CAPÍTULO VIII

Depois do Concílio de Trento o Magistério da Igreja só voltou a fazer intervenções de importância sobre matéria Eucarística no século XX. Elas se iniciaram com a Encíclica Mirae Caritatis de Leão XIII de 28 de maio de 1902; não muito tempo depois vieram uma série de pequenos mas decisivos decretos de Pio X sobre o assunto e, finalmente, pouco antes do Concílio Vaticano II, Pio XII publicou a Mediator Dei, uma imensa encíclica sobre a Sagrada Liturgia.

Da Encíclica Mirae Caritatis pouco temos aqui a dizer; diverso, porém, é o caso dos decretos de Pio X, os quais iniciaram dentro da Igreja um movimento de renovação litúrgica que culminou, antes do Concílio Vaticano II, com a Encíclica Mediator Dei de Pio XII.

Os decretos de Pio X tiveram por origem o fato de que no fim do século passado e no início do presente houve sérias controvérsias entre os católicos a respeito de se seria correto que os fiéis comungassem diariamente e sobre quando as crianças deveriam ser admitidas à primeira comunhão.

Estes dois problemas tinham, por sua vez, profundas raízes históricas. A piedade eucarística entre os leigos havia diminuído sensivelmente desde os primórdios do Cristianismo, um fato de que o próprio São Tomás de Aquino dá testemunho na Summa Theologiae. Diz ele, de fato, na Questão 80 da Terceira Parte:

"Na Igreja primitiva, quando mais vigorava a devoção da fé cristã, tinha sido estabelecido que os fiéis comungariam diariamente, conforme consta dos escritos do Papa Anacleto.

Porém, depois, diminuído o fervor da fé, o papa Fabiano condescendeu

`que se não mais freqüentemente, pelo menos três vezes ao ano todos comungassem, a saber, na Páscoa, no Pentecostes e na Natividade do Senhor'.

Posteriormente, porém,

`por causa da abundância da iniquidade que esfriou em muitos a caridade',

Mt. 24, 12

estabeleceu Inocêncio III que

`pelo menos uma vez ao ano, a saber, na Páscoa, os fiéis comungassem'".

S.T. IIIa.
Q.80 a.10 ad 5

Na mesma Questão 80 diz São Tomás que seria útil e louvável receber cotidianamente a Eucaristia, se alguém se vir a si mesmo cotidianamente preparado para recebê-la. Citando Santo Agostinho, diz:

"Recebe o que diariamente a ti se oferece, mas vive de tal maneira que cotidianamente o mereças receber".

Mas o fato é que já na Idade Média a comunhão diária entre os fiéis leigos era rara, e mais rara ainda na época da Reforma. Nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, escritos nesta época, ele assim se expressa:

"Para sentirmos verdadeiramente com a Igreja, devemos louvar muito confessar-se e receber o Santíssimo Sacramento uma vez ao ano, e muito mais cada mês, e muito melhor de oito em oito dias, com as condições requeridas e devidas".

Neste texto Santo Inácio não cita a comunhão diária para os leigos, que era vista com reserva por parte do clero. Embora os decretos do Concílio de Trento que vieram logo em seguida não justificassem semelhante atitude, após o mesmo surgiu dentro da Igreja o movimento Jansenista que agravou mais ainda este mal.

Este movimento tomou seu nome do bispo Cornélio Jansens que faleceu em 1638 na Bélgica logo após ter terminado uma obra imensa sobre a doutrina de Santo Agostinho, publicada postumamente com uma declaração do autor de que aceitaria quaisquer correções que a Igreja no futuro julgasse que lhe deveriam ser feitas. Não obstante o seu tamanho e sua complexidade, a obra teve no início uma grande repercussão. Condenada logo a seguir pelas autoridades da Igreja, encontrou entretanto adeptos para defendê-la. Resultado disto foi o reavivamento de uma polêmica que havia se acalmado há não muito tempo na Europa daquele tempo sobre a graça e o livre arbítrio. Acendidos que foram novamente os ânimos, tão rapidamente como havia entrado em cena, o livro de Jansens, que na verdade poucos haviam lido, deixou de despertar interesse e parou de ser editado, mas a controvérsia que ele havia suscitado continuou devido a uma série de outros autores jansenistas que surgiram e que publicaram obras sobre o livro do falecido bispo ou assuntos relacionados com a polêmica que daí tinha se originado.

