Louis de Wohl

A LIBERTAÇÃO DO GIGANTE

- Romance da vida de Tomás de Aquino -

LIVRO I


CAPÍTULO I

Estava frei Vicente sozinho no jardim que, em pleno viço, louvava a Deus num deslumbrante colorido, que faria inveja à magnificência do rei Salomão. Lia o breviário; eram as primeiras horas da tarde, e assim sentia-se o frade ainda lépido e nada distraído.

A primeira coisa que o distraiu foi a sombra que, no muro diante dele, não era, como devia ser, uma superfície plana e reta; apresentava, ao contrário, uma como protuberância que perturbava a regularidade da linha. Frei Vicente, que tinha dado uma olhadela por cima do breviário, sentiu-se incomodado. Olhando melhor, viu que aquela protuberância tinha uma forma quase absurda: era como uma cabeça de carneiro, mas com chifres e orelhas, e até mesmo com barba: digamos, pois, um bode.

Mas desde quando os bodes trepam em muros verticais, com mais de nove pés de altura?

Frei Vicente sabia muito bem que, a rigor, deveria estar concentrado na leitura do breviário. No seu íntimo, pareceu-lhe ouvir como que um toque de alarme: atém-te ao livro, e não cuides nem da sombra nem do bode! Obedeceu e leu a linha seguinte. Depois a tentação de dar mais uma olhadela àquela sombra, uma só, foi mais forte.

A sombra parecia verdadeiramente uma cabeça de cabra ... ou coisa semelhante. E ... movia-se.

O frade estremeceu. A sombra era viva, sôbre o muro, movia-se ... mas não era um bode. Que seria?

Tinha o focinho delgado, indolente, alongado e amarelado. As orelhas eram pontudas, e entre elas surgiam dois cornos curtos e retos que terminavam numa espécie de bolota. Tinha os olhos semicerrados sob pálpebras cansadas e altivas. Mas o pior era que crescia, crescia. A cabeça já sobressaía dois palmos acima do muro, aliás, para ser mais claro, somente o pescoço aumentava, um pescoço amarelo, sem fim, com estranhas manchas escuras.

Frei Vicente olhava espantado. Aterrorizado, via aquele horrível pescoço crescer, crescer além de toda medida possível para homens e bichos. Via uma diabólica cabeça de cabra no corpo de uma enorme serpente, que subia cada vez mais alto. De repente, à beira do muro apareceram duas mãos pretas, e um instante depois um pequeno homem todo preto, com turbante branco, vestes brancas e dentes alvos, abertos num riso de escárnio. Indicando aquela forma horrenda, cujo pescoço continuava a subir, o homenzinho exclamou com voz estridente:

- Sciraff! Sciraff!

A enigmática figura, ao invés, não emitiu nenhum som.

Dando um profundo suspiro, o frade retomou o domínio de si mesmo.

- Ápage - exclamou. - Ápage, Satanás! - E persignou-se, o que não causou nenhuma impressão nem ao homenzinho negro nem à aparição, mas ajudou o frade a readquirir inteiramente suas faculdades físicas. Deu um salto, virou-se, e com toda a rapidez que lhe permitiam eus setenta anos, fugiu para o mosteiro.

- Reverendíssimo abade ... reverendíssimo abade ...

Francisco Tecchini, abade de Santa Justina, estava justamente examinando um belíssimo exemplar do Organon de Aristóteles. Tratava-se naturalmente da tradução de Boécio, não a mourisca glosada por Averróis, que naqueles últimos tempos gozava das simpatias de certos círculos modernos, uma mistura de verdade aristotélica e de heresia averroísta, que acabaria por estragar o bom nome do Estagirita. Oh! Poder escoimar devidamente aquele monturo! Encontrar quem demonstrasse àqueles filósofos muçulmanos, orgulhosos e seguros de si próprios, que Aristóteles, e ainda vivo, haveria de rir a valer das suas fantásticas interpretações ...

- Reverendíssimo abade ...

- Agora o abade não recebe porque está trabalhando em ...

- Mas eu preciso falar com Ele.

- Frei Leão, deixe entrar frei Vicente - disse o abade em voz alta. enquanto o ancião já entrava cambaleando na cela.

- Reverendíssimo abade, o diabo ... Vi ... vi o diabo.

- Ainda o diabo! - Exclamou o abade aborrecido. - Que bobagens são essas? - Apenas seis meses antes tivera de fechar um de seus monges ia enfermaria e vigiá-lo dia e noite, porque se julgava continuamente assaltado pelo demônio. Afinal tivera de apelar para o exorcista de outro mosteiro, que examinado o homem, aconselhou... interromper os jejuns por alguns meses e mandá-lo diariamente trabalhar algumas horas ia horta. "Só isso?" "Sim, é o que resolve, reverendíssimo abade. )aqui há três semanas estará curado". E a receita fora eficaz. Mas que humilhação ter de recorrer a um exorcista de fora! E agora, eis frei Vicente! Porém este caso devia ser diverso: Ele era homem razoável reflexivo, exatamente o contrário de um feixe de nervos. Por que i maligno escolhera justamente Ele? eis o enigma. Uma coisa, porém, será certa: não se tratava de prescrever a frei Vicente os trabalhos da corta: ele era justamente o jardineiro do convento.

- Deve ter sido o demônio - insistiu o frade. - E trazia consigo em diabrete preto que dizia tratar-se de um Serafim, um serafim. Mas mentia. Não podia ser um serafim! Era a coisa mais feia, mais Horrorosa Que já vi em minha vida. Qual serafim, qual nada! - Frei Vicente Estava indignadíssimo.

- Mas onde, isso tudo? - perguntou o abade.

- Junto às moitas - explicou o frade. - Isto é. além do muro que fica atrás das moitas.

"Já se vê, topografia de jardineiro", pensou o abade. "Onde estão, entretanto, nossas moitas? Isso prova que o bom homem não perdei juízo". Notou então o ponto inverossímil da declaração.

- Atrás do muro? Então como podias vê-lo se o muro é alto nove pés e meio?

- O homenzinho preto havia trepado em cima - explicou frei Vicente. - E o ... o outro avançava com a cabeça e o pescoço.

- Deve tratar-se de um diabo bem comprido - murmurou o abade levantando-se com esforço. - Está bem, vamos ver.

Lá fora tinham-se juntado uma dúzia de monges.

