CAPÍTULO II

- Ainda poucos passos - disse frei João enquanto o grupo de dominicanos se aproximavam do alto da colina.

E na névoa azul da manhã, eis a cidade, meta de sua longa viagem; cidade fabulosa com suas mil ruas estreitas e angulosas, com os dez mil telhados esguios, cortada pela fita prateada do Sena, coroada pelas altas torres de Notre-Dame.

- A cidade de Santa Genoveva - observou frei João. - E talvez um dia se acrescente: a cidade de São Luís. O soberano desta cidade é, de fato, um homem que vive como um santo, e não seria de admirar se Deus chamasse à santidade no mesmo século um mendigo e um rei: Francisco de Assis e Luís de França. Não quero dizer que esta cidade seja sem vícios e sem crimes: há até demais sob estes tetos. Mas é governada com clemência e justiça. O rei nunca come sem dar de comer ao mesmo tempo a quatrocentos mendigos. Ele próprio administra a justiça, e qualquer um pode apresentar-lhe o seu caso. Um de seus mais queridos amigos era o nosso confrade Vicente de Beauvais cujas obras constituem uma biblioteca inteira: um de seus livros intitula-se Como Tornar-se Juizes Justos. Deixamos a Itália, onde Frederico arranca avidamente tudo que Deus deu aos outros, e chegamos à França, onde Luís oferece aos outros o que Deus lhe deu. O senhor de Joinville disse desse monarca, com toda justiça: "Como um autor pinta com vermelho, azul e ouro o livro que acabou de escrever, assim o rei Luís enfeitou todo o seu reino".

Os frades Da Guidi, Sanjuliano e Lucas ouviram com devoção, enquanto o monge mais jovem parecia vagar ao longe com o pensamento

O geral da Ordem tocou-lhe o ombro:

- Linda cidade, não, frei Tomás?

- Muito linda - murmurou este.

- Que farias - prosseguiu frei João se fosse tua? Se o rei ta desse?

- Não saberia o que fazer dela - disse Tomás com sinceridade.

Frei João sorriu argutamente:

- Poderias revendê-la ao rei e com o lucro construir uma série de conventos dominicanos, não achas?

Tomás ficou um instante pensativo:

- Preferiria um exemplar do tratado de São João Crisóstomo sôbre o Evangelho de Mateus.

Os monges riram enquanto o geral pensava: "Este é o homem que queriam fazer abade de Montecassino, o homem que por toda a vida teria de ser administrador!".

E tomou a resolução de não comunicar o seu pensamento aos futuros mestres do jovem frade, nem mesmo a Alberto de Ratisbona, que muitos já chamavam Magno. Descobrissem por si mesmos o que haviam alquirido: se soubessem que o geral da Ordem, por amor de um noviço, tinha adiado por dez. longos meses sua viagem à Franca, ele certo ficariam assombrados.

Enquanto desciam o morro e se aproximavam da cidade, Ale, em seu tom lento e pacato, começou a falar do mosteiro de Saint-Jacques na colina de Santa Genoveva, a primeira casa dominicana aberta em Paris.

- Apenas há trinta anos São Domingos fundara a Ordem ... cum dezesseis frades: oito franceses, seis espanhóis, um português e um inglês. Após cinco anos os conventos já eram sessenta; agora são centenas. Mas em nenhum outro encontrarias um mestre com a sabedoria de Alberto de Ratisbona. Os arquitetos da catedral de Notre-Dame eram grandes homens, mas construíam com a pedra; Alberto está construindo uma catedral do espírito, e é o homem que escolhi para teu mestre.

O jovem frade tinha os olhos brilhantes e, sem querer, acelerou o passo.

.A carta do imperador encontrou a condessa em Roca-sêca. Tomás já tinha escapado e não havia mais motivo para isolar-se em Monte São João. Ela não decidira mandar perseguir o fugitivo. Recebida a notícia de Marta já pela manhã avançada, retirara-se em silêncio para seu quarto. Quando reapareceu estava tranqüila e resignada, e não mencionou mais o nome de Tomás. No mesmo dia Marta entrou para o mosteiro das beneditinas. No dia seguinte voltava para Roca-sêca.

