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Frei Reginaldo de Piperno estava totalmente feliz. Sua felicidade
datava de quando entrara em Nápoles ao lado do seu mestre e amigo
Tomás. Daquele dia em diante tudo correra como que automaticamente.
O ingresso na cidade fora um triunfo sem par. Nunca um neodoutor em
teologia fora recebido por dez mil pessoas que faziam alas pelas ruas,
atiravam flores e beijos e externavam como selvagens o seu entusiasmo.
Tomás olhara em volta como se toda aquela confusão não fosse para
ele, mas para alguém que o seguia... o duque d'Anjou ou mesmo o
rei da Sicília, e sentira-se pouco à vontade. Como se pudesse
aplaudir o rei da Sicília! Os napolitanos não o toleravam, apesar
de não ter brincado com as últimas àguiazinhas suevas. Passavam de
boca em boca as palavras que dera em resposta ao rei Manfredo que,
pouco antes da batalha de Benevento, tinha-lhe enviado uma mensagem
de paz. As tropas de - Manfredo eram formadas quase exclusivamente
dos sarracenos da célebre colônia de seu pai perto de Lucerna.
- Levai ao sultão de Lucerna esta mensagem: - dissera o rei
Carlos - Deus e a espada serão nossos juizes.- ou o sultão me
enviará ao paraíso, ou eu o enviarei ao inferno.
Donde se compreendia que Carlos d'Anjou sabia com precisão aonde
iria, ainda que seus súditos estivessem menos seguros do mesmo. E
ele cumpriu a palavra: no fim da jornada, catorze mil sarracenos
jaziam mortos no campo, e o rei Manfredo com eles.
Quando, então, o jovem Conradinho, o último dos suevos, desceu
à Itália para vingar Manfredo e reconstruir o reino de seu pai
Conrado e do avô Frederico, Carlos bateu-o em Tagliacozo,
capturou-o e fê-lo justiçar numa praça de Nápoles.
Os napolitanos eram gente alegre a quem pouco importava se os tiranos
eram tudescos ou francos. Não perdoaram a Carlos d'Anjou o
tê-los libertados, enquanto talvez ter-lhe-iam perdoado se os
tivesse libertado também de si próprio. Mas assim não era.
Em todo caso, Nápoles não tinha flores nem beijos para o rei
Carlos e, se quando ele passava havia alguém que gritava, não o
fazia por entusiasmo. Em seguida soube-se que o rei quisera conhecer
a razão da incrível popularidade obtida por um simples doutor de
teologia. Sabia quem era Tomás de Aquino? Quem não o sabia?
Não só sabia que os nobres de Aquino eram os legítimos
proprietários de meia província ao norte de Nápoles, mas que
Tomás era pessoa caríssima ao rei Luís, que ainda vivia e era o
único homem no mundo de quem Carlos temia a cólera. Mandou, pois,
uma carta muito cortês e melíflua ao convento dos dominicanos, deu as
boas-vindas a Tomás, "o ilustre novo mestre da universidade de
Nápoles, cuja fama estava difundida por todo o mundo cristão, ao
amigo e conselheiro do seu real irmão de França", e assegurou que
"era também sua a alegria demonstrada por seus súditos napolitanos
pela entrada do amado mestre na cidade que podia sentir-se orgulhosa de
ser considerada o seu berço".
- E claro - resmungou o velho prior do convento. - Se alguém deve
ser mais bem visto que ele, melhor um frade mendicante que um possível
rival.
Após a morte do grande e santo irmão, seu regime tornou-se mais
duro e mau. Afinal, não havia mais ninguém a quem Carlos devesse
temer, exceto o novo papa, Gregório X, o primeiro papa italiano
depois de três franceses. Teobaldo Visconti, de Placência, fora
amigo íntimo do rei Luís e a muito custo conseguira-se convencê-lo
a não participar da última infausta cruzada e a ficar em Liège,
onde era arquidiácono antes de ser chamado ao trono pontifício.
Poucos dias após a coroação, o novo papa publicara uma encíclica
para convocar um concílio ecumênico em Lião, onde se trataria da
questão do cisma grego. O concílio deveria ser inaugurado em 1 de
maio do ano seguinte. O calendário marcava o dia 9 de dezembro e
estava fora de dúvida que mestre Tomás seria convidado a participar
dele e, desta vez, quisesse ou não, ter-lhe-iam conferido o
chapéu vermelho, como se fizera com frei Boaventura.
Esta era uma das razões que tornavam feliz frei Reginaldo. A outra
era a consideração de que o período decorrente até à partida para
Lião seria suficiente para que o mestre levasse a termo a maior, a
mais profunda, a mais gloriosa de suas obras, a Summa Theologica.
As duas primeiras partes estavam prontas e Tomás trabalhava na
última, que tratava do Redentor.
Em Nápoles não era preciso que o mestre continuasse polemizando
contra os erros e falsos argumentos alheios. Não era necessário que
pela manhã combatesse os averroístas e à tarde os agostinianos.
Nápoles não era Paris. Só de vez em quando ia visitar a irmã
Teodora, cujo marido perecera na cruzada que vira também o fim do rei
Luís. Finalmente Tomás estava livre para dedicar-se ao seu
trabalho. Bastava providenciar que tivesse à mão todos os livros e
todos os manuscritos necessários, que ao meio-dia comesse
suficientemente e lhe fossem evitados os aborrecimentos. Melhor que
isso não se podia viver: parecia estar no paraíso.
Mas não há paraíso sem serpente. A serpente napolitana, muito
pequenina, chamava-se frei Domingos e era o sacristão do convento.
Um homenzinho seco, cujos lábios finos pareciam sempre sorrir
ironicamente, talvez pelo fato de ele não ter dentes e não querer que
se notasse. Estava naquele encargo há trinta e cinco anos, e não
admitia que outros pusessem o bedelho em suas funções. Sabia-se que
tinha dado respostas um tanto enérgicas até ao prior e - o que era
pior - sabia tão bem o seu ofício que quase sempre tinha razão:
seus olhinhos agudos estavam em todo lugar e não deixavam escapar
nada.