- Parece que tens razão, frei Vicente, - exclamou o abade com ironia. - Deve ser mesmo o diabo. Basta ver quanto trabalho sagrado já interrompeu... - Os monges afastaram-se enquanto Ele acrescentava: - Vamos, adiante! As moitas.

Alcançaram o lugar em poucos instantes; mas o muro; atrás daquela beleza de cores, estava deserto.

- Foi mesmo aqui, frei Vicente?

- Com toda certeza, reverendíssimo abade.

- Que pena! - disse, o abade friamente. - Está bem. Volto ao meu trabalho. E se alguma coisa tivesse que reaparecer...

Um grito rouco do frade cortou-lhe a palavra.

- Lá... lá, reverendíssimo!... - E indicava o portão, onde realmente estava acontecendo alguma coisa. O frade porteiro precipitou-se em direção do edifício principal, gritando a plenos pulmões; mas a sua voz era abafada pelo ressoar de trompas, tão alto de rebentar os tímpanos. Era aquele o diabo de frei Vicente? Fora, diante do portão, devia haver uma grande confusão. E que era aquele interminável monstro guiado por um pequeno preto?

- Ei-lo, reverendíssimo, - exclamou frei Vicente. - Eí-lo junto com o diabrete! Não dizia eu!

O portão tinha doze pés de altura: não obstante, para passar aquela coisa teve de dobrar o pescoço, o horrível pescoço que parecia fizesse uma reverência, e depois levantou-se em todo o seu tamanho. No momento o abade pensou seriamente que o seu frade tivesse razão, mas depois, atrás daquela coisa viu aparecer uma massa cinzenta e informe, com enormes orelhas e uma longa tromba: certamente aquele era o animal chamado elefante, que Ele vira pintado, um animal estranho e terrível, mas em fim, um animal. "Quem tenha visto esses animais" pensou o abade "não terá dificuldade em crer que existam o unicórnio ou a salamandra, que vive no fogo: mas o porquê, a origem...". Talvez fosse apenas um incubo do qual poderia acordar em pouco. De todas as portas os frades acorriam olhando aterrorizados aqueles estranhos intrusos. Entrando com algum esforço pelo portão, o elefante barriu novamente; estava acompanhado por um diabrete negro, um pagão de pele escura, com birbante e vestes brancas, que o conduzia pela tromba. Seguiam-se outros animais: linces e panteras, pelo menos meia dúzia, todos com mordaça, conduzidos por homens de turbante, e depois uma fila de camelos de uma e de duas corcovas.

- Santa Mãe de Deus! - suspirou frei Vicente. - Que está acontecendo, reverendíssimo abade? Ter-se-á desencadeado o inferno sôbre a terra?

O abade não respondeu. Olhava para a entrada, onde atrás dos amelos apareciam outras formas, figuras humanas em magníficas roupas transparentes, de todas as cores do arco-íris: lindos rostos de mulheres quito pintadas. Elas também tinham os seus demônios, criaturas disformes em amplas vestes soltas ao vento: os eunucos. Bailarinas e eunucos! ... O abade compreendeu e perdeu a cor.

- Sim, frei Vicente, o inferno se desencadeou ... mas é o inferno '.a terra. E um insulto, uma ofensa como aquela que foi feita a Nosso Senhor ... e com a mesma intenção. Ei-lo que chega.

Ajustado na armadura, ereto num corcel ajaezado, entrou na praça Lm cavaleiro acompanhado por pagens e escudeiros: um enorme coleópero rodeado de formigas. Olhou em torno e dirigiu-se diretamente para o abade, diante do qual parou.

- Sois vós o padre superior?

- Sou D. Francisco Tecchini, superior de Santa Justina. Que significa, senhor, esta invasão, esta ... procissão inconveniente e impudica?

- Reverendíssimo, - disse o cavaleiro - sou o conde de Caserta, criado vosso. Aquela que vos comprazeis de definir procissão inconveniente e impudica é uma parte da corte de sua majestade imperial, da qual vós sois súdito como eu: súdito e servo, reverendíssimo, como todos esses são seus servos e servas; bípedes e quadrúpedes, não há diferença.

- A diferença, senhor conde, poderia vo-la ensinar uma criança. este é um lugar sagrado ...

- Não vim para discutir sutilezas teológicas, - interrompeu o cavaleiro - mas para anunciar a iminente chegada do imperador que dignou fazer do vosso convento seu quartel-general temporário.

- Impossível - deixou escapar o abade, cujos lábios tremiam. - O imperador e seus nobres naturalmente são bem vindos... mas desde que a sua visita compreenda tudo isso ...

- Sinto ter de interromper mais uma vez o vosso belo discurso, ias quando o meu senhor manda, nada é impossível. Ele compreende que os monges e o belo sexo não combinam. Por isso vós e vossos monges deixareis imediatamente Santa Justina ...- para vosso próprio bem. seus lábios finos e sarcásticos contraíram-se levemente sob o nariz comprido e sensual, enquanto os olhos escuros e penetrantes brilhavam invertido.

- Abandonar Santa Justina ... - murmurou o abade contrafeito. - Não posso ... não posso crer que o imperador ...

- Reverendíssimo, a vossa idade e o hábito impedem-me de vos responder como a quem ousasse pôr em dúvida a exatidão das minhas firmações. E a vós também devo ...

- Prefiro ofender-vos - interrompeu o abade - declarando-vos mentiroso, a ofender o imperador, considerando verdadeiras vossas palavras.

- Basta - interrompeu o cavaleiro. - Dou-vos meia hora. Se pois do prazo ainda encontrar aqui algum frade, acabará mal. Recebi -ordem de desimpedir este lugar para que se torne digno do meu senhor. fio palavras do imperador.

- Compreendo - disse o abade, que tinha recobrado a calma. - Se Santa Justina deve ser digna do vosso senhor, não pode mais sê-lo do meu.

Afastar-nos-emos.

E passando diante do cavaleiro emudecido, dirigiu-se para a entrada, onde os monges, perto de cinqüenta, se haviam reunidos cheios de medo é de indignação. "O Santíssimo", pensava. "Os vasos sagrados e os paramentos, alguns livros e os manuscritos. Agradeçamos a Deus pelo voto de pobreza. Encontraremos um refúgio em Montecassino, onde haverá lugar para nós também". Não seria definitivamente, pois o imperador Frederico não se demorava muito no mesmo lugar. Depois da excomunhão, já havia mudado de quartel-general mais de uma vez por ano. Parecia que o chão lhe queimasse sob os pés. E talvez fosse verdade ...

