CAPÍTULO II

- Repeti minhas palavras! - ordenou o mulah. - Allah il Allah, ve Mohammed rassul Allah!

A maior parte dos duzentos prisioneiros berrou alguma coisa que bem podia ser, para quem não escutasse atentamente, a fórmula sagrada do Islã, tanto mais que as primeiras três palavras eram bem compreensíveis.

Há muito que os prisioneiros estavam de acordo nesse ponto: não era pecado, para um cristão, confirmar que Deus é Deus. Mas confirmar que Maomé era o profeta de Deus já era outra coisa, e assim resmungavam sons inarticulados até chegarem à palavra Alá, que pronunciavam em voz bem alta.

Em Túnis, onde tinham passado os dois primeiros anos de prisão, aquela bravura acústica não lhes teria servido muito. Os eruditos sacerdotes do sultão de Túnis não se deixariam enganar com tanta facilidade. Mas lá longe ninguém pretendera que orassem assim. Na capital os escravos eram escravos e, orassem ao Deus cristão ou a um fetiche, pouco importava ao patrão.

Mas El Mohar não era Túnis. Era um minúsculo oásis com alguns milhares de palmeiras, a fonte e o casr, isto é, a fortaleza, que os prisioneiros estavam construindo em torno da nascente.

Setenta árabes da guarnição, sob as ordens do cádi Ornar ben Tavil, vigiavam-nos e dormiam num pequeno número de cabanas de barro à espera que se terminasse a fortaleza. Naturalmente, os prisioneiros dormiam ao relento, e passavam a noite acorrentados entre si. Cinqüenta deles tinham pago com a vida tal tratamento, mas os restantes bastavam para terminar a fortaleza.

Não havia pressa. Os jauros francos tinham sofrido tal derrota que passaria mais de um ano antes que pudessem voltar ao ataque: dissera-o o cádi, que conhecia bem os francos porque seu avô tinha servido o grande Saladino, e ele próprio combatera perto de El Dimiat (que os francos chamavam Damiette) contra o mesmo melek francês que agora tinha sido derrotado diante de Túnis.

De porte enorme aqueles jauros, mas delicados como mulheres. Alá investia-os com o sopro ardente do deserto e eles murchavam como flores. Até o rei franco não agüentara e acabara morrendo, e os francos asseveravam que se havia tornado um marabu, um santo.

O mulah era certamente um santo homem, mas era também um pouco louco ao pretender ensinar a verdade do Islã àqueles cães incircuncisos: era como ensina-la aos camelos ou às cabras. De fato, a instrução era tarefa dele e nada é impossível a Alá, embora o grande Saladino tivesse dito que o cristão disposto a tornar-se muçulmano é um mau cristão, e de um mau cristão não se pode esperar se torne um bom muçulmano.

Observando o mulah naquela faina cotidiana, o cádi Omar ria-se sózinho e mastigava tâmaras: já que os alunos não tinham respondido bem, deviam repetir muitas vezes a fórmula.

- Allah il Allah, va va va va va va va Allah!

- Agora, milorde, descobri com quem se parece - murmurou um prisioneiro compridão. -Estava procurando há muito.. Pois é, certa vez, em Nottingham. vi uma galinha preta muito velha ...

- Cale-se, Robin.

- E tal qual uma galinha com barba ...

- Fique quieto, agora ele te olha ...

- Tomara! - resmungou Robin. - Mas ainda olha para ele.

Piers suspirou. Já duas vezes o velho sacerdote tinha-se aproximado de Rogério convidando-o a pronunciar a fórmula sozinho. Rogério, Deus o abençoe, tinha recusado, mas seus olhos estavam cheios de medo e isso não tinha escapado ao velho. Este não podia recorrer à força, porque o cádi precisava dos seus trabalhadores e não permitia que fossem torturados; podia, porém, induzir o prisioneiro a dar uma resposta que soasse como blasfêmia ou ofensa ao grande sultão de Túnis e, nesse caso, o próprio cádi era obrigado a punir.

