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- Posso falar-vos, reverendo padre? - perguntou o jovem senhor.
- As vossas ordens, senhor; mas eu sou apenas um frade leigo ...
e também há pouco tempo.
- Realmente. parecia-me que vestísseis o hábito com ares
soldadescos.
- É verdade, pois a maior parte da minha vida fui soldado. Tendes
bons olhos demais para serdes tão jovem, senhor ... Penso que não
tereis ainda vinte anos.
- É verdade, mas já sou aquilo que vós não sois: casado.
Perdoai ... talvez não devia tê-lo dito. Sinto-o, não queria
ferir-vos.
- Não me feristes de modo algum.
- Espero-o. Quando passastes, entre tantos rostos estranhos.
fiquei feliz de ver afinal um patrício.
- Então vós também sois inglês! Não tinha certeza.
- Claro e estou pela primeira vez nesta curiosa cidade, frei ...
conto posso chamar-vos?
- Agora chamo-me frei Pedro. Assim me nomearam no convento.
Antes era Piers. Piers ...
- Não precisa dizê-lo. Basta-me chamar-vos frei Pedro.
Quanto a mim, digo-vos apenas que me chamo Eduardo. Dá-vos
vontade de rir? Ride! Paris é uma cidade tumultuosa. Vós a
conheceis bem?
- Vivo aqui há quatro anos.
- Gostaria que me indicásseis aquilo que o forasteiro sozinho não
consegue ver ... talvez vossos deveres não o permitam, já abusei
muito do vosso tempo ...
- Sois muito gentil, senhor Eduardo. Agora vou à universidade
... oh! não para estudar, meu pobre cérebro não está à altura
... mas para levar estes manuscritos a um de nossos padres que os
esqueceu.
- Surgem como cogumelos, agora, as universidades, também lá na
Inglaterra, especialmente desde que chegaram os dominicanos e os
franciscanos. Gostaria de ver a vossa, da qual ouço falar há
muito. Fundou-a o capelão do rei, não é?
- Sim, padre Roberto de Sorbon e, quando ele ainda vivia,
chamaram-na Sorbona: ele se aborreceu muito, pois era homem grande e
modesto. Porém, se pudesse ver os mestres que hoje ensinam nela,
ficaria bem feliz.
- Ouvi dizer que agora na vossa universidade estourou uma guerra.
Achais graça? Vejo que vos estou entretendo. enquanto estais com
pressa. Posso acompanhar-vos?
- Terei muito prazer, senhor Eduardo. Sim, há uma espécie de
guerra. Houve uma briga entre estudantes e cidadãos (tanto uma parte
como outra havia bebido demais) e, até aqui, nada de mal. Porém
os estudantes agrediram os guardas que intervieram e foram presos. O
reitor da universidade pediu sua liberdade imediata, mas não foi
atendido. Fato semelhante já tinha acontecido outra vez: então mais
de dez mil estudantes abandonaram a universidade em sinal de solene
protesto. e as autoridade cederam. Desta vez, porém, o conflito
continuou no seio da própria universidade. Os professores seculares
queriam abandonar Paris ou, pelo menos, fechar a universidade. Os
dominicanos e os franciscanos, porém, declararam que por causa de uma
briga de estudantes embriagados não deixariam de difundir a ciência.
E agora os frades estão sozinhos dando aula, enquanto os professores
seculares não concordam com isso. Eis explicada a guerra.
E eis-nos na universidade. Posso entrar convosco? Claro, senhor.
Santo Deus, que barulho!
- Agora está se realizando um quodlibet dirigido por mestre
Alexandre de Hales. Cada um pergunta o que quer., e o mestre deve
responder a tudo. E às vezes as perguntas são...
- Deixa-me assistir à aula. Quem é aquele professor? Um
franciscano ao que parece. Nunca vi uma cabeça tão pequena.
- Deve ser padre Boaventura. Sim, é ele. Padre Boaventura é
na Ordem franciscana o que frei Tomás é na Ordem de São
Domingos.
- Ou seja?
- O coração, senhor Eduardo. ..
- Parece tenha nascido... sem pecado original.
- O mesmo pode-se dizer também de frei Tomás, embora seja
difícil encontrar dois homens mais diferentes.
- Conhecem-se?
- São bons amigos, e diz-se que mesmo quando não falam. um sempre
sabe o que o outro pensa.
- Gostaria de ficar um pouco aqui ouvindo padre Boaventura.
- Eu preciso ir entregar os manuscritos.
- Ah! sim, é verdade, tinha esquecido. Talvez na volta ...
Vede quanta gente lá em baixo, na praça. Que estarão fazendo?
Devem ser pelo menos uns quinhentos. Já sei, uma demonstração de
protesto.
- Não, não; senhor. É uma lição de mestre Alberto de
Ratisbona. É sempre assim. Agora deve dar aula na praça, porque
nenhuma sala é suficiente. Os parisienses acostumaram-se, tanto
assim que a praça agora é chamada de Place Maubert, praça de
mestre Alberto. Aquele homenzinho sentado ... à direita da fonte
... é ele.
- Aqui começa de fato uma era nova.
- Que dizeis, senhor Eduardo?
- Oh! nada! Também mestre Alberto é um santo?
- Creio que sim, embora alguns duvidem, porque estuda cestos livros
perigosos de alquimia, de necromancia, e coisas semelhantes. Muitos
o tomem. Há também outro lá embaixo que muitos temem.
- Aquele de cara de pergaminho e de olhar cintilante? Franciscano
ele também ...
- E nosso patrício. Frei Rogério Bacon.
- O quê é que está pondo no nariz daquele homem? Parecem dois
anéis de ferro com um cabo ... Estará talvez explicando algum
instrumento de tortura?
- Não, senhor. E verdade que dizem dar dor de cabeça. Trata-se
de vidros polidos que servem para ver melhor.
- Obra de magia? Os franciscanos não deveriam cuidar disso.
- Ao invés parece que frei Rogério experimenta tudo que lhe vem à
cabeça. Aqui, porém, não se trata de magia: ele explicou-me.
