LIVRO III


CAPÍTULO I

Na taverna de São Januário, em Nápoles, reinava grande agitação. Todos falavam alto, riam, conversavam., imprecavam, mas ninguém estava escutando. Quando, porém, a porta abriu-se para dar passagem a uma dúzia de homens de aspeto de mendigos, fez-se improvisamente grande silêncio. Depois os fregueses se levantaram, até mesmo os que estavam bem alegres, e fizeram o sinal da cruz. Os recém-chegados não precisavam fazê-lo porque traziam grandes cruzes negras costuradas nas roupas em frangalhos: eram cruzados.

Todos sabiam de onde vinham: naquela tarde entrara no porto a nave "Santa Madalena", com a bordo para mais de cem deles. Com a rapidez do vento espalhou-se a notícia que a cristandade tinha tido um rude golpe: rei Luís de França e todo o seu exército tinham sido capturados pelos muçulmanos no Egito, pouco longe de uma cidade chamada Damieta. Após espantosas peripécias puderam resgatar-se pagando rios de ouro, e Damieta teve de ser entregue aos muçulmanos.

Agora, os restos do exército cruzado voltavam. A "Santa Madalena" era a primeira nave cruzada que chegava a Nápoles.

Esquecidas todas as controvérsias, os napolitanos rodearam aqueles homens, mais parecidos a mendigos que a soldados, pagaram-lhes vinho e comida e os bombardearam com uma torrente de perguntas, até que Lívio. o taverneiro, deu um murro no balcão gritando:

- Calma, caramba, um de cada vez. Do contrário não se entende nada.

Sita autoridade impôs-se: os cruzados dividiram-se em grupos de dois e três, cada grupo rodeado por uma turma de napolitanos: dois apenas recusaram gentilmente qualquer oferta e retiraram-se a um canto, pediram vinho e ficaram ouvindo os outros. Eram histórias de marchas e cavalgadas sem fim através da areia ardente dos desertos, agressões com flechas envenenadas e fogo grego, de grupos de árabes tão velozes que cercavam um cavaleiro antes que pudesse virar-se, de doenças e queimaduras, de insetos e pagãos, e da fraqueza que tomara conta dos melhores soldados do exército cristão e os tinha reduzido ao ponto não se poderem levantar sem ajuda.

- Vi coisas que não acreditaria nem se fosse minha mãe a contá-las - dizia um homem de cabelos esbranquiçados e olheiras. - Eu sou de Soissons e estava sob às ordens do nosso bispo, monsenhor Guido de Château-Porcien, homem tão bondoso que não faria mal a uma mosca. Quando estavam empenhados num combate, ele não desembainhava a espada. mas limitava-se a cobrir-se com o escudo. Muitas vezes rimos de sua atitude. Para que partir para a cruzada se não se quer matar pagãos? Mas quando recebemos ordem de render-nos porque tudo tinha acabado e muitos dos nossos choravam e louvavam a Deus ou estavam de boca aberta sem compreender, o meu pequeno bispo tornou-se roxo e se pôs a gritar que não obedeceria, invocou o Senhor como testemunha da sua vontade de não abandonar a causa e, empunhando a espada, lançou-se no meio dos árabes sozinhos dando golpes à direita e à esquerda até que o arrancaram do cavalo e o fizeram em pedaços. Sei o que estais pensando, mas nós estávamos a pé e ele já estava morto antes que pudéssemos alcançá-lo ... além disso, tinham-nos ordenado que nos rendêssemos.

- Como vos trataram os pagãos?

- Alguns se comportaram muito mal, mas que se podia esperar? Não é à-toa que são míseros pagãos. Mataram todos aqueles que estavam muito mal e não podiam caminhar. Muitos outros, porém, para serem pagãos eram bastante bons. Alguns não poderiam ter sido melhores se fossem batizados. Havia, por exemplo, um velho sarraceno de barba desgrenhada e enorme cimitarra o qual, não sei por que, queria-me bem. Estava ferido nos joelhos, não podia caminhar e pensava que para mim tivesse soado a última hora e teria ido direto para o paraíso. "E se o paraíso não existisse?", pensei. E lembrei-me de certas coisas que talvez não se liqüidam nem mesmo cortando a garganta de um árabe. Enfim, para falar claro, tinha medo. Mas eis que o velho sarraceno traz-me comida e bebida e, parece incrível, três vezes por dia carregava-me às costas para aquele lugar a que até o imperador deve ir a pé...

Ecoou uma risada geral...

- Três vezes por dia não chegam, porém, - continuou o cruzado - porque todos tínhamos a disenteria.' Não há nada para rir; desejo-vos que não a conheçais. Parece que se tem de partir de meia em meia hora. Sim, dá-me outro copo, bom amigo. Pois é, o nosso pequeno bispo tinha morrido, e ninguém pôde rezar-lhe uma missa porque fomos dispersados.

- Também o rei Luís?

- Certamente. Vi-o com meus próprios olhos, pálido, calmo, sem uma queixa: mas lia-se o seu pensamento, e dava vontade de segurar pelo pescoço o primeiro sarraceno que se encontrasse e lhe arrancar as tripas. Estranho, porém: o sultão ao qual tivemos de nos render foi assassinado.

- Por quem?

- Pelos seus próprios emires, que quer dizer o mesmo que barões, os quais organizaram uma conspiração e o expulsaram de casa com o fogo grego. Enquanto fugia foi perseguido e sabeis onde o alcançaram?

- Como podemos sabê-lo?

- Atirou-se ao Nilo procurando salvar-se a nado, mas alcançaram-no e o mataram ali mesmo, na água. Um emir arrancou-lhe o coração e depois fez-se içar a bordo do navio mais próximo, um transporte de prisioneiros onde estávamos rei Luís e eu.

- Tu nos contas patranhas.

