CAPÍTULO VI

A notícia de defecção de Parma alcançou Frederico II no meio do caminho entre Verona e Turim. Dada a sua brilhante inteligência, compreendeu logo que os parmesões não teriam ousado tanto se não tivessem a certeza de encontrar válido apoio. Poderia ser Mântua e Ferrara, mas poderia ser ainda pior. E se não sufocasse o incêndio desde o início, a rebelião se levantaria numa dúzia de outras cidades, ou mesmo numa centena delas.

Bonatti, o astrólogo, dissera-lhe mais de uma vez que sua verdadeira grandeza manifestar-se-ia na adversidade, porque nascera com o sol no signo de Capricórnio e com a ascendente no Escorpião. A profecia começava a se verificar.

No primeiro ímpeto de cólera pela resolução do Concílio de Lião, Frederico tinha aceito com alegria a parte de Anticristo. Chegara ao ponto de fazer-se chamar pelos familiares de "santo Lúcifer", e ordenara que todas as igrejas e conventos fossem "expropriados" de suas riquezas, isto é de todos os objetos de ouro, prata e pedrarias. Considerava toda a faina como um gigantesco duelo entre ele e o papa, e sua primeira idéia fora correr para Lião e aprisionar o seu inimigo. Considerava-se o "príncipe do mundo" dos Evangelhos e a "Bêsta" do Apocalipse, e tal pensamento inebriava-o.

A defecção de Parma trouxe-o à razão, obrigando-o a descer das nuvens metafísicas e mostrar-se o mais astuto e o mais enérgico soberano do seu tempo.

Deu ordem ao) exército de retroceder e marchou, não contra Parma, mas para Cremona onde Ezelino uniu-se a ele com mais de seiscentos cavaleiros borgonheses com respectivas escoltas. Concentrou todas as suas guarnições na zona de modo que não pudessem ser derrotadas singularmente, depois lançou seus cavaleiros contra a Itália. Em esquadrões, espalharam-se em todas as direções da península de modo a impedir com o seu comparecimento qualquer sublevação. Ele próprio, dois dias depois do encontro com Ezelino, estava diante dos muros de Parma, dando início a um dos mais estranhos sítios da história. A arte do assédio, tão avançada durante o império romano, estava em plena decadência. Altos muros e defensores enérgicos eram um obstáculo quase intransponível para os cavaleiros pesados. Limitavam-se, portanto, a cortar a água às cidades sitiadas r', w isso não bastava, a obrigá-las a se renderem pela fome.

Como o aqueduto ele Parma ora abundante, só restava a fuma. A cavalaria de Frederico cortou todas as comunicações. Um forte contingente, comandado pelo margrave Lancia, ocupou a embocadura setentrional do passo dos Apeninos. Entretanto, o imperador não se iludia: sabia que só depois de muitos meses é que Parma render-se-ia.

A suspeita de que Mântua e Ferrara estivessem conspirando com os parmesões confirmou-se logo. Todos os mantuanos que os homens do imperador puderam apanhar, foram, sem mais, enforcados. Quando chegou a notícia de que também Régio havia-se unido aos rebeldes, Frederico enfureceu-se. Num acesso de cólera que durou três horas, disse aos amigos qu cantes de mais nada romperia todas as resistências e, depois, deixaria a Itália e o Ocidente para transferir-se ao Oriente. Somente lá os homens eram dignos de um grande soberano.

- O feliz Asia - exclamou amou - Somente tu sabes obedecer.

Suas tropas incendiaram metade de Régio e enforcaram cem dos mais conspícuos habitantes, os quais, antes disso, foram cegados para constituírem um terrível exemplo. Não obstante, cada dia chegavam notícias sinistras. Em dez, vinte, cinqüenta, cem cidades flutuava a bandeira com os lírios da velha fação guelfa. Seis cidades foram queimadas e outras vinte se rebelaram. Arécio foi arrasada. Então rebelou-se também Florença.

Mas Frederico não se abateu. Colunas quase infinitas de cavaleiros tudescos transpuseram os Alpes em seu socorro, e o solo italiano gemeu sob as patas dos cavalos couraçados.