Robin tentara distrair a atenção do mulah, mas sem o conseguir. Vendo o velho aproximar-se de Rogério e murmurar alguma coisa, Piers mordeu os lábios. Eram ameaças ou talvez promessas: se um método não servia, recorria-se a outro. Desde que o mulah começara a se empenhar, pelo menos cinco ou seis prisioneiros tinham abraçado o Islã. Em primeiro lugar deviam "abjurar os erros do passado, a adoração do homem Jesus e os três deuses em lugar de um", depois deviam recitar solenemente o credo da nova religião e a primeira surata, isto é, o primeiro capítulo do Alcorão. Enfim sujeitavam-se à circuncisão, obtendo com isso o direito de usar o turbante e deixando de ser escravos, pois que nenhum "verdadeiro crente" podia ser escravo. Depois eram enviados a Túnis ou ficavam ali mesmo vigiando os outros. Deles podia-se fiar tranqüilamente, já que ao desprezo dos prisioneiros cristãos opunham o pior ódio que haja, o ódio do mesquinho que se sabe culpado.

Piers via como Rogério estava cansado e esgotado: uma semana antes tivera um acesso de desespero, coisa bastante freqüente em El Mohar, mas sempre perigosa. Era noite e, felizmente, dormiam mais ou menos próximos, separados apenas por dois homens, de modo que Piers pudera falar-lhe e acalma-lo, como nas outras vezes. Mas a resistência de Rogério estava muito abalada e o velho mulah o sabia.

- Avançou um passo - murmurou Robin.

- Pela Santa Virgem, - gritou Piers -. força, Rogério!

O mulah virou-se despedindo chamas dos olhos:

- Quem te permitiu, jauro, falar? - servia-se da "língua franca" e Piers respondeu-lhe do mesmo modo.

- Envergonha-te, mulah, - exclamou. - Dir-se-á que só sabes conquistar à tua fé apenas homens meio mortos de cansaço e privações. Manda dar a ele dupla ração e trabalhos leves durante um mês, depois repete a tua pergunta e vais ver o que te responde.

- Cão, filho de um cão - explodiu o mulah. - Deves ter nascido de uma meretriz e de um escravo de galé.

- O bom homem não tem lógico - murmurou Robin entre os dentes. - Só se pode ser ou uma ou outra coisa.

Piers aprovou:

- Quando duas teses se contradizem, ou uma ou outra é falsa, ou são falsas ambas, mas não é possível que ambas sejam justas. Não fora à toa que haviam sido frades leigos do convento de São Tiago. - Com impropérios ele não me convence.

O mulah, porém, não estava disposto a cedera

- Em nome de quem ouvi jurar ainda agora? - perguntou em voz muito alta. - Não se trata de uma mulher? Todos sabem que os homens do Franquistão tornaram-se mulheres desde que em suas práticas idólatras chegaram ao ponto de adorar uma mulher ...

- Milorde, é uma cilada, cuidado, ele quer apenas...

- . . e inventar toda sorte de mentiras em relação à sua pureza ...

- Acabemos com isso! - disse Piers com voz estranhamente calma adiantando-se, e num instante seus dedos apertavam o pescoço rugoso do velho mulah. Meia dúzia de árabes tentaram interpor-se, mas Robin foi-lhes por cima como um touro furioso e, tendo abatido um com um formidável soco por estar vibrando um golpe de punhal no amo, aceitou a luta com os outros. Não podia, porém, durar muito: dois minutos depois o mulah estava livre, Piers e Robin acorrentados, e trinta flechas ameaçavam o prisioneiro que tivesse a imprudência de intervir.

O cádi avançou:

- O chicote para estes dois - declarou aborrecido. - Trinta golpes para cada um. Vós, Kamil e Achmed, executai a sentença. Mulah, terminastes com os outros?

Esfregando o pescoço, o sacerdote voltou a tentar convencer Rogério, o qual, porém, estava bem mudado. Depois de ter levantado a mão um gesto de orgulhoso mal sucedido, voltou entre os companheiros.

- Muito bem! - gritou Piers. - Se tivesse comportado assim Adão no paraíso terrestre!

Robin pôs-se a rir, enquanto o cádi ordenava:

- A este cinco golpes a mais - mas acrescentava em voz baixa: - Cuidai de não os tornar incapazes de trabalhar.

Depois começou-se. O cádi fez assistir à punição os outros prisioneiros, pois que trinta e cinco chicotadas não faziam perder muito tempo e eram sempre um exemplo.

- Tolo, - disse Piers - quem mandou que te metesses na minha discussão com o sacerdote?

Como resposta Robin deu um grunhido.

- Sinto ter-te envolvido neste negócio - continuou Piers; nisso o chicote golpeou-o sibilando: era um chicote de pele de rinoceronte, e ele apertou os dentes.