Uma destas obras foi "A Comunhão Freqüente", de Antonio Arnauld. Nele o autor tentava mostrar como a Igreja deveria retornar à prática da Igreja primitiva que segundo ele se opunha à comunhão freqüente; que a Eucaristia é recompensa da virtude e não seu alimento; que não é suficiente a absolvição sacramental para a comunhão digna, sendo necessário também uma penitência condigna dos pecados cometidos antes que os fiéis se aproximassem da mesa eucarística da qual deveriam ser afastados todos aqueles em quem não vivesse um amor puríssimo a Deus. Colocações como estas e outras mais ainda foram condenadas na época pela Igreja; mas, à diferença dos líderes da Reforma, os jansenistas aceitavam as sentenças da Igreja. Em vez de cessarem de ensinar suas doutrinas, porém, a cada condenação voltavam a apresentá-las sob novo arcabouço teórico.

Tais doutrinas sobre a comunhão se difundiram em extensão e profundidade, e dividiram não só os leigos, como também o clero. Na França o livro de Arnauld sobre a freqüência da comunhão acabou se tornando o texto mais influente da controvérsia jansenista. Quanto aos frutos, o resultado prático foi o de ter-se feito sentir de tal modo a majestade divina que o povo se afastou dos Sacramentos. "Somos indignos de nos aproximarmos de Deus", diziam. "Necessitaríamos para isto de uma consciência puríssima. É um desrespeito pretender comungar com freqüência".

Vimos como o Concílio de Trento já havia antes disso exortado que "os fiéis presentes em cada missa comunguem não apenas pelo afeto espiritual, mas também pela recepção sacramental da Eucaristia". Não obstante palavras tão claras, as sementes espalhadas pelo Jansenismo fizeram com que ainda no século XIX a Igreja estivesse dividida a respeito de se a prática da comunhão freqüente fosse uma coisa possível.

Foi o Papa Pio X que no início do século XX definiu de uma vez para sempre a questão e começou a chamar novamente a atenção dos fiéis para a liturgia como ponto central da vida cristã.

As intervenções de Pio X sobre este assunto estão contidas no decreto Tridentina Synoda, no Motu Proprio Tra le Sollecitudini de 22 de novembro de 1903, nas decisões das Sagradas Congregações do Concílio e dos Sacramentos de 20 de dezembro de 1905, 15 de setembro de 1906, 7 de dezembro de 1906 e no decreto da Congregação dos Sacramentos Quam Singulari de 8 de agosto de 1910. Indiretamente e quanto ao contexto, também na Encíclica Acerbo Nimis de 15 de abril de 1905 sobre o Ensino Religioso.

Em uma Encíclica sobre a vida de São Carlos Borromeu, a Editae Saepe de 1910, Pio X fêz suas as palavras de São Carlos que resumiam seu programa na questão eucarística:

"São dignas de serem recordadas aquelas palavras com que São Carlos exortava com veemência os pregadores e demais oradores sagrados para que pregassem a volta ao antigo costume da comunhão freqüente, o qual foi tratado por nós no decreto Tridentina Synoda. Os párocos e os pregadores, diz São Carlos, com a maior freqüência possível exortem ao povo para os saudabilíssimos costumes do uso freqüente da Sagrada Eucaristia, trazendo para isto os exemplos e os costumes da Igreja primitiva, as vozes dos mais autorizados padres, e a doutrina riquíssima neste ponto do Catecismo Romano e, finalmente, a resolução do Concílio de Trento, que deseja que os fiéis comunguem em cada Missa não só pelo afeto espiritual senão também pela recepção sacramental da Eucaristia. Advirta-se também ao povo, porém, quando se aconselha o uso freqüente dos santos sacramentos, de quão grande perigo e dano seja acercar-se indignamente à Sagrada Mesa daquele divino manjar".

