CAPÍTULO V

- A coisa está se tornando tremendamente aborrecida - resmungou Landolfo.

- Por, quê? - perguntou Rinaldo esvaziando o cálice.

- Monte São João é um péssimo sucedâneo de Roca-sêca ou de Aquino. R muito pequeno. Apenas uma dúzia de servos para todos nós, e nada de música ... exceto a tua, é claro ...

- Obrigado.

- De nada. Não vem ao caso. Nada de trovadores, nada de festas, nossos amigos infinitamente longe ... dir-se-ia que estamos sitiados.

- De fato, o estamos, meu irmão, - confirmou Rinaldo alegremente. - Que queres? Temos numerosos inimigos: a inteira e poderosa Ordem dominicana, com não sei quantas centenas ou milhares de guerreiros de saia alvinegra, e talvez também o papa com o seu exército de indigentes, todos estão atrás de nós porque lhes roubamos o indigente de todos os indigentes, a jóia de todas as jóias, o seu máximo orgulho, o incomparável, o insubstituível irmão Tomás.

- Será que nunca falas a sério?

- Nem pensemos nisso. Chega a vossa seriedade. Sois tão sérios que excitais os nervos uns dos outros. Tu, então, irmãozinho, tens a consciência pouco limpa.

- Por quê?

- Porque roubaste o precioso irmão Tomás e o encarceraste mima garrafinha de cobre com o selo do rei Salomão. E agora suportas lima grave e espantosa maldição: és obrigado a vigiar a garrafinha de cobre para que o gim não possa escapar. E gostaria de saber o que há de mais chato que vigiar um gim engarrafado. Não me admira que resmungues.

- Poderíamos ter levado o jovem a Roca-sêca ...

- Não, Landolfo, não era possível. Não se pode considerar glorioso manter encarcerado um membro da família no castelo de seus antepassados.

- Cárcere? A sala da torre é bem espaçosa ... guarnecida muito melhor que a cela que lhe teriam reservado em seus malditos conventos.

- Juízo leviano, como sempre, meu caro. Ele quer justamente a cela e não a sala da torre. Na cela teria pouco conforto, mas o teria renunciado espontaneamente. Aqui, ao contrário, o obrigamos a viver como vive: esta pequena diferença chama-se liberdade. Mas, a propósito, mamãe deseja que se fale o menos possível disso, assim insistiu lògi- na escolha de Monte São João ... onde não recebemos hóspedes. Bebes outro copo?

- Sim, obrigado. Sabes que te quero dizer uma coisa?

- Não, porém di-la-ás se o pedires com bons modos.

Tomás. Di-la-ei, queiras ou não. Eis: aqui somos tão prisioneiros quanto

- Claro - riu Rinaldo, - Esta é a sorte dos algozes. Mas talvez se pudesse fazer alguma coisa.

- O diabo que o leve, aquele jovem idiota - explodiu, - Quisera dar-lhe uma surra por iodos os dissabores que nos tem causado. Quisera , , ,

Calou-se vendo entrar a condessa com uma de suas damas.

- Ah! estais aqui ambos! Vou ver Tomás, que teve uma semana inteira para pensar na vida. Deveria ser suficiente. Mas recusarei vê-lo até que vista aquela absurda roupa de mendicante. Eis aqui roupas decentes. Entrega-a ao conde Landolfo, Eugênia, e tu, Landolfo, leva-lhe e diz-lhe que se vista decentemente. Depois manda queimar aqueles trapos brancos e pretos. e, se resistir, obriga-o.

Landolfo atirou uma olhadela a RinaIdo.

- Pode ser que resista - disse ele animado de boas esperanças. - Obrigado, mamãe, estejas certa que os teus desejos serão satisfeitos. Depois saiu rindo.

- Sabes, mamãe, que es extraordinária? - disse RinaIdo. - Não creio que outra mãe tivesse sabido resistir uma semana inteira sem ir ver o seu pimpolho. Gostaria, porém, que em lugar de Landolfo e eu, fossem as meninas que levassem a comida a Tomás. È tão ridículo! . .

- Está bem, falarei com elas. Compreendo muito bem que desejarias ter um pouco mais de tempo disponível .. . sair e poder estar fora uma ou duas noites ...

- Mamãe, és um gênio!

Nisso ouviu-se um ruído de madeira quebrada e a voz de Landolfo, estranhamente rouca e apgada, mas não tanto que não ouvisse o nome de RinaIdo.

- Rinaldo! ...

- Parece-me que alguma coisa está fora do lugar - disse o poeta. - Ou então excessivamente no lugar. Vou ver. - E saiu lentamente. O rumor aumentou e continuaram os ruídos de madeira quebrada. Afinal, voltou o silêncio; os dois irmãos entraram.

- Mãe Santíssima! - exclamou a condessa. - Que aconteceu?

Landolfo tinha o nariz vermelho e inchado, e com lima careta cie dor passava a mão na cabeça, onde estava nascendo um galo. Tinha os cabelos desgrenhados e as roupas rasgadas. Estava tão ridículo que Eugênia não pôde reprimir o riso. Rinaldo vinha com um olho roxo. Ambos suavam abundantemente e respiravam custosamente, mas traziam o troféu da vitória: os farrapos do que fora um hábito dominicano.

- General, - disse Rinaldo dirigindo-se à mãe - eis a vitória mas pagamo-la por alto preço.

- Não me digas que Tomás...

- Belo monge, aquele! - exclamou Landolfo sem fôlego.

Nunca ... vi ... coisa assim. Bateu-me na cabeça com um pedaço de cadeira.

- Landolfo passou um mau momento - explicou o poeta. Quando cheguei estava estendido no chão e Tomás, sentado em cima, imobilizava-o. Aproximei-me, mas o rapaz foi ligeiro e deu-me uma pancada no olho. Há um espelho por aí? Devo estar de meter medo! Enganamo-nos todos: tu, mamãe, papai, todos nós. Não se lhe devia permitir que se fizesse frade. Parece que nasceu para manejar a espada. Aposto que racharia um sarraceno da cabeça aos pés com um único golpe. Ai! como me dói este olho!

- E tudo isso - resmungou Landolfo - só porque, conforme o teu desejo, quis tirar-lhe estes trapos.

- Chega, Eugênia! - bradou a condessa, e a mulherzinha parou de rir. - Vai-te. -Depois, dirigindo-se a RinaIdo: - Está ferido também Tomás?

- Não posso dizer - confessou RinaIdo. - Não tive tempo de verificar. Mas ele também deve ter apanhado.

- Espero - disse Landolfo com raiva.

O quarto em que Tomás estava preso ficava no fundo daquele corredor. A chave estava na fechadura.

- Boa esta! - exclamou Landolfo que, tendo sentado, enchia um copo de vinho. -Nunca tive uma surpresa assim. Um frade que distribui pancadas como um doido.

- Como foi que começou?

- Pedi-lhe os trapos da Ordem ...

- Com bons modos, é claro!

- Mais ou menos.

- Compreendo.

- Raios, quisera dar-lhe uma surra em regra.

- Se o tivesse sabido, ter-te-ia deixado gritar à vontade, e agora enxergaria com ambos os olhos.

