4.3. Criação: Fundamento da Filosofia de Pieper

O conceito mais fundamental na antropologia filosófica de Pieper é sem dúvida o de Criação (daí que considere o título mais apropriado para S. Tomás o epíteto a Deo Creatore - vide nota 55 do Cap. 2). O livro Unaustrinkbares Licht - que seguiremos neste tópico - dedica toda sua primeira parte a demonstrar a decisiva importância do conceito de criação para a análise do conhecimento (o mesmo o fazem os tratados de Ética com relação a seu tema).

Num artigo dedicado ao conceito de "criaturidade", Pieper afirma: "A estrutura e a condição do mundo e do próprio homem estão profundamente marcados por seu ser-criação"[264], por sua condição de algo criado, de criatura.

"Criaturidade" é um conceito fundamental e inexaurível, "o mundo tem a qualidade de ser algo criado, não há uma terceira coisa além do Criador e de sua criação"[265] e quem quer que tenha Santo Tomás por mestre deve segui-lo no que constitui sua differentia specifica entre os grandes mestres da cristandade: assumir plenamente essa idéia com todas as suas conseqüências[266].

Feita esta observação prévia, voltemos ao tema da verdade das coisas. Pieper recolhe - sempre remetendo-se ao "assombroso" artigo primeiro do De Veritate - o parágrafo de S. Tomás em que o princípio da verdade das coisas mostra-se claramente antropológico:

Isto (o fato de que, sem exceção, todo ente esteja referido ao interior de outro) não pode ter lugar, a não ser que se suponha algo que, por natureza, seja apto a concordar com todo ente: este algo é a alma, que, em certo sentido, é todas as coisas[267].

Isso significa que a assertiva de que o ente é verdadeiro tem seu contraponto na afirmação da possibilidade de que a inteligência humana (S. Tomás fala da alma e, portanto, do homem) tenha um potencial de relacionamento que abarque a totalidade do real. "Toda coisa é cognoscível na medida em que tem ser. Por isso se diz que a alma é, de certo modo, tudo"[268].

Abramos aqui um parêntese para esclarecer melhor o sentido que Pieper, como intérprete de S. Tomás, dá ao conceito de verdade das coisas, seguindo a exposição que faz na primeira parte de Unaustrinkbares Licht.

A "clave oculta"[269], da doutrina sobre a verdade (e de toda a Filosofia de S. Tomás) é o conceito de criação[270], sem o qual há profundos mal-entendidos ao interpretar a sentença "todo ente é verdadeiro", que deve ser compreendida como expressão do caráter criado, constitutivo da criatura. Já o título de um capítulo da obra que estamos considerando o indica: "Wahrheit als Erdachtsein", a verdade do ente expressa sua concepção por um intelecto criador[271]. "Por isto as coisas são reais: porque são pensadas; deve-se dizer ainda mais precisamente: porque são criadoramente pensadas"[272]. Dado que cada coisa tem um conteúdo conceptual, uma essência, isso pressupõe um pensamento criador.

É nesse sentido que Sartre parte das mesmas premissas que Santo Tomás de Aquino: porque há o homem - é o conhecido exemplo dado por Sartre - e sua inteligência que projeta, pôde ser feito um abridor de cartas; de uma inteligência criadora divina, depende a natureza humana, afirmada por S. Tomás e negada por Sartre: "Il n'y a pas de nature humaine puisqu'il n'y a pas de Dieu pour la concevoir"[273]. (Não há natureza humana porque não há Deus para a conceber.)

Mas a estrutura das conexões com base na criação é igualmente aceita pelos dois grandes filósofos[274]. Pieper cita, a esse respeito, a seguinte sentença de S. Tomás:

Toda criatura (...) tem uma forma pela que pertence a alguma determinada espécie (...) e nisso representa o Verbo, pois a forma de que é feita procede da concepção do artífice[275].

Estamos aqui - no clímax da análise pieperiana - penetrando no mais profundo da filosofia de S. Tomás, na "clave oculta", evidente para o Aquinate mas, de modo algum, evidente para o leitor de hoje[276]:

No segundo artigo da primeira das questões disputadas sobre a verdade, S. Tomás formula os conceitos primários da verdade das coisas: O real é chamado verdadeiro, na medida em que cumpre o que se dispõe pelo espírito conhecedor de Deus"; em outras palavras, verdadeiro é o real enquanto se conforma ao projeto do conhecimento divino. E prossegue S. Tomás: isto se torna claro (sicut palet), entre outras, numa conhecida definição de Avicena (Metafhsy tr. 8 c. 6) - uma definição que para nossa compreensão nada tem a ver com o assunto: "...A verdade de cada coisa é aquela propriedade de seu ser que lhe foi estabelecida"[277].

É desse pensamento criador do qual a realidade procede que tem sua origem a cognoscibilidade para o homem:

A claridade e a luminosidade que pelo conhecimento criador de Deus fluem para dentro das coisas junto com seu ser (com seu ser, não! como seu ser!), essa claridade, e só ela, as torna apreensíveis pelo conhecimento humano[278].

