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- Titio, titio ...
- Quê há?
- Titio, não consigo ver ...
- Nem eu vejo. Estão ainda todos na catedral. Fica quieto e
espera.
- Mas eu queria ver os cavalos ...
- Santo Deus, estou perdendo a paciência. Há mais de uma hora
estás sôbre meus ombros...
- Dê-mo um pouco, senhor falou.
- Arrepender-vos-eis, senhora. Ele pesa muito! Ei-lo. E tu,
tem cuidado para não sujar o belo vestido da senhora com tuas pernas
sujas...
- Os lindos cavalos!
- Sim, são as guardas do rei. Tu sabes que festa se celebra hoje?
Claro que sei: Corpus Domini.
- Muito bem. Quem a instituiu?
- O santo padre.
- Ótimo. Como se chamava o santo padre?
- Titio, por que as guardas não têm escudo?
- Nas paradas não se levam escudos. Responde à pergunta da senhora
e mostra o que aprendeste. Como se chamava o santo padre?
- Clemente.
- Sim, assim chama-se o papa de hoje: Clemente IV. Mas esta
festa no-la deu o seu predecessor, Urbano IV. Antes dele era papa
Alexandre IV e antes desse Inocêncio IV... todos quartos!
- Como estais bem informada, senhora ...
- Viúva Michard, às vossas ordens.
- Vejo que conheceis os papas em sua sucessão. Mas ...
perdoai-me se vos corrijo: o santo padre promulgou a festa, sim, mas
quem no-la deu foi o nosso mestre Tomás.
- Sim, podemos dizer assim.
- Podemos dizer? Assim é, senhora. Sem mestre Tomás esta seria
ainda uma festa local, lá em Liège ... Quando, há dois anos,
mestre Tomás voltou da Inglaterra, o papa chamou-o à Itália e
queria fazê-lo cardeal por causa de todos os seus merecimentos, mas
ele disse: "Não, obrigado, santo padre, deixai-me como sou; o
chapéu cardinalício não é para mim". O santo padre diz que a
modéstia é excessiva, e mestre Tomás responde que não, pelo
contrário. "Como, pelo contrário?", Pergunta o papa. "Quero
muito mais que o chapéu vermelho", diz Tomás. "O quê?",
interrompeu o papa. "Quereis talvez ser papa no meu lugar?".
"Deus me livre" responde Tomás. "Não faltaria mais nada!
Queria que a festa do Corpus Domini fosse uma festa para toda a
Igreja, a partir de agora para todos os séculos". Pois vejamos.
Papa Urbano IV, seja abençoada sua memória, era de origem
humilde: seu pai era sapateiro como eu, e a gente simples sabe que é
preciso especular se quer obter o que nos cabe ou um pouco mais; fez
como se estivesse refletindo e disse: "Mestre Tomás", diz "não
í• uma ninharia o que me pedis, mas vos quero dá-la... com uma
condição deveis redigir-me a liturgia da festa". "Está bem,
santo padre", diz mestre Tomás, que não é preguiçoso.
"Escrevo-a com prazer". E estava satisfeito e feliz, porque assim
tinha mais trabalho, pois ele só está bem quando tem o que fazer,
coisa que não posso dizer do filho de minha mãe. Eis, senhora
Michard, como foi a coisa e como temos a festa de Corpus Domini.
- Nunca vi tanta gente. O povo chega até lá em baixo no Sena.
- Não é todo dia que se vêem tantos príncipes juntos em Notre
Dame, como hoje.
- Diz-se que estão aqui porque teremos em breve outra cruzada.
- Não o creio. Rei Luís ...
- Vereis que retoma a cruz.
- Não lhe bastou da outra vez?
- Não se deve esquecer que já passaram dezesseis anos.
- Não ficou mais jovem. Está pálido; não me parece estar com
boa Saúde.
- Outra cruzada não, pelo amor de Deus!
- Não chores, vovózinha! Já tivestes dezesseis anos de paz.
- Graças a quê? Porque mantivemos os infiéis à distância;
deixando de conflitos pelos lugares santos.
- Porém os pagãos estão muito longe, para lá do mar. Por que
não deixa-los em paz?
- Falais assim porque não podeis julgar. Os pagãos não estão
tão longe como pensais. Ocuparam metade da Espanha, e esta é bem
perto. Apertaram um cerco em torno de nós e. se de vez em quando
não o rompermos, morreremos sufocados.
- Não me faleis em política!
- Que diríeis, vovòzinha, se uma massa de pagãos de turbante
chegasse a Paris e vós não pudésseis mais ir à missa em
Notre-Dame porque eles a teriam transformado numa mesquita para Alá
e Maomé?
- Não digamos bobagens, mestre Gaspard. Dar-lhes-ia curti a
frigideira no turbante. Mas não chegaremos a tal ponto.
- Talvez não, mas Notre-Dame será mais santa que Belém e
Nazaré?
- Quem quer encontrar muçulmanos, pagãos e heréticos não precisa
ir à cruzada. Pode -encontra-los aqui mesmo em França ...
- Em França? Na própria Paris. E os senhores eruditos são,
às vezes, os piores.
- Ouvistes, pai?
- Infelizmente é verdade. O veneno muçulmano está em ação.
Tenho ouvido até certos professores de universidade ensinar a
estudantes e cristãos a heresia averroísta: que o mundo é eterno,
que Deus não pode dar imortalidade pessoal, que a Providência
divina não existe...
- Como? E por que rezamos, então?
- Muito bem! O pior é que não se pode demonstrar que eles não
têm razão.
- Ora, pai, não conheceis mestre Tomás? Estive várias vezes
nas suas aulas e vi como procede com os envenenadores. Dava gosto
ouvi-lo. Sempre os punha com as costas à parede.
- Gostaria que pudesse combater com o mais perigoso de todo, mestre
Sigério Brabante. Depois de Abelardo não se viu dialético
igual.
