CAPÍTULO V

Em Colônia a cela era tão semelhante à de Paris como um ôvo é semelhante a outro: pequena, quadrada, caiada, com uma mesa, uma cadeira, um armário, alguns livros, um retrato de São Domingos, unia imagem de Nossa Senhora e o Crucifixo lio meio, de modo que apenas levantando os olhos podia-se vê-lo.

O jovem monge escrevia. Parecia que o seu corpanzil, vestido corri o hábito da Ordem, enchesse a cela e se apoiasse contra todas as parede; parecia que estas se deslocassem de um momento para outro e se abrissem sob a pressão daquela vida palpitante.

Frei Tomás, da Ordem dos Pregadores, estava escrevendo unia tese sôbre os Nomes Divinos de Dionísio Areopagita.

Desde os tempos de Roca-sêca tinha mudado muito. Apesar de ainda jovem já lhe rareavam os cabelos nas têmporas, de modo que a coroa que lhe restava do corte quinzenal ficava interrompida dos dois lado da testa, salvo um tufozinho no meio, o "topête de Pedro", como o chamavam em Colônia referindo-se às numerosas estátuas e imagens do santo que o apresentavam com aquela particularidade.

Sem dúvida frei Tomás havia engordado, um pouco por- cansa da hereditariedade -seu pai fora corpulento, - e um pouco pela vida sedentária e pela alimentação uniforme do refeitório. Durante o longo jejum da Ordem dominicana, da metade de setembro até a Páscoa, fazia-se uma só refeição por dia. Para poder resistir vinte e quatro horas em jejum, alguns frades eram obrigados a comer bastante na refeição, e por isso frei Tomás tinha adquirido um começo de papada e um pouco de barriga; por estranho que parecesse não lhe ficava mal, talvez por causada sua estatura elevada. Isso, que num homem mais baixo ficaria feio, dava à sua figura gigantesca uma nota alegre. Sem ela, a cabeçorra, as sobrancelhas espêssas e negras, os olhos redondos de coruja e o nariz aquilino teriam despertado medo: pareceria agressivo e assustaria. Ao invés, frei Tomás era gordo e jovial quando conversava, calmo e pacífico quando estava calado. As duas impressões tinham um pouco de realidade que podia enganar, já que nem tudo estava ali.

Tanto em Paris quanto em Colônia os noviços tentaram fazê-lo alvo de suas brincadeiras, dado que os noviços são noviços em qualquer lagar. Apelidaram-no de "boi mudo da Sicília" até que se repetira a experiência dos estudantes de Nápoles. Ele suportava calmamente todas as suas brincadeiras e continuava a confiar neles.

Só lima vez reagiu. Do pátio do claustro haviam gritado:

- Frei Tomás ... rápido, vem ver um boi voando! Obediente ele achegou-se à janela e pôs-se a olhar. entre as risadas

- Acreditou, acreditou! Bobão!

Tomás rebateu impassível:

- Prefiro crer que um boi voe a penar que um dominicano mima.

As risadas cessaram entre os jovens, chocados mais duramente do que tivesse pretendido Tomás, justamente porque o golpe fora inesperado. Aliás, é sabido que o homem pacífico é perigoso quando obrigado à lata.

Mas isso tudo já estava longe: terminado c. noviciado, Tomás emitira os votos e fora consagrado sacerdote.

Nunca, enquanto vivesse, esqueceria a noite anterior à ordenação. Os homens não sabem, não compreendem o que significa tornar-se sacerdote. E uma voz interior murmurava-lhe que até mesmo a Rainha do Paraíso, a Mãe de Deus, só concebera e dera Cristo à luz uma única vez, enquanto o padre; pronunciando a fórmula divina, chama-o a si todo dia. Talvez fosse a mesma voz que incutira em São Francisco tal receio de soberba que o levara a recusar obstinadamente a consagração sacerdotal e ficar por toda a vida um simples fradezinho. O poder de fazer descer Deus do alto dos céus, de acolher o próximo no corpo místico de Cristo, de perdoar os pecados... quem era ele para que lhe fosse conferido tal poder?