- Reverendíssimo abade ...

- Que há, frei Vicente?

- Agora quem se ocupará de minhas flores?

- Das nossas flores, frei Vicente.

- Das nossas flores, reverendíssimo. Algumas delas necessitam de água três vezes ao dia, e ...

- Não sei, mas temo que ao retornarmos será preciso começar tudo de novo. - E com um doloroso sorriso acrescentou: - Frei Vicente, tinhas razão e estavas errado. Errado porque aquilo que viste não era o diabo; razão porque era o arauto do diabo.

Um sino vibrante começou a tocar. O ótimo, simples e já ancião frei Filipe anunciava as vésperas ... vésperas que não seriam cantadas. Com tristeza frei Vicente viu o rosto do abade contrair-se num choro silencioso. E o sino continuava a tocar.

O imperador chegou cinco horas depois com um cortejo de cerca de sessenta nobres e algumas centenas de servos. Já estava escuro, não, porém, no pátio do mosteiro. O conde de Caserta havia terminado os preparativos. Ao longo dos muros, em intervalos regulares, ardiam tochas. Todos os sinos tocavam ao mesmo tempo. O conde, numa vestimenta de veludo ornada de peles, sem armadura, inclinou-se profundamente, beijou

o estribo e ajudou o imperador a desmontar.

Frederico teve um instante de hesitação.

- Tochas viventes! - disse. - Pela barba do profeta, é um belo espetáculo! - Cada tocha estava presa à cabeça de uma bailarina e iluminava um corpo fascinador, cuja veste consistia exclusivamente numa ampla calça oriental e colares cintilantes. - O teu gosto, conde de Caserta, refinou-se muito. Mas não as deixes por muito tempo no pátio. A noite está um pouco fria e podem apanhar um resfriado que depois pega em todos os meus amigos. Não sei como isso se dá, mas fato é que acontece.

Acolheu a respeitosa risada dos nobres com o sorriso comum a todos os suevos, um sorriso em que os olhos não tomavam parte.

- Caserta é um mago - disse sorrindo o margrave Palavicini. - Como fizeste, amigo, a transformar os frades assim? Qual seria o abade? Rogo-te apresentar-mo. É a primeira vez que me dá esse desejo.

- E os frades? - perguntou secamente Frederico.

O conde deu de ombros:

- Caminham pela noite ... para o sul.

- Quem, então, está tocando os sinos?

- Sim, os sinos - sorriu o conde. Talvez, meu senhor, gostásseis d e ver como se tocam...

- Vejamos - concordou Frederico. - Vem, primo Cornualha, tu também. Absburgo, Palavicini! Ezelino! Vamos ver os sinos do conde de (;acerta. Pela Caaba de Meca, imagino uma boa brincadeira.

Os nobres chamados desmontaram e seguiram-no em direção à torre.

- E eu, papai? - perguntou uma voz de menina.

- Pelo que sei do conde, não me parece coisa adequada a "um jovem" como tu, Silvana, -disse rindo Frederico sem voltar-se.

Todos riram. Para a cavalgada a princesa Silvana tinha-se vestido de homem: assim jovem e esbelta, aqueles trajes ficavam-lhe bem. Só o rosto era decididamente feminino, com aqueles lábios túmidos e corados, o narizinho arrebitado, os olhos cinzentos e um pouco amendoados. como os de sua mãe.

Ezelino voltou-se para olhá-la e atirou-lhe um beijo, mas ela mostrou-lhe a língua como um moleque, e riu-se alto. Um jovem cavaleiro da comitiva de Comualha não pôde deixar de menear a cabeça.

- Não há de que escandalizar-te, cavaleiro, - murmurou junto dele uma voz zombeteira. - Os dois vão casar-se esta semana.

O jovem inglês levantou os olhos e viu um homem de sua idade (no máximo poderia ter uns vinte anos), de belo físico e relativamente alto por ser italiano, com uma bela fronte, olhos escuros, lábios finos e vivos: um desses homens com os quais não se pode ficar amuado por muito tempo, e pelos quais Piers Rudde sempre tivera uma pontinha de inveja. Na Itália (e mesmo em França) encontravam-se freqüentemente desses jovens elegantes e de modos tão desenvoltos que podiam permitir-se serem descarados até diante de uma cabeça coroada, e com isso conseguindo, algumas vezes, um colar de ouro. O inglês teve ganas do dar uma resposta briosa, mas limitou-se a dizer:

- Sinto-me muito confuso.

O jovem italiano explodiu numa gargalhada:

- Não me admira. São coisas que na Inglaterra nunca a( acontecem não é?

- Certamente não - replicou com frieza Piers Rudde. Mas explica-me, peço-te, por quem ou por que coisa ouvi o imperador Jurar? A que profeta aludia?

- Ora. - respondeu o italiano dando de ombros. - Pela barba do profeta. não é? Maomé, é claro. Certamente também os outros profetas terão tido barba: parece uma condição necessária. Quanto mais comprida a barba, tanto melhores as profecias. Mas ele aludia a Maomé. Não ouviste dizer "pela Caaba de Meca"?

- Sim, mas que é isso?

- Uma grande pedra negra no meio da cidade santa dos muçulmanos. Pelo que se diz, é a pedra sôbre a qual Abraão queria sacrificar o filho Isaque: o anjo Gabriel depois transportou-a gentilmente a Meca.

- E o imperador crê nisso? - perguntou o inglês admirado. É verdade que, como dizem os padres, fez-se muçulmano?

- Fala baixo, cavaleiro, z- murmurou o italiano. - Não, não creio seja verdade. Recentemente ouvi-o dizer: "Não me libertei de uma cadeia para deixar-me prender por outra". Entretanto, invocar os símbolos maometanos está em moda. E tal moda foi introduzida justamente pelo imperador.

- Talvez seja melhor assim - comentou Piers Rudde. - Deste modo ele deixa em paz os nomes sagrados. Este é um convento, não?

- Pelo menos era-o até há pouco - foi a resposta desembaraçada. - Gostaria de saber o que terão pensado aqueles frades vendo entrar o serralho imperial. Foi uma idéia de sua augusta inteligência. Ele diverte-se com tiros desses quando ...

Interrompeu-se porque mencionar a excomunhão do imperador não era coisa de bom gosto.