As intervenções de Pio X em matéria litúrgica tinham, porém, começado vários anos antes, com o Motu Proprio Tra le Sollecitudini de 1903. Neste documento, que marca também o início do movimento de renovação litúrgica na Igreja, chamava Pio X a atenção dos fiéis para que

"a primeira e principal fonte do verdadeiro espírito cristão está na participação ativa dos sacrossantos mistérios da Igreja".

Em 20 de dezembro de 1905 surgiu o primeiro dos decretos fundamentais de Pio X em matéria eucarística. Para entender corretamente certas afirmações nele feitas, deve-se observar que este decreto toma a Eucaristia apenas quanto ao aspecto de refeição espiritual, e não enquanto sacrifício. Com este decreto Pio X, através da Sagrada Congregação do Concílio, punha um fim à discussão em torno da comunhão freqüente:

"O Sagrado Concílio de Trento, considerando as inefáveis riquezas de graças que recebem os fiéis pela recepção da Santíssima Eucaristia, declarou na sua Vigésima Segunda Sessão:

`Desejaria este Sacrossanto Sínodo que os fiéis presentes em cada Missa não comungassem apenas pelo afeto espiritual, mas também pela recepção sacramental da Eucaristia'.

Estas palavras manifestam abertamente o desejo da Igreja de que todos os fiéis se aproximem cotidianamente deste banquete celeste, para obterem por meio dele mais abundantes frutos de santificação.

O desejo de Jesus Cristo e da Igreja é que todos os fiéis se aproximem diariamente do banquete sagrado, cuja primeira finalidade não é garantir a honra e a reverência devidas ao Senhor, nem tampouco servir de prêmio ou recompensa para a virtude dos fiéis, mas sim fazer com que os fiéis, unidos a Deus por meio deste Sacramento, possam encontrar nele força para vencer os desejos da carne, alcançar o perdão das culpas leves cotidianas e evitar os pecados mais graves aos quais a fragilidade humana está inclinada. É por isto que o mesmo Concílio de Trento chama a Eucaristia de

`antídoto pelo qual nos libertamos das culpas cotidianas e nos preservamos dos pecados mortais'.

Os primeiros cristãos, compreendendo corretamente esta vontade divina, acorriam cotidianamente a esta mesa de vida e fortaleza.

`Perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão e na fração do pão',

At. 2, 42

o que se realizou também nos séculos posteriores, conforme nos testemunham os santos padres e os escritores eclesiásticos, não sem grande emolumento da perfeição e da santidade.

Diminuindo, porém, o fervor da piedade, e posteriormente grassando em todo o lugar o contágio jansenista, começou-se a disputar sobre as disposições necessárias para a comunhão cotidiana e freqüente. Estas disputas fizeram com que poucos fossem considerados dignos de receber a Santíssima Eucaristia diariamente, contentando-se os outros de recebê-la alguns uma vez ao ano, outros ao mês, ou no máximo uma vez por semana. Este veneno jansenista, que sob as aparências da honra e veneração devidas à Eucaristia, contaminou também as almas dos bons, não desapareceu de todo.

Não faltaram porém outros homens, dotados de doutrina e piedade, que ensinavam um acesso mais fácil a este costume tão salutar e aceito por Deus, ensinando, pela autoridade dos Padres, não existir nenhum preceito da Igreja exigindo maiores disposições para a comunhão cotidiana do que para a comunhão semanal ou mensal; mas, ao contrário, serem os frutos da comunhão cotidiana muito mais ricos do que a da semanal ou mensal.

Muitos pedidos de homens eminentes e de pastores de almas têm chegado a Sua Santidade para que se dignasse dirimir estas questões, fazendo com que este costume tão salutar e desejado por Deus não apenas não diminua entre os fiéis, como também aumente e se propague em todo lugar.

