CAPÍTULO II

- Abaixo aquela torre - berrava o conde de Caserta. - Deixai em par os bois, bandidos, deixai-os queimar! Cuidarei eu, depois, de encher-vos a barriga. Todos os homens contra a torre! Derrubai-a ou mando cortar-vos as orelhas. Ai de quem não obedecer! Força com aquele aríete! Assim, ótimo. Força, força!

Mas a torre resistia. Todas as partes de madeira ardiam alegremente: dois arcos de pedra ruíram, uma fumaça negra e densa invadia os vãos das escadas, mas a torre e o edifício central resistiam ainda.

- Construíram bem, esses diabólicos carecas. Falarei ao imperador que, para o futuro, faça construir as fortalezas por eles. Assim poderão ser úteis, em vez de choramingarem rezas o dia inteiro.

Firme no cavalo, ao lado do conde, Piers não disse palavra. Não era a primeira vez que via um incêndio, e para ele o combate, fosse na guerra ou num pacífico torneio, era coisa de cavaleiro. Montecassino, porém. não era a fortaleza de um duque ou de um barão rebelde. A guarnição não se defendia. Ninguém atirava saraivadas de flechas ou de pedras, ninguém derramava breu e óleo fervente sôbre os assaltantes. Era uma guerra unilateral, e uma guerra assim não é guerra. Algum monge havia fugido, alguns tinham sido atingidos pelas vigas ao ruir, outros sufocavam ou assavam-se no meio das chamas: ninguém opunha resistência. O conde tinha razão: aquela não era uma expedição em que um cavaleiro inglês pudesse ter grandes experiências bélicas.

Caserta atirou-lhe uma olhadela e pôs-se a rir:

- No começo não achava graça nem eu. Mas não se pode estar a serviço de dois senhores, só é possível vender-se uma vez. E o imperador diz bem: não podemos tolerar que os espias papais encontrem refugio neste convento. Verás que tu também te acostumarás.

- Com a tua licença, senhor, - disse Piers - gostaria de apreciar o espetáculo de mais perto.

Desceu do cavalo fazendo tinir a armadura. enquanto Caserta aconselhava-o a esperar:

- Lá dentro faz um calor infernal, e se não te apetece um pedaço de frade assado ...

- Dás-me a licença?

O outro deu de ombros:

- Como quiseres. mas depois não queixes se te apanhem as bexigas.

Piers atirou as rédeas ao escudeiro e se aproximou do edifício em clamas. enquanto Robin. o escudeiro, perguntava inquieto:

- Senhor, posso ir contigo?

- Não, fica aqui - foi a breve resposta.

Robin resmungou contrariado. Sempre à frente, o seu jovem patrão, com risco de dar com a cabeça na parede! Terra malsã, esta, e ação pouco agradável. Também, que se podia esperar desses estrangeiros? Belo país, sim, mas que proveito se tirava quando só havia gente que não falava inglês nem normando, nem gálico? Queimar conventos era uma diversão funesta, e teria sido melhor não o fazer. Ainda bem que lady Elfleda já não era deste mundo: de certo não lhe teria agradado que seu filho participasse de tais ações. A responsabilidade tinha-a recebido ele, Robin, dando-lhe a entender muito bem quando tinha chegado a notícia de que o jovem sir Piers ia para um país estranho no cortejo do conde de Cornualha. - Robin -dissera a dama - acompanha meu filho. e lembra-te que és responsável. Estás a meu serviço há tanto tempo e já deves saber o que podes e não podes fazer. Cuida dele que é o teu patrão, embora seja muito jovem. É ainda muito jovem, mas é o teu patrão. Sabes o que tens á fazer. Tu és responsável por ele. Assim dissera a senhora, nem uma palavra a mais. E ele respondera: - Sim, senhora, - e nem uma palavra a mais. Talvez por isso a partida do jovem senhor lhe tivesse partido o coração: três semanas depois morria. E Deus lhe dê a paz. Mas Robin Cherrywoode era responsável e até àquele momento a velha senhora não tivera de se queixar dele lá no céu, onde certamente tinha subido depois de ter exercido sempre a justiça e a bondade, e ter dado de comer a tantos pobres. Robin estava ligado pelo coração ao jovem patrão, pois que havia modo de evitar-lhe inúteis desgraças sem chocar suas susceptibilidades. Nem era preciso mentir, ou bastava mentir raramente. - Fica aqui -tinha dito. Portanto era preciso ficar até que tivesse desaparecido da vista, e, como já tinha desaparecido. Robin desceu do cavalo.

- Hei, tu, toma conta um instante dos cavalos, entendeste?

O mercenário interpelado levantou os olhos para o gigante inglês que tinha uns ombros fortes como um urso, engoliu uma imprecação que já estava na ponta da língua, e segurou as rédeas. Robin sorriu-lhe:

- Trata-os bem, estes cavalos; valem muito mais que tu. - E a passos largos seguiu o seu patrão.

Entretanto este tinha alcançado o edifício central, depois de ter-se abrigado algumas vezes para evitar as pedras que caíam: de _ fato, o aríete ainda não tinha desistido de atirar-se contra a torre.

Onde estaria o jovem? Achar alguém naquele enorme edifício era tarefa desesperadora, tanto mais que ele deveria fazer tudo para tornar-se invisível. Talvez nem mais estivesse aqui, pois que vários monges haviam fugido antes que começasse o ataque, e Caserta tencionava mandá-los perseguir como cães. - Quem foge à chegada dos soldados do imperador tem a consciência pouco limpa e é provavelmente um espião. - Como se quem quer que tivesse um pingo de bom senso não tivesse que passar ao largo evitando os homens do conde de Caserta! Diacho! Onde se teria metido o jovem?