Cada um dos dois anéis de ferro contém uma janelinha de vidro
esmerilado e polido de modo especial, e assim quem tem a vista fraca
por doença ou velhice pode ver de novo nitidamente. Mestre Rogério
deu um desses aparelhos ao nosso velho padre Gaudêncio, que pôde
novamente ler o breviário... embora lhe dê dor de cabeça.
- E uma invenção de mestre Rogério?
- Não sei com certeza, mas ele inventa sempre alguma coisa. a sua
quarta ou quinta invenção que vejo. Tem-na no sangue, essa mania,
e no seu gabinete há sempre uma tal fetidez que ninguém o vai
visitar. Certa noite ouviu-se, vinda do seu quarto, uma tremenda
explosão ...
- Meus Deus!
- E foi a custo que alguém decidiu ir ver do que se tratava.
Encontraram a cela inteiramente destruída, como se meia dúzia de
demônios tivessem pisado tudo, enquanto frei Rogério jazia num canto
com as mãos e o rosto queimados e sangrando. Falou de não sei que
invenção, mas ninguém se deixou enganar, e o reitor deu ordem de
limpar tudo e jogar fora todas as substâncias venenosas. Depois de
duas semanas o quarto estava como antes. Frei Rogério está sempre
sem um tostão (nem pode guardar dinheiro, como franciscano), mas
tem muita disposição para esmolar, e acaba sempre por conseguir tudo
que precisa. Ultimamente começou com afinco a estudar matemática
porque, diz, o próprio Deus estudou-a. Ontem frei Tomás
assegurava que mestre Rogério saberia construir uma tripeça com a
qual o homem poderia voar como um pássaro.
- Deve ser louco.
- Sem dúvida, mas trata-se de loucura clarividente. Mestre
Alberto gosta dele, embora discutam por causa de coisas que têm nomes
compridos como a altura da catedral. Frei Tomás também gosta dele,
e quer bem a todos, desde que não sejam hipócritas. Não pode
suportar a hipocrisia.
- E onde está o vosso Tomás?
- Na última sala. Eis-nos chegados, finalmente.
- Bem, ide entregar vossos escritos. Espero-vos aqui.
- Volto logo.
- Não há pressa. Fico assistindo à aula.
- Mestre Tomás, qual é a definição da "vida"?
- Movimento autônomo. O que se move por si é vivo. Nós temos de
morrer para sermos movidos por Deus.
- Mestre Tomás, eu tenho um amigo em contínuo perigo de pecar
contra a castidade. Ele luta contra seus baixos desejos, mas esses
parecem aumentar em vez de diminuir.
- Quando um cão ataca um homem e este volta-se para lutar com o
cão, pode ser facilmente derrubado e mordido. Se, porém,
prossegue em seu caminho, o animal desistirá. Dize ao teu amigo que
procure não lutar com seus desejos, porque quanto mais os toma em
consideração tanto mais aumentarão: dize-lhe que pense intensamente
em Nosso Senhor, e sua força de vontade aumentará muito.
- Eis-me aqui, senhor Eduardo. Vamos indo?
- Preferiria ficar, mas esse homem deixa-me com a cabeça zonza,
como se um gigante batesse nela com uma lança de sete pés.
- Então, vós também sois soldado, senhor Eduardo?
- Esperai um instante. Que pergunta aquele homem de cabelos
vermelhos?
- Mestre, como podemos saber que a verdade existe de fato? Conheço
alguém que duvida de tudo.
- Estás enganado. Não é possível que tu conheças um homem
assim. Quem duvida de tudo deveria duvidar também que duvida de
tudo. Deveria duvidar da própria existência. Mas quem duvida
dela? Por outro lado, esse tal deve admitir que sua vida é uma
contínua contradição a essa teoria. Duvidando que existe alimento,
ele comerá. A posição do cético integral é absurda; portanto o
cético integral não existe. Há, pelo contrário, pessoas que
pretendem não ser possível conhecer a verdade porque esse conhecimento
acarretar-lhes-ia certas obrigações morais. Após ter perguntado
"que é a verdade?", Pôncio Pilatos condenou à morte um homem
que ele reconhecia inocente.
- Mestre, como se define a verdade?
- Verdade é a concordância entre coisa e intelecto: erro é a sua
não concordância.
- Podemos conhecer toda a verdade sôbre uma coisa?
- Não, Somente Deus a conhece. Isso, porém, não quer dizer
que o nosso parcial saber não seja verdadeiro. Por exemplo, se tu
apanhas na rua um pedaço de estanho e pensas "isto é prata",
cometes um erro. Mas se pensas "isto é um metal", o teu pensamento
é justo e permanece verdadeiro, ainda que não saibas se aquele
pedaço de estanho perdi-o eu e que antes fazia parte de um copo.
Eu, por minha vez, sei estas duas coisas, e o meu saber é
verdadeiro, ainda que não saiba que tu passarás e apanharás o
pedaço de estanho. Deus, porém, sabe o que tu sabes e o que eu sei
e tudo que se possa saber em torno daquele pedaço de estanho: sabe a
sua origem, onde irá acabar na consumação dos séculos, e tudo que
há entre o início e o fim dele. Conhece-lhe todas as qualidades,
muitas das quais podem ser desconhecidas por nós, e sabe com precisão
que parte tenha nos desígnios do universo. Todavia, o teu e o meu
saber são verdadeiros, embora incompletos. Guarda-te, amigo, do
filósofo para o qual a verdade não cai no âmbito do nosso
conhecimento. Qualquer que seja a sua filosofia, levará à ruína e
ao nada, e desta espécie de homens São Paulo diz: "Cuidado que
ninguém vos leve ao engano com sua filosofia".
- Vinde, frei Pedro, mais que isto não posso digerir num dia.
Aquele mestre é alto e gordo, mas é estranho que possa carregar o
peso do seu cérebro. Preferiria combater sozinho com cinqüenta
pagãos a discutir um assunto com o vosso frei Tomás.