A Sagrada Congregação do Concílio, pois, ouvida Sua Santidade, declara e estabelece que seja manifesto a todos os fiéis de qualquer ordem e condição que a comunhão freqüente e diária é muitíssimo desejada por Cristo Nosso Senhor e pela Igreja Católica, de tal modo que ninguém que esteja em estado de graça e se aproxime com alma reta e piedosa à Sagrada Mesa possa ser proibido de recebê-la. A reta intenção da alma consiste em que quem se aproxime da Sagrada Mesa não o faça movido pelo costume, pela vaidade ou por razões humanas, mas para satisfazer à vontade divina, unir-se mais estreitamente a Ele pela caridade, e receber o auxílio deste divino remédio para suas enfermidades e defeitos. É suficiente para a comunhão freqüente e cotidiana que os fiéis estejam livres de pecados mortais e simultaneamente com o propósito de nunca mais vir a cometê-los. Como, porém, os Sacramentos da Nova Lei, ainda que produzam o seu efeito ex opere operato, todavia produzem maiores efeitos quanto maiores sejam as disposições daqueles que os recebem, deve-se por isto mesmo procurar que a Sagrada Comunhão seja antecedida de uma diligente preparação e seguida de uma conveniente ação de graças, segundo as forças, condições e ofício de cada um.

Todas estas coisas, relatadas a Sua Santidade Pio X pelo secretário desta agrada Congregação, foram ratificadas por Sua Santidade, que as confirmou e ordenou que fossem publicadas, não obstante quaisquer disposições em contrário.

Roma,
20/12/1905"

Com este decreto acabava a discussão em torno da comunhão freqüente. Ficava, porém, ainda pendente se a comunhão freqüente se estendia também às crianças. O decreto do ano seguinte, de 15 de setembro de 1906, estabelecia que a comunhão freqüente não era apenas recomendada aos maiores, mas também às crianças, para defesa de sua inocência e piedade.

Ficava ainda para resolver a mais espinhosa das questões, sobre a qual pesavam as objeções mais difíceis. A comunhão freqüente era desejável, ela deveria estender-se também às crianças, mas a partir de que idade? A resposta veio a 8 de agosto de 1910, com o Decreto Quam Singulari da Sagrada Congregação do Concílio, o mais belo dos decretos eucarísticos de Pio X.

Entre outras coisas, lia-se no Decreto Quam Singulari o que se segue:

"As páginas do Evangelho demonstram claramente com QUÃO SINGULAR amor Cristo amou às crianças. Com elas se comprazia em conversar; costumava impor-lhes as mãos; as abraçava e as abençoava. E quando os discípulos as afastavam dEle, os repreendia, dizendo que delas era o Reino dos Céus. Quanto fosse o apreço e a estima com que considerava a inocência e a simplicidade de seus espíritos claramente o significou quando em certa ocasião, chamando a si uma criança, a colocou entre os seus discípulos, dizendo:

`Em verdade eu vos digo, que se não vos tornardes e não vos fizerdes semelhantes às crianças não entrareis no Reino dos Céus'.

A Igreja Católica, já desde os seus princípios, recordando estes exemplos, procurou levar as crianças a Cristo, por meio da comunhão eucarística. O Quarto Concílio de Latrão, em 1215, e o Concílio de Trento prescrevem a obrigação de comungar ao menos uma vez por ano a todos os fiéis assim que chegarem à idade da razão. Assim, por força destes decretos ainda vigentes, todos os cristãos estão obrigados ainda hoje, assim que chegarem ao uso da razão, a aproximarem-se ao menos uma vez por ano ao Sacramento da Eucaristia.

Porém, ao se considerar qual fosse esta idade do uso da razão foram-se introduzindo, no curso do tempo, não poucos e deploráveis erros. Alguns exigiam para a primeira comunhão os dez anos, outros doze, e outros quatorze e ainda mais, proibindo-a às crianças de menos idade.

