CAPÍTULO III

Todas as árvores estavam floridas e a própria terra parecia respirasse com volúpia. Do baluarte de Roca-sêca dominava-se um paraíso branco e rosado, flamejante de vermelho entre todos os matizes do verde. As camponesinhas, que levavam ânforas no ombro e subiam o estreito atalho cortado na rocha, pareciam estátuas gregas. Fazia calor, mas um calor agradável, e o vento misturava o fresco do ar marinho com o perfume de inúmeras flores. Os lagartos verdes passavam velozes sob as sebes e as borboletas ostentavam todas as cores do arco-íris.

- Dois anos - disse Piers.

- Dois anos, um mês e onze dias, senhor, - retificou Robin Cherrywoode - desde a nossa chegada a este danado castelo: há quase três anos deixamos a Inglaterra.

- De que te queixas tu? - perguntou Piers enrugando a testa.

- De nada, senhor. Já me acostumei àquela coisa que aqui chamam de comida, e se um dia voltar para casa parecerei quase um estrangeiro.

- Não, meu bom Robin, - disse Piers rindo. - Tu permanecerias inglês como as rochas da nossa costa ainda que ficasses aqui a vida toda.

- Deus nos guarde!

- Robin, és um ingrato. Deves reconhecer que nunca estiveste melhor do que aqui. Estamos a serviço de um grande nome, temos torneios cavalheirescos e boa sociedade, alegres cantores e trovadores espirituosos, não nos falta comida e bebida: que pretendes mais? - E suspirou profundamente.

- Sim, senhor, tudo belo e bom.

Seguiu-se uma pausa. "Não haverá belas raparigas na Inglaterra?" Pensava Robin. "Deve ser justamente essa pequena bruxa, que ele não cativará nem se esperar vinte anos? E por que não pensa logo na filha do imperador ou do sultão? Ei-la; quando se fala no diabo.. .”.

As três condessinhas chegavam do salão e puseram-se a jogar bola no pátio. Piers ainda não dera por isso. Estava de guarda no baluarte setentrional.

Dois anos, mais de dois anos desde o dia em que se havia ajoelhado diante da condessa e colocado o punho couraçado sôbre o azul estandarte dos de Aquino. Então jurara por uru ano, depois renovara por duas vezes o juramento. Durante esse tempo tinham acontecido muitas coisas . . . ou nenhuma. Quatro vezes Teodora fora pedida em casamento por pessoas que teriam honrado mesmo uma dama como ela, mas corriam vozes que ela tivesse dito à mãe que não queria casar-se jamais.

A notícia tinha causado a Piers alegria e dor ao mesmo tempo. Teodora tinha rejeitado até o jovem Tiépolo, filho do doge de Veneza. A condessa nunca tentara intervir: dizia-se que não fazia questão do matrimônio precoce da filha, tanto mais que era a menor das três. Mas para que pensar nisso? Que importava a ele se Teodora recusava ou aceitava uma proposta? Ele não poderia fazer a sua, nem mesmo se fizesse uma ação que o elevasse de grau. Por outro lado ela não lhe dava maior consideração: era simplesmente um dos tantos cavaleiros de Aquino. Quando conversava com ele era boa e gentil, mas não passava disso, nem ele poderia esperar mais. Ela tinha aceito benignamente o

pedido de considerá-la "sua dama" quando, um ano e meio antes, se disputara o grande torneio que ele vencera. Assim era-lhe concedido dedicar a ela "o seu coração e a glória da sua gesta". O mais humilde cavaleiro tinha direito de escolher para "sua dama" a mulher mais importante do lugar, como na Crisma alguém escolhe por patrono qualquer santo ou mesmo a Rainha de todos os santos.

E Teodora de Aquino estava próxima. benigna. bela, mas inatingível exatamente como os santos.

Mais de uma vez tinha ele pensado em voltar à Inglaterra. O conde de Cornualha já havia voltado há muito e Piers poderia ter ido

sem que ninguém pudesse dizer que o tinham mandado de volta ao seu país por causa de uma transgressão ou mesmo de um crime. No entanto, não conseguia decidir-se. Desde o início sabia que iria sofrer: olhar Teodora era um delicioso martírio. mas não a ver era coisa impossível.

- Um cavaleiro com o cortejo! - anunciou Robin.

Piers abaixou os olhos e ordenou:

- Toca a trompa!

O homem que estava de guarda na pequena torre obedeceu, enquanto os milicianos subiam para o baluarte fazendo retinir as armas.

As três mocinhas interromperam o jogo, e Adelásia perguntou:

- Que há, cavaleiro?

- Uma visita, nobre dama, mas ainda não vejo o distintivo.

As três jovens subiram correndo, num frufru de sedas: era uma cena que compensava qualquer esforço. "Como se Deus tivesse tentado criar a beleza perfeita" pensou Piers, "e pela terceira vez o conseguiu"

- Onde está? Onde está? - perguntaram as três irmãs rindo e procurando adivinhar, até que Marta gritou: - E Rinaldo. Mãe Santa! é Rinaldo!

Do fundo do vale, o cavaleiro fazia grandes acenos.

- Precisamos avisar Landolfo ... - E mamãe ...

Desceram correndo.

Até Piers estava feliz, embora a sua clama. tão perto dele, não lhe tivesse dirigido uni olhar. Melhor Rinaldo do que um dos inevitáveis adoradores de Teodora. Além disso, Rinaldo lhe era simpático. Quando ele estava ali, todos no castelo tornavam-se mais desenvoltos: depois trazia notícias do que acontecia no mundo. Só quando bebia demais é que Rinaldo tornava-se irascível, mas isso acontecia raramente. Era um companheiro melhor que Landolfo, que se arvorava em patrão de Aquino quando sua mãe estava ausente, mas saracoteava-lhe em torno logo que aparecia. Nada é mais insuportável do que a consideração dos homens rudes.

