LIVRO II


CAPÍTULO I

Tambores, pífaros e trompas. Um desfile de cavaleiros, um infinito cortejo de soldados de infantaria couraçados. Os animais do imperador, levados por guardiães sarracenos, atados com correntes ornamentadas de flores. As bailarinas vigiadas pelos eunucos. Outros soldados. Outros cavaleiros. Os juizes do tribunal imperial. Os funcionários do tesouro. Os nobres, cada um com a própria escolta, primeiro os de grau inferior, depois em exata hierarquia, os barões, os condes, os príncipes. A guarda pessoal tudesca, composta de nobres e gigantescos jovens, cobertos de ferro da cabeça aos pés e montados em cavalos completamente couraçados: cada qual era uma autônoma unidade de combate quase invulnerável. Os conselheiros do imperador. Quarenta mocinhas de extraordinária beleza com cestas de flores.

O próprio imperador, vestindo veludo purpúreo, sôbre o seu corcel "Dragão". O elmo e a couraça eram de ouro maciço, a empunhadura da espada, luzidia de rubins. Quando atravessavam alguma vila ou cidade, sorria continuamente e atrás dele doze pagens atiravam moedas de ouro e prata entre a turba.

O estandarte imperial, uma grande águia negra sôbre fundo dourado, era levado por um alferes de estatura gigantesca. Seguia o "conselho interno", constituído pelos mais íntimos amigos do imperador, entre os quais o arcebispo Berardo de Palermo, o chanceler Pedro Della Vigna, Tadeu de Sessa e o conde de Caserta. Nem faltava loco, o bobo. Vinha depois, a guarda pessoal tudesca, seguida por um mar de soldados e centenas de carros.

A sua passagem, o cortejo era saudado por aplausos e gritos de alegria ... não apenas por causa das moedas de ouro e prata: todos sabiam que o imperador ia a Roma para finalmente concluir a paz com o santo padre. Em todas as cidades, em todas as vilas os sinos tocavam festivamente. Todos se abraçavam com lágrimas nos olhos. Todos tinham sofrido, sofrido amargamente, no período tremendo que agora chegava ao fim. Ninguém estivera seguro da própria vida. Sôbre todos tinha pairado a opressão da incerteza. Fundada ou não, bastava uma denúncia de ter hospedado "espiões" pontifícios, e logo os soldados do imperador apareciam para incendiar, matar, saquear. E agora a paz ... agora todos podiam dormir sem temor, agora podia-se servir a majestade do imperador sem remorsos de consciência como nos anos passados: remorsos de servir um homem excluído da comunhão com Cristo, e, portanto, pior que qualquer pagão.

Todas as igrejas preparavam, para o dia 6 de maio, um solene tedéu. Devia ser um dia glorioso, tal de sobreviver na memória das futuras gerações, o dia em que o santo padre abraçava o imperador e tornava a recebê-lo no seio da Igreja, na comunhão de todos os cristãos, vivos. mortos e vindouros, na comunhão dos santos, dos apóstolos, do próprio Cristo. Arautos percorriam todos os países da cristandade, levando a notícia. De navio atravessavam o mar alcançando a Inglaterra. a Noruega, a Suécia. Sultões e emires do Oriente, de turbantes salpicados de jóias, reuniam-se agitados e preocupados, pois que a paz e a união da cristandade significava que a sua aspiração a ampliar o domínio do Islã teria encontrado maior resistência. Quem sabe não se chegasse a uma nova cruzada ...

Agora o cortejo alcançava a beira ocidental do lago de Bolsena. avançava lento em direção sueste. O imperador, olhando em turno. convidou com um gesto os amigos a se aproximarem.

- Um pequeno divertimento durante a viagem não nos fará mal disse rindo. - Tadeu, a teu ver, que pensa o papa neste momento?

O conselheiro esquelético e cuidadosamente barbeado tomou logo mija expressão de honrosa unção.