Nem os irmãos, nem as irmãs tiveram coragem de perguntar a Morta como mamãe recebera a notícia e por que não fizera perseguir Tomás. - Não se deve tocar no que queima - disse Rinaldo a Landolfo. Teodora e Adelásia, por sua vez, compreenderam que não convinha fazer perguntas a Marta, e muito menos pensaram em interrogar a condessa. Muito mais tarde, Adelásia tentou e recebeu essa resposta estonteante:

- Enganei-me a respeito de Tomás. E não é de hoje.

Desde então a vida em Roca-sêca havia se desenrolado calma e tranqüila, até que a carta do imperador chegou como uma bomba que fez estremecer o castelo.

Foram preciso algumas horas para que a condessa ousasse chamar `I podara. Dez, vinte vezes lera a missiva, a qual não podia ser mais cortês e amigável, mas que, é claro, continha uma ordem. Ela devia entregar a sua criatura mais jovem e mais bela ao novo favorito elo imperador, a um Ezelino, a um Caserta. Isto é, não ela, mas u próprio imperador entregava Teodora àquele San Severino como se fosse um título ou uma data de terra.

“O meu consentimento não conta" pensava enquanto o seu ator doamento ia mudando em amargura e orgulho ferido. "Ele manda e eu tenho de sacrificar minha filha". No entanto, esta era Itália, não Cartago ou Tiro, onde se sacrificavam mocinhas a Baal. Ora, vamos! não exagerava? A coisa não era, pois, tão grave. Ninguém queria fazer mal à sua filha, e muito menos sacrificá-la: o imperador, seu primo, tinha proposto um casamento entre Teodora e o filho de uma das famílias mais antigas e influentes da Sicília, e ela queria convencer-se que se tratava de um crime ...

Percebeu, porém, que tais pensamentos eram ditados pela fraqueza, pelo desejo de evitar dificuldades. Sabia que Frederico, agora já obcecado pelo poder, não era mais o mesmo de antes. Sabedor dos crimes que se cometiam em seu nome, ele próprio cometera diversos. E ela bem sabia quanto fosse corrompido aquele ambiente, sabia que homens de alta posição temiam pela própria vida, já que uma denúncia podia significar a morte imediata. Eis a atmosfera em que se queria lançar Teodora ...

Não conhecia o jovem San Severino ... como se chamava? Ah! sim, Rogério, como seu pai do qual ela se recordava vagamente: um grande senhor, sem dúvida, tenebroso, flexível e um tanto misterioso, que provavelmente havia prestado algum grande serviço ao imperador e, em compensação, recebia Teodora e seu dote. Além do mais, devia ter muita pressa, posto que o convite a Parma significava que o próprio imperador desejava estar presente aos esponsais e fazer deles uma cerimônia oficial. San Severino certamente vivia na corte ... e isso era ruim. Ela admitia que sua fidelidade a Frederico já não tinha as raízes profundas de antes, da mesma forma que ele não era mais o mesmo ... e justamente por este motivo.

Sim, em Roca-sêca podia-se ser fiel ao imperador: na corte, porém, era outra coisa. Os de Aquino não eram cortesãos, e ela não constituía uma exceção. Se via uma injustiça, não sabia calar e isso podia, ou melhor, devia ter más conseqüências. Na sua casa não tolerava que se falasse contra o imperador: na corte teria sempre tentado dizer-lhe a sua opinião. "Sou uma nobre senhora do campo", pensava. Assim era também Teodora e as outras filhas. Só Rinaldo sabia ser cortesão, e este era o traço que ela mais desaprovava nele, embora compreendesse que dependia provavelmente da sua natureza de poeta. Ao que parece, os poetas podem adaptar-se a qualquer ambiente e situação. São ágeis como lagartos e, em certo sentido, sem sangue. Rinaldo parecia não participar da vida: ficava de camarote observando a vida alheia como se assistisse a um espetáculo de prestidigitação. Até quando as circunstâncias o obrigavam a agir, brincava; não tomava a sério nem as próprias ações. Este negócio, porém, dizia respeito, antes de tudo, a ela mesma e a Teodora: devia, pois, informá-la, embora já imaginasse a reação.

