CAPÍTULO IV

- Nicolau, vinte homens estejam prontos, dois cavalos para mim e sir Piers. Partiremos já.

- Sim, senhora condessa.

- Corre! Tinha de acontecer justamente na ausência de Landolfo e RinaIdo. Quando se precisa deles nunca estão. Não fiques aí parado como uma estátua, sir Piers: apressa-te. Vamos sem provisões. Encontraremos pelo caminho o que for preciso.

O jovem inglês desapareceu sem dizer palavra, mas no limiar teve de afastar-se porque as três irmãs chegavam esbaforidas.

- Que está acontecendo, mamãe?

- Não tenho tempo para explicar. Onde está Nina? Onde Eugênia? Quando se precisa, nunca há ninguém. Preciso vestir-me. Devo partir.

- Nós te ajudamos, mamãe.

- Faremos melhor do que as camareiras ...

- ... enquanto isso diz-nos o que aconteceu.

- O vestido está no baú preto ... Não, não esse, aquele azul de montaria ... sim, esse ... Adelásia, ajuda-me a tirar esse trapo de seda.

- Que há, mamãe? Más notícias de Rinaldo?

- Qual Rinaldo, qual nada! Tomás, aquele tonto ...

- O imperador terá mandado queimar a universidade? - Teodora seguia sempre uma lógica sua: se o imperador tinha começado queimando o teto sôbre a cabeça de Tomás ...

- Antes fosse isso! Mas não: Pouco me importam os incêndios do imperador. Aqui ele não tem nada que ver. É Tomás, compreendes; Tomás, aquele estúpido! Eu sabia que um dia cometeria uma asneira. Esta, porém, eu não esperava. Ainda bem que o seu pai não teve tempo de vê-la.

- Mas, afinal, mamãe, que fez ele? - Finalmente tinham conseguido tirar-lhe o pesado vestido. Seminua, com os olhos em brasa, a condessa parecia uma deusa pagã, belíssima e encolerizada.

- Que fez ele? Desonrou-nos! Ouvindo o nome dos de Aquino, todos hão de rir, de um lado ao outro do reino. Fez-se frade mendicante!

- Não é possível!

- Não fiqueis aí olhando. Ajudai-me a pôr esta veste. Segura aqui. Marta, e não fica puxando de todos os lados. Frade mendicante, sim! Entrou nos dominicanos. É louco, inexperiente, atrasado e tudo mais. mas é um de Aquino, e os de Aquino não são mendicantes nem mesmo sob a batina. Tudo tem limite. Ora essa! Um de Aquino que vai pedir esmola pela rua! Que faz discursos e prédicas diante da escória das cidades! Meu Deus, que fiz eu para merecer tanto? Mas não estás vendo, Marta, que o botão está mais em cima? Mais em cima, não mais embaixo. Esta bendita moça nem sabe distinguir entre alto e baixo. Frade mendicante! Em túnica de camponês, preta e branca. É. impossível. Mas eu vou-lhe mostrar ...

- Mamãe, como é que fez isso? Não é beneditino?

- Somente oblato, era; agora, entretanto, pronunciou os votos. Assira pelo menos parece. Carlos, que voltou de Nápoles onde tinha ido fazer compras, viu tudo com seus próprios olhos. Queria ter estado eu em Nápoles com ele! Fizeram uma grande festa os seus frades mendicantes. Compreende-se: não é todo dia que se pesca um de Aquino. Num instante espalhou-se a nova por toda a Nápoles. Levaram-no à sua mísera igrejola, mendicantes de um lado e de outro, e deram-lhe ... como se chamam? ... as insígnias da penitência e da submissão, e aquele danado hábito da Ordem. Engraçado, não? para um jovem que tem nas veias sangue imperial! Penitência e submissão, saia de mendigo. É claro que Carlos viu tudo, mas não podia impedir: estava só e não recebera instruções, mas foi bastante inteligente para ficar observando e verificar que querem transferir Tomás para Roma.

- Para Roma? Por que para Roma?