Este costume, com a aparência de respeito ao Augusto Sacramento, foi causa de muitos males, pois, separada dos braços de Cristo a inocência da criança, esta crescia sem nenhuma disciplina de vida interior, de onde se seguia que, destituída a tenra idade de tão valiosa defesa, caía nos vícios antes de saborear os Santos Mistérios. E ainda que depois se preparem com mais diligente instrução à primeira comunhão e com mais cuidadosa confissão, sempre será para se lamentar a perda da primeira inocência, o que talvez teria podido se evitar recebendo a Sagrada Eucaristia ainda nos primeiros anos. Todos estes danos causam os que insistem mais do que o justo na preparação para a primeira comunhão, não advertindo que estes cuidados procedem de erros jansenistas, que crêem que a Santíssima Eucaristia é prêmio das virtudes, e não remédio para a fragilidade humana. Não se vê razão justa para exigir uma extraordinária preparação às crianças que se encontram na felicíssima idade da inocência entre tantos perigos e tentações. Não de outra maneira entenderam o Decreto Lateranense os principais intérpretes e a prática dos fiéis daquele tempo. Temos, ademais, um testemunho de notável autoridade, o de Tomás de Aquino, que diz que

`quando as crianças começam a ter algum uso da razão, de modo que possam conceber devoção à Eucaristia, então se lhes pode dar este Sacramento'.

De tudo isto se conclui que a idade da razão para a comunhão é aquela em que a criança sabe distinguir o pão Eucarístico do pão comum, para poder aproximar-se com devoção ao altar. Não se requer, portanto, perfeito conhecimento das coisas da fé, nem pleno uso da razão. Diferir, pois, a comunhão, e esperar uma idade mais adiantada para recebê-la é algo que deve ser reprovado absolutamente, e esta não é a primeira vez que a Sé Apostólica o tem feito.

Ponderadas todas estas coisas, a Sagrada Congregação da Disciplina dos Sacramentos, com o fim de conseguir que as crianças desde os seus tenros anos se unam a Jesus Cristo, vivam de sua mesma vida e encontrem refúgio contra os perigos da corrupção, julga oportuno estabelecer que para a primeira comunhão não é necessário um conhecimento pleno e perfeito da doutrina cristã. A criança irá aprendendo depois e por etapas todo o Catecismo à medida em que se vá desenvolvendo a sua inteligência. O conhecimento que se exige de uma criança para que se prepare convenientemente à primeira comunhão é aquele pelo qual ela conheça, segundo as suas capacidades, os mistérios da religião cristã que são necessários para a salvação com necessidade de meio (necessidade de meio: veja nota explicativa) e que, ademais, distinga o pão Eucarístico com a devoção que a sua idade permita. A obrigação do preceito de comungar que obriga à criança recai principalmente sobre aqueles que devem cuidar dela, isto é, sobre seus pais, seu confessor, seus mestres e seu pároco. Ademais, os que cuidam das crianças devem procurar com toda a diligência que depois da primeira comunhão se aproximem com freqüência, se possível cada dia, da Sagrada Mesa, segundo que é o desejo de Jesus Cristo e da Santa Mãe Igreja, e que o façam com a devoção de alma própria de sua idade. Recorde-se, ademais, àqueles a quem o incumbem, da gravíssima obrigação que têm de cuidar que as crianças continuem assistindo à catequese pública; e se isto não é possível, providenciem de outro modo à sua instrução religiosa.

Estas coisas decretadas pela Sagrada Congregação as aprovou nosso Santíssimo Padre o papa Pio X, o qual mandou ademais que todos os bispos notificassem este decreto não apenas aos párocos e ao clero, mas também ao povo, ao qual quer que seja lido todos os anos em língua vernácula. Todos os bispos deverão, ademais, a cada cinco anos, prestar contas à Santa Sé sobre a observância deste decreto".

