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- Ainda poucos passos - disse frei João enquanto o grupo de
dominicanos se aproximavam do alto da colina.
E na névoa azul da manhã, eis a cidade, meta de sua longa viagem;
cidade fabulosa com suas mil ruas estreitas e angulosas, com os dez mil
telhados esguios, cortada pela fita prateada do Sena, coroada pelas
altas torres de Notre-Dame.
- A cidade de Santa Genoveva - observou frei João. - E talvez
um dia se acrescente: a cidade de São Luís. O soberano desta
cidade é, de fato, um homem que vive como um santo, e não seria de
admirar se Deus chamasse à santidade no mesmo século um mendigo e um
rei: Francisco de Assis e Luís de França. Não quero dizer que
esta cidade seja sem vícios e sem crimes: há até demais sob estes
tetos. Mas é governada com clemência e justiça. O rei nunca come
sem dar de comer ao mesmo tempo a quatrocentos mendigos. Ele próprio
administra a justiça, e qualquer um pode apresentar-lhe o seu caso.
Um de seus mais queridos amigos era o nosso confrade Vicente de
Beauvais cujas obras constituem uma biblioteca inteira: um de seus
livros intitula-se Como Tornar-se Juizes Justos. Deixamos a
Itália, onde Frederico arranca avidamente tudo que Deus deu aos
outros, e chegamos à França, onde Luís oferece aos outros o que
Deus lhe deu. O senhor de Joinville disse desse monarca, com toda
justiça: "Como um autor pinta com vermelho, azul e ouro o livro que
acabou de escrever, assim o rei Luís enfeitou todo o seu reino".
Os frades Da Guidi, Sanjuliano e Lucas ouviram com devoção,
enquanto o monge mais jovem parecia vagar ao longe com o pensamento
O geral da Ordem tocou-lhe o ombro:
- Linda cidade, não, frei Tomás?
- Muito linda - murmurou este.
- Que farias - prosseguiu frei João se fosse tua? Se o rei ta
desse?
- Não saberia o que fazer dela - disse Tomás com sinceridade.
Frei João sorriu argutamente:
- Poderias revendê-la ao rei e com o lucro construir uma série de
conventos dominicanos, não achas?
Tomás ficou um instante pensativo:
- Preferiria um exemplar do tratado de São João Crisóstomo
sôbre o Evangelho de Mateus.
Os monges riram enquanto o geral pensava: "Este é o homem que
queriam fazer abade de Montecassino, o homem que por toda a vida teria
de ser administrador!".
E tomou a resolução de não comunicar o seu pensamento aos futuros
mestres do jovem frade, nem mesmo a Alberto de Ratisbona, que muitos
já chamavam Magno. Descobrissem por si mesmos o que haviam
alquirido: se soubessem que o geral da Ordem, por amor de um
noviço, tinha adiado por dez. longos meses sua viagem à Franca,
ele certo ficariam assombrados.
Enquanto desciam o morro e se aproximavam da cidade, Ale, em seu tom
lento e pacato, começou a falar do mosteiro de Saint-Jacques na
colina de Santa Genoveva, a primeira casa dominicana aberta em
Paris.
- Apenas há trinta anos São Domingos fundara a Ordem ... cum
dezesseis frades: oito franceses, seis espanhóis, um português e um
inglês. Após cinco anos os conventos já eram sessenta; agora são
centenas. Mas em nenhum outro encontrarias um mestre com a sabedoria
de Alberto de Ratisbona. Os arquitetos da catedral de Notre-Dame
eram grandes homens, mas construíam com a pedra; Alberto está
construindo uma catedral do espírito, e é o homem que escolhi para
teu mestre.
O jovem frade tinha os olhos brilhantes e, sem querer, acelerou o
passo.
.A carta do imperador encontrou a condessa em Roca-sêca. Tomás
já tinha escapado e não havia mais motivo para isolar-se em Monte
São João. Ela não decidira mandar perseguir o fugitivo.