- "Agora receberei novamente sem dificuldades o óbolo de São Pedro” - respondeu.

Frederico sorriu:

- Não está mal. E tu, Della Vigna?

- Pensou-se nisso tantas vezes que já não é novidade. Agora, grande Augusto, rói as unhas e pergunta a si mesmo se não fez excessivas concessões podendo obter o mesmo com menor despesa.

- Talvez tenha razão. Que diz o meu amigo Berardo?

O arcebispo levantou o gordo queixo.

- Não tenho prática neste jogo, caro senhor. Seria presunção pretender saber o que pensa o papa.

- Berardo, Berardo, parece que a nossa paz com o papa exerça má influência sôbre ti. Estás tornando-te enjoado.. Dir-te-ei a minha opinião. O papa pensa: "Agora sou maior que Gregório e até que Inocêncio III. Consegui obter aquilo que eles não souberam obter, tornar mansa aquela águia".

O arcebispo sorriu sem entusiasmo.

- Assim pensaria se tivesse o caráter do imperador. Inocêncio IV não é tão ambicioso.

Frederico riu novamente, mas sem alegria, e disse:

- Teremos de suportar uma infinidade de cerimônias eclesiásticas, e que não quererá anular nenhuma: procissões, missas, tedéu e Deus sabe o que mais. Ora, vede ali uma pequena procissão, composta de um homem e um menino ...

Olharam e viram, precedido por um coroinha. um padre de sobrepeliz e estola atravessar o campo.

- Levará a extrema-unção a algum moribundo numa daquelas casinhas lá em baixo - declarou o arcebispo persignando-se.

Frederico apertou os lábios.

Gostaria de saber até quando durará essa desordem.

- Caro senhor... - exclamou Berardo. Não era um protesto, mas como que a bondosa tentativa de unia mãe que quisesse acalmar o filho furibundo.

- Sei que o povo não pode ser iluminado rapidamente - suspirou o imperador, - Há mais de mil anos lhe dizem essas coisas. No entanto é extraordinário como se agarra a elas... e nem sempre, admito. por covardia. Isso vem demonstrar apenas a grandeza dos grandes trapaceiros.

Os amigos olhavam-no sem entender.

- Sim, dos três maiores trapaceiros que o mundo já tenha visto - prosseguiu Frederico. -Moisés, Cristo e Maomé.

Que palavras! - exclamou Della Vigna encantado. - Passarão para a imortalidade como uma das mais ousadas frases já pronunciadas.

Tadeu de Sessa ria a bandeiras despregadas.

O arcebispo estava calado. Certamente era deplorável que o imperador se comprazesse em tais assuntos, mas quando se lhe respondia ( e muita vezes argumentos para responder-lhe não faltavam) era pior. Agora então era preciso mantê-lo de bom humor, não só em vista do 9 de maio que seria dois dias depois, mas porque estavam aproximando-se de tini lugar muito perigoso, cujo nome bastava para despertar o seu ódio mortal. Lá em baixo, atrás daquelas colinas docemente onduladas, erguiam-se ao sol os muros de Viterbo.

- Não há nada para rir, Tadeu, - observou o imperador. Estou falando sério. Aqueles três grandes impostores conceberam todos os mesmo projeto: formar milhões e milhões de homens à sua imagem e semelhança: milhões de pequenos Moisés, Cristos e Maomés. Compreendo-os muito bem: talvez seja a única maneira com que um grande homem possa conquistar a imortalidade. O homem pequeno Somente a alcança gerando: vai para a cama com á sua mulher para pôr no mundo um outro eu. O homem grande, porém, obriga uma geração após outra a modelar-se na sua própria personalidade. É preciso que fale nisso a Bonatti, já que pode ser esta uma das chaves para os grandes arcanos.