Pode-se dizer - assim conclui Pieper o capítulo "Die Dinge sind erkennbar weil sie Kreatur sind" (As coisas são cognoscíveis porque são criaturas) - algo semelhante ao que Sartre afirmou dos filósofos ateus do século XVIII[279]: não se compreende como é possível continuar falando do homem como cognoscente das coisas se se prescinde do conceito de criação.

Como dizíamos, verum é um transcendental que expressa uma relação a outro ente e isso nos dá base para falar do homem e do espírito humano:

O princípio da verdade das coisas é apenas uma das faces de uma questão que, por natureza, apresenta duas e a outra é esta: a inteligência "é apta para concordar com tudo o que tem ser" (De Veritate I, 1). (...) Por isso, S. Tomás de Aquino, na Suma Teológica e em outros escritos, pôde ver e formular a doutrina da verdade das coisas a partir dessa capacidade de relação da alma intelectiva do homem que abarca a totalidade do real: "Toda coisa é cognoscível enquanto tem ser. E por isso se diz que a alma é, de certo modo, todas as coisas" (I, 16, 3)[280].

Precisamente o que caracteriza S. Tomás é a conexão explícita entre verdade das coisas e ordenação da inteligência humana à totalidade.

Podemos agora regressar tematicamente ao espírito humano, a essa capacidade de relacionar-se com a totalidade do real. Como em outros assuntos, Pieper dará grande importância aos dados da ciência. Neste caso, considera as pesquisas de Jakob von Uexküll[281]: o campo de relações perceptivas do animal é uma realidade pobre e fragmentária: a percepção animal está condicionada por diversos fatores "gestálticos", "determinada e delimitada pela utilidade biológica do indivíduo ou da espécie"[282].

O nosso mundo humano de modo algum pode pretender ser mais real que os mundos de percepsão dos animais (UEXKÜLL, Die Lebenslehre, Potsdam-Zurich, 1930, p. 131). Portanto, o homem - prossegue Pieper condensando o pensamento de Uexküll -, por princípio, tal como o animal, está encerrado no seu "mundo ambiente" (Umwelt), isto é, num meio recortado (Ausschnitt-Milieu), escolhido do ponto de vista da utilidade biológica; também é incapaz do apreender algo que esteja fora desse mundo ambiente, e "nem sequer o pode achar pela procura" (como a gralha não é capaz de enxergar o gafanhoto que se faz de morto)[283].

A uma tal concepção, Pieper objeta com duas indagações: 1) Não será o próprio trabalho de pesquisa sobre seu mundo uma prova de que o homem não está enclausurado num mundo ambiente, na medida em que transcende seu meio e se pergunta pelo seu pretenso mundo ambiente? 2) Será que a forma peculiar de conhecer do homem - que sempre se chamou de capacidade universal de conhecimento espiritual - não representará um modo mais amplo e novo de se pôr em relação, modo não encontrável no domínio das vidas vegetal e animal?

E dá sua resposta:

A essa pergunta deve-se responder que a tradição filosófica do Ocidente sempre entendeu, e até mesmo definiu, a potência de conhecimento espiritual como a capacidade de se pôr em relação com a totalidade das coisas existentes. Como foi dito, não se trata de uma simples nota, mas de fixacão de essência, de definição. A essência do espírito não se define tanto pela nota da incorporalidade, mas, sim, antes de tudo, pela capacidade de se relacionar à totalidade do ser[284].

E, junto com essa abertura para a totalidade, o espírito tem outra característica: a interioridade. Numa pilha de pedras, não se pode falar propriamente de relação no sentido ativo, como algo que parte de dentro; já a planta, por exemplo, ao nutrir-se, incorpora a seu ciclo vital interno os materiais nutritivos, e o animal pela sensação recebe em si a forma de outro ente e, finalmente, o homem, que conhece o ser.

Como ensina acertadamente Millán Puelles:

O objeto formal do entendimento humano é, em suma, o ente enquanto ente (cf. Aristóteles: De anima III, 6, 430, b28 e Santo Tomás: S. Th., I, 79, 7).

Essa afirmação assinala o âmbito de nosso entendimento em duplo sentido. Diz, em primeiro lugar, que esse âmbito é tão amplo como o ente; todo ente é, em princípio, objeto passível de conhecimento humano. E, em segundo lugar, manifesta a forma em que esse entendimento capta seus objetos, a saber: enquanto entes, ou o que é o mesmo, enquanto são. Entender é, em uma palavra, conhecer o ser[285].

E, conclui, o conhecimento do animal - ao contrário do homem - não está aberto a todo o ente, e os entes que conhece não os conhece enquanto tais.

A conexão entre esse duplo aspecto do conhecimento é assim descrita por Pieper:

Quanto mais abrangente é a capacidade de relacionar-se com o mundo do ser objetivo, tanto mais profundamente essa capacidade se encontra ancorada no interior do sujeito. E onde está presente o grau mais elevado de "amplidão do mundo", isto é, orientação para a totalidade, aí se realiza também o grau mais elevado de concentração em si mesmo, que é próprio do espírito.

Duas coisas, portanto, constituem a essência do espírito: a capacidade de relação com a totalidade do mundo e da realidade, e uma possibilidade extrema de centrar-se em si mesmo, de autonomia, de independência. Trata-se, precisamente, daquilo que, na tradição ocidental foi designado como ser-pessoa, como pessoalidade[286].