- Ele não a merecia, talvez?

- Pode ser - respondeu RinaIdo. - Mas quem apanhou foste tu ... e eu também. Não penses que ele tenha apanhado muito. Caramba, é forte como um touro. E o que é pior ...

- Que é?

Propus à mamãe que as refeições sejam-lhe levadas pelas meninas em vez de nós, e ela concordou perfeitamente. Sabes, queria ir a Nápoles visitar a pequena Bárbara.

- E que diabo vem a ser a pequena Bárbara? Ai! a minha cabeça!

O olho bom de RinaIdo tomou uma expressão sonhadora.

- É a mais fascinante garota de Nápoles, uma pessoazinhá extraor- doce. Infelizmente não fui eu só a descobri-Ia. Ela cuidou disso ... a ponto que meia Nápoles atirou-se a seus pés, e receio muito que não se tenha contentado só com os pés. Bárbara tem diversas coisas para dar, irmãozinho meu, e as dá com toda generosidade.

Esperava ir vê-Ia amanhã à noite, na sua casinha cor-de-rosa, pouco longe de Santa Inês; e agora, não é mais possível.

- Por quê?

- Ora, basta olhar-me. Serão preciso três ou quatro dias antes que passe o inchaço e, ainda assim, ficarei com o olho marcado. Iria rir-se de mim.

- Não sei por quê. Se é uma meretriz, tomará o teu ouro mesmo que fosses corcunda como o bobo do imperador.

- Landolfo, Landolfo! - exclamou RinaIdo escandalizado. - Não fales assim da pequena Bárbara, que toma o meu dinheiro, sim, mas nem por isso renuncia ao senso estético. Não pretendo de modo algum mostrar-me a ela neste estado.

- Daí podem-se tirar duas deduções - observou Landolfo. - Em primeiro lugar, ela tem bastante dinheiro para permitir-se fazer preciosa quando lhe dá na veneta. Em segundo lugar, não se trata do seu senso estético, mas do teu, ou seja; tu és imensamente vaidoso. Onde disseste que fica a sua casinha?

- Pouco longe de ... não, não, irmãozinho, tu estás com um aspeto pior do que o meu. Já eras feio antes que Tomás te pusesse o nariz como um tomate, os olhos chorosos e aquele galo na cabeça. Oh! a minha pequena Bárbara! Fui um bobo. Era mesmo preciso que fosse salvar-te? Não podia deixar-te tranqüilamente sob o peso de Tomás? Se visses como é volúvel: as vezes parece uma lagartixa ao sol, indolente, quieta, e basta tocá-la para que desapareça como uma enguia; outras vezes é toda fogo e paixão, como a Astarte dos fenícios, e consume-te nas chamas do seu amor, e ficas com a impressão de que sejas o único que lhe importe, que para ela não haja outros homens no mundo, e que morreria de paixão se a abandonasses. Inspirou-me o Lamento, uma das minhas melhores canções:

Nunca me conforto
Nem me vou alegrar.
Os barcos estão no porto
E querem zarpar:
Vai embora muita gente
Em terras de além-mar;
E eu, aflita, dolente,
Por que hei de ficar?

- Bonita! - aprovou Landolfo generosamente.

- Raios do diabo! - explodiu RinaIdo - e agora não posso ir vê-Ia, não posso abraçá-la porque o irmão monge machucou-me um olho.

- Como monge, fez muito bem - disse Landolfo com ironia. Preservou-te, senhor poeta, de um pecado mortal.

RinaIdo olhou-o estupefato e acrescentou:

- Não são brincadeiras que se façam.

Levantaram os olhos e viram aparecer a condessa: pálida, zangada, mordendo os lábios, encaminhou-se ao corredor dos seus aposentos sem dizer palavra.

Rinaldo assobiou entre os dentes e disse:

- Nós apanhamos, caro irmão, mas creio ... creio que as coisas não tenham corrido melhor para mamãe.

As três irmãs discutiram longamente qual delas deveria levar as refeições ao prisioneiro, e tinham decidido alternar-se, enquanto Marta, a maior, insistira para ser a primeira e lutara quase meia hora para o conseguir; mas quando trouxeram os pratos da cozinha, foi acometida de uma repentina hesitação.

- E se me bate também? Parece tão mudado desde que entrou para aquela Ordem ... Quem teria imaginado que ...

- Ora, vamos, Marta! Se tens medo, eu poderia ...

- Não, não, eu vou.

Mas quando entrou na prisão os pratos tremiam em suas mãos. O feroz frade estava sentado numa grande cadeira e lia Aristóteles. Com má vontade tinha posto as roupas escolhidas pela condessa: uma longa casaca verde com um cinto de couro bordado a ouro, meias verdes e sapatos de veludo também verde. Quando Marta entrou ele levantou os olhos:

- Oh! Marta! Que prazer!

Ela sorriu meio incerta:

- E tu ... não estás ferido?

- Ferido eu? Ah! sim, é verdade, cometi uma péssima ação. Tinha-me esquecido que não devia ... que não devo. E reagi às pancadas...

- Eu sei. E deste com vontade em ambos.

- Foi uma ação indigna, mas Landolfo queria arrancar-me o hábito da Ordem que recebera há poucos dias do meu prior,. Tomás Gani de Lencinho, um verdadeiro santo, ao qual, tenho certeza, quererias bem se o conhecesses. Fazia muita questão daquele hábito, e quando Landolfo caiu-me em cima para tirá-lo, eu me defendi... talvez em excesso; mas aprendi uma coisa.

- Qual, Tomás?

- Agora sei porque estou aqui, porque Deus permitiu que isso acontecesse.

- Agora come, Tomás. A comida está esfriando.

Obediente, ele começou a comer, mas a irmã compreendeu: não sabia o que estava comendo. Pareceu-lhe que ele falasse de uma distância incomensurável, distância esta que lhe dava uma angústia desconhecida. Aproximou-se dele e, acariciando-lhe a fina coroa de cabelos escuros e brilhantes, pensou: "Tem uma cabeça que é duas vezes a minha" e disse:

- Não compreendi. Que queres dizer com as palavras "sei porque Deus permitiu que isso acontecesse"? Gostaria de saber.

Ele olhou-a com olhar grave. Era a maior e a melhor de suas irmãs, aquela pela qual sempre tivera especial carinho. Parecia-lhe que uma parte do seu caráter, a tímida bondade, tivesse tomado aquela graciosa forma feminina dos olhos profundos e pensativos e dos lábios finos e pálidos.

- Estávamos indo a Paris, eu e os outros frades, e nunca me sentira tão feliz. Ia em direção de minha meta, ao trabalho e estudo. Ia recolher tesouros para glória de Deus e da Ordem. E eles vieram, cercaram-nos e nos obrigaram a voltar atrás com eles. Orava "seja feita a tua vontade", mas continuava a pensar: por que Deus o permite?

- Caro Tomás acontece freqüentemente não compreendermos por que Deus permite isto e aquilo.

- Certamente. Mas agora compreendi. A culpa não foi nem o orgulho de mamãe, nem a violência de Landolfo e de Rinaldo, mas sim eu mesmo, a minha insuficiência: Deus não me quer ainda.