Impossível prosseguir o refeitório era um forno ardente e a escada que levava ao andar de cima estava em chamas. Que é isso? Um monge, um velho, morto asfixiado. Deus o tenha em sua santa glória! Piers fez o sinal da cruz. Grandíssima honra ser imperador, mas ele preferia ser Piers Rudde, o mais jovem, o mais pobre dos cavaleiros da Inglaterra. O imperador era homem de consciência? Podia dormir sossegado à noite? Eis outro: morto também. Ou sair rápido para o ar fresco ou ficar aí de vez. Vês, Piers, são coisas que acontecem quando se faz uma promessa a um forasteiro.

O cavaleiro achou-se num ponto do qual partiam nada menos de quatro corredores. Era um labirinto, e os corredores pareciam todos iguais. Piers decidiu-se por aquele que estava menos cheio de fumaça, mas, Santa Mãe de Deus, que calor! Aquela danada armadura estava para se tornar em brasa e assá-lo como a São Lourenço. Ajuda-me a sair daqui, São Lourenço, dado que tu já o experimentaste. Ah! eis uma escada da qual descia uma corrente de ar mais fresco. Obrigado, São Lourenço, foste tu que me fizeste achá-la. E daqui se desce. Descer ou subir pouco importa, desde que se possa respirar ...

Subiu alguns degraus e encontrou de fato algum alívio. Demais não faltava ao seu dever, pois que, se o jovem estava escondido num ponto qualquer, este devia ser longe do fogo.

Um som de vozes. Sim, vozes que vinham de baixo. A escada parecia sem fim, e eis que de repente atrás dele alguém chamava pelo seu nome:

- Sir Piers ... Sir Piers ... onde estás?

Robin! Era de prever que teria seguido o seu patrão como a galinha ao seu pintainho.

- Estou aqui, Robin.

Eis o escudeiro chegar como um diabo, preto de fumaça, com as calças chamuscadas.

- Não havia ordenado ficasses com os cavalos? - perguntou Piers aborrecido.

- Certamente, senhor... mas os cavalos estão ao abrigo, enquanto tu não o estás, então pensei ...

- Silêncio, agora! Lá embaixo ouvem-se vozes.

Puseram-se à escuta, mas já não se ouvia nada.

- No entanto, não me havia enganado - insistiu Piers. - E aquele jovem deve ser encontrado, pois prometi; nem que caia o edifício ...

- Coisa muito provável - atalhou Robin coçando a cabeça.

- Ninguém te pediu para vir. Olá! há alguém aí?

Nenhuma resposta.

- Pensam que somos da ralé - explicou Robin. - Não é de admirar se não respondem.

Piers sorriu. Grande insolência chamar de ralé os mercenários do imperador, embora uma insolência correspondente à verdade. Aliás, não era fácil persuadir Robin que "estrangeiro" e "imprestável" não era necessariamente a mesma coisa. Mas os homens de Caserta não eram tais de mudar a opinião do escudeiro.

- Temos que descer mais. Esta escada deverá acabar. - E continuaram a descida. Estava escuro, já que nem o clarão do incêndio chegava até ali. Por cúmulo os degraus eram escorregadiços.

- Cuidado...

- Senhor, parece-me que dá para se ver melhor.

- Sim? E, tens razão. Pisa sem fazer ruído com esses pés enormes.

Prosseguiram na descida.

- A luz vem lá de baixo - murmurou Robin. - Deve haver uma porta. A luz aparece por baixo. Apronta a espada, senhor, pois poderemos encontrar resistência ...

- Silêncio!

Robin sacudiu a cabeça. Naturalmente aqueles que estavam escondidos deviam estar com medo, e quem está com medo, vendo-se descoberto, freqüentemente combate com a coragem do desespero. Podia também acontecer que ali estivessem acumulados, sob vigilância, os tesouros do convento. Robin tinha trazido o escudo do patrão e segurava um longo punhal.

Piers aproximou-se cautelosamente da porta, sob a qual filtrava um fio de luz. Atirou-se contra ela e a porta cedeu sem resistência, fazendo-o cambalear: ele, porém, equilibrou-se logo, enquanto Robin o cobria com o escudo.

A sala era pequena e nua. Um velho estava sentado com as costas à parede, em volta da testa um pano ensangüentado. Uma dúzia de monges de todas as idades estava à esquerda e à direita. Todos pálidos e espantados. Uma velha lanterna iluminava a cena. Ninguém falava, já que também Piers não sabia o que dizer. Afinal ouviu-se a voz trêmula do velho ferido:

- Senhor cavaleiro, se tendes ordens de matar-me, sou eu quem procurais. Deixai livres estes.

Piers estremeceu. Estava certo de já ter ouvido aquelas palavras, mas onde? De repente lembrou-se: no Evangelho, o Evangelho de Sexta-feira Santa. Lia-o padre Thorney, o velho capelão, no castelo de sua mãe. Eram as palavras que Cristo pronunciou quando os esbirros o foram prender no Getsêmani. E ouvindo-as pela primeira vez Piers indignara-se porque os apóstolos não souberam defender melhor ao seu Senhor. Um único golpe de espada, e esse só cortara uma orelha. Que miséria! Se lá estivesse seu pai, ou ele mesmo, ou melhor ainda os dois, aquela horda não teria conseguido capturar o Senhor. E no almoço dissera-o também ao velho capelão recebendo dele uma gentil carícia. Não sabes então que Nosso Senhor devia ser crucificado para que tu e eu e todos nós, quando chegar a nossa hora, possamos achar aberta a porta do Paraíso? - Piers refletira muito, abaixando a cabeça. Parecia não houvesse outra solução. Todavia deveriam tê-lo defendido um pouco melhor. E agora estes tomavam-no por um miserável esbirro e pensavam que tivesse vindo com ordem de matar quem representava cada dia o Redentor diante do altar. Aquelas horríveis palavras eram dirigidas a ele. Disse:

- Não tenho nenhuma ordem, aliás ... aliás sou contra esta ação. Eu ... eu sou inglês:

- Percebo-o - replicou o velho monge com um leve sorriso. Há muito tempo ... talvez meio século, visitei o vosso belo país. Justamente então tinham começado a construir a linda catedral de Cantuária.