O caráter religioso da rebelião tornava-se cada vez mais patente. Em numerosas cidades os frades mendicantes pregavam a guerra santa contra o imperador destituído, o ateu soberano de países cristãos, o livre-pensador que acreditava na própria divindade, o desprezador de sacerdotes que por sua vez dizia-se sacerdote, o flagelo de Deus que se proclamava novo Messias, o hipócrita que falava sempre de liberdade e era um tirano como o mundo nunca vira desde o império de Roma.

Mas o capitão Marino de Eboli derrotou os defensores de Viterbo e a fortaleza de Sala teve de se render a um outro chefe imperial. Frederico ficou com o exército que sitiava Parma. Em Parma tinha tido início a rebelião, Parma devia ser castigada por ele mesmo. Sem preocupar-se com a tempestade que sacudia toda a Itália, ficou onde estava. Os prisioneiros importantes eram-lhe trazidos ao quartel-general e ele presidia pessoalmente os processos. Os infelizes eram depois entregues aos "filhos de Vulcão", aos carrascos sarracenos para os quais a crueldade era um passatempo. O próprio imperador decretava o martírio. Muitos eram mutilados, cegados, ou pelo menos açoitados antes de serem levados à morte, outros eram afogados no rio Pó. Alguns prisioneiros, que por qualquer motivo tinham excitado de modo particular a cólera do soberano, eram costurados num saco com cobras venenosas, e os sacos, contendo o infeliz vivo, agonizante ou morto, atirados no rio: era um suplício que os soberanos do Oriente costumavam inflingir às mulheres infiéis do seu harém.

Mas o ócio a que era obrigado pelo sítio de Parma aborrecia a Frederico, e afinal pensou que não era digno de um grande soberano ficar tanto tempo num miserável acampamento. Dentro de alguns meses Parma seria arrasada: por que não começar logo a construção de uma nova cidade? Deu imediatamente ordem de convocar milhares de trabalhadores. Seus arquitetos prepararam os planos e, num instante, lançou-se a primeira pedra de uma cidade que ele chamou Vitória.

Sob os olhares dos parmesões, casas e palácios de Vitória começaram a surgir do chão. Depois todo aquele esplendor foi desaparecendo pouco a pouco atrás das fortificações que o imperador mandou erigir em torno da nova cidade. Junto do palácio imperial foram construídos um lindo pavilhão para as bailarinas sarracenas e seus eunucos, um magnífico edifício para o tesouro imperial e grandes telheiros para o material bélico. Nada de igrejas. O único sino da cidade, um enorme sino pendurado numa torre acima dos muros, tocava quando os parmesões faziam alguma saída em busca de víveres pelas vizinhanças, coisa que acontecia freqüentemente, porque depois de quase um ano de sítio começava-se a sentir a carestia.

Frederico tinha dado ordens severíssimas de rechaçar imediatamente toda saída ou, se os parmesões burlavam a vigilância, de persegui-los até fazê-los voltar à cidade.

- Quanto mais bocas tiverem, mais depressa ficarão sem o que comer.

De outras cidades chegavam constantemente transportes de víveres e quase sempre Frederico conseguia interceptá-los. Então fazia passar os carros carregados abaixo e acima diante dos muros, à vista dos defensores esfomeados, e depois mandava descarregá-los em seus próprios armazéns.

Por fim desinteressou-se também por Vitória que continuava crescendo sem que ele cuidasse disso. Passava grande parte do seu tempo nos pântanos, caçando pássaros e, quando voltava, dedicava-se a escrever o livro De Arte Venandi cum Avibus.

Em parma reinava completa calma e era preciso ser observador agudo para perceber a tensão nas ruas e praças quase desertas: aqui o Lampejo de um olhar, ali um tom de voz forçadamente calmo, um reflexo de lua sôbre as pontas de um feixe de lanças apoiadas a um muro e aparentemente abandonadas, e alguma figura embuçada que atravessava depressa uma rua e desaparecia num grande edifício.

Um tropel de cavalos a galope interrompeu o silêncio. Era um pequeno grupo de cavaleiros que, guiados por um homem couraçado, subia para a cidadela. A sentinela quis detê-los, mas o cavaleiro respondeu de mau humor:

- Tolo, deixa-nos passar. Pensas que seis homens queiram tomar a fortaleza?

Porém o grupo só pôde passar quando o chefe do pôsto reconheceu o cavaleiro.