Ela tinha lágrimas nos olhos e disse com voz trêmula:

- Um de nós dois é muito tolo... eu, provavelmente ...

E fugiu.

- Bateu em ti também? - perguntou Adelásia curiosa.

Marta escapou sem responder, e como as lágrimas lhe ofuscavam a vista, acabou parando nos braços de Robin Cherrywoode, que se dirigia ao posto de guarda.

- Qual o desgosto, nobre donzela?

- Não, nada - soluçava Marta.

- Estou vendo. Mas talvez não faça mal confiar num velho guerreiro que poderia dar-lhe um bom conselho.

Ela meneou a cabeça.

- É por causa de Tomás. Tomaram-lhe o hábito da Ordem e agora pensa que Deus não o queira. Caro Robin, nunca vi ninguém tão triste como ele quando me disse que Deus não o quer.

- Onde está agora aquele hábito?

- Está em pedaços. Tem-no Adelásia.

- Sim, sim... Olha, dá-me aqueles farrapos. Compreendo que não servem mais, mas fazei-os chegar a mim assim mesmo, e... se acontecesse alguma coisa ... prometes-me calar, não? Espero aqueles trapos.

Uma hora depois, sôbre a muralha Piers viu sobressair da couraça do seu escudeiro algo de branco e preto.

- Robin, que tens aí? _- Uma saia, senhor.

- Pretendes tornar-te frade?

- Nada disso, senhor. E o burel dele, que lhe tiraram à força. Mas defendeu-se bem o jovem senhor - acrescentou com um sorriso. Ter-se-ia tornado um bom soldado.

- Que vergonha, Robin! Foi um golpe de muito mau gosto.

- Exato, senhor. Se alguém quer ser monge, por que não lhe dar essa satisfação? Só se faz bem o que se faz com prazer. Não deviam tirar-lhe o hábito. Seria como partir a espada a um cavaleiro.

- Dizes bem, Robin. Não vejo o momento em que vença o nosso compromisso.

- Na Inglaterra uma coisa assim não aconteceria, mas já que aconteceu pensei que ... que talvez ...

- Que pensaste, meu caro Robin?

O escudeiro hesitava. O hábito estava reduzido a um monte de trapos, mas quem o tinha dado devia ter outros, e lá em baixo, atrás daquelas árvores, via-se uma estranha mancha alvinegra ... E não era a primeira vez que Robin a via. Certamente podia-se vê-Ia e a não ver ... dependia da vontade da sentinela...

Piers olhou para o lado indicado por Robin e começou a compreender.

- Sim, sim. O turno de guarda é nosso. Irei perlustrar a parte oposta. - E se foi.

Robin sorriu satisfeito, e, por decência, esperou que o patrão tivesse desaparecido. Depois, tirando os panos alvinegros, pôs-se a agitá-los no ar. A mancha escondida atrás dos oleandros ` aumentou e tornou-se um dominicano, que olhava com curiosidade para a torre.

Robin continuou a agitar os trapos, mostrou-os ao monge e depois atirou-lhos. Aquele apressou-se em recolhê-los, enquanto Robin iniciava uma pantomima que qualquer ator teria invejado: era tão simples que um menino a teria entendido. Robin estendeu diversas vezes as grossas mãos como para retomar o hábito, mostrou os dez dedos e depois mais um, e repetiu o gesto. Para sua satisfação viu que o monge sorria e, feito um sinal de assentimento, afastava-se às pressas.

Pouco depois Piers voltou.

- Nenhuma novidade, senhor, - anunciou Robin radiante.

Piers reparou que os trapos alvinegros não apareciam mais debaixo da armadura e que também a mancha atrás das árvores tinha desaparecido.

- Está bem, Robin.

Foi por puro acaso que, nos dias seguintes, coube a Robin o turno de guarda do ocaso à meia-noite. Na terceira noite, pelas onze horas, viu o que esperava. Fez um sinal com a tocha e poucos minutos depois dois dominicanos aproximaram-se cautelosamente com uma vara comprida e fina, em cuja ponta estava amarrado algo branco e preto; levantaram-na até que o estandarte de Deus alcançou a extremidade do muro.

Landolfo estava palidíssimo.

- Mamãe, que negócio é este?

- Fala.

- Agora mesmo estive no quarto de Tomás e encontrei-o novamente com o hábito da Ordem.

-. Como?

- Exatamente. Será ... feitiço?

- Pior - respondeu a condessa. - É uma traição. - E pegou na campainha. Teriam sido as meninas? Muito provavelmente. Em todo caso, levando-lhe as refeições deviam ter percebido, porque desde então ninguém tinha posto pé no quarto. Mas não tinham falado. Aliás, andavam muito em torno daquele quarto. Seria o caso de chamar sir Piers e enviá-lo com dois homens a arrancar o segundo hábito? Depois de três dias, a coisa se repetiria. Não, não valia a pena fazê-lo: e largou a campainha de prata.

- Se faz mesmo questão, deixa que aquele tolo se fantasie como quer - disse aborrecida.

- Muito bem - aprovou Rinaldo do seu canto. - Landolfo, o teu nariz ainda está inchado, não? A minha vista alcançou só agora o estágio amarelo escuro. Que pena! não adiantou nada o que fizemos! Mamãe, penso que cometemos um erro. Convinha deixá-lo agir.

- Nunca! - exclamou a condessa asperamente.

- Mamãe, não sei, mas sinto uma estranha sensação. A idéia de Landolfo não é de se desprezar: deve haver algum feitiço em todo esse negócio. Tiramo-lo da sua miserável Ordem, é verdade, mas todos ficamos enfeitiçados. Em vez de estarmos em paz em Roca-sêca, sepultamo-nos aqui, em Mpnte São João, como se fossemos nós os prisioneiros, e tudo gira em torno do quarto da torre. Antes ninguém prestava atenção a Tomás, enquanto agora tornou-se o centro de todos os nossos pensamentos e atos. Dir-te-ei, mamãe: quando o trouxemos para cá tive uma estranha sensação, que então me pareceu tão tola que nem tive coragem de falar. Agora, porém, vou te dizer: tive a impressão de que arrastássemos para dentro destes muros o cavalo de Tróia.

- Que bobagem! - exclamou a condessa. - Verás que ele cria juízo.

- Escuta, mamãe, até agora falaste com ele uma dúzia de vezes ... não? Digamos, meia dúzia. Cedeu ele uma polegada sequer? Não: fica ali quietinho e satisfeito, não diz uma palavra e não se move. As irmãs falaram-lhe até enrouquecerem. Em vão. Não pretendes, creio, mantê-lo trancado por toda a vida.

- Rinaldo, eu sou a chefe da família e nunca aprovarei essa loucura. A notícia que nos trouxe Landolfo dá-me até prazer: é um bom sinal e prova que Tomás ainda é uma criança. Quer o hábito dominicano, nada mais. Está bem, cederemos neste ponto, mas no ponto mais importante terá que ceder ele. Escreverei ao papa e suplicar-lhe-ei permita que Tomás, como abade de Montecassino, continue a vestir seus trapos dominicanos.