- Juízo de galinha! Perguntas por quê? Porque sabem muito bem que eu não posso concordar, e em Nápoles não se sentem bastante seguros. Porém eu saberei achá-lo, mesmo em Roma. E como! E então hão de ouvir-me. Eu ...

- Os homens estão prontos, senhora condessa.

- Está bem. Dá-me o rebenque. Dentro de três dias estarei de volta.

E saiu apressada, enquanto as três mocinhas olhavam-se espantadas.

- Nunca pensei que Tomás fosse tão estúpido - observou Adelásia.

- Os homens são estranhas criaturas - comentou Teodora. Nunca se sabe o que pensar deles.

Percorreram as sessenta milhas até Roma em pouco mais de quatro horas. Em Terracina, enquanto passavam a galope, uma procissão se desfez numa confusão geral. Em Anágnia atropelaram dois cachorros, e quase um velho.

Quando chegaram às portas da Urbe, os guardas papais desarmaram-nos antes de lhes permitir o ingresso na cidade. Apenas Piers sendo cavaleiro, pôde conservar sua espada. Isso não contribuiu em nada para melhorar o humor da condessa que esqueceu o projeto, preparado durante a viagem, de pôr-se em contato com o primo Paulo Orsini e, através disse homem influentíssimo, alcançar as autoridades dominicana. Ordenou, ao contrário:

- Ao convento de Santa Sabina.

Era o primeiro convento dominicano da Urbe. perto da igreja de Sixto II: a fortaleza da Ordem. Tomás só poderia estar ali: ela estava segura. À porta do comento desceu da montaria e tocou a campainha.

O porteiro abriu a portinhola, e quando viu a condessa com um cavaleiro armado e um grupo de homens com armadura, embora desarmados, fechou logo.

- Abre imediatamente! - ordenou a condessa indignada. Nenhuma resposta. Ela bateu diversas vezes à porta com o cabo do rebenque e puxou a campainha violentamente. - Abre! - gritava exasperada. Abre ou mando derrubar a porta.

A portinhola abriu-se de novo e ela pôde ver o rosto de um frade; não era o mesmo de antes: uma cabeça encanecida com rosto de águia e olhos azuis.

- Que há?

- Abre a porta.

- Este é um convento de dominicanos: não posso abrir a uma mulher.

- Abre logo, estou dizendo!

- Impossível.

- Se não abrires meus homens derrubarão a porta, caro irmão.

- Quem o fizer - rebateu o frade sem alterar-se - fica excomungado ipso facto. Este chão é sagrado.

- Talvez ignores com quem estejas falando: eu sou a condessa de Aquino.

- Aqui não és mais que qualquer outra criatura humana.

A condessa conseguiu dominar-se.

- Não deves falar assim porque eu sou a mãe do conde Tomás de Aquino que, quase menino, foi trazido para cá sem que eu soubesse e contra a minha vontade. Devolve-o, só peço isso.

- Aqui não há nenhum conde Tomás de Aquino, e frei Tomás tomou espontaneamente a sua decisão.

- Então confessas que está aqui! - exclamou ela; mas ainda conseguiu dominar-se. - Não é mais a condessa de Aquino que te fala, mas apenas uma mãe que quer o seu filho de volta. Dá-me a minha criatura e haverá paz entre nós.

- Repito que o teu filho tomou sua decisão diante de Deus e da Ordem. O seu voto é irrevogável, e tu não tens nenhum motivo para estar triste. Para uma mãe não há maior honra do que deixar um filho a serviço de Deus. Por outro lado, tornarás a vê-lo, mas não logo.

A condessa perdeu a paciência e gritou:

- Vê-lo-ei à custa de pôr em movimento toda Roma; aliás, fá-lo-ei voltar para casa. Ninguém tem o direito de se interpor entre mãe e filho, e muito menos uma horda de religiosos incitadores do povo. Hás de te arrepender por teres atraído meu filho para a tua odiosa confraria.

- Deus te perdoe, minha filha, como eu te perdôo - disse o frade friamente; e fechou a portinhola.