Frei Domingos era o único a quem frei Reginaldo não conseguia
convencer da importância de Tomás. Quando o mestre, aprofundado em
seus pensamentos, tomava a direção oposta e chegava ao pátio do
convento em vez de ir ao refeitório, ou quando chegava às vésperas
com um minuto de atraso, frei Domingos franzia o cenho, revelando
claramente suas dúvidas sôbre a saúde mental do grande filósofo.
Sabia, porém, muito bem quais as liberdades que podia tomar e até
onde podia ousar, de modo que era difícil apanhá-lo em falta.
- Frei Domingos, tiraste os paramentos maiores para mestre Tomás?
- Durante a semana não se podem usar os paramentos novos.
- Mas bem sabes que mestre Tomás é de estatura excepcional ...
- Não faz parte das minhas responsabilidades, frei Reginaldo.
- ... seja fisicamente, como sob outros aspetos. Não disse que
tu sejas responsável disso, mas o és quando se trata de preparar
paramentos adequados.
- Hoje é dia 6 de dezembro, - replicou frei Domingos - festa de
São Nicolau, patrono da Igreja, bispo e confessor. Branco.
- Eu nunca duvidei que saibas o teu dever. Queria apenas fazer-te
notar que mais de uma vez mestre Tomás, durante a missa, sentiu-se
embaraçado porque vestia paramentos adequados para mim e talvez também
para ti, mas não para um homenzarrão como ele. Apelo para ... a
tua fantasia, caro frei Domingos, e para o teu bom coração. Se a
casula é muito estreita, frei Tomás não pode nem levantar os
braços.
- Nesta igreja preparo as casulas há trinta e cinco anos.
- Eu sei, mas ...
- ...também para as missas solenes celebradas por sua eminência o
cardeal de Nápoles ...
- Isto não vem ao caso. Queria apenas ...
- ... e por muitos outros príncipes da Igreja, sem ter nunca dado
motivo a queixas.
- Eu não me queixei, dirigi apenas um apelo...
- A fantasia! - replicou frei Domingos. - Graças a Deus, eu
não sofro desse mal. Precisão, caro frei Reginaldo! Ter na mente
todas as particularidades, não esquecer nada, saber sempre onde
estão as coisas ou onde deviam estar. Se tivesse fantasia, já teria
perdido o cargo há trinta e cinco anos.
Reginaldo desistiu e voltou à cela do mestre para ver se tudo estava
em ordem para o trabalho da manhã.
Frei Domingos entrou na igreja, onde Tomás devia estar no final da
missa. Precisava apagar as velas, levar de novo o missal para a
sacristia, lavar as galhetas ... Ordem, não fantasia!
Para desapontamento seu viu que mestre Tomás ainda estava no altar e
não tinha acabado. Depois notou que, embora fosse alto, Tomás
estava insolitamente alto, tão alto que sua cabeça estava ao nível
dos pés do crucifixo. Frei Domingos supôs que o crucifixo tivesse
saído do lugar e que frei Tomás tivesse subido num banquinho para
pô-lo onde estava, coisa que não lhe dizia respeito, e sim a ele,
frei Domingos, de cujas tarefas ninguém tinha que ocupar-se.
Aproximou-se, então, muito aborrecido. Depois percebeu que
Tomás mantinha os braços esticados como em adoração e não tocava o
crucifixo: só então notou que o frade não tinha os pés sôbre o
banquinho ... mas em cima de nada! Entre os pés e o chão não
havia nada, e aquele nada media alguns palmos, deixando ver em toda a
sua extensão o tapete vermelho gasto e os brancos degraus de mármore.
Frei Domingos piscou os olhos: não era crível, não se pode ficar
no ar! Aliás, Tomás nem ficava no ar, mas pairava no vácuo.
Viam-se as solas de seus sapatos.
"Fantasia" pensou frei Domingos assustado. "E um ataque de
fantasia". Mas o seu bom senso rejeitou logo toda relação entre o
seu pequeno eu e aquela visão assustadora, a visão de uma massa
envolta em hábitos sacerdotais, a visão daqueles pés pendurados,
daqueles braços estendidos, daquela cabeça reclinada, tudo num
silêncio de agonia. Frei Domingos suspirou, tentou dar um passo a
trás, como para fugir, mas os pés não o obedeceram. Também os
olhos rebelaram-se e ficaram fixos naquela cabeça grande reclinada.
Era temor? susto? sofrimento? Precisava esclarecer a coisa. A
passos miúdos e incertos, foi-se aproximando bem devagar ao altar.
Estava de lado e podia ver o rosto de frei Tomás. Como estava
mudado! A boca estava aberta, e os olhos emanavam uma luz terrível.
Não era o rosto de quem vê uma coisa extraordinariamente bela, mas
talvez a expressão de quem veja aproximar-se uma pessoa amada da beira
de um precipício e a chame a si, mas receiosa de que caia. Parecia,
mas não era exatamente assim.
Repentinamente frei Domingos começou rememorar quando tinha seis anos
e ouvia pela primeira vez as histórias de Moisés, quando Deus lhe
mostra a terra prometida e lhe diz: "Viste-a com teus olhos, mas
não lhe porás o pé". E o pequeno Domingos chorava, porque o
pobre Moisés, após tantas fadigas e tanto trabalho, não podia pôr
os pés na terra prometida.
Tal parecia o homem que fora mestre Tomás: parecia o homem que vira
a terra prometida sem poder entrar nela.
E frei Domingos, ainda pequeno, mas não mais criança, depois de
sessenta e dois anos de vida, dos quais trinta e cinco passados na
sacristia de S. Nicolau, mordeu a mão, não para não chorar, mas
para que não se ouvisse o seu choro.
A nuvem branco-dourada que envolvia Tomás ainda pairava sôbre os
degraus do altar, mas o seu rosto ia-se modificando: da nostalgia
dolorosa passava ao êxtase mais livre. As portas do limbo abriam-se
e, finalmente, Moisés podia entrar na terra prometida. Juntou as
mãos e começou a rezar. Mas se aquilo era oração, frei Domingos
nunca vira alguém rezar. Era o menino que corre para os braços da
mãe, a esposa que olha o homem amado, o herói que vê diante de si a
vitória, o leproso que se sente curado, o homem que renasce noutro
mundo. Assim parecia, e no entanto não era assim, já que, naquele
momento, Tomás não tinha consciência de si. Parecia a lua, que
brilha em virtude da luz solar ... e aquela luz vinha-lhe do
crucifixo.