Recebida a notícia de Marta já pela manhã avançada, retirara-se
em silêncio para seu quarto. Quando reapareceu estava tranqüila e
resignada, e não mencionou mais o nome de Tomás. No mesmo dia
Marta entrou para o mosteiro das beneditinas. No dia seguinte voltava
para Roca-sêca.
Nem os irmãos, nem as irmãs tiveram coragem de perguntar a Morta
como mamãe recebera a notícia e por que não fizera perseguir
Tomás. - Não se deve tocar no que queima - disse Rinaldo a
Landolfo. Teodora e Adelásia, por sua vez, compreenderam que não
convinha fazer perguntas a Marta, e muito menos pensaram em interrogar
a condessa. Muito mais tarde, Adelásia tentou e recebeu essa
resposta estonteante:
- Enganei-me a respeito de Tomás. E não é de hoje.
Desde então a vida em Roca-sêca havia se desenrolado calma e
tranqüila, até que a carta do imperador chegou como uma bomba que fez
estremecer o castelo.
Foram preciso algumas horas para que a condessa ousasse chamar `I
podara. Dez, vinte vezes lera a missiva, a qual não podia ser mais
cortês e amigável, mas que, é claro, continha uma ordem. Ela
devia entregar a sua criatura mais jovem e mais bela ao novo favorito
elo imperador, a um Ezelino, a um Caserta. Isto é, não ela,
mas u próprio imperador entregava Teodora àquele San Severino como
se fosse um título ou uma data de terra.
“O meu consentimento não conta" pensava enquanto o seu ator doamento
ia mudando em amargura e orgulho ferido. "Ele manda e eu tenho de
sacrificar minha filha". No entanto, esta era Itália, não
Cartago ou Tiro, onde se sacrificavam mocinhas a Baal. Ora,
vamos! não exagerava? A coisa não era, pois, tão grave.
Ninguém queria fazer mal à sua filha, e muito menos sacrificá-la:
o imperador, seu primo, tinha proposto um casamento entre Teodora e o
filho de uma das famílias mais antigas e influentes da Sicília, e
ela queria convencer-se que se tratava de um crime ...
Percebeu, porém, que tais pensamentos eram ditados pela fraqueza,
pelo desejo de evitar dificuldades. Sabia que Frederico, agora já
obcecado pelo poder, não era mais o mesmo de antes. Sabedor dos
crimes que se cometiam em seu nome, ele próprio cometera diversos. E
ela bem sabia quanto fosse corrompido aquele ambiente, sabia que homens
de alta posição temiam pela própria vida, já que uma denúncia
podia significar a morte imediata. Eis a atmosfera em que se queria
lançar Teodora ...
Não conhecia o jovem San Severino ... como se chamava? Ah!
sim, Rogério, como seu pai do qual ela se recordava vagamente: um
grande senhor, sem dúvida, tenebroso, flexível e um tanto
misterioso, que provavelmente havia prestado algum grande serviço ao
imperador e, em compensação, recebia Teodora e seu dote. Além do
mais, devia ter muita pressa, posto que o convite a Parma significava
que o próprio imperador desejava estar presente aos esponsais e fazer
deles uma cerimônia oficial. San Severino certamente vivia na corte
... e isso era ruim. Ela admitia que sua fidelidade a Frederico
já não tinha as raízes profundas de antes, da mesma forma que ele
não era mais o mesmo ... e justamente por este motivo.
Sim, em Roca-sêca podia-se ser fiel ao imperador: na corte,
porém, era outra coisa. Os de Aquino não eram cortesãos, e ela
não constituía uma exceção. Se via uma injustiça, não sabia
calar e isso podia, ou melhor, devia ter más conseqüências. Na
sua casa não tolerava que se falasse contra o imperador: na corte
teria sempre tentado dizer-lhe a sua opinião. "Sou uma nobre
senhora do campo", pensava. Assim era também Teodora e as outras
filhas. Só Rinaldo sabia ser cortesão, e este era o traço que ela
mais desaprovava nele, embora compreendesse que dependia provavelmente
da sua natureza de poeta. Ao que parece, os poetas podem adaptar-se
a qualquer ambiente e situação. São ágeis como lagartos e, em
certo sentido, sem sangue. Rinaldo parecia não participar da vida:
ficava de camarote observando a vida alheia como se assistisse a um
espetáculo de prestidigitação. Até quando as circunstâncias o
obrigavam a agir, brincava; não tomava a sério nem as próprias
ações. Este negócio, porém, dizia respeito, antes de tudo, a
ela mesma e a Teodora: devia, pois, informá-la, embora já
imaginasse a reação.
