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Estava frei Vicente sozinho no jardim que, em pleno viço, louvava a
Deus num deslumbrante colorido, que faria inveja à magnificência do
rei Salomão. Lia o breviário; eram as primeiras horas da tarde, e
assim sentia-se o frade ainda lépido e nada distraído.
A primeira coisa que o distraiu foi a sombra que, no muro diante
dele, não era, como devia ser, uma superfície plana e reta;
apresentava, ao contrário, uma como protuberância que perturbava a
regularidade da linha. Frei Vicente, que tinha dado uma olhadela por
cima do breviário, sentiu-se incomodado. Olhando melhor, viu que
aquela protuberância tinha uma forma quase absurda: era como uma
cabeça de carneiro, mas com chifres e orelhas, e até mesmo com
barba: digamos, pois, um bode.
Mas desde quando os bodes trepam em muros verticais, com mais de nove
pés de altura?
Frei Vicente sabia muito bem que, a rigor, deveria estar concentrado
na leitura do breviário. No seu íntimo, pareceu-lhe ouvir como que
um toque de alarme: atém-te ao livro, e não cuides nem da sombra
nem do bode! Obedeceu e leu a linha seguinte. Depois a tentação de
dar mais uma olhadela àquela sombra, uma só, foi mais forte.
A sombra parecia verdadeiramente uma cabeça de cabra ... ou coisa
semelhante. E ... movia-se.
O frade estremeceu. A sombra era viva, sôbre o muro, movia-se
... mas não era um bode. Que seria?
Tinha o focinho delgado, indolente, alongado e amarelado. As
orelhas eram pontudas, e entre elas surgiam dois cornos curtos e retos
que terminavam numa espécie de bolota. Tinha os olhos semicerrados
sob pálpebras cansadas e altivas. Mas o pior era que crescia,
crescia. A cabeça já sobressaía dois palmos acima do muro,
aliás, para ser mais claro, somente o pescoço aumentava, um
pescoço amarelo, sem fim, com estranhas manchas escuras.
Frei Vicente olhava espantado. Aterrorizado, via aquele horrível
pescoço crescer, crescer além de toda medida possível para homens e
bichos. Via uma diabólica cabeça de cabra no corpo de uma enorme
serpente, que subia cada vez mais alto. De repente, à beira do muro
apareceram duas mãos pretas, e um instante depois um pequeno homem
todo preto, com turbante branco, vestes brancas e dentes alvos,
abertos num riso de escárnio. Indicando aquela forma horrenda, cujo
pescoço continuava a subir, o homenzinho exclamou com voz estridente:
- Sciraff! Sciraff!
A enigmática figura, ao invés, não emitiu nenhum som.
Dando um profundo suspiro, o frade retomou o domínio de si mesmo.
- Ápage - exclamou. - Ápage, Satanás! - E persignou-se, o
que não causou nenhuma impressão nem ao homenzinho negro nem à
aparição, mas ajudou o frade a readquirir inteiramente suas
faculdades físicas. Deu um salto, virou-se, e com toda a rapidez
que lhe permitiam eus setenta anos, fugiu para o mosteiro.
- Reverendíssimo abade ... reverendíssimo abade ...
Francisco Tecchini, abade de Santa Justina, estava justamente
examinando um belíssimo exemplar do Organon de Aristóteles.
Tratava-se naturalmente da tradução de Boécio, não a mourisca
glosada por Averróis, que naqueles últimos tempos gozava das
simpatias de certos círculos modernos, uma mistura de verdade
aristotélica e de heresia averroísta, que acabaria por estragar o bom
nome do Estagirita. Oh! Poder escoimar devidamente aquele monturo!
Encontrar quem demonstrasse àqueles filósofos muçulmanos,
orgulhosos e seguros de si próprios, que Aristóteles, e ainda
vivo, haveria de rir a valer das suas fantásticas interpretações
...
- Reverendíssimo abade ...
- Agora o abade não recebe porque está trabalhando em ...
- Mas eu preciso falar com Ele.
- Frei Leão, deixe entrar frei Vicente - disse o abade em voz
alta. enquanto o ancião já entrava cambaleando na cela.
- Reverendíssimo abade, o diabo ... Vi ... vi o diabo.
- Ainda o diabo! - Exclamou o abade aborrecido. - Que bobagens
são essas? - Apenas seis meses antes tivera de fechar um de seus
monges ia enfermaria e vigiá-lo dia e noite, porque se julgava
continuamente assaltado pelo demônio. Afinal tivera de apelar para o
exorcista de outro mosteiro, que examinado o homem, aconselhou...
interromper os jejuns por alguns meses e mandá-lo diariamente
trabalhar algumas horas ia horta. "Só isso?" "Sim, é o que
resolve, reverendíssimo abade. )aqui há três semanas estará
curado". E a receita fora eficaz. Mas que humilhação ter de
recorrer a um exorcista de fora! E agora, eis frei Vicente! Porém
este caso devia ser diverso: Ele era homem razoável reflexivo,
exatamente o contrário de um feixe de nervos. Por que i maligno
escolhera justamente Ele? eis o enigma. Uma coisa, porém, será
certa: não se tratava de prescrever a frei Vicente os trabalhos da
corta: ele era justamente o jardineiro do convento.
- Deve ter sido o demônio - insistiu o frade. - E trazia consigo
em diabrete preto que dizia tratar-se de um Serafim, um serafim.
Mas mentia. Não podia ser um serafim! Era a coisa mais feia, mais
Horrorosa Que já vi em minha vida. Qual serafim, qual nada! -
Frei Vicente Estava indignadíssimo.
- Mas onde, isso tudo? - perguntou o abade.
- Junto às moitas - explicou o frade. - Isto é. além do muro
que fica atrás das moitas.
"Já se vê, topografia de jardineiro", pensou o abade. "Onde
estão, entretanto, nossas moitas? Isso prova que o bom homem não
perdei juízo". Notou então o ponto inverossímil da declaração.
- Atrás do muro? Então como podias vê-lo se o muro é alto nove
pés e meio?
- O homenzinho preto havia trepado em cima - explicou frei Vicente.
- E o ... o outro avançava com a cabeça e o pescoço.
- Deve tratar-se de um diabo bem comprido - murmurou o abade
levantando-se com esforço. - Está bem, vamos ver.
Lá fora tinham-se juntado uma dúzia de monges.
- Parece que tens razão, frei Vicente, - exclamou o abade com
ironia. - Deve ser mesmo o diabo. Basta ver quanto trabalho sagrado
já interrompeu... - Os monges afastaram-se enquanto Ele
acrescentava: - Vamos, adiante! As moitas.
