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A liberdade, no sentido das artes liberais, é também a mesma
liberdade que corresponde ao sentido genuíno de liberdade acadêmica,
que é algo de muito mais significativo "que um mero caso particular
da liberdade política da palavra ou que a possibilidade reconhecida
ao estudante de organizar seus estudos a seu próprio arbítrio"[213].
A verdadeira liberdade acadêmica está na ausência de vínculos com
qualguer fim utilitário[214] e no ocupar-se da verdade e de nada
mais[215].
Pieper trata diretamente da liberdade acadêmica no capítulo IV de Was
heisst Akademisch?, no capítulo IV da Verteidigunsrede für die
Philosophie, no artigo "Missbrauch der Sprache-Missbrauch der Macht"
(in Über die Schwierigkeit heute zu glauben, pp. 255 a 282) e no
debate The Foundations of Freedom.
Na Verteidigungsrede enfatiza a necessidade de defesa da liberdade
acadêmica contra os inimigos de fora, contra qualquer "diretriz
oficial" emanada do poder político; e, principalmente, a liberdade
acadêmica deve ser fomentada e facilitada "por dentro", "pela
veemente vontade de verdade que, ainda que seja só por este momento,
se interessa afinal por uma só coisa: que o tema em questão seja
enfocado tal como é na realidade''[216].
Nesse contexto evoca a experiência paradigmática que viveu no tempo
em que ainda era possível ter círculos de estudo com a participação
de estudantes vindos - um tanto camufladamente - da Alemanha
Oriental. Num desses debates, discutia-se uma novela que esses
estudantes "do outro lado" afirmavam que havia sido proibida pelo
governo da Alemanha Oriental porque continha grosseiros erros
históricos sobre a revolução soviética.
É evidente que tais questões - prossegue Pieper narrando o curso
daquela discussão, que evidenciou-lhe o sentido da liberdade
acadêmica - são passíveis de comprovação objetiva; mas isto só será
possível se houver na sociedade um setor livre, onde se possa
discutir a fundo e imparcialmente com independência da "luta de
classes", do plano qüinqüenal, da política em geral e de todo e
qualquer interesse coletivo ou privado; a única preocupação deve ser
a verdade das coisas[217].
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A liberdade acadêmica se perde precisamente na medida em que se perde
o caráter filosófico dos estudos universitários ou, dito de outro
modo, na medida em que as aspirações totalitárias do mundo do
trabalho conquistam o âmbito da Universidade; e eis aí a raiz
metafísica; o que se chama "politização" é apenas conseqüência e
sintoma[218].
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Um tal setor livre, imune, independente "é o que se designa
precisamente com o antigo nome de scholé, que significa ao mesmo
tempo escola e lazer''[219].
A scholé é - diz Pieper em Scholastik[220] - tão essencial para a
educação quanto a existência de professores ou a viva vontade de
aprender por parte dos alunos. Uma tal "imunidade" exigida pela
Filosofia da Educação pode realizar-se sociologicamente de diversos
modos: "no caso da Academia de Platão, o que garante o âmbito livre
do filosofar é a riqueza da leisure class, do estrato alto de uma
sociedade fundamentada na escravatura[221]. Mas, complementa em
Actualité de la Scolastique, não se deve esquecer o outro traço: o
fato da academia platônica "ser uma associação cultual, que se reunia
a datas fixas para oferecer sacrifícios, uma sociedade religiosa que
garantia a seus membros essa liberdade de que falávamos"[222].
Também é ao abrigo da religião - como se mostra no cap. II de
Scholastik - que se dá a scholé medieval, mesmo em meio à tormenta do
século VI (Pieper analisa o caso paradigmático de Cassiodoro e seu
mosteiro Vivarium): "É certo que a intangibilidade do 'espaço livre'
do claustro reside também no fato de que os poderes temporais o
respeitavam''[223].
É este o momento de aludir ao que Pieper considera o fundamento
último do direito (e também da liberdade acadêmica): o caráter criado
da pessoa humana, fundamento talvez insuspeitado mas sem o qual nada
se sustenta (cf. Was heisst Akademisch?, p. 35).
A este propósito, recolhemos aqui trechos das "Duas Pequenas
Meditações sobre a Justica", onde Pieper mostra a necessidade
ineludível de recorrer à instância divina para garantir a
intangibilidade do direito e da liberdade:
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Em que deve residir então a causa de que todo aquele que traz uma
face humana, simplesmente pelo seu ser-homem, inalienavelmente algo
lhe seja devido? Por exemplo que sua honra como pessoa seja
respeitada? A noção de pessoa, de fato é aqui decisiva - enquanto se
compreende "pessoa" como um ente que existe para seu próprio
aperfeiçoamento e complementação. Mesmo assim, em caso de conflito,
ao se chegar aos extremos, não basta retroceder ao ser-pessoa (como
supunham alguns filósofos idealiatas). É necessário nestes casos,
poder colocar em jogo uma instância absoluta, mais além de qualquer
instância humana. Dizendo-o de outra maneira: o outro deve ser-me
intocável por eu o ver como ente criado por Deus como pessoa.
