4.6. Admiração e Mistério

Aqui se colocam mais duas importantes características do filosofar. Sempre em união com a grande tradição do Ocidente[302], Pieper afirmará a admiração como princípio e o mistério como situação do filosofar.

É pelo abalo da admiração que surge a questão filosófica, que longe de afastar-se da realidade quotidiana, volta-se para ela sob um ângulo não-quotidiano, posto à luz no abalo admirativo. Pieper exemplifica:

A cada instante falamos de "meu amigo", "minha mulher", "minha casa", no sentido de que os "temos" e "possuímos". Mas, de repente começamos a nos surpreender: Será que "temos" realmente todas essas "posses"? Podem elas ser "possuídas"? O que significa, em última análise, "possuir" alguma coisa?[303].

Rompe-se assim o círculo fechado em que o totalitarismo do mundo do trabalho pretendia nos encerrar com sua visão definitiva e compacta da realidade quotidiana, que julga tudo evidente.

Mas, na verdade, o que é evidente neste mundo? Por será evidente que existamos? Será evidente que exista alguma coisa como o ver? Mas, quem está encerrado no dia-a-dia não pode fazer tais perguntas. E não pode fazê-las porque não consegue (em todo caso, não o consegue conscientemento e, talvez só semi-inconscientemente) esquecer os fins utilitários imediatistas. Para quem, pelo contrário, admira, os fins utilitários emudecem. Para quem foi atingido pelo rosto mais profundo do mundo, calam-se os fins mais imediatos da vida, mesmo que seja apenas por esse único momento, em que, abalado, olha para o rosto pasmoso do mundo. Somente aquele que admira consegue realizar em si a forma original de relação com o ser, que desde Platão se chama "teoria", isto é, aceitação puramente receptiva da realidade, não perturbada por qualquer intervenção da vontade. (...) Teoria só existe quando o homem não se tornou cego ao maravilhoso, que reside em que alguma coisa existe[304].

O aburguesamento do espírito ocorre quando o homem já não é capaz de se admirar ou precisa do sensacionalismo do estapafúrdio para provocar em si um Ersatz da admiração, da verdadeira admiração:

Perceber no comum e no diário aquilo que é incomum e não-diário, o mirandum (o que suscita admiração), eis o princípio do filosofar. Nesse ponto, como dizem Aristóteles e S. Tomás, o ato de filosofar se assemelha ao ato poético; tanto o filósofo como o poeta se ocupam do maravilhoso, daquilo que suscita e inflama a admiração[305].

Ao afirmar que Filosofia e Poesia têm muito em comum, Pieper não deixa de estabelecer a distinção entre ambas (e também com relação a outros atos que emparelha ao de filosofar, por transcenderem o mundo do trabalho ou por terem seu princípio na admiração: os abalos religioso, tanático, artístico e erótico[306]:

Ainda que não por isso (as semelhanças) se suprima, de modo algum, a diferença: o modo da Filosofia - diferentemente da poesia - não consiste em fazer presente algo mediante figuração sensível (som, ritmo, fluxo, figura) mas em apreender a realidade em conceitos que não falam à imaginacão[307].

No entanto, e temos aí uma afirmação reveladora do filosofar de Pieper: a base comum de orientação ao mirandum e a transcendência em relação ao mundo do trabalho tornam "o ato filosófico mais próximo e mais estreitamente aperentado ao poético do que às ciências particulares exatas"[308].

A consideração da admiração nos leva à do mistério:

Pois o sentido da admiração é a experiência de que o mundo é mais profundo, mais amplo e mais misterioso do que pode parecer ao conhecimento comum. A admiração aponta para a plenitude de sentido do mistério. A admiração aponta não para o suscitar da dúvida, mas para o estímulo do reconhecimento de que o ser como ser é inconcebível e misterioso - de que o próprio ser é um mistério[309].

A propósito do mistério, recolheremos duas considerações de Pieper pertinentes a este trabalho: uma, que se desenvolve principalmente em Unaustrinkbares Licht - onde o tema do mistério se relaciona com o conceito principal de Criação; outra - procedente de Über das Verlangen nach Gewissheit - onde se compara o alcance da Filosofia com o da Ciência.

São, respectivamente, nossos dois próximos tópicos: "Filosofia Negativa" e "Ciência e Cientificismo".