- A construção continua - explicou Piers.

- Para construir leva-se muito tempo, - observou com tristeza o monge - muito pouco para destruir. São Bento fundou esta casa, São Bernardo e Santo Anselmo nela moraram... e agora temos de assistir a tanta destruição! - Reprimiu um gemido mordendo os lábios e via-se que sofria.

- Não deveríeis falar, reverendíssimo abade. - murmurou preocupado um dos monges.

Era o abade! Realmente, trazia a cruz peitoral. O abade de Montecassino, do convento mais antigo e mais sagrado em toda a cristandade. "Sou eu aquele que procurais. Deixai ir estes ...".

O esquelético corpo do velho foi sacudido por um arrepio.

- Não tenhas medo... caro irmão... o Senhor... ao que parece... não me quer ainda. - E dirigindo-se a Piers: - Que fazeis aqui, meu filho? Se, como dizeis, desaprovais esta ação ...

- Procuro um rapaz, reverendíssimo abade. Seu irmão, o conde Rinaldo de Aquino, pediu-me cuidasse para que não lhe aconteça uma desgraça.

Os monges trocaram um olhar entre si.

- Se o confiar ao vosso cuidado, - disse o abade lentamente levá-lo-eis à sua casa são e salvo? O castelo da família dele não é longe daqui.

- Prometo-o.

-Ei-lo - disse o monge. - Vem, Tomás.

O forte jovem, que até então tinha ficado no fundo da sala. vestia o hábito branco e preto e estava pálido como os outros: aproximou-se do abade e ajoelhou-se a seu lado.

- Tomás, meu filho, terminam teus estudos neste convento, mas nada, além da morte, pode pôr fim às nossas orações para ti. Desejo que voltes para casa e fiques algum tempo com tua boa mãe.

O jovem abaixou a fronte em silêncio. O abade sorriu-lhe:

- Não sei se e quando nos tornaremos a ver neste mundo. Lembras-te da tua primeira pergunta, quando vieste aqui com a idade de cinco anos? "Quem é Deus"? e continuavas a repeti-la; nosso Pai que está nos céus quer talvez que tu encontres a resposta de modo a que seja compreendida por muita, muita gente. Adeus, querido filho. divi auxilium maneat semper tecum. Amen.

Enquanto o abade fazia o sinal da cruz sôbre o jovem, um ruído terrível rompeu o solene silêncio, e uma lufada de ar quente invadiu a sala.

Os monges ficaram aterrados, enquanto Piers, virando-se. recebia de Robin a notícia:

- Vamos mal, senhor. Uma parte do edifício ruiu. Ouves? Ainda estão caindo as ruínas.

- Que temos de fazer?

- Não sei como poderemos sair. Certamente que não por onde viemos.

- Vai ver, Robin. Talvez não seja tão grave como pensas.

O escudeiro obedeceu, mas logo que saiu da porta teve que recuar. Um estrondo cavo, outro estalido.

- Pára, Robin. Parece que tens razão.

Nisso o abade disse:

- Senhor cavaleiro, indicar-vos-ei um caminho.

Levantando o olhar Piers viu uma portinhola abrir-se lentamente na parede oposta: decerto uma passagem secreta.

- Nós também sairemos daqui logo que eu possa caminhar - disse o ancião. - Chegarei além do baluarte meridional. O terreno está coberto de moitas e provavelmente não sereis vistos.

Piers não pôde conter a pergunta:

- Não tendes medo que eu revele o vosso esconderijo aos de fora?

- O medo, meu filho, é mau conselheiro. Agireis como vos manda a vossa vontade e a vossa consciência. Agora ide: rogaremos por vós.

Tendo beijado a mão do prior, o jovem Tomás levantou-se e saiu resolutamente pela porta secreta, enquanto Piers o seguiu, inclinando-se diante do abade. O corredor, pavimentado de pedras, era em subida e, num certo ponto, tornava-se íngreme.

- Estás aí, Robin?

- Sim, senhor. Estás vendo o jovem que te precede?

- Não.

Robin murmurou algumas palavras incompreensíveis. O prior parecia honesto, mas, em terra estranha, nunca se sabe, podia dar-se que fosse uma armadilha, que o jovem sumisse e eles dois caíssem num fosso ou numa masmorra.

A passagem continuava a subir. Para quem usava armadura, aquela subida no escuro não era fácil, e de vez em quando Piers devia parar para descansar alguns minutos. Afinal a obscuridade foi diminuindo e, de repente, o corredor dobrou à direita. Com um suspiro de alívio Piers percebeu a folhagem de uma árvore, ou melhor, um tufo de oleandros e loureiros, e daí o ar fresco entrava às lufadas, embora ainda com cheiro de queimado.

E lá adiante, o jovem que parecia ao abrigo ... estava, porém, ali de joelhos, e rezava, pobre rapaz: uma aventura para a qual a vida tranqüila do convento não o havia certamente preparado.

