CAPÍTULO III

O imperador estava só. Logo que chegara a carta da Áustria tinha-a aberto e, lidas as primeiras linhas, despedira os cortesãos e se atirara sôbre uma das grandes cadeiras maravilhosamente esculpidas, esforçando-se para ler frase por frase.

Fazia calor em Parma. O perfume de cem mil flores enchia a sala como uma nuvem pesada e invisível.

Uma recusa. Certamente muito cortês, quase cortês demais, e acompanhada de amabilíssimos cumprimentos: o velho duque de Babenberg sabia como se escreve uma carta. Parecia-lhe vê-lo com o seu focinho de raposa e o sorriso gracioso e indulgente: "Que posso fazer, primo imperador? decerto não posso obrigar a moça. E ela não quer casar. Tem medo. Somos gente simples aqui na Áustria. Não estamos acostumados à grandiosa atmosfera da corte imperial. Somos nobres camponeses. E Gertrudes compreende que seria desajeitada e pouco simpática, sente perfeitamente não ser a mulher adequada para o senhor do mundo".

Muito comovente, e talvez também verdadeiro, mas, na certa, caro Babenberg, não é toda a verdade. Medo? Claro, tem medo, porque as minhas mulheres geralmente não vivem muito, porque na Europa contam-se milhares de histórias sôbre o modo como morrem. Porém, antes de morrerem todas puseram no mundo filhos, caro Babenberg, e a todos tenho tratado como bom pai de família ... A Enzo, Manfredi, Frederico de Antioquia e Conrado e Arrigo ... e até os filhos naturais como Ricardo de Teate e... pois sim, a tantos outros. Ninguém poderia se queixar, todos tiveram a sua parte.

Como eram melhores as instituições do Islã, onde qualquer um podia ter ao mesmo tempo quatro mulheres! Infelizmente, porém, todas as princesas cristãs eram religiosas e pretendiam ser casadas uma de cada vez. Cada qual queria ser sempre a única. Que se podia fazer? Naturalmente, atrás das princesas havia a Igreja que, como sempre, te amargurava a vida. Também sob a tua carta, Babenberg, estava a Igreja; de fato, cheira a incenso. Terá sido um imbecil de um confessor, um maldito cura de aldeia, a pôr em guarda a pequena Gertrudes contra o Suevo semipagão e inimigo do santo padre. Sempre e em toda parte o santo padre. Basta estender a mão para as riquezas da vida, e eis o papa vociferando ser pecado e crime.

O Babenberg era bastante sabido para não falar nessas coisas: nem mesmo exortava o imperador, como era costume em todas as outras cartas, a fazer as pazes com a Igreja. No entanto ... a carta cheirava a incenso. Talvez estivesse aí também o abelhudo do Absburgo. Os Babenberg estavam para se extinguir, e Absburgo era ambicioso ... tão ambicioso quanto religioso. Oh! ter as mãos livres! Nesse caso o Babenberg, aquela velha raposa, não teria ousado uma recusa.

Frederico sorriu sarcasticamente. Recusado! Repelido por uma ... como dizia? ... por uma nobre camponesa. Espera, velhinho, deixa-me resolver o caso de Lião e depois veremos.

Rasgou em pedacinhos a carta, levantou-se e passou para a sala contígua, onde os servos estavam terminando a montagem do trono e do dossel para a audiência da manhã. Atirou-lhe um olhar atento e repentinamente se tornou pálido.

- Quem deu essa ordem? - gritou indicando uma linda guirlanda de rosas, presa ao dossel sôbre o trono.

Todos pararam inibidos.

- As flores! - gritou o imperador. - Quem pôs lá aquelas flores?

O mordomo, paralisado de susto, balbuciou que se tratava de "rosas de beleza excepcional".

- Os guardas! - berrou Frederico. - Aqui os guardas!

Estes entraram com barulho de metais.

- Prendei esse homem! - ordenou o soberano.

No meio de dois guardas o mordomo parecia um embrulho de seda, carne e terror.

- Fala! - disse Frederico. - Quem te encarregou de pendurar lá em cima aquelas flores?

- Ninguém, majestade... ninguém ... Pensava ...

- Levai-o. Marzuque, aplique-lhe tantas vergastadas nas plantas dos pés até que diga a verdade. E tirai aquelas malditas rosas.

Os homens obedeceram e ele ficou olhando até que a última flor foi levada.