- Quem deveria encontrá-la senão vós, senhor? - exclamou Della Vigna. e seus olhos relampejaram. - Para o diabo esta paz! Que necessidade temos do papa se está entre nós o maior espírito, a alma mais sublime do século, o coadjutor de Deus, o compartilhante da Providência divina, iluminado sem descanso pelo olhar de Deus? ...

"E dizer-se que acredita mesmo nisso" pensou o arcebispo. Certamente, quem recordava como Frederico de insignificante príncipe tivesse se tornado o soberano de todo o mundo civil, dificilmente podia negar que Della Vigna tivesse alguma razão ... com reservas, entenda-se. Mas era conveniente que ele e todos os outros exaltassem o imperador e o mantivessem de bom humor. Demais, Frederico era muito grande político para que um par de palavras lisonjeiras pusessem em perigo aquela paz teto cuidadosamente elaborada. Viterbo ... era outra coisa Tomara que ninguém pronunciasse esse nome ...

- Há muito de verdade - disse tranqüilamente o imperador. A tainha vida, creio, é a melhor prova. Mas podemos esperar que Inocêncio IV seja bastante sábio para o compreender. Talvez o seu desejo de paz seja o início desta compreensão. Todos conheceis a doutrina indiana da metempsicose, segundo a qual um homem deve nascer e renascer até que a sua alma tenha alcançado o estado ideal. Quase eu também o creio ... mas não completamente. De fato, não consigo compreender como um dia a alma de Frederico deva unificar-se com a alma universal, semelhante a gota de orvalho que cai no oceano. Quereria dizer que eu cessaria de ser eu, enquanto isso não pode ser. Prefiro, pois, não crer na existência da alma.

- Mas segundo as normas da lógica... - disse o arcebispo.

- O imperador está acima da lógica. Como a divindade! - interrompeu Della Vigna.

- As vezes, amigos, vós me compreendeis - disse Frederico -e vos agradeço. O ponto em que me encontro é muito isolado e a minha humanidade sofre por isso. Quando era mais jovem pensei muitas vezes que as almas de mil homens tivessem sido misturadas no almofariz de Deus para formar a minha. O meu amor e o meu ódio, os meus pensamentos e sentimentos ultrapassam toda limitação humana, aliás, em certos momentos, dou-me conta que para mim não existem absolutamente limitações, barreiras.

Falava com a veemência ardente do poeta revelando em toda a sua personalidade algo de arrebatador, uma estranha e assombrosa beleza, uma herança que fizera os suevos vencer muitas batalhas. Era poeta à sua maneira, um poeta da ação, criador e destruidor conforme o capricho. Acontecia raramente que falasse assim; geralmente escondia seus pensamentos sob o irônico sorriso no qual os olhos frios não tomavam parte.

- Agora - prosseguiu - não duvido que exista de algum modo uma alma ... e para dar-se conta do abismo que existe entre mim e o pobre Inocêncio, basta recordar que, segundo ele, eu faço a paz para salvar uma alma em cuja existência não creio. O gênio, como tal, porém, é imortal.

Neste ponto aconteceu que um montículo de ferro chegasse tinindo pela estrada e, superados os nobres e as mocinhas com as flores, viesse parar diante do grupo que rodeava o imperador. Era Willmar von Zangenburg, comandante de seção da guarda imperial, jovem de vinte e três anos, louro, olhos azuis, ídolo das moças.

Frederico olhou-o com benevolência:

- Que há, meu filho?

O jovem cavaleiro disse que pouco adiante a estrada se bifurcava: um ramo levava diretamente a Roma, o outro a Viterbo, e como se estava avançando diretamente pela estrada de Roma e Viterbo não veria a sagrada pessoa do imperador, tomava a liberdade de vir pedir ordens.

O arcebispo empalideceu:

- Jovem, - disse severamente - para hoje já tendes ordens precisas. Não passaremos através daquela cidade.