O cruzado tocou a cruz esfarrapada que tinha nas vestes.

- Digo a verdade - declarou tranqüilo. - Sei que parece in- mas lá habitua-se até mesmo ao incrível. O emir foi direto para o rei Luís e com as mãos ainda sangrando disse: "Que me dás por ter matado o teu inimigo que, se ainda vivesse ter-te-ia assassinado?". Sem responder, o rei olhou o emir que se virou para o outro lado. Ninguém resiste ao olhar do rei Luís. E como quando a mãe olha para o menino que cometeu alguma traquinada. É um santo, digo-te. E se o papa não o canonizar depois de tudo que tem feito, quer dizer que não conhece o seu dever.

- E depois?

- Pensávamos tivesse chegado a nossa hora, e como a bordo não havia nenhum sacerdote nos confessávamos mutuamente. Eu, camponês de Soissons, ouvi a confissão do senhor de Montignard e dei-lhe a absolvição com os poderes que o Senhor confere aos cristãos diante da morte quando não se encontra um padre. Depois, por minha vez, ajoelhei-me, confessei-me e recebi a absolvição dele. Teria sido melhor se ele pudesse confessar-se com um senhor de sua linhagem, mas, ferido e sem poder ir até a proa onde estava o rei com seus nobres, disse-me que em tais casos um camponês vale tanto quanto um cavaleiro, e talvez mais. E sabeis o que me sucedeu? Quando me levantei tinha esquecido toda a sua confissão e não lembrava mais nenhum dos seus pecados.

Todos escutavam calados e o cruzado prosseguiu:

- Depois, como vedes, não nos mataram. Os emires cumpriram o tratado que tínhamos estipulado com o sultão. Pensai só: o sultão tinha exigido quinhentas mil libras de ouro e a cidade de Damieta, e rei Luís tinha concordado. Quando o soube, o sultão exclamou: "Por minha fé, este rei franco é generoso, já que não tenta nem discutir tamanha quantia. Ide dizer-lhe que me satisfaço com quatrocentas mil". O rei ordenou que todos os nobres pagassem, e ele mesmo pagou de seu bolso para quem não tinha meios suficientes.

- Queria ser francês - suspirou um napolitano. - Ou pelo menos que o imperador fosse como o vosso rei Luís.

- Ou então - acrescentou outro - que na Itália tivéssemos alguns emires capazes de tratar com um sultão ...

- Cala-te! Queres mandar-nos todos à prisão?

- Aqui estamos entre bons amigos.

- Nunca se sabe. Em Mesinha enforcaram recentemente cento e cinqüenta, e quem sabe se não estão preparando as listas também para Nápoles.

- Então, não se acabará nunca de enforcar? A grande rebelião já passou.

- Parece que ele não é da mesma opinião.

- Como? Tivestes uma rebelião na Itália? - perguntou o cruzado. - Contai. Até agora falei eu.

- Nestes últimos anos atravessamos o inferno e o purgatório. Primeiro foi Parra a meia dúzia de cidades ao norte, depois Régio e Mesinha, e os cavaleiros do imperador limparam o país como abutres. Para qualquer lugar que se olhasse era um só incêndio. Mas o pior foi quando os parmesões derrotaram o imperador, queimaram-lhe o campo e a cidade, sei lá, e levaram-lhe todas as jóias. Eles ,pensavam ter vencido a guerra. E não o era. Quando algo lhe corre mal, o imperador torna-se maior e mais terrível, não há dúvida. Tinha escapado apenas salvando a vida, e eis que, uma semana depois, ao invés de um punhado de homens tinha um exército mais forte do que antes. Os grandes príncipes foram em seu socorro, Ezelino de Romano, o filho Enzo e o filho Conrado que ele fez coroar rei de Roma, e todos os demais filhos, tão numerosos que não se consegue contá-los. Reuniram-se em Cremona, o imperador fez-se emprestar de Pisa doze mil libras de prata a juros de oitenta por cento, o imperador grego enviou-lhe mais dinheiro e os tudescos mais soldados. Pedro della Vigna, à notícia da derrota, tinha-o abandonado, mas foi capturado e se matou na prisão arrebentando o crânio contra a parede: fora o chanceler do imperador e sabia muito bem o que o esperava.

- Um suicídio! - exclamou o cruzado.

- Em verdade não sei o que seja pior, se ir para o inferno ou ser preso pelo imperador após uma traição.

- O inferno dura muito mais - comentou o cruzado sacudindo a cabeça.

- Seja como for, o imperador reconquistou Ravena, derrotou um após outro cinco chefes guelfos, o margrave Palavicini desbaratou os parmesões e, tendo capturado o conde de San Severino, fê-lo matar cruelmente. Refiro-me ao velho que minha cunhada viu diversas vezes e, pelo que ela diz, era um bom homem, muito educado: mas essa é a sorte de quem não pode medir-se com o imperador.

- E assim terminou?

- Mais ou menos. O imperador tinha retomado as Marcas, a România, Cíngulo e Espoleto e, dessa forma, voltou a ser o dono da Itália, e mandou redigir listas daqueles que o haviam combatido. Faz sempre assim. Ainda hoje pela manhã ouvi dizer que há uma concentração de tropas perto de Nápoles. A coisa está em segredo, naturalmente, mas parece que ele queira ir contra os condes de Aquino, ou melhor, contra aqueles que sobraram. No princípio eles eram a favor do imperador, depois desligaram-se; dizem que dois filhos capturados em Parra ou perto, não sei com certeza, estão presos em Verona.

Cale-se, Carlos: esses nomes nada dizem ao nosso amigo. Quem em França terá ouvido falar de Aquino?

- Aqui entre nós este é um grande nome. Eu sei, digo-te, que a expedição é contra Aquino e Roca-sêca. O marido de minha irmã faz parte dela. Não pode dizer como nem quando, mas esta noite ou amanhã pela manhã estarão em marcha, e será o fim de Aquino.