Que não se pense ser esta uma concepção especificamente cristã, ou
mesmo teológica. Foi um chinês confuciano quem declarou aos seus
presumivelmente atônitos colegas da comissão da Unesco para a
reformulação dos direitos humanos que lhe havia sido transmitido por
tradição que: "O Céu ama o povo; e o que exerce o poder deve obedecer
ao Céu". E Emanuel Kant - que não era propriamente um teológo - diz:
"Temos um santo regedor; e o que ele deu ao homem de sagrado é o
direito dos homens" (...)
Conforme já dissemos, não se pode indicar qual seja o fundamento do
direito e, conseqüentemente, do dever de Justiça - a não ser que se
tenba uma determinada concepção do homem, da natureza humana. Mas
como, se se proclama que não há natureza humana 'il n'y a pas de
nature humaine (puisqu'il n'y a pas de Dieu pour la concevoir -
Sartre)?
Na verdade é esta a formal justificação de toda ordem totalitária -
esteja ou não tal vínculo no espírito dos autores daquela tese. Se
não há uma natureza humana em virtude da qual algo de inviolável pode
ser atribuído ao homem, como poder-se-á evitar o corolário: Faz do
homem o que bem entenderes?...
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Como se vê, Pieper enraíza-se numa concepção onde o divino não entra
como mera referência cultural, mas real. Recolho aqui - como
importante termo de comparação - um parágrafo de uma das mais lúcidas
empresas de refutação do permissivismo e do totalitarismo. Ainda que
de uma perspectiva bem diferente da de Pieper, coloca-se a
inviolabilidade do direito como sacrum:
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Somos herdeiros do mundo greco-romano e do cristianismo e, por
conseguinte, de uma forma de situar o homem no mundo e de valorizá-
lo. E nessa mundividência, a que estamos profundamente vinculados por
uma riquíssima herança, a cultura não é concebida como um amálgama de
traços que se acumulam de qualquer modo, mas como idéia inseparável
da formação pessoal, para a qual os valores não se equivalem, mas
obedecem a determinados princípios e se articulam em função de regras
que decorrem de um ideal humano que se poderia talvez exprimir, na
sua formulação mais elevada, no dito famoso de Sêneca: Homo sacra res
homini, o homem, coisa sagrada para o homem (Epistolae ad Lucilium,
XCV)[224]
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Assim, "a raiz oculta"[225] de que se nutre a Pedagogia das Artes
Liberais e a liberdade acadêmica é o culto, no sentido de afirmação
da realidade criada. O único meio de preservar um setor livre dos
tentáculos da politização ou do utilitarismo do mundo do trabalho "é
subtraí-lo tão perfeitamente ao domínio da utilidade que - como
diziam os antigos romanos - fique reservado como 'propriedade
exclusiva dos deuses'"[226].
Sem a consciência de uma instância superior - dada precisamente pelo
culto - o poder político "deixa de respeitar a intangibilidade
jurídica da liberdade acadêmica, como se esta fosse um 'absurdo
liberal'"[227].
Certamente, Pieper não pretende dar normas concrentas de atuação no
sentido de restauração da consciência do caráter criado da
realidade[228]; no entanto em Missbrauch... enumera três convicções
fundamentais sobre o homem e o mundo, que a Universidade deve viver
em grau máximo, caso queiramos defender a liberdade acadêmica não só
dos inimigos de fora mas dos de dentro (não por acaso, no parágrafo
com que inicia o tratamento deste assunto, lembra o velho adágio:
corruptio optimi pessima, o ótimo, quando corrompido, torna-se
péssimo):
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1) O bem do homem consiste em ver as coisas, na medida do possível,
tal como são, e viver e agir a partir da verdade assim captada.
2) O homem se alimenta da verdade; a existência é tanto mais rica
quanto mais amplo e profundo é o mundo que o ilumina e lhe é
acessível.
3) O lugar natural da verdade é o diálogo entre os homens, a
linguagem não deve dificultar o acesso à realidade nem desfigurá-
la[229].
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E indica alguns dos elementos que atentam contra a Universidade: a
simplificação partidarista, o apaixonamento ideológico, a afetividade
cega, o culto da mera forma, a terminologia arbitrária, etc.