- Mestre Tomás desafiou-o em público e ele não aceitou.
- Talvez seja melhor para ele; já ouvi mestre Sigério falar não
posso imagina-lo derrotado numa discussão.
- Quer dizer que não conheceis mestre Tomás.
- Seria melhor que todos deixassem de discutir e voltassem à simples
fé. Por que não confiam nos santos do passado como Santa
Agostinho, São Gregório e São João Crisóstomo? Esses
sabiam o quer diziam.
- Infelizmente eles não estão aqui para sustentar o que disseram.
Demais, nem os santos são infalíveis.
- Ei, mocinho, que linguagem é essa? Quem vos ensinou tais
coisas?
- Mestre Tomás, que diz não ser possível acorrentar a razão.
Deus no-la deu para que a usemos ... de modo justo, é claro.
- Não sei, meu caro, se isso não estará errado desde a raiz.
Quando se começa a duvidar dos santos é um mau sinal. Não sei se
haverá grande diferença entre mestre Sigério e o vosso Tomás.
- Ide, ide ouvi-lo. Se não tendes coragem não é preciso que
entreis na discussão. Bastará que ...
- Hoje pela manhã ouvi a sua missa. Seria pena se fosse herético.
- Se mestre Tomás for herético eu também o sou. Tenhamos
cuidado, jovem, tenhamos cuidado.
- Eis, eis que estão saindo!
Quando a alta e esguia figura do rei Luís apareceu no limiar do
portal, elevou-se um grito de alegria. Muitos, porém, notaram a
palidez do rei, ressaltada pelo casaco de veludo vermelho e pelo manto
da mesma cor, debruado de merlim. Como de costume, levava um chapéu
deformado, já fora de moda.
Seguia-se um cortejo de esplêndidas personagens, junto com o
príncipe Filipe, o filho do rei.
- Quem é aquele senhor alto e louro, de casaco azul?
- Não sei. Talvez seja o duque d'Anjou, irmão do rei.
- Tiago, não dê uma informação inexata ao forasteiro! Neste
momento u duque d'Anjou não está em França: nomearam-no rei da
Sicília, e está ensinando boas maneiras ao rei Manfredo.
- Compreendi.
- Não queria estar na pele do rei Manfredo. Aquele nobre senhor de
casaco azul é o príncipe Eduardo de Inglaterra, bom amigo do rei
Luís.
- Muito obrigado ...
- Não há de quê, amigo. Senhor magnífico, aquele príncipe
Eduardo é um grande guerreiro, dizem. Deve ter vindo para
participar da cruzada, agora que terminou a guerra civil no seu país.
- Eis o bispo Tempier ...
- Aqueles são nobres espanhóis, não?
- Como é linda aquela dama vestida de vermelho!
- Não é uma espanhola, mas vem da Itália. Vi-a recentemente na
missa com o marido, aquele jovem elegante que está atrás dela.
Sabes quem é? Disse-mo padre Lefèvre: é a irmã do nosso mestre
Tomás.
- Deixa-me vê-Ia! Caramba, é tão maravilhosa como a
inteligência dele.
- Toma, pelas tuas palavras.
- Que é? Que te deu ele?
- Uma bolsa cheia de ouro. Seis, oito, dez ducados!
- Felizardo! Que farás com eles?
- Parece-me sonhar. Agora poderei comprar livros, papel, dormir
numa cama limpa ... parece até um sonho.
- Nem ao menos lhe agradeceste.
- Não deu tempo. Desapareceu logo. E agora tenho todo esse ouro.
- Quem seria?
- Quem sabe? Falava sem sotaque estrangeiro, mas estava vestido
como os ingleses. Talvez alguém da comitiva do príncipe Eduardo.
- É mesmo. Vestia azul, como todos os ingleses.
- Mas por que terá ele dado uma bolsa de ouro a um estudantezinho de
Paris?
- Que adianta perguntar? Pode-se lá saber por que os ingleses
fazem o que fazem? A isso nem mestre - Tomás saberia responder.
- Majestade, - disse 'o príncipe Eduardo, - permiti que vos
apresente meu primo Henrique de Alamaine ... lorde Rudde de
Foregay... sir Godofredo Langton ...
- Tenho realmente pouca sorte - disse Luís com um sorriso
simpático. - Encontro esses excelentes cavaleiros, mas não me
querem ajudar quando vou contra os inimigos da cruz.
- Eu também o sinto, majestade, - exclamou o príncipe Eduardo -
mas as feridas causadas à Inglaterra pela guerra civil ainda são
muito recentes. Meu pai não quer ainda deixar-me partir. Dentro de
um ano ou dois, se Deus o permitir, irei convosco, e espero que
reserveis para mim e meus cavaleiros alguns daqueles cães circuncisos.
- Vosso tio-avô Coração de Leão[/] não me teria dado
resposta mais régia. Vejo que vossas gestas são iguais às deles.
- Rei Ricardo - replicou Eduardo - era capaz de partir uma clava
de ferro com um golpe de espada. - A inveja que ressumava dessas
palavras fez o rei Luís rir.
- Quando fazia essas façanhas era mais velho que vós, e na vossa
idade ainda não tinha conquistado nenhuma cidade rebelde. Vós
chegastes primeiro, dizem, sôbre os baluartes de Northampton, e
salvastes a vida do jovem Simão de Montfort.
- Perdendo quase a própria! - aparteou o jovem Henrique de
Almaine.
- Quer dizer que não estava ali lorde Rudde de Foregay - observou
Luís. - Ele teria certamente afastado o perigo.
- È verdade - confirmou lorde Rudde. - Estava distante meia
milha, e muito empenhado. Mas creio que a minha presença não teria
valido. Estava com o príncipe quando desimpediu a estrada que de
Londres leva a Winchester... eliminando o mais perigoso dos nossos
cavaleiros rebeldes, Adão Gurdon, e seus homens. Maior que Adão
devia haver somente o gigante Golias, mas o meu príncipe insistiu
para bater-se em duelo com ele.
