4.8. Ciência e Cientificismo

Inicialmente, é importante destacar a distinção entre ciência e cientificismo: cientificismo é uma posição filosófica (e não científica) que considera válido somente o conhecimento científico.

Para caracterizar o contraste com a posição expressa por Pieper - sobretudo em Über das Verlangen nach Gewissheit[321], texto fundamental para este tópico - pareceu-nos especialmente adequada uma conhecida epígrafe de diversos manuais de Física para o 2º. e 3º. graus, uma sentença do físico Lord Kelvin que resume em si o cientificismo: "Todo conhecimento que não pode ser expresso por números é de qualidade pobre e insatisfatória"[322].

A ciência e a técnica, hoje, deslumbram tanto que quase não se questiona uma mentalidade como a representada pela proposição acima. E, uma vez aceitas as premissas do cientificismo, já não se pode escapar dele. Porém, devemos aceitá-las? Parafraseando Gilson: "Tudo pode ser cientificamente constatado, exceto o princípio de que tudo possa ser constatado cientificamente"[323].

Aplicando à sentença de Kelvin (e ao cientificismo em geral) seu próprio critério de avaliação, resulta que também ela (e o cientificismo em geral) é de qualidade pobre e insatisfatória, pois tal sentença não se deixa expressar em números.

Pieper investe contra as filosofias que pretendem que o único conhecimento com sentido e conteúdo seja o que se possa expressar em enunciados protocolares, ou, de algum modo, "clare et distincte". De uma obra coletiva do Círculo de Viena, recolhe a seguinte máxima: "Fora da experiência não há caminhos para se chegar a um conhecimento com conteúdo"[324] cujo sentido original é claro: a exclusão da Metafísica por ser um conhecimento vazio e sem sentido.

Não que Pieper queira se afastar da experiencia, mas entende-a num sentido muito mais profundo do que a mera identificação com o que pode ser expresso científica ou protocolarmente.

Nesse sentido, Heidegger aponta as diferenças entre os dois modos de ver o mundo e o filosofar: a busca do ser do ente nos antigos; a pretensão de clara certeza nos modernos:

De bem outra espécie é aquela disposição que levou o pensamento a colocar a questão tradicional do que seja o ente enquanto é, de um modo novo, e a começar assim uma nova época da filosofia (...) para Descartes, aquilo que verdadeiramente é se mede de uma outra maneira: (...) o ente que é com toda certeza[325].

De fato, nem Platão, nem Aristóteles, nem S. Tomás de Aquino, têm a pretensão de que o conhecimento humano possa ser claro e certo: em qualquer questão filosófica o mistério está sempre presente e - pela própria natureza das coisas - nunca homem algum dará resposta cabal e clara à pergunta pelo ser do ente. Como se diz no Pedro (278d) de Platão:

O nome de sábio, Fedro, me parece excessivo; só vai bem com referência a Deus; o de amigo da sabedoria (filósofo), ou outra designação equivalente, conviria melhor.

E em S. Tomás de Aquino lemos:

Minimum quod potest haberi de cognitione rerum altissimarum, desiderabilius est quam certissima cognitio quae habetur de minimis rebus, ut dicitur in XI "De animalibus" (de Aristóteles)[326].

E assim fomos conduzidos a uma súbita inversão do cientificismo: só podemos ter precisão, clareza e expressar protocolar ou numericamente realidades de menor importância. Já o pouco conhecimento que podemos ter na Filosofia é sumamente importante.

É a mudança de clave que ocorre quando se passa da filosofia antiga para a moderna: naquela, a dignidade do conhecimento liga-se ao objeto; nesta, à clareza do sujeito.

No entanto, Pieper encontra uma possibilidade de concordar com a letra daquela sentença do Círculo de Viena[327], ainda que, quanto a seu espírito, situe-se no extremo oposto: desde que entendamos os termos "experiência" e "objetividade" em um bem determinado sentido. Será que "objetividade" refere-se só àquilo que pode ser enunciado protocolarmente ou apreensível pela ciência? A resposta de Pieper a esta pergunta é não.

Suponhamos, por exemplo, um problema de Física: "Um projétil é disparado com velocidade inicial igual a tanto, etc.". A ciencia (Física) pode determinar a que velocidade tal projétil atingiu um determinado obstáculo; pode analisar (Química) as reações de combustão e a explosão que deu origem ao disparo; e, supondo que o obstáculo seja um organismo vivo, a ciência (Biologia) pode ainda determinar com precisão a dilaceração de tecidos causada pela penetração do projétil.

Mas acaso não pertencerão também ao universo da objetividade e da experiência a possibilidade de se captar (de maneira não expressável em enunciados protocolares... mas mesmo assim plenamente objetiva) o sentido humano desse disparo: se se trata de um assassinato, de legítima defesa ou de um acidente? Por difícil, e mesmo impossível, que seja estabelecer critérios operacionais para isso, há um sentido humano objetivo e podemos apreendê-lo.

Outro exemplo: todos sabemos o que é a amizade e quem é nosso amigo. Mas pertence ao ridículo a tentativa de estabelecer algum critério protocolar-científico (mesmo para a mais avançada das cibernéticas) onde se afirme: A diz-se amigo de B quando...

No entanto, é com objetividade que afirmamos: Fulano é meu amigo. Pois objetividade significa afirmar que é aquilo que é na realidade. Uma realidade a que temos acesso na experiência, onde por experiência entendemos não só (nem principalmente) as dos laboratórios de Física, mas precisamente qualquer tipo de contato imediato com a realidade, não excluindo, por exemplo, a captação do que se expressa num modo de olhar, num gesto; o "outro" em sua dor, alegria etc.[328].

Como fica patente no texto de S. Tomás citado há pouco, os antigos tinham seu próprio modo de ver o conhecimento: para eles, a realidade e o homem são tais que não se pode pretender a clareza da ciência a não ser que se trate de assuntos de menor importância: a dignidade de um conhecimento não advém da clareza mas do objeto. E, em Filosofia, os objetos não devem ser analisados de um ponto de vista limitado como nas ciências (daí lhes advêm a clareza) mas pergunta-se pela totalidade.

Um exemplo do cientificismo aplicado à Educação pode ser encontrado no "Movimento dos Objetivos Comportamentais"[329]. Para esse e outros cientificismos pedagógicos, "apenas o possível de ser medido pode ser ensinado"[330].

Não nos ocuparemos aqui desse movimento, limitando-nos a indicar sua incompatibilidade com uma Filosofia da Educação como a de Pieper, que fornece a base para uma crítica adequada do "comportamentalismo".

Para mostrar quão limitada é a ciência e quão absurda a pretensão de totalidade do cientificismo, passamos a uma breve nota sobre a ambivalência da ciência.