Piers aproximou-se dele e ao longe viu uma grande nuvem de fumaça elevando-se sôbre o edifício; percebeu também uma seção de arqueiros sôbre o muro externo, e outra que se dirigia à vila, da qual se viam apenas os telhados achatados, lá em baixo, no vale. Â expedição não era dirigida apenas contra o mosteiro. Montecassino era um pequeno reino do qual o convento era a fortaleza.

Entretido na oração, o fradezinho não notava a presença de Piers. Seu irmão, o poeta, tinha-o descrito bem: era um jovem bem gordo, ou pelo menos arredondado, de rosto belo e pálido, uma cabeça raspada rodeada por uma coroa de brilhantes cabelos castanhos. Um fradezinho, embora ainda não em idade de ter feito os votos. Nestes casos, no momento em que os pais o acompanhavam ao mosteiro, faziam uma espécie de voto no lugar do filho, mas sem que isso constituísse um compromisso para toda a vida. Os votos verdadeiros eram feitos quando o jovem alcançava a maturidade. Mas por que tinham agido assim? Era uma crueldade sacrificar um menino inerme a uma vida ascética que só conhecia os ideais da pobreza, da castidade e da obediência. E verdade que, querendo, o jovem podia sair... mas como poderia conhecer a própria vontade, se desde que estava no mundo só conhecera a existência claustral? Aquele involuntário retorno ao seio da família e à vida em liberdade poderia ser um grande bem para ele. Quantos anos tinha? Uns quinze, dezesseis no máximo. Provavelmente nunca tinha visto o rosto de uma mocinha. Que podia saber das alegrias da caça com falcão nas límpidas manhãs, das companhias alegres, da viva consciência das próprias forças, características do homem que, de viseira abaixada e lança em riste, cavalga contra o inimigo? Não sabia outra coisa senão rezar, jejuar e ler velhos livros. A nova aventura, embora perigosa, poderia abrir-lhe uma alegre vida cavalheiresca.

Piers tocou-lhe o ombro:

- Rezaste bastante, jovem. Agora vamos.

Tomás pareceu não sentir nem ouvir. Estava de olhos fechados como se dormisse, tanto que Piers teve de sacudi-lo:

- Êh, onde estamos?

O jovem abriu os olhos e fez com solenidade o sinal da cruz. Depois olhou para Piers, e levantando-se exclamou com surpreendente gentileza:

- As vossas ordens, senhor cavaleiro.

- Vamos, então. Temos de nos afastar daqui.

Foi preciso quase um quarto de hora para alcançar o lugar onde Robin tinha deixado os cavalos. Enrugando ligeiramente a fronte, Piers viu que Caserta ainda estava ali gritando ordens. A torre tinha ruído e o edifício estava em chamas.

Vendo-o o conde exclamou:

- Santo Maomé, ainda estás vivo? Já estava pensando no modo de comunicar ao senhor de Cornualha a perda do seu mais jovem cavaleiro. Onde te enfiaste? Já estou cheio desse maldito convento. Os carecas não põem resistência, mas na queda da torre perdi pelo menos uma dúzia dos meus melhores homens, e trinta outros estão com graves queimaduras. O cirurgião está cheio de trabalho. Que trazes aí? um prisioneiro?

- Conforme. Este é o irmão do conde Rinaldo de Aquino, o qual me pediu para o proteger. L uma criançola, como estás vendo, e agora o levo para a casa de sua mãe.

- Não sei se será um divertimento. Espera um pouco: aqui vamos acabar já, e lá embaixo há um par de vilas onde cresce uma espécie de mocinhas saborosas e há um vinho ótimo. Provaremos as duas coisas.

Piers sacudiu a cabeça:

- Antes o dever, senhor. Queres dar-me uma mula para o rapaz? Caserta pôs-se a rir:

- Está bem, se ao invés de divertir-te com as raparigas preferes ser ama-seca, não te impedirei. Êh! traga uma mula para o cabecinha rapada! Gostaria que tivesses capturado o abade. Viste-o nalguma parte?

- Procurei apenas o jovem - respondeu Piers friamente, enquanto Robin, atrás dele, mordia a ponta dos bigodes loiros: o patrão era jovem, mas aprendia rapidamente: bravo!

- E tu, fradeco, - perguntou o conde - onde está o teu superior? Vamos, fala a verdade, não tenhas medo. Onde está?

- Está nas mãos de Deus - respondeu o jovem.

- Morto? Ou entendes diversamente? Es um ingênuo ou uma pequena raposa?

- Sou um oblato de São Bento - respondeu o jovem com simplicidade.

Caserta riu:

- Cavaleiro, podes levar para casa este lactante. Eu ainda tenho o que fazer.

Robin tinha ido buscar os cavalos, enquanto um soldado trazia a mula pedida pelo conde.

- Robin, ajuda o jovem a montar.

O escudeiro, entretanto, ajudou primeiro o patrão, e, quando se virou para o jovem, achou-o já montado na mula. Montou ele também no seu cavalo, um belo e forte animal, que não só devia carregar aquele homem pesado, mas também a bagagem. Piers não tinha levado consigo muita coisa, mas ainda assim era sempre um peso considerável para um cavalo que tinha de levar Robin Cherrywoode.

- Conheces o caminho, jovem? - perguntou Piers.

- Sim, cavaleiro. Agora minha mãe está em Roca-sêca, não em Aquino.

- Aquela também pertence à tua família?

- Sim, senhor.

- E no inverno tua mãe prefere Roca-sêca?

- Sim, Roca-sêca ou o castelo de São João.

Três castelos! Os de Aquino deviam ser urna dinastia rica. As respostas do jovem eram prontas e corteses, mas pareciam pronunciadas maquinalmente: decerto o seu pensamento estava ainda em Montecassino; realmente, os olhos e a boca estavam cercados de sombra.