Willmar von Zangenburg atirou uma olhadela para aquele gordo e agitado eclesiástico e depois olhou para o imperador com um sorriso nos lábios. Sabia que tinha consigo a guarda pessoal. Todos já estavam cansados daquela marcha de lesmas dos últimos dias. Viterbo, sabia-se, tinha recusado receber entre seus muros o imperador antes que a paz estivesse definitivamente concluída ... Nem faltavam as boas razões. Uma pequena excursão a Viterbo podia ser uma variante agradável.

- Viterbo? - disse o imperador adivinhando improvisamente a significação dos pensamentos desagradáveis e ainda não concretos daqueles últimos dias. Compreendeu a causa do próprio mal humor, enquanto em torno dele todos falavam da nova idade de ouro que estava surgindo. Viterbo tinha abandonado a causa do imperador quando ele era fraco. E Frederico não se havia vingado. A cidade podia alardear (e sem dúvida alardearia) que diante dela o imperador demonstrara-se impotente. Podiam trocar sorrisos de mofa, os cidadãos de Viterbo, se entre dois dias ele assinava a paz que o obrigava a perdoar àqueles que nunca tinham pedido perdão. Viterbo era uma mancha no seu escude e no seu nome.

Parou o cavalo enquanto o arcebispo aterrorizado via-o fixar os muros da cidade. Era o olhar da águia ou do seu arquétipo. Berardo tinha vivido muito ao lado do imperador para desconhecer aquele olhar. Por isso pôs-se a falar com a coragem do desespero. O senhor do mundo não se teria rebaixado a pensar naquela mesquinha cidade: não agora, sim? Não no momento em que a cristandade inteira esperava a paz. Não teria seguramente mudado seus projetos porque um jovem de cabeça quente sentia arder as mãos ...

- Ouço-te, Berardo, - disse Frederico com os olhos ainda fixos nos muros da cidade. - Pobre almazinha, tremes pela tua mísera paz? Que te prometeu em segredo o papa para que tu faças tanta questão? Zangenburg pediu ordens minhas... e tu é que respondeste. Terei eu necessidade de um tutor?

O arcebispo pôs-se a balbuciar alguma coisa que foi logo interrompida.

- Meu pobre Berardo, Zangenburg não é mais do que um dos meus pensamentos, como tu és outro. Ninguém toma decisões por mim. Tentaste tirar Viterbo dos meus pensamentos, não é verdade, Berardo? Porque sabias que devíamos passar por ela. Diz-me: o ódio é bastante forte para fazer voltar à terra a alma depois da morte ... desde que a alma exista ...?

Os olhos do arcebispo estavam para encher-se de lágrimas.

- Meu caro imperador, imploro-vos, esconjuro-vos ... Estais encaminhado para o Paraíso. Não mandeis destruir essa mísera cidade! Muito mais importante, insubstituível é ...

Interrompeu-se ficando de boca aberta, porque Frederico, pálido como um papel, olhava para ele com os olhos em brasa.

- Berardo, se eu já estivesse com um pé no Paraíso... retirá-lo-ia para me vingar de Viterbo!

E, voltando-se para Zangenburg, atirou-lhe uma porção de ordens na linguagem rude da guerra. O jovem cumprimentou levantando o braço armado de espada e afastou-se radiante.

- Caserta, - chamou o imperador - manda parar todo o cortejo. É preciso achar um teto para os animais e para as meninas. Que venham cá os coronéis e os capitães! Seis cavaleiros sem armadura sejam enviados a Orvieto e retirem os dois mil homens que lá deixamos. A meia-noite estejam aqui.

Caserta saiu a cumprir as ordens.

- Então atacaremos amanhã ao nascer do sol - disse Della Vigna.

- Não, Pedro.

- Quereis antes convidá-los a abrir as portas a sua majestade imperial, não? - observou Tadeu de Sessa.