- Bem, bem, Carlos, mas agora deixa que o amigo nos conte como foi a coisa no Egito.

- Com prazer - concordou o cruzado. - Mas onde estão os nossos ingleses?

- Que ingleses?

- Aqueles dois que estavam conosco a bordo da "Santa Madalena", um cavaleiro e seu escudeiro: pouco se notava a diferença, pois ambos estavam vestidos com trapos. Entraram junto conosco e se tinham posto num canto sem falar. Os ingleses ou são malucos ou são mudos como os peixes; mas é preciso reconhecer que são bons soldados. E agora não os vejo mais. Paciência. Então, os emires fizeram voltar o rei e um grupo de nobres para Damieta, a fim de providenciar a entrega do resgate. Lá tiveram que pesar ouro por dias seguidos, e quando os tesoureiros contaram ao rei que distribuíram o ouro tão habilmente de modo a parecer que os sacos estivessem cheios, embora tivessem "feito economia" de dez mil libras, ele se aborreceu e insistiu para que se acrescentasse a importância que faltava, e não subiu a bordo até que isso não fosse feito.

- Compreendeste, Lívio? - exclamou um napolitano. - Sirva-te de exemplo. Dê a medida justa aos fregueses.

- Não ouviste o que ele disse? - perguntou o taverneiro enrugando a testa. - Não disse que o rei Luís era um santo?

- Mais rápido, Robin, - incitou Piers. - Mais rápido!

- Não com estes cavalos - resmungou o escudeiro. - Podemos estar satisfeitos se lá chegarmos.

- Chegaremos. Precisamos chegar. Es tão cego que não percebes haver nisso o dedo da Providência? Chegamos justamente no momento em que a casa de Aquino está em perigo, e logo que pomos pé em terra chega-nos a notícia. Demais, temos dinheiro bastante para adquirir os cavalos...

- Cavalos encontram-se sempre de qualquer modo - murmurou Robin Cherrywoode. E queria acrescentar que era loucura, para dois homens extenuados pela febre e pelos sofrimentos de uma longa viagem por mar, correr desarmados em socorro de uma família da qual já não estavam mais a serviço, e que, evidentemente, o imperador tinha jurado exterminar. Não era sabedoria falar em Providência apenas porque alguém, sem ser interrogado, tinha mencionado os senhores de Aquino. Duas perguntas dirigidas a uma pessoa bem informada ter-lhes-ia dado a mesma notícia. Aqui não agia provavelmente a Providência, mas o Maligno, cujo reino na terra era representado pelas tavernas e pelos taverneiros.

Mas que adiantava? Desde o dia em que tinham chegado a Rocasêca o patrão estava enfeitiçado. E agora tinham saltado em Nápoles, portanto perto daquela cidadela! Valia a pena terem escapado dos árabes e turcos, de percevejos e piolhos, da febre e do fogo grego e (Ias outras delícias da cruzada, para irem acabar nas prisões imperiais!!! 'E verdade que, sem a pequena dama, em vez de partirem para a cruzada teriam ficado comodamente na alegre Britânia e...

- Patrão!..

- Já os vi.

Mas era muito tarde para tentar fugir. Este não era o deserto onde se percebe o inimigo quando, ainda muito longe, levanta-se uma nuvem de areia no horizonte, até que o brilhar das lanças e o grito rouco de "Allah! Allah!" indicam que está chegando quem deseja merecer um bom lugar no paraíso, matando um infiel.

Aqui, porém, o inimigo aparecia de trás de um par de casas e era constituído por uma dúzia de homens comandados por um cavaleiro. Eles barravam o caminho e Piers notou que não traziam emblemas nas couraças, salvo o cavaleiro sôbre cujo escudo havia três leopardos de ouro.

- Alto! - intimou o cavaleiro. - Aonde ides? De onde vindes?

Antes que Piers pudesse responder, Robin adiantou-se e com voz humilde falou:

- Somos cruzados, nobre senhor, como veríeis pelas nossas vestes se não estivessem tão estragadas. Estamos vindo do Egito ...

- A cavalo? - perguntou ironicamente o cavaleiro.

- Não, nobre senhor. Os cavalos compramos em Nápoles com os últimos vinténs, para chegarmos em casa mais depressa. O caminho de França é longo, nobre senhor, e quiséramos nunca ter partido.

- França? - disse o cavaleiro franzindo o cenho. - Então súditos do bom rei Luís. Prossegui à vontade.

- Obrigado, nobre senhor, - disse Robin. - Possais obter vitórias e honrarias.

Os homens do cavaleiro deixaram-nos passar.

- Há outros, e mais numerosos, atrás das colinas - murmurou Robin. - E também do outro lado. Soldados do imperador.

- Quem te permitiu falar com aquele cavaleiro e desenrolar-lhe tamanho rosário de mentiras? - perguntou Piers aborrecido.

- Ora, senhor. Reduzidos a este estado, ele não podia compreender que sois do mesmo grau, e talvez foi bom. De outro modo teríeis que falar-lhe vós, e lhe teríeis dito a verdade, e ele vos teria reconhecido como cavaleiro de Aquino e estaríamos fritos, ou então ... vós também teríeis mentido. Afinal, se deve mesmo mentir, é melhor que o faça o servo que o patrão.

Piers não pôde reprimir um sorriso.

- Mas por que lhe disseste que vamos à França? E por que desejar-lhe vitória e honra, àquele bandido?

- Porque de outro modo poderia convidar-nos a entrar para o serviço do imperador. Como súditos do rei Luís não corremos tal perigo. Quanto à honra e à vitória, acrescentei com meus botões: "Desde que tivésseis de partir um dia para a cruzada". Que vão conquistar honras combatendo contra os sarracenos. Não achais justo, senhor?