- Qual serralho? Estas ... estas jovens?

O italiano riu francamente.

- Ah, boa, muito boa esta, cavaleiro! ... E dizem que no teu país nebuloso não se sabe rir! -Mas tornou-se sério vendo o estupor do inglês. - Pelos benditos califas e por todos os santos, vejo agora que tua pergunta era séria; desculpa a minha alegria. Referia-me aos animais, aos quadrúpedes que o imperador foi arrebanhando em todos os continentes. Alguns são verdadeiras raridades, e ele nunca se põe de viagem sem levá-los consigo. Não estás informado de que os mandou adiante com o conde de Caserta? É mesmo, tu nos alcançaste só à tarde e não podias saber. Não me admira a tua confusão. Todos nós vivemos um pouco confusos.

- Também me parece - respondeu o outro brevemente.

- Melhor assim - asseverou o italiano. - É quase um modo de viver divino. Movemo-nos num mundo estupendo que nos pertence. Em qualquer parte que chegamos trazemos alegria e assombro, esperança e desespero, amor e ódio. Não é este o modo dos deuses? Basta uma palavra do imperador ... e uma cidade é arrasada. Outra palavra ... e uma cidade surge das cinzas. Agora os sábios sultões e os emires do Oriente nos mandam incenso e mirra ...

- Esta é uma conversa sacrílega, cavaleiro, - exclamou Piers Rudde, admoestando-o.

- Não, é poesia sacrílega - suspirou o jovem italiano. - Parece-me ouvir minha mãe. Oh! quantas vezes disse-me ela que acabarei mal! Ela também não percebe a diferença entre poesia e prosa. Vejamos, que mais tens em comum? É alta, morena e fogosa ... é como uma estátua de Juno, a mãe dos deuses: enquanto tu és loiro de olhos azuis, e provavelmente forte de meter medo. Evidentemente não um Apolo, é claro, pois, que em tal caso terias mais compreensão pela poesia. És

talvez um daqueles deuses tudescos, cujo nome basta para destroncar uma língua italiana, tanto são poderosos. Tu e minha mãe não poderiam ser mais diversos, e no entanto fazeis a mesma opinião de mim, pobre poeta. Se uma terceira pessoa ainda me disser o mesmo, acabarei por acreditá-lo também eu. Mas eis que voltam; parece que se divertiram um bocado. Gostaria de saber o que arrumou o conde de Caserta com os sinos. Nunca pensei tivesse ele um. pingo de fantasia ...

O pequeno grupo aproximou-se. O imperador mostrava-se satisfeito, Ezelino e Palavicini riam-se às gargalhadas. O conde de Absburgo mostrava-se incerto entre o choro e o riso, e o conde de Cornualha, aborrecido como sempre. Caserta estava radiante.

- Extraordinário o Caserta! - Exclamou Ezelino. - Nunca vi sineiros tão graciosos pairarem no ar como borboletas.

- Espero tenha preparado com igual cuidado a comida e a bebida - observou o imperador.

- O jantar aguarda o divino Augusto - apressou-se em dizer o conde de Caserta. - Tivemos que reorganizar o refeitório. Esses monges ... - e estremeceu - penso que levaram muito a sério o voto de pobreza.

- Os monges tomam tudo a sério, - declarou o imperador - e dão fé a qualquer coisa, desde que dita com suficiente seriedade. Onde está Mousca?

O pequeno negro apareceu como que por encanto e atirou-se humildemente ao chão.

- Mousca, onde estão os meus queridos animais?

- Providenciou-se um lugar para todos, ó sol invicto!

- Está bem. Irei vê-los amanhã. A mesa, amigos!

O refeitório havia sido realmente transformado. Tapetes orientais cobriam o chão de pedra, e uma toalha purpúrea havia sido estendida sôbre a enorme mesa em cruz. Os monges tinham levado consigo o crucifixo de cima da alta cadeira do abade. Caserta o substituíra pelo estandarte imperial: uma águia preta num fundo de ouro. Num canto estava tocando uma pequena orquestra, e loco, o bobo da corte, bailaricava em volta da mesa, atrapalhando os nobres que procuravam lugar. Para cada um deles achara um apelido que escondia um pouco de amarga verdade, é claro, sem excessivo amargor, pois cada bobo deve saber que não é prudente descobrir excessivamente as cartas antes que os senhores tenham comido e bebido. Pequenino, corcunda, com um nariz comprido e ridículo entre dois olhinhos pretos e sempre em movimento, acentuava o grotesco de sua disforme figura a roupa meio vermelha e meio rosa.

Ouvindo-o apelidar Ezelino de "Ecce homo", o imperador pôs-se a rir: era um daqueles gracejos que ele mesmo gostava de fazer. Mas quando Ioco chamou o conde de Absburgo de "tiozinho azedo", a testa imperial enrugou-se.

- Peço perdão - disse logo loco. - O meu senhor pensa diversamente, e como é muito maior que eu, nem mesmo eu devo pensar como eu. Retiro, pois, o título "tiozinho azedo" e o confiro ao grande

conde de Inglaterra. Como sempre, tens razão, irmão imperador: ele o merece, muito mais que o "titio beiçola".

Quando as risadas acabaram, Piers ouviu uma voz exclamar:

- Muito bem.

Levantando o olhar viu o jovem cavaleiro italiano com quem tinha conversado antes.

- Que queres dizer, senhor?

- Boa tática. Quando se ofende uma pessoa só, esta se aborrece. Quando, porém, se ofendem duas ao mesmo tempo, ou mais, todos acham graça. A honra e a dignidade são bens individuais, divindades solitárias.

Absburgo tinha realmente sorrido... com o grosso lábio ofendido. O conde de Cornualha, porém, estava impassível como se nada tivesse ouvido.

Os pagens em libré imperial trouxeram os primeiros pratos.

- Um momento! - gritou loco. - Meus nobres senhores, esqueceis o lugar em que estais. Ninguém recitará a oração? Pois bem, eu o farei. - E voltando-se para o imperador, levantando as grossas mãos em ato de adoração "orou": - Grande e divino senhor de todos os animais, agradecemos-te o pão cotidiano. Os burros trouxeram-no nas costas, portanto é justo e equânime que outros burros o levem consigo na barriga. Assim seja.

