CAPÍTULO II

O correio com a correspondência secreta alcançou o imperador enquanto cavalgava com a escolta para o sul.

- Podes ficar conosco - disse Frederico. - Manfredo, apanha a bolsa e lê-me as cartas. Dez ducados ao correio se as notícias são más, trinta se são boas. Lê, Manfredo, ou melhor, resume brevemente.

- Carta do conde de Caserta - começou Manfredo. - Pedro Capócio, o legado papal, tentou ocupar a Sicília. Foi rechaçado e perdeu dois mil homens. Dois sobrinhos seus foram feitos prisioneiros.

Frederico aprovou com um estranho brilho nos olhos.

- Uma esperança a menos, santo padre. Adiante, Manfredo ...

- Comado esta para chegar - anunciou o jovem enrugando a testa. Os filhos do imperador, todos de mães diversas, não se davam. Agora Manfredo tinha dezoito anos, Comado vinte e seis, além do título régio - rei Comado IV, - e mais do que nunca olhava o irmão com desprezo.

- Terminou a campanha renana - prosseguiu o jovem - estipulando um armistício com os arcebispos das cidades ao longo do Reno.

- Muito bem - aprovou Frederico. - Quando Comado estipula um armistício quer dizer que segura os bispos pelo pescoço. )J um espertalhão. Adiante!

- Avinhão e Arles homenagearam novamente o imperador. Vozes fidedignas afirmam que o papa pediu asilo ao rei da Inglaterra, em Bordéus.

- Dentre todas, é esta a mais bela notícia. Cinqüenta ducados ao correio! Meu filho, sabes o que significa isso? É quase o fim da minha luta contra o rei dos supersticiosos. Ora veja! Bordéus ... só lhe resta a Inglaterra e depois o Oceano. Aos peixes o sucessor do pescador! Nem mesmo o piedoso francês pode valer-lhe: ser-lhe-á preciso muito para refazer-se da surra que lhe deram meus amigos muçulmanos. Eis o momento bom, Manfredo. Aqui queria chegar. O resto é brincadeira. Berardo ... onde está Berardo?

- Eis-me aqui, majestade. - O arcebispo de Palermo, que não via sua diocese há anos, isto é, desde quando fora excomungado junto com o seu imperial patrão, seguira Frederico com fidelidade canina, mas já era muito velho e tinha de se fazer levar quase sempre de liteira.

- Berardo, despacha ao duque Alberto de Saxônia a carta que preparamos ultimamente. Se os pintores saxões não são os maiores aduladores do mundo, a filha dele deve ser muito bonita.

- Papai, pretenderás casar-te de novo? - perguntou Manfredo despeitosamente. - Este mês completas cinqüenta e seis anos. Não basta? Pretendes ter outros filhos?

Frederico parou o cavalo e gritou:

- Es o príncipe de Taranto e meu sucessor na Itália. De que te queixas? Tens dezoito anos. Eu ponho no mundo filhos quantos quiser e tu nada tens com isso. Não quero estragar o meu dia. Sai da minha frente!

Palidíssimo e cheio de cólera, o jovem Manfredo virou o cavalo e voltou atrás, para juntar-se ao esplêndido cortejo que seguia o imperador a cinqüenta passos de distância.

- Que impertinente! - murmurou Frederico com um sorriso azedo. - Sei o que ele quer ... e o que quer Conrado. Sei o que querem todos. Parecem-se, os meus filhos. - E vermelho respirava com dificuldade. De repente levou o cavalo para a beira da estrada e vomitou. As convulsões agitavam aquele corpo possante que se dobrava sôbre a sela.

Após um instante de espanto, alguém começou a gritar: - O médico, o médico! - e João de Prócida apareceu. Era ainda jovem apesar da grande fama que gozava. Os cabelos vermelhos saíam de baixo do gorro de veludo negro; seu rosto era o de um símio inteligente. Ajudou o imperador a desmontar (ninguém na confusão havia pensado nisso), e pelo modo com que teve de o amparar todos compreenderam que não se tratava de um banal mal-estar. O vômito não lhe trouxera nenhum alívio.

- Dois homens para ajudar o nosso senhor! - exclamou o médico, e todos acorreram. - Uma liteira! - ordenou.

- A única que temos serve ao arcebispo.

João de Prócida bateu o pé.

- Uma liteira, digo! Não pode mais ir a cavalo. Mandai descer aquele velho adulador.

Os cavaleiros olharam o cortesão. Na corte de Frederico podia-se imprecar contra os arcebispos, mas Berardo era amigo pessoal do imperador.