Frei Domingos ajoelhou-se pensando que lhe era concedido assistir
àquela glória talvez por amor das lágrimas derramadas quando criança
pelo pobre Moisés. Mas o seu pensamento interrompeu-se diante do
que estava acontecendo e que se lhe imprimiu na mente por toda a vida.
Pareceu-lhe ouvir palavras claras, vindas do altar, ou melhor, do
crucifixo: Bene scripsisti de me, Thoma. Quam ergo mercedem
accipies? - e a voz de Tomás respondia: -Nil nisi te, Domine.
Depois Tomás começou a descer lentamente. O mesmo aconteceu a frei
Domingos, mas a seu modo: ele saltou de pé repentinamente, saiu
cambaleando da igreja e voltou à sua cela.
Logo à tardinha, frei Domingos procurou frei Reginaldo e declarou
que doravante daria a mestre Tomás as casulas mais amplas que pudesse
conseguir. Era preciso mais alguma coisa? Se fosse o caso, que frei
Reginaldo lhe ordenasse logo.
Admirado, frei Reginaldo notou que o paraíso terrestre estava sem a
serpente. Maravilhou-se, embora estivesse ainda um pouco
desconfiado.
Quando, meia hora depois, entrou na cela de Tomás sobraçando um
manuscrito (o tratado de São Bernardo sôbre a penitência),
achou-o como sempre à escrivaninha, sôbre a qual, porém, não
havia mais nem papéis, nem livros, nem penas de pato. Tudo havia
sido tirado, menos o crucifixo.
- Finalmente achei o São Bernardo, - disse - e um exemplar
completo. Assim, se ...
- Reginaldo, - interrompeu Tomás - és tu, não?
Reginaldo empalideceu:
- É claro, sou eu. Que há. Estás mal?
- Não, Reginaldo, não. Retoma o manuscrito e leva-o de volta.
Também aqueles ali no canto.
- Levá-los de volta? Por quê? Não precisas para ...?
Não, não terei mais necessidade de manuscritos.
- Mas, Tomás, tu estás doente. Vou chamar o prior. Precisas
de alguns dias de descanso. Nunca te vi tão pálido ... ou
então.. . aconteceu-te como em Paris quando ...
- Silêncio, Reginaldo. Prometeste-me não falarias até que eu
tenha morrido. Agora não demorará muito.
- Não fales assim, Tomás, esconjuro-te. Agora repousarás,
ficarás bom de novo e terminarás a Summa.
- Não escreverei mais, Reginaldo. Tudo o que escrevi é como
palha ... em confronto com o que vi. Vai, meu filho, preciso
ficar só.
Reginaldo saiu. Não só a serpente tinha desaparecido, mas todo o
paraíso.
Afinal a guerra não é tão tremenda, quando se superou o primeiro
susto que se prova à vista do coração humano; quando se sabe qual a
forma das vísceras, do cérebro e do sangue e aquele a quem pertence
não sabe nada ou, se sofre, com os sofrimentos é sempre possível
fazer as contas: apertam-se os dentes, respira-se devagar,
espremem-se as mandíbulas ... ou, melhor ainda, oferecem-se
aqueles sofrimentos como esmola para os pobres do céu: e quando são
insuportáveis, perdem-se os sentidos e tudo se arruma.
Mesmo a prisão não é tão pesada. Não se dispensa de bom grado o
período sucessivo, com todas as esperanças e desilusões.
Mantém-se a força contra os ataques de fora e, deitando-se tem-se
o céu estrelado sôbre a cabeça. Quando, então, se aproxima a
libertação, a alegria torna-se selvagem.
Só uma coisa é terrível e insuportável: o sofrimento da pessoa
amada, a dor que se lhe leva e que não se pode revogar. Fica-se aí
olhando, imóvel e pasmado.
Tais pensamentos acompanhavam constantemente Piers. Seguia-o até o
pequeno posto onde aguardavam os navios do príncipe Eduardo, velejara
com ele até a Espanha e depois à França, e agora acompanhava-o à
Itália; estava na sela com ele e apunhalava-lhe as costas. Quanto
mais se aproximava de Roca-sêca tanto pior sentia-se. E quando
chegou soube que a condessa de San Severino tinha-se transferido para
o castelo de sua sobrinha, Francisca Cecano, respirou aliviado.
Era o tolo e instintivo alívio do condenado à morte que obtém um
adiamento ele vinte e quatro horas.
Piers passou a noite em Roca-sêca, já reconstruída, mas muito
mudada. Dormiu pouco porque parecia-lhe ouvir a voz dela, o alaúde
de Rinaldo, o frufru da velha condessa, a voz profunda de Landolfo
que pedia bebida ... estava lá também soror Maria Getsêmani,
com o véu preto e o rostinho branco. Dos vivos, porém, só ela
... ela, a quem devia levar a notícia mais dolorosa, mais grave do
que o anúncio da morte dos irmãos ...
Foi uma noite tremenda, aquela, entre as sombras de Roca-sêca,
que se torciam de dor. O sol quente de fevereiro encontrou-o
completamente desperto. "Hoje, então, irrevogávelmente". Em
poucas horas podia estar em Magença.
Robin chegou com os cavalos e, dando o bom dia, nem levantou os
olho,. "Grisalho" pensou Piers. "Tornou-se grisalho e
velho". E sumiu-lhe.
Chegaram a Magença à tarde. Servos em libré ajudaram-nos a
descer elo cavalo e confirmaram que a condessa de San Severino estava
de visita à patroa. Piers foi logo anunciado às senhoras.
Pouco depois. apareceu Francisca Cecano, uma jovem tímida e
preocupada, de sorriso inquieto. Trocadas as primeiras cortesias, os
visitantes foram introduzidos no átrio, rico e espaçoso, depois numa
sala onde clamas e cavaleiros agrupados se inclinaram. Francisca
Cecano caminhava ao lado de Piers com seu sorriso triste, já que
tinha compreendido tudo. Vira que Piers e Robin tinham voltado
... sós.
Noutra sala encontraram uma pequena dama vestida de preto. Francisca
murmurou-lhe algumas palavras e saiu, enquanto a outra permanecia
imóvel.
Piers sentiu que o bater do seu coração enchia a sala.