- Adão Gurdon tinha direito ao duelo: embora rebelde era de
linhagem cavalheiresca.
- Mas ao meu príncipe não faltavam cavaleiros.
- Piers, - disse Eduardo - confessai que tendes ciúme.
Majestade, ele quer sempre tomar sôbre si meus trabalhos.
- Então não mudou - disse o rei Luís. - Dava conta do trabalho
de sete cavaleiros quando teve ocasião de combater sob a auriflama,
perto de Damieta.
- Vossa majestade lembra ...? - exclamou Piers. `
- Lembraria ainda de um homem mais humilde - replicou o rei Luís
tranqüilamente. -Então vós éreis sir Piers Rudde e tínheis um
escudeiro inglês, alto, com bigodes louros ...
- Que agora são prateados ... mas Robin Cherrywoode ainda vive e
continua comigo - respondeu Piers, admirando honestamente, embora
contra o cerimonial, a memória do rei.
- Tive sorte - riu Eduardo. - Quando vim pela primeira vez a
Paris, Rudde caiu-me nas mãos; era então frade leigo dominicano,
ele e o precioso Robin. A Ordem deixou-os livres, ambos, mas eu
ainda tive de tratar com meu tio o conde de Cornualha, a cuja comitiva
Rudde pertencia.
- Vós, lorde Rudde, frade leigo? Admira-me que tenhais podido
reencontrar o caminho do mundo - disse Luís com voz embargada. Eu
também se o dever não me prendesse onde estou... Que não venhais
a arrepender-vos por terdes abandonado a Ordem. Em que convento
estivestes? São Tiago? O prior Hugo de Soissons participará
hoje, com mestre Tomás de Aquino, do nosso banquete.
- Majestade, conheço mestre Tomás - disse Piers.
- Como sorris toda vez que se fala o seu nome! - exclamou Luís.
- É um grande homem, e hoje temos motivos especiais para ser-lhe
gratos. Hoje está conosco também sua irmã, a condessa de San
Severino, com o marido. Vós a conheceis também? Já lhe
apresentastes vossas homenagens?
- Até agora só a vi na catedral com seu marido.
- Creio que a encontrareis na sala veneziana - disse Luís
gentilmente.
Com ou sem razão, enquanto se inclinava, Piers sentina que o rei
lia nele como num livro aberto.
Luís começou a conversar com sir Godofredo Langton, e logo depois
chegou o príncipe Filipe para apresentar-lhe um grupo de nobres
flamengos.
- Está ficando velho - observou Eduardo quando se afastaram. Mas
que homem! Gostaria poder acompanhá-lo desde já. Ide ter com
vossos amigos, Piers. Sei que estais impaciente para revê-los.
Mais tarde, durante o banquete, não tereis ocasião.
- Obrigado, alteza.
Qual seria a sala veneziana? Ah! contígua! Piers sentiu o
coração disparar violentamente. Como era preciso mentir mesmo
dizendo a verdade! Ainda não lhe tinha apresentado as homenagens e a
tinha visto apenas durante a missa na catedral, mas fora um
acontecimento mais perturbador que o assalto de Northampton. Ela
também o havia visto e sorrira-lhe antes de volver o olhar para o
altar onde seu irmão celebrava a missa. Naquele instante
encontraram-se novamente, e tinham estado próximos. Por um átimo,
por sôbre as cabeças abaixadas e os colos cintilantes de jóias, ele
tinha posto sua vida aos pés dela, e ela aceitara. "Até agora só
a vi com seu marido na catedral..."
Agora estava aqui e podia vê-Ia de perto. Tinha nos cabelos uni
único cacho branco, enquanto seu irmão já estava todo cinzento:
cinzentos eram a coroa interrompida aos lados e o topête no meio da
fronte: Piers pudera verificá-lo quando mestre Tomás se voltara
incluindo rei, príncipes e mendigos na sua bênção: "Dominus
vobiscum".
Ela não era muito mais jovem que Tomás, o qual parecia envelhecido
antes do tempo.
- Piers... Sir Piers... isto é, não, peço perdão...
agora sois barão ... Rogério, eis aqui Piers. Tinha-te dito
que estava na catedral. Estou feliz, muito feliz ...
Sim, tinha mudado. Amadurecido, não envelhecido: esbelta e
sadia, radiante de alegria. Ele deixou de olhá-la para saudar
Rogério, o jovem vestido com pompa esquisita, que sorria
cortesmente.
- Por minha fé, - deixou escapar Piers - como estais diferentes
do dia em que nos encontramos pela última vez! Parece-me ainda estar
vendo as duas reverendas monjas que embarcavam na "Conchita” ...
A risada de Teodora não foi muito espontânea, enquanto Rogério
sorriu friamente com ar quase hostil.
- Muito tempo passou desde então - disse. - Ouço dizer que o
vosso príncipe não se junta à nossa cruzada.
- Não agora... - respondeu Piers surprêso. - Quer dizer que
... que vós ... tendes intenção . .
- Não é intenção, já tomei a cruz. Admira-vos, lorde
Rudde?
- Não, pois sois filho de vosso pai, - disse Piers
inclinando-se. Não olhou para Teodora, mas compreendeu que nem
tudo eram rosas e que seria difícil sabei mais. - Chegastes da
Espanha?
- Não, vemos de Roca-sêca - respondeu Teodora. - Fizemo-la
reconstruir.
- O rei Carlos foi muito generoso e munífico em ajudas - observou
Rogério. Tratava-se do duque d'Anjou: era preciso prestar
atenção aos numerosos títulos novos ... inclusive ao próprio.
- Tomás toma parte do banquete, - observou Teodora - mas não sei
onde será seu lugar entre centenas de convidados. Eis a trompa.