- Jogai-as fora! - ordenou Frederico. - E nunca mais, compreendeis? nunca mais quero flores sôbre a minha cabeça. Fora, fora todos! Mandai entrar a corte. Onde está a lista das audiências?

Todos saíram correndo, e por alguns instantes o imperador ficou sozinho. Enxugou a testa bem sabendo que aqueles que haviam saído já estavam difundindo a sua caprichosa tirania. Convinha deixá-los dizer, já que não estavam informados, não podiam estar. Há muitos anos Miguel Escoto lhe havia predito que morreria sub flore, sob a flor. Miguel não o tinha lido nas estrêlas: a sua ciência provinha de uma fonte mais segura, mais misteriosa: a necromancia. Só os mortos sabiam tudo quanto à morte. Ele tinha feito Escoto jurar de manter o segredo; o necromante não trairia o juramento. Não se traem juramentos feitos por todos os poderes ocultos, por Hermes Trismegisto, Astarte, Asmodeu, pelo próprio tetragrama. Agora Escoto havia morrido e ele só havia falado da predição a um único homem, o astrólogo Bonatti (um conhecedor da cabala tão profundo como o anterior) ainda quando vivia em Toledo. Bonatti tinha confirmado a sentença, e justamente por isso o imperador nunca tinha posto o pé em Florença. Sub flore podia significar Florença, mas também podia ser tomado ao pé da letra.

Algum demônio teria levado aquele estúpido mordomo a pôr as flores no dossel? Ou teria sido mesmo uma idéia do seu cérebro idiota? Era preciso descobrir a verdade. Doravante, porém, era necessária maior cautela. Devia ordenar que, para o futuro, quando entrava numa cidade, ou num palácio, ou num castelo, não fosse usadas flores na ornamentação. Não tinha pensado nisso antes: ainda bem que agora lhe tinha ocorrido a idéia.

Sentou-se no trono. Destino, Fado, Ananke, de qualquer modo que te chamem nós te enganamos. Temos apenas cinqüenta anos e ainda nos restam vinte, trinta, talvez mais; e se continuarmos a evitar Florença e as flores mortais sôbre a nossa cabeça, e portanto a maldição ... quem sabe, talvez cheguemos à eternidade.

João, o soberano oriental, tinha-lhe enviado, numa ampola de esmeralda, o líquido que deveria ser o elixir de vida eterna. O imperador tinha dado uma gota a uma pomba (podia também ser veneno), e a pomba continuou vivendo: depois tinha-lhe cortado o pescoço, e a pomba morrera. Quem sabe se talvez o elixir agisse apenas sôbre o homem, e infelizmente não havia motivo para crer que garantisse também a juventude perene. Viver como velho enrugado, calvo e sem dentes, isso não. Os dons ocultos devem ser tratados com prudência. Sub flore. Não ainda, Ananke, não foi ainda desta vez.

A corte entrou brilhante de ouro e pedras preciosas, e formou um semicírculo assinalado pelas alabardas dos guardas, como que numa rude e bélica cortesia.

Alguém estendeu-lhe a lista das audiências e o imperador a estava lendo quando um criado recém-chegado sussurrou-lhe que o mordomo, sob as pancadas, havia confessado ter sido subornado para colocar as rosas no dossel.

- Subornado por quem? - perguntou logo o imperador.

O criado ficou um pouco incerto.

Disse: "Por aquele que o augusto imperador julgar melhor". Depois desmaiou e ainda não voltou a si.

- Mandai-o para casa - disse Frederico com desprezo. - Não o quero ver mais. - Não era um dia favorável: primeiro a carta de Babenberg, agora isto! Que iria acontecer ainda?

O prefeito de Parma, Tebaldo Francisco, homem arredondado e insinuante, todo azougue, bailaricava-lhe em torno. Sim, sim, sabemos, fizeste tudo para receber-nos dignamente na vossa bela cidade. A condessa de Aquino com sua família ... Ficai, prefeito, desejamos preparar uma festa nupcial ... Cuidareis dos preparativos ... A condessa de Aquino, a nossa querida prima ... levantemo-nos, desçamos os degraus do trono e a beijemos na face ... ai, ai, como envelheceu! ... No entanto não é mais velha que nós ... mas é claro, as mulheres envelhecem rapidamente ... Conde Landolfo ... Conde Rinaldo ... condessa Adelásia, tão engraçadinha ... condessa Teodora, deliciosa ... San Severino tem toda razão para estar feliz ... Que murmura a condessa? Uma audiência particular? Por quê? Por que não aqui? Pena que o noivo não esteja presente. É claro, vem de mais longe ... Definitivamente?

