2.4. Filósofos Antigos e Medievais como Base

A constante pieperiana que analisaremos neste tópico dá, de modo especial, margem a mal-entendidos, de forma que procuraremos cuidadosamente precisar qual é o sentido da relação de Pieper com os filósofos antigos e medievais e, de modo muito particular, S. Tomás de Aquino.

Comecemos por registrar o fato da constante referência de Pieper a S. Tomás, Platão, Aristóteles e S. Agostinho. Para que isto se torne mais que evidente, basta consultar o índice onomástico de uma obra sua qualquer. Aliás, é o próprio filósofo de Münster quem o diz:

Nas questões que se referem às realidades fundamentais da existência[83] como esperança amor, graça, liberdade, morte, etc. a originalidade de um pensador individual significa muito pouco (...) enquanto a sabedoria dos antigos mostra-se com um rosto totalmente jovem se a meditamos com suficiente coragem[84].

Também se expressa do mesmo modo em relação a um tema tão vivamente atual como a Justiça[85]. E num livro em que segue passo a passo S. Tomás (mas a afirmação parece-nos valer para toda a obra de Pieper), afirma fazer essa referência "não com uma intenção histórica, mas para pôr em evidência a força de irradiação que se contém na realidade"[86]. Precisamente esse sentido foi desde muito cedo (1933) advertido no trabalho de Pieper pelo filósofo Peter Wust: "Trata-se de algo distinto de mero trabalho de escavação histórica"[87].

Como deve ser entendida então essa constante pieperiana? Poderíamos qualificá-lo de tomista? Sua resposta a esta pergunta é: não![88] Não, na medida em que "tomismo" possa dar margem a confusão com um sistema fechado de proposições, que passe ao largo das duas características mais decisivas da atitude de S. Tomás como pensador: a abertura para a totalidade e o caráter negativo de sua Teologia e Filosofia (de que ainda falaremos em 2.5 e 4.7).

Trata-se de uma questão de linguagem, na medida em que "tomismo" (no sentido da nota anterior) possa significar 'como disse Gilson', antes uma filosofia ad mentem Cartesii que uma ad mentem Divi Thomae"[89]. Por isso, Pieper julga mais fiel ao espírito de S. Tomás uma recusa do termo "tomismo"[90]: "Quem verdadeiramente filosofa sabe que - ao contrário do que pensam muitos professores de Filosofia - (...) o objeto próprio da Filosofia é a realidade"[91].

Se a Filosofia versa sobre a realidade (e, portanto, não sobre o que este ou aquele filósofo disse), qual, então, o sentido de tantas referências a S. Tomás, Platão etc.?

A resposta a esta pergunta se encontra na quarta conferência de Thomas von Aquin, onde Pieper explica o verdadeiro sentido da referência de Tomás a Aristóteles e que é precisamente o mesmo da sua a S. Tomás:

O que interessa a S. Tomás em Aristóteles não é Aristóteles, mas a verdade. Não lhe interessa primariamente "o que os outros pensaram", assim o disse ele próprio, e, precisamente num comentário a Aristóteles, dirigido a averiguar o que Aristóteles realmente pensava. No entanto, em última instância, não lhe interessa o que Aristóteles pensava, "mas qual é a verdade das coisas"[92].

E mais,

(Quando S. Tomás diz) sicut patet per philosophum ele quer dizer como ficou claro por Aristóteles. Não porque seja Aristóteles quem o diga, mas porque tornou-se claro (por Aristóteles, o que não é casual); por isso é verdadeiro. É válido porque é verdadeiro. Quem cita desta maneira não cita, em sentido estrito, uma autoridade; não se liga ao autor[93].

Também para Pieper, os grandes filósofos antigos e medievais só interessam enquanto testemunhas da verdade; uma verdade que tem de mostrar-se por si mesma e manifestar sua validez em virtude de seus próprios argumentos objetivos[94].

Nessa perspectiva, destaca-se a figura de S. Tomás de Aquino, na medida em que sua grandiosa obra recolhe o melhor não só da sabedoria da Teologia dos primeiros séculos cristãos, mas também da tradição filosófica grega (o que inclui muito mais que o mero "aristotelismo"). E, além disso, sua obra apresenta uma original unidade, pois brota de uma espiritualidade, vincada pela Sagrada Escritura e pelo culto[95].

Para finalizar, poderíamos tentar uma caracterização geral da obra de Pieper, formulando-a em duas palavras: S. Tomás-Hoje[96]. Pieper interpreta S. Tomás (no sentido de buscar captar a verdade orientado por S. Tomás) e segue-o, mas numa perspectiva de hoje, a partir da problemática de hoje.

Pense-se, como exemplos fundamentais, no papel desempenhado pelas ciências contemporâneas ou pelas nossas realidades sociais.

A ciência. Ao afirmar que o filosofar deve voltar-se para a experiência, acrescenta que os atos dessa experiência se acumulam e se conservam "antes de tudo, como ninguém ignora, nos arsenais da ciência"[97], e que, portanto, o filósofo não pode de modo algum passar à margem da ciência[98].

A realidade social. Como quando, por exemplo, discutindo os conceitos de "bem comum" e de "filosofar" em S. Tomás, o faz com o olhar voltado para o nosso mundo:

Se é verdade que o filosofar é um ato que ultrapassa, transcende o mundo do trabalho, a nossa questão "que significa filosofar?" - aparentemente tão "teórica" e abstrata - transforma-se, de repente e subitamente, numa questão de extrema atualidade histórica[99].