- Oh! não é fácil, especialmente quando não se está
acostumado. De fato, minha pobre cabeça não consegue
acompanhá-lo, mas é confortador pensar que temos cérebros desses
capazes de defender a nossa fé. É um alívio, quando nos ocorrem
certas dúvidas. Eis, se fossem homens vaidosos ocupados apenas em
forjar a própria ciência...
- Frei Tomás não é vaidoso?
- A única coisa que sabe da vaidade é a sua definição.
- Guardai-a para vós. Prefiro crer-vos. Que dissestes? Que a
vossa cabeça não consegue acompanhá-lo; mas sois feliz em vosso
estado?
- E muito! Frei Tomás ensinou-me a pensar.. . até onde
chego. E consegui fazer descansar meus sentimentos. Coisas ambas
necessárias. Aqui há muito trabalho no horto ... para mim e para
frei Robin, que a seu tempo foi escudeiro. Agora somos iguais em
grau e muitas vezes penso ser ele o melhor de nós dois ... e não
só no trabalho do horto. Não tinha nenhum motivo para retirar-se do
mundo, salvo o desejo de permanecer junto de mim. Para ele é muito
mais difícil chamar-me frei Pedro do que para eu chamá-lo frei
Robin. Ademais, deixou cortar os bigodes de muita má vontade.
- E vós pensais permanecer frei Pedro por toda a vida? Pareceu-me
ouvir um suspiro. Emitistes os votos?
- Não, não me permitiram. Eu queria ... naquela ocasião.
- Quem sabe se um dia trocareis de novo a enxada pela espada e o burel
pela couraça. Há muita alegria no lombo de um cavalo, e para mim
não parece tenhais nascido para monge. Não tendo emitido os votos,
podeis ir a qualquer momento, não é? Eu conheço alguém que
aceitaria vossos serviços, sir Piers Rudde.
- Como! vós sabeis meu nome?
- Fostes cavaleiro de meu tio, o conde de Cornualha. Depois
combatestes na cruzada de rei Luís, o meu ótimo anfitrião. Sou
Eduardo do Plantageneto.
- Sabia-o, príncipe. Quando estava em Londres e vós ainda
éreis menino, vi muitas vezes a vós e ao vosso augusto pai. A
princípio não tinha certeza, mas quando me dissestes chamar-vos
senhor Eduardo pensei que o meu príncipe queria ver Paris a seu
modo.
- Agradeço-vos pelo que me mostrastes. Pensai naquilo que vos
disse, e se um dia tiverdes necessidade da minha ajuda. procurai-me.
Agradeço-vos e vos cumprimento, sir Piers.
- Deus vos abençoe. alteza. Transmiti minha afeição à
Inglaterra,
Guilherme de St.-Amour, cônego de Beauvais e doutor da
Sorbona. testava sentado na poltrona graciosamente esculpida. Era
uni homem grácil, de rosto nobre e bem pronunciado, olhos cinzentos e
frios, em que sempre havia um lampejo de ironia.
Nem seu inteligente amigo Cristiano, oriundo como ele de Beauvais,
nem o encorpado Otão de Douai duvidavam da sua superioridade
intelectual sôbre todos os presentes, sem mesmo excetuar o reitor da
Sorbona, João de Gecteville que, envolto num amplo manto, negro
como numa nuvem de temporal, estava sentado à secretária.
- Gostaria de saber o que fará o papa - disse João de
Gecteville.
- Meu caro amigo, - interveio Guilherme de St.-Amour com voz
nasal - todos conhecemos vossa extraordinária capacidade de dizer
coisas óbvias. Vossos sermões brilhavam de banalidade, e com eles
adquiristes fama de discreto. Todos nós quereríamos saber o que
fará o papa. Nestas seis semanas procuramos identificar-nos com
ele. Eu, pelo menos, fiz isso. O pior é que também ele tem seus
desgostos. Rei Manfredo mostrou-se em vários modos digno filho do
grande Frederico. Provavelmente incomoda mais o santo padre do que
seu irmão Conrado, antes de ir para o outro mundo.
- Fala-se que Manfredo tenha-o envenenado - disse Cristiano.
- São os mesmos boatos que ouvimos na corte de Frederico - observou
Guilherme. - E por que não? É sempre difícil crer que um tirano
tenha morrido de morte natural. Admito que, apesar de tudo, não me
era antipático. Era um monstro magnífico, o último dos
megalômano.
- Falais a verdade? - perguntou João docemente.
- Explico-me: era um homem de espírito, qualidade que me leva a
perdoar-lhe muita coisa. Lembrais quando mandou assaltar os navios
que levavam todos aqueles prelados à França e Espanha?
Naturalmente, foi um crime, mas lembrais suas palavras quando
Berardo de Palermo o repreendeu: "Que podia fazer? Não queriam
absolutamente caminhar sôbre as águas".
Otão de Douai abaixou a cabeça e explodiu numa gargalhada, enquanto
os outros permaneciam sérios.
- Caro João, gostaria de saber se vós teríeis caminhado sôbre as
águas - objetou Guilherme. -Mas, voltando ao assunto: na
Itália as coisas vão mal, como sempre.
- No entanto o rei Luís não permitiu o papa enviar à Itália o
duque d'Anjou - observou Cristiano.
- Todos sabem que o rei Luís tem bom coração. Não quis que os
italianos fossem domesticados com os escorpiões - explicou
Guilherme. E desta vez todos riram. - Alexandre IV - prosseguiu
Guilherme - é novo na cátedra de Pedro, e tem muito que fazer com
o pequeno Manfredo. Provavelmente por enquanto não quer grandes
mudanças na Igreja... e, não resta dúvida, a abolição das
Ordens mendicantes seria uma grande mudança. Precisamos, pois,
demonstrar-lhe que esses mendicantes não só exercem uma influência
inquietante, mas representam mesmo um perigo para a vida da Igreja.
Por isso mesmo intitulei minha obra Perigos do Nosso Tempo. Numa
época em que é atacada de fora, não pode a Igreja permitir-se tais
atividades demolidoras dentro de si mesma.
- Não o digo com gosto, - resmungou João - mas trata-se do ato
de acusação mais brilhante que eu já tenha lido. E, graças a
Deus, não é espirituoso.