- Os esponsais tinham sido anunciados há pouco ... Não tivera notícia? Ele desejava que se fizesse esse casamento. Tinha-o dito claramente. Havia algum impedimento? A jovem Teodora não era solteira e livre?

- Livre, salvo o desejo do imperador - respondeu a condessa. Completamente livre se a graça do imperador renunciasse a esse desejo. Ela não queria casar-se.

Frederico enrugou a testa, mas apenas um instante.

- Vossa filha deverá aprender que para a mulher as doçuras da vida resumem-se na obediência. Não renuncio ao meu desejo. Nada de objeções, cara amiga. Silêncio! Não quero nem ouvir falar nisso. Permiti-me, porém, de vos assegurar ...

Interrompeu-se: um arauto assomara à porta e atrás dele viam-se dois homens em roupas de viagem.

- Entrai, entrai, amigos! - exclamou Frederico em voz alta. Retira-te arauto! Esses dois não precisam ser anunciados.

Seus olhos brilhavam, ávidos de notícias. Della Vigna e Tadeu de Sessa, finalmente!

- Aproximai-vos.

A condessa de Aquino apertou os lábios, inclinou-se e se retirou. Landolfo, Rinaldo, Adelásia e Teodora seguiram-lhe o exemplo.

Todos conheciam os dois que agora se aproximavam do imperador: Della Vigna, barba negra, olhos escuros e profundos, e Tadeu de Sessa, magro, elegante, com um rosto de mulherzinha inteligente. Todos sabiam que traziam notícias de muita importância, tanto que nem haviam mudado de roupa antes de aparecer perante o soberano. Mas o semblante, rígido como uma máscara, nada revelava.

Só Frederico viu além da máscara, e antes que dissessem uma palavra, antes mesmo que alcançassem o trono, compreendeu que a carta de Babenberg e as flores no dossel eram apenas os pródromos de uma verdadeira desgraça. Seu cérebro já estudava as possíveis soluções e a sua vontade estava preparando-se para receber o golpe.

- Sejais benvindos, - disse em voz alta - e narrai.

Pela hesitação dos dois compreendeu que as coisas deviam ir muito mal; mas não teve medo, não teve nem sombra daquele tormentoso e misterioso desejo que leva os homens de menor valor a se abandonarem quando sabem que soou a sua hora. Um golpe de vontade, e o seu cérebro extraordinário retomou o trabalho. Com ostentado descanso subiu de novo os degraus e sentou-se no trono.

- Senhor do mundo, - começou solenemente Della Vigna pedimos poder falar-vos a sós.

- Não, não, falai aqui mesmo - respondeu Frederico. - E logo. Não temos segredos para os nossos fiéis súditos e amigos. - As situações dramáticas sempre foram de seu gosto, mas desta vez não eram o motivo principal. Ele sabia o que diriam aqueles dois, os cortesãos não o sabiam: que ouvissem, pois, em sua presença. Assim ele podia não só estudar o efeito, mas ainda exercer o seu fascínio sôbre eles, ao invés de os abandonar aos próprios pensamentos. - Nada escondei, acrescentou. - Della Vigna, começa.

E Della Vigna começou, falando primeiro com cuidado, depois mais livremente.

- Tinha-nos sido ordenado encaminhar conversações de paz com sua santidade o pontífice e rogar-lhe voltar a Roma e ocupar novamente, livre e sem obstáculos, a cátedra de São Pedro. Tínhamos ordem de empregar todos os esforços possíveis para encontrar uma solução favorável ao nosso encargo. Mas logo que chegamos a Lião verificamos que era impossível pôr-nos em contato com o papa. Ele recusou receber-nos, aliás, não recebeu nem alguns dos nossos amigos que procuravam obter uma audiência para nós. A um desses foi dito por um jovem prelado que o papa já tinha ouvido bastante falar do imperador e que agora, para mudar, o imperador iria ouvir falar dele.

"Provavelmente essa é inventada", pensou Frederico; "de outro modo teria dito o nome do prelado. Della Vigna quer criar-se um ambiente favorável".

