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Inicialmente convém desfazer alguns possíveis equívocos que poderiam
surgir da leitura do ponto anterior.
Ao afirmar que a Universidade deve ser filosófica, não estamos com
isso dizendo que não deva integrar seus fins a formação de
profissionais competentes (médicos, físicos, juristas, etc.) nem
tampouco que, ao lado da formação propriamente profissional do médico
ou do jurista, sejam-lhes ministrados alguns cursos da disciplina
Filosofia (o que poderia e talvez deveria ocorrer, mas não é o
essencial).
E é que a proposta pieperiana dirige-se ao modo de realizar-se a
formação universitária. Esse modo é que deve ser filosófico, se
pretendemos que a Universidade seja "algo mais que simples
instituição de formação de profissionais. Em que se encontra a
legitimação de uma tal pretensão, e onde está o 'mais' das
universidades senão no acadêmico-filosófico?"[189]
E explica:
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O caráter acadêmico é constituído unicamente pelo fato de todas as
ciências, também as ciências particulares, precisamente estas, serem
tratadas de maneira acadêmica, o que significa de maneira
filosófica[190].
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Somente à luz desses critérios pode-se compreender a crescente
descaracterização, a perda de identidade que a Universidade vem
sofrendo face à "concorrência" que as indústrias, empresas e bancos
vem-lhe fazendo no tocante à formação profissional de seus quadros.
Hoje, cada vez mais, as empresas dão cursos para seus funcionários.
Evidentemente, esses cursos não têm um caráter "livre"; antes estão
totalmente voltados para a realização de finalidades práticas. Se
também a Universidade mergulha no mundo da utilidade, então - é a
percuciente indagação de Pieper - que diferença há entre um curso,
digamos, de Química na Universidade e o mesmo curso dado pelo setor
de formação de pessoal de uma grande indústria farmacêutica?...
Na resposta - para quem se ativesse à estrita realidade fática -,
tristemente, talvez só se encontre a diferença de que a indústria
está melhor aparelhada e provida de recursos do que a
Universidade[191].
No entanto, caso a Universidade se volte para a realização daquele
anseio da natureza humana a que corresponde, se ela realiza sua
vocação filosófica, ficará nítida a sua própria especificidade:
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O que o distingue (um estudo especializado qualquer, realizado à
maneira filosófica) é antes de tudo, a ausência de vínculos que o
liguem a qualquer fim utilitário. Essa é a verdadeira liberdade
acadêmica; essa liberdade é, per definitionem, destruída no momento
em que as ciências se tornam um simples disfarce utilitário para
qualquer espécie de poder[192].
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Esse caráter teorético do filosofar aplicado à Universidade, ao
tratamento de cada disciplina particular, é o que designamos pela
expressão "Pedagogia das Artes Liberais".
Aqui a contribuição de Pieper é especialmente esclarecedora e
interessante: atinge o mais profundo núcleo constitutivo das artes
liberais, deixando de lado características acidentais a que
historicamente estiveram associadas essas artes. É o espírito das
artes liberais o que hoje e sempre terá atualidade (mais não seja a
atualidade do corretivo).
Assim, a proposta de uma Educação Liberal (no sentido indicado: o do
espírito das artes liberales) tal como Pieper a formula hoje, não se
refere a um elenco de disciplinas, nem, muito menos, a qualquer tipo
de discriminação social com que se pôde confundir outrora o conceito
de Artes Liberais. Refere-se, sim, a um sentido que já aparece em
Santo Tomás: "Illae solae artes liberales dicuntur, quae ad sciendum
ordinantur"[193], só se designam como liberais as artes que se
dirigem somente ao saber e não à utilidade prática.
E, afirma Pieper, é neste sentido que "verdade e conhecimento, por um
lado, e, liberdade, por outro, se encontram em mútua conexão"[194].
E, complementarmente, "as artes serviles, artes servis, como diz
Santo Tomás, estão ordenadas para uma utilidade que se alcança pela
atividade"[195].
O fundamento filosófico da Pedagogia das Artes Liberais reside no
fato de as ciências particulares, também elas, poderem ser em alguma
medida tratadas filosoficamente, isto é, teoreticamente, participando
desse modo da liberdade da Filosofia.
É nesse sentido que deve ser entendida a afirmação aristotélica de
que só a Filosofia é livre[196], o que, na realidade, significa que
a Filosofia é livre de modo máximo[197], pois nas ciências também
pode ser encontrado um elemento filosófico de teoria e
liberdade[198].
Certamente, uma ciência particular - que, como veremos no próximo
capítulo, difere da Filosofia por não considerar em relação a seu
objeto o todo da realidade - pode ser - contrariamente ao que ocorre
com a Filosofia - legitimamente tomada ao serviço de fins
utilitários. Não há nada na natureza da ciência particular que seja
violado por isso.
A Pedagogia das Artes Liberais enfatizará não esse aspecto
utilitário, mas o elemento filosófico, livre da aplicação prática,
com que podem (e também devem) ser estudadas a Matemática, o Direito,
a Física etc.
Como diz Pieper:
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Há também na Ciência, no seu núcleo mais íntimo, um elemento que não
pode ser tomado para a utilidade prática: é o elemento filosófico da
teoria, que se dirige para a verdade e nada mais. Isto é: a Ciência
tem, em virtude de sua essência, exigência de liberdade, por ser não
prática, mas teorética[199].
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Em que consistem, pois, as diferenças e semelhanças entre Filosofia e
Ciência no tocante à teoria? Pieper admite que a resposta a essa
pergunta não é simples nem fácil de se formular. Resumiremos a seguir
as páginas 50 e ss. de Verteidigungsrede für die Philosophie.
