CAPÍTULO IV

Não foi por puro acaso que, na taberna dos Sete Santos, conheceu Piers a Tiago de Barolo. Ele tivera que armar o seu quartel-general num lugar que distasse a meio-dia de Parma, não muito longe, nem muito perto da cidade. A taberna estava situada num ponto apropriado a seus fins, cerca de seis milhas a sueste de Parma. Ali tinha sobejas ocasiões de observar o que acontecia na taberna; de fato, nada mais lhe restava a fazer senão ficar tranqüilo a espera de notícias. Uma dúzia de patrulhas por ele distribuídas vigiava as estradas que de Parma levavam para o sul, com ordens de ficar de olhos bem abertos, sem se empenharem em combate. Logo tivesse alguma delas descoberto sinais de San Severino, devia vir informá-lo; cada qual tinha recebido uma exata descrição das armas e do emblema do inimigo.

Inimigo ...

Piers achava tudo muito simples. San Severino era inimigo da sua dama e, portanto, inimigo dele. A dama, tinha prometido libertá-la desse inimigo, e agora ali estava para manter a promessa.

Tudo se havia tornado relativamente mais fácil, desde que a família parecia disposta a opor-se ao imperador, embora secretamente, se possível. Até agora Piers devia ter contado Somente consigo, com exceção de Robin, é claro, e isso significava que poderia ter êxito na empresa, mas não evitar as conseqüências. Absurdo desafiar para duelo um homem tão altamente colocado como San Severino. Podia apenas provocar uma briga, recorrer à espada e, com um pouco de sorte, matá-lo, mas, nesse caso, cairia inevitavelmente nas mãos da escolta. De tudo isso não tinha dito palavra a Robin, que sabia muito bem embora parecesse ignorar. Querido velho Robin! Era vergonhoso envolve-lo assim na desventura.

Agora, porém, as coisas se encaminhavam diversamente: Piers tinha consigo cinqüenta homens e seus patrões o apoiavam.

Em Parma, onde estouraram desordens, Brandenstein tivera que ordenar a seus homens de não aparecerem isolados pelas ruas, mas pelo menos em grupos de seis. Os tudescos eram muito mal vistos, não só por serem estrangeiros, mas porque arrogantes, orgulhosos de sua superioridade física e por olharem com desprezo a tudo que era italiano. Arvoravam-se em conquistadores e, quando queriam ser corteses, ostentavam uma empáfia insuportável. No dia seguinte à partida do imperador foram encontrados três tudescos esganados e Brandenstein não conseguiu achar testemunhas. Todos pretendiam não ter visto nada. No outro dia foram cinco, e Brandenstein viu-se obrigado a ameaçar com represálias, despertando assim ódio ainda maior.

Mais interessantes, porém, que as desordens em Parma foram as observações daqueles últimos três dias na taverna Sete Santos, onde havia um contínuo ir e vir de pessoas que não pareciam freqüentadores comuns de tavernas: camponeses com unhas extraordinariamente cuidadas, pequenos grupos de homens de roupa modesta, que se reuniam no andar superior, enquanto dois 'fortes jovens montavam guarda à porta.

Em certo momento, na estrebaria do taverneiro, havia nada menos que trinta e seis ótimos cavalos, cuidados por uma dúzia de tratadores vestidos de trapos, sim, mas muito mais adequados a librés de bom alfaiate.

E Tiago de Barolo afirmava ser um comerciante (azeite e drogas), enquanto sua figura dava a pensar que seus antepassados deviam ter sido criados cavaleiros há muito. Ele fazia muitíssimas perguntas, e não se dava por vencido com respostas secas. Recebia muitos hóspedes, comerciantes, é evidente, com os quais mantinha longas e sérias conversas de negócios.

Piers estava na Itália há muito pouco tempo para poder distinguir os diversos dialetos, mas uma pessoa experimentada teria percebido que aí se falava o cremones, o florentino, o genoves e o veneto. Todavia, Piers sabia que se encontravam ali pessoas vindas de diversas partes do país.

Um dia o delicado Tiago apareceu estranhamente mudado: desconfiado, calado, de mau humor. E quando se encontraram a sós, perguntou bruscamente:

- Senhor, quanto tempo pretendeis ficar aqui?

- Até que tenha resolvido o que aqui me trouxe - respondeu Piers.

Tiago riu maldosamente:

- Esperemos que não demore, então: para os de Aquino este ar não é muito higiênico.

- Sim? - perguntou Piers sem se perturbar. Evidentemente aquele homem tinha os seus informantes, e uma negativa teria aumentado as suspeitas.

- É uma família fidelíssima - observou Tiago. - Grande vantagem, sem dúvida ... em certos casos. - E acariciava a sua barba preta com já alguns fios encanecidos. Parecia-se menos do que nunca com um comerciante.

- De acordo - respondeu Piers secamente.

- Porém, vós, - prosseguiu o outro - sois estrangeiro: que vos importam nossas questões políticas? Por que não voltais ao vosso país? Se quiserdes, então, fazer uma obra meritória, levai convosco todos os cavaleiros tudescos. Não gosto de ser descortês, mas de estrangeiros já estamos até os cabelos - e continuava a acariciar a barba.

- Juramento é juramento, - replicou Piers - e a casa de Aquino não está nem excomungada nem destituída. Portanto, o meu juramento ainda é válido. Por outro lado eu não sou tudesco, mas inglês.

- Pena que vossos patrões não tenham a mesma sensibilidade para aquilo que torna válido tini juramento. Se a tivessem provavelmente salvariam a vida.

- A vida? - exclamou Piers olhando firmemente aquele estranho homem.

- Assim, porém, - prosseguiu Tiago - não creio que sobrevivam além da próxima semana. Bem, poderá consolá-los o .pensamento de que morrerão em boa companhia ... ou pelo menos numa companhia que eles consideram boa. Parma será libertada de todos os amigos do grande blasfemador.

- Vejam, vejam! - disse Piers. - Encheis a boca de grandes palavras, senhor comerciante, e deveis estar bem certo. A mim pouco me importa o que fareis com os cavaleiros tudescos; não entendo, porém, engolir as ameaças contra a casa de Aquino, qualquer que seja a vossa verdadeira condição.