Alcançaram o lugar em poucos instantes; mas o muro; atrás daquela
beleza de cores, estava deserto.
- Foi mesmo aqui, frei Vicente?
- Com toda certeza, reverendíssimo abade.
- Que pena! - disse, o abade friamente. - Está bem. Volto ao
meu trabalho. E se alguma coisa tivesse que reaparecer...
Um grito rouco do frade cortou-lhe a palavra.
- Lá... lá, reverendíssimo!... - E indicava o portão,
onde realmente estava acontecendo alguma coisa. O frade porteiro
precipitou-se em direção do edifício principal, gritando a plenos
pulmões; mas a sua voz era abafada pelo ressoar de trompas, tão alto
de rebentar os tímpanos. Era aquele o diabo de frei Vicente?
Fora, diante do portão, devia haver uma grande confusão. E que
era aquele interminável monstro guiado por um pequeno preto?
- Ei-lo, reverendíssimo, - exclamou frei Vicente. - Eí-lo
junto com o diabrete! Não dizia eu!
O portão tinha doze pés de altura: não obstante, para passar
aquela coisa teve de dobrar o pescoço, o horrível pescoço que
parecia fizesse uma reverência, e depois levantou-se em todo o seu
tamanho. No momento o abade pensou seriamente que o seu frade tivesse
razão, mas depois, atrás daquela coisa viu aparecer uma massa
cinzenta e informe, com enormes orelhas e uma longa tromba: certamente
aquele era o animal chamado elefante, que Ele vira pintado, um animal
estranho e terrível, mas em fim, um animal. "Quem tenha visto
esses animais" pensou o abade "não terá dificuldade em crer que
existam o unicórnio ou a salamandra, que vive no fogo: mas o
porquê, a origem...". Talvez fosse apenas um incubo do qual
poderia acordar em pouco. De todas as portas os frades acorriam
olhando aterrorizados aqueles estranhos intrusos. Entrando com algum
esforço pelo portão, o elefante barriu novamente; estava acompanhado
por um diabrete negro, um pagão de pele escura, com birbante e vestes
brancas, que o conduzia pela tromba. Seguiam-se outros animais:
linces e panteras, pelo menos meia dúzia, todos com mordaça,
conduzidos por homens de turbante, e depois uma fila de camelos de uma
e de duas corcovas.
- Santa Mãe de Deus! - suspirou frei Vicente. - Que está
acontecendo, reverendíssimo abade? Ter-se-á desencadeado o
inferno sôbre a terra?
O abade não respondeu. Olhava para a entrada, onde atrás dos
amelos apareciam outras formas, figuras humanas em magníficas roupas
transparentes, de todas as cores do arco-íris: lindos rostos de
mulheres quito pintadas. Elas também tinham os seus demônios,
criaturas disformes em amplas vestes soltas ao vento: os eunucos.
Bailarinas e eunucos! ... O abade compreendeu e perdeu a cor.
- Sim, frei Vicente, o inferno se desencadeou ... mas é o
inferno '.a terra. E um insulto, uma ofensa como aquela que foi
feita a Nosso Senhor ... e com a mesma intenção. Ei-lo que
chega.
Ajustado na armadura, ereto num corcel ajaezado, entrou na praça Lm
cavaleiro acompanhado por pagens e escudeiros: um enorme coleópero
rodeado de formigas. Olhou em torno e dirigiu-se diretamente para o
abade, diante do qual parou.
- Sois vós o padre superior?
- Sou D. Francisco Tecchini, superior de Santa Justina. Que
significa, senhor, esta invasão, esta ... procissão
inconveniente e impudica?
- Reverendíssimo, - disse o cavaleiro - sou o conde de Caserta,
criado vosso. Aquela que vos comprazeis de definir procissão
inconveniente e impudica é uma parte da corte de sua majestade
imperial, da qual vós sois súdito como eu: súdito e servo,
reverendíssimo, como todos esses são seus servos e servas; bípedes
e quadrúpedes, não há diferença.
- A diferença, senhor conde, poderia vo-la ensinar uma criança.
este é um lugar sagrado ...
- Não vim para discutir sutilezas teológicas, - interrompeu o
cavaleiro - mas para anunciar a iminente chegada do imperador que
dignou fazer do vosso convento seu quartel-general temporário.
- Impossível - deixou escapar o abade, cujos lábios tremiam. -
O imperador e seus nobres naturalmente são bem vindos... mas desde
que a sua visita compreenda tudo isso ...
- Sinto ter de interromper mais uma vez o vosso belo discurso, ias
quando o meu senhor manda, nada é impossível. Ele compreende que os
monges e o belo sexo não combinam. Por isso vós e vossos monges
deixareis imediatamente Santa Justina ...- para vosso próprio
bem. seus lábios finos e sarcásticos contraíram-se levemente sob o
nariz comprido e sensual, enquanto os olhos escuros e penetrantes
brilhavam invertido.
- Abandonar Santa Justina ... - murmurou o abade contrafeito.
- Não posso ... não posso crer que o imperador ...
- Reverendíssimo, a vossa idade e o hábito impedem-me de vos
responder como a quem ousasse pôr em dúvida a exatidão das minhas
firmações. E a vós também devo ...
- Prefiro ofender-vos - interrompeu o abade - declarando-vos
mentiroso, a ofender o imperador, considerando verdadeiras vossas
palavras.
- Basta - interrompeu o cavaleiro. - Dou-vos meia hora. Se pois
do prazo ainda encontrar aqui algum frade, acabará mal. Recebi
-ordem de desimpedir este lugar para que se torne digno do meu senhor.
fio palavras do imperador.
- Compreendo - disse o abade, que tinha recobrado a calma. - Se
Santa Justina deve ser digna do vosso senhor, não pode mais sê-lo
do meu.
Afastar-nos-emos.
E passando diante do cavaleiro emudecido, dirigiu-se para a entrada,
onde os monges, perto de cinqüenta, se haviam reunidos cheios de medo
é de indignação. "O Santíssimo", pensava. "Os vasos
sagrados e os paramentos, alguns livros e os manuscritos.
Agradeçamos a Deus pelo voto de pobreza. Encontraremos um refúgio
em Montecassino, onde haverá lugar para nós também". Não seria
definitivamente, pois o imperador Frederico não se demorava muito no
mesmo lugar. Depois da excomunhão, já havia mudado de
quartel-general mais de uma vez por ano. Parecia que o chão lhe
queimasse sob os pés. E talvez fosse verdade ...