Um arauto de casaco colorido e enfeitado com os lírios de França
dava o sinal para o banquete. Outros arautos e funcionários do
palácio tratavam de enfileirar os hóspedes do rei. Não era fácil,
pois devia-se ir depressa e, ao mesmo tempo, observar todas as
formalidades e as conveniências a que os hóspedes tinham direito.
- Creio que não terei ocasião de falar a Tomás - disse Teodora
enquanto Rogério e Piers trocavam uma reverência. - Irei
visitá-lo amanhã pela manhã no convento - acrescentou vendo que seu
marido se impacientava. Inclinando-se diante dela Piers apanhou um
lampejo rápido e, quando levantou de novo os olhos, ela já ia ao
lado do marido com o olhar fixo diante de si.
Era preciso alcançar o cortejo do príncipe. Mas eis que Eduardo
aparece, seguido pelo primo e, como era natural, por sir Joffrey,
já que a sala do banquete estava além da sala veneziana, e os
hóspedes passavam em ordem de importância, de modo a que o rei
entrasse por,-, último e, à sua chegada, todos pudessem tomar
seus lugares.
Somente então Piers pensou nas inúmeras vezes que rememorara o
primeiro encontro com Teodora, quando ainda eram do mesmo grau,
embora, é claro, os nomes de Aquino e de San Severino fossem não
só muito mais antigos, mas ligados com parentescos reais e imperiais.
Agora tudo isso tornava-se indiferente. Na manhã seguinte ela iria
visitar seu irmão Tomás, no convento.
Também Rogério tinha mudado. Ostentava um tom rebelde e caprichoso
... ou tratava-se de orgulho ferido por não se conformar com o
tempo em que fora "soror Beatriz"? Ainda tinha um ar de rapazola
malcriado.
A sala do banquete era enorme. O rei estava sob um baldaquim armado
no centro de uma das paredes menores. Quatrocentos ou quinhentos
hóspedes sentavam-se às mesas, compridíssimas, repletas de
iguarias de todas espécies, um pouco escondidas por tufos de flores
Cada comensal tinha diante de si um cálice, uma faca, uma colher e
um vaso de prata artisticamente cinzelado. Copeiros em libré enchiam
os copos, ofereciam pratos e de vez em quando perfumavam o ar com
vaporizadores. Embora esculpidas com gosto, as cadeiras eram rígidas
e aprumadas, para desgosto dos amantes do luxo, que prefeririam comer
deitados.
- Dir-se-ia - suspirou a condessa de Châtillon - que o nosso
amado rei governa Esparta em vez da França.
O senhor de Joinville, que assentava-se à sua frente, exclamou
acariciando os bigodes prateados:
- Apostaria que os nossos caros monges são de opinião diversa.
- Oh! coitados, quem sabe como serão felizes de poder comer bem uma
vez na vida! - Tirou com os dedos delicamente um pedaço de peito de
um magnífico pavão, no qual, depois de cozido, tinham sido
recolocadas as penas da cabeça e da cauda, e após tê-lo passado na
salsa ardente contida numa linda salseira de prata em forma de nave,
pôs-se a comer.
Mais de cem pavões estavam distribuídos pela mesa dos hóspedes. Na
galeria os músicos começaram a tocar e, a princípio, foi possível
ouvi-los; depois, porém, a partir do terceiro ou quarto cálice, a
conversa tornou-se tão ruidosa que ninguém mais os ouvia.
Piers pensava: "Amanhã de manhã irei visitar Tomás no
convento". Tê-lo-ia dito porque desejava que ele também fosse?
Era, talvez uma oportunidade para falarem a sós? Significava que
Rogério não a acompanharia? Ou ele, Piers, procurava enganar a
si próprio, e ela quisera dizer apenas o que havia dito?
Parecera-lhe tímida e retraída... talvez pela presença do
marido. Entre os dois devia haver alguma coisa. Ela estava
preocupada e, na presença de Rogério, não podia dizer por que.
No dia seguinte iria visitar o irmão. Certamente queria que ele
também fosse... por alguma razão. Essa razão, porém, não era
Piers Rudde: devia referir-se, de algum modo, a ela e o marido.
Que vantagem poderia advir para ele? Era óbvio que ela queria pedir
conselhos a um irmão que não só era seu parente mais próximo, mas o
homem mais sábio da época. E Rogério partia para a cruzada. Não
seria talvez ...?
- Piers, Piers!
- Sim, alteza!
- Pensei que tivésseis adormecido. Chamei-vos cinco vezes. Não
comeis, não bebeis. Estamos em Paris há apenas um dia ... de
outro modo pensaria que estais apaixonado.
Piers conseguiu sorrir:
- A última vez que me apaixonei já foi há muitos anos.
- E, ao que parece, tornastes-vos acérrimo inimigo das mulheres
... Não, é inútil negar. Quantas vezes tentei abrir-vos
caminho para as mais belas inglesas que aspiravam a tornar-se lady
Rudde de Foregay... e nunca consegui.
- Dir-vos-ei, alteza ...
- Deveríeis pelo menos poder comer e beber. Sois como mestre
Tomás: vede-o.
Tomás estava um pouco longe, mas Piers pôde notar que os
pensamentos dele estavam mais afastados ainda. Sentava corretamente,
numa rigidez quase forçada, grande e robusto no hábito alvinegro;
diante dele, o prato estava intato. Não podia ter ouvido as palavras
do príncipe Eduardo, nem as tinha ouvido Teodora que, com
Rogério, conversava com um cavaleiro e unia dama desconhecidos de
Piers. Este olhou de novo o príncipe e, para seu alívio, viu que
estava conversando com o rei.
Entre ele e o príncipe surgira uma amizade tão profunda quanto a
diferença de grau podia permitir. Tinham vivido junto alegrias e
tristezas, derrotas e triunfos. Eduardo era um senhor ao qual se
podia servir com orgulho: justo, corajoso, generoso; mas suas
brincadeiras nem sempre eram de bom gosto, especialmente desde quando
não tinha conseguido fazer de lady Edith Norham a esposa de Piers.