O único que nada percebia era o jovem Tomás. Landolfo não deixava escapar ocasião para caçoar dos padres e frades e conventos em geral, e de modo particular do irmão monge. Tomás nunca rebatia. Ficava quieto e silencioso,' e até às vezes parecia adormecido. Seria mesmo indolente? Ou ainda estaria sofrendo pela perda de Montecassino? Em todo caso, a condessa tinha acertado ao enviá-lo para Nápoles, onde estudava tudo que se ensinava na universidade de lá. Dessa forma convivia com jovens de sua idade e conhecer um pouco o mundo fazia-lhe bem.

Da velha Madalena, que fora ama do jovem, Robin ouviu uma história estranha. A condessa tivera sete filhos, e um dia Tomás brincava no aposento onde Madalena estava com Maria, recém-nascida, no colo. Desabava um temporal e, de repente, um raio atravessou a sala. Quando Madalena voltou a si não podia mover o braço esquerdo, que estava paralisado. Tinha ainda ao colo a pequena Maria ... morta, porém, alcançada pelo raio, enquanto Tomás escapara ileso. Passaram anos antes que Madalena recobrasse o uso do braço. Teria aquele fato influído no caráter do jovem? Na vila de Foregay havia uma meninota que perdera a fala por ter visto o pai bêbado bater na mãe. Talvez em conseqüência daquele fato Tomás se tornara tão diverso dos irmãos. Um conhecimento tão precoce da morte poderia ter influenciado na sua inclinação religiosa, favorecendo-a, e talvez por isso fosse ele tão tímido, lacônico e desajeitado entre tanta gente alegre e ruidosa. A universidade era certamente um lugar apropriado para ele.

Acabava, pois, de chegar Rinaldo com o cortejo, rodeado pelas três mocinhas, por Landolfo e até mesmo pela condessa.

Meia hora depois estavam todos reunidos no salão, bebendo, inclusive Piers e meia dúzia de outros cavaleiros com suas damas. Quisera-o Rinaldo.

- Mamãe, todos desejam saber o que acontece no mundo. - Ele não podia passar sem o auditório. - Empresta-me a inspiração, Homero, - começou - para que Ulisses, o vagabundo, possa relatar o que viu e sofreu. Mas vejo que falta alguém ... o nosso fradezinho. No entanto da outra vez aqui estava... Não é? Está na universidade? Ela o arrumará bem. Quando tiver terminado de freqüentá-la não será mais nem frade nem cavaleiro. Os juristas ensinar-lhe-ão como se absolvem os grandes ladrões e se enforcam os ladrõezinhos; os médicos proporcionar-lhe-ão aquela ciência cujo resultado final é sempre a morte. e seus mestres de retórica perecerão de esgotamento geral. Imaginai Tomás orador! Durante a minha última visita disse vinte e três palavras em dois dias e meio: contei-as. Se ...

- Deixa em paz Tomás - interrompeu a condessa impaciente Não é assunto importante. É melhor dar logo as novidades.

O jovem poeta olhou em volta e disse:

- E contrário às regras da arte dramática, porém revelarei logo o grande segredo: habemus papam.

Pelo menos meia dúzia de vozes exclamaram uníssonas:

- Finalmente! Deus seja louvado! Nossa Senhora! ... - enquanto a condessa perguntava: - Quem é?

- O cardeal Sinibaldo Fiesque.

- Ótima família - comentou a condessa. - E, pelo que sei, combina com o imperador.

Rinaldo riu:

- Mamãe, eu não o asseguraria. Sabes o que disse o imperador quando chegou a notícia? Eu estava presente: "No cardeal perdi um amigo, no papa adquiri um inimigo". Demais, Fiesque escolheu o nome de Inocêncio IV. Não parece bom presságio: o imperador foi excomungado por Inocêncio III.

A condessa apertou os lábios e depois disse:

- Frederico gosta muito de brincar como tu, Rinaldo. De minha parte creio que tudo irá bem, pois Sinibaldo Fiesque sempre foi muito razoável. De resto já era hora: o trono papal esteve vacante por muito tempo. Quando se pensa nos abusos desse período! Em toda parte fervilham os frades mendicantes, e todos pregam como se o dia do juízo estivesse iminente. Quando me dá vontade de ouvir um sermão, vou à missa. E odioso ouvir berrar em todas as praças esses frades vulgares e malcheirosos. Esperemos que o papa dê um jeito.

- Pior do que no reinado de Gregório não será certamente observou Rinaldo. - Creio que o imperador nunca tenha odiado alguém quanto aquele papa. Lembras quando queríamos atacar Roma? Ou melhor, quando queríamos ocupá-la, porque não teria sido preciso chegar ao ataque: o imperador distribuíra tais somas que quase todos os cidadãos estavam corruptos. Sabíamos pelos nossos agentes que milhares de pessoas ostentavam publicamente pelas ruas e em todos os lugares o emblema imperial. Que faz o velho Gregório? Organiza uma procissão através da Urbe com as relíquias dos santos Pedro e Paulo, e na praça declara que a elas confiava a defesa de Roma, visto que os cidadãos tinham abandonado a causa santa. Deve ter sido um espetáculo maravilhoso, digno de um grande poeta. Os emblemas imperiais desapareceram como por encanto, os cidadãos ocuparam os bastiões; nós tivemos notícia da mudança ... e não atacamos. Da segunda vez, o imperador preparou-se mais acuradamente, desenvolvendo a propaganda contra a pessoa do papa que surgia como responsável de tudo: início das hostilidades, guerra, miséria na Itália. Tudo prometia bem, a preparação fora ótima. E que fez o velho Gregório? Põe-se na cama e morre. Eis-nos, então, com toda a nossa propaganda ... sem alvo. Não tínhamos mais nenhum pretexto para assenhorear-nos de Roma. O imperador estava fulo. "Vivo nos enganara, agora nos engana morrendo" gritava. Eis, pois - acrescentou rindo Rinaldo - outra peripécia do drama. Tivesse eu tempo rara escrevê-la! O velho papa que sozinho defende

Roma contra o imperador ... como Leão I contra Atila.