Aproximou-se lentamente: foi a empresa mais corajosa de toda a sua
vida. Depois pôs-se de joelhos:
- Senhora, não pude manter a promessa.
Nenhuma resposta.
Com um esforço prodigioso ele conseguiu levantar-se e reviu o rosto
da mulher à qual pertencia: era o mais belo que nunca, no entanto
não o de antes: pálido, os olhos desproporcionadamente grandes e a
expressão ... incompreensível. Pena, compaixão, ânsia ...
e uma dor tão cruciante, que ele sentiu faltarem-lhe as forças.
Mas havia mais: no seu âmago escondia-se um solene mistério que ele
não devia penetrar. Ela estava ali, mas ao mesmo tempo muito longe,
para lá de terras e mares.
- Querida patroa, não quereis perdoar-me? Fiz tudo que pude
...
Os pálidos lábios moveram-se e ele ouviu sua voz:
- Os santos vos abençoem! Não tendes culpa alguma.
Absolvido, absolvido! Mas, diante da sombra espectral de Teodora,
a alegria era impossível.
- Senhora, não pode ter uma morte mais bela que a de Rogério de
San Severino.
- Morreu ... com coragem?
- Nunca vi ato tão corajoso. Sem armas atacou um infiel que havia
blasfemado contra a Santa Virgem e o derrubou. Mas o infiel estava
armado ... e eu cheguei um instante atrasado.
- Morreu com coragem - repetiu Teodora com voz apagada. No seu
rosto reapareceu aquela expressão estranha, inexplicável. Parecia
tê-lo previsto e que fosse justamente o pior.
Ele prosseguiu:
- Pouco depois fomos libertados pelo príncipe Eduardo
Plantageneto, meu senhor. Vosso marido teve a sepultura de um
cristão. Setecentos valentes rezaram no seu túmulo marcado com uma
cruz. Depois cobrimos de areia o túmulo e a cruz para que o inimigo
não a achasse e profanasse. O capelão do príncipe Eduardo
explicou-nos que é justo esconder sob a areia a cruz de um cavaleiro
cristão: também a cruz de Nosso Senhor ficou trezentos anos sob a
areia, até que Santa Helena a descobriu.
Ela abaixou a cabeça. Piers não temia nada no mundo, exceto suas
lágrimas: no entanto, não a ver chorar parecia-lhe mais sinal.
Soubesse, ao menos, o que ela pensava, pudesse ajudá-la!
Finalmente ela falou com voz tênue:
- Lorde Rudde ... Piers ... tenho que dizer-vos uma coisa que
talvez vos faça sofrer. E, como sei o que seja a dor, quisera que
este cálice coubesse a mim. A minha dor é igual à vossa, podeis
crer.
Ele criou coragem:
- Que é, minha senhora?
- Piers, raramente uma mulher teve tantas razões para ser grata a
alguém quantas eu tenho em relação a vós. Tudo o que um homem de
honra, corajoso e fiel podia fazer, vós o fizestes, e poucos
poderiam imitar-vos ... talvez ninguém.
- Minha senhora ...
- Um dia dissestes-me que me amáveis. Embora fosse casada com
outro homem, era uma honra, porque o vosso amor nada tinha que pudesse
desgostar a Deus. Vossa lembrança e vossa imagem ficarão para
sempre gravadas em meu coração, mas não devemos rever-nos nunca
mais.
Ele levantou-se trêmulo:
- Por que, minha senhora, por quê?
- A esta pergunta, caríssimo amigo, não posso responder.
- Porque vos desiludi ...
- Não, não vos digo, não me desiludistes. E porque... sou eu
que ... Santa Mãe de Deus, ajudai-me!
Ele olhava-a embaraçado. Depois, de repente voltaram a si ambos,
porque do pátio chegava um patear cavo e repetido.
- Alguém bate à porta - murmurou Teodora, e se aproximou
instintivamente da janela. - L Tomás! - exclamou. - Chegou
Tomás! Piers alcançou-a. No pátio entravam dois homens montados
em ululas. O maior dos dois, que envergavam o hábito da Ordem
dominicana, estava derreado sôbre a sela e três criados
esforçavam-se para descê-lo, com grande dificuldade, como se
tratasse de remover uma grande estátua de cima do pedestal. Era mesmo
Tomás: embora estivesse de olhos fechados e parecesse muito doente,
Piers reconheceu-o e partiu correndo, seguido por Teodora.
Chegaram ao átrio justamente quando entravam com Tomás. O outro
frade era Reginaldo de Piperno. Também a tímida Francisca chegou
apressada, tomando providências com surpreendente energia:
- Trazei-o aqui, ao quarto dos hóspedes, não pelas escadas.
Luís, vai chamar o doutor Guido que está na vila. Devagar,
sustentai-lhe a cabeça!
Um minuto depois Tomás estava estendido no divã, e Reginaldo
sentado a seu lado. Piers mandou com um aceno, saírem os servos,
enquanto Teodora abaixava-se aos pés do irmão e olhava aterrada o
rosto exangue do gigante caído.
- Que tem ele? Que aconteceu? - murmurou.
- E uma coisa freqüente - respondeu frei Reginaldo, muito triste.
- Começou no dia de São Nicolau, e piora cada vez mais. Nas
primeiras vezes o ataque durava um quarto ou, no máximo, meia hora.
Desta vez, porém, está durando mais de duas horas. Graças a
Deus encontramos algumas boas pessoas que nos ajudaram a pô-lo, na
sela, de outro modo não poderíamos t- r chegado ao castelo.
- Ouve-nos?
- Não minha nobre dama. Olhai! - E com os dedos levantou
delicadamente a pálpebra direita de Tomás: apareceu apenas o branco
dos olhos.
- Eis aqui o doutor Guido - disse da porta Francisca. O médico
era um homem idoso, de olhar inteligente e maneiras gentis.
- Vosso servo - disse com um leve aceno dirigindo aos presentes. -
Ser-vos-ia muito grato se por um instante pudésseis deixar-me a
sós com o paciente.
Todos saíram; inclusive Reginaldo, que se afastava de má vontade.
- Que terá ele? - repetiu Teodora alarmada.
Reginaldo balançou a cabeça e tentou falar, mas não o conseguiu.
- Sentai-vos, frei Reginaldo, - convidou Piers trazendo uma
cadeira... apenas a tempo. -Poderiam trazer-me um copo de vinho?
