A UNIVERSIDADE: PEDAGOGIA DAS ARTES LIBERAIS


3.1. O Filosofar Transcede o Mundo do Trabalho

Passemos agora à caracterização que Pieper faz do filosofar (o que representará também uma caracterização filosófica do homem e da Universidade).

Tal tarefa se realizará a partir da análise do tema sob diversos ângulos: o princípio e o fim do filosofar, suas condições, seu contraste com outras atividades humanas.

O tema é multifacético e o próprio estilo filosófico de Pieper, assistemático, torna difícil a tarefa de ordená-lo. Optamos, pois, por começar seguindo o caminho trilhado pelo próprio Pieper nas conferências que deram origem ao livro Was heisst Philosophieren?: "Numa primeira aproximação, pode-se dizer que filosofar é um ato em que é ultrapassado o mundo do trabalho"[116].

Sem considerações abstratas, Pieper descreve em rápidos e incisivos traços esse mundo:

O mundo do trabalho é o mundo do dia de trabalho, o mundo da utilidade, da sujeição a fins imediatos, dos resultados, do exercício de uma função; é o mundo das necessidades e da produtividade, o mundo da fome e do modo de saciá-la. O mundo do trabalho se rege por esta meta: a realização da utilidade comum"; é este o mundo do trabalho na medida em que trabalho é sinônimo de atividade útil (à qual é próprio ao mesmo tempo a ação e o esforço)[117].

O mundo do trabalho se dirige à utilidade comum, conceito que deve ser diferenciado do de bem comum.

Precisamente a confusão, a identificação de "bem comum" com "utilidade comum" é a grande ameaça de totalitarismo do mundo do trabalho, que tende a apoderar-se cada vez mais da existência humana em sua totalidade[118]. Na verdade, "bem comum" e "utilidade comum" distinguem-se como o todo da parte[119].

Daí a grande atualidade, também política[120], da afirmação categórica de que o filosofar não pertence ao mundo do trabalho pois "não serve absolutamente para nada" prático e, no entanto, é algo necessário: trata-se de uma clara recusa das pretensões de totalidade do mundo do trabalho e do estabelecimento de um plano qüinqüenal em norma absoluta da atividade humana[121].

O que há de nefasto nos planos qüinqüenais não é a harmonização de produção e demanda, mas a pretensão - de que todo regime totalitário se investe e lhe é essencial - de assenhorear-se de modo definitivo e exaustivo do conteúdo concreto do bem comum, regulando não só a mineração e as hidroelétricas como também os planos docentes das universidades e a atividade dos artistas e dos filósofos

de tal forma que o que não se ajuste ao modelo é considerado não justificado e se declara "socialmente não importante" e "indesejável", quando não simplesmente proibido e reprimido[122].

Daí a extraordinária importância da afirmação de que há um setor da existência para o qual não têm nenhum sentido as categorias de "produtividade", "praticidade", "aproveitamento", efficiency, e que, no entanto forma parte necessariamente da vida humana[123].

A afirmação da transcendência do filosofar não implica de modo algum desprezo pelo trabalho:

Longe de nós subestimar do alto de algum pretenso pedestal de ócio filosófico este mundo do trabalho diário. Não é necessário insistir no fato óbvio de que este mundo do trabalho pertence à própria essência do mundo do homem; é nele que se cria a base de sua existência física, sem a qual o homem nem poderia filosofar![124]

Não se pense, pois, que a afirmação de que a Filosofia transcende o mundo do trabalho equivalha a afirmar que ela seja etérea, alheia à realidade quotidiana. Platão (Teeteto, 175), após narrar o episódio de Tales caindo no poço, explica o sentido para o que aponta a indagação filosófica: o filósofo quer saber não se um rei que tem muito ouro é feliz ou não, mas o que é em si o poder, a felicidade e a miséria, em si e em suas últimas razões (überhaupt und im letzten Grunde)[125]

Assim, o filósofo não se afasta de modo algum da realidade quotidiana, mas sim das interpretações e valorações quotidianas[126] do mundo do trabalho[127].