- Tirai-o daí! - gritou o médico. - Preciso da liteira para o meu senhor, e a terei! Deixai-o ir a pé, aquele velho mercador de superstições.

O imperador não possuía plena consciência, porém, Manfredo, aproximando-se preocupado, viu-o virar-se para o outro lado e voltou para trás.

O velho arcebispo tinha descido da liteira. Não ouvira as palavras do médico, mas ainda que as tivesse ouvido não o teriam impressionado. Conhecia João de Prócida e suas opiniões. Aproximou-se, pois, para oferecer a liteira a Frederico, mas quando o fitou no rosto, assustou-se: estava amarelo e tinha os olhos encavados. Parecia sofrer muito e apoiava-se pesadamente em um dos cavaleiros, os quais tiveram de levá-lo quase até a liteira e, tendo-o deitado, cobriram-no com a manta do arcebispo.

- Quem assume o comando? - gritou o médico. - Seja quem for, a viagem está terminada. Onde encontraremos um teto conveniente para o nosso imperador?

A cidade mais próxima distava mais de duas horas de cavalgada, mas o médico sacudiu energicamente a cabeça:

- Nem se pense nisso. Que é aquilo lá em cima?

Lá em cima havia um pequeno castelo cujas ameias brancas sobressaíam do verde azulado de uma plantação de oliveiras. Ninguém o conhecia nem sabia a quem pertencia.

- Pertença a quem quer que seja, nós vamos para lá - disse o enérgico doutor. - Levantai a liteira.

- Sois muito imperioso, senhor charlatão, - observou o conde Pedro Rufo, cavalariço-mor do imperador. - Minhas instruções ...

- Vosso criado, senhor conde, em qualquer outro momento interrompeu João de Prócida. -Desde que recebestes vossas instruções aconteceu um pequeno fato. Pela saúde do imperador eu é que sou responsável. Por isso ser-vos-ei grato, e também o nosso soberano o será, se nos providenciardes um teto naquele castelo.

Era claro que tinha razão, por isso Rufo ordenou que uma dúzia de cavaleiros fosse à fortaleza e providenciasse tudo para a chegada do paciente. Esses saíram a galope e o resto do cortejo seguiu lentamente. Era impossível encontrar alojamento para mil e duzentas pessoas e seiscentos cavalos num castelo tão pequeno. Rufo procurou saber quando o imperador estaria em condições de prosseguir a viagem. O médico respondeu com um levantar de ombros. Quando se poderia falar ao imperador e pedir-lhe novas ordens? Outro levantar de ombros. Talvez à noite, talvez amanhã. Rufo comunicou aos outros nobres aquela resposta lacônica e decidiu levantar acampamento onde estavam, a espera de ordens do imperador.

. Três dos cavaleiros enviados voltaram com a notícia de que o conde Torrani, dono da cidadela, estava em Roma com toda a família, e que a criadagem estava preparando os aposentos para o excelso doente.

.Uma hora depois, estava o imperador na cama, revirando-se inquieto:

- Prócida ...

- Majestade!

- Diz-me: envenenaram-me?

- Não, senhor. A menos que tenhais comido algo em minha ausência, mas não o creio. Provei tudo que vos levaram para comer e beber.

- Que será então isso?

- Ainda não sei.

- Parece-me ter fogo no ventre e na cabeça.

- Tomai, majestade. Isso vos fará dormir.

Frederico engoliu com uma careta o sumo de papoula.

Não havia inchações nem zonas inflamadas. Mas Frederico fora de novo caçar nos pauis durante diversos dias, e os charcos eram perigosos: zonas de toda sorte de febres. O pulso, era rápido e irregular, de modo que João de Prócida resolveu ficar no quarto do imperador e não deixar entrar ninguém.

Após cerca de meia hora o imperador adormeceu. Sentado perto da cama, o médico observava o doente. O melhor e mais extraordinário cérebro do mundo estava-lhe confiado. Desde rapaz admirara o imperador ouvindo como as pessoas dirigiam bênçãos e maldições para suas incríveis gestas. Mesmo os piores inimigos tiveram de admitir a sua aguda inteligência, e desde criança o médico admirava, acima de tudo, a inteligência. Muito cedo percebera que o seu ídolo odiava e desprezava os padres e não acreditava nos dogmas religiosos que padre Filipe ensinava na escola. Tanto este como os outros sacerdotes torciam o nariz quando se falava do imperador. Mas às insistentes perguntas do rapaz só sabiam responder:

- Tu deves crer se queres ser um bom cristão.

- Tu deves... Por quê?