Sabe-se que Sua Santidade não se limitou à promulgação destes decretos para facilitar a Eucaristia às crianças; muitas vezes e nas mais diversas circunstâncias mostrou pelo seu exemplo o que ele entendia concretamente pela idade em que as crianças já podiam receber a Cristo sacramentado. Nas palavras de seu biógrafo,

"sabia-se que o Papa aproveitava pessoalmente todas as ocasiões para dar o mais cedo possível a comunhão aos pequenos. Fizera-o em Veneza, quando era arcebispo, e fazia-o no Vaticano, quando as audiências lhe proporcionavam oportunidade para isto, antes e depois do decreto Quam Singulari".

"Uma dama inglesa",

continua o biógrafo,

"apresentou-lhe o filho, pedindo-lhe a bênção.

- Quantos anos tem?

- Quatro, Santidade, e espero que em breve possa receber a comunhão".

O Papa então travou um diálogo com o menino:

- "A quem vais receber na Comunhão?

- A Jesus Cristo.

- E Jesus Cristo, quem é?

- É Deus, respondeu o menino, sem titubear.

- Traga-me este menino amanhã, disse o Papa à mãe, e eu próprio lhe darei a comunhão".

J.M. Javierre: Pio X;
Coimbra, 1959, p. 274

Exemplos como este, numerosos por parte de Pio X, juntamente com os seus decretos eucarísticos, passaram logo em seguida para o Código de Direito Canônico, o primeiro da História, que estava sendo compilado nesta época. Promulgado em 1917, mas elaborado em sua quase totalidade durante o pontificado de Pio X, o Código dizia no Cânon 12 que

"as leis meramente eclesiásticas não obrigam aos que não completaram sete anos, mesmo que tenham alcançado o uso da razão, a não ser que expressamente se declare diferentemente no Direito".

Com isto ficava estabelecido que a obrigação de assistir à missa aos domingos só se iniciava com os sete anos completos. Mas, quanto à comunhão anual, o Cânon 859 estabelecia que

"todo fiel, de um ou outro sexo, depois que tiver alcançado o uso da razão, deve receber o sacramento da Eucaristia pelo menos uma vez por ano na época da Páscoa".

Com isto as crianças ficavam obrigadas ao preceito da comunhão anual mesmo antes dos sete anos, desde que tivessem alcançado o uso da razão. Esta obrigação, porém, de modo geral recaía sobre os pais, conforme o Cânon 860 que afirmava que

"a obrigação do preceito de receber a comunhão que tem os impúberes recai também, e de uma maneira especial, sobre aqueles que devem cuidar dos mesmos, isto é, pais, tutores, confessores, professores e párocos".

O Cânon 854 ainda acrescentava:

"Para que possa e deva administrar-se o sacramento da Eucaristia às crianças em perigo de morte, basta que saibam distinguir o corpo de Cristo do alimento comum e adorá-lo reverentemente" (§ 2).

"Fora do perigo de morte, merecidamente se exige um conhecimento mais pleno da doutrina cristã e uma preparação mais cuidadosa, a qual consiste em que as crianças conheçam, segundo a sua capacidade, os mistérios necessários para a salvação com necessidade de meio e se aproximem para receber a Santíssima Eucaristia com devoção proporcional à sua tenra idade" (§ 3).

"O pároco tem o dever de procurar que os que já chegaram ao uso da razão e estejam suficientemente dispostos sejam alimentados o quanto antes com esse divino manjar"(§ 5).

Em 1983 João Paulo II revogou o Código de Direito Canônico de 1917, promulgando outro atualmente vigente. Neste novo código, porém, as mesmas disposições de Pio X são mantidas, de modo que a disciplina da comunhão das crianças continua vigorando até os dias de hoje.

No Cânon 11 declara-se que a obrigação da missa dominical somente se inicia aos sete anos de idade, pois nele lemos que

"Estão obrigados às leis meramente eclesiásticas os batizados na Igreja Católica que gozem de suficiente uso da razão e, a não ser que outra coisa expressamente se estabeleça no Direito, tenham completado sete anos de idade".