A teoria é ato da existência do homem que aponta para o entendimento
(Vernehmen) da realidade. Esta capacidade de "ouvir", de captar
(Vernehmen) é mesmo a própria capacidade intelectual do homem
(Vernunft) como a linguagem (alemã) dá a entender. Essa potência
intelectual realiza-se de modo puro na teoria. Ora, entender que
dizer calar (Vernehmen heisst schweigen); o filosofar é o ouvir,
caladamente[200], de forma absoluta e total. Já a Ciência não cala,
pergunta (o "penoso interrogatório" com que, de um modo algo
exagerado, mas não totalmente impróprio, Francis Bacon referiu-se ao
método experimental das ciências da natureza) e nisto diferencia-se
da Filosofia.
Contudo é possível, e até necessário (para quem quer obter
conhecimento da realidade), que as respostas obtidas no indagar
científico sejam recebidas em atitude de teoria. Este silêncio[201]
não é perfeito no caso da ciência particular: vê-se interrompido e
restringido pela formulação explícita do particular aspecto sob o
qual interroga o mundo que, em si, é infinitamente multifacético;
fixa-se a direção da resposta ao estabelecer que, por princípio,
regiões inteiras da realidade "não lhe interessam".
E conclui:
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Dentro da pesquisa científica, que não é na realidade algo abstrato
("a Ciência"), mas feita por homens vivos, ocorre freqüentemente um
escondido filosofar. Esta característica oculta, geralmente mais
pressentida do que palpável, parece-me ser precisamente o que a
Ciência tem de propriamente acadêmico: que na moeda de prata do falar
da Ciência se encontre a liga de ouro do silêncio filosófico[202].
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Deste modo, e como primeira aproximação - dado o caráter cumulativo
do tema, voltaremos, sempre de novo, às mesmas questões - podemos
dizer que o espírito das artes liberais leva à pesquisa, ao estudo, à
docência das ciências particulares de um modo filosófico, que se
realiza (pode se realizar...) na atitude do professor e do aluno, que
se voltam, sim, para o particular aspecto desta ou daquela disciplina
ou especialidade, mas sem se enclausurarem nele; antes, ao contrário,
deixando abertura para reflexões e diálogo sobre o todo do real
permitidos ou até exigidos pelo assunto, se se trata de uma
Universidade.
Tal modo filosófico de encarar uma ciência particular distingue-se do
não-filosófico, antes de tudo, pela "ausência de vínculos que o
liguem a qualquer fim utilitário" e por "nos abrirmos ao céu aberto
da realidade como um todo"[203].
Claro que, tratando-se de um espírito, de uma atitude, o exemplo
verdadeiro vem no contato vivo com os grandes mestres que realizam em
si as virtudes do genuíno professor universitário. No entanto, pode
ser útil, a título de mero exemplo (e, pelas razões apontadas, apenas
indicativo e muito limitado), a consideração de uma situação
concreta.
Suponhamos o caso de um professor que leciona Mstemática para um
curso universitário de Economia. Naturalmente, ele irá proporcionar a
seus alunos o instrumental científico-matemático que os habilite a
resolver um exercício (didático e banal) como o seguinte, que
escolhemos ao acaso num livro-texto daquela disciplina: A função de
demanda de determinado bem é q = 20 - p e a função de Custo total de
produção desse bem é C = 2q + 17. Determinar o valor de q para que o
Lucro total, L, seja máximo[204].
O problema se resolve relacionando a função de Lucro com as de Custo
e Receita, lembrando que esta, por sua vez, obtém-se a partir da
função de preço (como função inversa da demanda), efetuando as
operações de derivação pertinentes etc.
Mas, pode ser, que em meio a esses cálculos e operações, surja na
aula universitária (o que seria impensável dentro do quadro de
objetivos de um curso que uma empresa ministrasse sobre a mesma
matéria para seus gerentes) o debate sobre outras questões: em que
medida a liberdade humana deixa-se expressar em fórmulas como q =
f(d)? Ou, que realidades humanas são passíveis de serem tratadas por
modelos? E por quê? Se "normal" significa situar-se numa determinada
região de uma "curva de Gauss", ou, pelo contrário, refere-se ao ser
do homem? É o lucro o fim supremo da empresa?[205]
Os exemplos poderiam multiplicar-se e aplicar-se a todas as áreas do
saber (é claro que como alertou Hutchins a propósito do "império do
trivial" na Universidade americana[206] - há assuntos com maior e
menor potencial de abertura à totalidade, à maneira filosófica de
tratamento, elemento que também originariamente se encontrava contido
no conceito de Artes Liberais).
Dir-se-á que discussões como as que apontávamos não costumam ocorrer
nas nossas universidades[207] e que nossos professores - de que, em
geral, mal se pode esperar competência técnica - não estão
absolutamente preparados para tal diálogo. Se for realmente assim,
então diremos que nossas universidades, na realidade, não o são, não
realizam o espírito da Academia de Platão e, afinal de contas - e a
menos da crescente defasagem de competência técnica -, em nada
diferem dos cursos ministrados por bancos, empresas e indústrias.
O que caracteriza o verdadeiro professor universitário é a capacidade
do participar desse diálogo (desse diálogo polifônico e aberto). Para
além de toda qualificação científica, ele deve ser capaz de
reconhecer que os resultados particulares de seu próprio trabalho
podem servir a uma consideração global do todo. Sem sucumbir ao
diletantismo sempre pronto a fazer generalizações gratuitas, deve
aprender a arte de colocar seu próprio saber a serviço de um colóquio
de caráter filosófico[208].
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