Cinco minutos depois este estava diante de Landolfo.

- Graças a Deus te revejo são e salvo, Rinaldo. Fiquei preocupado. Como conseguistes passar?

Rinaldo riu:

- Dá-me vinho e dir-te-ei. Estou com a garganta sêca.

- Eis aí um pouco de vinho. Tenho apenas meio copo. Aqui situação não é mais a mesma. Na semana passada tivemos os primeiras mortos de fome, e cada dia seu número aumenta. Sou feliz em rever-te ..ainda que não o devesse ser. Talvez tivesse sido melhor que tu tivesses ficado longe. Prometo-te que se sair vivo desta cidade maldita, o que não é impossível mas nem muito provável, nunca mais porei os pés em Parma. Conheço dela todo canto, e nestes últimos tempos o ar começa a feder. Mamãe e as meninas estão ao seguro?

- Sim, mas não foi fácil chegar a Roca-sêca. Esta é a guerra mais estranha que já vi. Nunca se sabe se na próxima- cidade receber-te-ao com arcos triunfais e banquetes ou se te enforcarão ou te cortarão as mãos, os pés ou qualquer outra coisa de que não te quererias separar. Ainda bem que conseguimos mandar embora mamãe e as irmãs antes que o velho demônio apertasse o cêrco de ferro em torno da cidade. Todavia, antes de chegar em casa tivemos de nos bater quatro vezes. Sete dos nossos cinqüentas homens chegaram onde ficarão definitivamente.

- Ao paraíso - comentou Landolfo.

- Como o sabes com tanta segurança?

- Não pode haver dírvida. Caíram pela causa justa e, mais que isso ninguém pode fazer.

- Talvez tenhas razão, querido irmão, - disse Rinaldo rindo. Mas pelo menos três deles eram verdadeiros bandidos.

- Quando se morre por Deus, morre-se por Deus! - replicou Landolfo. - Como se portou o jovem Rogério?

- Nada mal - respondeu Rinaldo generosamente. - Batia-se pela primeira vez em sua vida: que se pode pretender? Com a lança atravessou a garganta de um mercenário: terá sido sorte, mas foi um belo golpe. Chorou por isso e durante horas tive de confortá-lo explicando-lhe que não era pecado, que não tinha cometido assassínio, que tinha feito o que qualquer cavaleiro cristão faria em defesa da sua clama, e assim por diante. Então sentiu-se melhor, mas não muito. R um jovem muito sensível.

- Excessivamente sensível.

- Mudará, se tiver vida ... Eu lhe quero bem. Não foi fácil convencê-lo a ficar em Roca-sêca com as mulheres. "Que dirão se eu não voltar?" Até quando lhe expliquei que seu pai desejava que ele ficasse longe não queria ceder. Tive de lhe dizer que as mulheres precisavam de sua proteção, e só então decidiu-se. No íntimo estava um pouco aliviado, e no seu lugar eu também o estaria se tivesse me casado apenas há dois meses.

- Pode ser - disse Landolfo sacudindo a cabeça. - Por mim estou satisfeito que fique onde está. É excessivamente jovem para essas coisas. Certamente, se perdermos, não estará seguro por muito tempo nem mesmo em Roca-sêca. E talvez mesmo antes. O velho Lúcifer é quase onipresente. (preciso reconhecer que entende de guerra. Como fizeste para passar?

- E história longa e aborrecida. Mas trago más notícias para Parma.

- Ah! sim? - disse Landolfo não muito impressionado. - De que se trata?

- Tu mandaste o prefeito Tebaldo Francisco a Altavila para buscar reforços.

- Não, víveres.

- Não o verás mais, pelo menos nesta vida.

- Como? Passou para o lado do imperador?

- Não. Penso que tu e San Severino o tenhais enviado a Altavila porque lá estão parentes dele, gente influente para conquistar.

- De fato, lá vive seu irmão, e ele devia encontrar-se cem alguns chefes da fação guelfa. Mas sua tarefa principal era organizar um transporte de víveres com uma escolta forte, já que os íntimos quatro foram interceptados.

- De Altavila não receberemos um naco de pão: Frederico tomou-a de assalto e capturou o prefeito.

- Pobre diabo!