- Nem penso nisso. Ataco já. Por que esperar até que desconfiem? Onde está o conde Brandenstein. Aqui os carros com as bestas e o fogo grego! Ainda bem que pensei em trazê-los comigo para o caso de uma traição. Tirai da estrada as meninas! Berardo, velho amigo, não me olhes assim tão triste. Podes crer, o teu papa nos receberá depois de amanhã como se nada tivesse acontecido. Isto será apenas aquilo que a história chama de um pequeno e deplorável incidente. O papa nos receberá apesar de tudo... porque deve e não tem outra saída. O sorriso com que nos receberá será apenas um pouco mais acre: só. Mas a hora de Viterbo soou. Brandenstein, eis-te finalmente. Examinei os muros e achei que o ponto mais fraco é entre a terceira e a quarta torre à direita. É preciso eliminar aqueles defensores: cuidará disso o fogo grego. Depois assaltarás a porta com os meus tudescos, que precisam ser acalmados. Tu, Pirelli, toma a ala esquerda e aguarda até que os homens de Brandenstein abram uma brecha. Almarone, para ti a ala direita. Teus archeiros devem manter ocupados os defensores dos muros. Cuidarei eu para que não tentem uma saída contra ti, mas tu não atacarás, recomendo-o. Deves brincar com eles, só ...

Quando chegou o mensageiro de Viterbo, no palácio de Latrão estavam-se enfeitando as colunas com guirlandas e preparava-se a recepção ao imperador.

O papa leu a carta na presença de poucas pessoas: o arquiteto que dirigia os preparativos, os maiores floristas de Roma, o bispo de Perúsia e alguns prelados. Estes viram o pontífice empalidecer e levar a mão ao coração.

- Meus caros, - disse o bispo de Perúsia - agora é preciso deixar a sós, por algum tempo, o santo padre. Voltareis mais tarde.

Todos se retiraram.

Inocêncio, cujas mãos tremiam, tentou falar, mas as palavras não lhe saíam. O bispo de Perúsia, grisalho, de queixo enérgico e olhos escuros e vivos sob espessa sobrancelhas, fechou a porta atrás dos visitadores.

- A etiqueta foi mal observada o dia inteiro, santo padre. Aliás, é natural, se devem fazer tantos preparativos. Posso infringir mais uma vez a etiqueta e perguntar o que aconteceu:'

O pontífice levantou o rosto. que parecia repentinamente envelhecido.

- O fim -respondeu. - O imperador assaltou Viterbo.

- Impossível! - deixou escapar o bispo.

- Sem prévio aviso, durante o armistício solenemente concordado.

- Se bem conheço o cardeal Ranieri de Viterbo, - exclamou o bispo com os olhos faiscantes -o imperador encontrará um osso duro.

- De fato, o ataque foi rechaçado. O vento mudou improvisamente e repeliu contra os assaltantes o fogo grego. Quando esta carta foi despachada a batalha continuava. Frederico atacou também a nossa cidade de Orte porque não quis atender a seu pedido de reforços.

- Enlouqueceu - murmurou o bispo. - E se o não está, Deus lhe perdoe.

- Não, não é maluco - sussurrou o papa. - É apenas insensato. Não é louco porque sabe muito bem o que quer. É insensato porque mostrou as cartas muito cedo. Agrediu Viterbo, mas pretende desferir o golpe contra Roma.

O bispo empalideceu.

- Assim então todas as conversações de paz eram um fingimento:' Meditava a traição desde o início?

- Não - replicou o papa olhando ao longe. - Não quero dizer isso. Digo que está sujeito às inspirações do momento. Ocorre-lhe a idéia de desferir o ataque a Viterbo, e depois de um instante não pensa noutra coisa e age imediatamente. Ademais, considera-se inspirado e não pensa absolutamente que seja traição. Crê estar acima da moral, como o pensou Lúcifer. Oh! conheço-o bem! Em tantas noites insones e amargas lutei contra ele. Não que alimentasse esse projeto, mas agora... agora o alimenta. Talvez nem pensasse nisso quando deu a ordem de marchar contra Viterbo. Agora, porém, provou sangue e as emanações deste sobem-lhe à cabeça. Por que contentar-se com Viterbo se pode ter Roma? As condições de paz melhorariam muito rapidamente se ele conseguisse pôr as mãos no sucessor de Pedro.