- A minha verdadeira condição não vos diz respeito, senhor cavaleiro, mas depois de tudo que vistes e ouvistes aqui, mesmo um simplório como vós deve compreender que não posso permitir-vos voltar a Parma.

- Por enquanto não tenho intenção de voltar, - replicou Piers ainda tranqüilo - mas se assim pretendesse não sei quem deter-me-ia.

Tiago sorriu e disse:

- A taverna está cercada e setenta cavaleiros com suas escoltas são talvez demais para vós, mesmo que eu reconheça que saberíeis muito bem liqüidar um ou dois. Os vossos cinqüenta homens estão fracionados em pequenos grupos com os quais podemos medir-nos facilmente. Não querereis pensar que vos falaria tão francamente se não estivesse certo que não podeis prejudicar a nossa causa. Não sou assim tão tolo.

Piers levantou-se e aproximou-se da janela. Grupos de Homens couraçados estavam parados nos cavalos diante da porta da taverna, na beira do regato e nos dois lados da estrada. Lá deviam estar dois dos seus homens, mas agora tinham desaparecido. "Ontem não devia ter mandado Robin tia patrulha" pensou. "Como os animais, aquele bom filho tem um instinto infalível do perigo; que Deus o abençoe!"

Voltou para junto da mesa onde Tiago estava sentado com um sorriso irônico nos lábios. Piers começava a ficar amolado e, lembrando o início da conversa, compreendeu que o italiano tinha demorado a discussão para que seus homens tivessem tempo de cercar a taverna. Compreendeu também que tinham prendido o taverneiro e o pessoal de serviço.

- Muito bem, senhor comerciante, fizestes um belo serviço disse em tom escarninho. - Ao que parece, considerais-me vosso prisioneiro.

- De fato, o sois - respondeu o outro friamente.

- No entanto, ao iniciardes vossa conversa exprimistes o desejo de que eu pudesse voltar para a pátria quanto antes.

- Voltareis tão logo tenhais respondido às minhas perguntas. Quantos homens têm em Parma os senhores de Aquino ... além dos vossos cinqüenta?

- Pela Virgem Santíssima! - exclamou Piers - Pareceis-me muito mal informado sôbre os hábitos dos cavaleiros ingleses, os quais podem ser simplórios, mas nunca traidores.

Tiago esboçou um sorriso ameaçador.

- Como quer que se comportem, são homens de carne e osso, e nós sabemos que há muitos meios de os fazer falar. Bastaria que eu chamasse meia dúzia dos meus... Que poderíeis fazer?

Desde o instante em que olhara pela janela e descobrira a ratoeira em que havia caído, Piers começou a soltar as correias da armadura. Agora libertou-se cie todo, ficando apenas de camisa e calças.

- Aliviar-me-ia - explicou, e num salto estava em cima do italiano; agarrou-o com sua mão de ferro e tirou-lhe da cinta um punhal comprido dois palmos. - Nem um pio, senhor comerciante, ou vos faço provar o vosso punhal. Lindo, aliás, este objeto: uma verdadeira obra-prima, com tantas safiras em seu cabo. O comércio ... como dizíeis? ... ah! sim, o comércio de azeite e especiarias parece muito rendoso. Silêncio, sim!

- Estais louco? - murmurou Tiago. - Meus homens despedaçar-vos-ão ...

- Pode ser, mas antes estareis morto. Juro-o. Juramento é juramento.

- Que vos adianta este ataque inconsiderado? Não podereis absolutamente fugir ...

- Veremos. Para que pensais que me aliviei da armadura? Lá em baixo, a quinze braças da janela, está um ótimo cavalo vigiado por um único homem. Vós tivestes a bondade de reconhecer que de um par de vossos homens saberei livrar-me. Bastar-me-á abater aquele ali, tomar-lhe o cavalo e galopar para Parma. Todos os vossos estão couraçados e não poderiam alcançar-me. Mas agora me ocorreu coisa melhor: levo-vos comigo a Parma; e o conde Landolfo de Aquino não terá necessidade de perguntar-vos quantos homens tendes às vossas ordens, porque já me informastes. Todavia poderia gostar da vossa visita. Faço-vos caminhar diante de mim, e se os vossos não nos derem passagem...

- Não tereis coragem - disse Tiago, que já tinha empalidecido.

- Não tenho nada a perder - atalhou Piers. - Levantai-vos e precedei-me. Vamos, rápido!

- Por minha fé, isso é sério? - perguntou Tiago sacudindo a cabeça. - Espero que na Inglaterra não haja muitos como vós ou, se os há, que fiquem por lá mesmo. Pena que nos encontramos em campos opostos. Matai-me, se não há outro meio, mas lembrai-vos de que isso não salvará Parma para o ex-imperador, nem o preservará da derrota final.

Só então Piers convenceu-se de que o homem estava verdadeiramente contra Frederico, e que não era um agente provocador. Libertou-o, pois, do aperto e afastou-se um passo.

- Como sabeis com tanta segurança que estamos em campos adversos? - perguntou calmamente.

Tiago fixou-o surpreso:

- Todos sabem que os senhores de Aquino são por Frederico. Sempre o foram.

- O imperador está destituído,- replicou Piers lacônico.

O outro continuava a olha-lo fixamente.

- Quereis dizer que ... Não, impossível. Não os de Aquino. Deles Frederico está tão seguro que quer conquistar os San' Severino fazendo casar o jovem conde com uma de Aquino.

Piers enrugou a testa:

- Esse casamento não se realizará.

Tiago apertou os olhos.

- Sim? E por que não?

- Porque a casa de Aquino recusa-se servir de comparsa política ao .imperador.

O rosto do comerciante aclarou-se.

- Mas não vieram a Parma justamente para esse casamento?

- A condessa de Aquino - explicou Piers - comunicou ao imperador que sua filha não pretende casar-se.

- Senhor cavaleiro, vós me levais de espanto em espanto. E o imperador?

- Insiste no seu desejo, e deixou Parma no mesmo dia.

Tiago atirou-lhe um olhar perscrutador:

- Estais disposto a jurar que isso tudo é verdade?

- Em nome de Deus! - exclamou Piers. - Por que iria dizê-lo se não fosse verdade?