Esses eram os seus pensamentos quando mandou Eugênia chamar Teodora.

Foi pior do que esperava. Entregou a Teodora a carta sem um comentário. A jovem leu e deixou cair a folha como se fosse uma imundícia, exclamando:

- Agora creio o que se diz do imperador ... fez-se pagão ou muçulmano.

- Que queres dizer, filha?

- Os árabes afirmam que a mulher não tem alma, não? Que, portanto, não é um ser humano. Quem conta é o homem. Essa deve ser também a opinião dele, pois de outro modo não me pediria espose um homem que nunca vi.

- Minha filha, não poucas vezes tem acontecido que os pais, sem interrogar seus filhos...

- Maometanos, pagãos, infiéis! Eu sou uma mercadoria que se vende... Quem pensa perguntar a uma mercadoria se quer ser vendida?

- Os San Severino são uma família nobre e antiga ...

- Que me importa. Não quero ser vendida. Ou caso com o homem que amo ou não caso. Podes escrever-lhe, basta uma linha.

- Tu sabes muito bem que não posso. E o teu juízo não é justo. Nunca viste Rogério de San Severino, é verdade, mas nem ele nunca te viu.

- Aí está - rebateu Teodora agitadíssima. - Justamente por isso sei que não o poderei amar. Um homem que se presta a casar com uma moça só porque outro ... porque o imperador o quer, não é um homem. É um escravo, um bruto, e eu não o poderia amar, portanto nem casar com ele.

- Querida, tu bem sabes que, nesses assuntos, sempre considerei o teu coração. Nunca tentei obrigar-te ...

- E verdade, mamãe, nunca tentaste porque bem sabias que não me deixaria obrigar. Tentaste impor tua vontade a Tomás e fracassaste. Eu sei, eu sei que devemos obediência e fidelidade ao imperador, já o disseste até demais. Os de Aquino estão com ele, mas enquanto homens e como homens devem ser tratados. Esta carta é inumana e, para mim, a questão não existe.

- Muito obrigada - disse friamente a condessa. - Solução muito simples. Para ti a questão não existe. Desgraçadamente eu devo responder, e creio que o imperador não se contentará com ler que nos sentimos muito honrados, mas que para minha filha Teodora a questão não existe.

- Então, somos escravos - concluiu Teodora amargamente. Pensei que fossemos nobres.

- De qualquer maneira, teremos de ir a Parma - disse a condessa dando de ombros. - Não podemos recusar o convite.

- Os únicos homens de nossa família são Tomás e Marta! exclamou Teodora chorando e, antes que a mãe pudesse retrucar, fugiu como uma gazela.

Para ir ao seu quarto tinha de passar pelo salão, onde Landolfo e Rinaldo, que lá estavam, fixaram-na admirados, pois nunca a tinham cisto chorar. Ambos se levantaram e, indo onde estava a mãe, encontraram-na mergulhada numa poltrona; a cabeça, antes sempre tão orgulhosa., abaixada sôbre o peito. Até Landolfo percebeu, com íntima dor, que ela havia envelhecido.

- Estás doente, mamãe? - perguntou timidamente.

Rinaldo apanhou a carta imperial e, compreendendo num relance de que se tratava, entregou-a a Landolfo, dizendo:

- Não é coisa fácil.

- Por quê? Pode ser que San Severino seja um jovem às direitas - disse Landolfo; mas suas palavras não revelavam convicção alguma.

- Pouco importa - contestou a condessa. - Teodora nunca casará com ele. Fui uma tola: não devia ter-lhe mostrado a carta.

- Que se podia fazer?