A coisa tinha-o posto de mau humor por alguns meses, pois lady
Norham era uma criatura deliciosa, elegante, riquíssima, e não se
podia compreender como um homem pudesse recusar casar-se com ela.
Rei Luís fez encher o cálice: metade água e metade vinho,
conforme o antigo ditado: "Põe água no teu vinho, não em teus
olhos". Era um provérbio de monges e ele poderia ter sido de fato o
padre guardião de um mosteiro, tanto era bom, sério, justo,
piedoso e animado de caridade cristã. Não havia dúvida que teria
preferido apenas para a glória de Deus, e se ficava no trono fazia-o
apenas por dever.
Piers lembrou-se do livro de Platão, que um dia lhe mostrou mestre
Tomás, onde se dizia que o melhor soberano é aquele que de fato não
deseja reinar. Pensou também na história do misterioso monge que,
tendo ido visitar Luís no castelo de Hyères, dissera-lhe que
nenhum reino tinha ruído ou mudado de soberano, a não ser quando no
país reinava a injustiça. O rei ficara horas ouvindo o frade, e o
esconjurara a ficar com ele, mas aquele partira e nunca mais fora
visto.
Todos, desde o mendigo ao nobre, podiam apresentar pessoalmente a
Luís suas queixas, mas ninguém ousava fazê-lo se não tinha
certeza de estar com a razão.
- Não obstante vossos cuidados, - dissera-lhe certa vez Eduardo
- não obstante o enorme acúmulo de trabalho, os negócios de
estado, a administração da justiça, a fiscalização de todos os
vossos funcionários, a caridade pública e particular, as
audiências, as recepções, a legislação, e cem outras coisas,
não obstante tudo isso achais tempo cada dia para assistir a duas
missas, às vésperas e às completas.
- Não é bem não obstante, - respondeu Luís - mas justamente
por isso: de outra forma não poderia nunca desempenhar o meu
trabalho.
O dourado pavilhão francês estava atrás da sua poltrona. Piers
lembrou as grandes imagens de santos, pintadas em estilo bizantino, em
fundo dourado, que vira nas antigas igrejas italianas. Muitos
consideravam Luís um santo, embora não fosse direito falar assim de
um homem que ainda não estava no paraíso.
A cabeceira de uma das mesas, o monge Hugo de Soissons, prior de
São Tiago, parecia sempre mais preocupado. Era homem de sólidos
princípios, tinha por mote "cada coisa a seu tempo". Quando
rezava, rezava, quando trabalhava, trabalhava e quando, vez por
outra, era convidado à mesa do rei, comportava-se. . : como devia
comportar-se um hóspede. Comera bem, bebera dois copos de vinho com
água e trocara algumas palavras corteses com a velha senhora de
Nangis, à esquerda, e com o esmoler do rei, à direita. Frei
Tomás, porém, fazia exatamente aquilo que muitas vezes fazia no
refeitório: sonhava. E nem tentava dissimular que estava sonhando.
Ei-lo, em toda a sua imponência, os olhos semicerrados, brincando
com o copo. A certo ponto murmurara uma palavra, mas quando a dama à
sua direita perguntara: -Que dizeis, padre? - nem lhe respondera.
Uma coisa irritante.
No refeitório frei Reginaldo de Piperno cuidava ao menos que se
alimentasse, mas aqui não se podia tomá-lo pelo braço e
sacudi-lo. Eis que agora fazia estranho movimento com os dedos,
movendo-os daqui para ali, como se estivesse pesando alguma coisa.
Felizmente ninguém o observava. Todavia, era de se preocupar: eram
hábitos que tinha contraído há muito, mas agora ia piorando.
Entretanto, o prior Hugo de Soissons não sabia que na sala do
banquete estava-se travando áspera batalha: a batalha de um homem só
contra um imenso fantasma que há séculos atravessava o mundo deixando
atrás de si misérias, discórdias e sangue. Como muitas vezes no
campo do pensamento e da ação, o ponto de partida fora um pequeno
incidente.
A condessa de Châtillon oferecera a Tomás um pedaço de pavão
assado. Ele recusara agradecendo, mas olhando bem para o pavão.
Sim, os pavões. Mestre Alberto não dissera, em seu livro De
Avibus, que os pavões eram originários da Pérsia? Que os reis
persas criavam-nos aos milhares em seus jardins, canteiros de flores
de incrível beleza? Que só a sua voz era feia e ... que não
sabiam voar? Jóias esplendorosas e cambiantes... enquanto não
revelavam os próprios defeitos, como tantas outras coisas e
pensamentos provenientes da mesma região: como os pensamentos do
místico Mani, que cometera o crime de todos os crimes, cindindo o
reino dos céus numa parte branca e noutra negra, e condenando a
natureza, declarando-a ruim porque criada pelo reino negro. Com isso
ele lançava uma acusação contra Deus, o Deus "negro", como
origem do mal. Para ele o matrimônio era um vício, era a impureza
legalizada. E essa heresia encontrava sempre novos sequazes. Já no
século V o papa Leão I tivera de combater uma fé que, se difusa
em toda a terra, teria significado o fim da humanidade. Justamente
para combater aquela crença, ressurgida de novo com os albigenses,
São Domingos fundara a Ordem dos pregadores. Desde então
passaram-se cinqüenta anos. Os adeptos de Mani falavam de pureza,
mas entendiam esterilidade: falavam de Deus ... mas entendiam
Satã. A Sagrada Escritura levantava-se contra eles como a espada
de um arcanjo. O matrimônio fora santificado pela presença de
Cristo às núpcias de Canaá: não uma, mas muitas vezes São
Paulo dera testemunho disso. A natureza humana achara um redentor em
Cristo, que não recusara participar da mesma: em Cristo, que
superara a morte. E, como fim da criação, a natureza fora boa,
pois Deus observou todas as coisas e viu que eram bem feitas, assim a
natureza humana podia elevar-se à glória da ressurreição.