- Reverendíssimo abade ...
- Que há, frei Vicente?
- Agora quem se ocupará de minhas flores?
- Das nossas flores, frei Vicente.
- Das nossas flores, reverendíssimo. Algumas delas necessitam de
água três vezes ao dia, e ...
- Não sei, mas temo que ao retornarmos será preciso começar tudo
de novo. - E com um doloroso sorriso acrescentou: - Frei
Vicente, tinhas razão e estavas errado. Errado porque aquilo que
viste não era o diabo; razão porque era o arauto do diabo.
Um sino vibrante começou a tocar. O ótimo, simples e já ancião
frei Filipe anunciava as vésperas ... vésperas que não seriam
cantadas. Com tristeza frei Vicente viu o rosto do abade contrair-se
num choro silencioso. E o sino continuava a tocar.
O imperador chegou cinco horas depois com um cortejo de cerca de
sessenta nobres e algumas centenas de servos. Já estava escuro,
não, porém, no pátio do mosteiro. O conde de Caserta havia
terminado os preparativos. Ao longo dos muros, em intervalos
regulares, ardiam tochas. Todos os sinos tocavam ao mesmo tempo. O
conde, numa vestimenta de veludo ornada de peles, sem armadura,
inclinou-se profundamente, beijou
o estribo e ajudou o imperador a desmontar.
Frederico teve um instante de hesitação.
- Tochas viventes! - disse. - Pela barba do profeta, é um belo
espetáculo! - Cada tocha estava presa à cabeça de uma bailarina e
iluminava um corpo fascinador, cuja veste consistia exclusivamente numa
ampla calça oriental e colares cintilantes. - O teu gosto, conde de
Caserta, refinou-se muito. Mas não as deixes por muito tempo no
pátio. A noite está um pouco fria e podem apanhar um resfriado que
depois pega em todos os meus amigos. Não sei como isso se dá, mas
fato é que acontece.
Acolheu a respeitosa risada dos nobres com o sorriso comum a todos os
suevos, um sorriso em que os olhos não tomavam parte.
- Caserta é um mago - disse sorrindo o margrave Palavicini. -
Como fizeste, amigo, a transformar os frades assim? Qual seria o
abade? Rogo-te apresentar-mo. É a primeira vez que me dá esse
desejo.
- E os frades? - perguntou secamente Frederico.
O conde deu de ombros:
- Caminham pela noite ... para o sul.
- Quem, então, está tocando os sinos?
- Sim, os sinos - sorriu o conde. Talvez, meu senhor,
gostásseis d e ver como se tocam...
- Vejamos - concordou Frederico. - Vem, primo Cornualha, tu
também. Absburgo, Palavicini! Ezelino! Vamos ver os sinos do
conde de (;acerta. Pela Caaba de Meca, imagino uma boa
brincadeira.
Os nobres chamados desmontaram e seguiram-no em direção à torre.
- E eu, papai? - perguntou uma voz de menina.
- Pelo que sei do conde, não me parece coisa adequada a "um jovem"
como tu, Silvana, -disse rindo Frederico sem voltar-se.
Todos riram. Para a cavalgada a princesa Silvana tinha-se vestido
de homem: assim jovem e esbelta, aqueles trajes ficavam-lhe bem.
Só o rosto era decididamente feminino, com aqueles lábios túmidos e
corados, o narizinho arrebitado, os olhos cinzentos e um pouco
amendoados. como os de sua mãe.
Ezelino voltou-se para olhá-la e atirou-lhe um beijo, mas ela
mostrou-lhe a língua como um moleque, e riu-se alto. Um jovem
cavaleiro da comitiva de Comualha não pôde deixar de menear a
cabeça.
- Não há de que escandalizar-te, cavaleiro, - murmurou junto
dele uma voz zombeteira. - Os dois vão casar-se esta semana.
O jovem inglês levantou os olhos e viu um homem de sua idade (no
máximo poderia ter uns vinte anos), de belo físico e relativamente
alto por ser italiano, com uma bela fronte, olhos escuros, lábios
finos e vivos: um desses homens com os quais não se pode ficar amuado
por muito tempo, e pelos quais Piers Rudde sempre tivera uma pontinha
de inveja. Na Itália (e mesmo em França) encontravam-se
freqüentemente desses jovens elegantes e de modos tão desenvoltos que
podiam permitir-se serem descarados até diante de uma cabeça
coroada, e com isso conseguindo, algumas vezes, um colar de ouro. O
inglês teve ganas do dar uma resposta briosa, mas limitou-se a
dizer:
- Sinto-me muito confuso.
O jovem italiano explodiu numa gargalhada:
- Não me admira. São coisas que na Inglaterra nunca a( acontecem
não é?
- Certamente não - replicou com frieza Piers Rudde. Mas
explica-me, peço-te, por quem ou por que coisa ouvi o imperador
Jurar? A que profeta aludia?
- Ora. - respondeu o italiano dando de ombros. - Pela barba do
profeta. não é? Maomé, é claro. Certamente também os outros
profetas terão tido barba: parece uma condição necessária. Quanto
mais comprida a barba, tanto melhores as profecias. Mas ele aludia a
Maomé. Não ouviste dizer "pela Caaba de Meca"?
- Sim, mas que é isso?
- Uma grande pedra negra no meio da cidade santa dos muçulmanos.
Pelo que se diz, é a pedra sôbre a qual Abraão queria sacrificar o
filho Isaque: o anjo Gabriel depois transportou-a gentilmente a
Meca.
- E o imperador crê nisso? - perguntou o inglês admirado. É
verdade que, como dizem os padres, fez-se muçulmano?
- Fala baixo, cavaleiro, z- murmurou o italiano. - Não, não
creio seja verdade. Recentemente ouvi-o dizer: "Não me libertei
de uma cadeia para deixar-me prender por outra". Entretanto,
invocar os símbolos maometanos está em moda. E tal moda foi
introduzida justamente pelo imperador.
- Talvez seja melhor assim - comentou Piers Rudde. - Deste modo
ele deixa em paz os nomes sagrados. Este é um convento, não?
- Pelo menos era-o até há pouco - foi a resposta desembaraçada.
- Gostaria de saber o que terão pensado aqueles frades vendo entrar o
serralho imperial. Foi uma idéia de sua augusta inteligência. Ele
diverte-se com tiros desses quando ...
Interrompeu-se porque mencionar a excomunhão do imperador não era
coisa de bom gosto.
- Qual serralho? Estas ... estas jovens?
O italiano riu francamente.