Uma semana depois, Sinibaldo Fiesque, conde de Lavanha, papa com o nome de Inocêncio IV, recebeu a carta da condessa de Aquino e a entregou .ao secretário, dizendo com voz cansada e um tanto irritada:

- Concedo.

- Está bem, santidade.

O secretário retirou-se, enquanto o papa se engolfava em seus pensamentos, que a carta da condessa interrompera um instante.

A paz, então, apesar de tudo: finalmente a paz. Os preliminares e as conferências com os homens de Frederico - Della Vigna, Tadeu de Sessa e o arcebispo Berardo - tinham-se arrastado por semanas a fio. Tinham sido discussões antipáticas com homens hábeis e irônicos, cujos modos corteses serviam para esconder uma irredutível hostilidade. Tivesse sido apenas hostilidade! Escondia-se também a traição - pronta a explodir sob os suaves e zombeteiros sorrisos - que parecia quase uma coisa viva e palpável.

Acordos e pactos com tal gente que podiam valer? Era bem doloroso escutar Della Vigna que enumerava nos dedos as vantagens da paz na qual ele próprio não acreditava, aquele Della Vigna de barba preta e olhos oblíquos, que poderia inspirar um grande pintor para um retrato de Judas Iscariotes e, apesar disso, era o mais fiel dos partidários de Frederico, para os quais o imperador representava um santo e mais ainda. Ele falava de Frederico como os muçulmanos falavam de Maomé, com uma fé admirável, embora mal aplicada e com visível desprezo pelo infiel sentado no trono papal. Um homem que, sem escrúpulos, trairia qualquer juramento, desde que isso fosse útil à causa do imperador. Ser obrigado a ouvi-lo. era muito doloroso.

Pior ainda era aquela pesada e gorda massa de carne que representava o arcebispo Berardo de Palermo, e desde o princípio, se pusera ao lado de Frederico e com ele repartia a excomunhão. Pelo menos dele se podia esperar um arrependimento sincero: porém ele queria traficar com Deus e com São Pedro como um velho miserável que, no confessionário, discutisse com o sacerdote para chegar a um acordo sôbre o seu vício predileto. O imperador tinha-o nomeado "chefe da Igreja da Sicília", como lhe assistisse o direito de distribuir cargos, o que só à Igreja compete. Temia rebaixar-se ... em vez de estar aflito pela sua alma. Os outros dignitários eclesiásticos, como ele, eram a melhor prova de quanto fossem necessárias as Ordens mendicantes ...

O grande predecessor de Fiesque, Inocêncio III, tinha sonhado, dizia-se, que São Francisco sustentasse com seu débil corpo, como um católico Atlante, a igreja de São João do Latrão e o palácio do papa, e Inocêncio pensava tratar-se de um sonho profético. Talvez o fosse mesmo ...

Feliz aquele que, sendo franciscano ou dominicano, podia louvar a Deus de manhã a noite, trabalhar e estudar para maior glória de Deus sem ter de enfrentar um emaranhado de víboras. Mas urgia trazer a paz ao século atormentado: sem renunciar a nenhum princípio, era preciso ceder em tudo mais até onde fosse possível, desde que se tivesse paz. O armistício já tinha sido combinado e, graças a Deus, as negociações pareciam aproximar-se da conclusão. Havia finalmente algo que se podia esperar com fundamento ...

Silenciosamente, pôs-se a orar.

As três irmãs nunca se acostumaram totalmente ao seu "prisioneiro". Era um acontecimento quando uma delas, com algum pretexto, entrava no seu quarto, embora ele geralmente prosseguisse em suas leituras. Não que aquela fosse uma atitude estudada ou um comportamento para não ser incomodado. O que acontecia era que Tomás não dava pela sua presença.

Teodora não sossegava, mas continuava a falar até que ele levantasse o olhar e respondesse, ou então tirava-lhe o livro das mãos, intimando-o: - Conta-me alguma coisa - como se fosse uma menina e Tomás seu avô. Ele cedia sempre e falava daquilo que tinha lido, mas depois de alguns minutos Teodora renunciava: - Coisas excessivamente elevadas para mim, irmão monge.

Tomás não o admitia, e recomeçava do princípio,, dando explicações mais simples, até que ela tinha de reconhecer ter compreendido.

Adelásia também tinha que ouvir dissertações sôbre Aristóteles e Pedro Lombardo.

A situação de Marta, que ia lá mais freqüentemente que as outras, era bem diversa. Geralmente ela sentava junto dele, ou no chão ou a seu lado, e ficava lá meia hora ou mais sem dizer palavra. Adelásia, que tinha notado isso, perguntou-lhe por que, e recebeu esta resposta:

- Porque lá reina a paz.

As vezes, porém, Tomás falava também com ela, que ficava escutando de olhos muito abertos e com rosto sério, depois fazia perguntas tocando sempre o cerne da questão. Ele contava de São Domingos e de São Francisco. Quando falava de São Bento, parecia-lhe notar na sua voz uma ligeira tristeza.

- Tomás, não sentes tê-lo abandonado? Para mim é o mais querido de todos os santos de que me falastes.

Longa pausa.

- Não, Marta, não estou desgostoso, mas queria ... não escolhi eu a Ordem, a Ordem beneditina. Escolheu-a papai quando tinha eu cinco anos. Mas, uma vez conhecidos os fins da Ordem dominicana, compreendi que nela é que devo agir. E claro, havia outras razões que não posso dizer nem mesmo a ti, minha querida. Agora eu sou o que Deus quer que eu seja: um dominicano ainda não unido a seus confrades. Porém, nas fileiras dos discípulos de São Bento deixei um vazio ... e é isso que me penaliza.

Depois de uma pausa ela disse:

- Creio que seja muito difícil ser frade ou freira.

Ele sorriu e o rosto dela se iluminou.

- Crês? As moças fazem o possível para serem belas de aspeto ... mas descuram a beleza interior. As freiras, ao contrário, procuram ser belas interiormente, e essa beleza irradia-se também no exterior.

Marta sacudiu a cabeça:

- Ser frade ou freira significa aspirar à santidade, e para tornar-se santo deve-se ser enormemente virtuoso.

- Não, Marta, não é bem isso. A santidade é amor perfeito, e todas as virtudes não são mais do que o fruto deste amor.

Calaram-se ambos por algum tempo, depois Marta levantou-se exclamando: - Nunca poderei tornar-me freira - e saiu correndo. Sur- acompanhou-a com o olhar e retomou o livro. Um minuto depois tinha-a esquecido.

Na tarde desse mesmo dia a condessa entrou no aposento de Tomás, e, triunfante, mostrou a resposta do papa que lhe permitia usar o hábito dominicano mesmo como abade de Montecassino.

Tomás ficou imóvel, fixando o chão.

- Então, que dizes? Satisfeito? Ou ainda não?

- Mamãe, não visto este hábito por gosto, uso-o com todo o seu significado. Sou dominicano.

Ela bateu o pé:

- O famoso voto de obediência parece não representar muito para ti. Quererás opor-te também ao Pontífice?