Essa situação do filosofar, que de início colocamos como algo negativo (não estar imerso no mundo do trabalho, não estar a serviço de nenhuma finalidade prática), é, na realidade, uma distinção de dignidade que é necessário reivindicar, afirmar e defender.

Formulando de modo positivo, filosofar é algo que tem sentido em si mesmo, sua legitimidade não decorre de que sirva para isto ou para aquilo e, precisamente por isso, é livre.

Aí tocamos um dos pontos mais fundamentais do presente trabalho: da afirmação da liberdade da Filosofia decorrerá boa parte da Filosofia da Educação pieperiana - a pedagogia das artes liberais.

É esse o sentido da "liberdade" das artes liberales em oposição às artes serviles, artes servis, as quais, como diz S. Tomás estão ordenadas para uma utilidade que se alcança pela atividade (In Met. I, 3, 59). A Filosofia sempre foi entendida como a mais livre dentre as artes liberais[128].

É importante notar que Pieper, ao utilizar as expressões "artes liberais" e "artes servis", não lhes dá nenhum sentido de discriminação social, referindo-se unicamente ao fim do conhecimento. Como, aliás, afirma de modo explícito:

Este adjetivo "servil", que compreensivelmente e não por acaso nos causa algum desgosto (...), não tinha originariamente o menor sentido pejorativo, antes seu significado exato era apenas o de atitude que serve a um fim, atividade que serve a alguma outra coisa, razão pela qual seu sentido reside fora de si mesma (o que com bastante precisão costuma-se denominar útil (...) (Do mesmo modo) liberalis é a atividade que não se dirige a um fim externo a si mesma, que tem sentido em si e, por isso não é strictu sensu "útil" nem se põe ao serviço de outra coisa[129].

Note-se que Pieper também não considera as artes liberais primariamente como um elenco de disciplinas enfatizando antes o espírito de liberdade que as caracteriza.

Como essas análises de Pieper são a defesa, o desenvolvimento e a apresentação ao homem de hoje das teses contidas num parágrafo de extrema importância da Metafísica de Aristóteles, transcrevemos esse parágrafo:

Assim pois, já que foi para fugir da ignorância que os primeiros filósofos se devotaram à Filosofia, é evidente que é porque buscavam o saber tendo em vista só o conhecimento e não por um fim utilitário. A prova disso nos é dada pelo que se passou na realidade: foi depois de atendidas quase todas as necessidades da vida e satisfeito o que diz respeito ao bem-estar e ao conforto quando se começou a procurar uma disciplina desse gênero. A conclusão é que, manifestamente, não temos em vista em nossa pesquisa nenhum outro interesse. Mas assim como chamamos livre o homem que é fim para si mesmo e não existe para outro, assim esta ciência é também a única entre todas as ciências que é uma disciplina liberal, já que é para si mesma seu próprio fim. É legitimamente, outrossim, que se pode considerar mais que humana sua posse[130].

Pieper trata do tema "liberdade do conhecimento", principalmente em The Foundations of Freedom[131] e em Erkenntnis und Freiheit[132].

Em The Foundations of Freedom, à expressa objeção feita pelo oponente de que Pieper estaria subtraindo o problema da liberdade ao contexto político, o filósofo de Münster responde:

A liberdade, é certo, manifesta-se de forma concreta no âmbito das instituições pollticas - como também a ausência de liberdade. Mas a natureza fundamental do conceito que designamos por "liberdade" não pode ser compreendida num sentido puramente político. E chegaria mesmo a afirmar que liberdade política é um fator secundário: efeito antes que causa (...) A base interna profunda da liberdade é algo que tem suas raízes na pessoa humana[133].