- Rinaldo! - exclamou a condessa seriamente indignada. - Proíbo-te de comparar, nesta casa, o imperador com Atila.

- Desculpe, mamãe, - e Rinaldo inclinou-se. - Bem sabes que os poetas tem o cérebro em tumulto. Porém, creio que o imperador gostaria dessa comparação. Para vantagem do drama ...

Neste ponto todos riram. Rinaldo era impossível.

- Trazei-me o alaúde: prefiro cantar minhas últimas poesias a contar as noticias da corte. Certamente a minha música é melhor ... Obrigado Marta. - E começou a tocar e cantar com a sua bela voz de tenor.

- Deixemos estas bobagens - interveio a condessa. - Para elas tens toda a noite. Agora quero saber as novidades.

Rinaldo tocou um último acorde suspirando, e balançou a cabeça:

- Tu não sabes, mamãe, onde esteja o bem. Pois seja, és tu que o queres. O jovem Tiépolo morreu.

- Pedro Tiépolo? - perguntou a condessa espantada. - Há dois meses estava tão bem! Era tão jovem e forte ...

- É! - disse Rinaldo lançando um olhar para Teodora; ela tinha, sim, recusado aquele jovem, mas com as moças nunca se sabe'... Porém Teodora não parecia mais agitada que as irmãs, de modo que Rinaldo passou um dedo pelas cordas do alaúde, e acrescentou friamente: O imperador mandou enforcá-lo.

- Enforcar? O filho de um doge? Um Tiépolo?. - Depois, esforçando-se por parecer calma, perguntou com voz quase indiferente: Por quê?

- Dizem que Della Vigna interceptou algumas cartas. O doge estava em negociações com o papa, com Gregório, e foi uma espécie de represália.

- É! Della Vigna ... podia imaginar-se. É o espírito maléfico do imperador.

- Não foi Della Vigna a ordenar o enforcamento de Tiépolo disse Rinaldo encolhendo os ombros.

"Poderia ter sido o marido de Teodora",. pensava a condessa, que fora muito favorável ao pequeno Tiépolo e defendera-lhe a causa, enquanto que a moça não quis saber dele. Pobre Pedro!

- Ainda bem, menina, que não casaste com ele. - As palavras eram de Landolfo, que, naturalmente, não teve resposta.

- Meu caro Landolfo, - disse Rinaldo com um sorriso irônico tenho para ti uma boa notícia: amanhã pela manhã nós .dois devemos partir. Como vês, mamãe, não me sobra muito tempo para as novas composições. Aliás, não sei por que, nunca me sobra muito tempo. O imperador precisa de nós. Deve estar preparando alguma coisa da qual não tenho idéia. Penso que tenhamos de ir a Gênova.

A condessa tinha ficado um instante com a respiração suspensa, mas depois sorriu do próprio susto. O imperador era duro, terrivelmente duro com os inimigos, mas os de Aquino tinham-lhe sido fiéis durante todo o seu governo: portanto não havia perigo.

- Quantos homens levamos conosco? - perguntou Landolfo, a quem a viagem agradava, já que em Roca-sêca se aborrecia a valer.

- Cinqüenta cada um. Não tenho ordens expressas.

- Então - disse Landolfo - levo comigo De Braceio e tu, sir Piers.

- Deixa em casa o nosso amigo inglês - aconselhou Rinaldo. O episódio de Santa Justina, talvez ele ainda não o tenha esquecido.

- Que episódio? - perguntou a condessa.

- Ainda não contei? - perguntou Rinaldo rindo. - Foi no dia em que o conheci. A princesa Silvana não lhe tirava os olhos de cima, e chegou a declarar que desejava -incluí-lo na sua guarda pessoal. Ezelino tornou-se verde, e o imperador, que precisa de Ezelino não gostou. Por São Maomé! passaram-se mais de dois anos e tacto já deveria estar esquecido, porém, quem o pode garantir? ... o imperador tem uma memória extraordinária.

- Não houve episódio algum - asseverou Piers com firmeza.

Rinaldo sorriu:

- Caro amigo, sei que não tiveste culpa. Que podemos fazer se a princesa Silvam nos come com os olhos? Poderia ter acontecido comigo, mas felizmente não foi assim. Nunca o disseste, mas aposto que te agregaste à expedição de Montecassino justamente por isso. O conde de Cornualha não é apenas um grande senhor, mas também um homem que sabe ficar de olhos abertos. Foi, portanto, uma ótima ocasião para evitar todo perigo; e depois, eu tive o prazer de encontrar-te. Brindemos, pois!

- Não houve episódio algum - repetiu Piers.

- Em todo caso, será melhor que fiques - concluiu Landolfo.

Rinaldo voltou a tocar o alaúde e a cantar os doces lábios ela dama. Depois interrompeu:

- Que tens, Teodora?

- Oh! nada.

- É! nada, e no entanto parece que de um momento para outro vais explodir como o Vesúvio. Escuta a minha canção. Já é cantada por todo o mundo, em Parma, Sena, Florença. Não creio que seja a melhor das minhas canções, mas está muito difundida.

Teodora levantou-se de repente e saiu.

- Que fiz eu? - perguntou Rinaldo surpreso.

- Ao que parece, tua canção pouco lhe importa - respondeu Landolfo.

- Tolos ambos! - exclamou a condessa. Prefiro talar-vos a sós.

- Depois cantarás para mim a tua canção - disse Marta gentilmente, enquanto Adelásia, rindo, a conduzia para fora.

- Ninguém é profeta nem poeta em sua própria casa - sentenciou Rinaldo ofendido. - Ainda não percebi o que fiz.