Piers percebeu que o bobo era-lhe sumamente antipático. É verdade que os bobos tinham a tarefa de pôr em ridículo todas as coisas, mas aquilo era-lhe insuportável. Também ao conde inglês era odioso. Eis Ezelino a exclamar:

- Êh, loco, estás falando em burros, no entanto aqui és o único que tem as orelhas compridas.

O bobo riu sarcasticamente: -

- Perfeito, nobre senhor. Quando foram distribuídas as partes do burro, cheguei no fim e recebi as orelhas. Conheço uma família de alta linhagem que tem as mãos muito compridas quando se trata de distribuição: a esta provavelmente coube o cérebro. Como diz o sábio Platão . . .

- Ao diabo Platão e todos os filósofos! - imprecou Ezelino aborrecido. - Não quero pensar nem filosofar. Quero é comer.

- Que homem feliz! - suspirou loco. - Conhece os seus limites.

- loco, agora chega - ordenou o imperador. O bobo encolheu-se como se tivesse levado uma pancada, caiu de joelhos e desapareceu sob a mesa.

- Primo Cornualha, nunca se deve tomar a sério os bobos. No entanto eles têm uma finalidade. Em que consiste, de fato, a bobagem senão na união das coisas que não concordam entre si? Mas justamente assim, por eliminação, vejamos quais as coisas que concordam.

- Vós sois muito lógico, meu imperador, - atalhou o conde com um leve sorriso. - Pois eliminaste o próprio bobo.

Junto dele Silvana aplaudiu:

- Vês, papai, nunca se sabe como tratá-los, esses ilhéus. Cornualha possui o senso de humor.

- E o da beleza, graças a Deus - retrucou o conde com uma breve reverência.

- O nosso bobo nomeou-me senhor de todos os animais - prosseguiu o imperador. - A propósito podem ser feitas diversas observações. Poucos homens alcançam a graciosa e robusta beleza do falcão, e nenhum homem sabe voar ... exceto Dédalo e seu filho. Amanhã, primo Cornualha, mostrar-te-ei o meu elefante: um animal verdadeiramente majestoso, que me foi dado pelo sultão Al-Kamir, certo de que eu não estaria em condições de retribuir o presente. Pois lhe mostrei o contrário enviando-lhe um urso branco. Talvez tenhas ouvido falar dele: é um animal que vive no extremo setentrião, onde o sol brilha apenas poucos meses no ano ...

- Julgava que o país da neblina fosse a Britânia - disse friamente o conde.

- Não se trata de neblina, primo. Lá em cima o sol não brilha por outro motivo, como asseveram os sábios. Mas, voltando à minha história, os amigos sarracenos não pareciam muito entusiasmados com o meu urso branco. Não entendia por que, e só dei conta do motivo, quando soube que, quando velhos, os ursos do Curdistão têm o pelo branco sujo. Porém, vendo que o meu urso branco só comia peixes, ficaram estupefatos. Masc Allah, Masc Allah ... não conseguiam compreender. O próprio sultão levantou' as mãos ao céu, e com elas um diamante como nunca vira. Exato: Al-Kamir, o meu velho e bom amigo ...

- Amigo? - disse o conde. - Um pobre pagão ignorante, amigo do imperador? Estais brincando?

- Caro primo, o sultão Al-Kamir não é nem pobre, nem ignorante, nem pagão. )v mais rico que todos os monarcas cristãos juntos, e muito erudito. Demais, para o Corâo, que quer dizer pagão? Para mim pagão, e por cima ignorante, é todo aquele que não quer saber de ciência e progresso; quem quer que viva contra a natureza abstendo-se de mulher; todo o que crê em esconjuros mágicos pronunciados sôbre um pedacinho de pão e um trago de vinho ou uma gota de óleo, e que, a cada pergunta indagadora do homem pensante, só sabe responder com a fórmula paralizante "eu creio".

- Creio - disse tranqüilamente o conde de Absburgo com a aprovação do conde Cornualha.

Frederico sorriu contrafeito.

- É difícil, meus primos e amigos, evitar dissenções em torno dessas coisas. Mas se, como eu, tivésseis observado neste belo país a avareza, o egoísmo e a teimosia dos padres tendo à frente o meu dileto amigo Gregório IX, pensaríeis como eu. Dizeis que não? Claro, esquecia que sois ainda as suas caras ovelhas ... enquanto eu sou a ovelha negra. Vós ainda não fostes excluídos da comunidade dos santos. Mas eu não sei o que fazer das ovelhas, sejam brancas ou pretas. Prefiro a parte do leão. - Bebeu um trago, e olhando com olhos de entendido O belo cálice de ouro cinzelado prosseguiu: - Porém, nem mesmo nestas circunstâncias consegui compreender que tenha contra mim o supremo pastor do Deus cristão. Lembrei-lhe que houve tempo em que o leão e o cordeiro viviam em paz entre si; parece, aliás, que era um tempo feliz. Mas o papa Gregório não quis saber de mim. Ovelhas queria, nada mais. Perdi quase a esperança de que venha a converter-se à minha opinião ... Quase, não toda.

O conde de Absburgo levantou os olhos, com um raio de esperança no rosto rude e inteligente. Nada o incomodava tanto como a situarão dos príncipes e reinantes num mundo em que o papa e o imperador discordavam. Seria possível que Frederico não acabasse por cair em si? Mas logo notou no rosto do soberano uma expressão que bem conhecia, e, para esconder a desilusão, pôs-se a beber. Verdade que às vezes o santo padre se obstinava, mas não era esto a verdadeira razão do conflito. Na realidade, o papado constituía o pano vermelho para o touro Frederico, qualquer coisa que o papa fizesse.

- Penso que acabará cedendo - prosseguiu Frederico. - Um dia deverá perceber que um imperador excomungado não representa para ele bom negócio. Além disso creio que receberá em breve más notícias.

- Não cederá - afirmou Ezelino. - A única coisa que lhe importa é Roma e ...

- Roma, entretanto, não será assim tão papal como ele pensa interrompeu o imperador. - De lá temos notícias muito interessantes.

- Não pensareis em atacar já a própria Roma? - deixou escapar o conde de Absburgo aterrorizado.

- Talvez não seja necessário, meu caro crome.

Silvana disse baixinho:

- Tudo isso parecer-te-á estranho.

