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"Conexão entre Filosofia e Teologia" é um ponto destacado
unanimemente pelos que analisam sua obra, como uma das principais
características de Pieper.
Destacamos dois depoimentos de insignes pensadores: Hans Urs von
Balthasar e Jacques Maritain. Do primeiro, recolhemos estas palavras:
"Pieper destemidamente celebrou o inevitável enlace que 'desde
sempre'[100] existiu entre Filosofia e Teologia"[101].
Maritain, discorrendo sobre a Filosofia da História, e afirmando a
especial necessidade de, nesse caso, se recorrer à Teologia, diz:
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Para confirmar esses pontos de vista, seja-me permitido mencionar
dois livros de eminentes autores, cujas perspectivas são diferentes
da minha (bem diferente no segundo caso[102]) e cuja concordância
com minhas próprias conclusões é do mais alto interesse para mim.
Refiro-me, em primeiro lugar, ao livro de Josef Pieper: Über das Ende
der Zeit. Eine geschichtsphilosophische Meditation. Pieper, a meu
ver, submete à Teologia o opus philosophicum, em sua
integridade[103].
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Como se realiza essa conexão? Para esclarecer esta questão,
seguiremos inicialmente o Cap. IX da Verteidigungsrede für die
Philosophie, uma de suas últimas formulações ao tema.
É ponto pacífico que o filosofar não pode deixar de considerar os
resultados das ciências. Ninguém diria que a Filosofia estuda a
"natureza metafísica" do homem e, portanto, não lhe interessa o que
as ciências (biológicas, sociais, do comportamento etc.) informam a
respeito do ser humano.
A questão que Pieper coloca, porém, é esta:
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Forma parte do autêntico filosofar a inclusão da consideração de
informações sobre o mundo e a existência, que não procedem da
experiência ou de argumentos de razão, mas de um setor que convém
designar mediante nomes, digamos, como "revelação", "sagrada
tradição", "fé", "teologia"? Podem-se acolher no filosofar tais
asserções não demonstráveis empírica e racionalmente?[104]
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Ao que responde: "Isto não só é possível e legítimo, mas até mesmo
necessário"[105].
Esclarecendo o verdadeiro sentido da posição de Pieper, diremos,
inicialmente, que ele se refere ao filosofar, à pessoa que filosofa e
não à Filosofia entendida como matéria.
Como diz em Was heisst Philosophieren?:
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É de Fichte a afirmação: "A Filosofia que se escolhe depende do homem
que se é". A formulação não é muito feliz, pois não se trata de
"escolher" uma Filosofia. Em todo caso é claro e acertado o que o
autor pretende dizer com isso. No próprio campo do saber natural as
coisas não se processam de modo que baste forçar um pouco a cabeca
para entrar na posse de uma verdade. Isso vale mais ainda quando essa
verdade se relaciona com o sentido do mundo e da vida. Aí, com maior
razão, não basta ter uma "boa cabeça", é preciso ser algo como homem,
como pessoa[106].
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E uma pessoa - tomada em sua totalidade, diríamos "existencial" - ao
filosofar, ao fazer sua "opção" filosófica, já antes (trata-se de um
pré-suposto) possui uma interpretação da realidade, condição de todo
o filosofar: na Teologia.
E especialmente aqui vale a distinção entre filosofar e Filosofia:
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Não se trata aqui da Filosofia, mas (...) do filosofar existencial e
da pessoa que filosofa. Não se trata portanto de se, numa exposição
sistemática dos problemas de conteúdo da Filosofia, devem ou não
intervir, por exemplo, teses teológicas[107].
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É necessário salientar que não se trata de invasão no campo da
Teologia, assim como não se trata de fazer Física quando o filósofo,
perguntando-se pelo ser da matéria, utiliza resultados da Mecânica
Quântica.
Evidentemente uma questão decisiva no caso (e cuja resposta
afirmativa representa um dos explícitos pressupostos pieperianos de
que fala T. S. Eliot), é a de saber se se pode dar um falar de Deus
aos homens e se tal revelação possa ser discernível por nós[108].
Consideremos agora a famosa fórmula "philosophia ancilla theologiae"
(a Filosofia é serva da Teologia), que com tanta freqüência (e pelas
duas partes) tem sido mal compreendida. Na realidade, segundo Pieper,
ela não indica outra coisa que a necessidade de mútua
colaboração[109].
Pieper esclarece no Cap. VII de Thomas von Aquin: Leben und Werk que
a Filosofia não "serve" a nada porque ela tem a ver com a sabedoria
e, portanto, não é ordenada mas é ela que ordena: "sapientem (...)
non decet ordinari ab alio, sed ipsum potius alios ordinare"[110].
Esta é uma das notas que distinguem a Filosofia das ciências
particulares (é claro que a ciência médica é serva da práxis
curativa, a Física e a Química servem a fins técnicos, econômicos,
etc.) À capciosa pergunta: "Então, a Filosofia não serve sequer à
Teologia?", Pieper responde que o "tomar a serviço" da Filosofia pela
Teologia e algo único e incomparável, com estrutura totalmente
diferente da do serviço que as ciências prestam à prática. A
Filosofia dirige-se à sabedoria em si mesma, tal como - de um modo
mais elevado - o faz a Teologia. Ou seja, a Filosofia - quando se
relaciona com a Teologia - não está se subordinando a um fim situado
fora de si mesma; antes refere-se ao mesmo "saber sobre as últimas
causas" que se realiza, de modo distinto, na fé e na Teologia.