- Eis o vinho - respondeu Francisca. - Bebei, frei Reginaldo
... não, mais um pouco ... todo. Senti-vos melhor?
- Obrigado, obrigado - dizia o frade, encabulado porque todos
olhavam para ele. - Obrigado ... estou bem ... Como é forte
este vinho.
- Podeis falar? - perguntou Teodora agitada.
- Certamente, mas eu mesmo pouco sei. Como disse, a coisa começou
a 6 de dezembro, festa de São Nicolau, embora aquele não fosse
bem o início ... Condessa ... lembrais o dia em que foste
visitá-lo em Paris e tivestes de esperar ...
- Sim. Pensei que estivesse doente. Estáveis tão
preocupado...
- Isso mesmo. E não era a primeira vez, embora antes não fosse
bem como naquele dia ... minhas palavras são bem atrapalhadas,
penso, mas não é fácil falar ... destas coisas.
- De que coisas? - perguntou Teodora impaciente. - Se alguém
adoece no convento, não é tratado? Pensava ...
- Certamente, quando se trata de doença ... mas isso não é
... bem não ouso dizer mais, ele não me perdoaria. Tive de
prometer, ma, estou tão preocupado! Estava trabalhando na última
parte do mais importante de seus livros, quando, um dia, voltando da
missa, aparece» mudado . . . quase como agora, mas consciente.
Disse que depois do que tinha visto não escreveria mais nem uma
palavra. E assim fez ... ele!
- Depois do que tinha visto!... - repetiu Teodora pensativa.
- Não escreveu mais nada - suspirou frei Reginaldo- A mais
estupenda de suas obras fica incompleta. E pensar que tem a idade em
que, segundo Platão, o homem deveria começar a tornar-se
filósofo) Só quando chegou a carta do santo padre voltei a ter
confiança
- Do santo padre?
- Sim, convidava mestre Tomás ao concílio de Lião. Tomás não
estava em condições de viajar, mas fez questão; assim, nos pusemos
a caminho com autorização para cavalgar... já que, a rigor,
deveríamos ir a pé.
- Não faltava mais nada! - murmurou Piers.
- O convite do santo padre pareceu fazer bom efeito tiro, seguiu
Reginaldo. - Mestre Tomás falava um pouco mais e parecia alegre e
feliz. Como o prior não permitia que ele saísse do convento
antes de nos pormos em viagem, o rei da Sicília veio
visitar-nos.
Teodora franziu o cenho:
- Que quereria ele?
- Eu sei porque estava presente. Disse ter vindo desejar-nos boa
viagem com a esperança que mestre Tomás falasse bem dele e do seu
governo ao santo padre.
- Compreendo. E meu irmão?
Um sorriso passou rápido pelo rosto preocupado de frei Reginaldo:
- Mestre Tomás assegurou-lhe que diria a verdade.
Todos sorriram ... mas nisso apareceu o doutor Guido:
- Voltou a si.
- Quê foi? - perguntou logo Teodora.
O médico olhou para Reginaldo e respondeu com circunspecção:
- E difícil dizê-lo, nobre dama. Não temos nenhum sintoma que
possa definir uma doença verdadeira e própria.. . No entanto é
uma doença. ainda que não lhe conhecemos o nome.
- Não estará envenenado? - perguntou Teodora com um fio de voz.
Todos os presentes, menos o médico, compreenderam a alusão: o rei
da Sicília era capaz de tudo, quando o trono lhe parecia em perigo.
- Não, condessa, não é envenenamento.
- Que será, então?
Novamente o médico olhou para Reginaldo:
- Suponho que não seja a primeira vez. Não é, padre?
- Não é a primeira vez.
- Já o imaginava. Antes de retomar consciência pronunciou poucas
palavras, mas suficientes para dar-me a compreender que estamos diante
de um caso, de certo modo, contrário ao envenenamento.
- Que quereis dizer, doutor Guido?
- Nós consideramos envenenado o homem no qual penetrou uma
substância estranha, cuja atividade é danosa. Aqui parece
tratar-se do contrário.
- Falais por enigmas, doutor, - protestou Francisca Cecano. Que
vos impede falar de modo simples e claro?
- E o que está procurando fazer! - exclamou Frei Reginaldo.
Doutor Guido fez-lhe um aceno:
- Procurarei explicar-me melhor. No mundo físico "veneno" é uma
expressão para indicar determinada quantidade, uma dose. Uma
substância em pequena quantidade pode exercer ação benéfica,
enquanto uma quantidade excessiva tem conseqüências danosas e
venenosas.
- Que tem a ver isso tudo com meu irmão Tomás? - perguntou
Teodora.
- No mundo do espírito e da alma a coisa é diversa - prosseguiu o
médico calmamente. -Aqui não se trata de quantidade, mas de
qualidade. Uma má paixão pode ser um veneno espiritual; mas, aqui
está a dificuldade: como chamar o contrário? Só uma boa paixão,
a forma mais alta das paixões, o amor de Deus ...
- Soli Deo - murmurou frei Reginaldo.
- Mas ele está enfermo, - exclamou Teodora - está fraco...
desmaiou. Como pode ser isso efeito ...?
- Pode ser muito bem -disse o médico. - Tem-se sabido de almas
eleitas cujo amor a Deus era tão grande e mais ardente que a pior das
febres. Quanto maior é o amor, tanto maior o sofrimento, e tanto
maior a aflição. E quando Deus, o amado, revela-se a quem o
ama, a alma deste só tem um fito: unir-se o quanto antes ao amado.
Tal obra só vive para morrer.
- E ele ... morrerá? - perguntou Teodora empalidecendo
assustadoramente.
- Não sei, condessa ... mas se morrer ... morrerá de amor.
Seguiu-se uma pausa, porque todos tinham compreendido a grandiosa
significação daquelas palavras O primeiro a falar foi frei
Reginaldo:
- Há alguma esperança que mestre Tomás se refaça e possa
prosseguir a viagem para Lião?
- Em tais casos o médico não pode julgar com segurança - respondeu
o doutor Guido. - Nada é possível.
- Posso ir vê-lo?'- perguntou Teodora.
- De certo, condessa. Do ponto de vista médico ele está
perfeitamente normal.