Tiago levantou-se:

- Cavaleiro, estais livre.

Piers explodiu numa risada:

- Sr. comerciante, esqueceis que aqui o prisioneiro não sou eu, mas vós mesmo.

O italiano também pôs-se a rir:

- Está bem. Nesse caso compro a minha liberdade com o punhal que me tomastes: eis, tomai também a bainha.

Resgate principesco - comentou Piers hesitando.

- E se um dia tivésseis de abandonar o serviço dos condes de Aquino, conheço outra casa que aceitaria de bom grado um homem como vós.

- Sois muito cortês - respondeu Piers sorrindo satisfeito. - Estou contente que afinal acreditais em mim.

- Creio em vós. Quando se alcança a minha idade, deve-se saber ter confiança em quem a merece. F uma arte difícil, caro cavaleiro. O ex-imperador nunca chegou a aprendê-lo, nem a aprenderá. Seu cérebro está doente. Ele se considera divino, e julga os outros conforme a utilidade que possam ter para ele. Suga-lhes o espírito e a força como um vampiro. Quando pronuncia a palavra fidelidade entende "medo de Frederico". Com suas contínuas brigas, devastou a minha bela pátria, cidade após cidade, castelo após castelo. Sujou-a com suas odiosas blasfêmias contra tudo que nos é mais caro. Finalmente o vigário de Cristo declarou-se indigno do seu alto ofício: nós cuidaremos para que a sentença do santo padre seja cumprida.

- Com setenta cavaleiros? - perguntou Piers a quem o homem começava a agradar, pelo que tinha de nobre e de limpo. Mas o imperador já devia ter chegado a Verona, onde o esperavam vinte e cinco mil ou mais homens, entre os quais centenas de cavaleiros tudescos com suas escoltas, cada qual uma pequena fortaleza, um vivo montículo de ferro.

Tiago disse-lhe sorrindo:

- Morre-se uma só vez, mas estejais certo, cavaleiro, que os meus setenta estarão em boa companhia. O empenho é maior que a contenda entre a casa de Aquino e a casa ... a casa pela qual trabalho. Agora devo deixar-vos: antes, porém, permiti-me apresentar-vos a um dos meus ... amigos, o capitão Bruno de Amicis, comandante dos setenta, ao qual darei o sinal tão logo chegue a hora do ataque. Posso mandá-lo entrar?

- Certamente - respondeu Piers sem hesitar.

Tiago foi à janela e soltou um assovio especial. Um instante depois entrava um gigantesco cavaleiro, armado por completo.

- Bruno, - disse o estranho comerciante - este nobre cavaleiro está a serviço da família de Aquino, a cujo respeito nos enganamos. A situação é diferente da que imaginávamos.

- Está bem, senhor Tiago - resmungou o cavaleiro examinando Piers como fazem os homens de armas. - Não quereis, então, que o faça prender? Tenho aqui fora seis homens.

- Pelo contrário, - sorriu o comerciante - gostaria que fizésseis amizade. Recebi notícias preciosíssimas, Bruno, que eu mesmo levarei a Parma para aconselhar-me com os amigos. Receberás a notícia decisiva diretamente de mim.

- Ousais muito - exortou o cavaleiro.

- De modo algum, dada a situação. O risco começará no momento em que eu der o sinal. Verás que logo que se desencadeie a luta este cavaleiro inglês será muito útil: entretanto espero que vos façais bons amigos.

- Calma, senhor Tiago, devagar! - protestou Piers. - Só poderei concordar com os vossos projetos quando tiver recebido ordens dos meus senhores.

- Está entendido - concordou o comerciante. - Recebê-las-eis provavelmente bem depressa. Digamos dentro de três dias, já que mais não pode durar. Bruno, a palavra de ordem é a mesma. Outra coisa, cavaleiro: vós não deixareis este posto antes de receber notícias dos vossos senhores. De acordo? Bem. Deus vos ajude!

- Avós também, senhor Tiago - respondeu Bruno de Amicis.

"Tinha na ponta da língua a palavra patrão", pensou Piers. "É evidente que se trata de um grande senhor. Quem já viu um cavaleiro tão obsequioso diante de um comerciante de drogas?".

- Tomemos um copo juntos - disse em voz alta quando o comerciante se foi. Estava satisfeito: dentro de alguns dias dava-se o assalto a Parma e os assaltantes tinham amigos na cidade. Era preciso mandar um mensageiro ao conde Landolfo para contar-lhe tudo ... em segredo. Aquele Bruno de Amicis parecia um touro desconfiado. Portanto não lhe serra fácil, mas era preciso fazê-lo. Uma coisa, porém, era certa: viesse ou não San Severino, o casamento não se realizaria.

Teodora saiu do quarto rio momento exato e, como Adelásia disse roais tarde, devia ser mesmo assim:

- Tem um instinto particular para aparecer no momento exato. Tu tens o menor nariz da família, mas é o que fareja melhor.

Viu Landolfo e Rinaldo correr, chamados pelo grito das sentinelas. e aproximarem-se dois visitantes; um, o mais velho, de barba preta, e• um jovem, ambos vestidos com extraordinária elegância. Ouviu Rinaldo perguntar:

- Vosso nome, nobre senhor?

E a resposta do mais idoso:

- San Severino de Marsico, para vos servir.

Rinaldo ficou inibido e demorou bastante para apresentar o irmão e a si próprio. Ou não o tinha visto, ou, na confusão, havia-o esquecido. Depois o homem de barba preta apresentou o mais jovem:

- Meu filho Rogério - e acrescentou: - Gostaria que me levásseis à condessa de Aquino, a quem quero obsequiar.

Mais tarde, quando pensava nisso, Teodora sentia-se muito satisfeita consigo mesma. Pensara: "Quem sabe como mamãe se perturbará! Esperemos que não desmaie". Em primeiro lugar pensara na mãe, embora ela também estivesse muito perturbada. Afinal de contas era ela quero devia casar ... ou melhor, não casar com o jovem San Severino, e em suas confissões o egoísmo era sempre o pecado mais grave. Sabia que seus irmãos queriam manter San Severino longe de Parma ... sua mãe tinha feito alusão a isso certa vez, mas sem acrescentar de que modo.. . e agora compreendia que alguma coisa não devia ter funcionado. Tudo isso ela já sabia, mas a agitação impedia-lhe o exato raciocinar.