- Deste uma bela resposta ao conde de Caserta, quando te perguntou onde estava o abade.

- Respondi a verdade - disse o jovem com seriedade. - Tu também fizeste a mesma coisa. - Dizendo isso sorriu para Piers; era um sorriso quente e luminoso como o sol. Nele havia a alegria do bem e um reflexo de inteligência. Com estupor Piers percebeu que enrubescia como se uma linda mulher ou um homem a ele superior o tivesse elogiado; no entanto Tomás não tinha nada de feminil, nem tomava poses estudadas: era simplesmente um jovem gordo e educado.

Agora cavalgavam na mais bela região que Piers já vira: tudo eram laranjeiras e limoeiros, oleandros e loureiros e flores de cores tão vivas a ofuscarem a vista. Compreendia-se então a jatância do imperador. O próprio paraíso não deveria ser muito mais belo. Pena ter de cavalgar em tal região carregados de couraça e de armas!

- O mundo é belo - disse Piers. - Deverias estar feliz de o tornar a ver.

- De fato o estou - replicou o jovem. - Deus quer assim.

Pigarreando, Piers tornou a pensar nas palavras do abade e disse:

- Pensas que acharás a resposta à pergunta "quem é Deus?". E enquanto falava pensou que provavelmente o jovem iria dizer: -Sim, se Deus o quiser".

Tomás sorriu-lhe outra vez: parecia tivesse adivinhado o pensamento de Piers, que, levantando o rosto, exclamou com impaciência:

- Às vezes, não achas?, é difícil compreender que haja um Deus sumamente bom... e que se tenha de assistir àquilo que vimos hoje!

O jovem enrugou a testa e, depois de um instante de hesitação, disse:

- Se o mestre escreve uma fórmula matemática e tu não a entendes, a fórmula será insensata?

- Não entendo de fórmulas matemáticas, - confessou Piers honestamente - mas no caso pediria ao mestre que a explicasse.

- E por que não o fazes? - perguntou o jovem surpreso. - Pode ser que a explique, como é possível também que não compreendas a explicação.

- A Deus não se podem dirigir perguntas - respondeu Piers levantando os ombros.

- Claro que se pode! - replicou o estranho jovem. - Basta orar. Naturalmente, precisa-se fazer perguntas justas, enquanto nós geralmente as fazemos erradas. A primeira pergunta que dirigimos a Deus foi esta: "Serei eu guardião de meu irmão?", ou pelo menos foi a primeira pergunta da qual temos notícias. Também Jó fez perguntas, bem como os profetas e os apóstolos, e mesmo Nossa Senhora. Certamente não se devem fazer perguntas como aquelas dos fariseus - concluiu em tom convicto, enquanto Piers se divertia perguntando ainda:

- E tu? Também fizeste perguntas?

- Claro. Muitas vezes.

- E Deus te respondeu?

- Sempre.

Piers riu satisfeito:

- Quer dizer que sempre lhe dirigiste a pergunta justa.

- Oh! não, nem sempre.

- No entanto disseste que só responde às perguntas justas!

- Disse que se devem fazer perguntas justas. A resposta vem sempre, porém a rima pergunta errada ele pode responder não respondendo. Então se compreende que a pergunta estava errada.

- Como podes saber o que Deus faça ou não faça?

O jovem coçou o queixo:

Todo o bem vem de Deus, não é?

- Penso que sim - respondeu Piers após breve reflexão.

- Portanto, - disse Tomás - se formulamos humildemente e a serviço de Deus uma pergunta razoável, é um bem, não?

- Será certamente um bem.

- Então a pergunta deve vir de Deus, que é a fonte de todo bem: portanto ele próprio fez em nós a pergunta. Como não poderia responder a rima pergunta feita por nós por sua inspiração?

Piers fixou o jovem, abriu a boca e tornou a fechá-la, enquanto atrás dele ressoava um assobio prolongado e baixo. Virando-se, deparei coro o rosto astuto e inocente de Robin.

- Parece que no convento ensina-se a dialética - disse o escudeiro roo voz um pouco rouca.

- A dialética faz parte do estudo - explicou alegremente Tomás enquanto Piers esforçava-se com o cérebro tão intensamente que come a amar. Era preciso não entregar os pontos a esse rapazinho. De tanto refletir adiou o que procurava e ficou tão satisfeito que :e pôs a rir.

- A tua teoria é muito bela, mas tem um ponto fraco. O teu superior disse que tu perguntavas sempre "quem é Deus", e depois exprimiu a esperança de que um dia possas encontrar a resposta. Em outros termos, até agora ainda não a encontraste. No entanto era uma pergunta boa que, estou convencido, fizeste com humildade e ... como dizias? ... a serviço de Deus. E este não te respondeu. Que achas?

Respirou fundo, pois aquele exercício de pensamento era tão fatigante quanto o de esgrima: desta vez, porém, tinha apanhado na rede aquele diabrete. . Mas o diabrete tinha ouvido atenta e cortesmente, e respondeu:

- Fiz pela primeira vez aquela pergunta quando era ainda criança, e desde então Deus continua a responder-me ininterruptamente. Uma parte da resposta deu-ma na escola, onde aprendi que ele é aquele que é, e é três pessoas e todavia um só Deus, e tudo que disse de si mesmo quando veio a esta terra. A resposta está também nas árvores, nas flores, nas nuvens e em muitas outras coisas, porque são belas. A melhor resposta, porém, foi-me dada quando pude pela primeira vez aproximar-me cia mesa ela Comunhão.

Piers calava, e desta vez atrás dele ninguém assobiou. Entretanto o jovem continuava:

- Ele responde também enquanto abre a minha inteligência. O reverendo abade não pretendia dizer que eu ainda não tive resposta. Queria exprimir a esperança que, para o futuro, me torne menos tolo e aprenda a compreender melhor.