Se todas essas histórias eram verdadeiras, por que não lhas explicavam? E se não eram verdadeiras, por que precisava crer nelas? Na escola aquele cabecinha vermelha tornou-se um verdadeiro rebelde e foi apresentado aos companheiros como exemplo a ser evitado. enquanto, justamente por isso, o adoravam. Na universidade de Nápoles. e depois na de Toledo, João perdeu os últimos resíduos da fé. Para ele a religião era uma superstição. Razão e fé excluíam-se reciprocamente, aliás a inteligência de um homem era proporcional à exigüidade da sua fé.

Nomeado médico particular do imperador, ficou radiante e feliz. A sua admiração pelo espírito mais brilhante do século nunca se afrouxara e, mesmo visto de perto, o seu ídolo não o desiludiu. O espírito pronto, as observações irônicas sôbre os loucos de sobrepeliz e estola, a astúcia com que os tratava, deliciavam o médico, juntamente com o seu imenso saber.

O imperador dormiu até horas avançadas do dia seguinte e acordou com o corpo dolorido. A febre estava ainda alta, os olhos vítreos, a pele seca e ardente.

João mandou prevenir o príncipe de Tarento e os outros nobres que o imperador estava gravemente enfermo e que não melhoraria antes de algumas semanas.

O vômito repetiu-se, mas o coração resistiu. O médico trabalhava como um mouro. Era preciso fazer compressas e renová-las cada dez minutos: entregue essa tarefa a duas jovens a serviço do conde Torrani, João instalou-se no aposento contíguo, transformado num verdadeiro laboratório de alquimista. Também na noite seguinte conseguiu fazer o imperador dormir e, ao amanhecer, verificou que a febre havia diminuído um pouco. Então permitiu-se duas horas de sono. Mal, porém, havia deitado quando ouviu um grito improviso: levantou-se e acorreu. Sentado na cama, Frederico tinha os lábios exangues e os olhos fora das órbitas.

- Prócida, manda levar-me daqui!

- Acalmai-vos, majestade, rogo-vos! Que tendes?

- Embora ... vamos embora, já ...

- Não, senhor, ainda não. A febre está muito alta para que possais viajar. Mas por que quereis ir embora? Falta-vos alguma coisa? - Pobre coitado! Sim ... é verdade ... tu não sabes ... o destino é um trapaceiro... - E começou a rir com um riso desesperado que parecia não querer parar.

- Que acontece? - perguntou o médico em voz baixa. As duas jovens estavam tão espantadas que ele teve de repetir a pergunta mais de uma vez antes que uma delas respondesse com voz chorosa:

- Não sei, senhor, não sei. O imperador perguntou-nos o nome da cidadela, eu o disse e logo ele começou a gritar ...

A horrível risada de Frederico durava ainda e terminou num longo gemido.

- Morro ... vou morrer ...

- Não, majestade - protestou João. - Já vi outras vezes essa espécie de febre e tenho-a curado. Não morrereis. Absolutamente!

- Sub flore - murmurou Frederico. - Miguel Escoto tinha razão: devo morrer sub flore Sabes, Prócida, como se chama este castelo? Tu o sabes? Castelo Florentino. Ah! ah! ah! ... Castelo Florentino! Vítima de convulsões - comprimia o estômago com ambas as mãos. Por toda a vida evitei Florença ... Nunca fui lá, nunca ... nunca tolerei flores sôbre a minha cabeça ... e eis que me trazem ao Castelo Florentino!

- Ora, vós não acreditais nisso - exclamou o médico aterrado. - Não podeis acreditar ... Não é possível que ...

- Morro - disse Frederico. - Chama, manda vir todos. tornou a vomitar com grande sofrimento, pois nas últimas trinta e seis horas não tinha comido nada. Logo que melhorou, repetiu a ordem e Prócida teve de obedecer. Alguns minutos depois todos entraram, assustados e profundamente comovidos à vista do homem que pouco antes fora o símbolo da energia e da segurança de si próprio.

Frederico pôs-se a ditar uma série de atos de governo. Para estupor do médico, sua mente estava lúcida, seu pensamento lógico e preciso. Mas como podia dar fé a uma profecia tão idiota? Prócida sabia que o imperador fazia-se rodear de astrólogos e de ocultistas; mas também de bailarinas sarracenas e bobos de corte, já que amava todas as formas de vida, sem dar muita importância a nenhuma.

Estava gravemente enfermo e podia ser que morresse. Mas aquele pensamento ilógico e tão pouco científico de ter de morrer porque o nome daquele maldito castelo parecia confirmar a profecia do astrólogo, paralizava a sua vontade, isto é, o maior coeficiente da sua cura.