Esses eram os seus pensamentos quando mandou Eugênia chamar
Teodora.
Foi pior do que esperava. Entregou a Teodora a carta sem um
comentário. A jovem leu e deixou cair a folha como se fosse uma
imundícia, exclamando:
- Agora creio o que se diz do imperador ... fez-se pagão ou
muçulmano.
- Que queres dizer, filha?
- Os árabes afirmam que a mulher não tem alma, não? Que,
portanto, não é um ser humano. Quem conta é o homem. Essa deve
ser também a opinião dele, pois de outro modo não me pediria espose
um homem que nunca vi.
- Minha filha, não poucas vezes tem acontecido que os pais, sem
interrogar seus filhos...
- Maometanos, pagãos, infiéis! Eu sou uma mercadoria que se
vende... Quem pensa perguntar a uma mercadoria se quer ser vendida?
- Os San Severino são uma família nobre e antiga ...
- Que me importa. Não quero ser vendida. Ou caso com o homem que
amo ou não caso. Podes escrever-lhe, basta uma linha.
- Tu sabes muito bem que não posso. E o teu juízo não é justo.
Nunca viste Rogério de San Severino, é verdade, mas nem ele
nunca te viu.
- Aí está - rebateu Teodora agitadíssima. - Justamente por
isso sei que não o poderei amar. Um homem que se presta a casar com
uma moça só porque outro ... porque o imperador o quer, não é um
homem. É um escravo, um bruto, e eu não o poderia amar, portanto
nem casar com ele.
- Querida, tu bem sabes que, nesses assuntos, sempre considerei o
teu coração. Nunca tentei obrigar-te ...
- E verdade, mamãe, nunca tentaste porque bem sabias que não me
deixaria obrigar. Tentaste impor tua vontade a Tomás e fracassaste.
Eu sei, eu sei que devemos obediência e fidelidade ao imperador, já
o disseste até demais. Os de Aquino estão com ele, mas enquanto
homens e como homens devem ser tratados. Esta carta é inumana e,
para mim, a questão não existe.
- Muito obrigada - disse friamente a condessa. - Solução muito
simples. Para ti a questão não existe. Desgraçadamente eu devo
responder, e creio que o imperador não se contentará com ler que nos
sentimos muito honrados, mas que para minha filha Teodora a questão
não existe.
- Então, somos escravos - concluiu Teodora amargamente. Pensei
que fossemos nobres.
- De qualquer maneira, teremos de ir a Parma - disse a condessa
dando de ombros. - Não podemos recusar o convite.
- Os únicos homens de nossa família são Tomás e Marta! exclamou
Teodora chorando e, antes que a mãe pudesse retrucar, fugiu como uma
gazela.
Para ir ao seu quarto tinha de passar pelo salão, onde Landolfo e
Rinaldo, que lá estavam, fixaram-na admirados, pois nunca a tinham
cisto chorar. Ambos se levantaram e, indo onde estava a mãe,
encontraram-na mergulhada numa poltrona; a cabeça, antes sempre tão
orgulhosa., abaixada sôbre o peito. Até Landolfo percebeu, com
íntima dor, que ela havia envelhecido.
- Estás doente, mamãe? - perguntou timidamente.
Rinaldo apanhou a carta imperial e, compreendendo num relance de que
se tratava, entregou-a a Landolfo, dizendo:
- Não é coisa fácil.
- Por quê? Pode ser que San Severino seja um jovem às direitas
- disse Landolfo; mas suas palavras não revelavam convicção
alguma.
- Pouco importa - contestou a condessa. - Teodora nunca casará
com ele. Fui uma tola: não devia ter-lhe mostrado a carta.
- Que se podia fazer?