Agora os irmãos resolveram acompanhar o conde aos aposentos da mãe. Dirigindo-se ao filho, que até então lhe havia dado as costas, San Severino disse-lhe alguma coisa, sorrindo de modo muito doce, apesar da barba preta que, aliás, estava entremeada de fios brancos. Depois encaminhou-se ao quarto com Landolfo e Rinaldo, e ela não veria mais o rosto do jovem com quem devia casar-se. Pelo menos se voltasse ... um pouco apenas ...

E eis que, como se tivesse adivinhado o seu desejo, o jovem voltou-se ... e a viu.

"Nossa mãe!", pensou ela. "Enrubesce ... como uma donzelinha". Ele tinha de fato algo de feminino. Longos cachos pretos emolduravam-lhe o rosto delicado de olhos escuros muito grandes e lábios finos: mas não eram lábios débeis, nem o queixo. A mão apoiada levemente sôbre o cabo de ouro da espada era muito branca, mas demonstrava caráter. O longo gibão de seda azul estava preso à cintura por um cinto de prata.

O segundo pensamento dela foi este: "Poderá ter, no máximo, dezoito anos ... como é tímido!" Não era capaz de formular dois pensamentos sucessivos sem exprimir pelo menos um. Disse, pois:

- De que tendes medo?

- Nobre dama, eu ... eu não tenho nenhum medo - respondeu o jovem cujos olhos marejaram-se de lágrimas.

Ela meneou a cabeça. Gostaria de ter-lhe perguntado que aspeto teria quando estivesse realmente com medo, mas percebeu instintivamente que naquele momento não merecia ele ser tratado com ironia, e perguntou com ternura quase maternal:

- Conde, que tendes?

Ele suspirou:

- Em minha vida nunca vi nada tão belo.

Ela inclinou-se. mas ao responder não pôde evitar uma ligeira ironia:

- De fato, sois ainda muito jovem.

- Só uma vez - acrescentou ele em voz baixa. - Uma vez só tive uma sensação semelhante ...

Ela olhou-o e não disse nada.

- Tinha então cinco anos - prosseguiu ele. - Foi quando minha mãe mostrou-me pela primeira vez a estátua da Virgem Santa na igreja de Marsico.

Ela enrugou a testa:

- Conde, isso não está certo. Não se compara a Rainha do Céu com uma jovem pecadora.

- Sei que deverei confessar este pecado, - admitiu ele francamente - mas é a verdade. Também os artistas escolhem às vezes uma dama conhecida para modelo da Madona que pintam ... quando vêem que a dama é muito linda e a estimam muito. Eu também pinto algumas vezes. mas não creio que ousaria ...

Nesse momento Teodora lembrou-se que aquele era o homem contra o qual queria defender a sua família, o homem ímpio e corrupto, o sangüinário favorito do imperador ...

- Vós estais caçoando de mim - disse o jovem num leve tom de queixa.

- Não, não absolutamente, - replicou Teodora coto ardor mas vos imaginava muito diverso ... não sei explicar, no entanto é isso.

- Sim? - disse Rogério que não tinha compreendido uma palavra, mas cujo pensamento galopava pela mesma estrada. - Teodora de Aquino, -.- disse lentamente - quantas vezes tentei imaginar o vosso aspeto. em todas estas semanas ...

Como sabeis que sou Teodora? - replicou ela rindo. - Somos três irmãs: uma é monja beneditina, as outras duas estão aqui: Adelásia e Teodora.

- E vós... vós sois vossa irmã? - perguntou Rogério cheio de confusão.

Ela explodiu numa gargalhada, enquanto ele enrubescia de novo.

- Sei que disse uma bobagem... e vós me julgais tolo. Gostaria que fosseis um pouco menos linda ... ou seja, não, não posso deseja-lo. Mas vós não sois Adelásia, verdade?

- Sou Teodora - disse ela tornando-se séria. - Mas é indiferente qual das duas eu seja. Todos são contrários a essa... idéia do imperador. Toda a família.

- Eu o sei. Papai disse-o ontem. Naturalmente vós também sois contrária.

- Certamente mas ... não vos considero tolo... considero-vos ... o contrário de tolo.

- Papai também é contrário - acrescentou Rogério, enquanto seus dedos brincavam com o cinto de prata.

- Por quê? - perguntou Teodora evidentemente mortificada.

Enquanto isso a condessa e seus filhos já se tinham refeito da primeira e segunda surpresas: a primeira, o fato de San Severino ter passado, não obstante Piers e seus homens; a segunda, o fato de também ele estar contra o projeto imperial. Houve um breve período de tergiversação porque nenhuma das duas partes queria revelar o próprio pensamento e cada qual procurava fazer falar a outra. Afinal San Severino pôs cabo àquela estéril situação.

- Nesses últimos tempos tive até demais desses estranhos duelos - disse sorrindo. - Por minha fé, compreendo muito bem que nas atuais condições devemos ter cautela, mas um de nós deve pronunciar-se, se quisermos concluir alguma coisa. Eis, pois, o nosso problema é duplo: político e pessoal: são dois fatores estritamente unidos. O Concílio de Lião inverteu a situação, estamos de acordo? Bem, o poder do tirano esvai-se. Amaldiçoado pela Igreja, Frederico não poderá agüentar muito, por isso deve agir, e agir rapidamente. Agora quer ir a Lião e já alcançou o exército em Verona. Tanto o amor pela pátria quanto o amor pela nossa fé impõem-nos proteger o santo padre e libertar-nos do tirano. A Itália levantar-se-á, e a Parma cabe a honra de dar o primeiro golpe.

- Os parmesões são bons soldados, - confirmou Landolfo - mas o imperador deixou a cidade nas mãos de dois fidelíssimos: Tebaldo Francisco e o conde de Brandenstein.

San Severino sorriu:

- O prefeito Tebaldo Francisco já está ao nosso lado. Agora, em Parma, os únicos fiéis ao imperador são Brandenstein e seus tudescos. Até há pouco tínhamos a temer que estivessem a seu lado também os nobres de Aquino e o seu séquito.

