3.6. A Pedagogia das Artes Liberais

Inicialmente convém desfazer alguns possíveis equívocos que poderiam surgir da leitura do ponto anterior.

Ao afirmar que a Universidade deve ser filosófica, não estamos com isso dizendo que não deva integrar seus fins a formação de profissionais competentes (médicos, físicos, juristas, etc.) nem tampouco que, ao lado da formação propriamente profissional do médico ou do jurista, sejam-lhes ministrados alguns cursos da disciplina Filosofia (o que poderia e talvez deveria ocorrer, mas não é o essencial).

E é que a proposta pieperiana dirige-se ao modo de realizar-se a formação universitária. Esse modo é que deve ser filosófico, se pretendemos que a Universidade seja "algo mais que simples instituição de formação de profissionais. Em que se encontra a legitimação de uma tal pretensão, e onde está o 'mais' das universidades senão no acadêmico-filosófico?"[189]

E explica:

O caráter acadêmico é constituído unicamente pelo fato de todas as ciências, também as ciências particulares, precisamente estas, serem tratadas de maneira acadêmica, o que significa de maneira filosófica[190].

Somente à luz desses critérios pode-se compreender a crescente descaracterização, a perda de identidade que a Universidade vem sofrendo face à "concorrência" que as indústrias, empresas e bancos vem-lhe fazendo no tocante à formação profissional de seus quadros. Hoje, cada vez mais, as empresas dão cursos para seus funcionários. Evidentemente, esses cursos não têm um caráter "livre"; antes estão totalmente voltados para a realização de finalidades práticas. Se também a Universidade mergulha no mundo da utilidade, então - é a percuciente indagação de Pieper - que diferença há entre um curso, digamos, de Química na Universidade e o mesmo curso dado pelo setor de formação de pessoal de uma grande indústria farmacêutica?...

Na resposta - para quem se ativesse à estrita realidade fática -, tristemente, talvez só se encontre a diferença de que a indústria está melhor aparelhada e provida de recursos do que a Universidade[191].

No entanto, caso a Universidade se volte para a realização daquele anseio da natureza humana a que corresponde, se ela realiza sua vocação filosófica, ficará nítida a sua própria especificidade:

O que o distingue (um estudo especializado qualquer, realizado à maneira filosófica) é antes de tudo, a ausência de vínculos que o liguem a qualquer fim utilitário. Essa é a verdadeira liberdade acadêmica; essa liberdade é, per definitionem, destruída no momento em que as ciências se tornam um simples disfarce utilitário para qualquer espécie de poder[192].

Esse caráter teorético do filosofar aplicado à Universidade, ao tratamento de cada disciplina particular, é o que designamos pela expressão "Pedagogia das Artes Liberais".

Aqui a contribuição de Pieper é especialmente esclarecedora e interessante: atinge o mais profundo núcleo constitutivo das artes liberais, deixando de lado características acidentais a que historicamente estiveram associadas essas artes. É o espírito das artes liberais o que hoje e sempre terá atualidade (mais não seja a atualidade do corretivo).

Assim, a proposta de uma Educação Liberal (no sentido indicado: o do espírito das artes liberales) tal como Pieper a formula hoje, não se refere a um elenco de disciplinas, nem, muito menos, a qualquer tipo de discriminação social com que se pôde confundir outrora o conceito de Artes Liberais. Refere-se, sim, a um sentido que já aparece em Santo Tomás: "Illae solae artes liberales dicuntur, quae ad sciendum ordinantur"[193], só se designam como liberais as artes que se dirigem somente ao saber e não à utilidade prática.

E, afirma Pieper, é neste sentido que "verdade e conhecimento, por um lado, e, liberdade, por outro, se encontram em mútua conexão"[194]. E, complementarmente, "as artes serviles, artes servis, como diz Santo Tomás, estão ordenadas para uma utilidade que se alcança pela atividade"[195].

O fundamento filosófico da Pedagogia das Artes Liberais reside no fato de as ciências particulares, também elas, poderem ser em alguma medida tratadas filosoficamente, isto é, teoreticamente, participando desse modo da liberdade da Filosofia.

É nesse sentido que deve ser entendida a afirmação aristotélica de que só a Filosofia é livre[196], o que, na realidade, significa que a Filosofia é livre de modo máximo[197], pois nas ciências também pode ser encontrado um elemento filosófico de teoria e liberdade[198].

Certamente, uma ciência particular - que, como veremos no próximo capítulo, difere da Filosofia por não considerar em relação a seu objeto o todo da realidade - pode ser - contrariamente ao que ocorre com a Filosofia - legitimamente tomada ao serviço de fins utilitários. Não há nada na natureza da ciência particular que seja violado por isso.

A Pedagogia das Artes Liberais enfatizará não esse aspecto utilitário, mas o elemento filosófico, livre da aplicação prática, com que podem (e também devem) ser estudadas a Matemática, o Direito, a Física etc.

Como diz Pieper:

Há também na Ciência, no seu núcleo mais íntimo, um elemento que não pode ser tomado para a utilidade prática: é o elemento filosófico da teoria, que se dirige para a verdade e nada mais. Isto é: a Ciência tem, em virtude de sua essência, exigência de liberdade, por ser não prática, mas teorética[199].