- Pois é! Cegaram-no, cortaram-lhe o nariz, u'a mão e um pé, e o arrastaram de uma cidade a outra como um espantalho: assim acaba quem se rebela contra o imperador!

- E este é o homem que servimos durante anos! - exclamou Landolfo. - Não compreendo: éramos cegos ou loucos ou o quê?

Rinaldo riu novamente.

- Provavelmente. Nós todos, menos o pequeno Tomás. E agora só o pequeno Tomás está em segurança. Dir-se-ia que acima de todas as injustiças humanas caminhe claudicando uma estranha espécie de justiça. Será talvez aquela que chamamos Providência?

- Se servis a um homem que não serve a Deus, como podeis servir ao próprio Deus? - citou Landolfo. - Lembro muito bem essas palavras. Mas esqueci a resposta que lhe dei ... ou que tu lhe deste? Tomás tinha uma maneira estranha de dizer as coisas de modo a que ficassem gravadas. Estou feliz por sabê-lo em segurança. Agora, Rinaldo, deverás depor ao conselho de guerra. Gostaria que omitisses a notícia sôbre a sorte de Francisco. ); muito querido e não quereria que a gente perdesse a confiança, pelo menos nos próximos dois dias. Está-se preparando algo em grande escala, o que poderia mudar a nossa sìtua- de um momento para outro.

- E bem necessário, já que Frederico está em grandes progressos em toda a Itália. Que intenções tendes?

- No campo adverso temos um par de pessoas de confiança :que conseguiram transmitir-nos a notícia de que amanhã pela madrugada Frederico irá caçar giros.

-É uma notícia assim tão importante?

- Durante sua ausência o comando é confiado ao margrave Lancis.

- Quê mais?

- Lancis tem ordens precisas de perseguir-nos e fazer-nos reentrar se tentássemos uma saída e conseguíssemos passar.

- Começo a compreender - disse Rinaldo. - Amanhã haverá uma saída.

- Exatamente. Sob meu comando. Chegaste justamente a tempo para participar dela. Prepararemos uma bela caçada ao margrave. Pre- cisamos emagrecer um pouco.

- Enquanto isso - acrescentou Rinaldo - poderá acontecer alguma coisa. Compreendi. De quem é a idéia?

- Do velho San Severino. E um grande homem e gostaria ...

-. Quê?

- Que a pequena Teodora tivesse casado com ele em vez de com o filho.

- Ê, ele ou sir Piers.

Landolfo arregalou os olhos.

- Que dizes? Por quê?

- Piers amava-a, meu irmão. Mas sei que não é de nobre linhagem, pelo menos a julgar pelo título.

- Por isso então sumiu tão repentinamente. Então não podia compreender, nem mamãe. Aonde terá ido parar?

- Terá voltado para a Inglaterra. Pena. Aqui nos serviria muito. Tu és uma boa espada, mas não sei se terias partido em dois tão elegantemente o velho Brandenstein ...

- Nem eu sei - admitiu Landolfo. - E agora vem, vamos falar a San Severino de seu filho. Depois recomendo-te deitar cedo porque amanhã teremos que fazer.

- Algumas horas de sono não me farão mal.

San Severino recebeu-o com muita cordialidade, evidentemente aliviado por saber seu filho em segurança ... pelo menos como se podia estar em segurança naquele tempo na Itália.

- Certamente tereis visto coisas muito interessantes, mas delas falaremos amanhã à noite. Vosso irmão já vos comunicou o plano para amanhã? Sim? Bem! Vejo que nos trazeis más notícia. Se o nosso projeto tiver sucesso, as más notícias serão indiferentes. Se falhar, tudo se tornará indiferente. Penso que querereis participar da saída com vosso amável irmão. Deus e a Virgem Santíssima vos protejam. Boa noite.

A sua barba preta continha fios de prata em maior número que antes, e o rosto havia-se tornado descarnado e pálido.

- Temo que não viverá muito ainda - observou Rinaldo quando ficaram novamente a sós. -Gostaria de saber por que a prata me lembra sempre a morte. Como poeta poderia dar-te sete razões desse fato, mas nenhuma de valor.

- Quer dizer que és mau poeta.

- Não, meu irmão, a lástima é justamente que sou bom poeta, isto é, que tenho inclinação. Mas não aproveitei. Cedo demais diverti-me nesta vida. Para se ser bom poeta se deve ir para a solidão, transformar-se em eremita, tornar-se santo ...

