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Aqui se colocam mais duas importantes características do filosofar.
Sempre em união com a grande tradição do Ocidente[302], Pieper
afirmará a admiração como princípio e o mistério como situação do
filosofar.
É pelo abalo da admiração que surge a questão filosófica, que longe
de afastar-se da realidade quotidiana, volta-se para ela sob um
ângulo não-quotidiano, posto à luz no abalo admirativo. Pieper
exemplifica:
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A cada instante falamos de "meu amigo", "minha mulher", "minha casa",
no sentido de que os "temos" e "possuímos". Mas, de repente começamos
a nos surpreender: Será que "temos" realmente todas essas "posses"?
Podem elas ser "possuídas"? O que significa, em última análise,
"possuir" alguma coisa?[303].
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Rompe-se assim o círculo fechado em que o totalitarismo do mundo do
trabalho pretendia nos encerrar com sua visão definitiva e compacta
da realidade quotidiana, que julga tudo evidente.
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Mas, na verdade, o que é evidente neste mundo? Por será evidente que
existamos? Será evidente que exista alguma coisa como o ver? Mas,
quem está encerrado no dia-a-dia não pode fazer tais perguntas. E não
pode fazê-las porque não consegue (em todo caso, não o consegue
conscientemento e, talvez só semi-inconscientemente) esquecer os fins
utilitários imediatistas. Para quem, pelo contrário, admira, os fins
utilitários emudecem. Para quem foi atingido pelo rosto mais profundo
do mundo, calam-se os fins mais imediatos da vida, mesmo que seja
apenas por esse único momento, em que, abalado, olha para o rosto
pasmoso do mundo. Somente aquele que admira consegue realizar em si a
forma original de relação com o ser, que desde Platão se chama
"teoria", isto é, aceitação puramente receptiva da realidade, não
perturbada por qualquer intervenção da vontade. (...) Teoria só
existe quando o homem não se tornou cego ao maravilhoso, que reside
em que alguma coisa existe[304].
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O aburguesamento do espírito ocorre quando o homem já não é capaz de
se admirar ou precisa do sensacionalismo do estapafúrdio para
provocar em si um Ersatz da admiração, da verdadeira admiração:
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Perceber no comum e no diário aquilo que é incomum e não-diário, o
mirandum (o que suscita admiração), eis o princípio do filosofar.
Nesse ponto, como dizem Aristóteles e S. Tomás, o ato de filosofar se
assemelha ao ato poético; tanto o filósofo como o poeta se ocupam do
maravilhoso, daquilo que suscita e inflama a admiração[305].
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Ao afirmar que Filosofia e Poesia têm muito em comum, Pieper não
deixa de estabelecer a distinção entre ambas (e também com relação a
outros atos que emparelha ao de filosofar, por transcenderem o mundo
do trabalho ou por terem seu princípio na admiração: os abalos
religioso, tanático, artístico e erótico[306]:
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Ainda que não por isso (as semelhanças) se suprima, de modo algum, a
diferença: o modo da Filosofia - diferentemente da poesia - não
consiste em fazer presente algo mediante figuração sensível (som,
ritmo, fluxo, figura) mas em apreender a realidade em conceitos que
não falam à imaginacão[307].
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No entanto, e temos aí uma afirmação reveladora do filosofar de
Pieper: a base comum de orientação ao mirandum e a transcendência em
relação ao mundo do trabalho tornam "o ato filosófico mais próximo e
mais estreitamente aperentado ao poético do que às ciências
particulares exatas"[308].
A consideração da admiração nos leva à do mistério:
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Pois o sentido da admiração é a experiência de que o mundo é mais
profundo, mais amplo e mais misterioso do que pode parecer ao
conhecimento comum. A admiração aponta para a plenitude de sentido do
mistério. A admiração aponta não para o suscitar da dúvida, mas para
o estímulo do reconhecimento de que o ser como ser é inconcebível e
misterioso - de que o próprio ser é um mistério[309].
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A propósito do mistério, recolheremos duas considerações de Pieper
pertinentes a este trabalho: uma, que se desenvolve principalmente em
Unaustrinkbares Licht - onde o tema do mistério se relaciona com o
conceito principal de Criação; outra - procedente de Über das
Verlangen nach Gewissheit - onde se compara o alcance da Filosofia
com o da Ciência.
São, respectivamente, nossos dois próximos tópicos: "Filosofia
Negativa" e "Ciência e Cientificismo".
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