- De fato! - asseverou a condessa. - Bastante fui fiel a meu primo Frederico. - Ainda estava pálida, mas o espírito dominava a fraqueza do corpo.

San Severino aprovou:

- Logo que soube que vos tínheis oposto ao seu desejo de casar vossa filha com meu filho, compreendi que a vossa paciência havia-se finalmente esgotado.

- Conde, espero que não compreendais mal a minha oposição disse a condessa. -Casamentos políticos entre casas reinantes fazem-se bastantes, nem eu os condeno por princípio. Neste caso, porém, trata-se de reforçar a posição de Frederico ... não as nossas. Por outro lado, minha filha ofendeu-se com o fato de o imperador querer dispor dela sem consulta-la. E a mim repugna a idéia de vê-Ia na Corte imperial.

San Severino riu-se abertamente.

- Portanto, pensáveis que eu estivesse com o ex-imperador ... e eu pensava a mesma coisa de vós. A atitude de vossa filha agrada-me: deve ser uma moça de caráter. Naturalmente Frederico aspirava a ligação de minha casa à vossa, de cuja fidelidade sentia-se tão seguro para poder contrariar sem mais a vossa oposição.

A condessa mordeu os lábios.

- Mudou muito - murmurou. - A princípio pensava que tudo se devesse aos seus conselheiros, mas agora vejo que não é bem assim.

- Cada soberano tem os conselheiros que merece - replicou San Severino. - Como cada país tem o soberano que merece. Nós não merecemos Frederico, logo devemos livrar-nos dele. Porém, a sua idéia de unir as nossas famílias parece ter tido bom êxito: de fato animo-nos contra ele. Pelo menos o espero.

- Sois corajoso, senhor, - asseverou Rinaldo antes que a condessa pudesse responder. - Se vos retivéssemos até a chegada do conde de Brandenstein? Não é preciso muito para ir busca-lo.

- Cale-se, Rinaldo! - ordenou a condessa. - São coisas que não se dizem nem por brincadeira. Conde San Severino, temo que o vosso zelo seja superior aos vossos meios. Nem mesmo aliados podemos esperar opor-nos ao imperador, que dispõe de milheiros de homens, quando nós apenas de centenas; e ninguém pode dizer que ele não seja um ótimo soldado. Parma pode cair, mas como saber se a Itália levantar-se-á?

- Esta lista - respondeu San Severino - mostrar-vos-á que não estamos sós. - E tirou um papel da cintura.

A condessa leu-o.

- Gênova e Veneza! - exclamou .- Mas são inimigas irreconciliáveis!

- Todavia concordam que o tirano deve ser eliminado. E Pandolfo de Fasanela, na Toscana; Tiago Mora, o governador das Marcas Orlando de Rossi ... para não falar no Cardeal Ranieri de Viterbo ...

- Desses estais seguros, suponho - disse a condessa.

- Pela minha palavra de cavaleiro cristão, estou seguro. Todos juramos sôbre a Sagrada Hóstia. Pois bem: somos ou não somos aliados?

- Somo-lo - respondeu a condessa com simplicidade. - Nunca pensei chegar a esse ponto. Houve um tempo... - e reprimiu um suspiro. - Deixemos em paz o passado. Qual é o vosso projeto? Como posso ser de ajuda?

- Quantos homens tendes em Parma, condessa?

- Apenas cinqüenta, mas outros cinqüenta estão perto daqui ... às ordens de sir Piers Rudde.

- Eu sei - disse rindo San Severino. - Rudde quase me matou quando quis fazê-lo prisioneiro.

- Para ser sincero, - interveio Rinaldo - fiquei muito admirado de ver-vos aqui em Parma. Sir Pieis tinha ordens de prender-vos.

- Como?! - gritou San Severino quase às gargalhadas. - Agora começo a compreender. Não descurastes nada para evitar esse desgraçado casamento. Mas o vosso sir Pieis não me conhece: conhece apenas Tiago de Barolo, o comerciante ... embora suspeitasse que não era aquele por quem me fazia passar. Quase me matou, repito, e não sei o que teria feito se me tivesse reconhecido. Queria prendê-lo porque estava convencido que estáveis do lado de Frederico ... e ele inverteu os papéis. Se não tivesse conseguido convencê-lo, creio que me teria arrastado a Parma ... sozinho, apesar de estarem comigo setenta cavaleiros. Em Rudde tendes um precioso colaborador, condessa. Pois bem, ele e seus cinqüenta homens são um excelente reforço para os meus. Será oportuno que fique onde está ... até o momento decisivo.

Landolfo riu satisfeito.

- Estou contente que se haja portado bem. Vós também vereis como é útil. Mas quando chegará o momento decisivo?

- Chegará muito depressa - asseverou San Severino. - Vosso irmão mencionou o conde de Brandenstein. Não que ele seja pessoa habilidosa, mas daqui há pouco saberá que estou na cidade e quererá organizar a cerimônia nupcial. Procurai contornar a situação por alguns dias, alegando que o meu séquito ainda não chegou, mas é tudo que posso fazer. Dentro de três dias devemos atacar portanto, três mil parmesões.

- Tendes convosco setenta cavaleiros - verificou Landolfo. Corri soas escoltas deveriam ser cerca de quatrocentos homens.

- Um pouco mais de quinhentos, aos quais se acrescentam os vossos cinqüenta sob as ordens do jovem inglês e os cinqüenta que aqui tendes. Agora posso revelar-vos que antes de vir para cá visitei Tebaldo Francisco, que, logo que for dado o sinal, chegará em nosso socorro com três mil parmesãos.

- E o quanto basta para Brandenstein! - observou Landolfo satisfeito.

San Severino levantou-se:

- Meus obséquios, condessa. Como aliada prefiro-vos a todos os parmesãos. A propósito ... deixei aqui fora meu filho Rogério: posso apresentá-lo? Tenho certeza que ficará inconsolável quando souber que. sem querer, deu tantas preocupações a vossa filha.

Todos foram com ele, enquanto Rinaldo abria a porta.

- É muito tímido e reservado - advertiu San Severino. - Pensei muitas vezes... - Interrompeu-se, estupefato como todos os outros: não podia crer aos próprios olhos.