Pensava nisso toda vez que, durante a missa, chegava às palavras: Hoc est enfim corpos meum, e, sob o pêso delas, prorrompia em lágrimas.

Quando, porém, chegado o dia, soou a sua hora, tudo mudara. Estava tranqüilo e sereno, seguro de si. Em seguida, nunca disse "como acontecera", nem mesmo a Reginaldo de Piperno, seu melhor amigo entre os frades, com cujo devotamento podia contar. Era um excesso de sensibilidade ou tratava-se de um segredo? Em todo caso o fato produziu nele uma quase mudança física. Um novo traço imprimiu-se em seu rosto, um novo calor, uma expressão quase materna. E como se sua missa fosse um acontecimento muito pessoal, como se aquele íntimo contato com Cristo requeresse um humilde retorno entre a massa dos fiéis, ele tornava à igreja e assistia à missa de um confrade.

A tese sôbre os Nomes Divinos era a primeira que escrevia, e tinha-lhe encomendado o seu superior, mestre Alberto: "Seria lícito", perguntava Dionísio Areopagita, "dizer que o conhecemos, mas não em sua natureza?"

"Quem é Deus" perguntara a si mesmo Tomás aos cinco anos. Por um instante o rosto venerável do abade de Montecassino emergiu do passado, um pano ensangüentado em torno dos cabelos brancos. Quem é Deus?

"A solução" escrevia frei Tomás "é que conhecemos silo a Deus, mas não conforme sua natureza, não na sua essência. De fato, essa essência é ignorada pelas criaturas, e supera não só a experiência dos sentidos, mas todo inteleto humano e angélico que opera com poder e energia naturais; ninguém pode conhecê-la senão através do dom da graça".

Parou um instante e, como vinda de longe, ouviu a própria voz: Hoc est enfim corpus meum, e seu coração palpitou alegremente; dobrou os joelhos em adoração, mas logo saiu daquela beatitude. Era hora de 'trabalho, e a pena voltou a correr sôbre o papel, o lindo papel da nova fábrica de Herault em França.

"Portanto não podemos conhecer a Deus percebendo-lhe a essência, mas apenas em base do tecido do universo. Deus pôs-nos diante dos olhos o mundo das criaturas, para que o reconheçamos nelas: o universo, de fato, com sua ordem é quase um retrato seu, e tem uma pequena semelhança com a natureza divina, que é seu modêlo e arquétipo..."

Na cela ao lado da de Tomás, Reginaldo de Piperno estava diante do mestre Alberto e, como sempre, tinha medo. Deste nunca conseguia libertar-se, por muito que dissesse a si mesmo que era ilógico e desnecessário. Certamente o mestre sabia ser muito severo ... quando, por exemplo, não se observava a regra, mas enquanto se ficava no que era licito, mostrava-se justo e até benigno. Medo dava a inteligência, dentro daquela poderosa cabeça. Era assustador pensar que um homem pudesse saber tanto de tantas coisas. Apenas ultrapassada a casa dos cinqüenta - certamente não teria mais de cinqüenta e cinco anos - contava em seu ativo com livros de mineralogia, botânica, física, alquimia, astrologia e astronomia. Sôbre muitos desses assuntos fazia conferência aos confrades, que às vezes ficavam boquiabertos. Que existissem pelo menos cinco espécies diversas de águias, quatro espécies de andorinhas, cinco de patos selvagens e dezesseis de falcões, que o som dos sinos exercesse determinados efeitos sôbre os peixes, e que certas raças de cadelas ensinassem a seus filhotes um treino sistemático para a caça ao lôbo, e mil outras coisas deste gênero ... tudo isso causava admiração; mas quando ele começava a explicar que a terra devia ter forma esférica e que esse fato assombroso demonstrava-se mediante a sombra da própria terra, visível durante os eclipses da lua, e podia ser deduzido também por uma misteriosa força da terra, chamada gravitação, "porque todas as partes da terra tendem para o seu centro", era verdadeiramente espantoso.