Ah! a superstição! Nem mesmo o espírito mais brilhante do século

estava livre dela. Ou seria realmente possível atirar um olhar ao futuro, seria possível que existisse uma espécie de memória antevidente em vez de retrospetiva? Em Toledo havia pessoas inteligentes que o admitiam e faziam experiências a respeito. Era mais fácil aceitar esta hipótese do que imaginar a mente do grande Frederico movendo-se na mesma esfera das mulherezinhas de ambos os sexos. Talvez isso dependesse da grande erudição do imperador, não da sua fé: mas ainda nesse caso a ciência seria prejudicial porque enfraquecia a resistência. Mas o saber podia ser prejudicial? Este era uma argumento explorado pelos mercadores de superstições, que falavam de uma árvore do conhecimento cujo fruto era mortífero. Eles sabiam discutir sôbre muitas coisas, e assim faziam-se admirar pelo povo, e o dominavam.

Diversos documentos foram ditados, escritos, assinados, selados, honrarias e títulos e cargos distribuídos.

Prócida não era muito entendido dessa coisas, mas compreendia que naquele pequeno aposento a Itália estava sendo dividida em esferas de influência sob os vários filhos do imperador. A Itália tornava-se propriedade privada dos Suevos. Outras cartas foram expedidas aos príncipes tudescos, rei de França, duque de Borgonha, Henrique III de Inglaterra, ao emir de Túnis. E assim prosseguiu-se por horas seguidas.

A voz de Frederico, fraca e rouca, às vezes reduzia-se a um sussurro: mas a mente estava límpida, e as mãos frescas como se a morte próxima tivesse expulso a febre.

Afinal durante a leitura de uma longa carta à Espanha, Frederico adormeceu. Alguns nobres começaram a chorar pensando tivesse morrido. O médico, porém, sacudiu a cabeça e instou-os a sair. Eles obedeceram em silêncio, mais moços assustados do que príncipes. Meia hora depois Frederico começou a murmurar palavras incoerentes, interrompidas por breves risadas e gemidos, já que a febre voltara violenta.

A certo momento sentou-se sozinho na cama e disse com voz clara e metálica:

- Eu vim para cumprir a lei.

Depois caiu deitado e recomeçou a murmurar.

Após quatro dias de luta ininterrupta, Prócida compreendeu que não havia mais esperanças. Os sintomas eram eloqüentes: pele úmida e pegajosa, rosto azulado, respiração difícil e coração a ponto de ceder.

Frederico, em plena consciência, olhou para o médico com um vislumbre de sorriso nos lábios:

- Diz-me a verdade, Prócida ... compreendes? a verdade ... Quantas ... quantas horas... ainda me restam?

O tempo da prudência tinha terminado, nem era possível, por outro lado, enganar àqueles olhos.

- Não muitas, senhor.

Frederico fez um aceno quase imperceptível e disse:

- Berardo ... chama-me Berardo.

De má vontade o médico mandou uma das mulheres chamar o velho prelado. Mas quando o arcebispo Berardo, acompanhado de dois acólitos que traziam uma mesinha com ampulhetas de óleo e de água e mais duas velas acesas, entrou trazendo um cálice coberto, Prócida levantou-se com um salto, protestando, embora com voz reprimida.

- Silêncio, Prócida, - impôs Frederico. - A tua tarefa ... terminou... 'agora começa a dele.

João de Prócida olhou para ele assombrado:

- Meu senhor, não querereis ... não querereis permitir que este ... não podeis acreditar nessas coisas, depois que por toda á vida ...

Os olhos muito abertos fixaram-no e o obrigaram a calar-se.

- Jovem, - disse Frederico - não é a tua vez de morrer.

O médico atirou-se de joelhos:

- Oh! meu grande imperador, sempre vos amei e venerei. Vós éreis o símbolo daquilo que há de mais alto no mundo, o símbolo e o ápice do espírito humano livre e sem grilhões. Vós tínheis descoberto os enganos dos supersticiosos, éreis o imperador do espírito, do espírito forte e corajoso. Não permiti que se diga que, estando na encruzilhada entre a vida e a morte, tenhais cedido à superstição. Não se diga que o maior realista de todos nós tenha tido necessidade de confortar-se com a ilusão!.. . - E soluçava.

- Pobre tolo! - disse Frederico carinhosamente. - Aquilo que o homem conhece de mais alto ... nós o chamamos Deus. Eu era, pois, o teu deus ... E agora este deus está morrendo. Coisa triste e dolorosa... a morte de Deus. Dizes bem... estou na encruzilhada. Es médico -acrescentou num sopro - no entanto não sabes ... o que seja morrer. Não é ... medo ... é o início ... do ver. Ver... sem ilusões. Feliz daquele... que o suporta... se é que haja quem o suporte. Vai, agora... meu bom bobinho...