- Dizer-lhe que fomos convidados a Parma e lá aguardar os
acontecimentos. Na pior das hipóteses, podia pedir a Frederico que
mudasse de idéia.
Rinaldo suspirou.
- Tudo muito bonito, mamãe, mas me parece já muito tarde. Nós
todos somos muito impulsivos para sermos bons diplomatas. Certamente o
imperador não mudará de idéia. Não percebes? Esse casamento é
lhe necessário para conseguir o apoio dos San Severino. Assim,
pelo menos, me parece.
- Não me agrada - comentou Landolfo.
Rinaldo riu.
- Tampouco a mim, caro irmão. A nenhum de nós. Vês, mamãe:
Frederico está em maus lençóis. Tomás tinha razão e eu estava
errado. O papa está com vantagem: a sua fuga para Lião foi um
golpe de mestre. E agora a pequena Teodora deve servir para tirar
Frederico da entalada. Mamãe, tu não a criaste para isso, não?
A condessa estendeu os braços e puxou para si os filhos com gesto
instintivo. Sentia-se fraca, muito fraca, pela primeira vez na
vida. Mas logo que tocou os fortes membros dos filhos, uma corrente
de energia percorreu-lhe o ser e a fez levantar a cabeça com uma
confiança que a ela mesma pareceu surpreendente.
- Alguma coisa acontecerá - murmurou. - Deve acontecer.
Estaremos unidos. Iremos juntos para Parma.
Talvez nenhum deles o tenha confessado, mas pela primeira vez
conceberam pensamentos que, em outros tempos, apavorá-los-iam.
Eram pensamentos ainda informes, primitivos, sem uma linha
determinada. Todavia, as asas da conspiração já os havia tocado.
Decidiram partir para Parma dentro de dez dias. Teodora recebeu a
notícia com frio silêncio e recusou falar no assunto.
Prepararam-lhe seis vestidos novos, mas ela não se dignou olhar
àquelas preciosas fazendas, e as modistas que vieram para as provas
encontraram a porta fechada. Os irmãos discutiram com a condessa o
problema da escolta e decidiram levar consigo apenas cem soldados.
Maior número podia despertar suspeitas e, repetindo as palavras de
Rinaldo:
- Três mil não os podemos levar, enquanto o imperador pode
juntá-los a qualquer momento.
Sir Piers e um rijo siciliano, o jovem De Braccio, forais nomeados
sub-chefes. Os grandes preparativos não conseguiram clarear as
nuvens que pairavam sôbre Roca-sêca. Mas Robin Cherrywoode,
encontrando-se sôbre os muros, junto de Piers, exclamou de
repente:
- Nessa viagem há alguma coisa boa.
- Sim? - perguntou Piers.
- Desde que descemos pela cesta o gordo fradezinho, não se pode
dizer que nos tenhamos divertido, aqui ...
- É verdade - confirmou Piers com um fraco sorriso.
- ... mas em Parma poderemos achar algum divertimento.
- Ora, maluco! - disse Piers.
Robin coçou o queixo e começou a mastigar uma ponta dos bigodes
louros.
- Quando se trata de guerra, ou de política, ou coisa parecida,
empresas viris, enfim, o homem pode prever os resultados eventuais.
Mas em questões de matrimônio, a única coisa que se sabe com
certeza é que não se pode saber nada certo. Imperadores e reis
... meu senhor, em questão de casamento qualquer mulher vê mais
longe que eles. Ora, a nossa daminha é contra, é ...
- Cala-te e vá embora.
Robin calou-se e se foi satisfeito: tinha dito tudo que queria.
Na noite precedente à partida, Piers viu a sua dama sair para o
pátio e subir aos muros. A dez passos dele ela parou e pôs-se a
olhar em silêncio o vale. Sem fazer ruído, quanto o permitia a
armadura de ferro, ele se aproximou e disse:
- Minha senhora, rogo-vos perdoar se o vosso servo fala quando
deveria estar calado, mas o meu coração deseja ver-vos tranqüila:
matarei o conde de San Severino.
Ela virou-se, e fixando-lhe o fundo dos olhos, compreendeu que ele
o faria.
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