Ela ficou petrificada um instante, depois voltou-se e disse:

- Quero montar.

Piers ajudou-a e estendeu-lhe as rédeas.

- Ao palácio de Latrão!

Sinibaldo Fiesque, conde de Lavanha, papa há poucos meses com o nome de Inocêncio IV, era um homem de estatura média, ágil e elegante. Pouco de comum tinha com seus dois últimos predecessores: nem a estatura gigantesca e a energia quase sobre-humana de Inocêncio III, nem a obstinada tenacidade de Gregório IX. Suas extraordinárias noções de direito não o tinham ancilosado, mas tornado mais elástico ainda. Sabia muito bera que Frederico II era um grande homem e bastante inteligente para ignorar que era outro tanto grande. Subira de má vontade ao trono papal: percebia que Inocêncio IV não podia desculpar aquilo que o Cardeal Fiesque tinha, senão desculpado, ao menos tolerado, porque sabia muito bem que, assumindo outra atitude, não conseguiria nada. Agora, porém, era preciso decidir-se ou pôr um acordo ou pela ruptura; e todo o seu ser desejava um acordo. Pensava que Frederico tinha também boas qualidades e que, tratando-o com justa medida, podia-se chegar a ótimos resultados. Naturalmente não podia revogar a excomunhão do imperador até que este não mostrasse arrependimento. Quanto à penitência e à reparação, era de se considerar que todo o resto da vida de Frederico não seria suficiente. Muitas cidades, muitas vilas, castelos, conventos tinham sido queimados; muitos homens mortos, alguns de modo horroroso. Todavia não era para se desesperar.

O papa pensava na doutrina do inferno. Os cristãos deviam crer na sua existência. Cristo tinha-o citado não menos de seis vezes no sermão da montanha, como o sabe quem quer que tenha continuado a leitura além das bem-aventuranças. Muitos preferiam não o fazer, mas de ninguém se podia dizer com absoluta certeza que estava no inferno: nem mesmo de Judas Iscariotes, apesar do seu terrível apelido de "filho da perdição". O inferno existia ... mas talvez estivesse vazio ...

Portanto, também Frederico podia ter esperança; e se podia esperar até diante do último e supremo tribunal, que não admite possibilidade de apelação, para ele devia haver uma esperança também na terra.

Certamente, o céu sabia que a situação não era fácil para o sucessor de S. Pedro. O ponto pior era o espetro da "dupla fidelidade" que pairava sôbre o império como uma nuvem prenhe de tempestade: fidelidade ao papa e fidelidade ao imperador; condição intolerável para qualquer consciência humana. Era preciso esconjurar o espetro: isto é, o imperador devia voltar ao seio da Igreja. Não havia outra possibilidade.

Todos, todos iam ao papa com suas justificadíssimas queixas e acusações: o abade de Santa Justina que Frederico tinha expulso do mosteiro; o abade de Montecassino cuja casa o imperador havia incendiado, e na qual haviam perecido onze monges; as cidades da Lombardia às quais o imperador movia guerra todos os anos; as cidades em torno de Lucera, Foggia, Térmoli, onde mocinhas e mulheres desapareciam sem deixar vestígio, até que apareciam em algum harém dos sarracenos da colônia muçulmana de Lucera. Todos, todos iam ao papa ... porque não ousavam ir ao imperador. E o papa não podia fazer nada: o patrimônio em torno de Roma era pequeno, o exército fraco, exíguas as rendas. Como soberano temporal, o pontífice não podia agir contra o imperador, contra o stupor mundi, como era chamado; e como soberano espiritual... Frederico estava repudiado, e portanto "livre", e parecia que se achasse bem naquela tremenda "liberdade". De certo, a sua alegria não poderia durar muito, mas o que o papa podia oferecer às vítimas do imperador reduzia-se à compaixão e à oração.