- Ah, boa, muito boa esta, cavaleiro! ... E dizem que no teu
país nebuloso não se sabe rir! -Mas tornou-se sério vendo o
estupor do inglês. - Pelos benditos califas e por todos os santos,
vejo agora que tua pergunta era séria; desculpa a minha alegria.
Referia-me aos animais, aos quadrúpedes que o imperador foi
arrebanhando em todos os continentes. Alguns são verdadeiras
raridades, e ele nunca se põe de viagem sem levá-los consigo. Não
estás informado de que os mandou adiante com o conde de Caserta? É
mesmo, tu nos alcançaste só à tarde e não podias saber. Não me
admira a tua confusão. Todos nós vivemos um pouco confusos.
- Também me parece - respondeu o outro brevemente.
- Melhor assim - asseverou o italiano. - É quase um modo de viver
divino. Movemo-nos num mundo estupendo que nos pertence. Em
qualquer parte que chegamos trazemos alegria e assombro, esperança e
desespero, amor e ódio. Não é este o modo dos deuses? Basta uma
palavra do imperador ... e uma cidade é arrasada. Outra palavra
... e uma cidade surge das cinzas. Agora os sábios sultões e os
emires do Oriente nos mandam incenso e mirra ...
- Esta é uma conversa sacrílega, cavaleiro, - exclamou Piers
Rudde, admoestando-o.
- Não, é poesia sacrílega - suspirou o jovem italiano. -
Parece-me ouvir minha mãe. Oh! quantas vezes disse-me ela que
acabarei mal! Ela também não percebe a diferença entre poesia e
prosa. Vejamos, que mais tens em comum? É alta, morena e fogosa
... é como uma estátua de Juno, a mãe dos deuses: enquanto tu
és loiro de olhos azuis, e provavelmente forte de meter medo.
Evidentemente não um Apolo, é claro, pois, que em tal caso terias
mais compreensão pela poesia. És
talvez um daqueles deuses tudescos, cujo nome basta para destroncar
uma língua italiana, tanto são poderosos. Tu e minha mãe não
poderiam ser mais diversos, e no entanto fazeis a mesma opinião de
mim, pobre poeta. Se uma terceira pessoa ainda me disser o mesmo,
acabarei por acreditá-lo também eu. Mas eis que voltam; parece que
se divertiram um bocado. Gostaria de saber o que arrumou o conde de
Caserta com os sinos. Nunca pensei tivesse ele um. pingo de fantasia
...
O pequeno grupo aproximou-se. O imperador mostrava-se satisfeito,
Ezelino e Palavicini riam-se às gargalhadas. O conde de Absburgo
mostrava-se incerto entre o choro e o riso, e o conde de Cornualha,
aborrecido como sempre. Caserta estava radiante.
- Extraordinário o Caserta! - Exclamou Ezelino. - Nunca vi
sineiros tão graciosos pairarem no ar como borboletas.
- Espero tenha preparado com igual cuidado a comida e a bebida -
observou o imperador.
- O jantar aguarda o divino Augusto - apressou-se em dizer o conde
de Caserta. - Tivemos que reorganizar o refeitório. Esses monges
... - e estremeceu - penso que levaram muito a sério o voto de
pobreza.
- Os monges tomam tudo a sério, - declarou o imperador - e dão
fé a qualquer coisa, desde que dita com suficiente seriedade. Onde
está Mousca?
O pequeno negro apareceu como que por encanto e atirou-se humildemente
ao chão.
- Mousca, onde estão os meus queridos animais?
- Providenciou-se um lugar para todos, ó sol invicto!
- Está bem. Irei vê-los amanhã. A mesa, amigos!
O refeitório havia sido realmente transformado. Tapetes orientais
cobriam o chão de pedra, e uma toalha purpúrea havia sido estendida
sôbre a enorme mesa em cruz. Os monges tinham levado consigo o
crucifixo de cima da alta cadeira do abade. Caserta o substituíra
pelo estandarte imperial: uma águia preta num fundo de ouro. Num
canto estava tocando uma pequena orquestra, e loco, o bobo da corte,
bailaricava em volta da mesa, atrapalhando os nobres que procuravam
lugar. Para cada um deles achara um apelido que escondia um pouco de
amarga verdade, é claro, sem excessivo amargor, pois cada bobo deve
saber que não é prudente descobrir excessivamente as cartas antes que
os senhores tenham comido e bebido. Pequenino, corcunda, com um
nariz comprido e ridículo entre dois olhinhos pretos e sempre em
movimento, acentuava o grotesco de sua disforme figura a roupa meio
vermelha e meio rosa.
Ouvindo-o apelidar Ezelino de "Ecce homo", o imperador pôs-se a
rir: era um daqueles gracejos que ele mesmo gostava de fazer. Mas
quando Ioco chamou o conde de Absburgo de "tiozinho azedo", a testa
imperial enrugou-se.
- Peço perdão - disse logo loco. - O meu senhor pensa
diversamente, e como é muito maior que eu, nem mesmo eu devo pensar
como eu. Retiro, pois, o título "tiozinho azedo" e o confiro ao
grande
conde de Inglaterra. Como sempre, tens razão, irmão imperador:
ele o merece, muito mais que o "titio beiçola".
Quando as risadas acabaram, Piers ouviu uma voz exclamar:
- Muito bem.
Levantando o olhar viu o jovem cavaleiro italiano com quem tinha
conversado antes.
- Que queres dizer, senhor?
- Boa tática. Quando se ofende uma pessoa só, esta se aborrece.
Quando, porém, se ofendem duas ao mesmo tempo, ou mais, todos
acham graça. A honra e a dignidade são bens individuais, divindades
solitárias.
Absburgo tinha realmente sorrido... com o grosso lábio ofendido.
O conde de Cornualha, porém, estava impassível como se nada
tivesse ouvido.
Os pagens em libré imperial trouxeram os primeiros pratos.
- Um momento! - gritou loco. - Meus nobres senhores, esqueceis o
lugar em que estais. Ninguém recitará a oração? Pois bem, eu o
farei. - E voltando-se para o imperador, levantando as grossas
mãos em ato de adoração "orou": - Grande e divino senhor de
todos os animais, agradecemos-te o pão cotidiano. Os burros
trouxeram-no nas costas, portanto é justo e equânime que outros
burros o levem consigo na barriga. Assim seja.
Piers percebeu que o bobo era-lhe sumamente antipático. É verdade
que os bobos tinham a tarefa de pôr em ridículo todas as coisas, mas
aquilo era-lhe insuportável. Também ao conde inglês era odioso.
