar em simplicitas de comunicação[360].
O segredo desse aparente paradoxo está no amor, que torna o mestre
capaz de conjugar toda sua experiência com uma "amorosa identificação
com os que começam"[361].
No seu livro sobre o amor, Pieper ensina que
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a proximidade entre "amor" e "ser igual" expressada na mesma
palavra[362] traz à luz um componente de significação que a
princípio nos era mais ou menos oculto, mas que depois não nos
surpreende e de que até já tínhamos suspeitado e quase mesmo sabido
com certeza: que o amor inclui sempre um recíproco voltar-se entre
amante e amado e repousa sobre esse voltar-se[363].
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Do mesmo modo, aprender (sempre que se trate do genuíno aprender) é
crescer numa realidade em que o estudante não teria ingresso, mas que
lhe é tornada acessível por sua união confiada com o mestre, "pela
identificação amorosa com quem ensina"[364].
Como dissemos, tudo isto não é formulado abstratamente. Pieper pensa
no caso paradigmático de S. Tomás (sobretudo a partir do que diz
sobre o voltar-se para os principiantes, no prólogo da Summa
Theologica) e, também, sem o dizer, na sua própria experiência de
brilhante professor. É interessante observar que Pieper desenvolve
essas teses, também ele, dirigindo-se aos principiantes no livro
Thomas von Aquin: Leben und Werk, um livro escrito "em linguagem mais
próxima da oral que da escrita. É a redação, só ligeiramente
modificada, de aulas para alunos procedentes de diversas
faculdades"[365].
Certamente o professor deve cultivar a técnica didática; mas sempre o
que é essencial, o que indica a qualidade do mestre "não é algo que
vem de fora, mas sim algo que está impresso no mais íntimo de seu
ser"[366] e uma metodologia só é verdadeiramente válida quando se
liga vitalmente à atitude de voltar-se para a realidade[367].
Naturalmente, não pretendemos que haja na obra de Pieper uma
identificação simples entre o filosofar e o ensinar. Não, "há grandes
pensadores e pesquisadores que não têm a capacidade ou o desejo de se
comunicar pelo ensino"[368].
O que, sim, se depreende da obra de Pieper é que o professor (o
verdadeiro e genuíno professor e na medida em que seu ensino supera a
mera instrução) tem a atitude do filosofar: abertura à verdade das
coisas, admirar-se sempre de novo com a realidade, etc. Uma atitude
que, no caso do mestre, se mantém continuamente jovem também pela
identificação amorosa com os que começam.
Tal como para a educação moral (de que aqui não nos ocuparemos), toda
educação em geral é algo que parte de dentro do próprio
educando[369].
A formação humana é resumida por Pieper como um
Selbstverwirklichungsvorgang[370]; e ao afirmar este processo de
auto-realização, Pieper mantém uma posição equilibrada e harmônica,
pois tal processo não é caótico nem aleatório: deve voltar-se (caso
queiramos uma realização autenticamente humana) não para os caprichos
de uma mal entendida "criatividade", mas para a descoberta da
realidade objetiva[371].
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