O que estavam vendo era rim quadro delicioso. Uni jovem e tinia mocinha abraçados: as mãos dele cingiam a cintura dela, não apaixonadamente, mas com alguma timidez, como se não cressem em tanta felicidade. Ela segurava o rosto do rapaz entre as mãos e levantava os olhos para vê-lo. Estavam completamente esquecidos de tudo. Eles também eram conspiradores, e aquele tipo de conspiração excluía todo e qualquer outro participante.

- Teodora! - exclamou a condessa assombrada.

Eles olharam-na estarrecidos. San Severino acariciava a barba sorrindo.

- Cara condessa, - disse - creio que temos de modificar ligeiramente nossos planos.

O capitão Bruno de Amicis era urra companheiro bastante aborrecido. Suas únicas alegrias consistiam em beber, jogar dados e cantar, ou melhor, gritar canções vulgares. Pieis evitava o mais possível a sua companhia: no entanto tinha enviado um correio a Parma para narrar a situação. O homem voltou no dia seguinte com uma carta muito breve do conde Landolfo: "Obrigado. Segue em tudo as ordens de Bruno de Amicis. Todo o resto não conta". Embora breve, a carta revelava muita coisa. Tiago devia ter conquistado a confiança dos condes de Aquino, os quais, após haver estipulado a aliança, consideravam perigoso escrever mais porque a carta podia ser interceptada. "Todo o resto não conta", naturalmente, estas palavras se referiam ao encargo inicial de capturar San Severino; além disso, significavam que, infelizmente, não lhe restava nenhum pretexto para evitar a companhia do capitão.

Na tarde do mesmo dia o bravo homem entrou na taverna radiante:

- Tendes prontos os vossos homens, sir Pieis? Sim? Bem. Esta noite vamos atacar. Porém, não poderemos beber. Que pena! Eu, pelo menos, não bebo um pingo quando se trata de trabalhar a sério.

trabalho sério os tudescos vão-nos dar certamente.

- Os tudescos? - perguntou Piers olhando-o nos olhos.

- Justamente. Esta noite atacaremos Parma. Não será coisa difícil porque as portas ser-nos-ão gentilmente abertas, já que quase toda a cidade está ao nosso lado. Só os tudescos nos darão o que fazer: são duzentos cavaleiros com as respectivas escoltas: tudo somado, cerca de oitocentos homens. É verdade que a maior parte estará bêbada.

- Como o sabeis?

- Celebram uma festa na cidade - respondeu de Amicis. - Creio que justamente por isso o ataque tenha sido fixado para esta noite. Agora escutai-me bem: o nosso projeto é simplicíssimo. mas não devemos cometer erros ...

O assalto foi desferido duas horas antes da meia-noite, ruas na primeira meia hora não houve derrame de sangue. As portas abriram-se uma após outra como por encanto, e os cavaleiros couraçados de Bruno, bem como Piers com seus homens, entraram na cidade como em tempo de paz.

Era lua nova e as ruas estavam escuras; apesar disso podiam-se notar grupos armados que erra silêncio ocupavam pontos estratégicos.

Traziam braçais de palha para não serem confundidos com os inimigos. Também Bruno e Piers com seus homens traziam braçais iguais.

O prefeito Tebaldo Francisco demonstrou boa dose de fantasia. Nas imediações da cidade e do castelo, os dois pontos mais perigosos, tinha colocado bandas militares com o encargo de tocar o mais alto possível para abafar o ruído que os invasores fariam. A medida foi tão eficaz que Bruno conseguiu entrar pelo portão principal da cidade antes que fosse dado o alarme. Centenas de dependentes de Brandenstein, em sua maioria escudeiros, servos e lacaios, mas também alguns cavaleiros, foram massacrados antes que tivessem tempo de afivelar a couraça. Muitos já dormiam, outros estavam bêbados após terem celebrado a sua festinha. Esta também fora idéia do prefeito, que tinha mandado alguns barris de vinho forte "para que todos os soldados pudessem tomar parte na alegria da data".

Piers, com seus cinqüenta homens e mais cem cedidos por Bruno, avançou direto para o castelo onde o aguardavam os outros cinqüenta mercenários de Aquino. Insistira para que essa tarefa lhe fosse confiada. A sua dama, além da mãe e irmã dela, estavam no castelo, e o combate podia constituir um perigo para elas. Ele sabia muito bem que Landolfo e Rinaldo teriam feito tudo para protegê-las, mas não suportava o pensamento de estar longe.

Todas as janelas estavam iluminadas, portanto a festa desenrolava-se de acordo com o programa. Porém era preciso enfrentar as sentinelas: no castelo estava também Brandenstein, e sua presença significava disciplina. Piers mandou seis homens a imobilizar as sentinelas: tão exíguo número não chamaria a atenção e não se daria o alarme geral, como se aparecessem cinqüenta. Deu àqueles seis um minuto de vantagem, depois, levantando a mão direita, coberta de aço, fez avançar o cavalo seguido dos seus soldados que mal chegaram a tempo para salvar os seis: de fato, uma dúzia de escudeiros inimigos tinham acorrido em socorro das sentinelas apanhadas de surpresa.

- Finalmente há o que fazer - resmungou Robin Cherrywoode, atirando um golpe contra um tudesco que rolou ao chão.

Dez homens aqui na porta, mais dez junto dos cavalos! ordenou Piers. - Sois responsáveis para que ninguém saia do castelo.

Que era aquele clarão em direção da cidadela? Diabo! ela estava em chamas! Isso não combinava com o plano. Bruno devia ter encontrado maior resistência do que esperava, mas atrás dele os parmesãos acorriam aos milhares. Portanto não devia estar em perigo; de qualquer modo Piers não podia ajudá-lo porque tinha sua tarefa que o empenhava bastante.

A escaramuça à porta não podia ter passado inobservada. De fato, certo número de dependentes e servos chegou munido de tochas e soltou um grito uníssono à vista daquilo ... enquanto, mais para dentro brilhavam as couraças das guardas tudescas.

- Não vos preocupeis com os servos. Tu, Robin, toma conta desses! - gritou Piers.