- Tivemos de esperar bastante - disse Guilherme com amargura. -
Juraria que os frades mendicantes ter-nos-iam assaltado pelas costas
quando a universidade deu a única resposta possível à insolência das
autoridades citadinas. Mas não bastava. O papa não é reitor da
Sorbona e não compreende que, para nós, a universidade está acima
de qualquer outra coisa. As rãs d'água benta poderiam ter vencido
até com facilidade: bastava que dissessem, como disseram logo, que
nada deve reter a. difusão da ciência. Mas agora apanhamo-las.
- Sôbre quinze professores, nove são mendicantes - disse João de
Gecteville. - E insuportável.
- Não consegui obter uma cátedra nem para meus sobrinhos murmurou
Otão de Douai.
- Apanhamo-las - repetiu Cristiano. - Suponho que estás
aludindo à tese do geral dos franciscanos sôbre Evangelho
Perpétuo. Como pôde João de Parra escrever coisa semelhante, e
por cima na posição que ocupa?
- Quando os deuses querem arruinar alguém começam por cega-lo -
sentenciou Guilherme sorrindo. - A tese contém heresia suficiente
para incendiar meia dúzia de Ordens mendicantes. Os dominicanos
condividirão da sorte de seus irmãos marrons, e assim
livrar-nos-emos de ambos. Na minha tese, como sabeis, admiti que
antes eles tinham uma finalidade, e que a Igreja agiu sabiamente
tolerando-os por algum tempo. Mas agora não precisamos mais deles.
Pastores e mestres são os bispos e os padres, não mais os frades.
Daqui há pouco irão pretender que nós todos vivamos como eles ...
de nada. De minha parte recuso terminantemente mendigar. Não é
costume na minha família. Por outro lado, no quartel-general do
santo padre encontraremos muitos amigos. Não fosse a situação
política, não teria a menor dúvida sôbre o êxito da coisa, por
quanto difícil que seja.
- Quando devemos estar prontos para partir? - perguntou Cris
- Os mendicantes receberam hoje o convite para irem ter com o santo
padre, assim como nós. A única coisa que conta é chegar antes:
não muito, mas o quanto baste para preparar-lhes uma recepção
cordial. Portanto, deixemo-los partir.
- Mas, não dissestes que é preciso chegar antes? - observou
Otão.
- Sim, caro amigo, mas não há vantagem em precedê-los de alguns
meses. Não creio que queiram fazer todo o caminho a pé: mesmo para
aqueles fanáticos, um convite do santo padre deveria ser motivo
suficiente para uma dispensa. De qualquer modo, como pensais que
viajarão?
- Em lombo de mula - respondeu Otão rindo.
- Muito bem. Porém meus cavalos borgonheses não têm rivais em
toda França. Deixemo-los partir; quando forem saberemos logo,
pois terão de enviar suas melhores cabeças que, portanto, faltarão
na universidade. Nós partiremos um dia depois, e chegaremos onde
está o santo padre pelo menos uma semana antes: o que basta.
- Meus cumprimentos! - exclamou Cristiano. - Pensastes em tudo,
e eles podem considerar-se perdidos.
- Assim seja - concluiu João de Gecteville.
- Não podemos suportar aquela gentalha - disse Guilherme. Odeio
sua falsa humildade, seu ascetismo que não passa de prazer negativo,
a louca e insaciável curiosidade de Rogério Bacon, a maneira com
que todos deixam-se cativar pelo pequenino Boaventura, e aquela
fantástica idéia de Alberto e Tomás de ensinar o catecismo a
Aristóteles- Boa noite, amigos; vou-me antes de pecar contra a
caridade para com o próximo. - E se afastou.
- Interessante aquele "antes"! - riu Otão. - No entanto,
creio que fale seriamente.
- Concordo; não obstante sua ironia, nosso Guilherme é um
idealista, - comentou Cristiano -além de ser a mente mais aguda do
nosso tempo.
- Pouco me importa o que seja, desde que nos liberte dos frades
mendicantes - disse João. - O que vale é a universidade.
- Meu amigo, este negócio é maior que a universidade - observou
Cristiano.
- Não há nada maior - concluiu João de Gecteville.
Nada melhor do que trabalhar no horto quando não se consegue libertar
dos próprios pensamentos, especialmente se estes rodam em volta
procurando morder o próprio rabo. Frei Pedro trabalhava com a testa
suada.
Não levantou o olhar nem mesmo quando frei Robin o alcançou, e
continuou trabalhando em silêncio até que este não pôde mais deter
os segredos que lhe oprimiam o coração.
- Houve temporal, um grande temporal a propósito da guerra com a
universidade.
Frei Pedro resmungou algo de ininteligível.
- O frade cozinheiro diz que, ao que parece, o papa dissolverá a
Ordem. Esse perigo, ele soube-o pelo prior. O doutor Guilherme
de St.-Amour compilou uma acusação contra a Ordem e contra os
franciscanos, e a enviou ao papa; é uma coisa séria, dizem o prior
p o cozinheiro.
Frei Pedro grunhiu uma frase que continha o nome de St: Amour entre
palavras incompreensíveis, mas certamente não muito gentis.
- E agora o papa convidou para Anágnia o grande Guilherme bem como
mestre Alberto e frei Tomás, que partem amanhã depois da segunda
missa.
Frei Pedro virou ainda três pás de terra e depois perguntou:
- E o adversário? Digo St: Amour, quando parte?
- Não sei, senhor ... frei Pedro.
Este enterrou a pá na terra como um soldado finca a espada no corpo do
inimigo e afastou-se. Pouco depois estava diante de mestre Alberto.
- Não pergunto como tenhas conseguido sabê-lo - disse o pequeno
mestre com um lânguido sorriso. - Vivi muitos anos nos conventos.
Não, não iremos a pé, porque empregaríamos muito tempo e sua
santidade tem pressa. Iremos com as mulas e a velha carruagem, que
está numa das estrebarias.
- Podemos guiar, frei Robin e eu?
- Não é má idéia. Afinal, estais aqui há quatro anos: uni
pouco de movimento far-vos-á bem.
