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O homem é um ser tal que a sua realização, "a sua suprema felicidade
se encontra na contemplação"[146].
Exclusivamente à interpretação e justificação dessa sentença, Pieper
escreveu a obra Glück und Kontemplation. Recolheremos - dessa e de
outras obras - aspectos pertinentes a este trabalho. Inicialmente,
devemos observar que a sentença acima é de extraordinária relevância
para a Antropologia Filosófica, para a Ética e para a Educação.
E mais: "Ela (a sentença acima) expressa toda uma concepção cósmica,
especialmente uma concepção que busca as raízes da natureza do homem
e do sentido da existência humana"[147].
Contemplação é simplesmente outro nome para teoria[148]. Pieper faz
notar que contemplatio é a tradução latina de theoria[149] que é,
como apontávamos, livre e "orientada exclusivamente para a verdade,
algo que tem sentido em si mesmo"[150].
Tenha-se em conta que esse "ter sentido em si mesmo" refere-se também
ao homem, desde que concebido segundo o tradicional conceito de
pessoa, "um ser que existe para seu próprio aperfeiçoamento: assim
poderíamos definir pessoa com uma fórmula simplificada, ainda que não
demasiadamente arbitrária"[151].
Ora, o que é "bom em si mesmo" deve afetar o todo da existência
humana, o que é bom não para isto ou aquilo, mas, em última
instância, bom. Pieper assente à antiqüíssima resposta de Anaxágoras
sobre o bem último do homem:
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"Para que estás na terra?" A resposta de Anaxágoras foi: para a
consideração contemplativa, eis theorian, do céu e da ordem do
universo. Pois bem, exatamente o mesmo queremos expressar aqui com a
tese que vamos examinar, a saber, que a consideração filosófica (...)
é não só parte essencial do "bem do homem" (entendido como bem em
si), mas também elemento imprescindível do bem comum[152].
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Pois a realização, o bem, a felicidade do homem consiste em que ele
tenha o que quer[153]. Ora, tão problemático quanto a definição -
anteriormente discutida - do que o homem realmente quer, é o
questionamento do ter: o que é, afinal, ter?
Pieper registra a profundidade dessa questão com uma epigramática
frase de longínqua origem oriental: "'Meu jardim', disse o rico; o
jardineiro, sorriu..."[154]
E é que conhecer, contemplar, ver com olhar de amor[155] a realidade
tal como é - e aí se dá uma total coincidência entre os grandes da
tradição ocidental -, é "nobilissimus modus habendi aliquid"[156], o
modo mais nobre de se ter algo.
É claro, além disso, e a própria linguagem comum o atesta, que o
"ter" transcende a compra ou outros atos jurídicos ou cartoriais.
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Com relação a qualquer coisa que queiramos ou creiamos possuir
(jardim, livro, obra de arte; mas também amigos, mestres, pessoa
amada e até alguma vivência ou acontecimento que só experimentamos
uma vez), diremos que "temos algo" só na medida em que mantenhamos
viva a sua presença, vendo-o de novo uma e outra vez, contemplando,
pensando nele, recordando-o. De nenhuma outra maneira nos é dada
nossa verdadeira riqueza, o que verdadeiramente possuímos na vida.
Para certificar-nos disso, pouca falta faz a confirmação da
"sabedoria dos antigos"[157].
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Ao final do cap. VII de Glück und Kontemplation, Pieper, também aí
seguindo S. Tomás, explica a sentença expressa acima. O conhecimento
é, no sentido mais estrito, assimilação: um assimilar em que o mundo
objetivo, enquanto conhecido, chega a ser o próprio ser do sujeito
cognoscente. Os entes não-cognoscentes limitam-se à sua própria
forma; já os cognoscentes, além de possuírem (de modo natural) sua
própria forma, possuem também (de modo intencional) as dos objetos
conhecidos. Com especial profundidade e - como veremos - sem
fronteiras, no caso do sujeito espiritual.
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Aí onde está o espírito, aí está também a totalidade das coisas, aí
"é possível que num só ente tenha existência a plenitude do universo
(S. Tomás de Aquino, De Veritate II, 2). Aqui cabe também aquela
grande sentença de Aristóteles que se tornou proverbial no Ocidente:
"A alma é, no fundo (im Grunde), todos os entes, anima est quodammodo
omnia (Sobre a alma 3, 8; 341-b)[158].
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Ao comparar a contemplação própria da bem-aventurança final com a
teoria filosófica, Pieper as conjuga, evitando, porém, identificá-
las: se a visio beatifica é a plenitude de posse do anseio que já se
dá no homo viator em prefiguração[159], o dirigir-se para a
contemplação que se dá no filosofar é pergunta e procura e não ainda
pleno achado e resposta[160].
Não só a felicidade "para além da outra margem da morte" se realizará
como contemplação; "também o homem histórico, corporalmente existente
é um ser dirigido em última instância para a contemplação, e que
anseia pela contemplação"[161].
Tendo falado da contemplação e do ter, podemos entender melhor o que
Pieper diz a respeito da verdadeira riqueza (e, também, da verdadeira
pobreza) do homem.
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A verdadeira Filosofia se apóia na crença de que a riqueza própria do
homem (...) está em que sejamos capazes de ver aquilo que é, a
totalidade daquilo que é[162].
... Ao mesmo tempo põe-se ante os olhos a imagem da extrema pobreza
humana, não material mas existencial. Já seria desconsolador ter que
viver num mundo em que só houvesse o útil e o disponível sem poder
alegrar-se com algo sem finalidade imediata; se não houvesse mais que
ciência aplicada, mas não uma reflexão filosófica da totalidade da
existência[163].
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Daí que o desumano do mundo totalitário do trabalho seja que seus
tentáculos se lancem até mesmo sobre a existência espiritual do
homem[164], negando tudo que não se submeta ao princípio de
utilidade, que passa a ser encarado como sabotagem[165]: "Num mundo
de trabalho total (... o filosofar ...) terá de fenecer, ou melhor,
feneceria se fosse possível destruir totalmente a natureza
humana''[166].
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