Ele não notou quanto fossem injustas aquelas palavras; não sabia que ela tinha escrito ao papa, nem conhecia o texto da resposta papal que deferia muito friamente o pedido dela "quando o fato mencionado em sua carta estivesse maduro". Limitou-se a dizer lentamente:

- Se o santo padre tiver de me impor alguma coisa, fá-lo-á através dos superiores da Ordem.

- Tomás, Tomás!

- A regra quer assim, mamãe.

- És mesmo insuportável - gritou a condessa, e saiu tremendo de cólera.

Em seguida manteve uma longa conversa com Landolfo e Rinaldo, durante a qual os dois jovens pouco disseram:

- Vós estais aí de mãos abanando - concluiu. - Por que não ides dizer-lhe a vossa opinião? Eu cheguei ao extremos das forças e da paciência. Sei que não o tomo pelo lado certo, já que sempre o seu silêncio me enfurece. Não sei comportar-me de outro modo; agora deveis agir vós. Certamente não quero que o surreis de novo, mas tu, Rinaldo, que pretendes ser poeta, deverias saber exprimir o que pretendo e que todos pretendo-mos. Vai falar com ele!

Rinaldo suspirou:

- Um poeta contra um santo: verdadeiramente um belo torneio! Landolfo providenciará os ruídos de fundo. Quero dizer, fará o coro grego. Procura compreender, Landolfo: tu personificas as três Erínias, as Eumênides que ameaçam o culpado com a ira perpétua dos deuses, e, se Tomás continua a não querer fazer a vontade de sua mãe, o exílio perpétuo dos abençoados Elísios.

- Como, como? Que é que terei de fazer? - A mitologia grega não era o seu forte.

- Deves representar as três anciãs com as serpentes na cabeça. Mas deixemos isso: ouve-me e aprove meus planos. Se tu, mamãe, concordas, adiemos para amanhã o assalto. Já é tarde e ele deita-se cedo; creio que ele siga o horário do mosteiro.

- Eu sei, - acrescentou a condessa, aborrecida - como sei que cometi um erro deixando-lhe o hábito da Ordem. Entre ele e a Ordem esse trapo representa uma espécie de liame, não é apenas um capricho. Mas agora que o papa deferiu o meu pedido não se pode voltar atrás. Então estamos de acordo: até amanhã.

Foram na tarde seguinte e Rinaldo fez um belo discurso. Começou evocando o desejo paterno de que Tomás estivesse em Montecassino como expiação do assalto que há mais de vinte anos o velho conde desferira contra o convento. Falou da profunda e sincera mágoa da mãe. Como? O nome de Aquino não representava nada para ele? Ninguém queria obrigá-lo a viver no mundo, e todos respeitavam a sua vocação para o sacerdócio: mas São Bento não era um santo igual a São Domingos?

A argumentação era convincente, mas Rinaldo era muito bom observador para não perceber que o dardo havia atingido o objetivo. Repetiu-o, pois, com algumas variações. Tomás não pensara na opinião que São Bento faria do seu modo de agir? Afinal das contas ele tinha prioridade: era justo, era nobre, era piedoso largá-lo por amor de outro? Não seria a oposição da família, e especialmente da mãe, um sinal de São Bento? E vice-versa, se realmente Tomás era chamado a seguir São Domingos, como se explicava que Rinaldo e Landolfo tivessem conseguido interromper a sua viagem? Não era de se pressupor que o santo teria de ajudá-lo e que agora deveria estar nalgum convento dominicano da Itália setentrional ou da França?

Landolfo ficara boquiaberto com a admirável dialética do irmão.

Tomás ouvira pacientemente; com aqueles grandes olhos redondos parecia um pouco com uma coruja pensativa.

- Num ponto, Rinaldo, tens perfeitamente razão: São Bento perdeu um de seus filhos...

- Vês?

- ... que Deus, porém, encontrará modo de substituir como e quando quiser. Eu era apenas um oblato; agora sou um dominicano. Quer dizer que subordinei minha vontade à dos meus superiores, e são eles, não eu, que decidem a meu respeito.

- Em outras palavras, - rebateu Rinaldo - posso pôr-me em contato com teus superiores e dizer-lhes que, se concordam, estás pronto a abandonar a Ordem.

- Não - respondeu Tomás com firmeza. - Sou e serei sempre dominicano, a menos que me expulsem.

- Escuta, irmão, - explodiu Rinaldo - és a mula mais teimosa que já encontrei. Pois bem, se devemos mesmo ter na família um frade mendicante, cuidaremos pelo menos que a nossa vergonha não esteja à vista. Fica aqui nem que seja por vinte anos. Não me incomodas.

- Tomás, tu nos colocas numa situação desagradável - interveio Landolfo. - O imperador odeia as Ordens mendicantes, e nós dependemos dele.

- Porém o imperador depende de Deus - replicou Tomás tranqüilamente.

- Mas o imperador não crê em Deus - riu RinaIdo.

- Se isso é verdade, - disse Tomás - por que fazeis tanta questão de o servir? Se servis a um homem que não serve a Deus, como podeis, vós mesmos, servir a Deus? A menos que o façais como o pior dos pecadores: contra vontade. Não estais cansados da aliança com esse homem que persegue todos os sucessores de Pedro?

- Os papas vêm e vão - asseverou Landolfo dando de ombro - o imperador fica. E ainda não é velho.

- Como a verdade é exatamente o oposto, deves estar errado rebateu Tomás com indiferença.

Rinaldo riu de novo:

- Landolfo, não entres em litígio com este dialético. Tu, pois, Tomás, estás errado e vou demonstrá-lo. Tu não sabes como as coisas estão se desenrolando nestes tempos. Esta manhã chegou um correio com notícias importantes: papa e imperador fazem as pazes; a excomunhão será revogada a 6 de maio em Roma; o imperador já está de viagem: como vês, não apostamos errado. - E levantou-se. -Então, irmão monge, rogo-te refletir. Verifique se o teu liame com os mendicantes profissionais aparece-te mesmo mais importantes que o voto ele papai e a honra da família. Boa noite.

Fez sinal a Landolfo para não dizer mais nada e ambos saíram. Tomás pensou na grande e santa alegria que teria enchido o coração dos seus confrades com a notícia da paz. Tanto a haviam desejado, aquela paz, e agora chegava...

- Houve um momento - disse RinaIdo quando estavam fora - em que me pareceu tê-lo agarrado. Foi quando disse que abandonou São Bento. Chegou mesmo a admiti-lo ...

- E, mas Deus pensará em substituí-lo como e quando quiser citou Landolfo com ironia. - Não se sabe de que lado assaltá-lo, e eu (ligo que está doido.

- Que está havendo? - perguntou RinaIdo. - Ouço a voz de mamãe zangada. Com quem estará brigando?

- Com Marta, suponho, que não se apareceu durante todo o dia.

Os dois entraram nos aposentos da condessa.

- Temo que não ficarás muito satisfeita, mamãe, se te digo que não conseguimos nada. Landolfo pode confirmar que falei com eloqüência angélica.

A condessa estava muito pálida.