Tocou uma campainha.

- E agora, que fazer? - perguntou o bispo desconcertado. -Estávamos contando com a paz. Em todo o patrimônio só temos um punhado de soldados, e antes que cheguem socorros ...

- Aqui está o nó da questão - disse o papa. - Serei seu prisioneiro e ele poderá ditar leis à vontade ... em meu nome.

Um prelado entrou.

- Dentro de duas horas devem estar prontos todos os carros disponíveis - ordenou o papa. -Toma esta lista, e esta outra. As pessoas indicadas na primeira e as coisas arroladas na segunda acompanhar-nos-ão na viagem; é preciso recolher o maior número possível de cavalos n mulas. Avisa as pessoas que virão conosco para nada comunicar a outrem. Rápido, por favor.

O prelado desapareceu em silêncio, mas notava-se a sua agitação.

- Em nome de Nosso Senhor, - murmurou o bispo - quereis de fato abandonar Roma? Santo padre, que será da Igreja?

- A Igreja está onde está Pedro - respondeu Inocêncio

- Aonde ireis, santo padre... aonde?

- Primeiro a Gênova ... - respondeu o pontífice após um instante de hesitação. - Depois a Lião.

O bispo abaixou a cabeça.

- Meu caro Bruno, - disse Inocêncio com doçura - meu caro, velho amigo, pensas que este passo me seja fácil? Gregório era mais duro que eu, e no entanto o imperador escorraçou-o até fazê-lo morrer. Eu devo estar livre para poder pensar e agir. Perdoa-me, Bruno, se vou embora.

Levantando o olhar, o bispo viu lágrimas nos olhos do papa, e, dobrando um joelho, beijou-lhe o anel.

Poucas horas depois, uma longa fila de veículos deixava a cidade eterna rumo ao noroeste.

A tardinha passaram por um pequeno grupo de dominicanos, os quais, por muito tempo tiveram de caminhar nas nuvens de poeira levantadas pelos carros.

Logo que soube da fuga do papa, o imperador abandonou o cerco de Viterbo e alcançou Parma em marcha forçada. O gesto do papa devia logicamente criar unia situação política totalmente nova. Corria a voz de que ele pretendia convocar um Concílio ecumênico. Se a notícia fosse verdadeira, apresentavam-se graves perigos. R verdade que se podia impedir à maior parte dos bispos italianos de participar dele (não faltavam caminhos e meios já experimentados); podia-se também fazer pressão sôbre os bispos húngaros e sôbre muitos germânicos, de modo que o Concílio dificilmente estaria completo. Mas os ingleses e os espanhóis tomariam parte, e Luís de França, embora rogado com insistência, certamente não reteria seus bispos.

Os boatos tornaram-se fatos quando chegou a notícia que o papa tinha deixado Gênova, sua cidade natal, e se dirigia a Lião. Em Gênova fora recebido de braços abertos. Tropas genovesas tinham ido ao encontro do cortejo papal para protegê-lo de um eventual ataque do imperador. Este, aborrecido, escreveu à fiel cidade de Pisa:

"Joguei xadrez com o papa e estava para tomar-lhe uma torre, quando os genoveses intervieram e viraram o tabuleiro".