Prócida fugiu chorando do quarto onde o seu deus tinha ruído.

Os olhos arregalados fixaram-se no arcebispo.

- Berardo, velho amigo... a tua fidelidade... custou-te a excomunhão. Dize-me ... podes ouvir uma confissão... e dar uma absolvição válida?

- Sim, quando há urgência e não haja outro sacerdote - respondeu o velho com voz trêmula. -Esta hora recompensa todas as minhas dores. Posso confessar-vos e dar-vos o viático. Os votos de um sacerdote sempre têm valor, por muito que ele possa ter pecado.

- Está bem, manda embora esses rapazes.

Os acólitos saíram em silêncio.

- Há quanto tempo estou aqui, Berardo?

- Há cinco dias, majestade.

- Cinco anos ... cinqüenta anos... - replicou Frederico. - Podes ou não acreditar ... vivi toda a minha vida. Tudo que fiz ... pensei ... disse . . . dá-me um pressentimento de eternidade. Por outro lado, só cometi um pecado: queria ser Deus.

- Não há outro pecado, meu filho. E o pecado de Adão. Tomar a lei na própria mão, ser a lei. Ser como Deus. E o pecado dos nossos ancestrais, o nosso pecado. Tu és Adão ... eu sou Adão.

- Quis ... ser Deus - murmurou Frederico. - Desde pequeno, quando era pobre ... e pedia a esmola de um pedaço de pão a Palermo ... já então... queria ser poderoso... onipotente. E quando ele me ajudou. o terrível velho ...

- Inocêncio III ...

- ... em troca odiei-o. Não queria... ser devedor a ninguém... senão a mim mesmo. Desde o início ... odiei-o e a tudo que ele representava. A ele e a seus sucessores ... eram uma coisa só. Como podia... ser imperador .... se eu mesmo não era o poder? Sempre ... sempre havia em Roma um velho ... que me apresentava a lei ... e não era a minha lei. Um de nós dois devia ceder. Mas ele era tenaz ... e quando morreu... veio outro igualmente tenaz ... Cinco dias atrás pensava ... ;ter ganho a batalha. Agora, porém ... olhe-me.... estou aqui, na minha -sujeira... como aquele que a gente via em mim, .como Herodes ...

O arcebispo levantou o rosto lavado de lágrimas: diante dele Tuna montanha de orgulho humano ruía.

- Não como Herodes - disse docemente - porque tu te arrependes.

Dois dias depois, rei Conrado chegou ao Castelo Florentino. Dentro de uma armadura de ouro, era um jovem esguio, de cabelos negros, olhos azuis e penetrantes, lábios finos e queixo bem acentuado, um homem vigoroso e sadio.

Passada meia hora, tinha revogado quase todos os decretos do príncipe Manfredo. A única coisa que aprovou foi a transladação do féretro imperial para Palermo, onde o aguardava um magnífico sarcófago de porfírio vermelho, escolhido pelo próprio Frederico. Em seguida começou a estudar os documentos que o pai tinha assinado nos últimos dias.

- Que é isto? - perguntou franzindo o cenho. - A Igreja deveria reaver todos os seus bens, desde que se declarasse disposta a dar a César o que é de César? E todos os prisioneiros deveriam ser libertados, exceto os traidores verdadeiramente culpados? Não devia estar em plena consciência, nosso glorioso pai, quando firmou estes papéis.

- Estava lúcido como nunca - confirmou o arcebispo Berardo.

O sorriso de rei Conrado era perigoso.

- Felizmente para o Estado cabe-me decidir se a Igreja deve dar a César o que é de César. E eu estabelecerei quais sejam os traidores verdadeiramente culpados. Quem combateu contra nosso pai deve morrer. E cuidaremos que os tesouros do Estado não se esvaziem logo no início do nosso reinado.

- O sol do mundo pôs-se - disse o príncipe Manfredo.

- Em nossos corações não há ocaso - rebateu o rei Conrado. Ordenaremos que nossos súditos orem ao grande espírito de nosso pai. Ele era divino, e o que é divino é imortal. Cala-te, arcebispo! Não pretendemos escutar tuas objeções dogmáticas. Um trono no céu para nosso pai ... e a morte na terra a todos aqueles que são culpados de traição! Estas são as nossas ordens.

Rei Conrado morreu um ano depois, em Púglia, do mesmo mal que abatera seu pai.