Piers Rudde olhou para ela. Seria possível que a filha do imperador dirigisse a palavra justamente a ele, o menos categorizado da mesa? Os olhos amendoados tiveram um estranho brilho, enquanto um sorrisinho irônico passava pelos lábios túmidos e vermelhos. Há muito tempo mil pensamentos tumultuavam em seu cérebro. Que terra estranha, onde o papa e o imperador guerreavam-se! E o imperador não era apenas rei da Sicília, mas também supremo senhor de todo o Sacro Romano Império da nação tedesca, do qual a Itália era apenas uma parte: irmão, cunhado, tio e sobrinho de quase todos os monarcas viventes na cristandade, era... e se vangloriava de não ser cristão, do nome cristão nem se importava, usava roupas semi-orientais, invocava o Corão... ele, o supremo rei da cristandade, com o qual, dizia-se, meia dúzia de pessoas no máximo podiam medir-se em erudição e inteligência. Piers estava pensando na festa cia Assunção do ano passado, quando, por ordem do rei Henrique, fora em peregrinação a Wallsingham, na comitiva do conde. Três mil velas bentas iluminavam a imagem da Mãe de Deus.

Nisso era preciso pensar. quando as dúvidas surgiam, quando Deus permitia coisas que o último cavaleiro cristão não teria permitido, estando em condições de as impedir. Não era Deus onipotente? Em tais momentos pensar em Wallsingham reconfortava. Tanta beleza tinha de pressupor o verdade. Agora, no entanto ...

Nesses pensamentos insinuou-se a voz tênue e irônica da filha do imperador, fazendo com que desaparecessem. E ele ouviu a si próprio responder:

- Certamente, gentilíssima. Não sei se estou acordado ou se sonhando.

- Estás na terra dos milagres - disse Silvava lentamente. Aqui tudo é possível... especialmente o impossível.

Pequenos espíritos dançavam nos olhos e nos lábios da moça. Piers sentiu que enrubescia e irritou-se consigo mesmo. Ela devia considerá-lo um tolo incapaz de estar na corte. Criou coragem e disse:

- Neste caso só há uma solução: estar preparado para o impossível.

- Estou começando a gostar de ti - confessou Silvara observando-o como a um animal raro da coleção de seu pai. - Talvez peça ao teu senhor que te ceda a mim por algum tempo. Já tenho a minha guarda pessoal que se veste garbosamente: em ti aquele uniforme ficaria bem, loiro como és. Todos os outros são morenos. Prova estes pêssegos em vinho... - As últimas palavras foram pronunciadas em voz alta.

- Come! - sussurrou alguém. - Não levantes os olhos e come.

Ele obedeceu maquinalmente. Sabia que aquelas palavras eram-lhe sussurradas pelo jovem amigo italiano, mas . .

- Que está acontecendo? - murmurou por sua vez. - Que fiz eu?

- Vênus santa! - resmungou o italiano. - Não sabia que querias morrer tão cedo. Perguntas-me que fez! Não te disse que se casará com Ezelino de Romano? Não viste seus olhos quando a princesa falava contigo, mas a coisa não escapou ao teu patrão. Uva azeda para ti, amigo, não pêssegos em vinho. Se ...

Interrompeu-se porque o imperador havia recomeçado a falar. Não era, porém, apenas a cortesia que o induzira a ouvir. Aquele imperador, aquele monstro, Lúcifer, Augusto e Justiniano numa só pessoa, era o homem mais fascinados que o jovem poeta já tivesse encontrado: e essa impressão nem era comprometida pelo fato que Frederico queria precisamente suscitá-la entre seus cortesãos.

- Não, não, Palavicini - dizia Frederico. - Deixei meus guardas na vila, onde poderão divertir-se com as raparigas. Aqui não me servem, pois penso que vós não querereis assassinar-me. Certamente o velho Gregório ficaria contente, mas vós sabeis, creio, ter em mim um patrão melhor que ele. Fora de brincadeira, amigos, onde poderia estar mais a salvo do que entre vós? Por outro lado, tenho aqui Mousca e Marzuque, as duas estatuetas de ébano que dormem diante de minha porta. Eles sabem lidar com elefantes e tigres ... imaginemos um homem que quisesse entrar!

- Papai, é verdade que levam consigo punhais envenenados?

Frederico sorriu para a filha:

- Não deves ser tão curiosa, Silvava. Como dizem os tonsurados? "A primeira curiosidade da primeira mulher arruinou o mundo todo: e quando concebeu péla primeira vez, deu à luz um assassino". Mas, com veneno ou sem, esta noite não morrerei, é certo.

- Foi vosso astrólogo que vo-lo predisse? - perguntou Ezelino com interesse.

- Bonatti? Não: o seu predecessor, Miguel Escoto. Vinha do teu país, primo Cornualha.

- Sinto ter de contradizer - disse o conde, arrogantemente. Ele era escocês, não inglês.

- Em todo caso, vinha da tua ilha. E não era apenas astrólogo. Em Toledo aprendera algo mais que astrologia.

- Toledo, a fortaleza da necromancia ...

- A fortaleza da erudição, queres dizer, Absburgo. O oculto só é oculto para os ignorantes, para os jovens ainda não maduros aos mistérios do universo. Amigo, peço-te não bancar o padreco. Nasceste para reinar. Todos devemos aprender, mesmo daqueles que professam uma fé diversa da nossa. Pensa o que quiseres do Corâo, mas a matemática, a álgebra, a astronomia e a arte oculta dos números simbólicos representam um enorme enriquecimento da ciência. O meu fiei Leonardo Fibonacci de Pisa introduziu, por minha ordem, os algarismos árabes que agora se ensinam em muitas das minhas escolas... Entre esses algarismos há uma coisinha maravilhosa, muito insignificante, e entretanto poderosa...

- Referes-te a mim, irmão imperador? - perguntou loco aparecendo de baixo da mesa.

- Em certo sentido, não deixas de ter razão, querido bobo. Refiro-me ao zero, uma coisinha de valor incalculável para os meus tesoureiros. Em si não vale nada, mas posto atrás de outro algarismo decuplica-lhe o valor. Coloca-se duas dessas nonadas atrás de um algarismo e o seu valor fica centuplicado. Todas as contas e cálculos tornam-se mais claros e mais simples. No entanto o zero não tem nenhum valor, é um nada. Um valor meramente metafísico.

- Achei! - exclamou loco radiante. - Esta é a tua imortalidade, irmão imperador. Isso será lembrado por todas as gerações futuras, quando o teu nome já houver desaparecido. Eis a tua glória, as tuas gestas, o maior dos teus merecimentos. Zero, zero, zero. Viva o imperador Zero!