Antes de finalizar este tópico, registremos um importante texto de
Pieper sobre a liberdade acadêmica confrontando-o com o ponto de
vista marxista.
No debate sobre os fundamentos da liberdade, ante a hesitação do
oponente em aceitar o caráter teorético do filosofar como único
fundamento da liberdade, Pieper responde:
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Vejamos concretamente (a concepção clássica) em termos
contempôraneos. O que estou dizendo é que no momento em que
começarmos a encarar o elemento teorético da razão como de secundária
importância quando comparado à utilidade prática, a partir desse
momento perderemos a possibilidade de estabelecer uma base sólida
para nossos anseios de liberdade da ciência e de defendê-la contra
ameaças externas.
Penso que esse momento crítico no desenvolvimento das idéias pode ser
apontado com razoável precisão na História da Filosofia. É o momento
em que se afirmou que deveríamos substituir a velha filosofia
teorética por uma nova filosofia prática que nos habilitaria a
tornar-nos senhores da natureza, que o pensamento humano não era
outra coisa que uma ferramenta na "indústria intelectual" e que o
último propósito de todo conhecimento seria a satisfação das
necessidades da humanidade.
Estas três últimas formulações são, na realidade, citações. A
primeira procede de Descartes. Sua visão da Filosofia "prática"
constitui o começo de uma nova era e seu surgimento marca o fim do
período clássico. A segunda citação, relativa à "indústria
intelectual", é de John Dewey, o fundador do moderno pragmatismo. E a
terceira que, como o senhor admitirá, se enquadra na mesma linha de
pensamento, foi na realidade engenhosamente extraída da Enciclopédia
soviética. Parece-me que este último ponto fornece uma indicação de
que há uma surpreendente uniformidade no conjunto das idéias que se
estendem a partir de Descartes ("senhores e dominadores da natureza")
até os iniciadores dos planos qüinqüenais. É uma unidade de
perspectiva, estruturada na convicção comum de que a Ciência deve ser
posta a serviço de objetivos que se encontram fora das leis que a
regulam internamente.
Resumindo, quando encontramos no Estado totalitário dos
"trabalhadores a ciência constantemente argüida a responder a
questão: "Em que isto contribui para o plano qüinqüenal?", isto não é
mais que a estrita conseqüência lógica da proposição de Descartes
relativa à Filosofia prática que nos tornará "senhores da
natureza"[230].
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Até que ponto o posicionamento clássico de Pieper atinge a raiz do
problema e como quem quer que defenda a liberdade acadêmica deve
ater-se ao fundamento último da liberdade da teoria, tudo isto se
torna mais claro pela consideração de um texto ostensivamente
polêmico, no qual se diz que a Universidade necessariamente está a
serviço de ideologias e que pretender o contrário - neutralidade de
idéias, objetividade do conhecimento - é "filosoficamente besteira,
historicamente mentira, politicamente demagogia e eticamente
imoralidade"[231].
Pois na perspectiva "liberal-ilustrada" (no dizer da professora
Chauí) "as idéias são aceitas quando reguladas pelos critérios da
verdade teórica", mas - sempre segundo a professora - a verdade
teórica é um "valor" e pretender pautar a pesquisa pela "verdade"
(conceito ideológico a serviço dos exploradores) é uma "besteira
filosófica", uma "hipocrisia da direita": "Por que tanto empenho na
'neutralidade' se esta não resiste ao menor exame reflexivo?"[232].
De fato, é o que estamos dizendo: fora do fundamento clássico não há
sustentação para a liberdade da Ciência e para a liberdade acadêmica.
Se o conhecimento humano não atingisse a verdade das coisas, se não
fosse a sua medida a ipsa res[233], a própria coisa, então que
fundamento lhe restaria senão o de sujeitar-se a programas de ação? O
conceito de ideologia nada mais é que o Ersatz da Prudência (no
sentido legítimo e autêntico que tem essa virtude cardeal) numa
concepção que já não aceita que a objetiva verdade das coisas seja a
medida do conhecimento e do agir humanos.
Na base do conceito marxista de ideologia estão as seguintes
convicções:
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- O real não é constituído por coisas[234].
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- É, portanto, das relações sociais que precisamos partir para
compreender o quê, e como e por quê os homens agem e pensam de
maneiras determinadas[235].
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É por isto que - como já em 1936 apontava Pieper - a antiga doutrina
sobre a Prudência, vale dizer sobre a possibilidade de um
conhecimento humano da verdade das coisas, "pode lançar uma luz
totalmente surpreendente sobre o conceito sociológico de ideologia
(...) que não é senão falta de objetividade na percepção da
realidade''[236].
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