Não se vislumbrava o fim daquela pavorosa situação. Frederico era relativamente jovem, pouco mais de cinqüenta anos, e seus filhos, com exclusão talvez de Enzio, já se mostravam piores que o pai. Mais uma vez, como aos tempos de Nero, de Diocleciano e de Atila. o povo sentia o domínio do Anticristo.

Tivesse, pelo menos, Frederico feito um gesto de paz! O papa tinha providenciado que lhe fosse sugerida a idéia. A continuação daquele estado de coisas não era vantajosa nem mesmo para o imperador. Qualquer coisa acontecesse em seu coração, não havia dúvida de que a excomunhão tinha-lhe dado muita dor e amargos sofrimentos.

Essa a realidade, esses os pensamentos de Inocêncio IV, quando já em tarda flora, foi-lhe anunciada a visita da condessa de Aquino.

Aquino ... Aquino: família absolutamente fiel ao imperador. Pelo menos dois filhos serviam no exército imperial. Muitos anos antes o papa encontrara o velho conde Landolfo. Mas não conhecia a condessa, aliás nunca tinha ouvido o seu nome em nenhum relatório político. Que poderia querer assim tão de improviso e em hora tão insólita? Que o imperador a tivesse mandado justamente porque não se havia nunca comprometido politicamente? Improvável, mas não impossível. Tudo podia acontecer quando se tratava do "esturpor do mundo"...

Ordenou que a introduzissem.

Apresentou-se calma e solene, ajoelhando-se para beijar. o anel, desculpou-se por ter vindo em hora tão inconveniente. Depois contou o ocorrido de acordo com a verdade e pediu que a ajudasse.

O papa compreendeu logo que aquela visita nada tinha a ver com o imperador; tratava-se simplesmente de uma grande dama acostumada a ser obedecida e incapaz de tolerar que lhe não satisfizessem os desejos. Compreendeu também que ela não devia ter em grande consideração o caráter e a inteligência de seu filho Tomás; de qualquer modo, com razão ou sem, em relação àquele juízo, ele não podia tornar responsável a Ordem dominicana pelo fato do jovem Tomás ter querido entrar para ela. Quantos anos tinha? Quase dezoito. Portanto uma idade em que os jovens italianos eram capazes de pensar livremente ... se é que eram capazes de pensar.

A condessa fez-lhe observar que o imperador ter-lhe-ia certamente deferido a abadia de Montecassino para o filho, e essa era a razão principal que a tinha levado a se opor com todas as forças ao desejo de Tomás de tornar-se frade mendicante. Até então o papa só uma vez a havia interrompido para perguntar a idade de Tomás, mas agora disse com delicada firmeza:

- O imperador não tem direito de decidir quem deve ser o abade de Montecassino. Por outro lado, até agora não demonstrou certamente preocupar-se pelo bem-estar daquela abadia ...

Ela perdeu o fôlego, pois agora compreendia que a sua visita ao papa poderia ser mal interpretada pela corte imperial. Tinha-se colocado numa situação perigosa, no meio das duas partes contendoras. Decidiu, pois, cortar a audiência.

- Vejo que Vossa Santidade não pode ajudar-me...

- Pelo contrário - replicou o papa com um sorriso cortês. Estou bem disposto, minha filha, a socorrer-vos com todas as forças.

Pelo menos no momento, não havia nenhum motivo para opor-se ao imperador, se realmente este queria entregar a abadia a Tomás. Pelo contrário, havia toda vantagem em atendê-lo, desde que ficasse esclarecido que a nomeação partia do Latrão, e não do quartel-general do imperador. Contudo, era preciso examinar bem o jovem, e o papa tinha necessidade de ser um prior muito capaz. Mas não havia pressa.

Teodora levantou-se:

- Vossa Santidade quer ajudar-me? Agradeço-vos. Uma só palavra vossa e aquela terrível Ordem devolver-me-á o filho, que poderá exercer um cargo digno do seu título.