- Uma - contou o cádi. - E uma duas aludo-. Alguém acabará mal - resmungou Robin. - Sabeis a quem

- Sei. Não é possível dizer o que ele disse e continuar vivendo. Encontraremos um meio.

- Três - contou o cádi. - E uma quatro.

Quando chegou a dezoito, Piers gritou:

- Nada temei, Rogério. Não tenhais medo. Vamos bem! - e desmaiou. Depois de mais três golpes desmaiou também Robin, fiel ao patrão e sempre pronto a segui-lo.

- Basta assim - sentenciou o cádi. - Bater no camelo morto não adianta. Levai-os à minha cabana. Decidirei mais tarde se devem receber o resto. Abdallah, conduz os prisioneiros ao trabalho. Pela Caaba, perdemos um tempo precioso. Jallah! Avante!

Voltando a si, Piers achou-se num velho divã desbotado. As costas apoiadas em almofadas doíam-lhe terrivelmente e, sem querer, levou a mão a trás e notou que estava enfaixado. Levantando 'os olhos viu o cádi que, diante dele, num outro divã, tomava um refresco. E eis Robin, um Robin preocupado e enfaixado, mas consciente que ... por sua vez, tomava um refresco.

- Seja bendita Nossa Senhora - cumprimentou Robin.

Piers sorriu-lhe e voltou a olhar para o cádi.

- Tive de mandar chicotear-vos - disse este quase rudemente. Tu, que foste comandante entre os jauros, compreenderás. Toma, bebe.

- Não és mau, Omar bem Tavil - disse Piers cortesmente antes de tomar o copo. O refresco estava morno, mas nunca bebida alguma lhe agradara tanto. - Se em tua presença alguém tivesse blasfemado contra o que te é sagrado, tu também lhe terias ido ao pescoço.

- De fato, tenho sangue nas veias - replicou o cádi. - Ambos fizemos o que devíamos fazer. Não terás o resto das chicotadas, nem este teu homem, que te é fiel como o mulah ao Corão. Os mulah acrescentou lentamente - têm vista curta. Conhecem uma só espécie de verdade: a deles.

Ainda não era fácil respirar, porque as marcas das vergastadas doíam ao menor movimento.

- Uma espécie de verdade - repetiu Piers. - Parece-me já ter ouvido falar nisso. Cádi, crês que haja mais que uma verdade?

- Há duas, - ensinou o outro - a verdade da religião e a verdade da filosofia. Se chegam a resultados diversos, provam a variedade do mundo de Alá.

- É o êrro de Averróis - disse Piers.

- Ibn Roschd - confirmou o cádi. - Um sábio tunisino deu-me a conhecer seus escritos. Mas tu estás enganado: Ibn Roschd nunca cometeu êrro, nem seu mestre, o grego ...

-... Aristóteles, o qual, por seu turno, errou algumas vezes também. Averróis, ou seja Ibn Roschd, como tu o chamas, ensinava que há três verdades, não duas: a verdade do filósofo que deve ser demonstrada, a verdade do teólogo que só precisa de argumentos verossímeis, e a verdade do homem comum que crê no que se lhe diz e fica satisfeito com isso.

- Alá! - exclamou o cádi. - Como sabes todas essas coisas? Eu também sabia que havia uma terceira verdade, mas não conseguia lembrar qual fosse. És tu também discípulo de Ibn Roschd? Creio que no Franquistão há mestres da sua sabedoria ...

- Há, realmente, e o maior deles chama-se Sigério de Brabante e ensina em Paris.

- Então é verdade! Seja louvado Alá! Finalmente as nações infiéis começam a buscar a verdadeira sabedoria. Logo perceberão que esta destrói todos os seus falsos dogmas, e que é uma loucura opor-se à difusão da verdadeira fé. Lendo Ibn Roschd pensava: pudessem conhecer todas estas coisas todos os infiéis! Abandonassem seu êrro, e o mundo inteiro estaria reunido sob a bandeira verde do profeta. E tu és discípulo daquele Siger ... como disseste?

- Sigério de Brabante. Não, cádi, não sou seu discípulo. Mas durante anos fui aluno de um mulah cristão que tinha estudado tanto Aristóteles quanto Ibn Roschd, descobrindo os erros de ambos.

- Não é possível!