A condessa esperou que todos os cavaleiros e clamas saíssem. Pieis estava palidíssimo, e saiu com passo firme.

Logo que a porta se fechou, a condessa disse:

- Outra vez, se vierem notícias importantes, quero ouvi-Ias antes eu. Nestes tempos não nos podemos fiar nem nos familiares.

- Está bem, mamãe, - confirmou Rinaldo. - Mas, e daí? que tem a ver isso com Teodora?

- Nossa Senhora! - explodiu a condessa. - Que te importam os caprichos de uma menina? Sir Piers escolheu-a como sua dama, e ela julgou bom manifestar a sua desaprovação pelo episódio da princesa Silvana. Eis tudo.

Rinaldo explodiu numa gargalhada:

- Como sou idiota! Mas não deixa de ser um belo homem, e quem sabe se ela não está tomando a coisa a sério.

Sua mãe levantou-se lançando faíscas pelos olhos:

- Parece que a vida no meio da corrupção da corte tenha influído em ti. Espero que haja uma diferença entre os costumes de lá e os de Aquino. Aqui não estamos dispostos a esquecer nós mesmos. Se a princesa Silvana quer pôr os olhos em cima de um simples cavaleiro sem nome e sem grau, é assunto dela. Teodora é uma menina caprichosa, mas nunca esquecerá o que deve ao seu nome ... Nem tampouco sir Piers, espero. Ele tem direito de escolhe-la sua dama, e ela aceitou-o como seu cavaleiro. Eis tudo. Não quero que haja outros mexericos.

Pôs-se a passear para cima e para baixo na sala, agitada, enquanto os irmãos trocavam um olhar embaraçado.

- Ambos não tendes juízo - voltou a falar a condessa. - Tenho realmente muita sorte com meus filhos: um soldado simplório, um poetastro mulherengo e um monge mudo. Mas daqui há alguns anos Tomás tornar-se-á abade de Montecassino, eu cuidarei disso. Vós, porém ... não posso tratar com os Della Vigna nem com os Ezelinos: tendes que fazer sozinhos vossa carreira. O imperador está rodeado de servos e de escorpiões, e estão-se vendo coisas de dar vergonha em ser-lhe fiel.

- Mamãe, és maravilhosa - exclamou Rinaldo com entusiasmo - Por todas as huris e todos os santos, és a mais bela de todas as damas da corte.

Ela parou.

- Tens a cabeça cheia de fumaça - repreendeu, mas sem deixar de sorrir: o cumprimento do filho era justo e ela o sabia. - Sou uma velha rabugenta, mas vós não conheceis o imperador como eu o conheço. Afinal das contas é meu primo, e o vi fazer carreira desde os tempos de Palermo, quando ainda precisava mendigar, dos estranhos o pão para o almoço. Ninguém ligava para os suevos, a sua herança estava perdida . . . até que Inocêncio III começou a protege-lo. Participou da sua ascensão até a coroação em Jerusalém. Eu mesma ouvi o papa Gregório chamá-lo de "amado aluno da Igreja". Ele era o mais belo, mais elegante, mais sábio homem do seu tempo. Era amigo devotado de Isabel de Hungria, mulher santa como outra nunca houve. A sua vontade tendia para construir, não para destruir. No seu governo, o reino de Sicília prosperou. Nenhum outro teria sabido unir os soberanos alemães, e ainda hoje é ele o coração pulsante da Europa e do mundo. E o que foram César, Augusto e Justiniano: o soberano do mundo. E é o que nenhum outro foi: o chefe da nobreza contemporânea. Tem, por tanto, direito à nossa fidelidade, e o nobre que se rebela contra ele atira lama no próprio escudo. E nisso que devemos pensar quando nos chegam notícias dos seus atos espantosos: são atos que não nascem do seu espírito, não o posso crer, mas vêm dos Della Vigna, dos Ezelinos e dos outros recém-chegados. E triste, muito triste, que esteja sempre em luta com o santo padre. Esperemos que agora com o papa Fiesque melhore a situação. O nosso lugar, porém, é ao lado do nosso primo imperial. Não, temos outra escolha: um de Aquino não pode escolher diversamente. Dito isso, sentou-se, esgotada.

- Um pouco de vinho, Landolfo. Obrigada. Estas eram as novidades, novidades de uma velha grisalha como os próprios cabelos. Onde está o teu alaúde, Rinaldo?

- Não, mamãe, - suspirou Rinaldo. - Depois da tua epopéia heróica, a minha pobre lírica soaria mal. Tu és de fibra mais dura que a nossa. Eu não vejo as coisas como tu, mas como o homem que lê um livro ou ouve uma canção. Se o protagonista comete um crime, não é culpa do leitor, nem este pode impedi-lo, mas continua lendo tranqüilamente. Porém, eu nunca pensei em trair o imperador: não te aflijas, não me enforcarão como o pobre Pedro Tiépolo, nem enforcarão Landolfo ...

- Cala-te, Rinaldo.

E, com grande surpresa dos filhos, a condessa explodiu em lágrimas.

- Que será que tem sir Piers? - perguntou Adelásia, cheia de curiosidade. - Não disse uma palavra em todo o dia.

Teodora sorriu:

- Não conversei com ele.

- Por que não? Que te fez ele?

- Ele? nada. Se quer olhar para Silvana, pode fazê-lo.

- Mas não o fez de modo algum. Foi ela que ...

- Quem tenha sido o primeiro não importa. Para mim é indiferente. Mas se apresenta sempre... tão cortês e tão ... tão inglês ... Aborrece-me.

- E um belo homem, porém - observou Adelásia.

- Achas? - disse Teodora, bocejando como uma gatinha.

Na mesma noite Piers decidiu voltar para a Inglaterra tão logo terminasse o ano.