A diferença entre cristãos e maniqueus era a diferença entre
alegrias e dores, entre triunfo e desespero. Mas como documentar o
erro desta heresia a quem não admitia a autoridade da Sagrada
Escritura?
Como se poderia - demonstrar que o mal não é o que parece, um ser
de poder e talvez de direito igual ao Bem?
Foi nesse momento que o prior Hugo de Soissons viu moverem-se os
dedos de mestre Tomás como se pesassem alguma coisa. Rei Luís
conversava ainda com o príncipe Eduardo. Joinville ria-se de uma
graça da condessa de Châtillon. O vinho, aromatizado com mel e
drogas, tinha solto a língua de todos. Na galeria os músicos
pararam de tocar, já que as últimas músicas não eram ouvidas. Mas
o ruído que as tinha encoberto não chegava aos ouvidos de Tomás.
Ser. Essência. Mas possui uma essência própria o mal? Qual é
a causa do 'mal? Defeituosa ação de causa ... imperfeição do
material ou do instrumento ... Não pode existir por si, não pode
ser a própria causa, mas precisa do bem preexistente. $ uma
imperfeição do bem, nada mais. Em si ... não é nada. Não
tem ser próprio. Não é uma essência.
O prior arregalou os olhos, primeiro pelo esturpor, depois pelo
espanto. Joinville percebeu por acaso e ficou com a frase no ar.
Admirada, a condessa de Châtillon olhou na mesma direção, outros
seguiram-lhe o exemplo. Formou-se assim uma espécie de ilha de
silêncio que foi crescendo rapidamente. Poucos instantes depois toda
a mesa e toda a sala emudeceram, embora ninguém soubesse por que,
como acontece nas grandes assembléias.
O espanto do prior não era infundado, já que o monge gigantesco
sentado ali na frente levantava lentamente o braço direito enquanto sua
mão fechava-se formando um punho ... e que punho! Como a clava de
Hércules aquele punho caiu no meio da mesa, fazendo-a estremecer:
Pratos e copos chocaram-se, uma salseira virou e o pobre prior
desviou-se rapidamente para evitar uma chuva de trutas cozidas que
voava pela mesa.
- E assim os maniqueus estão liquidados! - berrou Tomás.
Silêncio profundo, interrompido apenas por algumas risadinhas.
Todavia ninguém ousou rir abertamente. Todos fixavam o rosto calmo e
tranqüilo do rei... Todos, menos o culpado, que parecia ainda no
reino dos sonhos.
Luís olhou para Tomás e viu o seu rosto enorme transfigurado pela
alegria, radiante, feliz, sem se dar conta de ter transgredido a
etiqueta como nunca se vira naquela sala.
O rei apoiou-se ao espaldar e chamou:
- Briancourt!
A maior parte dos presentes não conhecia aquele nome: Seria talvez o
oficial de guarda?
Uma pessoa simples e magra, de roupa preta, apresentou-se
inclinando-se.
- Briancourt, aproxima-te de mestre Tomás e toma nota do argumento
por ele encontrado, para que não lhe saia da memória.
Obsequioso, o secretário encaminhou-se ao longo da mesa até chegar
junto de Tomás. A personalidade do rei era tão poderosa que
ninguém interrompeu o silêncio.
Finalmente Tomás parecia voltar a si e viu Briancourt com o papel na
mão. Este lhe murmurou alguma coisa ao ouvido. Tomás olhou o rei
e, embora sendo o colosso que era, fez uma reverência com a graça e
elegância dos gentis-homens. O rei respondeu com um aceno de
cabeça.
Piers, que seguia a cena, compreendeu como entre aquele rei que
poderia ter sido um monge e aquele monge talhado para rei havia uma
profunda compreensão pessoal. Tinham algo em comum, que os
distinguia de todos os outros. E aquela qualidade comum tornava os
outros como anões, ou os fazia desaparecer de todo. Em Piers essa
sensação era atravessada em ziguezague por um estranho pensamento que
parecia muito afastado: o pensamento que no paraíso devia reinar uma
grande cortesia...
Com a máxima calma, Tomás começou a ditar ao secretário um
rosário de pensamentos que arrancavam o mal do trono do ser, o
privavam de um direito próprio e humilhavam-no ao estado de parasita.
Reencetou-se a conversa, primeiro timidamente, depois com
vivacidade.
A condessa de Châtillon meneou a bela cabeça:
- Esta não a entendo. Há pouco ofereci àquele bom monge ou mestre
ou sei lá o quê, um pedaço desse excelente pavão: quem sabe que
pensamentos lhe sugeriu? -e explodiu numa risada.
A Joinville custou o guardar para si a resposta óbvia.
Tendo chegado ao convento de São Tiago na hora das visitas
oficiais, Teodora teve de esperar muito. Aquela espera não
contribuiu para melhorar o seu humor. Diante do portão olhara em
torno mais de uma vez, mas sem ver Piers. Não lhe tinha feito
compreender bastante claramente que o esperaria aí? E agora parecia
que não iria ver nem seu irmão.
- Avisá-lo-ei logo - dissera o frade porteiro. No entanto já
passara meia hora ... ou pelo menos assim lhe parecia, e pôs-se a
andar irrequieta pela saleta.
Afinal a porta abriu-se ... mas em vez de Tomás apareceu um monge
pálido, de cerca de quarenta anos, com o olhar espantado.
- Nobre dama, eu sou frei Reginaldo de Piperno. Vós esperais
vosso irmão, o mestre Tomás de Aquino ... .
- Sim, e já há algum tempo.
- Eu sei, eu sei ... mas ele ... estará aqui logo ...
espero ...