- Aquele mulah, que tinha escrito um kitab, um livro de ciência chamado Summa contra Gentiles, convidou Sigério de Brabante para um duelo espiritual na escola de filosofia em Paris diante do supremo imane da cidade, o bispo Tempier. '

- E naturalmente foi derrotado.

- Tanto era o poder do seu nome e a fama da sua sabedoria que durante muito tempo Sigério evitou o combate. Mas afinal teve de aceitar o desafio para não ser ridicularizado pelos seus próprios discípulos. Aliás, ele também era um lutador muito temido, e diversos eruditos pensavam que no Franquistão ou mesmo em todo o Ocidente não houvesse ninguém simil a ele.

Os olhos do cádi cintilavam.

- Sei que os eruditos combatem com o cérebro como eu combato com a lança e a cimitarra. Embora não corra sangue, ou pelo menos não em grande quantidade, é uma luta sem quartel. E como acabou?

- O combate teve lugar pouco antes que eu embarcasse com o exército do grande rei. Durou sete horas sem intervalos e Sigério foi derrotado tão decisivamente que o grande imane declarou nula e superada a sua doutrina.

- Pela Caaba! Por todos os califas! Aquele homem não devia conhecer a fundo as doutrinas de Ibn Roschd, senão teria vencido.

- Conhecia-as muito bem. Eu estive presente. Sigério combateu uma boa batalha. Mas não há no mundo ninguém que em questão de cérebro possa medir-se com Tomás de Aquino, que escreveu também outro kitab que destrói a teoria averroísta, especialmente o pensamento da existência de um único intelecto que se manifesta em todos os homens. - Alá é grande! Então também aquele mulah... Tomás, sabia, e tu também.

- Eu recolhi apenas as migalhas caídas de sua mesa - respondeu Piers.

O cádi suspirou:

- É preciso matá-lo logo, aquele mulah Tomás, se queremos que o Islã conquiste inteiramente o Franquistão: porém daria a minha melhor égua para tê-lo aqui e poder interrogá-lo horas seguidas. Estás em condições de caminhar?

- Piers levantou-se, sentindo dores lancinantes.

- Posso caminhar, cádi.

- E o teu homem?

Robin levantou-se sem visível dificuldade.

- Está bem - disse o cádi. - Hoje repousareis e amanhã voltareis ao trabalho. Se me jurardes por tudo que vos é sagrado que não fareis tentativas de fuga, esta noite, deixo-vos sem correntes.

- Juro - exclamou Piers - por tudo que me é mais sagrado que tentarei fugir na primeira ocasião.

O cádi sorriu:

- Pena. Porém, se eu fosse teu prisioneiro, teria dito a mesma coisa. E agora ide e não provoqueis de novo a cólera do mulah.

Naquela noite, estando acorrentados juntos, ficaram muito afastados de Rogério para poderem conversar, mas ele sorriu para Piers e esboçou uma comovente tentativa de persignar-se... sem conseguir porque a corrente era demasiado curta.

- Fica cada vez mais fraco - murmurou Piers.

Robin aprovou:

- Temo que não dure muito.

Piers suspirou:

- Prometi cuidar dele, Robin, prometi ...

- Não fostes vós, milorde, a propor o ataque, nem devíeis intervir.

- Que podia fazer? Rogério já estava na embrulhada.

- Quereis parar de fazer barulho, patifes? - grunhiu um dos vigias. - As costas não vos ardem bastante? - Era um francês, cristão renegado, a quem os prisioneiros, por tácito acordo, nunca respondiam. Piers e Robin calaram-se, torturados pelas dores.

De não muito longe chegavam os ruídos a que já estavam acostumados: a estrídula risada da hiena, que rondava cautelosamente em torno do oásis, o rouco latido dos chacais, o patear dos cavalos sob os compridos telheiros. Os cavalos eram muito preciosos para serem deixados expostos aos perigos das noites tunisinas.

O pior era que cada novo dia diminuía as possibilidades de fuga. A princípio, quando começaram os trabalhos em El Mohar, Piers esperara. Eram em número três vezes maior que os vigias e, logo que estivessem seguros de quem fiar-se, podia-se organizar uma revolta. O trabalho esgotante e o alimento ruim e insuficiente enfraquecera logo os prisioneiros e, ainda que a revolta tivesse bom êxito, que se podia esperar? Entre eles e a Europa havia o mar, dominado pelos velozes navios árabes. Na verdade, o mar não era muito distante, mas era muito provável que tornariam a ser presos antes de se apoderarem de uma embarcação nalgum porto. A rebelião e a fuga eram punidas com a morte ... e com uma morte nada agradável.

