4.5. Silênclo e Simplicidade

"Só quem cala ouve" é uma sentença considerada por Pieper tão importante que a inclui entre as regras fundamentais da vida do espírito"[290] e a que se pode aplicar o juízo de Sócrates (no Górgias, 508d): nunca é demais repeti-la[291].

É claro que não se refere ao âmbito meramente acústico, mas a um nível mais profundo, que abranja a captação de toda e qualquer realidade[292], toda espécie de compreensão e intuição, que só se realiza sob a condição de silêncio interior.

Os inimigos deste silêncio-condição do filosofar, são apontados por Pieper: a passividade (a atitude de indiferença com relação à verdade), a suficiência de quem julga já saber o bastante, o deixar entrar para dentro de si "a barulheira da rua e do mercado, a ruidosa manchete do dia, o ressoar visual de vistosas baboseiras". E acrescenta: "O surdo fruto de tudo isto - em segredo talvez desejado - é que o homem se impede de ouvir. Mas se o que realmente importa para o homem é poder ouvir..."[293]

Pieper detecta nessa atitude de recusa de ouvir a realidade um "desespero oculto" que Kierkegaard chama de "desespero da fraqueza" e que se encontra na mesma linha daquilo que a antiga Teologia designa por acédia, o vício capital da acédia, que é a recusa à auto- realização, a resistência a assumir a própria condição de ente espiritual; um desespero profundo, ainda que se esconda por trás de um mundo de agitação e novidades, do keep smiling e do happy end[294].

O silêncio que se requer para quem filosofa não é, de modo algum, "um silêncio vazio, conscientemente voltado contra qualquer objeto (atitude recomendada por algumas doutrinas Orientais de meditação)''[295], mas um silêncio que se dirige a ouvir, a captar o ser das coisas. Daí que o silêncio, entendido nesse sentido, ligue- se, também ele, ao conceito central de criação: "Não, as coisas não são - como pretende um terrível dito filosófico - mudas", mas procedem da Palavra criadora e trazem "uma mensagem de mil vozes àquele que ouve calando. Mensagem cuja percepção traz em si a verdadeira riqueza do homem"[296].

É claro que tal silêncio não é o de uma passividade apática; pelo contrário, é solícita sede de verdade que "se nutre de um compromisso alimentado no mais profundo da alma, a preocupação e a ânsia de não descuidar nada do todo da realidade"[297].

É a diferença - que já apontávamos a propósito das duas formas de ser crítico - entre a reflexão filosófica e a pesquisa científica. Enquanto esta supõe somente uma fria inteligência apta para a investigação (que mais se requer, por exemplo, para a demonstração de um teorema de Geometria ou o balanceamento dos coeficientes de uma equação na Química?); aquela pressupõe a "simplicitas" (não basta uma talentosa inteligência para a compreensão "em si e em suas últimas razões" da justiça, da liberdade, da morte ou do amor),

uma abertura sem a menor tensão das mais ocultas faculdades de resposta da alma, que não obedece a decisão alguma da vontade. Ao que parece, na tradição sapiencial do Extremo Oriente conservou-se mais viva que na ratio ocidental a sabedoria sobre essa matéria[298].

Pieper caracteriza essa atitude a partir de um pensamento de Pascal e de um lema de Goethe.

Em Über das Schweigen Goethes, descreve o silêncio (o genuíno silêncio, o de Goethe) como um

aspirar que penetra na câmara mais interna da alma. A ele diz respeito a máxima de Goethe: "Negar-me tanto quanto possível a mim mesmo e assimilar o objeto de um modo tão puro quanto ao homem é dado". É a esse silêncio que Goethe se refere quando, de Roma, informa a Herder do seu "exercitar-se" em "ver todas as coisas como elas são" e "despojar-me completamente de toda pretensão"[299].

Em Pascal, encontra-se o seguinte aforisma (n. 226 na ed. Brunschvicg):

Se não vos preocupais em saber a verdade, tendes suficiente verdade para viver em paz. Mas se desejais de todo o coração conhecê-la, então isso não basta[300].

Trata-se, pois, de uma atitude que transcende o âmbito meramente intelectual e atinge o centro da pessoa, requerendo "toda a energia, sem freio algum, do coração e, ao mesmo tempo, sua vigília e sua mais sismográfica sensibilidade"[301].