Eis Ezelino a exclamar:
- Êh, loco, estás falando em burros, no entanto aqui és o único
que tem as orelhas compridas.
O bobo riu sarcasticamente: -
- Perfeito, nobre senhor. Quando foram distribuídas as partes do
burro, cheguei no fim e recebi as orelhas. Conheço uma família de
alta linhagem que tem as mãos muito compridas quando se trata de
distribuição: a esta provavelmente coube o cérebro. Como diz o
sábio Platão . . .
- Ao diabo Platão e todos os filósofos! - imprecou Ezelino
aborrecido. - Não quero pensar nem filosofar. Quero é comer.
- Que homem feliz! - suspirou loco. - Conhece os seus limites.
- loco, agora chega - ordenou o imperador. O bobo encolheu-se como
se tivesse levado uma pancada, caiu de joelhos e desapareceu sob a
mesa.
- Primo Cornualha, nunca se deve tomar a sério os bobos. No
entanto eles têm uma finalidade. Em que consiste, de fato, a
bobagem senão na união das coisas que não concordam entre si? Mas
justamente assim, por eliminação, vejamos quais as coisas que
concordam.
- Vós sois muito lógico, meu imperador, - atalhou o conde com um
leve sorriso. - Pois eliminaste o próprio bobo.
Junto dele Silvana aplaudiu:
- Vês, papai, nunca se sabe como tratá-los, esses ilhéus.
Cornualha possui o senso de humor.
- E o da beleza, graças a Deus - retrucou o conde com uma breve
reverência.
- O nosso bobo nomeou-me senhor de todos os animais - prosseguiu o
imperador. - A propósito podem ser feitas diversas observações.
Poucos homens alcançam a graciosa e robusta beleza do falcão, e
nenhum homem sabe voar ... exceto Dédalo e seu filho. Amanhã,
primo Cornualha, mostrar-te-ei o meu elefante: um animal
verdadeiramente majestoso, que me foi dado pelo sultão Al-Kamir,
certo de que eu não estaria em condições de retribuir o presente.
Pois lhe mostrei o contrário enviando-lhe um urso branco. Talvez
tenhas ouvido falar dele: é um animal que vive no extremo
setentrião, onde o sol brilha apenas poucos meses no ano ...
- Julgava que o país da neblina fosse a Britânia - disse friamente
o conde.
- Não se trata de neblina, primo. Lá em cima o sol não brilha
por outro motivo, como asseveram os sábios. Mas, voltando à minha
história, os amigos sarracenos não pareciam muito entusiasmados com o
meu urso branco. Não entendia por que, e só dei conta do motivo,
quando soube que, quando velhos, os ursos do Curdistão têm o pelo
branco sujo. Porém, vendo que o meu urso branco só comia peixes,
ficaram estupefatos. Masc Allah, Masc Allah ... não conseguiam
compreender. O próprio sultão levantou' as mãos ao céu, e com
elas um diamante como nunca vira. Exato: Al-Kamir, o meu velho e
bom amigo ...
- Amigo? - disse o conde. - Um pobre pagão ignorante, amigo do
imperador? Estais brincando?
- Caro primo, o sultão Al-Kamir não é nem pobre, nem
ignorante, nem pagão. )v mais rico que todos os monarcas cristãos
juntos, e muito erudito. Demais, para o Corâo, que quer dizer
pagão? Para mim pagão, e por cima ignorante, é todo aquele que
não quer saber de ciência e progresso; quem quer que viva contra a
natureza abstendo-se de mulher; todo o que crê em esconjuros mágicos
pronunciados sôbre um pedacinho de pão e um trago de vinho ou uma gota
de óleo, e que, a cada pergunta indagadora do homem pensante, só
sabe responder com a fórmula paralizante "eu creio".
- Creio - disse tranqüilamente o conde de Absburgo com a
aprovação do conde Cornualha.
Frederico sorriu contrafeito.
- É difícil, meus primos e amigos, evitar dissenções em torno
dessas coisas. Mas se, como eu, tivésseis observado neste belo
país a avareza, o egoísmo e a teimosia dos padres tendo à frente o
meu dileto amigo Gregório IX, pensaríeis como eu. Dizeis que
não? Claro, esquecia que sois ainda as suas caras ovelhas ...
enquanto eu sou a ovelha negra. Vós ainda não fostes excluídos da
comunidade dos santos. Mas eu não sei o que fazer das ovelhas, sejam
brancas ou pretas. Prefiro a parte do leão. - Bebeu um trago, e
olhando com olhos de entendido O belo cálice de ouro cinzelado
prosseguiu: - Porém, nem mesmo nestas circunstâncias consegui
compreender que tenha contra mim o supremo pastor do Deus cristão.
Lembrei-lhe que houve tempo em que o leão e o cordeiro viviam em paz
entre si; parece, aliás, que era um tempo feliz. Mas o papa
Gregório não quis saber de mim. Ovelhas queria, nada mais. Perdi
quase a esperança de que venha a converter-se à minha opinião ...
Quase, não toda.
O conde de Absburgo levantou os olhos, com um raio de esperança no
rosto rude e inteligente. Nada o incomodava tanto como a situarão dos
príncipes e reinantes num mundo em que o papa e o imperador
discordavam. Seria possível que Frederico não acabasse por cair em
si? Mas logo notou no rosto do soberano uma expressão que bem
conhecia, e, para esconder a desilusão, pôs-se a beber. Verdade
que às vezes o santo padre se obstinava, mas não era esto a
verdadeira razão do conflito. Na realidade, o papado constituía o
pano vermelho para o touro Frederico, qualquer coisa que o papa
fizesse.
- Penso que acabará cedendo - prosseguiu Frederico. - Um dia
deverá perceber que um imperador excomungado não representa para ele
bom negócio. Além disso creio que receberá em breve más
notícias.
- Não cederá - afirmou Ezelino. - A única coisa que lhe
importa é Roma e ...
- Roma, entretanto, não será assim tão papal como ele pensa
interrompeu o imperador. - De lá temos notícias muito
interessantes.
- Não pensareis em atacar já a própria Roma? - deixou escapar o
conde de Absburgo aterrorizado.
- Talvez não seja necessário, meu caro crome.
Silvana disse baixinho:
- Tudo isso parecer-te-á estranho.
Piers Rudde olhou para ela. Seria possível que a filha do imperador
dirigisse a palavra justamente a ele, o menos categorizado da mesa?