Piers não tinha, porém, vontade de brincar.

- São três ou quatro centenas no máximo. Para tomar de assalto Roca-sêca não bastam. Talvez essa seja a vanguarda. E acampam justamente agora, nas horas melhores para cavalgar. Esperarão alguma coisa: reforços ou ... Robin, quanto se leva daqui a Roca-sêca?

- Três horas com um bom cavalo, quatro e meia com estes.

- Deve ser isso. Eles esperam ou reforços ou ... a noite. Quererão atacar à noite. Vamos, Robin, rápido!

Após pouco mais de quatro horas chegaram à vista de Roca-sêca. Piers não pôde deixar de admirar mais uma vez a solidez da fortaleza, com sua dupla cerca de baluartes e as torres esbeltas, como quando a tinha visto pela primeira vez.

Querer tomar Roca-sêca com trezentos ou quatrocentos homens era uma loucura. Mas onde estavam os defensores? Piers não via nem lanças, nem alabardas, nem bestas. Sôbre uma das torres parecia-lhe que havia alguém ... ou se enganava? A vereda conduzia para o portão principal. Mas não havia sentinelas ...

Estremeceu. Se a fortaleza já tivesse sido tomada? Teria chegado tarde demais? Os soldados que tinham encontrado estariam voltando da conquista, em vez de ir a ela?

Depois viu abrir-se a fresta do pesado portão e apareceu um velho de voz cansada perguntando que desejavam.

- Está aqui a nobilíssima condessa de Aquino?

- A nobilíssima condessa morreu há três meses. Quem sois para o não saberdes?

- Somos cruzados e estamos vindo do Egito - explicou Piers com voz trêmula. - Está aqui a jovem condessa de San Severino? e o conde?

- Que vos importa? - perguntou o velho desconfiado.

- Está viva? Está bem? - perguntou Piers.

Seu tom de voz devia ter convencido o velho.

- Vive e, graças a Deus, está bem.

Piers suspirou aliviado.

- Então dizei-lhe que chegou sir Piers Rudde que, se ela o deseja, está às suas ordens.

O velho esbugalhou os olhos.

- Agora vos reconheço, nobre senhor. Abro-vos já. Venho, venho logo.

Mas foi preciso bastante para que um batente do grande portão começasse a abrir-se rangendo nos gonzos. Piers notou estupefato que o velho teve de abrir sozinho. Onde estavam os guardas, os soldados, os cavaleiros da casa?

O velho tinha lágrimas nos olhos.

- Que bem faz rever-vos, nobre senhor:

Antes de poder responder, Piers viu sair do edifício central, veloz como o vento, uma borboleta de veludo negro. Chegava antes que ele pudesse preparar-se e, apertando-lhe as mãos, sorria com o mesmo sorriso que em todos aqueles anos o havia seguido acordado ou dormindo. Falava-lhe com alegria agitada, e ele não compreendia uma palavra. Olhava-a, não já com a avidez do esfomeado, mas com uma espécie de incrédulo respeito. Então estás viva? Existes de fato, meu amor, meu doce e santo amor?

Pouco a pouco o murmúrio tornou-se palavra. Ela estava vestida de negro ... Piers nunca a vira assim. Mas claro, a condessa... que dizia? Compreendia que, por sua vez, precisava dizer alguma coisa. Mas que descortesia! Não lhe tinha feito nem uma reverência, e Robin continuava a tossir. Eis que chega um jovem ágil e elegante, o conde de San Severino, a quem ela dirigiu a palavra exclamando:

- Rogério, chegou sir Piers! Agora tudo irá bem. Graças sejam .dadas à Virgem Santíssima.

Enquanto Rogério se aproximava, Piers viu seu rosto agoniado distender-se. - Benvindo a Roca-sêca, sir Piers. Perdoai-me se não vos reconheci logo.

- Não admira - disse Piers. - Pareço um espantalho, bem como Robin. Mas esse é o aspeto de todo o exército do rei Luís ... ou melhor, daquilo que dele sobrou.

- Soubemos - confirmou Rogério.

- Cruzado! - exclamou Teodora. - Por isso, então, nos deixastes de improviso quando... -Parou, e só então largou as mãos dele, enquanto um repentino rubor lhe inundava as faces. -Sim, é isso, eis a cruz na vossa veste. Não ... não a tinha visto logo.

- De fato, bem pouco resta - disse Piers. - Condessa, vossa pobre mãe...

Teodora evitou olhá-lo:

- Morreu em paz ... como uma santa. Estávamos aqui todas, Adelásia, eu e sóror Maria de Getsêmani ... agora Marta chama-se assim. Todas as filhas ... e nenhum dos filhos.

- Então é verdade que o conde Landolfo e o conde Rinaldo ...?

- Sim, são prisioneiros em Verona. É tudo que sabemos. E o pobre pai de Rogério .

- Deixa, amor, - disse o jovem San Severino com os olhos rasos d'água. - Estou contente que tenha acabado de sofrer ... embora só Deus saiba quanto deverá ter penado antes de morrer.

- Era um grande senhor - declarou Piers. - Deus lhe conceda a paz perpétua. - Quebrado o gelo, olhou em torno e perguntou: -Onde estão os vossos homens?

- É! não se consegue compreender - disse Rogério. - Ontem ainda eram mais de trinta e ...

- Sir Piers, - interrompeu Teodora - os nossos homens nos abandonaram. Há três semanas eram duzentos, com três cavaleiros, mas esses foram os primeiros a desaparecer, cada qual com um pretexto. Os últimos trinta fugiram ontem à noite. As mulheres fizeram o mesmo. Não se pode culpá-los depois de tudo que tem sucedido a tantos de nós.

- E vós os deixastes ir? - perguntou Piers tristemente.

