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A constante pieperiana que analisaremos neste tópico dá, de modo
especial, margem a mal-entendidos, de forma que procuraremos
cuidadosamente precisar qual é o sentido da relação de Pieper com os
filósofos antigos e medievais e, de modo muito particular, S. Tomás
de Aquino.
Comecemos por registrar o fato da constante referência de Pieper a S.
Tomás, Platão, Aristóteles e S. Agostinho. Para que isto se torne
mais que evidente, basta consultar o índice onomástico de uma obra
sua qualquer. Aliás, é o próprio filósofo de Münster quem o diz:
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Nas questões que se referem às realidades fundamentais da
existência[83] como esperança amor, graça, liberdade, morte, etc. a
originalidade de um pensador individual significa muito pouco (...)
enquanto a sabedoria dos antigos mostra-se com um rosto totalmente
jovem se a meditamos com suficiente coragem[84].
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Também se expressa do mesmo modo em relação a um tema tão vivamente
atual como a Justiça[85]. E num livro em que segue passo a passo S.
Tomás (mas a afirmação parece-nos valer para toda a obra de Pieper),
afirma fazer essa referência "não com uma intenção histórica, mas
para pôr em evidência a força de irradiação que se contém na
realidade"[86]. Precisamente esse sentido foi desde muito cedo
(1933) advertido no trabalho de Pieper pelo filósofo Peter Wust:
"Trata-se de algo distinto de mero trabalho de escavação
histórica"[87].
Como deve ser entendida então essa constante pieperiana?
Poderíamos qualificá-lo de tomista? Sua resposta a esta pergunta é:
não![88] Não, na medida em que "tomismo" possa dar margem a confusão
com um sistema fechado de proposições, que passe ao largo das duas
características mais decisivas da atitude de S. Tomás como pensador:
a abertura para a totalidade e o caráter negativo de sua Teologia e
Filosofia (de que ainda falaremos em 2.5 e 4.7).
Trata-se de uma questão de linguagem, na medida em que "tomismo" (no
sentido da nota anterior) possa significar 'como disse Gilson', antes
uma filosofia ad mentem Cartesii que uma ad mentem Divi Thomae"[89].
Por isso, Pieper julga mais fiel ao espírito de S. Tomás uma recusa
do termo "tomismo"[90]: "Quem verdadeiramente filosofa sabe que - ao
contrário do que pensam muitos professores de Filosofia - (...) o
objeto próprio da Filosofia é a realidade"[91].
Se a Filosofia versa sobre a realidade (e, portanto, não sobre o que
este ou aquele filósofo disse), qual, então, o sentido de tantas
referências a S. Tomás, Platão etc.?
A resposta a esta pergunta se encontra na quarta conferência de
Thomas von Aquin, onde Pieper explica o verdadeiro sentido da
referência de Tomás a Aristóteles e que é precisamente o mesmo da sua
a S. Tomás:
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O que interessa a S. Tomás em Aristóteles não é Aristóteles, mas a
verdade. Não lhe interessa primariamente "o que os outros pensaram",
assim o disse ele próprio, e, precisamente num comentário a
Aristóteles, dirigido a averiguar o que Aristóteles realmente
pensava. No entanto, em última instância, não lhe interessa o que
Aristóteles pensava, "mas qual é a verdade das coisas"[92].
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E mais,
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(Quando S. Tomás diz) sicut patet per philosophum ele quer dizer como
ficou claro por Aristóteles. Não porque seja Aristóteles quem o diga,
mas porque tornou-se claro (por Aristóteles, o que não é casual); por
isso é verdadeiro. É válido porque é verdadeiro. Quem cita desta
maneira não cita, em sentido estrito, uma autoridade; não se liga ao
autor[93].
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Também para Pieper, os grandes filósofos antigos e medievais só
interessam enquanto testemunhas da verdade; uma verdade que tem de
mostrar-se por si mesma e manifestar sua validez em virtude de seus
próprios argumentos objetivos[94].
Nessa perspectiva, destaca-se a figura de S. Tomás de Aquino, na
medida em que sua grandiosa obra recolhe o melhor não só da sabedoria
da Teologia dos primeiros séculos cristãos, mas também da tradição
filosófica grega (o que inclui muito mais que o mero
"aristotelismo"). E, além disso, sua obra apresenta uma original
unidade, pois brota de uma espiritualidade, vincada pela Sagrada
Escritura e pelo culto[95].
Para finalizar, poderíamos tentar uma caracterização geral da obra de
Pieper, formulando-a em duas palavras: S. Tomás-Hoje[96]. Pieper
interpreta S. Tomás (no sentido de buscar captar a verdade orientado
por S. Tomás) e segue-o, mas numa perspectiva de hoje, a partir da
problemática de hoje.
Pense-se, como exemplos fundamentais, no papel desempenhado pelas
ciências contemporâneas ou pelas nossas realidades sociais.
A ciência. Ao afirmar que o filosofar deve voltar-se para a
experiência, acrescenta que os atos dessa experiência se acumulam e
se conservam "antes de tudo, como ninguém ignora, nos arsenais da
ciência"[97], e que, portanto, o filósofo não pode de modo algum
passar à margem da ciência[98].
A realidade social. Como quando, por exemplo, discutindo os conceitos
de "bem comum" e de "filosofar" em S. Tomás, o faz com o olhar
voltado para o nosso mundo:
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Se é verdade que o filosofar é um ato que ultrapassa, transcende o
mundo do trabalho, a nossa questão "que significa filosofar?" -
aparentemente tão "teórica" e abstrata - transforma-se, de repente e
subitamente, numa questão de extrema atualidade histórica[99].
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