Deixaram-na ir sozinha. Quando ela entrou, Tomás estava sentado
no leito e lhe sorriu:
- Querida pequena, sinto ter-te assustado. E uma coisa de nada.
Como vês, estou muito bem. Preciso pedir desculpas também a
Francisca. Onde está ela?
Quando Teodora esteve sentada na beira da cama, ele viu seus olhos e
compreendeu que ela sabia. Então pôs-se a brincar com a franja do
travesseiro de seda, fitando o teto.
- Tomás ... querido Tomás, sei que sou egoísta, sei que não
deveria perturbar-te, especialmente neste instante. Mas não posso
deixar de te fazer uma pergunta que talvez possa resolver tudo.
- Fala, querida.
- Parecer-te-á uma pergunta tola. Como ... como alguém se
torna santo?
- Basta querer.
Ela olhou-o incrédula.
-. Querer? Só isso?
- E tudo o que nós podemos fazer. Deus faz o resto. Ama ao
Senhor, mas não esquece que o amor vem da vontade: amar é querer.
"Que se pode fazer quando a vontade está quebrada?" pensou
amargamente Teodora. E perguntou:
- Qual é a coisa mais desejável na vida?
Ele respondeu tranqüilo:
- Uma boa morte.
Talvez tivesse razão. Certamente tinha razão. Ela tinha-a
desejado mais de uma vez, quando os pensamentos rondavam-lhe o
coração. Mas agora compreendia que não poderia seguir a Tomás,
compreendia que ele estava muito longe, no cume de um monte tão alto
em que ela não podia respirar. "Perdi meu direito à felicidade",
pensava. "Perdi-o quando, recusando olhar de frente o meu amor,
puni-me confrontando tudo que Rogério fazia com aquilo que o outro
teria feito, simples cavaleiro e no entanto ... a medida de todas as
coisas. E eu impus a sua imagem ao pobre Rogério que, por meu
amor, atirou-se ao perigo e morreu. Mea culpa..."
- Cara Teodora, aqui em baixo não temos direito à felicidade, e
nem mesmo na vida eterna: ela é um livre dom de Deus.
- Como compreendestes, Tomás ...?
- E um livre dom de Deus, mas ele é muito generoso ...
O seu rosto grande e imponente estava iluminado por um quente sorriso;
nele resplandecia a alegria do bem e a luz da inteligência. Depois os
grandes olhos pretos fecharam-se e a cabeça caiu nos travesseiros.
Por um momento Teodora teve medo, mas a sua respiração era regular
e enérgica. Dormia.
No dia seguinte Tomás passou melhor, conversou com Francisca
Cecano e não pareceu nada surpreso quando Piers entrou no quarto.
- Frei Pedro! - Chamou. - Isto é ... lorde Rudde, agora,
não é?
- Peço-vos-que me chamais ainda frei Pedro. Nunca tive um nome
mais honorífico que este.
Tomás pediu informações da cruzada e da morte do rei Luís, depois
perguntou:
- Estavas presente, não é, meu filho, quando Rogério morreu?
Disse-mo Francisca.
- Sim.
O santo e o cavaleiro olharam-se.
- Disse-te já uma vez - falou Tomás - que não há triunfo nem
derrota quando alguém faz o que deve. Mais uma vez cumpriste tua
missão.
Piers suspirou:
- Padre Tomás, o médico diz que dentro de alguns dias estareis em
condições de prosseguir viagem. Posso ir convosco? Lião está no
caminho à Inglaterra. Seguimos, portanto, o mesmo itinerário, e
...
Interrompeu-se, mas Tomás parecia não ter ouvido, porque disse de
repente:
- Desta vez, frei Pedro, não teremos à nossa disposição a
melhor carruagem do príncipe Eduardo. - O seu sorriso era
irresistivelmente contagioso,
- Falcão e Gavião - riu Piers. - Sabeis que em certo momento
mestre Alberto pensou seriamente que eu tivesse roubado a carruagem e
os cavalos?
Quando saiu do quarto ficou algum tempo pensativo; enquanto seus
pensamentos cruzavam-se e se confundiam, os lábios sorriam ainda.
"Somente aí dentro esplende o sol" pensou, e meneou ,a cabeça ao
estranho pensamento, enquanto o sorriso esmorecia.
Procurou Teodora para comunicar-lhe que acompanharia Tomás a
Lião, e ela ouviu-o de olhos baixos.
- Portanto, se quiserdes permitir-me ficar aqui até que mestre
Tomás esteja em condições de prosseguir ...
- Não é a mim que deveis pedir. Essa é a casa de Francisca.
Piers replicou com energia:
- Creio que não ficaria nem no paraíso, se percebesse que isso vos
desgostaria.
Ela acrescentou amargamente:
- Temo que no paraíso serei menos ouvida que em Meganha. E logo
prosseguiu: - Somos dois tolos. Esqueci minhas palavras.
Sentir-me-ei muito tranqüila sabendo-vos ao lado de Tomás.
Inclinando-se, Piers afastou-se em silêncio. O resto do dia foi
pesado como chumbo.
Na manhã seguinte Tomás melhorou ainda um pouco, embora o doutor
Guido não estivesse muito satisfeito. Nos dois dias sucessivos a
melhoria acentuou-se, de modo que Tomás resolveu prosseguir a
viagem. Enquanto atravessavam a ponte levadiça, a esplêndida manhã
prometia um lindo dia: Tomás e Reginaldo cavalgavam as mulas,
seguidos por Piers e Robin e enfim por Teodora, Francisca e o
doutor; esses últimos tinham resolvido acompanhar os viajantes por um
trecho do caminho. Passaram pela vila de Campânia, onde os homens
tiravam o chapéu e as mulheres levantavam os meninos para que os frades
os abençoassem. O cheiro de lenha queimada atravessava o ar fresco.
Apareceram depois os prados e as colinas cobertas de oliveiras
verde-azuladas. A certa distância, atrás de um tufo de pinheiros
erguia-se a torre quadrangular de um mosteiro.
- A abadia de Fossanova - explicou Francisca. - Foi construída
sôbre as ruínas de Forum Appii, onde havia cristãos desde os
tempos de Calígula. Uma deputação de Forum Appii deu as
boas-vindas a São Paulo quando veio à Itália.