O pontífice levantou suas belas mãos delicadas para protestar docemente:

- Assim tão fácil não é, minha filha. Mandarei examinar o caso, e afinal será preciso também ouvir o desejo dele. Eu não posso obrigá-lo a abandonar a Ordem, a menos que não haja motivos que, felizmente, não subsistem. Quanto a Montecassino, poderemos fazer alguma coisa logo que seja oportuno. Dezoito anos não bastam para ser abade ... tenho certeza que compreenderás.

Ela ajoelhou-se em silêncio para receber a bênção e, poucos minutos depois, deixava o palácio. Na porta esperava-a a escolta.

- Sir Piers, sinto ter de ordená-lo, porque deves estar cansado de tanto cavalgar, mas é preciso. A audiência fracassou. Toma metade dos homens e vai o mais depressa possível a Ceprano, onde encontrarás meus filhos, pelo menos espero que ainda estejam lá. Conta-lhes o acontecido e dize-lhes que conto com eles para que me tragam de volta o meu Tomás. Não a Roca-sêca, mas à fortaleza de Monte São João. E nenhum dos dois me apareça sem Tomás. Os mendicantes, se bem os conheço, devem já tê-lo levado para fora de Roma. Landolfo e Rinaldo tratem de interceptá-lo e trazê-lo de volta, não me importa como!

Estavam atocaiados sôbre uma pequena elevação perto de Água pendente: localidade bem escolhida, não só porque dali podiam-se dominar as numerosas curvas da antiga estrada romana, ladeada de ciprestes a intervalos regulares como dentes na boca de um antigo gigante, mas também porque estavam bem abrigados atrás das espessas moitas de oleandros.

- Que vês, Landolfo?

- Nada.

- Continua olhando, tu que tens vista melhor que a minha.

- Não terá já passado?

- Não é possível - respondeu Rinaldo impaciente.

- Sei lá. R cimo Procurar agulha em palheiro.

- Tomás parece-me uma agulha bem grossa, caro Landolfo. De mais a mais, não deve estar sozinho, e nós viemos passo a passo até quase os muros de Roma, explorando todas as estradas em busca daquelas malditas túnicas brancas e negras.

- Eh! - disse Landolfo. - E como uma batida de caça.

- Caça, agulha no palheiro: hoje estás com o capricho das comparações, - disse RinaIdo rindo. - Que achas sir Piers?

- Ainda não passou - respondeu o jovem inglês.

- Porque tens tanta certeza? - perguntou Landolfo.

- Não apenas por causa da rede que estendemos. O peixe pode escapar de qualquer rede, se as malhas são bastante largas.

- Outra comparação! - suspirou RinaIdo.

- Creio, porém, que deve ser excluída a hipótese - prosseguiu Piers - de que o tenham deixado sair de Roma enquanto a condessa lá estava. Num só lugar podia considerar-se ao abrigo: no convento romano. Eu galopei rápido para vir falar-vos. Logo, não pode ter deixado Roma há muito, e portanto o capturareis.

"Ao diabo esses ingleses", pensou RinaIdo. A explicação era lógica e razoável, e apresentada em tom cortês e correto; não obstante, compreendia-se que sir Piers desaprovava aquela ação. Ou seria uma suspeita injustificada?

- Parece-me ver alguma coisa - disse Landolfo.

- Onde? Sim, caramba, são frades. Vejamos: preto ... e branco. Dominicanos. São cinco, dois gordos e três magros; aquele grande à esquerda é ele, o irmão monge. A cavalo, cruzados! Pagãos à vista! Combatei com valor cristão ...

- Pára com isso - resmungou Landolfo.

- Agora podemos voltar às panelas da mamãe - cantou o imperturbável poeta. - Em sela, em sela ...

Enrugando a testa, Landolfo montou, e Piers e RinaIdo seguiram o exemplo. Tinham consigo trinta homens, e mais de sessenta vigiavam outras estradas; mas esta era para setentrião, portanto amais provável.

- Comanda, general, - exclamou RinaIdo. - Acometeremos como Aquiles, Aníbal e César.

- Avante todos! - ordenou Landolfo zangado sem saber por que. Incitou o cavalo e desceu a galope seguido por Piers, RinaIdo e os outros. Num minuto os cinco dominicanos estavam cercados.