- Chegais num bom momento para congratular-vos com vossa irmã Marta. Escondida, atrás das minhas costas, foi a um convento de beneditinas e apresentou o pedido de admissão. Quer fazer-se freira beneditina!

Os irmãos olharam-se assombrados e RinaIdo explodiu numa gargalhada:

- Por todas as Fúrias, São Bento achou o substituto! Landolfo, não estavas citando há pouco as palavras de Tomás? Repete, repete! Repete-as mais uma vez, se tens coragem!

- Seja o que for que digais, não mudarei a minha resolução afirmou Marta.

- Trazei vinho - suspirou RinaIdo. - O seu rosto tem a mesma expressão do de Tomás. Já o vinho, rápido. Sinto-me mal.

Naquele dia a condessa retirou-se cedo. Marta tinha sido fechada em casa, mas todos sabiam que aquela ordem, sugerida pela raiva, não teria durado muito. Em outras circunstâncias a condessa teria provavelmente aprovado a decisão da filha maior: a desgraça era que tal decisão viria consolidar a posição de Tomás. Embora a condessa tivesse proibido às outras duas filhas falassem com Marta, elas, logo que a mãe deitou, foram a capucha para o quarto da irmã e ficaram muito tempo conversando excitadas.

RinaIdo tinha proposto a Landolfo e a sir Piers um pequeno simpósio no salão, mas depois de cerca de uma hora Piers pediu desculpas e se retirou: não gostava de beber por amor da bebida.

- O diabo que o carregue, aquele jovem - exclamou RinaIdo. Vê se não vais deitar também tu, Landolfo! Esta noite preciso de companhia. Não quero ficar só.

- Enfeitiçou a ti também, parece - observou Landolfo.

- Quem, o inglês? Na Inglaterra a magia não se usa: só há neblina.

- Qual inglês, qual nada! Refiro-me a Tomás:

- Não o nomeies! - implorou RinaIdo. - Não agüento mais. "Deus o substituirá como e quando quiser", e eis Marta que quer fazer-se freira. Quem será o próximo, Landolfo? Tu, talvez, ou eu!

- Que estás fantasiando?

- Fantasiando? Meu caro Landolfo, é provável que tenhas razão. Enfeitiçou-nos a nós todos. Já vistes mamãe nesse estado? Marta vai fechar-se num convento. Adelásia há algum tempo fala demais em Deus: será difícil adivinhar o porquê.

- Mamãe não devia ter permitido às moças irem tem com ele: são muito influenciáveis.

- Dá-te por satisfeito de não ter tido que ir tu mesmo; de outra forma a estas horas estarias de saia.

- Não sejas idiota, RinaIdo.

- Não sou idiota, mas apenas um pouco elevado, exatamente ao ponto em que se vêem as coisas com maior lucidez. O cavalo de Tróia. Disse-o não faz muito à mamãe. Tiramo-lo daquele seu danado convento, e eis que transforma em convento o Monte São João. Não estamos vivendo há muito como frades e freiras? Dá-lhe ainda alguns meses de tempo e verás o que te arruma. E ele fica ali, redondo e gordinho, sem sujeição alguma. Mas, que digo, sujeição? Está vitorioso e triunfante. Tudo se desenrola como ele quer. - Assim falando levantou-se. demais, caro irmão, vou-me embora.

- Para onde?

- Para as cavalariças, buscar um cavalo, e depois para Nápoles, visitar a pequena Bárbara. Ainda bem que não está aqui, senão faz dela uma monja ... Por Vênus!

- Que te deu na veneta? - perguntou Landolfo admirado.

- Tive uma idéia - sussurrou RinaIdo. - Uma idéia extraordinária: a solução de todas as soluções. O fim do encantamento. Garanto-te. Landolfo, teu irmão é um homem genial.

- Que idéia seria esta?

- Não te digo - declarou RinaIdo com satisfação. - Pelos menos por enquanto. Ouve-me: estarei de volta ... vejamos ... sexta-feira a noite, finas tia não deves dizê-lo a ninguém. Entendido? Deves dizer que não tens idéia de quando voltarei. Bem, sexta-feira bem tarde, pouco antes da meia-noite. Providencia para que o turno de guarda seja teu. Não tenho nenhum desejo de que o inglês me interrogue.

- Não compreendo por que deveria fazê-lo.

RinaIdo riu:

- Poderia acontecer ... dada a situação. Tu estarás de guarda: faço questão e conto com isso. E verás que destruiremos os feitiços do frade. Na manhã seguinte seguir-nos-á como um cordeiro.

- Queres mesmo aplicar artes mágicas? - perguntou Landolfo entre o temor e a esperança.

- Certamente. Magia verdadeira e própria, e muito custosa. Deixa comigo. E lembra-te de não dizer palavra.

- Mas por que - perguntou a pequena Bárbara - por que queres que eu faça essa coisa? - e mirava-se atentamente no espelho veneziano, presente de um homem de aspeto muito nobre, que ela chamava Carlos, mas que tinha outro nome; e ela nunca lhe tinha perguntado o verdadeiro: não procurava ser curiosa, salvo em certas circunstâncias; mas ela tinha a sensação, justificada, de que neste caso a sua curiosidade teria sido perigosa.

- Por quê? - repetiu Rinaldo acariciando-lhe o ombro níveo. Queres saber por que, minha doce pombinha, meu purgatório, meu ídolo adorado? Vês, porque meu pobre irmãozinho me dá pena: não achas uma vergonha o ter ele chegado aos dezoito anos sem ter provado aquela doçura que se chama mulher? Aquilo que há de melhor na vida?

- E virgem? - perguntou a pequena Bárbara com interesse. Coisa rara, hoje em dia. Mas por que justamente eu? ...

- A resposta não é difícil, minha pequena serpente, minha cheirosa flor do Paraíso. Porque Somente a melhor pode servir para meu irmão. Justamente por isso vim de Monte São João até aqui, para isso estou pronto a certos sacrifícios financeiros ...

- És um hábil negociador - observou Bárbara. - Mas agora fala: aqui deve haver alguma coisa que não vai. Dizes-me que teu irmão é virgem aos dezoito anos, não quereria, porém, encontrar um velho nojento ou atacado de uma doença repugnante ou coisa semelhante.

- Não tens mesmo nenhuma confiança em mim? - perguntou RinaIdo em tom magoado.

- Nenhuma, nem um pingo.

- Está bem, dir-te-ei tudo. Há uma coisa que não vai: meu irmão é monge e crê que morreria no instante que ousasse fitar os olhos duma linda moça. Juro-te que não tem outros defeitos.

Bárbara divertia-se.

- Não o faremos morrer, pobre pequeno. Serei muito boazinha para com ele, tão boazinha que ele pensará já estar no Paraíso.

- Não tome a coisa com muita facilidade - admoestou RinaIdo. - E daqueles que se desvencilham deixando a capa entre os dedos rosados da mulher de Putifar. Bem, escapar verdadeiramente não poderá porque está fechado e preso: porém, nunca se sabe...

- Preso? - interrompeu Bárbara tornando-se desconfiada. - Por que o prendeste?