- Obrigado, padre Alberto, mas a carruagem é muito velha e nada
sólida; o mesmo pode-se dizer de Cunegunda e de Porciúncula: a
primeira é gorda e preguiçosa, a segunda caprichosa.
- R verdade, frei Pedro, mas que se pode fazer?
- O doutor St.-Amour tem ótimos cavalos, eu os vi: raça de
Bor
- Feliz dele! - retrucou Alberto sem se irritar.
- Mas chegará muito antes, e aproveitará o tempo.
- Tal eventualidade não me escapou e é deplorável. Infelizmente
nada podemos fazer. Não temos dinheiro para adquirir uma carruagem e
cavalos. Somos frades mendicantes.
- Compreendo, padre Alberto. Poderia dispensar-me esta tarde para
... para os preparativos?
- Pois não.
- Obrigado, padre Alberto.
"Que intenções terá ele?", pensou o pequeno mestre enquanto o
porta fechava-se atrás de frei Pedro. Mas logo seus pensamentos
voltaram ao grave perigo que ameaçava a Ordem. Ainda não tinha
conseguido obter uma cópia dos Perigos do Nosso Tempo.
St.-Amour, um adversário temível, ladino de primeira ordem,
tinha enviado cópia ao papa e ao rei Luís. O papa tinha passado a
dele ao geral da Ordem, o venerando Humberto de Romanis, e este
não ousara enviá-la a Paris. Era um documento muito longo, e o
copiá-lo requeria muito tempo: portanto o geral limitara-se a mandar
para Paris apenas o sumário. .antes de chegarem a Anágnias
Alberto e Tomás nada podiam fazer, e já teriam encontrado lá
St.-Amour que, com seus amigos italianos, insistiria numa ação
imediata.
Além da carta do geral dominicano havia a tese do geral franciscano:
Introdução ao Evangelho Perpétuo, combatida por St.-Amour, e
este era de fato um passo em falso que St.-Amour aproveitaria até o
fim. Se o ataque desse resultado, a obra de S. Domingos e de S.
Francisco podia ser considerada liqüidada juntamente com a de
Tomás, Boaventura e Rogério Bacon. Era o fim da gloriosa
imitação da pobreza de Cristo, o fim da Ordem.
Com a cabeça pesada apoiada nas mãos juntas, mestre Alberto orava
com insólito fervor.
Frei Pedro há muito tinha deixado o mosteiro de São Tiago.
Chegado ao palácio tomou à esquerda e entrou no amplo pátio das
cudelarias reais onde abordou um homem que, mais que os outros, tinha
no chapéu grandes galões de ouro, e pediu-lhe mandasse um recado a
sua alteza o príncipe Eduardo de Inglaterra. O guardião (Ias
cudelarias olhou-o atentamente. Poderia um frade dominicano estar
bêbado? Não se falava que aqueles frades no refeitório juntavam
água até na cerveja para que não ficasse forte? Que pensava este?
Devia ser um criançola, ignorante do mundo.
- Isso aqui, irmão, são as cudelarias reais ...
- Não sou cego nem perdi o olfato - interrompeu o frade, talvez um
pouco menos paciente do que requeria a sua condição.
- A entrada ao Palácio é lá, não vedes? E se é de esmola que
se trata, vinde amanhã às oito, quando o rei volta da missa. Todos
os dias dá comida a quatrocentos pobres.
- Caro amigo, possam os santos dar-me muita paciência e a vós um
pouco de sal para a cachola. Sei qual a diferença entre um palácio e
uma estrebaria, e conheço os hábitos cristãos do rei, que Deus o
abençoe. Não quero pedir-lhe nada, mas peço-vos mandar alguém
ao príncipe Eduardo, que é hóspede do rei, e dizer-lhe que frei
Pedro, aqui presente, sentir-se-ia muito feliz se obtivesse alguns
minutos do seu precioso tempo.
- Como? Vós quereis que sua alteza venha aqui, às
cudelarias... justamente por vossa causa?
- Finalmente conseguistes compreender!
- Certamente não virá.
- E verdade, especialmente se ninguém o for chamar. Justamente por
isso rogo-vos enviar-lhe um recado: ele resolverá.
O guardião das cudelarias estava para explodir, mas lembrou-se a_
tempo que o rei tinha uma predileção absurda pelos frades
mendicantes, que até comiam à sua mesa. Além disso, os ingleses
tinham hábitos esquisitos. Talvez na Inglaterra fosse natural um
príncipe encontrar-se com um frade nas estrebarias. Em todo caso,
era o único meio de tirar daí o frade.
- Está bem - disse e, dadas as instruções a um de seus homens,
voltou ao seu trabalho.
O frade começou a examinar os cavalos assobiando enquanto passava de
um a outro. Raça borgonhesa! A concorrência não era fácil. E
ainda estava examinando cabeças soberbas e pernas robustas quando ouviu
lona alegre voz juvenil:
- Onde está o meu amigo, o frade mendicante?
- Eis-me, alteza. aspeto do príncipe Eduardo era muito diverso
daquele do senhor Eduardo. Em vez de um simples manto preto, sem
colarinho nem pelica, vestia um casaco de veludo azul, bordado de
merlim, e um manto da mesma cor, enfeitado de safiras.
- Não imaginava ver-vos tão logo, frei Pedro. Mas estou
contente: e agora dizei-me por que me tirastes do baile com as belas
damas da corte.
Era a mais amável das repreensões.
- Alteza, garantistes-me que poderia vir quando tivesse necessidade
de ajuda ...
- Pela santa fé, claro que o disse. Que desejais, pois?
- Lembrais mestre Tomás de Aquino que na universidade ...
O príncipe riu.
- Seria difícil esquecê-lo, ainda que quisesse. Suas
definições roubaram-me diversas horas de sono.
- Eis, pois. Agora ele precisa ir a Anágnia, a chamado do santo
padre. A nossa Ordem foi caluniada pelos doutores leigos, que
pretendem seja dissolvida. Eu preciso levá-lo com uma carruagem que
... parece construída com as relíquias da arca de Noé, e puxada
por duas mulas perfeitamente adaptadas à carruagem. O doutor
Guilherme de St.-Amour possui, porém, um belo coche com cavalos
borgonheses ... e se chegar antes, colocará contra nós o céu e o
inferno.