- Assim tivemos de aguardar até a abertura do Concílio - prosseguiu Della Vigna. - Ouvimos muitos boatos, mas nenhuma notícia direta e segura. Tinham chegado os bispos espanhóis, franceses e britânicos, enquanto quase todos os italianos estavam ausentes, bem como os húngaros e a maior parte dos alemães. O pretenso Concílio ecumênico contava, portanto, com só cento e cinqüenta participantes, mas foi-nos dito que suas decisões são válidas apesar disso. No último dia, 17 de julho, fomos convidados a ouvi-Ias na catedral de Lião. Até então sabíamos apenas que tinha chegado uma carta do cardeal Ranieri de Viterbo, a que se dera muita importância durante as discussões. O cardeal acusava o imperador de rebelião contra Deus, afirmando que tinha envenenado as mulheres quando se cansara delas, que era culpado da morte do papa Gregório IX, a quem tinha encurtado a vida com as contínuas perseguições e ameaças, e que tinha cometido muitos outros crimes e atos de violência. A carta comparava-o a Herodes, Nero e Juliano, o Apóstata.

Todos os presentes deram um profundo suspiro, enquanto Frederico, com sua gélida calma, fixava os rostos aterrados.

- Antes do dia 17 conseguimos falar com alguns bispos - prosseguiu Della Vigna - mas todos recusaram responder às nossas perguntas, enquanto, por sua vez, dirigiam-nos muitas. Por exemplo, perguntaram-nos se fora o próprio imperador que atacara Viterbo dois dias antes que fosse revogada a excomunhão; se era verdade que ele mantinha continuamente em volta de si bailarinas maometanas de costumes levianos e se tinha o hábito de blasfemar contra Cristo e os Sacramentos. Muitas perguntas também nos foram feitas sôbre a colônia muçulmana de Lucera. A todas respondemos conforme a consciência.

- É claro - observou o imperador.

- A 17 de julho, quando fomos levados à catedral, encontramos nela todo o Concílio em magna pompa. Diante do papa e de cada bispo havia um candelabro de prata com uma vela acesa. Após intermináveis orações e o canto dos hinos, o próprio papa leu uma resolução que ouvimos com crescente cólera e preocupação. Dizia que, com o ataque a Viterbo, o imperador nosso augusto soberano tinha-se tornado culpado de perjuro e de ruptura da paz; que cometera sacrilégio ordenando à frota o afundamento de diversos navios que de Roma levavam bispos e prelados às suas dioceses na Itália, França e Espanha, com o fito de fazer afogar grande número de altos dignitários eclesiásticos, enquanto outros eram capturados e deportados para as prisões imperiais.

- E verdadeiramente deplorável que não se tenham afogados todos - observou pacatamente o imperador.

- De heresia também foi acusado o imperador. Asseverava-se ter ele assumido atitudes indignas de um soberano católico e conformes aos usos de países islamíticos: que, por exemplo, mandava custodiar suas mulheres por eunucos e permitia que, no coração da Itália, e até no templo de Cristo em Jerusalém, Maomé fosse proclamado profeta. Era acusado de ter mandado matar homens inocentes, destruído igrejas, participado dos sagrados mistérios não obstante a excomunhão. Verificava-se que, durante todo o seu reinado, o imperador nunca mandara construir uma igreja, uma capela, um mosteiro, enquanto em Lucera fundara mesquitas para os sarracenos; que mantinha um harém como os muçulmanos e que se descuidava dos costumes e usos de um soberano católico; que não tinha mandado erigir nenhum hospital ou edifício dedicado a fins beneficentes e piedosos.

Pedro Della Vigna fez uma breve pausa e levou as mãos à garganta, como se as palavras que estava para dizer não quisessem sair:

- O meu imperador ordenou lhe fosse contado tudo - concluiu. - O que disse até agora não foi fácil de dizer, mas o que direi agora será intolerável. Ao ouvi-lo o amigo Tadeu chorou batendo o peito e eu ... sim, eu blasfemei, mas os nossos sentimentos eram indubitavelmente os mesmos. O papa declarou que os crimes e atos de violência do meu generoso soberano estavam provados, e leu um decreto de destituição. Agora, disse, o trono imperial está vacante ...

Desta vez não se ouviu nem um suspiro nem um grito. A assembléia estava muda, paralisada pelo terror.

Os olhos arregalados de Frederico estavam fosforescentes como à noite os olhos do lobo; suas mãos, longas e nervosas apertavam os braços do trono, como se quisesse verificar se ainda existia.