- Histórias.

- E preciso fazer penitência, viver para uma idéia. Não se assaltam de barriga cheia as portas do Paraíso. Sempre pensei que eu podia erigir um templo à Beleza, desde que tivesse mármore e pedras preciosas em suficência. Entretanto, a mais bela de todas as formas não é a das mulheres, mas a da mulher. Se tivesse achado o que procurava em tantas mulheres... quem sabe! Vês que ainda procuro descarregar a minha responsabilidade. De fato, que procurei eu? Bem Deus, não sabia nem que os poetas têm maior responsabilidade do que os comandantes na guerra ...

- Vai dormir, tens necessidade - disse Landolfo.

- Eu sei, eu sei. Agora vou. Pelo menos a energia que me dá este sono não será esperdiçada. Desperdício... meu irmão, eis uma palavra terrível. Certa vez sonhei com um velho que Ire dizia que depois da morte as almas dos que desperdiçaram a vida são fundidas e com elas moldadas novas almas: serão bobagens, e talvez heréticas, mas me incutiram muito medo.

- Mais um pouco e pensarei que seria melhor tivesses ficado em Roca-sêca - disse Landolfo bruscamente.

- Não te preocupes. Estou excessivamente cansado. Amanhã estarei mais alegre. Certas vezes quereria ter o teu caráter: ser um bloco único e sem dúvidas. Boa noite.

- É mais honroso ter dúvidas e superá-las do que não as ter sentenciou Landolfo. - Boa noite e bons sonhos.

Apertaram-se as mãos e trocaram um sorriso antes de irem cada qual para o seu quarto.

Um servo ajudou Rinaldo a despir-se. Sôbre a mesa havia um prato com um naco de pão duro e um pedaço de carne de mau aspeto: carne de cavalo. Rinaldo levantou o ombro, estendeu a mão e notou o olhar do servo fixo àvidamente no prato.

- Leva essa coisa - disse sorrindo. - Não gosto.

O servo apanhou apressadamente a comida e saiu correndo, como se temesse que o senhor mudasse de idéia. Rinaldo atirou-se na cama.

Não sonhar. O bom Landolfo não acreditava na vitória, como nela não acreditava San Severino. R mais honroso ter dúvidas e superá-las do que não as ter. Bom Landolfo! Como sabiam ser sábios aqueles simples corações! Alguma coisa tinha feito na vida. Também Marta, e talvez também Teodora, a qual, junto com a pequena Adelásia, tinha ainda a vida diante de si.

E ele? Que teria dito Tomás dele? Provavelmente que tinha enterrado seu talento. Ou tê-lo-ia julgado como Landolfo? Se morres por Deus, morres por Deus ...

Estranho que a eventual sentença de Tomás devesse ter tanta importância. Todos sofriam de algum modo a sua influência ... até Landolfo. Antes tudo lhe tinha sido indiferente, agora importava-lhe muito estar do lado certo. Mas Rinaldo? Que teria dito Tomás a Rinaldo?

Pequenas canções sôbre belas mulheres ... sim, eram sinceras, mas precisamente pequenas canções. Se tivesse achado a mulher... se é que existe! Não será apenas uma quimera, um sonho, nesse vale não de lágrimas mas de ilusões onde se persegue a beleza e a felicidade e com a varinha mágica da fantasia tranforma-se toda canção num canto paradisíaco e cada mocinha em Nossa Senhora.. .

Alguns ousavam até cantar a própria Rainha do Céu, como Adão de São Vítor:

Salve, Mater pietatis et totius Trinitatis nobile triclinium, Verbi tamen incarnati speciale maiestati preparans hospitium.