San Severino murmurou, evitando o seu olhar:

- Que podia fazer? Falei-lhes e, mais de uma vez, prometi dinheiro, mas o medo era mais forte. Não podia obrigá-los a ficar, não?

- Penso que não - respondeu Piers que a custo mantinha a calma. - Más notícias, essas. Quem está ainda em Roca-sêca?

- Nós dois, o velho Paulo e Júlia na cozinha - respondeu Teodora como uma menina que confessa uma travessura.

- Onde estão vossas irmãs?

- Adelásia está com soror Maria, no seu convento em Cápua. Pensamos que era melhor não ficasse aqui. Temia que o imperador mandasse prender-nos, como receavam todos os homens.

- É claro! - exclamou Piers fungando. - Mas agora deveis ir embora logo. Tropas imperiais estão chegando. Devem ser de trezentos a quatrocentos homens. Vimo-los e admirei-me que fossem tão poucos, mas agora vejo que são até demais; parecem ignorar que os vossos vos abandonaram, mas em todo caso não esperam muita resistência. É hora de ir embora.

- Está bem... - disse Rogério com voz insegura. - Aonde?

- Veremos mais tarde - respondeu Piers. - Agora ide buscar os objetos de valor ... mas não mais do que possais levar no corpo. Deixai que os dois servos vão onde queiram e preparai-vos. Rápido!

- Não quereis mudar o hábito? - ofereceu Rogério timidamente.

Piers olhou com benevolência o jovem, a quem cedo demais a sorte impusera grandes responsabilidades.

- Creio que será melhor conservar estes andrajos. Os cruzados passam onde outros se atolam ... Armas, isso sim ... se tivésseis um par de elmos, espadas e escudos ...

- Temos muitos - disse Rogério. - Vinde escolher o que quiserdes.

- E cavalos - acrescentou Piers. - Espero que não os tenham roubados todos.

- A maior parte sim - confessou Rogério. - Mas restam alguns ... não os melhores, naturalmente ... seis ou sete. Poderemos levar um de reserva...

Piers olhou para o sol.

- Ainda duas horas antes que desça o crepúsculo. Não temos muito tempo. Mãos à obra!

Apenas Roca-sêca desapareceu Piers respirou com alívio. Temera até o último momento que os soldados aparecessem improvisamente. O sol descia rapidamente. Robin ia à frente, segurando as rédeas do cavalo de reserva, carregadíssimo; seguiam Teodora e Rogério e, afinal, Piers, com um segundo cavalo de reserva. Teodora pedira para fazer unia última visita às irmãs no mosteiro beneditino de Cápua e, após breve reflexão, Piers concordou. Cápua não era longe, e nalgum lugar era preciso pernoitar. Pelo menos no convento estavam seguros, porque as freiras não os trairiam. Um albergue teria sido muito perigoso naquela região.

- Aonde iremos amanhã? - perguntou Rogério com voz queixosa. - Os castelos de meu pai na Sicília ...

- Impossível - afirmou Piers. - Prender-vos-iam antes que chegásseis e, mesmo que chegásseis, já encontraríeis os imperiais por lá: seria o mesmo que ficar em Roca-sêca ou em Aquino ou em Monte São João. Preciso encontrar uma maneira de levar-vos a Nápoles e embarcar-vos. - Conheço todas as embarcações que estão no porto e sei o horário da partida e o destino das mesmas.

- Deixar a Itália... - murmurou Teodora.

- Ele tem razão, querida, - disse Rogério com tristeza. - Somos exilados.

- Quereria que o fosseis! - exclamou Piers. - Ainda não vos pus em segurança ... mas disso falaremos no mosteiro. Agora preciso ter os olhos bem abertos.

Continuaram cavalgando em silêncio.

De repente Robin levantou a mão e viram-no levar os cavalos para um tufo de loureiros à esquerda. - Segui-o logo! - sussurrou Piers e eles obedeceram. Ele também conduziu os cavalos para trás das árvores. Daí podia ver a encruzilhada a que chegavam cinco, dez, vinte ... talvez cinqüenta soldados. O revérbero do sol refletia-se nos elmos, fazendo-os brilhar como tochas. Soldados do inferno, pensava zangado. Sessenta ... setenta ... cem. Depois, por um pouco, mais ninguém. Mas ouvia-se um bater de cascos. E eis aparecer o cavaleiro que os tinha parado antes: Piers viu no escudo os três leopardos. Seguiam-no outros cavaleiros ... cinqüenta, sessenta, cem ... cada vez mais. Dois, três, quatro centenares. Depois silêncio. Mais nenhum ruído de cascos.

- Robin, vai ver. Entrega ao conde o outro cavalo.

Depois de alguns minutos Robin voltou rindo:

- Senhor, a estrada está livre, mas dentro de uma hora aqueles chegarão a Roca-sêca. Ainda bem que encontrarão a gaiola vazia.

- Quando chegarem, nós estaremos em Cápua há muito. Adiante!

Viu que Teodora olhava-o com olhos úmidos e com uma expressão de tal ternura e gratidão que seu coração deu um pulo. Com grande esforço conseguiu desviar o olhar de cima dela e exortá-la:

- Cuidado com a estrada, senhora. Tendes um péssimo cavalo.

E era bem verdade. Aqueles danados tinham deixado nas cocheiras apenas meia dúzia de sendeiros nada melhores do que os cavalos de carroça que tinham adquirido em Nápoles e com os quais o velho Paulo e a velha Júlia, após uma despedida cheia de lágrimas, tinham partido para suas vilas.

Apenas alcançada a estrada principal, Piers lançou os cavalos a galope; embora fossem míseros animais, até Cápua podiam chegar.