- A que Ordem pertence o mosteiro? - perguntou Piers, feliz e ao
mesmo tempo triste por ter sido interrompido o longo silêncio.
- Aos cistercienses.
De repente frei Reginaldo deu um grito e, ao mesmo tempo, todos
viram Tomás vacilar na sela: Piers esporeou o cavalo e chegou a
tempo de impedir que ele caísse. Teodora chegou um segundo depois:
- Tomás, querido Tomás ... que tens?
O que tinha era até muito claro. O rosto estava terroso, os olhos
cavados. Não podia falar. Doutor Guido desceu do cavalo e um olhar
bastou-lhe para decidir
- A viagem terminou.
- Podemos levá-lo de novo a Magença? - perguntou Francisca em
voz baixa.
- Espero - respondeu o médico.
Nisso Tomás levantou ligeiramente uma mão. Compreenderam que
tentava falar e aguardaram ansiosamente. De fato, conseguiu articular
algumas palavras que, apesar de tudo, eram claras e compreensíveis:
- Se Nosso Senhor vem buscar-me... é melhor que... me
encontre num convento.
- Frei Reginaldo - observou Piers - será bom irdes à abadia
informar o abade. Robin tomará vosso lugar ao lado de mestre
Tomás. Nós seguiremos lentamente.
Reginaldo aceitou a sugestão; daí à abadia eram, no máximo, dez
minutos de cavalgada ... mesmo numa mula.
Partiu a pequena comitiva: Tomás entre Piers e Robin, enquanto o
médico segurava pela rédea o animal do paciente. Teodora e
Francisca seguiam logo atrás. Ninguém falava, o golpe fora
improviso. A própria natureza parecia reter a respiração.
Ouvia-se apenas o patear dos animais. Para alcançarem o imenso
edifício branco da abadia foi preciso quase meia hora. Era uma
construção que incutia respeito, embora envolvido, como costumam ser
os conventos dos cistercienses, numa atmosfera de sublime serenidade.
Acharam o portão encarcarado e um grupo de monges de burel branco que
aguardavam.
Quando o médico parou os animais, Tomás murmurou:
- Teodora ... a muitos ... levarei ... o teu amoroso
cumprimento... a papai e mamãe... a Rinaldo e Landolfo... a
Marta ...
- Tomás, Tomás! - exclamou ela tomando-lhe a mão direita que
estava gelada.
- Deus te abençoe! - E, tomando a direita dela, pô-la na mão
de Piers, dizendo com voz límpida e quase normal: - A ele ...
confio-te.
Eles se olharam como se fosse um sonho, como dois meninos assustados e
trêmulos, incapazes de formular um pensamento. Quando suas mãos se
desprenderam, os cistercienses estavam tirando Tomás da mula para
deitá-lo numa padiola onde estava estendido um cobertor de lã.
Piers viu Tomás dar a bênção a Francisca, depois ao médico e a
Robin. Quatro monges levantaram a padiola e entraram pelo portão,
que se fechou atrás deles.
Todos ficaram por algum tempo em silêncio, depois, como urna só
vontade, voltaram-se e se dirigiram para Magença.
Cada dia vinham juntos a Fossanova e assim fizeram por semanas a fio.
Pelo menos uma vez por dia o doutor Guido ia a Magença com notícias
sôbre a saúde de Tomás, que quase sempre estava consciente.
O médico estava muito comovido pelo que tinha visto.
- São dignos de tê-lo sob o seu teto. Deram-lhe a cela do
abade, e tudo que entra naquela cela só é tocado por mãos
consagradas. Até a lenha para a lareira é apanhada por monges
sacerdotes, não pelos leigos. Ele percebeu-o e protestou, mas os
monges sorriam e continuaram como antes. Querem-lhe bem, como se
tivesse descido do céu para ficar com eles, em vez de estar para
subir.
Ninguém ousava perguntar ao médico se ainda havia um fio cie
esperança.
Quando Teodora cavalgava para Fossanova, Piers seguia-a à
distância e não dizia palavra. Em Magença, em companhia dos
outros, falavam com rígida cortesia, e quando estavam a sós nem
tinha coragem de falar. Como muitas vezes nos homens cuja vida é a
imitação de Cristo que leva à santidade, havia uma analogia, ou
parecia houvesse, entre as palavras de Tomás e as de Jesus. Aquele
"a ele te confio" parecia as palavras com que Cristo, na cruz,
confiara a mãe ao discípulo predileto. Era um encargo sagrado que
ultrapassava as normais relações humanas. Certamente as palavras de
Cristo significavam muito mais: eram a dádiva que ele deixava à
humanidade: João representava todos os homens e a todos os homens o
Redentor deixava o mais precioso dos dons: sua Mãe, que assim
tornava-se também a Mãe deles todos. Piers e Teodora pensavam
nisso, mas sem o dizer.
Teodora não podia entrar na abadia porque a nenhuma mulher é
permitido pôr os pés num mosteiro de cistercienses, nem a Piers
ocorreu pedir um privilégio do qual a irmã de Tomás não podia
participar.
Paravam os cavalos diante do grande portão branco e aguardavam até
que um dos monges viesse trazer notícias. Tomás sabia que vinham
cada dia, e ainda quando não mandava nenhum recado, eles sentiam sua
presença paternal como se nenhum muro os dividisse.
E não estavam sós. A notícia tinha-se propagado rapidamente de
modo que, desde os primeiros dias chegavam camponeses de Campânia e
de outras localidades. Logo vieram também de Nápoles, Roma,
Viterbo, Orviedo, Cremona, Florença e até de Milão.
Chegaram o prior do convento de Nápoles e muitos nobres de toda parte
da Itália, e mesmo que seu parentesco com Tomás fosse apenas de
terceiro ou quarto grau. Faltava apenas Adelásia, que estava na
Espanha casada há alguns anos.
Todas vezes que chegavam a Fossanova, Piers e Teodora encontravam
pequenos grupos e visitantes individuais a espera diante do portão.
Só uma vez, enquanto voltavam para Magença e estavam quase chegando
ao castelo, Teodora voltou-se improvisamente e disse a Piers com voz
trêmula:
- Nunca me dissestes que por Rogério fostes cruelmente açoitado.