Os olhos amendoados tiveram um estranho brilho, enquanto um sorrisinho
irônico passava pelos lábios túmidos e vermelhos. Há muito tempo
mil pensamentos tumultuavam em seu cérebro. Que terra estranha, onde
o papa e o imperador guerreavam-se! E o imperador não era apenas rei
da Sicília, mas também supremo senhor de todo o Sacro Romano
Império da nação tedesca, do qual a Itália era apenas uma parte:
irmão, cunhado, tio e sobrinho de quase todos os monarcas viventes na
cristandade, era... e se vangloriava de não ser cristão, do nome
cristão nem se importava, usava roupas semi-orientais, invocava o
Corão... ele, o supremo rei da cristandade, com o qual,
dizia-se, meia dúzia de pessoas no máximo podiam medir-se em
erudição e inteligência. Piers estava pensando na festa cia
Assunção do ano passado, quando, por ordem do rei Henrique, fora
em peregrinação a Wallsingham, na comitiva do conde. Três mil
velas bentas iluminavam a imagem da Mãe de Deus.
Nisso era preciso pensar. quando as dúvidas surgiam, quando Deus
permitia coisas que o último cavaleiro cristão não teria permitido,
estando em condições de as impedir. Não era Deus onipotente? Em
tais momentos pensar em Wallsingham reconfortava. Tanta beleza tinha
de pressupor o verdade. Agora, no entanto ...
Nesses pensamentos insinuou-se a voz tênue e irônica da filha do
imperador, fazendo com que desaparecessem. E ele ouviu a si próprio
responder:
- Certamente, gentilíssima. Não sei se estou acordado ou se
sonhando.
- Estás na terra dos milagres - disse Silvava lentamente. Aqui
tudo é possível... especialmente o impossível.
Pequenos espíritos dançavam nos olhos e nos lábios da moça. Piers
sentiu que enrubescia e irritou-se consigo mesmo. Ela devia
considerá-lo um tolo incapaz de estar na corte. Criou coragem e
disse:
- Neste caso só há uma solução: estar preparado para o
impossível.
- Estou começando a gostar de ti - confessou Silvara observando-o
como a um animal raro da coleção de seu pai. - Talvez peça ao teu
senhor que te ceda a mim por algum tempo. Já tenho a minha guarda
pessoal que se veste garbosamente: em ti aquele uniforme ficaria bem,
loiro como és. Todos os outros são morenos. Prova estes pêssegos
em vinho... - As últimas palavras foram pronunciadas em voz alta.
- Come! - sussurrou alguém. - Não levantes os olhos e come.
Ele obedeceu maquinalmente. Sabia que aquelas palavras eram-lhe
sussurradas pelo jovem amigo italiano, mas . .
- Que está acontecendo? - murmurou por sua vez. - Que fiz eu?
- Vênus santa! - resmungou o italiano. - Não sabia que querias
morrer tão cedo. Perguntas-me que fez! Não te disse que se
casará com Ezelino de Romano? Não viste seus olhos quando a
princesa falava contigo, mas a coisa não escapou ao teu patrão. Uva
azeda para ti, amigo, não pêssegos em vinho. Se ...
Interrompeu-se porque o imperador havia recomeçado a falar. Não
era, porém, apenas a cortesia que o induzira a ouvir. Aquele
imperador, aquele monstro, Lúcifer, Augusto e Justiniano numa só
pessoa, era o homem mais fascinados que o jovem poeta já tivesse
encontrado: e essa impressão nem era comprometida pelo fato que
Frederico queria precisamente suscitá-la entre seus cortesãos.
- Não, não, Palavicini - dizia Frederico. - Deixei meus
guardas na vila, onde poderão divertir-se com as raparigas. Aqui
não me servem, pois penso que vós não querereis assassinar-me.
Certamente o velho Gregório ficaria contente, mas vós sabeis,
creio, ter em mim um patrão melhor que ele. Fora de brincadeira,
amigos, onde poderia estar mais a salvo do que entre vós? Por outro
lado, tenho aqui Mousca e Marzuque, as duas estatuetas de ébano que
dormem diante de minha porta. Eles sabem lidar com elefantes e tigres
... imaginemos um homem que quisesse entrar!
- Papai, é verdade que levam consigo punhais envenenados?
Frederico sorriu para a filha:
- Não deves ser tão curiosa, Silvava. Como dizem os tonsurados?
"A primeira curiosidade da primeira mulher arruinou o mundo todo: e
quando concebeu péla primeira vez, deu à luz um assassino". Mas,
com veneno ou sem, esta noite não morrerei, é certo.
- Foi vosso astrólogo que vo-lo predisse? - perguntou Ezelino com
interesse.
- Bonatti? Não: o seu predecessor, Miguel Escoto. Vinha do
teu país, primo Cornualha.
- Sinto ter de contradizer - disse o conde, arrogantemente. Ele
era escocês, não inglês.
- Em todo caso, vinha da tua ilha. E não era apenas astrólogo.
Em Toledo aprendera algo mais que astrologia.
- Toledo, a fortaleza da necromancia ...
- A fortaleza da erudição, queres dizer, Absburgo. O oculto só
é oculto para os ignorantes, para os jovens ainda não maduros aos
mistérios do universo. Amigo, peço-te não bancar o padreco.
Nasceste para reinar. Todos devemos aprender, mesmo daqueles que
professam uma fé diversa da nossa. Pensa o que quiseres do Corâo,
mas a matemática, a álgebra, a astronomia e a arte oculta dos
números simbólicos representam um enorme enriquecimento da ciência.
O meu fiei Leonardo Fibonacci de Pisa introduziu, por minha ordem,
os algarismos árabes que agora se ensinam em muitas das minhas
escolas... Entre esses algarismos há uma coisinha maravilhosa,
muito insignificante, e entretanto poderosa...
- Referes-te a mim, irmão imperador? - perguntou loco aparecendo
de baixo da mesa.
- Em certo sentido, não deixas de ter razão, querido bobo.
Refiro-me ao zero, uma coisinha de valor incalculável para os meus
tesoureiros. Em si não vale nada, mas posto atrás de outro
algarismo decuplica-lhe o valor. Coloca-se duas dessas nonadas
atrás de um algarismo e o seu valor fica centuplicado. Todas as
contas e cálculos tornam-se mais claros e mais simples. No entanto o
zero não tem nenhum valor, é um nada. Um valor meramente
metafísico.
- Achei! - exclamou loco radiante. - Esta é a tua imortalidade,
irmão imperador. Isso será lembrado por todas as gerações
futuras, quando o teu nome já houver desaparecido. Eis a tua
glória, as tuas gestas, o maior dos teus merecimentos. Zero,
zero, zero. Viva o imperador Zero!