- Charles! - gritou o príncipe com voz imperiosa. - John!
Os dois homens chegaram correndo com o chapéu na mão.
- Uma das minhas melhores carruagens, carro para viagem, não de
gala. E dois dos meus melhores cavalos. Ide buscar Falcão e
Gavião. Rápido!
Charles e John saíram às pressas.
- Por Nossa Senhora - disse o príncipe - St.-Amour pesa
provavelmente menos que mestre Tomás, mas não levará nenhuma
vantagem. Em França não há cavalos que possam competir com
Falcão e Gavião, exceto o meu Borea. Aposto com qualquer um.
Pensais que o bravo St.-Amour se arrisque a apostar comigo cem
libras de ouro?
- Tomo a liberdade de duvidar, Alteza, - respondeu frei Pedro
radiante. - Deus vos abençoe. Oh! que belos animais!
Eram lobunos tão belos quanto fortes que, à carícia do príncipe,
atiraram para trás a cabeça soberba.
- Este é Falcão e estoutro Gavião. São vossos enquanto deles
precisardes, com uma condição, porém: terminada a missão
trá-los-eis de volta pessoalmente.
Os olhos de frei Pedro brilhavam.
- Vós sabeis que não sou dono de mim mesmo, mas, cumprida a minha
missão, pedirei aos superiores a permissão para trazer-vos
Falcão, Gavião, a carruagem ... e a mim mesmo.
- Por minha fé, - disse Eduardo - isso é melhor que uma aposta.
Estamos combinados. Comunica a mestre Tomás de Aquino meus
respeitos, e dizei-lhe que seremos felizes em cumprimentando-o um dia
na Inglaterra, se seus deveres lho permitirem. Sua visita honrará
não só os dominicanos de Oxford e de Londres, mas a toda a
Inglaterra.
- Este, alteza, é o vosso melhor presente.
- Apressai-vos, - exortou Eduardo rindo - e mandai àquele lugar
o bandido que abuse do belo nome do amor. Do resto, cuidará mestre
Tomás.
Os cavalos já estavam atrelados. Frei Pedro subiu à boléia com um
salto, tomou das mãos de Charles as rédeas e das de John o
chicote, estalou a língua e os nobres animais partiram como um raio.
Poucos minutos depois o veículo entrava no pátio do convento e não
foi por puro acaso que parou debaixo da janela de mestre Alberto.
Este apareceu:
- Que acontece, frei Pedro?
Eis, padre Alberto, uma carruagem e dois cavalos dignos dos
viajantes.
- Espero que o príncipe de Inglaterra esteja informado - disse
Alberto.
- Deseja-nos feliz viagem. Mas como sabeis ...?
- Será oportuno tirar o emblema. Mas se tudo for tão bem como os
teus preparativos, a vitória estará garantida.
- Asseguro-vos que chegaremos a Anágnia antes do doutor St:
-Amour. - Piers não cabia em si de alegria.
- Não se pode dizer que tu falas com humildade - observou Alberto.
- mas assim me alegro.
Quatro cardeais, envoltos em longas capas cor de fogo, presidiam.
Diante deles ondeava em largo semicírculo um mar de eclesiásticos de
toda espécie e grau: padres e monges, prelados e abades,
dignatários da Cúria, mestres de teologia e de fisolofia. As cores
dominantes eram o vermelho e o preto, enquanto o branco dos dominicanos
e o marron dos franciscanos pareciam corpos estranhos.
A delegação dos franciscanos era composta pelo geral, João de
Parra, frei Boaventura, dois abades de Roma e de Milão e alguns
irmãos mais jovens. A dos dominicanos pelo geral, o velho e frágil
Humberto de Romanis, mestre Alberto de Ratisbona e Tomás de
Aquino. Os freis Pedro e Robin, sentados atrás deles e esmagados
pela gala da assembléia, sentiam-se pouco à vontade.
Mestre Alberto convidara João de Parra e frei Boaventura , a
fazerem a viagem no rápido veículo de que dispunha a Ordem, e os
franciscanos, não mais ricos que os dominicanos, tinham aceito o
convite com gratidão. Do doutor St.-Amour e de sua delegação
não se via sinal.
- Se não sabem voar como pássaros, não nos alcançarão -
garantia frei Pedro. Falcão e Gavião confirmaram suas palavras.
Em compensação ele pedira, para si e para frei Robin, a permissão
de assistir à reunião. - Não há inglês que não goste de
assistir a uma bela batalha. -E mestre Alberto conseguira a
permissão.
Parecia que a Cúria tivesse decidido superar em velocidade até mesmo
Falcão e Gavião. Os viajantes mal tinham anunciado sua chegada,
quando veio uma carta do cardeal Eudes de Chateauroux com o lacônico
convite para apresentarem-se dentro de trinta e seis horas diante do
tribunal eclesiástico. Tratava-se provavelmente das preliminares,
as quais, porém, podiam também ser decisivas.
Trinta e seis horas! Nem tinham ainda visto, e muito menos
estudado, a acusação que pedia a dissolução das Ordens
mendicantes. Entretanto, Humberto de Romanis tinha mandado fazer
diversas cópias, e entregou-as a mestre Alberto e frei Tomás, que
as receberam de joelhos, retirando-se às suas celas.
Na manhã seguinte, às sete horas, frei Robin apareceu com um jarro
d'água na cela de frei Tomás e o encontrou ajoelhado diante do
crucifixo. A cópia dos Perigos do Nosso Tempo, ainda estava
enrolada sôbre a mesa. A cama intata. Tomás tinha passado em
oração as primeiras doze das preciosas trinta e seis horas.
Levantou-se, fez um aceno cortês a Robin, acompanhando-o com um
sorriso distraído, pôs-se a trabalhar.
As doze horas de oração seguiram-se doze de trabalho e doze de
sono.