De repente ela viu que as mãos do frade tremiam.
- Pelo amor de... aconteceu-lhe alguma coisa?
- Não... não... isto é.. .
- Está doente?
- Não, não está doente ... estará aqui logo, penso ... e
agora ... perdoai-me... - e fugiu. Teodora ouviu os
precipitados passos no corredor.
Preocupada pois que algo devia ter acontecido, sentou numa daquelas
cadeiras pesadas e simples. Nunca vira um homem tão espantado,
exceto Rogério naquela noite, a bordo da "Conchita", quando um
marinheiro embriagado tentara introduzir-se na sua cabina. Mas não
era a mesma espécie de medo. O frade tinha o aspeto de quem tivesse
visto um espírito. Ela persignou-se, murmurou uma oração
apressada, voltou a persignar-se e, preparada a tudo, esperou
firme. Era exatamente o que teria feito sua mãe nas mesmas
circunstâncias. Sem o saber, Teodora ia parecendo-se com ela cada
vez mais.
Ruído de passos? Desta vez não era o apressado andar de frei
Reginaldo. Ela levantou-se e, quando Tomás entrou, foi-lhe ao
encontro dizendo:
- Estás aqui, finalmente! Graças a Deus. Que te aconteceu?
Não estás bem? Estás doente?
Ele apertou-lhe as mãos:
- Não, não. Sinto ter-te feito esperar. Estava ocupado na
capela.
- Graças a Deus não estás doente! - Tinha lágrimas nos olhos.
- Frei Reginaldo veio dizer-me ...
- Que disse ele? - perguntou Tomás olhando pela janela.
- Que não demorarias ... mas estava tão ... tão estranho
... parecia assustado ... E então eu também tive medo.
Ele olhou-a:
- Não há razão para ter medo - disse lentamente, e sorriu com
naturalidade. - Sinto ter-te feito esperar! Sobra-me pouco tempo
livre ...
Ela fez uma careta:
- Irei queixar-me ao prior e far-te-ei cair na desgraça. Espero
que ele não tenha esquecido a tua tentativa de sepultá-lo sob uma
avalanche de trutas e de tentar rachar a mais bela mesa do rei Luís.
Escuta, meu caro, se não te arrependeres não te perdoarei enquanto
estiver viva. Se eu fosse uma mulher inteligente, perguntar-te-ia
que coisa tão importante te veio à cabeça ... mas como sou o que
sou, prefiro renunciar.
Tomás sorriu:
Ainda não és adulta, Teodora.
- Tem cuidado! - ameaçou ela. "Se não fordes como as
crianças" ...
- Malcriadinha! - e se aproximou: - parece-me que pintaste o
rosto.
- Se te agrada exprimir-te assim, não negarei. E pecado?
- Por que o fazes? - perguntou Tomás com seriedade.
- Tenho os lábios pálidos ... aliás, todo meu rosto está
pálido. Não sou corada como tu, meu caro. E queria ser bela, se
possível.
- Queres agradar a teu marido?
- Sim - respondeu ela tranqüilamente. - Quero agradar a meu
marido.
- Não é pecado - disse Tomás pensativo. - Sei que há
escritores autorizados que não pensam assim ... até mesmo padres da
Igreja ... Mas não vejo porque seja pecado.
- E se não fosse casada? Seria pecado?
- Que te cito a Sagrada Escritura:
Ele refletiu um pouco e decidiu:
- Se o fim é bom, deve ser lícito.
Ma comoveu-se:
- Es o melhor irmão que uma jovem possa ter. E pensar que achas
tempo para as minhas bobagens! Estava orgulhosa de ti, ontem, na
catedral. Dizem que foste tu que escreveste o hino que cantaram.
Quero aprendê-lo de cor; não sei ainda todo, mas devo
aprendê-lo, porque é cheio de alegria. Sit laus plena, sit
sonora, sit jucunda, sit decora, mentis jubilatio: esta é a coisa
que mais gosto em ti. Es como... como um querubim, um grande,
gordo, enorme querubim. Não rias. Falo sério. Fizeste o que
Rinaldo não pôde fazer... e que talvez devia ter , feito.
- Rinaldo é feliz - observou Tomás.
- Fizeste-o em lugar dele ... e para ele, eu o sei.
- Rinaldo é feliz. Mas tu, pequena, tu não o és. Por quê?
Houve uma pausa.
- Não podes compreender - respondeu Teodora. Mas depois pôs-se
a rir: - Aposto que ninguém nunca te falou assim. No entanto
...
- Certa vez um estudante perguntou-me qual fosse, para mim, a maior
graça que recebi de Deus. Respondi: a de ter sempre compreendido
todas as páginas que lia.
- Eu não sou um livro - rebateu Teodora. - Sou uma mulher. E
aproximando-se da janela, deu-lhe as costas: - Tu sabes que
Rogério tomou a cruz?
- Sim, mas ...
- Está nas mãos de Deus, tanto na cruzada como a meu lado. E
nós somos uma família de soldados.
- Esta não é, pois, a razão ...
- Não, não é certo, ou então o é apenas em parte. Mas por que
tomou a cruz? E a vontade de Deus, dizem, e Rogério é um bom
crente ... e também um bom marido... a seu modo. Eu deveria ser
uma esposa feliz.
Ele aguardava sem dar sinais de impaciência.
- Mas não tomou a cruz porque Deus quer - acrescentou ela. Ou
não apenas por isso. Provavelmente ele nem o sabe. Não é ...
não é muito corajoso. E um homem delicado e mal acostumado,
contrário a tudo o que é feio e doloroso. Ele não o ignora, porque
sempre foi assim: seu pai mofava dele por isso, e nem sempre
amigavelmente. Ele sofria com isso, mesmo sabendo que seu pai tinha
razão. Como? Um San Severino covarde!
E bateu o pé. Naquele instante parecia-se como nunca com a sua
mãe.