- Dizer-lhe que fomos convidados a Parma e lá aguardar os acontecimentos. Na pior das hipóteses, podia pedir a Frederico que mudasse de idéia.

Rinaldo suspirou.

- Tudo muito bonito, mamãe, mas me parece já muito tarde. Nós todos somos muito impulsivos para sermos bons diplomatas. Certamente o imperador não mudará de idéia. Não percebes? Esse casamento é lhe necessário para conseguir o apoio dos San Severino. Assim, pelo menos, me parece.

- Não me agrada - comentou Landolfo.

Rinaldo riu.

- Tampouco a mim, caro irmão. A nenhum de nós. Vês, mamãe: Frederico está em maus lençóis. Tomás tinha razão e eu estava errado. O papa está com vantagem: a sua fuga para Lião foi um golpe de mestre. E agora a pequena Teodora deve servir para tirar Frederico da entalada. Mamãe, tu não a criaste para isso, não?

A condessa estendeu os braços e puxou para si os filhos com gesto instintivo. Sentia-se fraca, muito fraca, pela primeira vez na vida. Mas logo que tocou os fortes membros dos filhos, uma corrente de energia percorreu-lhe o ser e a fez levantar a cabeça com uma confiança que a ela mesma pareceu surpreendente.

- Alguma coisa acontecerá - murmurou. - Deve acontecer. Estaremos unidos. Iremos juntos para Parma.

Talvez nenhum deles o tenha confessado, mas pela primeira vez conceberam pensamentos que, em outros tempos, apavorá-los-iam. Eram pensamentos ainda informes, primitivos, sem uma linha determinada. Todavia, as asas da conspiração já os havia tocado.

Decidiram partir para Parma dentro de dez dias. Teodora recebeu a notícia com frio silêncio e recusou falar no assunto. Prepararam-lhe seis vestidos novos, mas ela não se dignou olhar àquelas preciosas fazendas, e as modistas que vieram para as provas encontraram a porta fechada. Os irmãos discutiram com a condessa o problema da escolta e decidiram levar consigo apenas cem soldados. Maior número podia despertar suspeitas e, repetindo as palavras de Rinaldo:

- Três mil não os podemos levar, enquanto o imperador pode juntá-los a qualquer momento.

Sir Piers e um rijo siciliano, o jovem De Braccio, forais nomeados sub-chefes. Os grandes preparativos não conseguiram clarear as nuvens que pairavam sôbre Roca-sêca. Mas Robin Cherrywoode, encontrando-se sôbre os muros, junto de Piers, exclamou de repente:

- Nessa viagem há alguma coisa boa.

- Sim? - perguntou Piers.

- Desde que descemos pela cesta o gordo fradezinho, não se pode dizer que nos tenhamos divertido, aqui ...

- É verdade - confirmou Piers com um fraco sorriso.

- ... mas em Parma poderemos achar algum divertimento.

- Ora, maluco! - disse Piers.

Robin coçou o queixo e começou a mastigar uma ponta dos bigodes louros.

- Quando se trata de guerra, ou de política, ou coisa parecida, empresas viris, enfim, o homem pode prever os resultados eventuais. Mas em questões de matrimônio, a única coisa que se sabe com certeza é que não se pode saber nada certo. Imperadores e reis ... meu senhor, em questão de casamento qualquer mulher vê mais longe que eles. Ora, a nossa daminha é contra, é ...

- Cala-te e vá embora.

Robin calou-se e se foi satisfeito: tinha dito tudo que queria.

Na noite precedente à partida, Piers viu a sua dama sair para o pátio e subir aos muros. A dez passos dele ela parou e pôs-se a olhar em silêncio o vale. Sem fazer ruído, quanto o permitia a armadura de ferro, ele se aproximou e disse:

- Minha senhora, rogo-vos perdoar se o vosso servo fala quando deveria estar calado, mas o meu coração deseja ver-vos tranqüila: matarei o conde de San Severino.

Ela virou-se, e fixando-lhe o fundo dos olhos, compreendeu que ele o faria.