No texto mais linear de Erkenntnis und Freiheit, Pieper enumera ordenadamente as intuições fundamentais que - do ponto de vista da discussão intelectual - são as únicas que podem salvar a liberdade da ciência da decadência em que o Estado totalitário a lança.

Essas intuições versam sobre a liberdade do conhecimento, ou melhor, sobre uma determinada forma de conhecimento que é maximamente livre e o único que pode cabalmente chamar-se livre[134]: o conhecimento que aponta para o todo da realidade, que indaga sobre a essência e o ser das coisas "em si e em suas últimas razões"[135], o conhecimento filosófico[136].

Naturalmente, para bem discutir a relacão entre conhecimento e liberdade, o ponto-chave encontra-se no significado de "liberdade" e o que representa em termos antropológicos.

Livre significa não-prático. Até tal ponto que o próprio homem (e não só o conhecimento), por ser um ente que conhece, que anseia por conhecer a verdade, é tanto mais livre quanto mais conhece teoreticamente, isto é, quanto mais estiver ocupado com a verdade e nada mais[137].

A proposição acima requer que apontemos para seus fundamentos. Em primeiro lugar, "a liberdade não é uma característica de uma organização administrativa em sentido coletivo, mas uma qualidade da pessoa humana individual". Ora, "um indivíduo é livre quando pode fazer o que quiser"[138].

Pieper admite que essa definição pode parecer um lugar comum, mas trata-se do significado literal e único possível de liberdade, que tem profundas raízes ontológicas, à primeira vista insuspeitadas. Pois, é um problema já agudamente levantado por Platão, é preciso saber o que realmente o homem quer, entendendo-se "querer" no sentido mais radical[139].

Tal problematicidade é recolhida por Pieper:

Que queremos realmente? A formulasão desta pergunta dá a entender que podemos querer algo de forma aparente ou suposta, não real. Isto não pode ocorrer sem certo paradoxo. Lembro aqui uma passagem do Górgias[140] na qual Sócrates discute com o jovem intelectual sofista Polo; aquele afirma que os tiranos a quem Polo admira fazem o que lhes apraz mas não o que realmente querem. "Mas não dizes, Sócrates, que fazem o que lhes apraz?" "Sim, e continuo a sustentar o que disse". "Então, fazem o que querem". Não, digo que não". "Apesar de fazerem o que lhes apraz?... Defendes absurdos, Sócrates: verdadeiros disparates". O que Sócrates pretende é demonstrar a seu interlocutor que na realidade só se quer realmente o que é bom, o bem[141].

Se a liberdade pressupõe o bem, este por sua vez pressupõe a realidade: "o bem é aquilo que é conforme à realidade"[142]; bem é o que está de acordo com a natureza do homem[143].

A essas teses (que não vamos desenvolver neste livro) Pieper dedicou diversas de suas obras de Ética, principalmente Die Wirklichkeit und das Gute.

Bom é, dizíamos, aquilo que é conforme à natureza, ao ser do homem. Ora,

o homem é um ente cuja natureza essencialmente reside no desejo de ver e conhecer (...) Na atividade de compreender, o homem está fazendo aquilo que, essencialmente, ele quer fazer, e no ato de conhecimento é que ele é realmente livre[144].

Claro que o conhecimento a que se refere no contexto não é um conhecimento qualquer de fenômenos do mundo externo, mas o conhecimento que procura captar a natureza última da realidade como um todo.

É o momento de nos determos no caráter contemplativo do filosofar e do homem. Pois se o filosofar tem uma face negativa (não estar a serviço da práxis), tem também sua dimensão positiva, que é precisamente o voltar-se para o conhecimento teorético, contemplativo da realidade.

Em palavras do próprio Pieper:

Essa não disponibilidade, essa liberdade da Filosofia - e afirmar isto parece-me da mais extrema e atual importância - está intimamente relacionada e até identificada com o caráter teorético da Filosofia. Filosofar é a forma mais pura de theorein, de speculari, do puro olhar receptivo da realidade[145].