Mas a obrigação da comunhão anual, cuja responsabilidade cai primeiramente sobre os pais da criança, se inicia não aos sete anos, mas com a idade da razão. É o que se lê no Cânon 914 do novo Código:

"Primeiramente os pais, ou quem fizer as suas vezes, tem o dever de procurar que as crianças, ao atingirem o uso da razão, se preparem convenientemente e recebam o quanto antes este divino alimento, feita previamente a confissão sacramental".

Quase repetindo as mesmas palavras do antigo Cânon 845, o Cânon 913 do novo código diz o seguinte:

"Pode administrar-se a Santíssima Eucaristia às crianças que se encontrem em perigo de morte, se puderem discernir o corpo de Cristo do alimento comum e comungar com reverência" (§ 2).

Fora do perigo de morte,

"para que a Santíssima Eucaristia possa ser administrada às crianças, requer-se que elas possuam conhecimento suficiente e preparação cuidadosa, de forma que possam aperceber-se, segundo sua capacidade, do mistério de Cristo e receber o corpo do Senhor com fé e devoção"(§ 1).

Conforme pode ser deduzido da explicação contida na nota já mencionada no final deste capítulo sobre a distinção entre necessidade de meio e necessidade de preceito, a expressão do antigo Cânon 845, "uma preparação mais cuidadosa, a qual consiste em conhecer os mistérios necessários para a salvação com necessidade de meio", e a do novo Cânon 913, "uma preparação cuidadosa, de forma que possam aperceber-se do mistério de Cristo", são equivalentes.

Que o espírito dos decretos de Pio X estava conduzindo, nesta matéria, a legislação pós conciliar sobre a qual se baseou o novo Código foi coisa confirmada por algumas declarações oficiais pós conciliares.

No adendo ao Diretório Catequístico Geral de 11 de abril de 1971 da Sagrada Congregação para o Clero citava-se o decreto Quam Singulari, afirmando-se que

"deve-se considerar como a idade adequada para receber estes sacramentos", (isto é, a penitência e a eucaristia), "como sendo aquela que nos documentos da Igreja é chamada como idade da razão ou da discrição. Esta idade é, conforme o decreto Quam Singulari, tanto para a confissão como para a comunhão, aquela em que a criança começa a raciocinar, isto é, aproximadamente o sétimo ano, pouco mais ou pouco menos. A partir deste momento se inicia a obrigação de satisfazer a ambos os preceitos da confissão e da comunhão".

Diretório
"Ad Normam Decreti"
11/04/71, Addendum, nº1

Dois anos depois a Sagrada Congregação para a Disciplina dos Sacramentos e a Sagrada Congregação para o Clero publicaram uma declaração conjunta em que se lia:

"O Santo Pontífice Pio X, no decreto Quam Singulari de 8 de agosto 1910, estabeleceu que as crianças recebessem os sacramentos da penitência e da Eucaristia a partir da idade da discrição. Este preceito, colocado em prática em toda a Igreja, trouxe e ainda traz muitos frutos de vida cristã e de perfeição espiritual.

... As Sagradas Congregações para a Disciplina dos Sacramentos e para O Clero, por meio deste documento, e com a aprovação do Sumo Pontífice Paulo VI, declara ...

que o decreto Quam Singulari seja obedecido por todos e em todo o lugar".

Declaração Conjunta
24/05/73

Em 1977 estas duas Sagradas Congregações publicaram uma nova resposta a respeito de se antes da primeira comunhão das crianças devia antepor-se a primeira confissão. A questão foi respondida afirmativamente, mas, como era esta a terceira vez que a Igreja pós conciliar se manifestava de modo idêntico sobre o mesmo problema, ambas as congregações resolveram acrescentar a esta resposta as seguintes palavras:

"A mente desta declaração é que com ela se restitua a Igreja ao espírito do decreto Quam Singulari".

