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O conceito mais fundamental na antropologia filosófica de Pieper é
sem dúvida o de Criação (daí que considere o título mais apropriado
para S. Tomás o epíteto a Deo Creatore - vide nota 55 do Cap. 2).
O livro Unaustrinkbares Licht - que seguiremos neste tópico - dedica
toda sua primeira parte a demonstrar a decisiva importância do
conceito de criação para a análise do conhecimento (o mesmo o fazem
os tratados de Ética com relação a seu tema).
Num artigo dedicado ao conceito de "criaturidade", Pieper afirma: "A
estrutura e a condição do mundo e do próprio homem estão
profundamente marcados por seu ser-criação"[264], por sua condição
de algo criado, de criatura.
"Criaturidade" é um conceito fundamental e inexaurível, "o mundo tem
a qualidade de ser algo criado, não há uma terceira coisa além do
Criador e de sua criação"[265] e quem quer que tenha Santo Tomás por
mestre deve segui-lo no que constitui sua differentia specifica entre
os grandes mestres da cristandade: assumir plenamente essa idéia com
todas as suas conseqüências[266].
Feita esta observação prévia, voltemos ao tema da verdade das coisas.
Pieper recolhe - sempre remetendo-se ao "assombroso" artigo primeiro
do De Veritate - o parágrafo de S. Tomás em que o princípio da
verdade das coisas mostra-se claramente antropológico:
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Isto (o fato de que, sem exceção, todo ente esteja referido ao
interior de outro) não pode ter lugar, a não ser que se suponha algo
que, por natureza, seja apto a concordar com todo ente: este algo é a
alma, que, em certo sentido, é todas as coisas[267].
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Isso significa que a assertiva de que o ente é verdadeiro tem seu
contraponto na afirmação da possibilidade de que a inteligência
humana (S. Tomás fala da alma e, portanto, do homem) tenha um
potencial de relacionamento que abarque a totalidade do real. "Toda
coisa é cognoscível na medida em que tem ser. Por isso se diz que a
alma é, de certo modo, tudo"[268].
Abramos aqui um parêntese para esclarecer melhor o sentido que
Pieper, como intérprete de S. Tomás, dá ao conceito de verdade das
coisas, seguindo a exposição que faz na primeira parte de
Unaustrinkbares Licht.
A "clave oculta"[269], da doutrina sobre a verdade (e de toda a
Filosofia de S. Tomás) é o conceito de criação[270], sem o qual há
profundos mal-entendidos ao interpretar a sentença "todo ente é
verdadeiro", que deve ser compreendida como expressão do caráter
criado, constitutivo da criatura. Já o título de um capítulo da obra
que estamos considerando o indica: "Wahrheit als Erdachtsein", a
verdade do ente expressa sua concepção por um intelecto
criador[271]. "Por isto as coisas são reais: porque são pensadas;
deve-se dizer ainda mais precisamente: porque são criadoramente
pensadas"[272]. Dado que cada coisa tem um conteúdo conceptual, uma
essência, isso pressupõe um pensamento criador.
É nesse sentido que Sartre parte das mesmas premissas que Santo Tomás
de Aquino: porque há o homem - é o conhecido exemplo dado por Sartre
- e sua inteligência que projeta, pôde ser feito um abridor de
cartas; de uma inteligência criadora divina, depende a natureza
humana, afirmada por S. Tomás e negada por Sartre: "Il n'y a pas de
nature humaine puisqu'il n'y a pas de Dieu pour la concevoir"[273].
(Não há natureza humana porque não há Deus para a conceber.)
Mas a estrutura das conexões com base na criação é igualmente aceita
pelos dois grandes filósofos[274]. Pieper cita, a esse respeito, a
seguinte sentença de S. Tomás:
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Toda criatura (...) tem uma forma pela que pertence a alguma
determinada espécie (...) e nisso representa o Verbo, pois a forma de
que é feita procede da concepção do artífice[275].
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Estamos aqui - no clímax da análise pieperiana - penetrando no mais
profundo da filosofia de S. Tomás, na "clave oculta", evidente para o
Aquinate mas, de modo algum, evidente para o leitor de hoje[276]:
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No segundo artigo da primeira das questões disputadas sobre a
verdade, S. Tomás formula os conceitos primários da verdade das
coisas: O real é chamado verdadeiro, na medida em que cumpre o que se
dispõe pelo espírito conhecedor de Deus"; em outras palavras,
verdadeiro é o real enquanto se conforma ao projeto do conhecimento
divino. E prossegue S. Tomás: isto se torna claro (sicut palet),
entre outras, numa conhecida definição de Avicena (Metafhsy tr. 8 c.
6) - uma definição que para nossa compreensão nada tem a ver com o
assunto: "...A verdade de cada coisa é aquela propriedade de seu ser
que lhe foi estabelecida"[277].
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É desse pensamento criador do qual a realidade procede que tem sua
origem a cognoscibilidade para o homem:
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A claridade e a luminosidade que pelo conhecimento criador de Deus
fluem para dentro das coisas junto com seu ser (com seu ser, não!
como seu ser!), essa claridade, e só ela, as torna apreensíveis pelo
conhecimento humano[278].
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Pode-se dizer - assim conclui Pieper o capítulo "Die Dinge sind
erkennbar weil sie Kreatur sind" (As coisas são cognoscíveis porque
são criaturas) - algo semelhante ao que Sartre afirmou dos filósofos
ateus do século XVIII[279]: não se compreende como é possível
continuar falando do homem como cognoscente das coisas se se
prescinde do conceito de criação.
