2.5. Filosolar e Teologia

"Conexão entre Filosofia e Teologia" é um ponto destacado unanimemente pelos que analisam sua obra, como uma das principais características de Pieper.

Destacamos dois depoimentos de insignes pensadores: Hans Urs von Balthasar e Jacques Maritain. Do primeiro, recolhemos estas palavras: "Pieper destemidamente celebrou o inevitável enlace que 'desde sempre'[100] existiu entre Filosofia e Teologia"[101].

Maritain, discorrendo sobre a Filosofia da História, e afirmando a especial necessidade de, nesse caso, se recorrer à Teologia, diz:

Para confirmar esses pontos de vista, seja-me permitido mencionar dois livros de eminentes autores, cujas perspectivas são diferentes da minha (bem diferente no segundo caso[102]) e cuja concordância com minhas próprias conclusões é do mais alto interesse para mim.

Refiro-me, em primeiro lugar, ao livro de Josef Pieper: Über das Ende der Zeit. Eine geschichtsphilosophische Meditation. Pieper, a meu ver, submete à Teologia o opus philosophicum, em sua integridade[103].

Como se realiza essa conexão? Para esclarecer esta questão, seguiremos inicialmente o Cap. IX da Verteidigungsrede für die Philosophie, uma de suas últimas formulações ao tema.

É ponto pacífico que o filosofar não pode deixar de considerar os resultados das ciências. Ninguém diria que a Filosofia estuda a "natureza metafísica" do homem e, portanto, não lhe interessa o que as ciências (biológicas, sociais, do comportamento etc.) informam a respeito do ser humano.

A questão que Pieper coloca, porém, é esta:

Forma parte do autêntico filosofar a inclusão da consideração de informações sobre o mundo e a existência, que não procedem da experiência ou de argumentos de razão, mas de um setor que convém designar mediante nomes, digamos, como "revelação", "sagrada tradição", "fé", "teologia"? Podem-se acolher no filosofar tais asserções não demonstráveis empírica e racionalmente?[104]

Ao que responde: "Isto não só é possível e legítimo, mas até mesmo necessário"[105].

Esclarecendo o verdadeiro sentido da posição de Pieper, diremos, inicialmente, que ele se refere ao filosofar, à pessoa que filosofa e não à Filosofia entendida como matéria.

Como diz em Was heisst Philosophieren?:

É de Fichte a afirmação: "A Filosofia que se escolhe depende do homem que se é". A formulação não é muito feliz, pois não se trata de "escolher" uma Filosofia. Em todo caso é claro e acertado o que o autor pretende dizer com isso. No próprio campo do saber natural as coisas não se processam de modo que baste forçar um pouco a cabeca para entrar na posse de uma verdade. Isso vale mais ainda quando essa verdade se relaciona com o sentido do mundo e da vida. Aí, com maior razão, não basta ter uma "boa cabeça", é preciso ser algo como homem, como pessoa[106].

E uma pessoa - tomada em sua totalidade, diríamos "existencial" - ao filosofar, ao fazer sua "opção" filosófica, já antes (trata-se de um pré-suposto) possui uma interpretação da realidade, condição de todo o filosofar: na Teologia.

E especialmente aqui vale a distinção entre filosofar e Filosofia:

Não se trata aqui da Filosofia, mas (...) do filosofar existencial e da pessoa que filosofa. Não se trata portanto de se, numa exposição sistemática dos problemas de conteúdo da Filosofia, devem ou não intervir, por exemplo, teses teológicas[107].

É necessário salientar que não se trata de invasão no campo da Teologia, assim como não se trata de fazer Física quando o filósofo, perguntando-se pelo ser da matéria, utiliza resultados da Mecânica Quântica.

Evidentemente uma questão decisiva no caso (e cuja resposta afirmativa representa um dos explícitos pressupostos pieperianos de que fala T. S. Eliot), é a de saber se se pode dar um falar de Deus aos homens e se tal revelação possa ser discernível por nós[108].

Consideremos agora a famosa fórmula "philosophia ancilla theologiae" (a Filosofia é serva da Teologia), que com tanta freqüência (e pelas duas partes) tem sido mal compreendida. Na realidade, segundo Pieper, ela não indica outra coisa que a necessidade de mútua colaboração[109].

Pieper esclarece no Cap. VII de Thomas von Aquin: Leben und Werk que a Filosofia não "serve" a nada porque ela tem a ver com a sabedoria e, portanto, não é ordenada mas é ela que ordena: "sapientem (...) non decet ordinari ab alio, sed ipsum potius alios ordinare"[110]. Esta é uma das notas que distinguem a Filosofia das ciências particulares (é claro que a ciência médica é serva da práxis curativa, a Física e a Química servem a fins técnicos, econômicos, etc.) À capciosa pergunta: "Então, a Filosofia não serve sequer à Teologia?", Pieper responde que o "tomar a serviço" da Filosofia pela Teologia e algo único e incomparável, com estrutura totalmente diferente da do serviço que as ciências prestam à prática. A Filosofia dirige-se à sabedoria em si mesma, tal como - de um modo mais elevado - o faz a Teologia. Ou seja, a Filosofia - quando se relaciona com a Teologia - não está se subordinando a um fim situado fora de si mesma; antes refere-se ao mesmo "saber sobre as últimas causas" que se realiza, de modo distinto, na fé e na Teologia.