A universidade imperial de Nápoles era um símbolo da época em mais de um sentido: uma espécie de microcosmo europeu. O jovem estudante podia lá aprender medicina com mestres que tinham sido o orgulho de Toledo e de Salamanca; podia aprender as mil chicanas e parágrafos da jurisprudência, embora os mestres custassem a manter-se a par com o sem-número de novas leis que o imperador promulgava a todo instante. Podia dominar a arte da retórica com Gualtério de Ascoli, que preparava uma enciclopédia etimológica, enquanto Gofredo de Benevento ensinava direito civil, Bartolomeu Pignateli direito canônico, mestre Temísio de Atina dava lições de arte, e Pedro de Irlanda lições de ciências naturais. Em Nápoles, enfim, ensinava-se de tudo.

Era a resposta do imperador a Roma, que se atinha apenas à teologia, e a Bolonha, que tinha fama de exercer o "livre pensamento".

Em Nápoles podia estudar quem quisesse, fosse ou não crente. E como não se fazia a mínima questão da síntese, os estudantes acabavam tendo na cabeça meia dúzia de opiniões bastante diversas e contrastantes, que dançavam alegremente.

- Não faz mal - dizia Frederico a Della Vigna, que falava a respeito. - Quem tem na cabeça muitas coisas não se agarra fácilmente a uma única opinião.

E Della Vigna sorria com admiração. Até então todas as universidades tinham sido fundadas pela Igreja, e todos os corpos docentes eram constituídos de sacerdotes. O imperador dava prova de suma sabedoria competindo com a Igreja, competição necessária se quisesse criar um tipo de homens verdadeiramente úteis ao império. Para que ensinar direito canônico? Que fazer com mestres como Pignateli ou Pedro de Irlanda? Por que não fundar uma cidadela de livres pensadores, talvez com menos compromissos que a própria Bolonha?

Frederico ostentava um sorriso enigmático, e Della Vigna se ilumi

- Como sou ingênuo, meu grande imperador! Como todos somos ingênuos diante de vós! Claro, para que Nápoles se torne o centro das melhores forças intelectuais, devereis eliminar todos os espantalhos. Compreendo, vós não quereis convencer os convencidos. Sangue fresco, cérebros incorruptos! E ninguém deve poder dizer a um pai religioso ou a uma mãe beata que Nápoles seria ímpia.

- Esta é uma parte do meu pensamento - replicou o imperador. - Por outro lado é preciso não precipitar. Pensas que não gostaria de pedir aos meus amigos da Síria, de Túnis e do Egito, algumas de suas melhores cabeças para que aqui ensinassem a sabedoria oriental?

verdade que lá também há fanáticos, beatos e pessoas de horizonte limitado que provavelmente se poriam a fazer tábua rasa daquela fantástica confusão que aqui chamamos de teologia. Em primeiro lugar fariam compreender que o cristianismo é uma religião politeísta. Por enquanto é preciso adiar esse divertimento, mas esperemos que não seja por muito tempo. Nápoles é o primeiro passo. Um pouco de confusão não faz mal, até é bom que haja. Ninguém é. obrigado a se empenhar, e, até nova ordem, a Trindade pode dormir tranqüila.

E Nápoles atingiu o apogeu. Ninguém era rejeitado, como nas outras universidades, por causa da nacionalidade, da raça ou do nascimento. Filhos de famílias ricas e célebres conviviam com jovens macilentos, donos apenas da sua avidez de saber. Depois de cada aula os estudantes discutiam e deviam analisar o que tinham ouvido acrescentando os seus comentários.

Pignateli tinha exposto o pensamento de Santo Agostinho. a vasta sala estava cheia de vozes juvenis. Pignateli sabia apresentar magistralmente de forma nova as coisas velhas, e agora os alunos trocavam opiniões até que o docente chamava um deles para comentar suas palavras.

- Tudo isso nada tinha a ver com o direito canônico.

- Claro que não, mas freqüentemente o direito canônico se baseia no pensamento do velho Agostinho. Os padres da Igreja...

- Podes dizer o que queres, mas esta é a maneira astuta com que Pignateli procura impingir a teologia.

- Espero que não chame a mim, porque realmente não saberia o que dizer.

- Não estás sozinho nessa situação. Olha um pouco aquele ali.

- Quem? Ah! sim, aquele? Nunca vi um tipo assim. Venho-o observando há meses. Nunca abre a boca e fica sempre de olhos arregalados. E um de Aquino, não?

- Sim, o filho menor, do qual com certeza não se podia fazer um bom soldado. Imagina só a cavalo, de armadura completa, lançado contra os infiéis. Arma virumque cano.

- Deve ser também um pouco fraco de inteligência, e moroso: leva meia hora para sentar-se e outro tanto para levantar-se.

- Por que o terão enviado para cá? E um oblato beneditino e usa o hábito de São Bento. Por que não o deixaram no seu convento?

- Como, não sabes? Estava em Montecassino, que agora estão reconstruindo. Poderá voltar para lá e ser santo.

- Sancta simplicitas! Não é ele um de Aquino? Não precisa tornar-se santo. Antes que tu e eu recolhamos o primeiro níquel no tribunal, podes estar certo que aquele ali será o reverendíssimo abade. Olha ... agora escreve. Nunca o vira escrever, duvidava até que soubesse fazê-lo. Agora Ptolomeu sentou-se junto dele.

- E verdade. Está-lhe explicando alguma coisa. Pobrezinho! Antes que consiga fazer-lhe entrar algo na cachola! ... demais ...

- Bom Ptolomeu? Só quer fazer alarde da sua sabedoria, nada mais.

- Não é tão difícil como parece - dizia Ptolomeu de Andréa. Vi que tomavas apontamentos e conclui que gostarias de compreender. Logo te explico.