- Sinto muito, - observou o conde de Cornualha - mas se meus funcionários põem-se a registrar valores metafísicos, certamente serei enganado.

- Que homem insuportável! - riu Frederico. - Crê em mim, daqui há vinte anos ninguém seguirá mais o antigo sistema. O arábico funda-se no dez, não no doze. O sistema decimal é conatural ao homem. Dez dedos, primo Cornualha, nas mãos e nos pés.

- No meu país nunca será aceito - garantiu o conde. - E um sistema ... um sistema estrangeiro.

- Também o cristianismo o é - observou o imperador rindo. Um sistema judaico, judaico autêntico. No entanto na Inglaterra o aceitaste e fazes questão. dele.

- E verdade, graças a Deus - replicou o conde. - Não entendo muito o grego, mas, pelo que sei, o vocábulo "católico" significa universal, e não estrangeiro.

- Mas o cristianismo não é universal - replicou Frederico dando de ombros com desprezo. - Vai à África, ao Egito, à índia, e pergunta se por lá já ouviram falar dele. No Egito talvez, mas os que o conhecem, cospem quando ouvem essa palavra. Na índia nem cospem. O pequeno Francisco de Assis foi um dos poucos que pelo menos tentou difundi-lo. Tentou até converter o grande Saladino. Por isso quase simpatizo com ele, e simpatizaria completamente se não nos tivesse legado aqueles insuportáveis sequazes que vivem mendigando e são uma verdadeira praga ... exatamente como os filhos de São Domingos. Mas até o "grande pequeno Francisco" não foi muito longe. Fez uma bela pregação e acabou propondo ao sultão um ultimato: "Converte-te ou manda atirar-me à fogueira!" Que astúcia! Ou o sultão se tornava cristão e frei Francisco triunfava, ou o sultão mandava queimá-lo e frei Francisco iria direto para o paraíso exaltado como mártir. Cabeça ou cruz: a Igreja vencia em qualquer caso ... e assim é que faz sempre. Ias o sultão não era bobo. Percebeu o engodo, cumprimentou o fradezinho pelo seu lindo discurso e o remeteu para casa, são e salvo. De Saladino pode-se aprender muita coisa.

- Concordo convosco, senhor, - disse Absburgo com firmeza. Era um homem nobre e reconhecia a grandeza dos outros, mesmo se estavam em campo adverso. Não é fato que determinou fosse confiada para sempre aos franciscanos a guarda de honra ao Sacro Sepulcro?

Frederico encolheu os ombros.

- Fala-se demais da Terra Santa, podes crer, Absburgo. Eu lá estive. Entrei a cavalo em Jerusalém e me coroei na igreja do Santo Sepulcro.

- Um ato arrojadíssimo! - exclamou Ezelino. - Aposto que quando o papa o soube teve calafrios.

Absburgo sorriu pensando no grande Godofredo de Bulhão, o primeiro conquistador cristão de Jerusalém, que recusara trazer até mesmo um pequeno anel de ouro nas proximidades do túmulo do Redentor.

- A chamada Terra Santa - prosseguiu Frederico - não merece, na verdade, tantos esforços. Jeová nunca viu a minha Púglia, e litoral de Nápoles ou a minha Sicília, do contrário não teria feito da Palestina o seu centro de atividade. Dá-se-lhe uma importância enormemente exagerada.

Ezelino e Palavicini riam-se às gargalhadas, e muitos nobres seguiam-lhes o exemplo. Absburgo e o conde de Cornualha trocaram um olhar embaraçado. "Pelo menos não tivesse morrido Hermano de Salza!", pensava Absburgo, "o anjo da guarda do imperador, o único que era por este ouvido quando falava em favor da paz". A morte do grande homem, no Domingo de Ramos, há dois anos atrás, ocorrera no mesmo momento em que chegava a tremenda notícia da excomunhão do imperador. Os motivos alegados pelo papa eram convincentes, aliás, era de admirar que o raio não o tivesse fulminado muito antes. O imperador, tendo fundado uma colônia muçulmana no coração da Itália, perto de Lucera, tinha-lhe instalado catorze mil sarracenos, e, enquanto nunca erigira uma igreja, mandava construir para eles algumas mesquitas. Opressão da Igreja e do clero, sacerdotes justiçados, afogados, enforcados ... a lista era extensa, muito extensa. A resposta do imperador fora feroz: mandou simplesmente enforcar todos os parentes do papa que lhe caíram em mãos. "Odeio toda essa linhagem: não se pretenderá que seja feita a vontade daquele que disse: os filhos pagarão pelos pecados dos pais?" Destruíra Benevento que ficara fiel ao papa. E em qualquer parte os Ezelinos, os Palavicinis e muitos da alta nobreza o imitavam. Abria-se uma nova era de ferocidade desencadeada. Nos países do Oriente surgira um novo Atila, um Kan dos mongóis que não era menos terrível que Gengis. Chamava-se Batu. Seus cavaleiros esganavam os Homens às dezenas de milhares. Mas era um pagão, um bárbaro, como o hino seu predecessor. Certamente nem o próprio Frederico se considerava cristão, embora fosse batizado, e não era apenas cavaleiro, mas chefe supremo de toda a cavalaria cristã, imperador dos Estados cristãos da Europa. Onde iria acabar a Europa sob tal soberano?

Agora o imperador falava em voz baixa com o conde de Caserta. Via-se novamente o seu pavoroso e pálido sorriso. Absburgo pensava com saudade na sua Áustria, bem longe daquela corte de víboras e vespas. e suspirava pelo ar límpido das montanhas e da fé.

Caserta saiu.

- Escoto... - disse Frederico. - Afastamo-nos completamente de Miguel Escoto. Após uma visão ou uma experiência secreta, ele sabia como haveria de morrer: por uma pedra que deveria cair-lhe na cabeça. De então em diante trazia sempre um capacete de ferro. Mas indo à Germânia, fomos colhidos de surpresa por uma avalanche de pedras e um pedaço de rocha caiu-lhe na cabeça, enterrando o capacete de ferro nos miolos cheios de erudição. A Ananke, caros amigos, a deusa que preside aos próprios deuses! A Necessidade, primo Cornualha, se o teu grego não chega até lá. Como vês, tenho motivos para crer que também o meu destino cumprir-se-á quando chegar o momento. Este, porém. ainda não chegou. - Assim falando, pôs-se de pé: - Boa noite, amigos.