Mútua colaboração, dizíamos, da qual a Teologia se beneficia pela
manutenção de sua abertura para o todo da realidade ao invés de
sucumbir à tentação "de uma postura pretensamente autárquica"[111].
Uma dimensão essencial dessa colaboração foi lúcida e acertadamente
condensada por Gilberto de Mello Kujawski no artigo " A Volta de S.
Tomás" (onde freqüente e expressamente cita o Scholastik e o Thomas
von Aquin - ed. espanhola - de Pieper):
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Para o doutor angélico - comenta Pieper[112] - a realidade mundana
natural só se pode fundar e justificar em último termo,
teologicamcnte, ou seja, enquanto realidade criada por Deus.
Precisamente porque há uma Criação, existem seres e coisas com
natureza própria, que não só estão aí, existem por si mesmas, mas
também podem atuar e produzir a partir de si" (Pieper, p. 354). Em
segundo lugar - acrescenta o citado autor - S. Tomás afirma que as
coisas todas, por serem criadas por Deus, são boas, e por isso o
pecado não muda essencialmente a estrutura do mundo. E em terceiro
lugar, se o Logos se fez "carne", como reza o Evangelho de São João,
será preciso descartar a idéia maniquéia de que o corpo provém do
mal. A realidade mundana natural e a realidade humana corpórea são
boas em si mesmas, e quem despreza a perfeição das coisas, despreza a
perfeição da virtude divina.
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Em suma, a grandeza e a genialidade de S. Tomás, seu título de
permanência na história do pensamento justifica-se pela dupla façanha
que conseguiu realizar, uma complementar da outra: 1º) legitima a
natureza e o mundo por intermédio da Teologia; 2º) oferece à
consideração da teologia o mundo e a natureza, em sua imensa amplidão
e variedade. (...) E para resumir S. Tomás, Pieper emprega a fórmula
definitiva: "mundanidade teologicamente fundada, e Teologia aberta ao
mundo"[113].
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O que mais nos importa aqui são, no entanto, os benefícios que a
Filosofia haure do contato com a Teologia. Dois deles são apontados
por Pieper no, há pouco citado. "Die mögliche Zukunft"...:
enriquecimento e inquietude.
E exemplifica com um tema de que nos ocuparemos no Cap. 4: a dupla
face do conceito de Criação. Se a pessoa que filosofa crê, crê que o
mundo procede do Logos divino e, por isso, os entes são, ao mesmo
tempo, cognoscíveis e inabarcáveis pelo homem, recebe, com isso, uma
fecunda linha de investigação da realidade que, de modo algum,
paralisa ou obstrui a pesquisa filosófica. Pelo contrário.
Será que, no que se refere a esses temas fundamentais de qualquer
filosofar, a ausência de pressupostos (Voraussetzungslosigkeit)
apregoada por tantos filósofos não consistirá antes, como diz Eliot,
em ocultar seus pressupostos de si mesmos e do leitor?
Ainda quanto ao tema da fundamentação do conhecimento, detenhamo-nos
no contundente questionamento que Pieper oferece em Über das Ende der
Zeit:
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Que é o conhecimento em si e em última análise? A reflexão filosófica
sobre esta questão, sua discussão tem, é verdade, um fundamento
experimental incontestável (a experiência das sensações, do
pensamento, etc.). Mas se eu a levo mais adiante, necessariamente
chegará um momento em que deva considerar a realidade objetiva de um
lado e a faculdade humana de conhecer de outro; ser-me-á necessário,
em certo momento, colocar a questão assim formulada por Heidegger:
"De onde a enunciação representativa toma a orientação de se dirigir
para o objeto, e de se orientar retamente? (Vom Wesen der Wahrheit,
Frankfurt, 1943, p. 13); donde o sujeito cognoscente tem "a
orientação para o que é"? (idem, p. 21) e onde se encontra o
fundamento interior dessa orientação do conhecimento para o ser? Sem
dúvida, esta questão se situa no centro, na raiz de toda teoria
filosófica do ser: e é uma das formas sob as que aparece, a um certo
momento, o problema da natureza do conbecimento (...) Ora, é evidente
que esta questão que diz respeito aos fundamentos do conhecimento
("donde o conhecimento tira sua orientação para o ente?") não pode
receber resposta à margem de uma afirmação teológica[114].
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Certamente, prossegue Pieper, uma Filosofia que recuse a ordenação à
Teologia limita-se a ser uma ciência especializada (a modo da lógica
formal, por exemplo), ou, sim, volta-se para as raízes dos seus
temas, mas - a pretexto de traçar nítidos limites entre Teologia e
Filosofia - a cada momento dirá: alto! e interromperá o único caminho
que permitiria um real aprofundamento às últimas causas "e já não se
trataria mais de Filosofia no sentido de Platão e de Aristóteles e da
grande tradição ocidental!"[115]
Uma nota final, indicativa das principais passagens onde se
desenvolve o inesgotável tema deste tópico. Pieper expõe criticamente
suas teses sobre a fundamentação teológica de todo filosofar em
diversas obras: no já citado Cap. IX da Verteidigungsrede für die
Philosophie (onde trata também das objeções à Filosofia Cristã
procedentes de Heidegger e Jaspers, bem como do erro de uma exagerada
pretensão de pureza metodológica na Filosofia); no Cap. I de Über das
Ende der Zeit; no artigo "Gibt es eine nicht-christliche
Philosophie?" (in Weistum, Dichtung, Sakrament); no Cap. IV de Was
heisst Philosophieren?, etc. Em Überlieferung e em Über die
platonischen Mythen (máxime nos Caps. V e VI) aborda a abertura para
a Teologia no filosofar de Platão.
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