Tomás abriu a boca, mas o jovem Ptolomeu já se embebia na explicação:

- Assim, trata-se do seguinte: o bom velho Agostinho considerava a filosofia platônica, na nova interpretação plotiniana, como tipo perfeito de pensamento racional. Procurou dar uma interpretação nova, ou melhor explicar a revelação cristã com o pensamento platônico. Compreendes? Basta que faças um gesto, pois sei que não és loquaz. Portanto, o princípio mais importante era este: o melhor caminho para perscrutar a verdade não parte da razão nem conduz à fé através da certeza intelectual dá-se exatamente o contrário: começa-se pela fé, passa-se à revelação e desta à razão. Ou seja, como disse o próprio Agostinho: a compreensão ... sim ... a compreensão é ...

- A compreensão é o prêmio da fé - concluiu Tomás gentilmente. - Não procura, então, compreender para crer, mas crê para compreender. Muito bem. Eu, porém, gosto especialmente da demonstração:

Quando se é bom

"Se crer e compreender não fossem duas coisas diversas, e se não devêssemos primeiro crer aquela coisa grande e divina que queremos compreender, seria inútil a frase do profeta: Se não crerdes, não compreendereis".

- Meu Deus! - deixou escapar Ptolomeu de Andréa estupefato.

Tomás não ouvira, e enrubescendo levemente continuou a citar com lentidão e com aquele tom com que se recita uma poesia particularmente cara:

- "Também Nosso Senhor convidou aqueles que queria salvar com a palavra e com a ação a começar por crer. Depois, quando falou do prêmio que daria aos que cressem, não disse: esta é a vida eterna a fim de que creiais, porém: esta é a vida eterna... para que conheçam a ti, único e verdadeiro Deus, e a Jesus Cristo que tu enviaste".

- Deus do Céu! - exclamou Ptolomeu assombrado.

Mas Tomás parecia ter esquecido tudo que o rodeava, pois as estupendas frases do antigo mestre brotavam:

- "Além disso, disse aos que já criam: procurai e achareis. De fato, o que se considera desconhecido não se pode achar ... e ninguém é capaz de achar a Deus se antes não crê que acabará por achá-lo. Aquilo que a seu convite procuramos, achá-lo-emos enquanto ele no-lo indica, sempre que, assim como somos, nos seja possível achá-lo nesta vida. E certamente devemos crer que, depois desta vida, o veremos com maior clareza e perfeição". Isso se chama afastar-se do âmbito platônico, - acrescentou Tomás, feliz - da mesma forma que a palavra de São João se afasta do logos de Platão. - Só nesse momento dirigiu-se a Ptolomeu, que o olhava como se tratasse de um espetro. Nos grandes olhos escuros apagou-se a chama.

- Peço-te perdão - disse Tomás docemente. - Temo ter-te interrompido.

Ptolomeu olhou-o fixamente: não, no companheiro não havia sombra de ironia. Disse, portanto: - Ora, por favor! - mas olhando de um lado e de outro para ver se alguém tinha ouvido. Confortou-se verificando que ninguém ria.

De repente, uma alegre agitação tomou conta da sala.

Que havia acontecido? Tomás nada tinha notado, e só quando Pignateli repetiu o seu nome compreendeu que tinha sido chamado para analisar e comentar a lição.

Levantou-se obediente, enquanto alguém ria sem que ele desse por isso.

- Oh! Ptolomeu, - murmurou alguém - fizeste com que compreendesse?

Ptolomeu riu, mas com um riso amarelo, e citou São Paulo ao contrário:

- Dando a crer que sou tolo, torno-me sábio.

- Que disse? Que disse?

- Não compreendi bem. Mas parece tenha dito que Tomás é um tolo.

- Que mais poderia ser? Porém verás que se torna abade.

- Psiu! ... Deixa-me ouvir esta comédia.

Todos queriam ouvir, mas a primeira surpresa foi o tom límpido, metálico e quente da voz que parecia não combinar com a figura arredondada e deselegante do orador. Depois de poucas frases, todos se calaram: na sala poder-se-ia ouvir uma mosca voar.

Em menos de um quarto de hora Tomás fez um resumo da lição de Pignateli, que havia durado um hora, de modo tão claro e perfeito que o professor perguntou a si mesmo como tinha empregado ele tanto tempo. De Platão a Plotino, deste a Agostinho e depois e Anselmo de Cantuária, o qual havia reduzido o princípio agostiniano à simples fórmula credo ut intelligam. E de Anselmo e sua demonstração ontológica até os contemporâneos com a cisão entre fé e razão, equivalentes às paralelas da matemática. Um filósofo cristão que quisesse evitar a ruptura com a teologia, devia recorrer, exclusivamente, à constatação que os silogismos - filosóficos - da mesma eram realmente necessários, mas não necessariamente verdadeiros. E claro, desta forma o conceito de verdade torna-se insensato. Era, pois, preciso esperar que um dia a razão e a revelação se desprendessem da sua unilateralidade e que a síntese desses dois grandes dons de Deus fosse encontrada noutra ordem das coisas.

Cabia, porém, a Santo Agostinho a glória imortal de ter pela primeira vez introduzido Platão na teologia ortodoxa. Os filósofos eram os seres mais perfeitos da antigüidade. E esse fato contribuíra para a esperança de que a cisão entre fé e razão não duraria. Com Cristo, de fato, surgira um mundo mais elevado, e o que é mais alto encerra sempre em si a perfeição do que é mais baixo.

Tomás inclinou-se respeitosamente e tornou a assentar-se, enquanto o rosto sutil de Pignateli estava tenso e comovido:

- Assim não se apresenta um discípulo - disse com convicção. Assim fala um mestre.

Tomás levantou-se, embaraçado.

- Sinto muito, senhor, - disse humilhado - mas não conheço outra maneira de tratar o problema.

Pignateli lançou-lhe um olhar penetrante, depois sorriu. Uma única vez, ele que nunca elogiava, tinha feito um elogio ... e este havia sido tomado como uma repreensão. Continuando a sorrir e a menear a cabeça saiu da classe.