Eis que chegam os tudescos e tornam séria a situação. O primeiro assalto dos invasores fê-los recuar alguns passos, mas depois eles enfrentaram firmes. As voltas dos corredores, no castelo, devolviam o eco dos golpes mortais. No meio do combate, Piers apurou o ouvido: no grande vestíbulo a música ainda tocava. "Flautas!" pensou. "Flautas como nos casamentos!".

O conde de Brandenstein levantou a cabeça, cheirando como um animal, enquanto seus olhos azuis exprimiam desconfiança. Como lugar-tenente do imperador, presidia ao banquete que estava durando cinco horas. Tinha bebido muito, mas não mais do que pudesse suportar. Servia o imperador há vinte e cinco anos, nenhum dos quais sem períodos de sangue. Isso tinha despertado nele uma espécie de sexto sentido com o qual cheirava o perigo como o galgo fareja a caça. Abanando a cabeçona, fitava o rosto dos convidados.

O conde de San Severino, em pé, acariciava a barba. Landolfo de Aquino fixava em silêncio a sua frente; seu irmão sorria sem razão aparente, e o prefeito de Parma estava pálido e suado. Ao longe ecoou um longo grito seguido de um barulho estranho, como se um grupo de ajudantes de cozinha atirasse para o ar panelas e frigideiras.

- Não é possível - disse Brandenstein incrédulo e, sem levantar-se estendeu os membros pronto para saltar. Depois começou a falar com aquela sua voz de baixo:

- Que há? Traição? Por isso, então, que as mulheres retiraram-se tão cedo!

- As mulheres - rebateu San Severino em tom frio - preferiram retirar-se porque vossas brincadeiras, conde de Brandenstein, não são exatamente o que se possa chamar de refinadas.

O tudesco riu.

- Quantos de vós viraram a casaca? - disse quase falando consigo mesmo. - Em primeiro lugar, vós, prefeito; lê-se nesse maldito focinho amarelo. O meu imperador, logo que vos apanhe, far-vos-á engolir as tripas; e apanhar-vos-á de certo, Francisco. Quem mais? Talvez os nobres de Aquino? Vós também, conde San Severino? Todos? Gaviões e falcões contra a águia, não? Pois a águia vos mostrará!

O rumor vindo de fora aumentava, e era em vão que Rinaldo tentava fazer com que os músicos continuassem a tocar: esses estavam amontoados a um canto, como um bando de macacos durante a tempestade. Agora quase todos olhavam para a porta da sala, donde vinha o rumor.

Brandenstein levantou-se com tal ímpeto que fez estremecer pratos e cristais da mesa.

- Empunhai as espadas! - bradou o tudesco. - Traição! As armas! Woelffingen, Rauterbach, Burckheim, Traunstein, aqui todos! Traição!

Mas nem todos os tudescos presentes no vestíbulo obedeceram, pois muitos estavam encharcados de bebida, outros não entendiam se o chefe estava falando sério. Nisso a porta abriu-se de par em par e os homens de Aquino invadiram a sala com Piers à frente. Logo San Severino, Landolfo e Rinaldo desembainharam as espadas e levantaram-se derrubando as cadeiras entre eles e Brandenstein.

Agora também este desembainhou a espada começou a volteá-la.

- Chegamos a isto, então! - gritou. - Já o esperava há tempo, mas como festejáveis o casamento pensei que me enganava. Armastes-me uma bela armadilha!

Ouvindo tais palavras, Piers afastou-se do tudesco com quem estava empenhando e, deixando-o entregue a Robin e a um Mercenário de Aquino, fixou Brandenstein.

- Casamento? Casamento?

Brandenstein virou-se para Francisco:

- Será que aquele tonsurado que celebrou Os esponsais não era nem sequer um padre?

- Certamente que o era - rebateu o prefeito. - Nós, em Parma, não cometemos sacrilégios como fazeis vós e o vosso infernal patrão!

- Essa ma pagareis - exclamou o tudesco, e apanhando um pesado castiçal atirou-o contra o prefeito que se desviou instintivamente. A peça voou contra uma coluna de mármore e, ricocheteando, bateu em San Severino com tal violência no ombro que lhe fez cair da mão a espada.

- Um ou outro, dá na mesma - riu Brandenstein. - gela brincadeira, San Severino. Onde está o jovem noivo? Eu lhe darei a noite nupcial que merece ... mas ele preferirá ficar com a esposa e combater cora ela no tálamo!

- Cão, tu mentes! - bradou Rogério aparecendo de repente. -Eis-te a resposta.

- Filho, deixa o javali enfurecido! - gritou San Severino aterrorizado; mas já as espadas se cruzavam e a do jovem voou através da sala, caindo de ponta no chão de madeira onde ficou espetada oscilando violentamente.

- Boa noite, meu belo noivo! - riu Brandenstein brandindo com força o espadarão ... mas não sôbre a cabeça do jovem: um escudo triangular desviou o golpe, e entre Rogério e o tudesco apareceu um homem couraçado e de elmo à cabeça. Tinha, porém, a viseira levantada e mostrava um rosto juvenil onde os olhos azuis luziam exageradamente claros. - Deixa o menino, - disse Piers - e combate com homens.

Brandenstein soltou um grunhido de desprezo:

- Admirável a tua coragem. Estás couraçado da cabeça aos pés. Ferro contra veludo ... mas não importa; ensinar-te-ei a não te intrometeres naquilo que não te diz respeito.

- Toma! - exclamou Pieis atirando-lhe o escudo que foi agarrado com destreza; depois, sem falar, tirou o elmo e o deixou cair. - Está bem assim? - perguntou friamente.

O tudesco apertou o escudo, enquanto nos olhos passavam-lhe um fulgor de admiração e respeito, mas depois falou com ironia:

- Seria melhor que tivesses conservado este brinquedo e também o elmo. Certamente não te teriam salvo, mas... - e atacou de um salto.

Piers aparou diversos golpes. A sua espada era mais leve que a do tudesco, mas a energia com que era manejada convenceu rapidamente- a Brandenstein que teria de recorrer a toda a sua habilidade para bater aquele adversário. Estava muito contrariado o conde: tinha cometido uma asneira aceitando aquele duelo ao invés de sair coar ,eus homens daquele alçapão. Atirou um olhar rápido atrás de si para ver o combate que se desenrolava na sala e Somente o escudo o salvou ,Io violento ataque do adversário.