- Compreendo - disse Piers, e pôs-se a esfregar a malha de ferro que lhe cobria o braço esquerdo e que tinha perdido o lustre, (lado que a fumaça não tinha valido à armadura. - Es de fato um fradezinho disse o mais friamente que lhe foi possível. - Há muitos outros ela tua espécie em Montecassino?

- Dezessete - foi a ingênua resposta, acompanhada daquele indizível sorriso quente e luminoso como o sol. - És muito bom para comigo, senhor, tu que me deixas tagarelar tanto.

- Ora, ora - disse Piers embaraçado, mas satisfeito. Em vez de ser um dialético miseravelmente derrotado, tornava-se de repente um adulto que se tinha benignamente dignado fazer falar um jovenzinho para que esquecesse o que se havia passado. A mudança lhe fez bem, tanto mais que, afinal das contas, tinha realmente feito falar o jovem. Outro não se teria, talvez, ocupado dele ou ter-lhe-ia contado coisas inconvenientes. Ele, porém, lhe dera ocasião de conversar em torno de um argumento que, evidentemente, o interessava a fundo.

Acomodando-se na sela pensou que o mundo não era lá tão ruim. Sentia-se contente sem bem compreender por que. Aquele jovem era muito cortês.

- Escuta, Robin, - perguntou sorrindo - que achas deste nosso pequeno teólogo?

O escudeiro levantou as sobrancelhas loiras e espessas:

- Se ele não tiver cuidado, acabará tornando-se arcebispo.

O jovem enrubesceu como uma brasa.

- Falo sério, senhorzinho - frisou Robin bondosamente. - Não estou brincando.

Tomás sacudiu energicamente a cabeça.

- Como? - perguntou Piers com um sorriso. - Não queres vir a ser arcebispo?

- Não, não, nunca.

- Por que não? - Certamente aquele rapaz era ainda um menino, e Piers estava contente de sentir-se adulto.

- Os arcebispos têm sempre muitas outras coisas .para fazer. Não lhes sobra tempo para pensar.

- Pois bem, tempo para refletir ainda tens bastante - asseverou Piers, enquanto, para sua admiração, Robin corria a estender-lhe o escudo, que ele tomou maquinalmente, perscrutando o horizonte. Das colinas cobertas de loureiros descia algo brilhante: cavaleiros que avançavam a galope, fechados em suas couraças. Eram cinco, dez, vinte ou mais. Preparou a lança, pensando que não podiam ser os homens do conde de Caserta, pois que vinham de direção oposta. Socorros para Montecassino? Não, não eram bastante numerosos. Já se ouvia o tropel dos cavalos.

- Atenção jovem: coloca-te atrás de mim. .

Tomás obedeceu, embora dizendo:

- Esses, cavaleiros, são de Aquino. Vejo-lhes o estandarte. Comanda-os meu irmão Landolfo.

Piers virou a lança e a espetou no chão. .No mesmo instante ouviu o comandante do grupo gritar uma ordem, e num momento estava rodeado. .

- Ah! eis-te aqui, irmão monge! - exclamou com alegria o conde Landolfo; um jovem com cerca de vinte e cinco anos, forte e enérgico. - O imperador defumou-te? Bem feito, bobo. Vimos a fumaça, e, como mamãe estava aflita, resolvemos ver as coisas de perto, vindo eu deste lado e mamãe do outro. Eh! Tonio, alcança a condessa e diz-lhe que já o encontramos são e salvo. Não é preciso chorar mais. Corre! com quem tenho a honra de falar?

- Sou Piers Rudde, da escolta de sua alteza o conde de Cornualha. Quando soube que me tinha agregado à expedição do conde de Caserta contra Montecassino, teu irmão, o conde Rinaldo, pediu-me procurasse ocupar-me deste jovem.

Landolfo explodiu numa gargalhada.

- Rinaldo! Preocupou-se ele também? Meu irmãozinho, toda a família procurou salvar a tua preciosa vida. Achas que o mereces? Teu servo, cavaleiro. Porém, gostaria de saber por que te agregaste à expedição de Caserta. Preferiria bater-me sozinho contra meia dúzia de vilões armados de foice a guerrear sob as ordens daquele antipático ... desculpa-me no caso de ser teu amigo. Foste muito gentil ocupando-te deste rapaz. Queres dar-nos a honra de vir conosco a Roca-sêca? Minha mãe nunca me perdoaria se te deixasse ir embora. Tem paciência, pois, e vem. R uma cavalgada de meia hora.

Piers aceitou cortesmente o convite e o grupo pôs-se em marcha. Desde a chegada do conde Landolfo o pequeno Tomás não tinha pronun- ciado palavra. Nem mesmo tivera ocasião. Como eram diferentes aqueles três irmãos, o poeta, o frade e o guerreiro! Agora Landolfo cavalgava a seu lado e conversava com naturalidade:

- Se Caserta comandou o ataque, não ficará muito de Montecassino. Eu não o aturo, mas é preciso admitir que quando faz alguma coisa, fá-la até o fim.

- Penso que é obrigado a cumprir as ordens do imperador murmurou Piers.

- Certamente, certamente, todos o somos. Espero que não me tenhas compreendido mal. Se o imperador quer destruir a abadia de Montecassino, deve ser destruída. Eu sou um simples soldado e não me passaria nunca pela cabeça discutir as ordens emanadas da maior cabeça do nosso tempo. Se o tivesse ordenado a mim, tê-la-ia destruído, como o fez Caserta. E não seria a primeira vez. Onze anos atrás o imperador ordenou a meu pai destruísse Montecassino, e meu pai obedeceu, mas tinha algum escrúpulo, o pobre papai... - Landolfo levantou os largos ombros e sorriu. - Depois dormia muito mal, e justamente por isso confiou o pequeno Tomás aos beneditinos tão logo foi reconstruída a abadia. As vezes os velhos têm idéias estranhas, mas Tomás parecia satisfeito. Suponho que durante o caminho não terá aberto a boca.