Não lhe era desconhecido o tipo dos que estavam ali calados, absorvendo tudo como esponjas. Mas não bastava. Quantos anos teria aquele jovem? Dezessete? No máximo dezoito. Era de pasmar. Naturalmente, a possível síntese entre fé e razão era um contra-senso. Tenta, e antes que dês pela coisa cais na heresia. Averróis havia tentado, e até muçulmanos o consideraram herético. Maimônides também tentara, mas se havia atolado. A solução era impossível. Entretanto era divertido ouvir aquele gordo querubim que tendia para uma solução em tom sério e categórico. O melhor que a antigüidade tinha produzido eram os filósofos: de acordo. Agora vivemos num mundo superior, no mundo cristão. Logo, o nosso mundo deveria incluir a filosofia, isto é a coisa mais perfeita do mundo inferior. "O que é mais alto encerra sempre em si a perfeição do que é mais baixo". De quem o teria ouvido aquele jovem?

Nisso Pignateli encontrou magister Pedro, Pedro de Hibérnia.

"Mestre Pedro! Eis o homem de que preciso". e apresentou-lhe aquela tese para ouvir a sua opinião. Seria justa do ponto de vista da ciência natural? Pedro refletiu.

- Algo de certo há. As plantas estão acima dos minerais e contêm minerais. Os animais estão acima destes e daquelas e contêm partes de ambos. O homem? Nossos ossos são minerais, os cabelos são vegetais, e é supérfluo dizer o quanto temos dos animais. Vejamos a matemática: o cubo é uma coisa tridimensional e contém em si as retas da primeira dimensão e os quadrados da segunda. Porém, não saberia se isso é justo também em metafísica. Vejamos: os anjos estão acima dos homens: mas encerra a natureza deles a perfeição da natureza humana?

- Puro intelecto e pura vontade ...

- Não sei se é possível dizer isso de nós.

- E a perfeição do que há de melhor no homem. Creio que o jovem tem razão.

- Que jovem?

Pignateli contou e magister Pedro arregalou os olhos.

- Aquele bonecão? o de Aquino? Não é possível.

- Por que bonecão?

- Fica ali quieto, com os olhos fixos, nunca pergunta nada, não toma nunca apontamentos.

- Eu também caí nessa. Mas experimenta e faze-o falar: verás o que acontece.

Enquanto isso o bonecão tinha deixado a aula e a universidade, e, aprofundado em seus pensamentos, não muito diversos dos de magister Pedro, não notou os muitos olhares que o acompanhavam, primeiro nos corredores, e depois na praça. Como sempre, entrou na igreja dos dominicanos, contígua ao convento da mesma Ordem, para rezar. Terminava sempre com uma breve invocação que, escrita em Montecassino e tornada parte integrante das suas orações cotidianas, assim ficou até o fim de sua vida. "Deus misericordioso, concede, imploro-te, que eu deseje ardentemente, estude sabiamente, compreenda retamente e execute de modo perfeito o que te agrada, para honra e glória do teu nome!"

Quando se levantou, viu junto de si frei João que sorria. Fez-lhe uma reverência e, tendo saído da igreja, acompanhou-o à sua cela, que era relativamente espaçosa e continha uma pesada secretária, duas fortes cadeiras, uma enxerga, e, como único ornamento, um crucifixo na parede em frente da secretária. Sentaram-se e ficaram alguns segundos em silêncio, como se fossem estranhos ou amigos íntimos. Eram ambas as coisas. De repente frei João sorriu:

- Lembra-me a primeira vez que nos encontramos ...

Tomás também sorriu. Ia em lombo de mula de Roca-sêca a Nápoles, seguido por três cavaleiros (fora sua mãe que impusera a escolta), quando viu um monge com o hábito dos dominicanos, rodeado por um grupo de moleques que lhe dançavam em volta, gritando a plenos pulmões: "Olhem a pega! A pega! Agarrem a pega!" O monge prosseguiu em seu caminho, os moleques começaram a atirar-lhe barro da estrada, de modo que Tomás, irado, esporeou a mula. O animal, não acostumado àquele tratamento, foi apanhado de surpresa e deu um salto, espantando os moleques, que fugiram correndo, e Tomás, perdendo os estribos e as rédeas teve de se agarrar ao pescoço do animal para não cair. Dessa incômoda situação livrou-o o monge que ele próprio quisera livrar, e ambos acharam graça. O monge observou:

- Não é bom sinal, para um país cristão, que as crianças não tolerem padres e mendicantes. Mas quando é assim, é lógico que não podem tolerar um padre mendicante.

Tomás ofereceu a própria mula ao monge cansado e já idoso, mas este recusou cortesmente. Então Tomás apeou-se e começou a andar ao lado do frade, que também ia para Nápoles. Era o primeiro dominicano que encontrava e não queria deixar escapar a ocasião de conversar com ele. Aquela primeira conversa durou quatro horas, durante as quais os homens da escolta seguiam a pé e mal-humorados.

Em seguida tinham-se visto diversas vezes. o convento dos dominicanos ficava bem perto da universidade, onde alguns deles ensinavam. Já duas vezes Tomás tinha visto na sala de aula a cabeça grisalha de frei João. Sob a coroa de cabelos, o seu rosto era rugoso, mas tão vivo e inteligente que não se podia ainda considera-lo um velho, e muito menos um velhaças. Que idade poderia ter? Cinqüenta e cinco? Sessenta e cinco? Impossível precisar. Suas feições, enérgicas e aquilinas, eram mais próprias a um oficial romano que a um frade, mas os olhos eram azuis como as águas de um lago.

- Êh! o nosso primeiro encontro... - disse frei João. - Fizemos muito caminho desde aquele dia.

- Só uma parte, padre.

- Certamente, sempre só se faz uma parte, meu filho. Receio que o nosso caminho nunca tenha fim.

- A morte, porém, põe fim a toda atividade ... pelo que dela sabemos.