- Não está mal - resmungou Robin abatendo um tudesco corri sua enorme espado.- por que não me deixas olhar em paz, idiota? Para trás! -Assim está bem. - E elogiou Pieis que aparava um após outro três golpes formidáveis. Porém a espada de Brandenstein tinha tocado a testa de Píers. O sangue descia, e Robin começou a morder a ponta dos bigodes, enquanto seus longos dedos apertavam o espadarão.

O tudesco bufava. Cinco horas de banquete não são a melhor preparação ¡rara um duelo com um adversário daquele calibre. Piers enxugou o sangre da testa e atacou, espada alta sôbre a cabeça. Brandenstein. le- o escudo enquanto Piers passando rapidamente a espada da direita para a ruão esquerda, abaixou-a fulminantemente. Um grito de terror, de raiva, de alegria, de triunfo saiu ao mesmo tempo de mm bocas e abafou o ruído da queda de Brandenstein: o golpe havia-lhe rachado o crânio.

Então fez-se um pandemônio. Os tudescos sobreviventes atacaram com raiva. Robin golpeava a torto e a direito para proteger o patrão. A frente de trinta homens, Rinaldo e Landolfo atiraram-se à liça. Enquanto cem homens de Bruno de Amicis entravam completamente armados e prontos para a luta. O êxito não oferecia dúvida.

Após alguns minutos, Rinaldo apertou o braço de Piers.

- Diria que chega. O resto podemos deixar com Landolfo para que acabe com isso. Para ele nunca tem demais. Vamos, sir Piers.

A sala do banquete apresentava um aspeto dantesco. Alguns te- renderam-se outros teimavam em combater contra três, quatro e até seis: uma verdadeira carnificina.

Pieis acompanhou em silêncio Rinaldo no corredor, onde encontraram. uma fila de parmesões exultantes em torno de um mensageiro que gritava a plenos pulmões:

- Uma mensagem do capitão para o conde de San Severino! Trina mensagem para o conde de San Severino!

- Lá na sala - indicou Rinaldo. - Que notícias trazes?

- - Uma mensagem do capitão Bruno de Amicis - respondeu ele - A cidadela está em nossas mãos.

Rinaldo quis exprimir a sua satisfação, mas foi abafado pelo, gricios parmesões. Segurou, pois, novamente Piers pelo braço e o levou por um corredor lateral que dava para uma varanda. Daí, à pálida luz das estrêlas, viam-se copas de árvores e telhados. Da sala do banquete o ruído do combate ainda chegava, mas parecia longe couto se tratasse de um conflito de pigmeus sem importância.

- Sir Piers, - começou Rinaldo amigavelmente - tu te comportaste de modo admirável. Pede qualquer coisa e, se for possível, ser-te-á dada.

- Brandenstein falou em casamento - disse Piers com voz apagada. - Referia-se ao casamento da condessa Teodora?

- Sim - respondeu Rinaldo calmamente. - Esta manhã ela casou-se com o jovem San Severino.

Piers apertou os dentes.

- Vós a sacrificastes a esse jogo político?

- Perdôo-te esse pensamento - disse Rinaldo com seriedade porque sei qual é o teu sentimento. Não foi um sacrifício. Enamoraram-se à primeira vista. Como num passe de magia.

- Ela o ama? - murmurou Piers, sem amargura, mas com respeito, como se Rinaldo tivesse dito: "Subiu ao céu".

- Sim, - respondeu Rinaldo - e a felicidade dela deve importar-nos mais do que outra qualquer coisa, a tu e a mim.

- O jovem é corajoso - observou Piers.

- Tu és um bravo, sir Piers, - rebateu Rinaldo com calor. Permite-me explicar-te aquilo que até agora resulta-te inexplicável. O homem que conheceste como Tiago de Barolo era o conde de San Severino, pai de Rogério. A princípio, como nós, também ele era contra o casamento. L um dos chefes da rebelião. Outro dia veio aqui, no castelo, expôs abertamente seus planos e firmou aliança conosco. E não se falou em casamento. Mas nesse entretempo os jovens se conheceram, amaram-se e foram eles a pedir o casamento. Não havia mais razão para opor-se e o conde propôs que a festa nupcial fornecesse ocasião para o início da rebelião da Itália contra o domínio do tirano. Compreenderás que escrever-te essas coisas não era prudente, porque o mensageiro podia ser interceptado por espiões imperiais.

- Sim, compreendo - disse Piers.

Entretanto o ruído da batalha tinha cessado na sala e sucedeu-lhe um silêncio quase intolerável.

Ela o ama. Ama-o. Viram-se uma única vez e ela o ama. Eu também amei-a quando a vi pela primeira vez. E agora ela ama-o. Ele estava para morrer quando agrediu Brandenstein. Intervindo eu pensava: "Se este é o jovem San Severino, cabe a mim matá-lo". No entanto, hesitei um instante, pensando que fosse melhor deixá-lo ao tudesco. Em vez ela o ama. A felicidade deles deve importar-nos mais que outra qualquer coisa. Se tivesse deixado que Brandenstein o matasse... se eu matasse aquele jovem ... mas agora já terá se voltado para ela... para ela...

Deu um profundo suspiro e disse:

- Senhor, falastes em recompensa.

- Sim - confirmou Rinaldo, que esperava pacientemente, evitando olhar para Piers. Agora chegou a última estrofe.

- Então peço-vos desligar-me do juramento de fidelidade à casa de Aquino e permitir-me que eu parta esta mesma noite.

- Temia isso - respondeu Rinaldo. - Sentirei muito tua falta, e não apenas eu ... mas é-te concedido. Eu sou o filho menor, como sabes, mas patrocinarei tua causa, sir Piers Rudde, em nome da condessa de Aquino, declaro-te livre e desligado do teu juramento. Não te esqueceremos. Nenhum de nós... e nenhuma, esquecer-te-á. Apertaram-se as mãos. - Deus vos abençoe, senhor, - disse Piers com voz rouca, e foi-se. Rinaldo ficou imóvel olhando o pálido revérbero das estrêlas. "Eis o fim do poema", pensou.