Ah! sim, era preciso que se fosse santo para fazer dessas poesias, para achar a inspiração de palavras tão majestosas. Isso tinha escrito um monge na cripta da abadia de São Vítor, consagrada à Mãe de Deus. E a invocação a Nossa Senhora fora tão potente que a cripta ficou inundada de luz e a Virgem Santa apareceu acenando benignamente r agradecendo por aquelas palavras. Assim contava-se e era crível, se o não fosse pela comovente beleza da anedota. Entretanto, não obstante a beleza, aquele não era o cântico que era preciso elevar à Virgem e Mãe, à nova Eva, ao símbolo sagrado de toda poesia. O paraíso, o purgatório e o inferno ainda não tinham encontrado o seu poeta ... e nem ela, a Estrêla do Mar, a Porta do céu. A tarefa devia ser talvez ainda maior porque tinha de se elevar a tais alturas para superar até as palavras do arcanjo que a tinha saudado. Competir com um arcanjo para a conquista da palma poética era empresa digna, e para ela valia a pena viver redimindo uma vida inteira desperdiçada.

Mas na manhã seguinte teria lugar a saída.

Oride buscar as palavras que se alinhassem como pérolas de igual medida e forma e pureza até formar um colar para a Rainha de todas as rainhas? Teria sido preciso saquear o céu. Na terra as palavras faltavam ... e ela, ela própria, deveria trazê-las e presentear-mas. Tudo que poderia fazer seria restituir a oferenda. Mas não é isso que acontece com todo sacrifício?

Filha e mãe da Criança divina, Estrêla matutina, Torre (te marfim ... Virgem que destes à luz a fonte de todo o amor ... se (-oiti a tua ajuda continuar em vida, cantarei o teu hino. E se caio, se o pêso de minhas más ações, maior que o das boas que não cumpri, me subtrair da tua vista, cantar-te-ei igualmente. Talvez um espírito benfazejo levará meu canto através do espaço até que encontrará um poeta capaz de o fazer florescer sôbre a terra.

Na manhã seguinte um forte grupo de cavaleiros às ordens de Landolfo e Rinaldo de Aquino fez uma saída em direção sul. O próprio margrave Lancia, à testa de cinco mil homens, comandou a perseguição, levando quase cinco horas para alcançar e barrar o inimigo. Seguiu-se um batalha ferrenha que durou até a noite. Afinal, a superioridade iitimérica dos imperiais impôs-se e, pouco antes do pôr do sol, um último e feroz ataque derrotou os parmesões.

Landolfo e Rinaldo foram aprisionados e, com eles, a maior parte dos sobreviventes. O restante dispersou-se em todas as direções. Muitos foram mortos no caminho de volta, enquanto pouquíssimos conseguiram entrar de novo em Parma.

Mas, uma hora após a partida do margrave Lancia, todas as portas de Parma abriram-se ao mesmo tempo e os parmesões saíram: primeiro os cavaleiros sob o comando do conde de San Severino, depois a infantaria e a guarda da cidade. Seguia-se toda a população masculina da cidade., dos jovens de doze anos aos velhos de setenta e mais. Afinal, vinham as mulheres, em grupos de todo grau e idade. Todos atiraram-se para Vitória como torrentes de lava. Os defensores da nova cidade não criam em setes próprios olhos. Lancia não julgara necessário nomear um lugar-tenente para o tempo em que estivesse fora, e brigas ásperas nasceram entre os comandantes subalternos fazendo-lhes perder um tempo precioso. Entretanto o sino de alarme começou a soar.

San Severino abrira caminho de arma em punho e entrara pela porta setentrional, seguido pelos cavaleiros que, atravessando as ruas da nova cidade, abriam as portas pelo lado de dentro, semeando a confusão entre os defensores que não sabiam onde acudir. Através das portas assim abertas irromperam os civis espalhando terror. Cavaleiros imperiais desapareciam no meio de grupos de mulheres que os arrancavam dos cavalos e os surravam a pau até a morte. Centenas de soldados imperiais rendiam-se à guarda civil para não serem despedaçados pelas mulheres que gritavam, esfomeadas e meio enlouquecidas. Sem o objeto da sua vingança, elas se atiraram aos mantimentos. Com incrível rapidez arrombaram as portas dos depósitos e lançaram-se aos montes de víveres, às provisões do imperador, constituídas de transportes capturados. As mais inteligentes procuravam cavalos e mulas e carregaram-nos com tudo que não podiam levar; a maior parte, porém, arrasta-a o que lhe chegava ao alcance das mãos.

Enquanto isso, na cidade de Vitória a luta continuava furibunda; embora tendesse a enfraquecer. Quem ainda opunha resistência era morto pelos soldados parmesões que assistiam aos saques dos companheiros e descarregavam sua bílis sôbre os tolos que teimavam em impedir-lhes de participar do saque.