- Está bem, - suspirou RinaIdo - explicarei isso também. Mamãe mandou fechá-lo porque aquele bobo, no seu santo zelo, quer tornar-se frade mendicante. E idiota a tal ponto que dá vontade de chorar. Desconfio apenas que não queira nem olhar-te: mesmo tu poderás falhar.

Ela sorriu meio divertida, meio desdenhosa:

- Será de carne e osso, imagino ...

- Tem bastante de uma e outra coisa.

- Então não tenhas medo - garantiu a pequena Bárbara. - Se falhar, devolverei os teus dobrões de ouro, todos, até o último. Nunca me aconteceu desde os catorze anos. - Tocou uma campainha e depois de um, instante um velho de cabelo cinzento apareceu:

- Chamaste, patroa?

- Sim, Mateus. Atrela os cavalos. Vamos a Monte São João. São ... estou certa, RinaIdo? ... cerca de sessenta e cinco milhas. Prepara tudo que é preciso.

- Imediatamente, patroa. - O velho foi-se. Poucos sabiam que ele era o tio da rapariga, e que a empregada era, na realidade, irmã de Bárbara, muito menos bela que esta, é certo. Bárbara tinha o orgulho da família.

- Eh! Landolfo!

- Entra, RinaIdo. Achaste o necessário para ... para aquilo que queres fazer?

- Achei.

- Que é? Um filtro ou um esconjuro?

- E um súcubo.

- Um ... o quê?

- Tem dois seios brancos, fascinantes, lábios dulcíssimos, uma quantidade de cachos vermelhos e chama-se Bárbara. Está esperando lá fora, na carruagem.

Landolfo olhou-o fixamente.

- Enlouqueceste?

- Silêncio! - sibilou RinaIdo.

- Queres levar para dentro de casa de mamãe uma prostituta? ...

- Pára com isso! - incentivou RinaIdo em voz baixa.

Landolfo, porém, estava realmente zangado.

- Por mim podes ter as amantes que quiseres; nem eu sou santo: mas trazê-la aqui onde ...

- Queres calar a boca, simplório? Não compreendes que é o remédio para Tomás? Logo esteja entre seus braços ele esquecerá todos os santos mendicantes. Talvez não queira, mas terá de querer. Nestas coisas as Ordens não adiantam nada.

- Agora compreendo - disse Landolfo reprimindo uma gargalhada. - Es mesmo fenomenal. Por que não a fizeste entrar logo?

- Sim, para que tu a chamasses de prostituta e lhe dissesses como fazes questão da pureza desta casa! Conheço-te muito bem. Depois, tinha de explorar o terreno e verificar se todos dormem. Todos na cama?

- Sim, menos eu. Vai buscá-la, estou curioso por vê-Ia.

- Quieto com as mãos, porém, faz-me o favor. Não desejes a pequena Bárbara de teu irmão!

Não houve dificuldade em fazê-la passar pela ponte levadiça, apesar das sentinelas: duas moedas de ouro para cada uma e tudo se arrumou. Depois de um minuto a jovem embuçada estava em casa.

- Landolfo, toma-lhe a capa e o véu. Não, querida, este não é Tomás, é meu irmão Landolfo. Fica para outra vez. Agora segue-me na ponta dos pés ... temos que subir para o quarto dele. Tu, Landolfo, fica aqui: mesmo quando caminhas na ponta dos pés ouve-se por todo o castelo.

- Que bocadinho, meu irmão ...

- Silêncio, agora!

Subiram e alcançaram o quarto da torre. Rinaldo abriu cuidadosamente a porta e murmurou:

- Está deitado. Dorme. Vamos. entra.

E a pequena Bárbara entrou.

No leito estava um jovem monge gorducho com o hábito da Ordem. O sobretudo preto servia-lhe de coberta. Como toda noite, tinha jogado no chão a colcha e os travesseiros de seda. Dormia tranqüilo, sôbre o lado direito, com os punhos sôbre o rosto, como as crianças.

Que aspeto teria? Lentamente ela tomou com as mãos delicadas e sutis os punhos dele, que eram enormes, e os puxou para si.

Tomás acordou e ela viu um rosto jovem e enérgico, com sobrancelhas espessas sôbre os olhos pretos que olhavam para ela com serena benevolência. Mas logo a benevolência desapareceu e foi substituída primeiro por um imenso estupor, depois pela consternação.

- Quieto, menino querido! - murmurou ela com o seu mais doce sorriso. Mas ele levantou-se de um salto, repelindo suas mãos e continuando a olhá-la, mas já não com estupor ou consternação. Seu olhar não revelava nem cólera nem desprezo, e pareceu a ela que aquele jovem a reconhecesse, atravessando-a de lado a lado. Pela primeira vez deu-se conta de ser o que realmente era; ela compreendeu que seus triunfos não tinham sido de modo algum triunfos dela mesma, mas de um outro. Compreendeu ser carne pintada e vestida de seda, infestada de parasitas, e naqueles olhos negros pareceu-lhe vislumbrar um pouco de compaixão. Ele a via como era na realidade ...

Tomás levantou-se da cama e pareceu tomar uma estatura imensa. Ela não pôde resistir ao seu olhar, compreendeu que devia agir rapidamente, sorriu-lhe, aproximou-se mais rim passo e, com um movimento gracioso dos ombros, fez deslizar o vestido. Os maravilhosos contornos da sua beleza cintilavam avermelhados à luz das chamas da lareira.

Sem uma palavra ele alcançou com dois saltos o fogo, apanhou um grosso tição aceso e dirigiu-se a ela com a serena decisão de quem quer por fogo num monte de imundícias. A pequena Bárbara lançou um grito de angústia, voltou-se apanhando seu vestido e fugiu correndo. Houve um instante terrível em que a porta que ela, entrando, havia fechado atrás de si, resistiu, enquanto ele a perseguia com o tição incandenscente: irias o batente cedeu e ela fugiu escada abaixo, gritando apavorada. Landolfo tentou retê-la e perguntar-lhe o que houvera, mas ela o repeliu com força inaudita e saiu para o pátio, enquanto lá em cima a porta se fechava com ruído atroante. Rinaldo blasfemava baixinho. Após o primeiro grito assustado da pequena Bárbara, Teodora abrira a porta do seu quarto e apareceu. Vendo fugir a rapariga, seu rosto assumiu uma expressão que demonstrava como ela tivesse compreendido claramente a situação. Rinaldo atirou-lhe um olhar furibundo:

- Se revelares algo à mamãe, digo que és histérica. Volta para a cama, amanhã explicarei.

Enquanto, porém, ela olhava-o com patente desprezo, do outro lado do corredor ouviu-se a voz da condessa:

- Que há? Que aconteceu?

Teodora respondeu:

- Não é nada, mamãe, não é nada. Tive um pesadelo.

Aguardaram com a respiração suspensa, mas a mãe pareceu ;satisfeita com a resposta.

- Obrigado, querida, - disse Rinaldo passando a mão pela testa.

- Não sei que fazer dos teus agradecimentos - rebateu Teodora. - És o homem mais vulgar e desprezível que já conheci. Lamento que sejas meu irmão e agradeço a Deus por ter como irmão Tomás: Só assim repara-se a vergonha. - E entrou no quarto.