- Sim, pelo que dela sabemos. Nesta vida não podemos nunca ser tão ativos como na próxima. Não há nada de mais ativo como a contemplação. Sim, nesta vida. E o mandamento solene da nossa Ordem diz: contemplata aliis tradere. Não devemos guardar para nós o resultado do nosso trabalho, mas comunica-lo aos outros. Em demasia mantivemo-nos escondidos nos mosteiros. Era necessário, eu sei, como foi necessário para João Batista, e até mesmo para Nosso Senhor, retirar-se por algum tempo no deserto. Mas depois eles saíram para transmitir a sua sabedoria ao homem da estrada. Os tempos estão maduros, mais que maduros, porque os inimigos de Deus adquiriram o saber ... e dele se serviram em conformidade com a sua natureza: falsificaram-no e reviraram-no até que se tornou apto a seus fins. Nós devemos responder com a verdade. - E o rosto rugoso tornou-se quase jovial com o sorriso. -Não é de estranhar se nos consideram incômodos: com a ajuda de Deus nos tornaremos mais incômodos ainda.

Tomás deu um profundo suspiro.

- Padre, achas que poderia ser útil à tua Ordem?

Ficou algum tempo pensativo, de olhos fechados, e depois frei João disse secamente:

- Certamente. Por que não? - e acrescentou: - Gostarias de resolver o problema da síntese entre fé e filosofia?

O jovem enrubesceu:

- Quem te disse, padre?

- Estava lá, na aula.

- Padre, disseste ... que eu poderia tornar-me útil à Ordem ...

Frei João levantou os grossos supercílios:

- E uma vida dura, Tomás, mais dura que a dos beneditinos. O nosso jejum vai do dia da Exaltação da Cruz, em setembro, até o Sábado Santo. Durante todo esse tempo só se come uma vez por dia. Viaja-se sempre a pé, e vive-se de esmola. Não é para todos a vida de mendicante.

- Podes fazer o favor de propor-me ao padre prior? - perguntou Tomás com simplicidade.

Frei João fingiu não ter ouvido e prosseguiu como se estivesse falando consigo mesmo:

- A Igreja é universal. Todos nela encontram lugar, cardeais, arcebispos, abades, rochedos da oração, castelos é fortalezas do estudo, missas solenes e silenciosas rezas de ermitões. Cada coisa tem seu lugar, e tudo é bom. Mas São Domingos e São Francisco ... ressuscitaram o cristianismo primitivo. Não é uma reforma, mas é como emendar o fio partido, um fio precioso; é como que acelerar a circulação do sangue na Igreja, que é o Corpo Místico de Cristo; é como acelerar o seu pulso, mover mais rapidamente para Deus. Creasti nos, Domine, ad te ... para ti (ad te) nos criaste, Senhor. Não per te. $ a escora ao tronco vertical da cruz o que vale ... pois que o horizontal apoia-se neste.

Levantou-se e pôs-se a passear pela cela.

- As nossas melhores cabeças estudam o problema por ti mencionado. Têm fome e sede de conhecimento e de sabedoria, mas não como os diletantes da corte imperial que distilam uma mistura moderna de ceticismo e de mística oriental. Nós sabemos que a ciência tem a tarefa de ler na natureza a vontade de Deus.

Também Tomás levantou-se.

- Padre, estou pronto - disse. - Dizei-me apenas a quem devo dirigir-me para obter o hábito da Ordem.

Frei João parou, de rosto grave.

- Tu és jovem, Tomás; ainda és quase um rapaz. Agora o teu entusiasmo é fervoroso, mas com alguns anos de nossas fadigas podes perdê-lo. Não sabes, não podes saber ainda o que pedes. Depois, trazes um grande nome, o nome de uma casa soberana. Ao entrares na Ordem, talvez tua família te repudie. Aliás, estou quase certo de que chegaria a isto. Para tua mãe seria um golpe rude e uma grande dor. Ela não te criou para que te tornes um mendicante de Deus. Não é segredo para ninguém que em Montecassino te espera uma tarefa altíssima, e, eu mesmo o reconheço, verdadeiramente sagrada. Lá terás muitas almas sob teu cuidado, exercitarás um grande poder. E um lugar em que poderás fazer uma infinidade de bem. Por que, pergunto, deverias romper irrevogàvelmente e para sempre com todo o teu passado? Se o fizesses, deverias provavelmente fugir, pois que os de Roca-sêca não se conformarão com facilidade; e o braço do poder civil é comprido e forte. Meu filho, não creio que o hábito da nossa Ordem tenha sido feito para ti.

Tomás empalidecera e suas mãos tremiam: sem mais inclinou-se e foi saindo.

Mas frei João chamou-o de volta:

- Tomás, meu filho, reconheces que as minhas razões são plausíveis e que te convenceste?

O jovem voltou-se e respondeu humildemente:

- Não, padre.

O dominicano aproximou-se um passo.

- Admites, pelo menos, que são muito importantes para que não se deva refletir algum tempo, por exemplo... uma semana? não? um dia pelo menos?

- Não, padre, - respondeu Tomás humildemente como antes.

Frei João fechou os olhos.

- Em que, permite-me perguntar-te, baseias a tua opinião?

- Nas palavras de Nosso Senhor - disse Tomás sem titubear. "Eu vim trazer a discórdia. O pai estará em discórdia com o filho e o filho com o pai, a mãe com a filha e a filha com a mãe"; e "quem ama o pai e a mãe mais do que a mim não é digno de mim".

- E por que - trovejou frei João - não o disseste quando te perguntei se minhas objeções te haviam convencido?

- Porque, padre, não me perguntaste as minhas razões.

Os olhos de frei João cintilavam.

- Frei Tomás, hoje mesmo receberás o hábito da Ordem.

- Tu... tu me recomendarás ao padre prior? - perguntou Tomás radiante.

- Não é preciso - disse frei João gentilmente. - Eu sou o geral da Ordem.