Alcançaram o mosteiro de São Bento duas horas antes da meia-noite. Com grande alívio para Piers, o mosteiro estava fora da cidade, de modo que não foi preciso passar pelas portas, onde Teodora poderia ser reconhecida. Aqui, ao invés, sua presença foi de grande ajuda. As boas irmãs não os deixaram entrar até que uma delas reconheceu Teodora e foi chamar soror Maria de Getsêmani, que apertou a irmã entre os braços.

- A dama está alojada - murmurou Robin. - Mas que irão fazer as freiras de três homens e seis cavalos? Nós não podemos cantar no coro, e os cavalos menos ainda.

Após um instante, porém, soror Maria mostrou-se dona da situação.

Havia um estábulo com algumas vacas, onde os cavalos foram abrigados, enquanto os homens, convidados ao refeitório, foram sentar-se à mesa, longa, simples e sem adornos. As irmãs andavam em torno como abelhas, trazendo vinho e alimentos e preparando três enxergas primi- tivas com cobertores e travesseiros.

- Creio que devereis dormir aqui no refeitório - disse soror Maria.

- Isto também é contra a regra, mas os tempos são excepcionais, e não é lícito mandar-vos dormir no estábulo ... embora outrora alguém muito mais nobre que todos nós teve que o fazer.

"Como parece com sua irmã quando sorri!" pensou Piers. Mas desde que a vira da última vez tinha mudado muito, e isso não apenas por causa do severo hábito negro das beneditinas. Tornara-se pálida e magra, e tinha as mãos céreas, quase diáfanas. Ele não entendia bem a fineza daquelas palavras: a regra beneditina exigia que todo visitante fosse recebido como se fosse o Cristo em pessoa.

Pouco depois Teodora voltou com Adelásia, e todos se alimentaram. Soror Maria vigiava e enchia os copos logo que se esvaziavam.

Para Robin o sentar à mesma mesa e comer como o patrão não era novidade: acontecera freqüentemente durante a guerra na Terra Santa; mas ver-se servido por uma monja, e ainda por cima condessa, era demais.

Terminada a refeição, soror Maria disse:

- Minha cara Teodora, tu agora deves ir para a cama. Não, não, nada de objeções. Eu sou a mais velha e aqui estás sob minha jurisdição. Deixa para amanhã o que tens a me dizer, quando tiveres repousado. Leva-a para a cela, Adelásia.

Aguardou até que o rumor dos passos desapareceu, depois, dirigindo-se aos três homens:

- Da nossa torre podem ver-se três incêndios ao norte: Roca-sêca, Aquino e Monte São João. O imperador caminha rápido.

Rogério arregalou os olhos, enquanto Piers franzia o cenho.

- Haverá alguma maneira de sairdes do país? - perguntou soror Maria. - Para a França ou para a Espanha? Rogério, tu tens um tio em Barcelona, creio.

- Sim, soror Maria.

- Em Nápoles há um navio que parte sexta-feira para Barcelona - asseverou Piers. - Sexta-feira à noite. Informei-me antes de deixar aquela cidade. Mas como levaremos estes dois para Nápoles?

- Se viajardes apenas à noite ...

- Chegaremos tarde demais. Precisamos partir amanhã pela manhã, o mais cedo possível.

- As estradas para Nápoles são muito freqüentadas ... e muitos conhecem tanto Teodora como Rogério.

- E os espiões do imperador estão em toda parte - completou Piers. - Eu sei. Desde que deixamos Roca-sêca estou quebrando a cabeça para achar um meio de levá-los a Nápoles sem serem descobertos.

Robin, que há muito vinha mastigando seus bigodes, pigarreou:

- Ninguém se importará com duas freiras - disse com ar inocente.

- Que queres dizer? - perguntou Piers.

- Este nobre jovem não, é muito alto e, vestido de mulher, poderia parecer urna mocinha ... visto às pressas - acrescentou. - Das monjas, então, não se vê mais que um pedacinho de rosto e as mãos, e essas nem sempre ...

- Muito bem, Robin! - exclamou Piers com uma gargalhada Boa idéia. Por todos os ... perdoai, soror Maria. A solução é ótima, Robin ...

- Não entendo bem.. . - sorriu Rogério um tanto embaraçado.

A freira, porém, interveio energicamente:

- Sir Piers, creio que o vosso homem tenha razão. Os hábitos os temos, e posso dar-vos também uma velha carruagem, de que vós dois podereis bancar os cocheiros. Ninguém suspeitará de duas pobres freiras em viagem para Nápoles. Por outro lado, Rogério, fará ótima figura.

O jovem enrubesceu.

- Está bem ... Se julgais assim ...

- Não há a menor dúvida - afirmou Piers com firmeza. Bem no fundo, sem dar conta disso, aquele disfarce dava-lhe certa satisfação.

- Então, estamos combinados - concluiu soror Maria. - Adelásia pode ficar comigo até que a situação mude. E mudará com certeza. Se tiverdes um pouco de bom senso, - acrescentou aproximando-se deitareis vós também. Boa noite. Deus vos abençoe!

- Este também é um bom conselho - aprovou Piers deitando-se naquela cama improvisada que, apesar de tudo, ainda era bem melhor que o beliche do "Santa Madalena" onde tinha passado as últimas semanas. Rogério e Robin seguiram-lhe o exemplo. A agitação e os perigos daquelas últimas horas tinham cansado o conde, que adormeceu logo. E foi uma sorte, porque pouco depois Robin iniciou o seu concerto noturno, verdadeira orquestra que ia dos sons mais agudos do flautim ao mais baixo ronco do bombardino.