- E ele sabe ... que tu sabes? - perguntou Tomás.
- Este é o ponto crítico - disse ela mordendo os lábios. - Devo
ter-lho feito compreender. Aliás, é inútil esconder: fi-lo
compreender, e ele nunca me perdoou isso. Sabe que não posso
suportar homens sem coragem. Eu sou da família de Aquino ... e
agora ele tomou a cruz ...
- ... porque quer reconquistar a tua estima.
- Precisamente. E a estima de si próprio. Eu sou o espelho em que
ele se olha ... nele viu algo que não lhe agradou e quer
modificá-lo.
O toque agudo de um sino chegou até eles vindo de não se sabe onde.
Tomás levantou-se.
- Se lhe acontecesse alguma coisa ... Mas tu deves ir. Não,
não digas nada. Reza por mim. Eu ... adeus, Tomás.
Saiu correndo e, quando ele chegou ao corredor, já tinha
desaparecido.
Desceu as escadas, atravessou o verde jardim e chegou à rua onde a
esperava a carruagem.
- Servo às vossas ordens, nobre dama, - disse Piers.
Ela levou a mão ao coração:
- Então, viestes?
Ele sorriu.
- Não devia ter-vos rogado viésseis - murmurou Teodora.
- Nem me rogastes.
- Em palavras não... mas cometi uma tolice. Aliás, pior, uma
injustiça. Ai de mim, não sei o que fazer.
"Chorou" pensou Piers empalidecendo, enquanto seus dedos apertavam
instintivamente o punho da espada.
- Quem vos ofendeu, senhora? Dizei-mo!
Ela sacudiu a cabeça;
- Ninguém. - E conseguiu esboçar um pálido sorriso. - Falais
como se fosseis ainda um cavaleiro de Aquino.
- Vós nunca deixastes de ser a minha dama.
- Quisera que fosse verdade - murmurou ela. - Não, não me
compreendais mal. Creio-vos, mas não é justo. Nunca poderei
agradecer-vos bastante pelo que já fizestes. Peço-vos desculpas
pelas palavras de meu marido... aliás, pelo seu comportamento,
mais que pelas palavras. Está em conflito consigo próprio, e eu me
preocupo com isso mais de que possa dizer.
- Então foi ele que vos ofendeu? - observou Piers.
- Não, não! Já vo-lo disse: ninguém me fez mal.
- Houve tempo em que o consideráveis o vosso pior inimigo.
- E... - e a lembrança a fez sorrir. - E vós vos oferecestes
para matá-lo. Éramos mesmo crianças, Piers. Em vez, Deus vos
abençoe, matastes aquele horrível tudesco que o ameaçava. Depois,
quando tudo parecia perdido, nos ajudastes a fugir, e sei os esforços
que fizestes para salvar Rinaldo e Landolfo. E demais.
Com a intuição de quem ama, Piers compreendeu aquilo que ela não
ousava dizer.
- Estais preocupada por sua vida ... porque vai tomar parte na
cruzada!
- Não voltará mais, eu sei - disse ela com os olhos cheios de
lágrimas.
- Teodora ... senhora ... como podeis dizer isso?
- Não é soldado.
- Suponho - acrescentou Piers pensativo - que se falasse com o
príncipe Eduardo ele me permitiria partir logo ... em vez de mais
tarde. Assim poderia ocupar-me dele.
Ela fitou-o com os olhos arregalados:
- Santa Mãe de Deus, como se pode desesperar do mundo se há
homens como vós e Tomás?
- Tomás é um santo, - disse Piers - eu sou um homem comum.
Tomo-vos e vos amei desde o primeiro momento, mas sempre sem
esperança. Pelo menos, porém, posso servir-vos. Ficai
tranqüila. Obterei a permissão e partirei. Vereis que não lhe
acontece nada. Deus vos abençoe!
E fugiu. Um pouco adiante esperava-o o escudeiro a cavalo,
segurando pela rédea outro animal. Talvez fosse Robin. Piers
saltou na sela e ambos partiram.
Ela ficou imóvel por algum tempo, e depois, branca e trêmula,
subiu para a carruagem.
- Aqui há um monte de anotações - disse Reginaldo de Piperno.
- Creio que haja também novas. Pertencem todas à Suma? ou a
outra coisa?
Tomás deu-lhe uma olhadela e disse:
- Suma.
- Bem, muito bem.
-Tu ficas sempre contente quando achas alguma coisa que entra na
Suma, e se não entra fazes cara feia. Por quê?
- Não sei, mas queria vê-Ia terminada - disse Reginaldo um
pouco atrapalhado. - É uma obra tão vasta ... é a verdadeira
suma de toda a teologia cristã. Não se poderá fingir de não a ter
notado. Verás que em compensação oferecer-te-ão o chapéu
vermelho. Bem sei que não fazes questão, porém deverias pensar
também na tua família. Afinal de contas é a honra maior que ...
- Da minha família só restam as duas irmãs, e não creio que
façam questão de ver-me cardeal. Só meu irmãozinho Reginaldo
gostaria...
- "Se às mulheres é permitido pintar-se" - leu Reginaldo com
estupor. - "A interpretação dos sonhos é lícita quando se trata
de esclarecer as condições de um enfermo ... O influxo dos astros
é mais forte sôbre as massas que sôbre os indivíduos ...
Relação entre trabalho e diversão..."
- Tudo isso faz parte da Suma - confirmou Tomás brincando com uma
pena de pato e olhando para o chão.
Reginaldo imaginava o resto e agitou-se na cadeira.
- Reginaldo ... em relação a esta manhã na capela ...
- Viste ... viste alguma coisa, não?
- Sim - respondeu Reginaldo trêmulo.
Tomás levantou-se:
- Reginaldo, meu querido filho: prometa não falar com ninguém
... com ninguém! ... antes da minha morte.
- Prometo-o - disse Reginaldo, e começou a chorar.
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