- Sinto muito, - observou o conde de Cornualha - mas se meus
funcionários põem-se a registrar valores metafísicos, certamente
serei enganado.
- Que homem insuportável! - riu Frederico. - Crê em mim,
daqui há vinte anos ninguém seguirá mais o antigo sistema. O
arábico funda-se no dez, não no doze. O sistema decimal é
conatural ao homem. Dez dedos, primo Cornualha, nas mãos e nos
pés.
- No meu país nunca será aceito - garantiu o conde. - E um
sistema ... um sistema estrangeiro.
- Também o cristianismo o é - observou o imperador rindo. Um
sistema judaico, judaico autêntico. No entanto na Inglaterra o
aceitaste e fazes questão. dele.
- E verdade, graças a Deus - replicou o conde. - Não entendo
muito o grego, mas, pelo que sei, o vocábulo "católico" significa
universal, e não estrangeiro.
- Mas o cristianismo não é universal - replicou Frederico dando de
ombros com desprezo. - Vai à África, ao Egito, à índia, e
pergunta se por lá já ouviram falar dele. No Egito talvez, mas os
que o conhecem, cospem quando ouvem essa palavra. Na índia nem
cospem. O pequeno Francisco de Assis foi um dos poucos que pelo
menos tentou difundi-lo. Tentou até converter o grande Saladino.
Por isso quase simpatizo com ele, e simpatizaria completamente se não
nos tivesse legado aqueles insuportáveis sequazes que vivem mendigando
e são uma verdadeira praga ... exatamente como os filhos de São
Domingos. Mas até o "grande pequeno Francisco" não foi muito
longe. Fez uma bela pregação e acabou propondo ao sultão um
ultimato: "Converte-te ou manda atirar-me à fogueira!" Que
astúcia! Ou o sultão se tornava cristão e frei Francisco
triunfava, ou o sultão mandava queimá-lo e frei Francisco iria
direto para o paraíso exaltado como mártir. Cabeça ou cruz: a
Igreja vencia em qualquer caso ... e assim é que faz sempre. Ias
o sultão não era bobo. Percebeu o engodo, cumprimentou o fradezinho
pelo seu lindo discurso e o remeteu para casa, são e salvo. De
Saladino pode-se aprender muita coisa.
- Concordo convosco, senhor, - disse Absburgo com firmeza. Era
um homem nobre e reconhecia a grandeza dos outros, mesmo se estavam em
campo adverso. Não é fato que determinou fosse confiada para sempre
aos franciscanos a guarda de honra ao Sacro Sepulcro?
Frederico encolheu os ombros.
- Fala-se demais da Terra Santa, podes crer, Absburgo. Eu lá
estive. Entrei a cavalo em Jerusalém e me coroei na igreja do Santo
Sepulcro.
- Um ato arrojadíssimo! - exclamou Ezelino. - Aposto que quando
o papa o soube teve calafrios.
Absburgo sorriu pensando no grande Godofredo de Bulhão, o primeiro
conquistador cristão de Jerusalém, que recusara trazer até mesmo um
pequeno anel de ouro nas proximidades do túmulo do Redentor.
- A chamada Terra Santa - prosseguiu Frederico - não merece, na
verdade, tantos esforços. Jeová nunca viu a minha Púglia, e
litoral de Nápoles ou a minha Sicília, do contrário não teria
feito da Palestina o seu centro de atividade. Dá-se-lhe uma
importância enormemente exagerada.
Ezelino e Palavicini riam-se às gargalhadas, e muitos nobres
seguiam-lhes o exemplo. Absburgo e o conde de Cornualha trocaram um
olhar embaraçado. "Pelo menos não tivesse morrido Hermano de
Salza!", pensava Absburgo, "o anjo da guarda do imperador, o
único que era por este ouvido quando falava em favor da paz". A
morte do grande homem, no Domingo de Ramos, há dois anos atrás,
ocorrera no mesmo momento em que chegava a tremenda notícia da
excomunhão do imperador. Os motivos alegados pelo papa eram
convincentes, aliás, era de admirar que o raio não o tivesse
fulminado muito antes. O imperador, tendo fundado uma colônia
muçulmana no coração da Itália, perto de Lucera, tinha-lhe
instalado catorze mil sarracenos, e, enquanto nunca erigira uma
igreja, mandava construir para eles algumas mesquitas. Opressão da
Igreja e do clero, sacerdotes justiçados, afogados, enforcados
... a lista era extensa, muito extensa. A resposta do imperador
fora feroz: mandou simplesmente enforcar todos os parentes do papa que
lhe caíram em mãos. "Odeio toda essa linhagem: não se pretenderá
que seja feita a vontade daquele que disse: os filhos pagarão pelos
pecados dos pais?" Destruíra Benevento que ficara fiel ao papa. E
em qualquer parte os Ezelinos, os Palavicinis e muitos da alta
nobreza o imitavam. Abria-se uma nova era de ferocidade
desencadeada. Nos países do Oriente surgira um novo Atila, um Kan
dos mongóis que não era menos terrível que Gengis. Chamava-se
Batu. Seus cavaleiros esganavam os Homens às dezenas de milhares.
Mas era um pagão, um bárbaro, como o hino seu predecessor.
Certamente nem o próprio Frederico se considerava cristão, embora
fosse batizado, e não era apenas cavaleiro, mas chefe supremo de toda
a cavalaria cristã, imperador dos Estados cristãos da Europa.
Onde iria acabar a Europa sob tal soberano?
Agora o imperador falava em voz baixa com o conde de Caserta.
Via-se novamente o seu pavoroso e pálido sorriso. Absburgo pensava
com saudade na sua Áustria, bem longe daquela corte de víboras e
vespas. e suspirava pelo ar límpido das montanhas e da fé.
Caserta saiu.
- Escoto... - disse Frederico. - Afastamo-nos completamente
de Miguel Escoto. Após uma visão ou uma experiência secreta, ele
sabia como haveria de morrer: por uma pedra que deveria cair-lhe na
cabeça. De então em diante trazia sempre um capacete de ferro. Mas
indo à Germânia, fomos colhidos de surpresa por uma avalanche de
pedras e um pedaço de rocha caiu-lhe na cabeça, enterrando o
capacete de ferro nos miolos cheios de erudição. A Ananke, caros
amigos, a deusa que preside aos próprios deuses! A Necessidade,
primo Cornualha, se o teu grego não chega até lá. Como vês,
tenho motivos para crer que também o meu destino cumprir-se-á quando
chegar o momento. Este, porém. ainda não chegou. - Assim
falando, pôs-se de pé: - Boa noite, amigos.