Piers estava acostumado a isso, mas apesar disso não conseguia dormir. Continuava a expulsar centenas de pensamentos imperiosos e malignos, indignos de um cavaleiro cristão. Ela era mais bela que manca. Quantas vezes procurara convencer-se que fora sua fantasia a levar a imagem dela para uma perfeição que não existia, pelo menos entre os mortais! Agora, porém, aquela imagem empalidecia perto dela própria e de sua beleza. O olhar que lhe dirigira quando tinham escapado dos soldados ... ora, tolo, era gratidão por ter salvo a ela e seu jovem marido. Teria sido o mesmo se tu fosses velho e corcunda. Nem um instante, nem com uma única palavra tinha ultrapassado os limites, mas era sempre a sua dama eleita. Era e continuava pura. Quererias que não fosse assim? Quererias vê-Ia assaltada pelos mesmos demônios que te assaltam? Queres arrastá-la ao lodo e ao pó e continuar a rezar diante do seu altar?

Levantou-se e na ponta dos pés saiu do refeitório, enfiou-se pelo corredor escuro e saiu ao terreiro. O luar transformara as pedras em brilhante prata. Uma escadinha levava ao alto do muro e nele subiu para olhar em volta. O fogo ainda queimava: três ardentes artelhos da águia imperial.

"Ainda em tempo" pensou. "Meu Deus conseguimos apenas em tempo". Agora sabia que a levaria a Nápoles sã e salva. Não podia admitir ter chegado do Egito para salvá-la no momento do perigo e ter de perder a partida no último instante.

Um leve ruído fê-lo voltar-se. Era soror Maria que observava:

- Vejo que não tens bom senso.

- Não conseguia adormecer. Porém vós, por que estais aqui?

- Eu durmo pouco. Os incêndios ainda não estão apagados. Pobre Roca-sëca! Mamãe queria-lhe tanto bem, mais que a Aquino. Também Teodora. Mas é melhor não lhe dizer nada, sofreria demais ... e depois, terá uma vida difícil. Gostaria de mantê-la aqui como Adelásia, mas ela tem de ficar com o marido que não poderia hospedar ... nem mesmo como freira.

- Seria uma condição muito própria para ele - disse Piers ràpi

A freira não rebateu, mas seu olhar tranqüilo embaraçou-o. Após uma pausa, ela prosseguiu:

- Sinto, especialmente para Monte São João.

- Nascestes lá?

- Não, nascemos todos em Roca-sêca. mas lá nasci para esta nova vida.

- E sois feliz nesta nova vida?

- Sómente agora sei o que significa ser feliz: ou, pelo menos estou perto da felicidade como se pode estar neste mundo. Enquanto nos aproximamos de Deus, embora lentamente... -Interrompeu-se, embaraçada.

- Não vos falta nada?

Desta vez ela sorriu alegremente:

- Nem as vestes de Adelásia nem o marido de Teodora. - Depois tornando-se séria: - Meu irmão Tomás ensinou-me a contentar-me apenas com o máximo Bem.

- Soror Maria, onde está a vossa humildade?

- Justamente isto é humildade - replicou a monja com simplicidade.

Ele meneou a cabeça:

- Não entendo.

- Refleti: que significa contentar-se com o Bem supremo? Noutras palavras, querer a Deus, o próprio Deus? Significa, antes de tudo, reconhecer ter tanta necessidade dele, que nada mais importa. Em segundo lugar, que nesta miséria não sabeis como sair e tendes de vos apoiar em outrem, isto é, na ajuda de Deus. Significa, mais, que não tendes nenhum direito a essa ajuda ... pior ainda, que não sois digno. Esvaziais, pois, o vosso eu até não ficar mais nada, nem desejos, nem aspirações, nem esperanças, além dele. Para o mundo estais morto, nada de vós ficou, exceto aquela parte que pertence a ele. Sois um recipiente que ele tem de encher. Até mesmo Nosso Senhor, feito homem, esvaziou com obediência o seu eu neste mundo até a morte. Ele era humilde, e nós devemos imitá-lo. Mas a humildade não existe até que não se tende para o Bem supremo.

Após longa pausa, Piers comentou:

- Agora sei, finalmente, o que seja uma monja.

- Ou um monge. Ou qualquer bom servidor de Deus, pertença ou não a uma Ordem.

Ele sacudiu a cabeça.

- Como pode um leigo percorrer tal caminho? Nunca conseguiria.

- Não se trata de conseguir ... mas apenas de fazê-lo - disse ela sorrindo.

"Ou falhar" pensou Piers com amargura. Era essa a diferença entre uma freira e um cavaleiro? Ou era apenas a diferença entre soror Maria e Piers Rudde? Em todo caso devia-lhe uma reparação.

- Não devia ter dito que o conde de San Severino é talhado para freira - disse evitando o olhar da monja. - Seria demais para ele ... e para mim.

- E verdade, a observação não foi feliz - admitiu ela. - Mas nós fazemos comumente tais observações quando somos feridos.

- Por que feridos?

- Caro sir Piers ...

Seguiu-se uma pausa. "Ela sabe" pensou Piers quase em desespero. "Estará talvez escrito em minha fronte?".

- Vós sois um homem honrado, e com certeza Deus vos ama. Talvez a vossa vida seja a melhor resposta à pergunta de como um leigo possa percorrer o caminho de Deus. A humildade requer abnegação e disposição de servir: creio que correspondestes a essas duas exigências.

Ele riu amargamente.

- Ainda bem que não podeis ver o que acontece dentro de mim. Não podia dormir porque sem descanso...

Interrompeu-se vendo que ela levantava a mão cérea, quase diáfana'.

- Sir Piers, vós servistes sob o rei Luís que já o mundo todo considera um santo. Imaginai que nós dois fossemos seus lugar-tenentes. A mim confia a fortaleza de Melun, pouco distante da capital. Estamos em tempo de paz e eu comando e administro a praça com muito zelo. Envia-vos o rei, porém, a uma das fortalezas na Terra Santa, e sois obrigado a defendê-la todos os dias dos árabes e dos sarracenos. Estais ferido, os mantimentos escasseiam, a água mal chega para matar a sede, e no entanto agüentai firme. Ambos cumprimos o nosso dever: mas a quem cabe o maior merecimento?