- Depois o papa apagou a vela que tinha diante de si, - prosseguiu Della Vigna - e todos os bispos seguiram o seu exemplo. Parecia uma cerimônia mágica, como se quisessem apagar a vida do meu augusto senhor. Então não resistimos mais, deixamos a catedral e a cidade de Lião para voltar aqui o mais depressa possível.

Nisso inclinou a cabeça enquanto muitos dos presentes choravam. Ninguém ousava olhar o vizinho; maldições e rezas se alternavam.

Frederico levantou a mão e com voz trêmula ordenou:

- O tesoureiro nos traga as nossas coroas!

A força de todo mortal tem limites: as palavras de Della Vigna haviam-na ultrapassado. Frederico já não observava o efeito sôbre os outros, mas acompanhava um seu pensamento. De novo, como tantas outras vezes, via-se fraco e jovem, elevado ao trono pela mão gigantesca de Inocêncio III. Um papa tinha-o feito imperador e agora outro papa tentava destituí-lo. O motivo mais profundo da luta encarniçada contra o papado, contra Inocêncio III, contra Gregório IX e contra Inocêncio IV, era a sua aversão ao pensamento de ser devedor de alguma coisa a outrem e não apenas a si mesmo. Como se aqueles arrogantes padres não fossem instrumentos do destino, como se Inocêncio III não tivesse nascido senão para dar ao maior reinante do século, ao máximo soberano depois de Augusto e Justiniano, o trono que lhe cabia por direito! Não ele, mas Inocêncio IV era o herético, se pensava poder destituir o imperador.

E eis que chegam as coroas: dois pagens traziam a do reino da Sicília; dois a antiquíssima coroa de ferro dos reis longobardos; outros dois ainda a coroa imperial repleta de jóias e tão grande que não se adaptava a nenhuma cabeça humana, tanto assim que era preciso sustentá-la sôbre a cabeça do imperador, como o diadema de Júpiter na Roma antiga. Frederico pegou as coroas da Sicília e da Lombardia, e mandou sustentassem sôbre a sua cabeça a imperial.

- Como vedes, bons amigos, - disse com voz firme - seguro o que me pertence por direito, e desse direito ninguém me privará. Nossos inimigos golpearam-nos bem no meio do coração, não o esqueceremos. Nós temos em mãos a espada vingadora, e nosso ódio só se apagará com a destruição completa do inimigo. Por muito tempo fomos a bigorna, agora seremos o martelo, e a história nos registrará como martelo e flagelo de Deus, tal como Atila.

O ódio e a vingança sempre tinham sido para ele duas virtudes; suas palavras e gestos teatrais incutiam pavor pelo poder que nelas se escondia.

O imperador levantou-se e desceu os degraus do trono.

- Hoje mesmo deixaremos a nossa boa cidade de Parma. Todas as outras audiências estão suspensas. - O seu olhar encontrou a condessa de Aquino de rosto pálido e olhos rasos de lágrimas. - Sentimos não poder estar presentes aos esponsais, mas o prefeito de Parma representar-nos-á. O casamento realizar-se-á um dia após a chegada do noivo. Tu, Francisco, ficas responsável disso. Conde Brandenstein!

O gigante tudesco aproximou-se:

- Que deseja o meu imperador?

- Confiamo-vos o comando da guarnição de Parma e desejamos que vós também estejais presentes às núpcias. Nem uma palavra, minha cara prima de Aquino. A preciso que os nossos desejos sejam respeitados. Providenciaremos para que o sejam.

E passando rapidamente diante das cabeças inclinadas, desapareceu.

A impressão da última meia hora era tão deprimente que a assembléia dissolveu-se em completo silêncio. Todos se apressaram em ir para suas casas para não se envolverem numa discussão que quase inevitavelmente teria sido uma forma de alta traição ...

Landolfo e Rinaldo escoltaram a mãe e as irmãs até a ala do palácio em que os hóspedes do imperador tinham alojamentos correspondentes ao próprio grau. Teodora e Adelásia tinham que amparar a mãe, trôpega. Ela era incapaz de pensar, mas sentia que o primeiro grande amor da sua vida tinha-se tornado um demônio. O seu mundo tinha-se despedaçado, a cabeça rodava-lhe e, logo que entrou no quarto, deitou-se.