Na manhã do processo ele estava pronto e aguardava, tranqüilo, ser
chamado. Junto dele mestre Alberto parecia mais pequeno que nunca,
finas a força magnética encerrada naquele corpo minúsculo era tão
forte que ninguém, em volta dele, conseguia ficar parado, salvo
Tomás. O próprio Alberto não se movia. O velho geral estava
absorto, de olhos fechados. Depois começou a invocar o Espírito
Santo e a orar para ser preservado do erro.
Antes falou o cardeal de Chateauroux, homem de cabelos brancos e
olhos redondos. "Parece uma coruja", pensou Piers "mas não
mansa".
Ao lado dele, o cardeal João Franciago, de rosto arredondado e
gentil, parecia pouco à vontade. Os processos não deviam ser do seu
gosto. Era mais fácil imaginá-lo preocupado a saciar e vestir os
pobres, ou, como legado papal, prescrevendo a algum príncipe
insatisfeito uma dose de cristianismo para sará-lo do seu mau
caráter.
O cardeal Hugo de St.-Cher, homem alto e magro, ossudo, com uma
testa enorme, os olhos sempre semicerrados, o nariz longo, os lábios
finos, não era (pensava Piers) o homem que se encontraria com
prazer tendo a consciência pouco limpa.
O cardeal João de Ursini, baixo e troncudo, com dois olhos negros
e brilhantes, a quem nada escapava, um dos mais competentes em direito
canônico, cérebro agudo como uma lâmina, era o mais jovem dos
quatro juizes.
- ... e, por isso, convidamos para a defesa da citada acusação,
frei Tomás de Aquino da Ordem dos pregadores.
Piers suspirou profundamente.
Tomás levantou-se segurando o rolo dos apontamentos, que parecia um
pequeno bastão ou um cetro. Não dava, porém, a impressão de um
capitão ou de um rei: era um homem alto, forte, amável, que falava
com voz límpida e calina.
Quatro anos de vida como frade leigo não conferem vasto saber
filosófico ou teológico, de modo que Piers não compreendia nem a
metade do que Tomás ia dizendo. A maior parte de sua vida tinha sido
soldado, vira esquadrões de cavaleiros encouraçados chocar-se,
assistira a assaltos furiosos e fulminantes dos árabes e diversos
duelos entre guerreiros famosos pela força e coragem. Mas nunca vira
o que estava vendo agora. Parecia-lhe (e não só a ele) que entre
Tomás e os quatro juizes surgisse uma figura gigantesca e nebulosa: a
personificação da acusação adversária. Contra esse fantasma o
homenzarrão, forte e amável, atirava-se, começando aquilo que se
podia definir uma demolição. Mas não batia, não golpeava de
ponta, nem parecia zangado com o fantasma: contentava-se em
demoli-lo. Destacava um pedaço após outro e mostrava aos juizes com
ares de quem deplorava serem de qualidade tão baixa. O espetro
diminuía. Tomás extraiu-lhe o cérebro com cuidado científico e
demonstrou com perfeita objetividade que estava cheio de tumores.
Tirou-lhe delicadamente o coração e o apresentou de modo a que todos
vissem nele não um órgão vivo, mas uma massa de pequenas chagas.
Todas as citações da Sagrada Escritura incluídas nos Perigos do
Nosso Tempo eram destacadas como pérolas contaminadas pelo ambiente,
e postas aos pés dos juizes para que as limpassem.
Enquanto aquele trabalho pacato, sistemático e feroz continuava,
Piers. embora sem compreender os termos teológicos e acompanhar os
raciocínios, pôde ver o andamento da batalha. Notou a calma
impertubavel de Tomás, seus gestos comedidos, mas significativos e
eloqüentes. Viu o cardeal de Chateauroux aprovar com a cabeça e o
cardeal Franciago inflar as bochechas como alguém que sofresse uma
forte pressão. Os olhos pretos do cardeal Ursini pareciam
transpassar o orador. Sómente o rosto comprido do cardeal
St.-Cher permanecia imóvel.
Entretanto a demolição prosseguia desapiedada. O nome do doutor
Guilherme de St: Amour não era pronunciado, a sua pessoa não era
tocada. Não ele, mas seu escrito era o alvo do ataque, e já agora
do fantasma gigantesco e nebuloso restavam apenas alguns pedaços.
Tomás aprestou-se a migalhar também aqueles pedaços e
pulverizá-los com uma paciência verdadeiramente angélica e sem nunca
levantar a voz.
No fim, parecia alguém que tivesse mondado radicalmente um canteiro
de flores das ervas más, e verificasse que flores não haviam nem
uma.
Quando se terminou, ficou claro que entre ele e os juizes não havia
uma ruína, não havia nem entulho, mas apenas um punhado de cinzas e
alguma poeira para a qual era suficiente um golpe de vassoura.
Inclinou-se diante dos juizes e tranqüilamente sentou-se.
O cardeal de Chateauroux olhou instintivamente para o cardeal
Franciago que estava a seu lado, e este fez o mesmo. Seus olhares
encontraram-se e rapidamente se afastaram. Piers teve de
esforçar-se para não rir, enquanto Robin, que estava na mesma
angústia, fixava os olhos no teto.
A posição mais difícil, porém, era a de mestre Alberto, que
tinha acompanhado todas as fases da fantástica batalha, vira em ação
a lógica como arma de um poder demolidor nunca visto, e queria
abraçar o discípulo que tinha superado o mestre. Porém devia ficar
sentado * aguardar o seu momento.
Finalmente o cardeal de Chateauroux retomou a palavra:
- Agora o tribunal ouvirá frei Boaventura da Ordem dos frades
menores
O jovem monge adiantou-se e se inclinou. Sôbre as cinzas do inimigo
começou não um discurso, mas uma canção que pouco tinha a ver com
os acusadores. Em vez de combater, fez a exaltação de Cristo que,
no seu servo São Francisco, tinha plasmado de novo a própria vida
na pobreza, que era o mais precioso dos tesouros: não era de admirar
que suscitasse inveja. ele, porém, pediu que para ele e seus irmãos
fosse permitido conservá-la porque só a serviço da senhora
Pobreza, esposa ideal de São Francisco, o coração e a mente
ficavam livres para o amor de Cristo ...