Entre os sons argentinos dos instrumentos de caça insinuou-se o soar grave do sino de Vitória. O imperador perdeu minutos preciosos esperando que o seu melhor falcão voltasse sôbre a luva. Depois saiu a galope em direção da cidade acompanhado pelo filho Manfredo que; apesar de apenas ter dezesseis anos, já havia esposado a filha do conde Amadeu de Savóia, e por cerca de cinqüenta cavaleiros. É claro que eles não imaginavam que o margrave Lancia estava ausente. e. muito menos. que os parmesões tivessem tomado a cidade.

Em roupas de caça, sem couraça, entraram correndo, enquanto os parmesões olhavam para eles boquiabertos e eles tinham a sensação de cavalgar num mau sonho. Depois, alguém gritou:

- O imperador! O imperador!

E após um momento de hesitação, todos correram para o grupo.

- Vamos, saiamos daqui! - ordenou Frederico. - Segui-me! Tu, Manfredo, mantém-te a meu lado. - Mas não era fácil. Projéteis eram atirados de todos os lados, carros, soldados, mulheres gritando barravam -o caminho. Os homens da escolta pisavam e derrubavam todo obstáculo para cobrir o imperador. Logo nos primeiros minutos oito homens caíram, seguidos por muitos outros. Os sobreviventes cavalgavam como demônios e, como seus cavalos eram os melhores do mundo, conseguiram escapar da cidade: eram o imperador com o falcão ainda sôbre a luva, o príncipe Manfredo e catorze cavaleiros. Desapareceram em direção de Burgo S. Donino.

O incidente parecia fantástico e, por algum tempo, os parmesões pareciam incertos da realidade do mesmo. Entre o aparecimento e a fuga do imperador não tinham passado dez minutos. Grande parte dos saqueadores nem o haviam visto: tinham, porém, encontrado as famosas bailarinas sarracenas, os eunucos e as jaulas dos animais. San Severino ordenou de pôr tudo sôbre os carros e encaminhá-los para Parma. A ordem teve de ser reforçada com algumas bordoadas. O capitão Bruno de Amicis ria-se às gargalhadas.

- Não creio se trate de salvar-lhes a virgindade - disse o conde rindo. - Mas dei ordem de incendiar a cidade e não quero retardatários. Por outro lado, essa chusma terá menos pecados para confessar.

Mandou, em seguida, um grupo de homens de confiança ao palácio do tesouro, onde o conselheiro imperial, Tadeu de Sessa, foi encontrado morto. Os homens saíram carregados de sacos cheios de ouro e de prata amoedada. Os soldados da guarda, que os seguiam como hienas ao leão, encontraram outra mercadoria para carregar.

- Nunca vi nada semelhante - murmurou um cavaleiro da primeira seção. - Vêde, seis sacos cheios de jóias.

Os saqueadores punham os hábitos de gala do imperador, um agitava o cetro, outro, tendo as mãos ocupadas, empurrava a golpes de pé o sêlo real de Sicília. Um coitado, que toda Parma conhecia pelo nome de "Passo-curto", por causa de suas pernas pequenas, tinha-se apoderado da coroa imperial, que pesava quase tanto quanto ele, e caminhava pelas ruas sorridente.

De uma casa junto ao-tesouro, um cortejo de soldados trazia cálices de ouro e outros vasos sagrados que o imperador tinha "desapropriado" de centenas de igrejas. San Severino fê-los carregar no côche de Cremona, o côche dourado do imperador. Foi preciso uma dúzia de burros para arrastar o veículo sobrecarregado.

Vitória estava em chamas. Dada a ordem de voltar, homens, mulheres e rapazes encaminharam-se sob o pêso do saque. Somente alguns comandantes, posta a presa em carros, tinham os braços livres. Meia hora depois, com grande alívio de San Severino, todos reentravam em Parma. Se o margrave Lancia tivesse voltado antes que eles alcançassem os muros da cidade, o dia poderia acabar mal.

Entretanto, Lancia só voltou durante a noite ... uma noite iluminada pelas chamas de Vitória: tarde demais para qualquer tentativa de apagá-las.

Pela madrugada, a nova cidade de Frederico era um montão de ruínas fumegantes.