1.3. Posicionamento Filosófico

Já indicamos a extraordinária importância do conceito de filosofar. A análise dos componentes do filosofar permitir-nos-á o acesso à Antropologia pieperiana e o estabelecimento de uma proposta de Filosofia da Universidade conseqüente.

Previamente a essa análise, porém, convém caracterizar o que entendemos por posicionamento filosófico.

Há, numa filosofia qualquer, temas que derivam de outros (a Filosofia da Educação, por exemplo, decorre da Antropologia Filosófica) que, por sua vez, enviam a outros, e assim por diante.

É evidente que a série não pode estender-se ad infinitum e, se nessa filosofia não há petição de princípio, é necessário que se atinja uma região básica que não remete a nenhuma outra e nem recebe seu fundamento "de dentro" da própria Filosofia: é nesse nível profundo de posicionamento que se encontram os componentes do filosofar. Como dissemos alhures:

Pieper nos leva para além das doutrinas, teses, e quase até mesmo dos princípios dos diversos filósofos, para atingir regiões como que pré- filosóficas: aquele modo fundamental e último (que se poderia chamar posicionamento) de encarar os grandes temas da Filosofia: o ser e o conhecimento (...) As questões decisivas para caracterizar esse posicionamento são questões aparentemente inocentes que versam sobre a origem, fim e condições do próprio ato de filosofar[51].

Tendo em conta que é principalmente a esse nível - que poderíamos chamar de ultra-essencial - que se situa o filosofar de Pieper, compreende-se que se apóie ao mesmo tempo em filósofos que se encontram - a outros níveis - em posições contrárias como é o caso de Platão, Aristóteles, S. Agostinho e S. Tomás:

O posicionamento, por estar a nível de atitude fundamental e prévia, permite identificar filósofos que diferem muito ao nível menos profundo das teses ou doutrinas filosóficas. Platão e Aristóteles tem, por exemplo, teorias do conhecimento e concepções da alma bastante divergentes; mas identificam-se no posicionamento, na atitude básica diante da Filosofia[52].

Nessa mesma linha, Pieper, falando das divergências entre S. Agostinho e S. Tomás, comenta:

Que faz o próprio S. Tomás? Ccrtamente ele nunca disse que sua visão do mundo não difere da de S. Agostinho; mas quando certa vez ele se referiu à questão da iluminação divina do conhecimento humano, e, portanto, um dos pontos mais importantes da contenda entre agostinismo e tomismo, ele diz que nesse ponto a divergência entre S. Agostinho e ele não é muito importante: non multum refert (Quaest. disp. de spiritualibus creaturis 10 ad 8)[53].

A ligação de Pieper com S. Tomás dá-se principalmente no posicionamento filosófico, nos grandes temas mais que nos secundários.

Devo dizer - diz Pieper ao afirmar o caráter paradigmático de S. Tomas - que nunca me passou pela cabeça referir a autoridade de S. Tomás a suas doutrinas biológicas (...) a Filosofia da Natureza é o ponto mais fraco de S. Tomás, "He has no heart for the task", diz Gilson, o seu coração não está nessa tarefa; guarda sua energia intelectual para outros assuntos[54].

E é precisamente no que se refere a estes "outros assuntos" que Pieper cita e endossa a conhecida sentença de Alfred North Whitehead a propósito de Platão (falar de Platão - neste e em tantos outros contextos é falar de S. Tomás, ou Aristóteles, ou S. Agostinho), que afirma ser a Filosofia ocidental uma coleção de notas de pé-de-página ao mestre de Atenas[55].

Dado que Pieper também assume aquela tomada de posição conciliadora de S. Tomás (que, nos dois casos, é algo bem diferente de um "ecletismo, pois a unidade não se dá por "média" entre doutrinas antagônicas, mas atingindo um nível profundo onde realmente desaparecem as diferenças), não será de estranhar que reconheça na grandiosa figura de Boécio - entre tantos outros aspectos -, também o valor dessa atitude.

Num comentário a Aristóteles[56], em que Boécio anuncia seu ousado projeto de traduzir ao latim "omne Arístotelis opus, quodcumque in manus venerit... omnesque Platonis dialogos" todas as obras de Platão e de Aristóteles, nessa mesma passagem

Boécio demonstrará claramente até que ponto Platão e Aristóteles tinham sido do mesmo parecer nas questões filosóficas fundamentais (...in plerisque quae sunt philosophia maxime consentire) (...) Já em torno do ano 500, Boécio foi capaz de apresentar um Aristóteles platônico como o apresentaram como autêntico, em nosso tempo, as pesquisas de Werner Jaeger[57].

Tendo indicado que os pressupostos da Filosofia estão muito ligados à questão "o que é filosofar?", deter-nos-emos a seguir em alguns deles.