Uma dúzia ou talvez duas de prisioneiros estavam prontos a tentar, os outros não. Portanto, se não se podia dar origem a uma ocasião, era preciso aguardá-la. Certamente era possível que o rei Filipe de França, e talvez mesmo o príncipe Eduardo oferecessem o preço do resgate, mas não se podia contar com isso. Que o príncipe Eduardo combatia na Terra Santa tinha-se sabido vagamente, mas não era fácil fazer chegar a ele a notícia da prisão do seu vassalo. O rei Filipe, por outro lado, não era o rei Luís. Ainda que conhecesse a sorte dos homens que no último e insensato ataque, antes da grande retirada, tinham caído prisioneiros, podia ser que os tivesse esquecido há muito. E por aqueles que não eram seus súditos não mexeria um dedo. Alguns corajosos tinham conseguido evadir de Túnis, entre ele o senhor de Murailles, cavaleiro nobre e corajoso: mas teriam alcançado a França?

Era preciso esperar, e esperar com confiança que surgisse uma boa ocasião. Mas Robin tinha razão: ainda que surgisse, Rogério estava esgotado. Talvez fosse melhor ficar e morrer com ele. El Mohar era um purgatório, mas o purgatório é preferível ao tremendo e insuportável inferno de encontrar-se diante de Teodora e ter de dizer-lhe que o seu cavaleiro não manteve a promessa e que seu marido morrera como morreram seus irmãos.

Após cerca de três semanas a sentinela postada sôbre a primeira torre do casr recentemente construido, deu o alarma da tempestade de areia. Os vigias mandaram logo interromper os trabalhos e abrigaram os prisioneiros atrás do muro, enquanto os árabes levavam os cavalos sob os telheiros.

O cádi subiu à torre.

- Uma tempestade de areia, Jakub? Nesta estação?

- Olha tu mesmo, cádi. Poderia tratar-se de uma caravana numerosa, mas não podem ser as caravanas dos Lagos Salgados, e esta vem do norte...

- Do norte? Por Alá, teu pai deve ter sido um patife sem um olho e tua mãe sem nariz. Aquilo que brilha entre as nuvens de areia é metal. São inimigos!

- Como podem ser inimigos, cádi, se ninguém ...

- As armas! - berrou o cádi. - Acavalo, filhos de heróis, eleitos de Alá, gloriosas espadas do Islã. Preparai-vos para o combate, abortos leprosos, mancos sem miolos, filhos de camelos sem corcova! Ali, o meu cavalo! Agora podia-se vislumbrar o inimigo: sem dúvida eram cavaleiros francos, enormes cavalos couraçados e homens gigantescos. Um deles agitava um pequeno tronco de árvore com um estandarte triangular. Mas, embora tivessem levantado enorme nuvem de poeira, parecia não fossem mais de cinqüenta. O cádi desceu correndo enquanto Ali trazia-lhe o cavalo. Montou e reuniu seus homens.

Jallah! - gritou. - Devem ser prisioneiros escapos, mas nós estamos em maior número. Segui-me!

A massa de homens e cavalos saiu como um turbilhão pelo portão ainda não acabado do casr, gritando, relinchando, bufando e agitando armas.

- Não creio - disse Robin rindo.

Todos os prisioneiros olhavam para fora do muro, lobrigando o seu destino que chegava couraçado e envolto em nuvem de areia.

- Azul - exclamou Piers estonteado. - Azul e ... por todos os santos, a bandeira de Eduardo Plantageneto! Está distante mil milhas ... é um sonho, um sonho.

- Bom demais para ser um sonho - comentou. Robin. - Talvez estas cadeias possam servir para alguma coisa!

- Tens razão. - As correntes que os prendiam à noite não eram uma arma desprezível. Estava por dizê-lo aos prisioneiros, quando ouviu uma voz rouca e febril:

- San Severino! San Severino!

Voltou-se, e vendo Rogério lançar-se furiosamente sôbre o mullah, correu em seu socorro, mas compreendeu que era tarde demais. O santo homem, de fato, tinha extraído um longo e recurvo punhal, enquanto um dos vigias seguiu-o brandindo o chicote. Sob o ímpeto de Rogério o mullah caiu, mas sem largar o punhal e ...