João de Parra chorava. Aquele era o canto de São Francisco, o
santo trovador de Deus . e do céu. Tinham razão em dizer que
compreendia a linguagem dos pássaros porque, como todos os pássaros,
ele também cantava um único canto, o canto do amor. E só a morte
podia fazê-lo calar.
Quando frei Boaventura voltou ao seu assento, o cardeal de
Chateauroux abaixou a cabeça em direção do geral franciscano.
Aquele gesto cortês significava que a defesa da Ordem dos frades
menores tinha sido ouvida. Depois chamou mestre Alberto.
O grande homenzinho levou apenas alguns minutos para cativar a
assembléia. Sómente ele nomeou o doutor Guilherme de St.-Amour
e seus amigos, nomeou-o uma única vez, mas a sua observação era
fulminante:
- Estes são daqueles que mataram Sócrates.
Depois evocou, em seu conjunto, o grandioso quadro da Ordem: o
trabalho que dia a dia desenvolvia-se mais em tantos mosteiros e em
tantos países: edifícios, livros, pregações, missões já
enviadas ou apenas projetadas; e perguntou se toda a obra de São
Domingos e de seus filhos devia ser destruída, e que valores os
acusadores da Igreja tinham para oferecer em compensação de uma perda
tão vasta ...
Quando se sentou, João de Parra levantou o olhar como se esperasse
ser chamado, mas, para sua surpresa, o cardeal de Chateauroux
levantou-se.
- A corte retira-se para deliberar. Sua Santidade será informado
do nosso veredicto.
Depois de breve oração os quatro juizes saíram. Piers viu-os
passar e pareceu-lhe notar um aceno quase imperceptível dirigido a
Tomás pelo cardeal de Chateauroux. Aliás, tinha quase certeza que
também o cardeal Ursini não só sorria, mas parecia
satisfeitíssimo, enquanto que o cardeal Franciago também olhara para
Tomás. Só o cardeal St: Cher passou mudo e profundamente
sério.
Quando porém os juizes ficaram sozinhos, estando as portas fechadas,
St.-Cher disse:
- Gostaria de saber se a Santíssima Trindade encontrará
representantes melhores que os três defensores de hoje.
Depois de uma conferência de pouco mais de uma hora, os juizes
disseram ao papa que não era necessários outros debates. O papa
promulgou uma bula que declarava o libelo Perigos do Nosso Tempo mau
e celerado. E em sua presença o escrito foi queimado publicamente.
Três dias depois St.Amour e seus amigos chegaram a Anágnia.
- Cristiano de Beauvais, Otão de Douai e João de Gecteville
retrataram-se por escrito - disse Humberto de Romanis.
- E St.Amour? - perguntou Alberto.
- Recusou assinar.
- Quer dizer que perde a cátedra.
- Sim. E é exilado às suas terras de Borgonha. Porém trago-te
outras novidades, meu filho. A Cúria comunicou a João de Parra
que sua obra Introdução ao Evangelho Perpétuo será submetida a
frei Tomás para que faça dela uma relação.
Alberto torceu os lábios.
- Compreendo, não querem condenar a ninguém por proposta de
St.-Amour e de seus amigos. E um gesto extraordinariamente cortês
para com a Ordem mendicante.
- A Ordem dos frades menores terá logo um novo geral, - comunicou
Humberto de Romanis - e talvez se chame Boaventura.
- Boaventura tem apenas trinta e um anos, mas não se poderia
escolher melhor.
- Logo que volte a Paris, frei Tomás tornar-se-á mestre de
Teologia - disse o velho geral com um sorriso.
- Então preciso prepará-lo para isso - emendou Alberto. Não
suporta honrarias e promoções.
- Sei como pensa - riu Humberto de Romanis. - Fiz o possível
para ir-lhe contra. O santo padre queria nomeá-lo arcebispo e não
me foi fácil dissuadí-lo.
- Padre Tomás, - começou Piers - venho para despedir-me.
Mestre Alberto licenciou-me, e a Robin. Diz que vós voltareis a
França por mar. Por outro lado, eu preciso devolver a carruagem e
os cavalos ao príncipe Eduardo que, pelo que sei, já deixou
Paris. Encontrá-lo-ei em Londres.
- Entrais para o seu serviço?
- Sim, padre Tomás.
Os vossos olhos redondos olhavam longe.
- Eu sou soldado, - explicou Piers - e há muito não vejo o meu
país. Também Robin sente saudades desde que viu desaparecer as
brancas costas da Britânia.
O outro ainda não responde.
- Certa vez citastes-me uma sentença - acrescentou Piers
timidamente. - "Ama a Deus e faze o que queres". Lembrais?
Finalmente Tomás sorriu.
- Sentirei vossa falta - disse com simplicidade.
Piers estava radiante:
- Tenho um convite para vós, padre Tomás: o príncipe Eduardo
manda-vos suas congratulações e comunica-vos que ficará feliz em
ver-vos um dia na Inglaterra quando vossos deveres o permitam. Diz
que isso será uma honra, não só para os dominicanos de Oxford e
Londres, mas para todo o país. Vireis, padre Tomás?
- Espero que sim - respondeu Tomás; e naquele momento tinha os
olhos dela.
Piers ajoelhou-se:
- A vossa bênção.
A voz que tinha demolido St.-Amour, começou a orar sôbre sua
cabeça. Depois Piers levantou-se dizendo com voz trêmula:
- Ninguém pode ter um escudo mais seguro. Não me esqueçais de
todo. - E saiu da cela correndo.
Robin esperava-o no corredor: - Um momento, senhor, - e correu
liara a cela que Piers acabara de deixar. Depois de dois minutos
estava de volta com o rosto em brasa e tentava mastigar os bigodes que
não tinha. Piers fez o possível para não perceber: enquanto,
porém, se encaminhavam para a pequena estrebaria do convento, Robin
disse com voz rouca: - Há uma coisa que não compreendo em padre
Tomás.
- Que é?
Que não seja inglês.
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