Os olhos de Piers se iluminaram.

- Oh! Madre ... madre do Bom Conselho ... este é o nome a que tendes direito.

- Eu sou madre Maria de Getsêmani, - respondeu ela tornando-se séria - e embora tenha orado, o cálice não será afastado de mim.

- Mas não dissestes que sois feliz?

- Sim, na minha nova vida, especialmente porque não durará muito.

- Que quereis dizer?

- O médico pensa que não viverei muito.

Piers suspirou.

- Mas ... pode enganar-se.

Um sorriso cheio de bondade agradeceu-lhe o pequeno conforto.

- Prometei-me que não direis nada a Teodora. Gostaria que pelo menos ela fosse feliz nesta vida.

- Para isso daria a minha.

- Creio-vos. Prometeis, pois?

- Sim.

- Mais tarde virá a sabê-lo ... talvez quem sabe ... por Rinaldo e Landolfo. Eis, este é o cálice - murmurou. - Eu vou-me de boa-vontade ... mas eles ... abandonados à fera, na prisão aguardando o martírio ... Deus, Deus, tende piedade de nós!

- Se não estão mortos, poder-se-ia tentar alguma coisa - exclamou Piers com tal ênfase que ela sacudiu a cabeça.

- Impossível. Estão nos cárceres de Verona.

- O lugar pouco importa - murmurou Piers.

- Temo que estejam além de todo socorro humano. E ver sofrer os que me são mais caros, este é o meu cálice ... mais ainda: o cálice de Tomás.

- Em Tomás pensei freqüentemente.

- Acontece isso a todos que o conheceram.

- Mas por que sofre mais que vós?

- Porque o seu amor é maior. O amor é a medida do verdadeiro sofrimento. Demais ... ele sabe da minha doença.

- Escrevestes-lhe?

- Não. Porém ele sabe.

No silêncio que se seguiu, Piers podia ouvir a batida do coração. A soror disse finalmente:

- E eu sei o que responderia a todas estas nossas perguntas.

- O quê?

- Medianeira entre Deus e a alma é a Cruz.

Na sexta-feira, à tarde, uma carruagem puxada por duas mulas passava pelas ruas de Nápoles em direção ao porto. Parou Sómente no cais onde a "Conchita", uma embarcação grande, bojuda e suja, aguardava a hora da partida.

O cocheiro e seu ajudante saltaram da boléia, mas quando as duas jovens monjas iam descer, ele levantou a mão:

- Aguardai ainda um pouco, irmã. Deixai que me entenda com o capitão. Facilmente ele vos enganaria, caso não seja um bom cristão.

Elas obedeceram.

- Mantém os olhos bem abertos, Robin, - murmurou o cocheiro encaminhando-se para o barco.

Antes que voltasse passou quase meia' hora.

- Tudo em ordem - disse entregando uma bolsinha de pele à maior das duas monjas. - Eis o troco, soror Beatriz, e agora escutai. A princípio o capitão recusava aceitar-vos porque não quer mulheres a bordo, e parece que não tem em muita estima as freiras. Disse-lhe que seria pago em ouro, e isso venceu seus escrúpulos, mas levou-o a perguntar como as pobres monjas dispusessem de tantos meios. Expliquei-lhe que sois de boa família, que vosso tio é um grande de Aragão ... e acrescentei que se não chegásseis sãs e salvas a Barcelona ele conheceria o peso da mão de D. Pedro de Alcântara. Boa idéia, soror Beatriz, dizer-me o nome de vosso tio: foi como uma palavra mágica.

- Sois o amigo maior e melhor que já tenho encontrado - disse a freira mais moça.

A outra balbuciou:

- Quer dizer que ... terei de ficar assim durante toda a viagem?

- Sim, até que ponhais o pé na casa de vosso tio. A bordo de um navio há sempre homens rudes e vulgares, e vós não tendes ninguém que vos proteja. A única proteção, para vós e para soror Lúcia, é o hábito monacal e o medo que o capitão tem de vosso tio.

A freira mais velha suspirou, enquanto a outra exclamava:

- E vós, sir Piers, nos deixais? Vinde conosco, Piers!

Sem qualquer sombra de ironia ele murmurou:

- Impossível, senhora; que Deus vos acompanhe. E agora, embarcai. Tomai vossa trouxa ... eis aqui a vossa, soror Beatriz.

Ajudou-as a descer murmurando os últimos conselhos:

- Não mostreis a ninguém o ouro e as jóias ... Pendurai um cobertor à porta da vossa cabina para terdes certeza de que ninguém vos espia por alguma fresta. A bordo há um marinheiro chamado Miguel, um rapagão moreno a quem dei uma moeda de ouro para que cuide de vós. Disse-lhe também que se vos acontecer alguma desgraça D. Pedro mandará enforca-lo. Pareceu-me de confiança. Em todo caso, sejais prudentes e não esqueçais que sois freiras...

- Piers, Piers ...

- Deus esteja convosco, senhora adorada.

Virou-se e dirigiu-se à carruagem. Robin já estava na boléia. Tomou lugar a seu lado e segurou as rédeas; fez uma curva tão brusca que alguns que estavam perto, imprecando saltaram de lado.

Piers parou num ponto donde se podia ver a "Conchita", e ficou olhando-a durante duas horas até que abriu as velas e, afastando-se no mar, tornou-se cada vez menor.

- Agora vamos - disse com voz embargada.

- Muito bem, mas aonde?

- A tua pergunta parece-se com a de "soror Rogério". A Verona,

naturalmente.

- A Verona? Fazer o quê?

- Visitar as prisões.

Enquanto a carruagem percorria as ruas de Nápoles, Robin, preocupado, mastigava a ponta dos bigodes. Loucura, para loucura: única vantagem, Verona estava no caminho para a Inglaterra.