Lião ... era muito pior: se o papa se retirava até lá, extrema fronteira do império, queria dizer que pretendia rebater com muita dureza. Lá em cima podia permitir-se isso impunemente. A sua fora, sem dúvida, uma cartada de mestre. A situação era prenunciadora de tempestade. Era preciso agir rapidamente, e disso o imperador entendia bem. Convocou, pois, um parlamento em Verona, mas muitos príncipes tudescos preferiram escusar-se cortesmente com toda sorte de pretextos. Decidiu casar-se com a jovem princesa Gertrudes da Áustria e, nesse sentido, escreveu ao pai dela. A Áustria era um pilar da Europa. A jogada era importante, mas também na Itália ele precisava reforçar a sua posição. A fidelidade de diversas famílias poderosas não era bastante provada. O melhor meio seria exterminá-las, mas o momento não era propício. Escreveu, portanto, ao chefe da mais poderosa, o conde San Severino de Marsico; dizia que, tendo sempre sido seu desejo estreitar mais fortes laços com os San Severino, havia resolvido fazer uma proposta que traria honra e felicidade a ambas as partes: o casamento entre o jovem conde Rogério, filho do conde San Severino de Marsico, e a condessa Teodora, filha menor do defunto conde Landolfo de Aquino e da condessa de Chieti. Frisou que os nobres de Aquino eram-lhe particularmente próximos não só pelo parentesco, mas também porque, nos mais graves perigos passados, sempre lhe foram inteiramente fiéis. Convidava os San Severino a irem a Parma, onde se celebraria o casamento, "desde que o seu caro e venerando amigo aceitasse a proposta".

Escreveu também no mesmo sentido à condessa de Aquino, convidando-a e a toda a família a Parma.

Pouco tempo depois, quando todos os bispos foram convocados para o Concílio de Lião, Frederico deliberou enviar como embaixadores extraordinários o chanceler Pedro Della Vigna e Tadeu de Sessa.

- Sois ambos inteligentes - disse-lhes. - Não preciso, pois, dar-vos muitas instruções. Gostaria que em Lião não fossem tomadas decisões dramáticas. Deveis convencer o papa de que nunca tencionei marchar sôbre Roma. Jurai-lho por tudo que o possa impressionar. Queria apenas saldar uma velha dívida com Viterbo. O ataque a Orte não vem ao caso: efeito do excessivo zelo de um comandante subalterno. Um incidente deplorável e nada mais. A santa Igreja exige o que é seu na terra, nós esperamos e rogamos.. . não esqueçais, nós rogamos que sua santidade volte quanto antes. E preciso que volte, entendeis? Até que não o tenho em mãos, ele representa para mim um perigo contínuo. Não poupeis nem ouro nem promessas, fazei todas as concessões necessárias. Se lhe prometeis bastante, talvez acabe livrando-me dessa incômoda excomunhão. E ridículo que ele tome tão a sério o incidente de Viterbo. Afinal de contas, que representa Viterbo? Não é mais importante que o império e a Igreja (bem entendido, vós deveis dizer a Igreja e o império) vivam em paz entre si? Apelai para o seu bom senso, mas não esqueçais as promessas. E verdade que estas últimas ocupam menos lugar na vossa bagagem, mas o ouro provavelmente fará maior efeito ... pelo menos sôbre alguns bispos mais influentes. Alguns devem ser acessíveis a esse argumento, ainda que continuem a orar para não caírem em tentação. Recomendo-vos também não descuidar do outro lado do quadro: a excessiva teimosia daqueles reverendos poderia ter deploráveis conseqüências. Aos espanhóis importará pouco, mas ainda que a Espanha esteja longe, o meu braço poderia chegar até lá, e, por outro lado, somos aparentados com o rei da França e com o da Inglaterra. Dos sábios esperamos provas de sabedoria...

- Ouvir significa obedecer - disse Della Vigna usando a fórmula dos súditos dos sultões orientais.

- Os reverendos precisam ainda aprender esta fórmula - disse o imperador sorrindo, mas logo seu sorriso desapareceu, enquanto os olhos se fixavam ao longe. - Devem aprendê-la. E se não cederem ... então, por Deus e por Lúcifer, formarei um exército tal como o mundo nunca viu, e tomarei todos os países cujos soberanos derem asilo a esses reverendos. Ide, amigos, ide!