Tomás tinha fechado a porta com um pontapé. Agora levanta o tição aceso, e com gesto quase solene traçou sôbre a porta uma grande cruz negra. Voltou à lareira, pôs a brasa onde a tinha apanhado, e deitou-se de novo.

Dois ou três minutos antes estava ferrado no sono: !avia acordado' Tinha, de fato, deixado a cama? E agora, estava acordado? A cruz negra na porta era realidade?

Pensava tranqüilamente nestas coisas, e concluiu que não tinha sonhado e que o fato, fosse real ou não, deixava-o indiferente. Só o que importava era que, acordado ou adormecido, tinha sido assaltado por tini dos piores inimigos da vida monástica, e que, com a ajuda de Deis, soubera rechaçar o assalto. Juntou as mãos e dirigiu a Deus uma fervorosa oração, pedindo-lhe o poupasse, para o futuro, de tais tentações, para que todas as suas energias estivessem a seu serviço.

As cinzentas e fofas nuvens cia consciência que se ia apagando envolveram-no enquanto orava, e daquelas nuvens irrompeu rima onda luminosa, que se mudava em todas as cores do arco-íris e depois concentrava-se num único raio branco. Aliás, não era tini raio, mas tini cone de luz de um candor ardente, que se aproximava com inexorável segurança. Ele suspirou torcendo-se de dor, rio abismo cio seu espírito,, bem sabendo de ter ele mesmo provocado aquela chama devoradora, para que lhe ardesse na alma rima enorme cruz negra ... 1 qual ;e oferecia com um ato resoluto e decidido de toda a sua vontade. f: eis a ponta do cone incandescente tocá-lo, e ele lançar rim grito pelo insuportável sofrimento que parecia traçar em torno dele rim círculo ardente, rima cintura de fogo.

Novamente no castelo todos acordaram, mas logo voltou o silêncio.

Na cama jazia um jovem monge gorducho, que dormia tranqüilo sôbre o lado direito, com os punhos diante do rosto, como uma criança.

Quando Teodora subiu nos muros, Piers compreendeu logo que ela queria falar com ele e sentiu o coração bater mais veloz.

- Sir Piers ...

-. Vosso servo, nobre dama.

- Honraste-me escolhendo-me como tua dama, mas até agora não te pedi algum favor.

- De há muito entristece-me isso.

- Agora, porém, venho pedir teus serviços.

- Tornais-me feliz - disse Piers esquecendo a mágoa.

- O que tenho a dizer-te deve ficar em segredo entre nós dois. - Será segredo enquanto vós o queirais.

Os olhos dela faiscaram:

- Sir Piers, meu irmão Tomás foi tratado de forma muito indigna e injusta. Permite-me não acrescentar mais porque teria de acusar alguns de meus parentes. Mas gostaria que estivesse livre entre os irmãos da sua Ordem.

- Quereis que ele fuja? - perguntou Piers decididamente. - E possível.

Cheia de alegria ela apertou-lhe as mãos:

- Ser-te-ei grata enquanto viver.

Ale ajoelhou-se e lhe beijou a mão.

- Eis, - disse levantando-se - já recebi o meu prêmio. Tendes algum projeto ou preferis que eu resolva sozinho?

Ela sorriu satisfeita.

- Estamos mais adiantados que imaginas. Fizemos uma conspiração com Adelásia e Marta, e estamos em contato com os dominicanos que nos garantem que, se conseguirmos levá-lo para fora de Monte São João, agirão de forma que não seja capturado novamente. Mas como é possível com todas essas sentinelas em volta?

- Pela ponte levadiça não se pode passar porque as guardas de lá não estão sob as minhas ordens. Mas lembro-me de um santo homem, que pôde fugir de uma cidade hostil, fazendo-se descer pelos muros dentro de um cesto.

Ela riu.

- Quem era?

- São Paulo, se não me engano, que escapou assim de Damasco. Era um homenzinho franzino e três mocinhas poderiam cuidar da empresa. No caso presente, porém, a coisa será mais difícil.

Ela riu de novo:

- Já estou agitada e não me agüento, e tu continuas a fazer-me rir.

- Assim fazemos na Inglaterra quando se trata de coisas verdadeiramente sérias.

- E quando se trata de uma brincadeira?

- Tornamo-nos terrivelmente sérios.

- Então devo deduzir, como diria Tomás, que em Roca-sêca e em Monte São João nada tomaste a sério.

- Tomo a sério a vós, nobre dama, - disse Piers rindo.

- Em verdade não sei que seria de mim sem tu - confessou Teodora, desejosa de voltar ao assunto. - Tens razão, para descer Tomás pelos muros são necessários alguns homens bem fortes.

- Tenho o que é preciso: o meu escudeiro Robin. Quando esperais os dominicanos?

- Basta que eu os avise. Amanhã de noite, serve?

- Perfeito. Providenciarei para que deste lado não haja sentinelas. Robin cuidará da cesta e da corda. Vós cuidareis dos dominicanos e ... de vosso irmão. Eis tudo.

Parecia fácil e óbvio; Piers talvez nem considerava a eventualidade de ficar numa situação perigosa.

- Sou feliz - disse ela olhando-o radiante - que me tenhas escolhido por tua dama. - E como se tivesse dito demais, voltou-se apressada e desceu.

"Sou maluco", pensou Piers. "Vem aqui porque precisa dos meus serviços e por nenhum outro motivo, mas, meu Deus, dai-me ainda alguns desses instantes e aceitarei tudo sem me queixar".

- Rinaldo! acorda! Rinaldo!

- Que há ... Es tu, Landolfo?

- Toma da espada e vem. Querem fazer Tomás escapar.

- Quem? Quem são eles? Que dizes?

- Vamos, digo, Tomás foge. As moças fizeram-no sair e agora está sôbre os muros. Ouvi um ruído, olhei pela janela... vamos, apressa-te!

- Tomás escapa? - repetiu Rinaldo sentando-se na cama. - E a melhor notícia deste ano.

- Estás maluco?

- Vai dormir, irmãozinho meu. Aliás, tu dormes ainda, não acordaste. Acredita-me, estás adormecido.

- Paciência! Agirei sozinho. Vou chamar as sentinelas ...

Levantando-se com um salto, Rinaldo agarrou-o por um braço.

- Não, burro. Será possível que tu nunca saibas qual é a tua vantagem?

- Larga-me! Enlouqueceste ...

- Estava louco, e também tu o estavas, quando o trouxemos para cá. Se gritas te arrebento a cabeça com este jarro. Escuta: pretendes ser por toda a vida carcereiro de teu irmão? Queres que também Adelásia e Teodora façam-se freiras? Queres saber o que penso? Que te diga em rosto o quanto és desprezível? Deixa-o ir!

- Mamãe, porém, ordenar-nos-á de persegui-lo.

- E nós o perseguiremos obedientes, mas não o alcançaremos ... pelo menos enquanto eu puder impedi-lo. Boa noite, Landolfo ... e se te encontrares no mesmo estado de ânimo que eu, esta será também para ti a primeira boa noite desde há muito ...