Eugênia assistia-a trazendo água, vinagre e sais, mas teve ele chamar um médico, que tomando o pulso e ascultando o coração, meneou a cabeça preocupado, murmurou intermináveis palavras latinas e ordenou uma receita que Eugênia foi correndo buscar na farmácia mais próxima.

Landolfo e Rinaldo mandaram buscar vinho e se puseram a bebericar em silêncio.

- Aquele Brandenstein - disse de repente Landolfo - é um grande animal malvado. Viste sua careta quando o imperador o nomeou comandante de Parma? Como se quisesse dizer: "Deixa comigo, eu cuidarei de os controlar" - e tomou um gole de vinho. - Porém eu gostaria de ver a sua cara se alguém lhe rachasse o crânio, - acrescentou pensativamente.

- Que importa Brandenstein - objetou Rinaldo dando de ombros - ou qualquer outro desses cortesãos? O imperador, o imperador!

Todos tinham percebido que estava obsessionado. A condessa o tinha percebido claramente, e ele a vira estremecer e afastar o olhar do monarca. As irmãs pareciam espectros de si mesmas. O relato de Della Vigna era espantoso e significava expulsão do paraíso terrestre, a queda no abismo. Entretanto, sôbre o imperador não tinha tido efeito terrificante, multiplicando, ao contrário, o seu orgulho como se fosse um triunfo. Que poema, que poesia apocalíptica poder-se-ia compor! Mas era preciso um cérebro de mestre. O vôo da águia e o sibilar da serpente, o chamado da coruja e o olhar flamejante do tigre, o grito da mãe cujo filho é condenado à morte, e as lágrimas silenciosas dos velhos que perdem seus haveres nas chamas da guerra, a rebelião de Adão e o fratricídio de Caim, a fuminante queda de Lúcifer do céu e a espada faiscante na mão do arcanjo: eis o poema do século, o símbolo de todos os poemas de todos os tempos. De fato, era esta a cisão que Deus tinha permitido desde o princípio do mundo, após a defeção de Lúcifer e de um terço das coortes celestes. Era o canto do purgatório, do paraíso e do inferno. Quem ousaria cantá-lo?

Podia, ele mesmo, tentar essa ousadia? O lamento da mocinha abandonada, as alegrias do amor, as gestas dos cavaleiros: esses eram os assuntos da sua poesia. Mas para cantar o paraíso e o inferno era preciso retirar-se na solidão como fizera Tomás. Ele sim, tinha consciência de sua meta, consciência impávida diante de tudo e de todos, até na prisão, onde defendia o seu ideal brandindo um tição aceso. Como tinham rido dele, dando de ombros; como o tinham desprezado porque não quisera ser cavaleiro! ... e no entanto tinha sempre sido cavaleiro sob a roupa de frade mendicante, combatendo até o fim pelo seu ideal. A tua saúde, Tomás, irmão monge e cavaleiro! Tu fizeste o que eu deveria ter feito desde há muito: escolheste o melhor caminho e soubeste defendê-lo.

Poderei eu readquirir o tempo perdido? Poderei retirar-me na solidão e escrever o poema do século? Meu Deus, não tenho a força necessária. Polir por meses e meses uma rima... No entanto, esse poema eu o tenho no sangue e sinto-o cantar. Muito tarde. Talvez outro o escreverá, outro que não tenha desperdiçado a vida como eu, um homem que saiba verdadeiramente amar, um dos grandes amantes da história...

- Teremos que nos haver com ele - disse lentamente Landolfo.

- Com quem?

- Com Brandenstein e seus tudescos.

Landolfo estava obsessionado por aquele gigantesco tolo: que estaria imaginando? Ou teria razão? Tendo nascido soldado, ele só pensava militarmente na coisa. No entanto tinha-se mostrado mais clarividente que o sábio irmão. Para ele não havia nada de apocalíptico ou de místico no mundo. Ele sabia apenas que o imperador estava destituído e que agora era preciso combatê-lo; e como o imperador deixava Parma, era preciso combater com o seu lugar-tenente que, para Landolfo, não era o ótimo prefeito, mas o comandante militar; Landolfo havia ultrapassado num pulo essas considerações, chegando à conclusão simples que teria de se haver com Brandenstein. Muito bem, Landolfo, perdoa teu irmão: como fazem os poetas, ele tinha sonhado com o paraíso, o inferno e o amor, em vez de refletir razoavelmente no que deveria acontecer.