Ele enrubesceu:
- Robin não estava autorizado a revela-lo. Depois não é
verdade. Fomos açoitados porque eu tinha agarrado pela garganta o
mulah, o sacerdote infiel, e Robin correu em meu socorro. Eu
agredi-o porque tinha blasfemado contra a Virgem.
- Eu sei, Piers, mas ele blasfemou porque tentáveis impedir que
Rogério cometesse uma coisa horrível.
- Em nenhum caso tê-la-ia cometido, tão fraco como estava depois
do que havia sofrido. Darei uma lição a Robin. Como se permitiu
...?
- Não, não, por caridade. Foi culpa minha. Fui eu a fazê-lo
falar porque queria saber mais. Então, ele também apanhou de
chicote: e não me disse. Rogo-vos não o repreender. Fazei-o por
amor meu!
Sem aguardar resposta, esporeou o cavalo e entrou pela ponte levadiça
a galope.
Em Fossanova continuaram a rezar pela saúde de Tomás. Reginaldo
não se dava paz à idéia de perder o amigo que estava sob sua
proteção desde quando recebera as ordens sacras. Quando estava a
sós com Tomás, exprimia com voz entrecortada a esperança de que
alcançariam Lião para grande glória da Ordem. Tomás falava-lhe
como a uma criança. Deus concedia-lhe aquilo que sempre implorava:
de ir embora deste mundo assim como era.
- Deus concedeu-me a sua luz e a sua graça antes dos outros,
encurtando o período do meu exílio e permitindo-me ir ter com ele
mais rapidamente.
E quando Reginaldo fixava-o sacudindo a cabeça, Tomás
acrescentava:
- Na sua imensa bondade, ele mesmo comunicou-mo. - Depois
calaram-se os dois. O sol e o vento de março traziam à cela o suave
perfume da erva fresca. Da capela chegava o salmodiar dos monges.
- Se me queres bem, - dizia Tomás docemente - alegra-te comigo
porque a minha consolação é perfeita.
No mesmo dia quatro cistercienses vieram pedir-lhe uma coisa:
desse-lhes o comentário à mais sublime das escrituras místicas,
Cântico dos Cânticos do Antigo Testamento.
Ele enrugou a fronte:
- Deixei de escrever.
Mas eles não desistiram. Não era preciso escrever;; files
tomariam nota de suas observações; um dos mais jovens ousou
lembrar-lhe que também São Bernardo tinha trabalhado até à
última hora.
Tomás sorriu:
- Dai-me a mente de São Bernardo e eu também o farei.
Mas a idéia tinha lançado raízes. Aquele era um cântico de amor,
aliás o cântico do amor. Por isso ele concordou, para grande
gáudio dos monges. Aquela nova vontade de trabalhar podia ser
indício de cura. Quem sabe se o trabalho não o curaria. Assim ele
iniciou o comentário ao maior e mais belo de todos os cânticos do
amor, que exalta, profético, o liame de Cristo com a sua esposa, a
Igreja, no céu e na terra. Quando adormecia, os frades se
retiravam na ponta dos pés para voltar na manhã seguinte.
Quando chegou ao penúltimo capítulo e leu as palavras: "Vem, meu
amigo, saiamos pelos campos..." o livro caiu-lhe das mãos e
desmaiou. Mandaram chamar o doutor Guido, e depois de cerca de uma
hora Tomás retomou consciência.
- Reginaldo, - disse com voz clara - os pecados de toda a minha
vida ...
Compreenderam que desejava confessar-se e o deixaram a sós com o
confrade. Pouco depois o frade saiu com o rosto alagado de lágrimas.
- Os pecados de um menino de cinco anos - murmurou. Meu Deus, em
toda a sua vida, os pecados de um menino ...
Depois viu diante de si o abade com o viático e, atrás dele, em
fila dupla, todos os cistercienses. Ajoelhou e deixou-os entrar na
cela. Do interior ouvia-se a voz forte e alegre de Tomás:
- Tu és Cristo, o Rei da glória eterna.
No dia 6 de março, diante do portão os grupos eram mais numerosos
que nunca. Espalhara-se a notícia que Tomás estava morrendo e
tinha recebido a Extrema-unção: mas o dia passou e nada aconteceu.
Quando anoiteceu, o povo começou a dispersar-se.
- Eu fico - disse Teodora a Francisca. - Tu podes voltar, eu
preciso ficar.
Francisca demorou-se ainda algum tempo, depois encaminhou-se para o
castelo. Era uma noite fechada, com pouquíssimas estrêlas. Aqui e
ali encontrava-se alguém, um velho pastor, uma ou outra moça.
Incapaz de rezar e de pensar, Teodora sentou-se sôbre a erva. Um
pouco distante, Piers apoiava-se na espada: adiante os cavalos
pastavam serenamente.
Nas trevas, o mosteiro parecia enorme, quase precisasse ter-se
ampliado para conter a alma do titã moribundo. Piers pensava de novo
nas palavras do abade que, no dia anterior tinha saído especialmente
para cumprimentar a irmã de Tomás:
- A sua maior obra é ter feito da filosofia uma arma a serviço de
Cristo. Não só conseguiu a síntese entre ciência aristotélica e
ciência cristã, mas fez muito mais. Deu à própria filosofia o
sacramento do Espírito Santo.
Filósofo, teólogo, metafísico, doutor ... desde que, em vista
disso tudo, os homens esquecessem o homem, amável, bom e
maravilhoso! ...
Um sino argentino anunciou a meia-noite. Dia 7 de março: o dia em
que tantos anos antes Piers fora ter com ele, em Paris, para
anunciar-lhe a morte de seus irmãos. Fora para consolá-lo e saíra
consolado.
De repente, outro sino começou a tocar, e outro ainda, depois os
maiores, que se ouviam raramente. A noite estava cheia de sons do
bronze.
Teodora levantou-se. persignaram-se e rezaram
Piers deu um passo. Ambos compreenderam, até que os sinos se
calaram. Então Piers foi buscar os cavalos. Ele e Teodora
montaram, taciturnos e solenes. Cavalgaram em silêncio, mas num
certo ponto ela reteve o cavalo até que Piers se pôs a seu lado.
Estendeu-lhe a mão, e quando ele a apertou na sua, apoiou a cabeça
cansada no ombro dele.
Ele disse com voz tênue:
- Agora sei ...
- O quê?
- Que começou sua obra no céu.
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