2.3. A Linguagem Comum

Pieper, tal como os grandes filósofos antigos e medievais, considera a linguagem, a linguagem comum[70], sempre campo privilegiado onde se manifesta (e também se esconde...) a realidade.

É de se supor que Platão, Aristóteles, S. Agostinho e S. Tomás sabiam muito bem o que faziam quando começavam sempre por inquirir a linguagem comum: Que pensam os homens quando dizem "liberdade", "alma", "vida", "felicidade", "amor" ou "fé"? É evidente que os patriarcas da Filosofia Ocidental não consideravam isto um mero expediente didático; antes sustentaram a opinião de que sem tal conexão com a linguagem realmente falada pelos homens o pensamento perde sua força, convertendo-se em algo fantástico e carente de base[71].

A linguagem, dizíamos, manifesta, mas também esconde, a realidade: daí o trabalho de análise feito pela intuição do filósofo que, como é óbvio, não pode ingenuamente endossar sem mais o mero uso quotidiano das palavras, pois nesse uso "há, sem dúvida, abusos; e, como é claro, justamente as palavras-chave do falar humano são as que mais sofrem tais assédios''[72]. Um exemplo, extraído da obra Über die Liebe: "Basta ir folheando uma revista ilustrada enquanto esperamos a nossa vez no barbeiro, para dar vontade de nunca mais trazer aos lábios a palavra 'amor', nem mesmo em futuro longínquo"[73]. E é que o filósofo deve fazer um esforço de depuração e aprofundamento para ser conduzido da linguagem à realidade:

A averiguação do que é verdadeiramente pensado na linguagem viva dos homens não pode, em caso algum, ser considerada tarefa fácil (...) É quase impossível esgotar e circunscrever de modo preciso a significação plena, principalmente das palavras fundamentais (...) Cada indivíduo, ao utilizar de modo espontâneo as palavras, costuma exprimir com elas mais do que realmente diz conscientemente[74].

A seguir, exemplifica com a palavra "semelhança, que é "coincidência em alguns traços" - uma definição aparentemente precisa e que, além do mais, foi tirada do conhecido dicionário filosófico de Johannes Hoffmeister. Pieper mostra que só o uso vivo da linguagem pode manifestar que tal definição é falsa, incompleta, pois carece de um elemento essencial, a saber: a relação de dependência. Só damos por isso quando - voltando-nos para a linguagem viva - nos damos conta de que não se diz que "um pai é semelhante ao filho", mas, que "o filho é que é semelhante ao pai".

E, o texto prossegue:

é uma empresa de máxima dificuldade tentar esquadrinhar a significação integral de uma palavra fundamental (...) e é necessário imunizar-se contra a tentação de perfeição que pode esconder-se por detrás de definições demasiado precisas.

Como se pode notar, o assunto é bastante problemático, sobretudo quando se tem em conta que é um procedimento constante e de extraordinária importância.

Numa de suas recentes micromeditações, Pieper explicitou uma lei fundamental que subjaz a essas suas análises de linguagem: "Nota-se que uma palavra está sendo usada em sentido impróprio quando sem alteração de sentido (num dado contexto) pode ser substituída por outra"[75].

Por tudo o que acima fica dito, o leitor não se surpreenderá de encontrá-lo sempre extremamente atento - o filósofo ideal, diz Eliot no seu estudo sobre Pieper, deveria estar familiarizado com todas as línguas - não só às peculiaridades da língua alemã[76], mas também às do latim e do grego[77], do inglês[78], do francês[79], do russo[80], do indiano[81] etc.; ao que a linguagem comum diz (ou deixa de dizer).

Um outro problema importante no campo da interpretação da linguagem, sobretudo quando se quer compreender um autor de outra época (o que para Pieper é decisivo) é o que ele denomina "captar o não-dito". Pela especial importância, transcrevemos o texto essencial a respeito:

Sobre o que é evidente não se fala; o que de per si é compreendido "goes without saying", passa sem dizer. A questão é saber o que é óbvio e, portanto, pode ficar inexpresso.

Nesta, por assim dizer, inocente consideração (também ela de algum modo evidente) resite a máxima e real dificuldade de toda interpretação de texto, na medida em que, no texto que vai ser interpretado, algumas coisas permaneceram sem ser expressas por causa de sua evidência; coisas que para quem o interpreta de modo algum são óbvias porque ele não as capta sem mais.

E isto significa que, para quem interpreta, a clave da real captação também se alterou.

Na interpretação de um texto, sobretudo de um texto de época ou cultura alheia à nossa, o que é pura e simplesmente decisivo (e, ao mesmo tempo, dificultoso) reside nisto: captar os óbvios fundamentais, que subrepticiamente entretecem o que foi dito, dar com a clave invisível que subjaz ao expressamente dito. Pode-se até dizer que a doutrina de um pensador "esteja no que diz sem dizer" (Heidegger)[82].

Pieper propõe como detector e solução para o problema dos "ditos não- ditos", a atenção às "brechas", aos saltos lógicos no discurso (isto é, ao que aparece a quem interpreta como tais), pois é aí que o autor que está sendo interpretado tem suas evidências inexpressas.