Fora de si, Piers atirou-se sôbre ele como um raio, bateu-lhe no rosto com o punhal e arrancou-lhe Rogério das mãos. Do vigia nem se preocupou: Robin, embora enfraquecido, teria despachado três. Continuou batendo no homem que blasfemara contra a mais pura das criaturas e matara aquele que lhe havia sido confiado; tendo-se levantado quando o mullah imobilizou-se, voltou-se para Rogério. Achou-o sôbre os joelhos de Robin, cujo rosto dizia claramente não haver mais esperanças. Depois viu que o punhal do mullah penetrara profundamente no peito de Rogério.

Abaixou-se murmurando:

- Vitória! Vencemos!

A sombra de um sorriso perpassou pelo rosto de Rogério, aquele rosto tão juvenil, quase infantil, e aproximando o ouvido aos lábios dele Piers pôde ouvir o nome que era tão caro a ambos e, quase imperceptível, o pedido de perdão. Seguiu-se a agonia, enquanto Piers e Robin, feito o sinal da cruz, recitavam as orações dos moribundos.

E Rogério expirou.

Eles continuaram a rezar, enquanto o terreno tremia sob seus pés. Depois, levantando os olhos, viram o que em outros momentos os teria enchido de alegria: um grupo de cavaleiros armados, montados em cavalos couraçados, entravam no pátio, enquanto em torno deles os prisioneiros gritavam e saltavam como loucos. E um cavaleiro alto e elegante, numa armadura de prata, montado em magnífico corcel ...

- Príncipe! - exclamou Piers, enquanto as lágrimas se lhe corriam.

Eduardo apeou-se e o abraçou. Ficaram longamente abraçados em silêncio, até que Piers conseguiu dizer:

- Pensava que estivésseis em Acre. Como fizestes para achar-nos?

- Estava em Acre, de fato. Derrotamos os sitiantes e marchamos até Nazaré. Estamos retirando-nos, mas o senhor de Murailles mandou-nos uma mensagem ...

- Deus o abençoe!

- ... comunicando-nos que estáveis prisioneiros dos tunisinos com grande número de outros cristãos. Então pensei que valia a pena desembarcar e procurar-vos e partir uma lança em memória do rei Luís. Fizemos alguns prisioneiros e estes nos revelaram onde vos encontraríamos. Eis-nos aqui.

- A batalha está ganha?

Eduardo riu:

- Não foi uma batalha, nem mesmo uma escaramuça. Pensavam que fossemos apenas cinqüenta porque não podiam ver o grosso que vinha atrás de nós. A areia turbilhonava demais. Somos quinhentos, e mais quinhentos cobrem a retirada até o mar. Oito grandes navios estão ancorados para vós, lorde Rudde! Prendemos o chefe deste grupo, se não de engano.

- O cádi Omar?

- Assim diz chamar-se. Maltratou-vos? Se o fez, por minha fé...

- Não, príncipe, - respondeu Piers com um estranho sorriso. - E um bom estudante de filosofia. Levai-o à França ou alhures, para que possa aprender que a verdade é uma. E um bravo homem. Há, porem, aqui três renegados e um sacerdote infiel...

- Peço perdão, milorde, - interveio Robin respeitosamente. Os três renegados já chegaram a um lugar mais quente que a Tunísia.

- O mullah - prosseguiu Piers - blasfemou contra a Santa Virgem.

- Será um de turbante verde? - perguntou um jovem cavaleiro da escolta.

- Sim. Derrubei-o para salvar o meu pobre amigo San Severino, mas cheguei tarde.

- Vós o derrubastes? - perguntou o cavaleiro estupefato. - Com os punhos? Dir-se-ia que lhe pisotearam o rosto cem cavalos. Está morto, milorde, morníssimo. E se um dia tiverdes de combater comigo num torneio, espero que useis uma lança sem ponta e apenas um décimo da vossa força.

- Parece que não nos deixastes muito que fazer - disse o príncipe, rindo. - E preciso dar de beber aos cavalos ... e penso que também aos homens ... Depois acho oportuno largar este reino de areia e de escorpiões antes que se acorde o sultão de Túnis. Que tendes? Não estais feliz de rever a Inglaterra?

- Deus vos abençoe, senhor, pelo que fizestes - respondeu Piers. - Mas em minha vida não há mais alegria possível, e preferiria ter morrido.