- Pelo contrário, conversamos animadamente.

Landolfo fitou-o estupefato:

- Sangue de Deus! falas sério? Geralmente nunca conversa. Que lhe terá dado? Mamãe diz freqüentemente que não é necessário que se faça frade, porque já o é. E um frade de nascimento, e temo que mamãe tenha razão. Geralmente ela tem sempre razão. Não importa. Aqueles "saias pretas" reconstruirão o velho monte de pedras, estejas seguro, e daqui há dez anos mamãe rogará ao papa nomeie Tomás prior do mosteiro. Não seria uma posição desprezível, é claro; papai pensava nisso desde o primeiro momento.

- Prior - repetiu Piers, e perguntou sorrindo: - Os priores têm tempo para pensar?

- Para pensar? - disse Landolfo arregalando os olhos. - Como assim? Como posso sabê-lo? Ah! eis que chegamos.

Piers observou o castelo como bom entendedor. Duplo baluarte, torres sólidas e modernas, uma só vereda na rocha até a entrada, fácil de defender contra forças cinco ou mesmo dez vezes maiores. Capaz de conter uma guarnição de trezentos homens ou ainda mais, Roca-sêca era o castelo de um soberano, e não de um simples cavaleiro. Foregay, o castelo de Piers, era um montículo de toupeiras, em comparação com esse.

Enquanto se aproximavam, a ponte elevadiça começou a abaixar-se. Cerca de cinqüenta homens armados de lança e besta prestaram as honras ao jovem senhor que voltava. Outros cinqüenta estavam alinhados sôbre o segundo baluarte. Roca-sêca dava a impressão de um castelo pronto para a defesa.

- Benvindo à nossa casa, sir Piers, - disse gentilmente o conde Landolfo. - Nicolau, conduz o hóspede para o quarto verde, prepara-lhe o banho e dá-lhe roupas adequadas à sua posição. Cavaleiro, se é da tua vontade, encontrar-nos-erros dentro de meia hora na sala grande. Com licença, sir Piers ...

A banheira era de cobre polido: o próprio imperador não poderia ter uma melhor; e as duas fortes criadas encarregadas da massagem punham alternadamente no rosto do hóspede compressas quentes e frias. Eram hábeis e diligentes como convém a boas banhistas. Como era bom aquecer-se, deixando todas as tarefas a Nicolau, um siciliano de cabelos grisalhos e de graciosos movimentos felinos! Certamente também Robin e os cavalos eram bem tratados. Nicolau trouxe um magnífico hábito de chamalote francês, um tecido misto de seda e lã, e um sobretudo sem mangas, de lã azul. Depois penteou o hóspede, perfumou-lhe os cabelos e afinal trouxe um cálice de vinho vermelho, vinho siciliano, que teria ressuscitado um defunto. Livre da pesada armadura, refrescado pelo banho e vestido com elegância, Piers desceu e entrou na grande sala.

Ali viu uma mocinha que lhe dava as costas e trajava uma longa veste cor de mel. Aproximando-se, Piers notou que ela olhava para baixo, para o pátio, por uma pequena janela, e dizia rindo:

- Então, Landolfo, onde está o teu hóspede? Marta e Adelásia estão com o pequeno Tomás: elas bastam, mesmo porque estou muito curiosa de ver o cavaleiro que nos trouxeste. Escuta, Landolfo, como é ele, é velho e feio?

Se Piers tivesse tido cinco anos a mais, teria gostado daquela cena: porém, não sabia como portar-se.

Mas a mocinha virou-se e ele viu o rosto que devia marcar o seu destino, um rosto oval, cor de marfim, coroado de brilhantes caracóis castanhos. Naquele rosto oval não percebeu logo todos os tesouros, não observou que aqueles olhos negros despediam uma luz solar, nem viu o orgulho do narizinho de narinas sensuais, nem o perfeito entalhe da boca, a curva voluntariosa do queixo pequenino, a delicadeza da cútis. que não precisava nem de pós nem de cremes. Se o mais severo dos juizes, ameaçando-o de morte, ordenasse-lhe dissesse o que via, ele só poderia ter respondido: o rosto da beleza. E com isso teria pronunciado a própria sentença, pois o que ele vira superava a própria beleza. Era o assunto do canto dos poetas, os menestréis de Deus, aquele assunto que torna incrivelmente tolos e imensamente aborrecidos ao próximo os simples mortais.. .

Ficou parado a olhá-la, ouvia-a falar, mas sem compreender uma palavra. Nunca soube, enquanto viveu, quais tinham sido as primeiras palavras dela. Só quando apanhou o vocábulo "surdo-mudo" conseguiu romper o encanto. Inclinou-se com o rosto em brasa, e disse com voz estranhamente rouca:

- Peço-te perdão, nobre dama. Se eu fosse melhor cristão do que sou, lamentaria todos aqueles que não têm a sorte que me coube ... de poder olhar-te.

Era uma homenagem lícita naquele tempo, em que se apreciava a beleza; ela respondeu com uma graciosa reverência:

- Não falas nada mal... para um surdo-mudo. - Depois sorriu. - És inglês, não, senhor cavaleiro? E dizem que no teu país reina apenas a seriedade e a gravidade! Na Inglaterra deveria eu também tornar-me séria e grave?