Em que consistem, pois, as diferenças e semelhanças entre Filosofia e Ciência no tocante à teoria? Pieper admite que a resposta a essa pergunta não é simples nem fácil de se formular. Resumiremos a seguir as páginas 50 e ss. de Verteidigungsrede für die Philosophie. A teoria é ato da existência do homem que aponta para o entendimento (Vernehmen) da realidade. Esta capacidade de "ouvir", de captar (Vernehmen) é mesmo a própria capacidade intelectual do homem (Vernunft) como a linguagem (alemã) dá a entender. Essa potência intelectual realiza-se de modo puro na teoria. Ora, entender que dizer calar (Vernehmen heisst schweigen); o filosofar é o ouvir, caladamente[200], de forma absoluta e total. Já a Ciência não cala, pergunta (o "penoso interrogatório" com que, de um modo algo exagerado, mas não totalmente impróprio, Francis Bacon referiu-se ao método experimental das ciências da natureza) e nisto diferencia-se da Filosofia.

Contudo é possível, e até necessário (para quem quer obter conhecimento da realidade), que as respostas obtidas no indagar científico sejam recebidas em atitude de teoria. Este silêncio[201] não é perfeito no caso da ciência particular: vê-se interrompido e restringido pela formulação explícita do particular aspecto sob o qual interroga o mundo que, em si, é infinitamente multifacético; fixa-se a direção da resposta ao estabelecer que, por princípio, regiões inteiras da realidade "não lhe interessam".

E conclui:

Dentro da pesquisa científica, que não é na realidade algo abstrato ("a Ciência"), mas feita por homens vivos, ocorre freqüentemente um escondido filosofar. Esta característica oculta, geralmente mais pressentida do que palpável, parece-me ser precisamente o que a Ciência tem de propriamente acadêmico: que na moeda de prata do falar da Ciência se encontre a liga de ouro do silêncio filosófico[202].

Deste modo, e como primeira aproximação - dado o caráter cumulativo do tema, voltaremos, sempre de novo, às mesmas questões - podemos dizer que o espírito das artes liberais leva à pesquisa, ao estudo, à docência das ciências particulares de um modo filosófico, que se realiza (pode se realizar...) na atitude do professor e do aluno, que se voltam, sim, para o particular aspecto desta ou daquela disciplina ou especialidade, mas sem se enclausurarem nele; antes, ao contrário, deixando abertura para reflexões e diálogo sobre o todo do real permitidos ou até exigidos pelo assunto, se se trata de uma Universidade.

Tal modo filosófico de encarar uma ciência particular distingue-se do não-filosófico, antes de tudo, pela "ausência de vínculos que o liguem a qualquer fim utilitário" e por "nos abrirmos ao céu aberto da realidade como um todo"[203].

Claro que, tratando-se de um espírito, de uma atitude, o exemplo verdadeiro vem no contato vivo com os grandes mestres que realizam em si as virtudes do genuíno professor universitário. No entanto, pode ser útil, a título de mero exemplo (e, pelas razões apontadas, apenas indicativo e muito limitado), a consideração de uma situação concreta.

Suponhamos o caso de um professor que leciona Mstemática para um curso universitário de Economia. Naturalmente, ele irá proporcionar a seus alunos o instrumental científico-matemático que os habilite a resolver um exercício (didático e banal) como o seguinte, que escolhemos ao acaso num livro-texto daquela disciplina: A função de demanda de determinado bem é q = 20 - p e a função de Custo total de produção desse bem é C = 2q + 17. Determinar o valor de q para que o Lucro total, L, seja máximo[204].

O problema se resolve relacionando a função de Lucro com as de Custo e Receita, lembrando que esta, por sua vez, obtém-se a partir da função de preço (como função inversa da demanda), efetuando as operações de derivação pertinentes etc.

Mas, pode ser, que em meio a esses cálculos e operações, surja na aula universitária (o que seria impensável dentro do quadro de objetivos de um curso que uma empresa ministrasse sobre a mesma matéria para seus gerentes) o debate sobre outras questões: em que medida a liberdade humana deixa-se expressar em fórmulas como q = f(d)? Ou, que realidades humanas são passíveis de serem tratadas por modelos? E por quê? Se "normal" significa situar-se numa determinada região de uma "curva de Gauss", ou, pelo contrário, refere-se ao ser do homem? É o lucro o fim supremo da empresa?[205]

Os exemplos poderiam multiplicar-se e aplicar-se a todas as áreas do saber (é claro que como alertou Hutchins a propósito do "império do trivial" na Universidade americana[206] - há assuntos com maior e menor potencial de abertura à totalidade, à maneira filosófica de tratamento, elemento que também originariamente se encontrava contido no conceito de Artes Liberais).

Dir-se-á que discussões como as que apontávamos não costumam ocorrer nas nossas universidades[207] e que nossos professores - de que, em geral, mal se pode esperar competência técnica - não estão absolutamente preparados para tal diálogo. Se for realmente assim, então diremos que nossas universidades, na realidade, não o são, não realizam o espírito da Academia de Platão e, afinal de contas - e a menos da crescente defasagem de competência técnica -, em nada diferem dos cursos ministrados por bancos, empresas e indústrias.

O que caracteriza o verdadeiro professor universitário é a capacidade do participar desse diálogo (desse diálogo polifônico e aberto). Para além de toda qualificação científica, ele deve ser capaz de reconhecer que os resultados particulares de seu próprio trabalho podem servir a uma consideração global do todo. Sem sucumbir ao diletantismo sempre pronto a fazer generalizações gratuitas, deve aprender a arte de colocar seu próprio saber a serviço de um colóquio de caráter filosófico[208].