Todos se levantaram e se inclinaram profundamente enquanto ele saía,
loco subiu com um pulo sôbre a cadeira imperial, exclamando:
- Continuai a beber, ótimos súditos. E esperemos que nenhuma
pedra nos caia no crânio. A minha touca de guizos me é mais cara,
quero dizer, do que o capacete de ferro do eruditíssimo Escoto.
Alas também a maior parte dos nobres se retirou. Assim fez Piers,
desejoso de ficar só. Muitas coisas o tinham perturbado. Não
obstante as conversas sacrílegas, o imperador era uma personalidade
quase única. Por ele. dizia-se. todos se atirariam ao fogo; por
um seu sorriso de estímulo teriam arriscado a vida. E devia ser
verdade. Tinha olhos estranhos. que não só não participavam do
sorriso, mas nem piscavam: um olhar fixo e agudo como o da águia ou o
do falcão. Estar a sós. Mas antes precisava ver se Cornualha
estava bem instalado ... Ei-lo em conversa com o conde de
Caserta.
- És um bom observador - estava dizendo este último. enquanto
Piers se aproximava. -Efetivamente. o imperador deu-me unia ordem
importante, ordem que nada pode impedir que se cumpra; inútil fazer
mistério, mesmo que entre nós houvesse um traidor. Parto esta noite
mesma com cem homens a cavalo e dois mil a pé para destruir tuna penha
que o imperador quer ver eliminada. "Caserta", disse-me, "arrasa
aqueles muros até os alicerces, de modo que não se levantem nunca
mais!". Trata-se, naturalmente, de um mosteiro.
- Ainda um mosteiro! - murmurou Cornualha.
- Precisamente. Dizem que ali sejam todos espiões papais. O prior
está do lado do papa, e o imperador pensa que os frades expulsos daqui
estejam indo para lá. Divertir-se-á, creio, fazendo-os correr
para mais longe.
- Como se chama o lugar ... o convento que não deverá mais
ressurgir?
- Montecassino, senhor.
- Ah! estás aí, Piers, - disse o conde de Cornualha. -
Conde de Caserta, este é sir Piers Rudde, um dos meus jovens
cavaleiros. Promete bastante, mas ainda tem de ser experimentado em
combate. Quereis levá-lo contigo nessa expedição?
Ao apresentá-lo, tinha tomado Piers por um braço. E a pressão
dos dedos tornou-se tão violenta que Piers compreendeu a ordem de
calar. Mesmo sem aquela pressão não teria dito nada, tanto estava
assombrado.
Caserta deu-lhe uma olhadela perscrutadora.
- Com prazer, senhor, se é do teu desejo. Mas provavelmente
ficaremos ausentes muito tempo.
- Não importa. Meu cortejo, ainda assim, é suficiente, e sir
Piers tem consigo só uma pessoa, o seu escudeiro.
- Para os tonsurados de Cassino somos bastante numerosos disse
Caserta rindo. Depois, dirigindo-se a Piers: - Estejas pronto
dentro de meia hora na entrada principal. Espero-te lá.
- As tuas ordens, senhor, - disse Piers enquanto Caserta
olhava-o com simpatia, e, inclinando-se, afastou-se.
- Quieto, Piers, - murmurou o conde. - Nem uma palavra enquanto
ele não estiver bem afastado. Precisamos ser prudentes, porque aqui
há espiões por todos os lados. Fiz essa proposta para teu bem, meu
caro jovem. A princesa foi bem ... imprudente, temo que isso não
lhe tenha agradado.
- A quem? A Ezelino?
- Pouco me importa que agrade ou não a Ezelino. Referia-me ao
imperador. A moça não terá nenhum aborrecimento: Frederico
precisa dela para garantir-se a lealdade de Ezelino. De ti,
porém, não precisa, e poderia acontecer-te alguma coisa ... um
infortúnio, por exemplo. Então todos viriam exprimir-me suas
profundas condolências, que no entanto não te ressuscitariam. É
melhor, portanto, que tu desapareças por algum tempo. Não estou
zangado contigo, filho, sei que não tens culpa, mas aquela pequena
esteve de fato excessivamente... entusiasmada. Vai, pois, e não
te apresses. Não te esperarei nem mesmo quando a tal expedição
estiver terminada. És jovem, viaja, pois, para conhecer um pouco
este país, onde poderás ter diversas experiências... talvez
dolorosas. O que importa é que estejas longe do imperador. Tens
dinheiro?
- Não muito, senhor.
- Toma este: assim poderás sobrenadar alguns meses. No entretanto
eu voltarei à Inglaterra, e tu podes vir quando quiseres. Não há
pressa. Este negócio me desagrada também porque não é uma
expedição em que um cavaleiro inglês possa fazer grandes
experiências bélicas. Mas não temos escolha. Deus te abençoe,
meu caro jovem.
- Sou-te grato por tanta bondade.
O conde estendeu-lhe a mão e Piers beijou-a. Depois separaram-se
e Piers dirigiu-se para as estrebarias em busca dos cavalos e do seu
escudeiro.
De repente uma sombra esguia apareceu-lhe em frente, fazendo-o
recuar um passo e levar a mão ao punhal.
- Calma, não é o caso de me matares, caro amigo, - disse o jovem
poeta italiano. -Nenhum perigo te ameaça de minha parte. Tens um
momento para me conceder? Sei que estás apressado, mas trata-se
mesmo de um minuto apenas. Vais deixar-nos, não é? Vais tomar
parte na expedição contra Montecassino, não?
- Parece que aqui as notícias se propagam rápido - disse Piers
cautelosamente.
O italiano riu:
- O conde de Caserta tem uma voz que parece um sino: a estas horas
até os cavalos nas estrebarias já devem estar ao par. Tu poderás
fazer-me um grande favor. Meu irmão menor vive em Montecassino:
tem apenas quinze anos, mas há já dez que está com os beneditinos.
Se destruírem o convento ... poderias dar um jeito para que não
lhe aconteça uma desgraça?
- Com prazer, se me for possível - respondeu Piers com
sinceridade. - Mas como posso reconhecê-lo?
O jovem poeta riu novamente:
- Não há possibilidade de te enganares: é o jovem mais gordo de
todo o convento. Mas ... é mesmo, não sabes como se chama,
ainda não me apresentei. Sou o conde Rinaldo de Aquino, e o meu
irmãozinho chama-se Tomás.
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