- Eis - disse Landolfo mal-humorado. - Fala tu, RinaIdo.

O poeta inclinou-se com um sorriso irônico:

- ótimos irmãos, rogo-vos crer que nada temos contra vós. Desejamos apenas reaver o nosso irmãozinho Tomás que anexastes a vós, diria. Queremos levá-lo para casa da mamãe e das irmãs.

Frei João ficou calado. Os frades Da Guidi, Sanjuliano e Lucca não disseram nada de modo que Tomás decidiu falar, e indicando os outros disse solenemente:

- Estes são minha mãe, meus irmãos e minhas irmãs.

Piers suspirou porque sabia de onde haviam sido tomadas aquelas palavras. A defesa, a única defesa contra a violência, era novamente uma frase de Cristo. E ele sentiu de novo o que sentira quando o abade de Montecassino usara da mesma arma. Dir-se-ia que para cada circunstância da vida há uma palavra de Cristo que tira a razão do adversário.

RinaIdo abaixou-se sôbre a sela.

- Eh! Tomás, - disse com aspereza - não sei o que tu pensaste quando projetaste essa bela brincadeira, nem me importa sabê-lo. Agora, porém, vens conosco; entendido?

Fez um sinal a dois homens que, desmontando, agarraram pelos braços frei Tomás. Este não opôs resistência; quando, porém, tentaram colocá-lo sôbre um cavalo, seus poderosos ombros e braços puseram-se em movimento tão rapidamente que os dois homens, surpresos, recuaram, e um deles, perdendo o equilíbrio, caiu de costas, entre as risotas dos companheiros.

- Prendei-o! - gritou RinaIdo, pálido de cólera. - Agarrai-o, súcia de covardes.

Mas a decisão coube a Landolfo. Fora um erro confiar a RinaIdo a tarefa de discutir. Qualquer discussão era fora de propósito, além de inútil. Viu que o frade de cabelos cinzentos tirava um crucifixo de madeira e, por instinto, compreendeu que estava para ouvir uma maldição solene: era preciso agir sem demora.

- Quietos todos! - gritou, e enquanto os outros se retraíam, ele conduziu o cavalo junto de Tomás e agarrou-o pelo braço. - RinaIdo, agarra o outro braço, rápido! - RinaIdo obedeceu e, pondo o irmão entre eles, incitaram os cavalos. Nem um gigante poderia ter resistido, e Tomás em vão procurou libertar-se.

- Deixai em paz os frades e acompanhai-nos! - ordenou Landolfo aos seus homens. Afinal Tomás estava livre do cerco perigoso dos frades. Piers avançou um cavalo sôbre o qual, ajudados por alguns dos seus homens, os irmãos puseram Tomás. Apanhadas as rédeas, Landolfo ordenou: - A galope! - e levantando uma densa nuvem de poeira tomaram o caminho de Roma.

Frei João de Wildhausen, mestre geral da Ordem dos pregadores, comumente chamados dominicanos, voltou-se de repente e marchou também em direção de Roma, engolindo algumas vezes em seco, antes de poder dizer: - Rezemos pelos nossos inimigos. - Os outros obedeceram, mas o velho frei Sanjuliano conhecia muito bem o seu geral para não saber que não se teria limitado à oração, mesmo sabendo o que significasse litigiar com os de Aquino. Depois de uma hora chegaram ao convento 'e frei João começou a escrever uma carta ao papa.

Ao mesmo tempo, os vencedores tinham abandonado a estrada e cavalgavam em amplo círculo em torno de Roma, recolhendo as pequenas guarnições deixadas nas outras estradas. Depois de três horas alcançaram os subúrbios meridionais da Urbe e galoparam pela Via Ápia em direção ao sul para chegarem à fortaleza de Monte São João. Cavalgavam em grupo cerrado, mantendo no meio o prisioneiro. Imperiosos toques de trompa exigiam caminho livre. O estandarte azul dos de Aquino pairava sôbre o grupo.