Mútua colaboração, dizíamos, da qual a Teologia se beneficia pela manutenção de sua abertura para o todo da realidade ao invés de sucumbir à tentação "de uma postura pretensamente autárquica"[111].

Uma dimensão essencial dessa colaboração foi lúcida e acertadamente condensada por Gilberto de Mello Kujawski no artigo " A Volta de S. Tomás" (onde freqüente e expressamente cita o Scholastik e o Thomas von Aquin - ed. espanhola - de Pieper):

Para o doutor angélico - comenta Pieper[112] - a realidade mundana natural só se pode fundar e justificar em último termo, teologicamcnte, ou seja, enquanto realidade criada por Deus. Precisamente porque há uma Criação, existem seres e coisas com natureza própria, que não só estão aí, existem por si mesmas, mas também podem atuar e produzir a partir de si" (Pieper, p. 354). Em segundo lugar - acrescenta o citado autor - S. Tomás afirma que as coisas todas, por serem criadas por Deus, são boas, e por isso o pecado não muda essencialmente a estrutura do mundo. E em terceiro lugar, se o Logos se fez "carne", como reza o Evangelho de São João, será preciso descartar a idéia maniquéia de que o corpo provém do mal. A realidade mundana natural e a realidade humana corpórea são boas em si mesmas, e quem despreza a perfeição das coisas, despreza a perfeição da virtude divina.

Em suma, a grandeza e a genialidade de S. Tomás, seu título de permanência na história do pensamento justifica-se pela dupla façanha que conseguiu realizar, uma complementar da outra: 1º) legitima a natureza e o mundo por intermédio da Teologia; 2º) oferece à consideração da teologia o mundo e a natureza, em sua imensa amplidão e variedade. (...) E para resumir S. Tomás, Pieper emprega a fórmula definitiva: "mundanidade teologicamente fundada, e Teologia aberta ao mundo"[113].

O que mais nos importa aqui são, no entanto, os benefícios que a Filosofia haure do contato com a Teologia. Dois deles são apontados por Pieper no, há pouco citado. "Die mögliche Zukunft"...: enriquecimento e inquietude.

E exemplifica com um tema de que nos ocuparemos no Cap. 4: a dupla face do conceito de Criação. Se a pessoa que filosofa crê, crê que o mundo procede do Logos divino e, por isso, os entes são, ao mesmo tempo, cognoscíveis e inabarcáveis pelo homem, recebe, com isso, uma fecunda linha de investigação da realidade que, de modo algum, paralisa ou obstrui a pesquisa filosófica. Pelo contrário.

Será que, no que se refere a esses temas fundamentais de qualquer filosofar, a ausência de pressupostos (Voraussetzungslosigkeit) apregoada por tantos filósofos não consistirá antes, como diz Eliot, em ocultar seus pressupostos de si mesmos e do leitor?

Ainda quanto ao tema da fundamentação do conhecimento, detenhamo-nos no contundente questionamento que Pieper oferece em Über das Ende der Zeit:

Que é o conhecimento em si e em última análise? A reflexão filosófica sobre esta questão, sua discussão tem, é verdade, um fundamento experimental incontestável (a experiência das sensações, do pensamento, etc.). Mas se eu a levo mais adiante, necessariamente chegará um momento em que deva considerar a realidade objetiva de um lado e a faculdade humana de conhecer de outro; ser-me-á necessário, em certo momento, colocar a questão assim formulada por Heidegger: "De onde a enunciação representativa toma a orientação de se dirigir para o objeto, e de se orientar retamente? (Vom Wesen der Wahrheit, Frankfurt, 1943, p. 13); donde o sujeito cognoscente tem "a orientação para o que é"? (idem, p. 21) e onde se encontra o fundamento interior dessa orientação do conhecimento para o ser? Sem dúvida, esta questão se situa no centro, na raiz de toda teoria filosófica do ser: e é uma das formas sob as que aparece, a um certo momento, o problema da natureza do conbecimento (...) Ora, é evidente que esta questão que diz respeito aos fundamentos do conhecimento ("donde o conhecimento tira sua orientação para o ente?") não pode receber resposta à margem de uma afirmação teológica[114].

Certamente, prossegue Pieper, uma Filosofia que recuse a ordenação à Teologia limita-se a ser uma ciência especializada (a modo da lógica formal, por exemplo), ou, sim, volta-se para as raízes dos seus temas, mas - a pretexto de traçar nítidos limites entre Teologia e Filosofia - a cada momento dirá: alto! e interromperá o único caminho que permitiria um real aprofundamento às últimas causas "e já não se trataria mais de Filosofia no sentido de Platão e de Aristóteles e da grande tradição ocidental!"[115]

Uma nota final, indicativa das principais passagens onde se desenvolve o inesgotável tema deste tópico. Pieper expõe criticamente suas teses sobre a fundamentação teológica de todo filosofar em diversas obras: no já citado Cap. IX da Verteidigungsrede für die Philosophie (onde trata também das objeções à Filosofia Cristã procedentes de Heidegger e Jaspers, bem como do erro de uma exagerada pretensão de pureza metodológica na Filosofia); no Cap. I de Über das Ende der Zeit; no artigo "Gibt es eine nicht-christliche Philosophie?" (in Weistum, Dichtung, Sakrament); no Cap. IV de Was heisst Philosophieren?, etc. Em Überlieferung e em Über die platonischen Mythen (máxime nos Caps. V e VI) aborda a abertura para a Teologia no filosofar de Platão.