Declaração Conjunta
20/05/77
AAS 69, 1977, 427

O que na prática toda esta legislação significa é que, se uma criança é filha de pais verdadeiramente cristãos, ela não necessita e não deve esperar uma determinada idade para participar de um ou dois anos de catequese para receber a primeira comunhão. Assim que ela possa compreender, segundo a sua capacidade, os principais mistérios da fé cristã e distinguir o pão eucarístico do pão comum, pode e deve confessar-se e receber a primeira comunhão imediatamente qualquer que seja a sua idade; isto não apenas é uma obrigação como é também um direito que não lhe pode ser tirado; seja não só levada à mesa eucarística uma vez ao ano, mas o mais freqüentemente possível, e paralelamente a isto, na catequese paroquial e principalmente em casa, seja alimentada pelos pais pelo exemplo, pela doutrina e pela vida de oração na profundidade dos mistérios da fé, na esperança dos bens eternos e no amor sobrenatural para com Deus e o próximo.

Proceder diferentemente seria cair no novamente erro já duas vezes milenar em que os apóstolos caíram e foram reprovados por Cristo, conforme diz Marcos o evangelista:

"Algumas pessoas apresentaram a Jesus algumas crianças para que as tocasse, mas os discípulos repreendiam os que as apresentavam. Quando Jesus viu isso indignou-se. E lhes disse:

`Deixai vir a mim as criancinhas; não as impeçais, porque das que são como elas é o Reino de Deus'".

Mc. 10, 13-14

NOTA SOBRE A DISTINÇÃO
ENTRE NECESSIDADE DE MEIO
E NECESSIDADE DE PRECEITO

Os mistérios da fé em que é necessário crer por necessidade de meio são ditos aqueles que, por contraposição aos que é necessário crer apenas por necessidade de preceito, sem eles não seria possível alcançar a salvação, ainda que ignorados inculpavelmente.

Não é tarefa simples determinar quais sejam eles com certeza absoluta. Independentemente da certeza dogmática, porém, em casos em que algo tão importante está em jogo, a moral cristã exige que se siga o caminho mais seguro, conforme a sentença de Santo Afonso:

"Não é lícito em matéria de fé e em tudo aquilo que diz respeito à eterna salvação por necessidade de meio seguir uma opinião menos provável, e nem mesmo a mais provável, mas sim a mais segura".

S. Afonso Liguori
Theologia Moralis
Lb. I, C.III, nº 43

Considera-se que é certamente de necessidade de meio crer explicitamente na existência de Deus e que Ele é remunerador dos bons na ordem sobrenatural com um prêmio eterno. Esta afirmação baseia-se em uma afirmação explícita da Epístola aos Hebreus:

"Sem fé é impossível agradar a Deus, porque quem se aproxima de Deus deve crer primeiro que Ele existe e que recompensa aqueles que o procuram".

Heb. 11,6

Em segundo lugar, todo o conjunto do Novo Testamento sugere também que, após a suficiente promulgação do Evangelho, a fé explícita no Mistério de Cristo, de sua Encarnação e de sua Paixão e Redenção, também é de necessidade de meio, conforme o que está escrito nos Atos dos Apóstolos:

"Não há sob o céu outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos salvar-nos".

Segundo Santo Afonso, esta é a posição mais provável, mas ele também afirma não ser improvável a posição dos que afirmam que, devido a uma ignorância invencível, seria suficiente apenas uma fé implícita nestes mistérios.

Em conseqüência do mistério de Cristo, S. Tomás de Aquino coloca que a fé explícita no mistério da Santíssima Trindade é também de necessidade de meio:

"O mistério de Cristo não pode ser objeto de fé explícita sem a fé na Trindade, porque está contido no mistério de Cristo o Filho ter tomado a carne humana, ter renovado o mundo pela graça do Espírito Santo, e ter sido concebido pelo espírito Santo, e todos os que renascem em Cristo o fazem pela invocação da Santíssima Trindade, segundo Mateus 28,19:

`Ide, e ensinai todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo'".

Summa Theologiae
IIa IIae, Q.2 a.8