- Sim, nobre dama; exceto se quisesses ter todo o país aos teus pés, sorrindo como estás fazendo agora.

Outra graciosa reverência. Mas a expressão mudou enquanto dizia:

- Sei que foste muito bom para com meu irmãozinho. Cabe a minha mãe apresentar-te os nossos agradecimentos, mas agora digo-te que conquistaste também a gratidão da irmã.

Uma espécie de barreira invisível surgiu de repente entre eles, uma barreira que apenas a surpresa do primeiro instante podia ter feito ignorar: a barreira do grau social. Pelo menos oitenta cavaleiros do grau de Piers Rudde estavam a serviço do soberano de Aquino.

- Grande prêmio por tão pequeno serviço - sentenciou Piers com uma cortês inclinação.

Poucos minutos depois teve ocasião de repetir as mesmas palavras. A condessa tinha voltado ao castelo com cerca de cem homens armados a cavalo. Era uma senhora alta e elegante, de uns quarenta e cinco anos, ainda bela, apesar do tom imperioso. Tinha movimentos enérgicos e rápidos, e, em certos momentos, sua voz elevava-se demasiadamente. Compreendia-se que estava acostumada a fazer-se obedecer.

- Agradeço-te, senhor cavaleiro, - disse - e agradeço também ao imperador, meu, benigno soberano, por ter-te mandado proteger meu filho. Agrada saber que não esquece os amigos e os filhos dos amigos nem mesmo quando deve demolir o domicílio dos mesmos.

- Peço-te perdão, nobre dama, - objetou Piers. - Não foi o imperador que me enviou para proteger o conde Tomás. O imperador não sabe disso. Foi o conde Rinaldo que conheci no ... quartel-general do imperador.

A condessa mordeu os lábios:

- Ah! então, foi assim. Rinaldo é um bom filho e um bom irmão. Espero que a companhia de meu filho menor te não tenha aborrecido em demasia. Nicolau, vê se tudo está pronto para o jantar. Tenho fome.

"Ainda há meia hora atrás soube que Tomás estava salvo". Pensou Piers. "Diga-lhe: Não é preciso que chore mais", tinha ordenado Landolfo ao mensageiro. Somente agora Piers compreendia que aquelas palavras eram irônicas: a condessa não parecia ter chorado, aliás era difícil imaginar que tivesse chorado algum dia.

Landolfo chegou com Tomás e duas meninas, ambas com vestes cor de mel, como a aparição da qual Piers ainda não se havia refeito. Deviam ser as irmãs. Landolfo fez as apresentações à sua moda:

- Sir Piers Rudde, um cavaleiro inglês que tirou da panela o irmãozinho monge; minhas irmãs Marta e Adelásia. A outra, Teodora, já a conheces, é a mais jovem e a mais insolente. Vamos, vamos, mana, não é preciso que me comas com os olhos. E tu, Piers, ainda não nos contaste como conseguiste tirar de Montecassino frei Tomás.

- Não há muito que contar - disse o jovem inglês. - Entrei e o trouxe para fora.

- Sim, mas esqueceste de dizer que o edifício estava em chamas - observou Tomás, e pela terceira vez, Piers viu o seu sorriso incrivelmente quente, que lembrava estranhamente a irmã menor ... mas não ... oh! sim ... era e não era igual. Era como ... como a mesma roupa vestida às avessas ... que comparação boba! Mas ele sabia o que queria dizer.

- Cavaleiro, - começou a condessa com inesperado ardor - não quero sentar à mesa antes de ter-te recompensado. Escolhe o prêmio e não sejas modesto.

- Mas, nobre dama ...

- Arriscaste a vida por um estranho. Este, porém, era um de Aquino. Pela Santa Mãe de Deus! nunca se dirá que não sabemos pagar nossas dívidas.

Piers sentiu um nó na garganta. Era loucura, uma loucura desesperada que lhe prometia os tormentos do inferno. Todavia falou:

- Nobre dama, se realmente insistes, o meu senhor, o conde de Cornualha, deu-me uma licença ilimitada. Queres permitir-me entrar como cavaleiro ao teu serviço?

A condessa surpreendeu-se e não conseguiu responder logo. Landolfo pôs-se a rir:

- Boa idéia, mamãe. Tem aparência de ser útil quando apareça algum conflito.

Embora lhe fosse quase impossível, Piers esforçava-se para não olhar para Teodora, e esta era a primeira das numerosas dificuldades que lhe deviam aparecer. "Enlouqueci mesmo!", pensou.

Entretanto a condessa já havia decidido. Recusou, como indigna, a idéia de que o jovem quisesse fugir de alguém ou de alguma coisa procurando abrigo sob o estandarte dos de Aquino: não parecia, embora naqueles tempos fosse coisa comum.

- A minha casa sente-se honrada e feliz - disse gentilmente. - Tens contigo comitiva?

- Apenas um escudeiro, Robin Cherrywoode, homem fiel e de confiança.

- Terás mais dois como todos os nossos cavaleiros. Para o resto há tempo. Amanhã prestarás o juramento.

- Estou satisfeito - comentou Tomás cordialmente, enquanto Piers lhe sorria.

- Modesta compensação para tão grande mérito - exclamou Landolfo rindo. - O meu irmãozinho nasceu quando morriam o papa Honório... São Francisco e Gengis-Kan. Quem sabe se não nasceu para substituir algum deles. Qual será, irmãozinho monge?

- A tua brincadeira é de mau gosto, Landolfo, - observou a condessa severamente. - Um de Aquino não pode ser nem pagão, nem mendigo ... nem mesmo um santo mendigo.

Nicolau apareceu para anunciar que o jantar já estava pronto.