- Decidiste-te, então, - disse Rinaldo. - Não sei o que reze a jurisprudência, se o papa possa ou não destruir o imperador e ...

- Se o papa o coroou - observou, e o tom da sua voz parecia indicar que não podia compreender como seu irmão, geralmente tão sábio, pudesse ser tão pateta.

- Rinaldo riu.

- Muito bem, Landolfo, tens razão. O papa coroou-o, e isso basta, desde que não caiamos nas mãos do imperador, ambos ou um de nós. Não creio que tua lógica consiga convencê-lo como me convenceu.

- Sabes, a guerra é sempre perigosa - notou Landolfo. - E aquele foi um Concílio ecumênico e mais o papa. Não sou santo, mas não quero combater contra a Igreja. Certa vez disse que os papas vêm e vão enquanto o imperador fica ... Tomás afirmou que acontece o contrário. Creio que tivesse razão ele. Demais, não gostei do modo como tratou mamãe ... o imperador, digo, não Tomás. E não quero que a pequena Teodora seja infeliz. Ainda bem que temos de ficar aqui para as bodas, de outro modo teríamos de partir com o imperador e tudo tornar-se-ia mais difícil.

Rinaldo assentiu.

- Hoje és um verdadeiro fenômeno de sagacidade, Landolfo. Que fará, a teu ver, o imperador?

- Antes de tudo irá a Verona, onde está o grosso das tropas, para verificar se tudo está em ordem e se pode contar com elas. Por isso tem tanta pressa. Depois irá a Lião.

Rinaldo assobiava baixinho e seu olhar exprimia sincera admiração pelo irmão.

- A Verona para garantir-se o exército e reforçá-lo, a Lião . . para capturar o papa. E talvez não se contente com aprisioná-lo. Dele pode-se esperar bem mais. E conseguirá, se o santo padre não lhe escapar de novo no último momento ... ou se nesse entretempo não acontecerem outras coisas ...

- Quais?

- Ora, quando não está o gato, os ratos dançam. Na Itália há muitos ratos. Nós não somos os únicos, digamos assim, a ter queixas. Há muitos que não vêem com bons olhos a Herodes ... ou, se preferes, a Nero. Imaginas quanta gente conspira hoje em Parma como fazemos nós dois? A notícia da destituição se espalhará como o vento. Claro, ele tem uma guarnição em muitas cidades. Mas serão todas de confiança? E continuarão a sê-lo quando souberem o que nós sabemos? A coisa pode tomar proporções vastas, querido irmão, muito vastas para nós. Estamos, porém, no jogo. Quantas vezes, combatendo sob suas ordens, pensamos nesta possibilidade! E hoje eis-nos do lado oposto.

- A guarnição de Parma ... os tudescos ... digo os que estão aqui são uns duzentos homens - refletiu Landolfo. - Nós temos apenas cem, e aqueles malditos estão em forma. Vi-os combater, e tu também. Não só os tolero, mas são homens de valor. Que devemos fazer?

- Dir-te-ei o que não devemos fazer. Não devemos buscar aliados muito abertamente. Se o fizermos, o nosso caro primo Frederico o viria a saber antes de chegar a Verona. Por outro lado, não podemos fazer-lhe frente sozinhos. A casa de Aquino contra a casa de Suévia, pura loucura! Mas que faremos se chegar San Severino? ...

Ambos levantaram-se com um salto quando a sombra de um homem armado entrou na sala. Nenhum dos dois era covarde, mas Rinaldo custou a se refazer. Depois respirou fundo: não se tratava de um oficial da guarda tudesca: era Piers.

- Ainda não temos prática neste jogo, meu irmão: nem pensamos em fechar a porta. Entra, sir Piers, entra. Diabo, pareces perturbado. Que há que não vai?

- Posso falar livremente? - perguntou Piers em tom brusco.

- Certamente, sir Piers, - respondeu Landolfo.

- De Braccio informou-me sôbre a audiência desta manhã.

- Se o conheço bem, De Braccio sabia mesmo antes da audiência - disse rindo Rinaldo. - Que disse ele? Geralmente mistura verdade e fantasia como o taberneiro mistura água e vinho.

- Não creio, desta vez: estava muito agitado. A súplica da nobre condessa foi recusada pelo imperador...

- Sir Piers, - interrompeu Landolfo com orgulho - isso não diz respeito nem a De Braccio nem...