Como dizíamos, verum é um transcendental que expressa uma relação a
outro ente e isso nos dá base para falar do homem e do espírito
humano:
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O princípio da verdade das coisas é apenas uma das faces de uma
questão que, por natureza, apresenta duas e a outra é esta: a
inteligência "é apta para concordar com tudo o que tem ser" (De
Veritate I, 1). (...) Por isso, S. Tomás de Aquino, na Suma Teológica
e em outros escritos, pôde ver e formular a doutrina da verdade das
coisas a partir dessa capacidade de relação da alma intelectiva do
homem que abarca a totalidade do real: "Toda coisa é cognoscível
enquanto tem ser. E por isso se diz que a alma é, de certo modo,
todas as coisas" (I, 16, 3)[280].
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Precisamente o que caracteriza S. Tomás é a conexão explícita entre
verdade das coisas e ordenação da inteligência humana à totalidade.
Podemos agora regressar tematicamente ao espírito humano, a essa
capacidade de relacionar-se com a totalidade do real. Como em outros
assuntos, Pieper dará grande importância aos dados da ciência. Neste
caso, considera as pesquisas de Jakob von Uexküll[281]: o campo de
relações perceptivas do animal é uma realidade pobre e fragmentária:
a percepção animal está condicionada por diversos fatores
"gestálticos", "determinada e delimitada pela utilidade biológica do
indivíduo ou da espécie"[282].
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O nosso mundo humano de modo algum pode pretender ser mais real que
os mundos de percepsão dos animais (UEXKÜLL, Die Lebenslehre,
Potsdam-Zurich, 1930, p. 131). Portanto, o homem - prossegue Pieper
condensando o pensamento de Uexküll -, por princípio, tal como o
animal, está encerrado no seu "mundo ambiente" (Umwelt), isto é, num
meio recortado (Ausschnitt-Milieu), escolhido do ponto de vista da
utilidade biológica; também é incapaz do apreender algo que esteja
fora desse mundo ambiente, e "nem sequer o pode achar pela procura"
(como a gralha não é capaz de enxergar o gafanhoto que se faz de
morto)[283].
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A uma tal concepção, Pieper objeta com duas indagações: 1) Não será o
próprio trabalho de pesquisa sobre seu mundo uma prova de que o homem
não está enclausurado num mundo ambiente, na medida em que transcende
seu meio e se pergunta pelo seu pretenso mundo ambiente? 2) Será que
a forma peculiar de conhecer do homem - que sempre se chamou de
capacidade universal de conhecimento espiritual - não representará um
modo mais amplo e novo de se pôr em relação, modo não encontrável no
domínio das vidas vegetal e animal?
E dá sua resposta:
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A essa pergunta deve-se responder que a tradição filosófica do
Ocidente sempre entendeu, e até mesmo definiu, a potência de
conhecimento espiritual como a capacidade de se pôr em relação com a
totalidade das coisas existentes. Como foi dito, não se trata de uma
simples nota, mas de fixacão de essência, de definição. A essência do
espírito não se define tanto pela nota da incorporalidade, mas, sim,
antes de tudo, pela capacidade de se relacionar à totalidade do
ser[284].
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E, junto com essa abertura para a totalidade, o espírito tem outra
característica: a interioridade. Numa pilha de pedras, não se pode
falar propriamente de relação no sentido ativo, como algo que parte
de dentro; já a planta, por exemplo, ao nutrir-se, incorpora a seu
ciclo vital interno os materiais nutritivos, e o animal pela sensação
recebe em si a forma de outro ente e, finalmente, o homem, que
conhece o ser.
Como ensina acertadamente Millán Puelles:
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O objeto formal do entendimento humano é, em suma, o ente enquanto
ente (cf. Aristóteles: De anima III, 6, 430, b28 e Santo Tomás: S.
Th., I, 79, 7).
Essa afirmação assinala o âmbito de nosso entendimento em duplo
sentido. Diz, em primeiro lugar, que esse âmbito é tão amplo como o
ente; todo ente é, em princípio, objeto passível de conhecimento
humano. E, em segundo lugar, manifesta a forma em que esse
entendimento capta seus objetos, a saber: enquanto entes, ou o que é
o mesmo, enquanto são. Entender é, em uma palavra, conhecer o
ser[285].
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E, conclui, o conhecimento do animal - ao contrário do homem - não
está aberto a todo o ente, e os entes que conhece não os conhece
enquanto tais.
A conexão entre esse duplo aspecto do conhecimento é assim descrita
por Pieper:
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Quanto mais abrangente é a capacidade de relacionar-se com o mundo do
ser objetivo, tanto mais profundamente essa capacidade se encontra
ancorada no interior do sujeito. E onde está presente o grau mais
elevado de "amplidão do mundo", isto é, orientação para a totalidade,
aí se realiza também o grau mais elevado de concentração em si mesmo,
que é próprio do espírito.
Duas coisas, portanto, constituem a essência do espírito: a
capacidade de relação com a totalidade do mundo e da realidade, e uma
possibilidade extrema de centrar-se em si mesmo, de autonomia, de
independência. Trata-se, precisamente, daquilo que, na tradição
ocidental foi designado como ser-pessoa, como pessoalidade[286].
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