Todos se levantaram e se inclinaram profundamente enquanto ele saía, loco subiu com um pulo sôbre a cadeira imperial, exclamando:

- Continuai a beber, ótimos súditos. E esperemos que nenhuma pedra nos caia no crânio. A minha touca de guizos me é mais cara, quero dizer, do que o capacete de ferro do eruditíssimo Escoto.

Alas também a maior parte dos nobres se retirou. Assim fez Piers, desejoso de ficar só. Muitas coisas o tinham perturbado. Não obstante as conversas sacrílegas, o imperador era uma personalidade quase única. Por ele. dizia-se. todos se atirariam ao fogo; por um seu sorriso de estímulo teriam arriscado a vida. E devia ser verdade. Tinha olhos estranhos. que não só não participavam do sorriso, mas nem piscavam: um olhar fixo e agudo como o da águia ou o do falcão. Estar a sós. Mas antes precisava ver se Cornualha estava bem instalado ... Ei-lo em conversa com o conde de Caserta.

- És um bom observador - estava dizendo este último. enquanto Piers se aproximava. -Efetivamente. o imperador deu-me unia ordem importante, ordem que nada pode impedir que se cumpra; inútil fazer mistério, mesmo que entre nós houvesse um traidor. Parto esta noite mesma com cem homens a cavalo e dois mil a pé para destruir tuna penha que o imperador quer ver eliminada. "Caserta", disse-me, "arrasa aqueles muros até os alicerces, de modo que não se levantem nunca mais!". Trata-se, naturalmente, de um mosteiro.

- Ainda um mosteiro! - murmurou Cornualha.

- Precisamente. Dizem que ali sejam todos espiões papais. O prior está do lado do papa, e o imperador pensa que os frades expulsos daqui estejam indo para lá. Divertir-se-á, creio, fazendo-os correr para mais longe.

- Como se chama o lugar ... o convento que não deverá mais ressurgir?

- Montecassino, senhor.

- Ah! estás aí, Piers, - disse o conde de Cornualha. - Conde de Caserta, este é sir Piers Rudde, um dos meus jovens cavaleiros. Promete bastante, mas ainda tem de ser experimentado em combate. Quereis levá-lo contigo nessa expedição?

Ao apresentá-lo, tinha tomado Piers por um braço. E a pressão dos dedos tornou-se tão violenta que Piers compreendeu a ordem de calar. Mesmo sem aquela pressão não teria dito nada, tanto estava assombrado.

Caserta deu-lhe uma olhadela perscrutadora.

- Com prazer, senhor, se é do teu desejo. Mas provavelmente ficaremos ausentes muito tempo.

- Não importa. Meu cortejo, ainda assim, é suficiente, e sir Piers tem consigo só uma pessoa, o seu escudeiro.

- Para os tonsurados de Cassino somos bastante numerosos disse Caserta rindo. Depois, dirigindo-se a Piers: - Estejas pronto dentro de meia hora na entrada principal. Espero-te lá.

- As tuas ordens, senhor, - disse Piers enquanto Caserta olhava-o com simpatia, e, inclinando-se, afastou-se.

- Quieto, Piers, - murmurou o conde. - Nem uma palavra enquanto ele não estiver bem afastado. Precisamos ser prudentes, porque aqui há espiões por todos os lados. Fiz essa proposta para teu bem, meu caro jovem. A princesa foi bem ... imprudente, temo que isso não lhe tenha agradado.

- A quem? A Ezelino?

- Pouco me importa que agrade ou não a Ezelino. Referia-me ao imperador. A moça não terá nenhum aborrecimento: Frederico precisa dela para garantir-se a lealdade de Ezelino. De ti, porém, não precisa, e poderia acontecer-te alguma coisa ... um infortúnio, por exemplo. Então todos viriam exprimir-me suas profundas condolências, que no entanto não te ressuscitariam. É melhor, portanto, que tu desapareças por algum tempo. Não estou zangado contigo, filho, sei que não tens culpa, mas aquela pequena esteve de fato excessivamente... entusiasmada. Vai, pois, e não te apresses. Não te esperarei nem mesmo quando a tal expedição estiver terminada. És jovem, viaja, pois, para conhecer um pouco este país, onde poderás ter diversas experiências... talvez dolorosas. O que importa é que estejas longe do imperador. Tens dinheiro?

- Não muito, senhor.

- Toma este: assim poderás sobrenadar alguns meses. No entretanto eu voltarei à Inglaterra, e tu podes vir quando quiseres. Não há pressa. Este negócio me desagrada também porque não é uma expedição em que um cavaleiro inglês possa fazer grandes experiências bélicas. Mas não temos escolha. Deus te abençoe, meu caro jovem.

- Sou-te grato por tanta bondade.

O conde estendeu-lhe a mão e Piers beijou-a. Depois separaram-se e Piers dirigiu-se para as estrebarias em busca dos cavalos e do seu escudeiro.

De repente uma sombra esguia apareceu-lhe em frente, fazendo-o recuar um passo e levar a mão ao punhal.

- Calma, não é o caso de me matares, caro amigo, - disse o jovem poeta italiano. -Nenhum perigo te ameaça de minha parte. Tens um momento para me conceder? Sei que estás apressado, mas trata-se mesmo de um minuto apenas. Vais deixar-nos, não é? Vais tomar parte na expedição contra Montecassino, não?

- Parece que aqui as notícias se propagam rápido - disse Piers cautelosamente.

O italiano riu:

- O conde de Caserta tem uma voz que parece um sino: a estas horas até os cavalos nas estrebarias já devem estar ao par. Tu poderás fazer-me um grande favor. Meu irmão menor vive em Montecassino: tem apenas quinze anos, mas há já dez que está com os beneditinos. Se destruírem o convento ... poderias dar um jeito para que não lhe aconteça uma desgraça?

- Com prazer, se me for possível - respondeu Piers com sinceridade. - Mas como posso reconhecê-lo?

O jovem poeta riu novamente:

- Não há possibilidade de te enganares: é o jovem mais gordo de todo o convento. Mas ... é mesmo, não sabes como se chama, ainda não me apresentei. Sou o conde Rinaldo de Aquino, e o meu irmãozinho chama-se Tomás.