- Nem a mim - completou Piers friamente. - Eu sei, mas pedi para falar livremente.

- De fato - aprovou Rinaldo. - Landolfo não banque o bobo ... deixa-o falar, quero dizer.

- Seja - aprovou Landolfo.

- O imperador insistiu para que o casamento se realize logo que chegue o conde de San Severino e confiou o caso ao prefeito de Parma e ao comandante da guarda tudesca ... à qual, aliás, estão confiados iodes os negócios importantes da cidade.

- A audiência foi interrompida pela chegada dos enviados imperiais que, vindos de Lião, relataram como o papa destituiu o imperador. Este decidiu deixar Parma ... provavelmente para encontrar-se com o exército.

- O mundo se desmancha e os pedaços voam em torno de nós declarou Rinaldo. - Os tempos chegam ao fim, a terra da Europa estremece, mas não é motivo suficiente para que um inglês se agite. O inglês relata tudo isso em poucas palavras. Quem sabe se os ingleses terão um poeta!!!

- Suponho que os nobres de Aquino continuarão a não aprovar a idéia desse casamento -prosseguiu Piers sem se alterar.

- Como? - exclamou Rinaldo fingindo indignação. - Não obstante a ordem expressa do imperador?

- Opor-se ao desejo do imperador é a mesma coisa que opor-se à sua ordem - foi a calma resposta. - Demais, muitos agora já põem em dúvida a validade dessa ordem.

- Pode ser - disse Rinaldo com cautela.

- Em todo caso, - fez notar Piers - seria útil que o conde de San Severino não chegasse a Parma.

- Seria utilíssimo - resmungou Rinaldo. - Seria grandioso, aliás, mais quem o impedirá?

- Eu - respondeu resolutamente Piers. - Para isso, porém, preciso deixar Parma e interceptá-lo antes que ponha o pé na cidade: por isso vim pedir licença.

- Pelo bíceps de Hércules! - exclamou Rinaldo. - Este achou a solução do problema. Uma idéia luminosa: sem noivo, nada de casamento. Nada mais simples. Não entendo como a idéia não tenha ocorrido a mim. Mas San Severino terá uma escolta numerou.

- Bastam-me cinqüenta homens - disse Piers.

- E se o conseguires? Aonde o levarás? A Roca-sêca?

- Não haverá esse problema - afirmou Piers.

- Pela barba do profeta! - deixou escapar Rinaldo. - Parece que queres fazer as coisas até o fim. Conheces o homem? Tens alguma velha conta a liqüidar?

- Não senhor. Posso levar cinqüenta homens e ir?

- Gostaria de ir contigo - declarou Landolfo com um largo sorriso.

- Não podes, meu irmão. Não esqueças que o amigo Brandenstein nos vigia. Se tu desapareceres, ele desconfiará. O amigo Piers (leve arranjar-se sozinho. E nada de insígnia, sir Piers. Não podemos expor-nos ... pelo menos por enquanto.

- Compreendo, senhor... - respondeu Piers sorrindo.

- Muito bem - disse Rinaldo. - Há coisas sôbre as quais pode-se

estar perfeitamente de acordo sem discuti-las. Especialmente quando ainda não estão maduras. Leva teus cinqüenta homens e faze como bem entenderes.

- Não - atalhou Landolfo com grande surpresa para o irmão. Este é um homem fiel e de confiança. Precisa conhecer a situarão. Sir Pieis, isso é o início de grandes coisas. Tu não estás só, mas nos tens atrás de ti ... ainda que os planos de um senhor muito importante sejam de tal modo obstados e levados à falência. O vento mudou de direção.

- Vós sois muito bom de falar-me assim, senhor, - replicou Piers, e o seu breve levantar de ombros significava: "Isso, porém, não muda nada; em todo caso farei o que devo fazer".

Inclinou-se e saiu fazendo tinir as armas. Atrás dele fechou-se a porta.

- Grande homem - comentou Landolfo Não quereria estar. na pele de San Severino, se lhe cai nas mãos.

- Nem eu - confirmou Rinaldo esvaziando o copo. Entregou-se a profundos pensamentos enrugando a testa. - É isso mesmo. Pobre diabo.

- Quem? San Severino'

- Não, não, Piers.

- Piers? Por quê?

- Deixa pra lá. Dá-me outro copo de vinho.

Pobre diabo! ... Não podia alimentar esperanças, crias ... teria !lado uma bela poesia ...