O pior acontecera recentemente quando o mestre declarara que a linda e graciosa cortina branca que parece ocupar metade do céu noturno não era uma nuvem e sim uma massa de estrêlas tão enormemente numerosas e longínquas que parecem uma nuvem.

Aliás, não, ainda não era o pior, embora também isso provocasse vertigens. Voltando da nuvem láctea à terra, o mestre tinha dito aos confrades, pálidos de assombro, que muito provavelmente a metade meridional da esfera terrestre era habitada por homens. Como podiam viver ai sem cair? E se conseguiam, em virtude de alguma magia, que aconteceria aos frades que lá fossem - cedo ou tarde deveriam ir para pregar a palavra de Deus aos pagãos que viviam de cabeça para baixo? Não devia haver grande diferença entre precipitar-se no ar e ser flechado pelos sarracenos.

Portanto, nenhuma razão de espanto se não só em Colônia mas em toda a Germânia a gente simples considerava mestre Alberto como um adepto da arte mágica, um feiticeiro. Mas não... era um homem grande e santo, o mestre mais sábio e mais erudito que os frades pudessem ter. Porém ... porém ... ainda assim inspirava medo.

Frei Reginaldo não podia imaginar por que mestre Alberto o tinha mandado chamar, mas estava certo de ter a consciência limpa ... salvo algum pensamento pouco amistoso para com frei Paulo porque este asseverara ser frei Tomás tão distraído que um dia comeria o próprio polegar no almôço e só daria por isso quando fizesse o sinal da cruz.

Ora, ainda que mestre Alberto fosse feiticeiro não poderia ler tal pensamento que, afinal de contas, não era muito mau. O fato é que Reginaldo não tolerava que se falasse mal de frei Tomás, o qual não pensava em defender-se e provavelmente nem ouvia: alguém devia, pois, tomar sua defesa, e não apenas em pensamento.

- Frei Reginaldo, - disse a voz metálica que em aula todos ouviam com tanta atenção - creio que tu nutras amizade particular com frei Tomás de Aquino.

Eis, pois, a razão de o ter chamado. As amizades particulares não eram bem vistas na Ordem, em nenhuma Ordem; não só porque em certos casos podia levar a excessiva simpatia e, portanto, a tentações, ainda que apenas em pensamento, mas também e principalmente porque toda simpatia humana é em si mesma um afastamento do amor de Deus e, portanto, um recuo do espírito.

- Buscas a tua companhia logo que te é possível e tentas facilitá-lo em tudo que podes.

- Assim é, padre Alberto, - respondeu o frade com tristeza.

Como podia frei Tomás passar sem ele? Era, de fato, um tanto distraído, e nesse ponto frei Paulo tinha razão, mas o modo como falava nisso...

- Tu sabes que aqui não se apreciam as amizades pessoais ...

- Eu o sei, padre Alberto.

- Mas neste caso faço questão de que te ocupes dele o mais possível. Não se trata de uma modificação da regra, mas apenas de afastar dele os obstáculos inúteis e cuidar que tenha tudo que precisa para o seu trabalho. Esta é tua tarefa, frei Reginaldo.

- Está bem, padre Alberto.

- É tudo - concluiu gentilmente Alberto acompanhando-o com um olhar benévolo enquanto o frade retirava-se radiante. O secretário nato: justamente aquilo de que Tomás precisava. Oficialmente não era possível, porque os dominicanos não podem ter secretários.

Reginaldo sorriu. Não se passara muito tempo desde quando aqueles burros de noviços zombavam dele julgando-o bobo: o boi mudo da Sicília! Sorriu de novo. Do seu lugar na classe berrara: "Vós o chamais de boi mudo, mas eu vos digo que um dia este boi mugirá tão alto que será ouvido pelo mundo inteiro". Havia sinceramente encolerizado naquele dia, porque não sabia ainda que Tomás não precisava de proteção. Defendia-se melhor do que qualquer um que quisesse fazê-lo por ele ... desde que o quisesse. Mas não fazia questão; antes, até gostara de ser considerado bobo: ótimo antídoto contra o contínuo perigo da soberba. E conseguira convencer não só os noviços. mas até mestre Alberto que certamente não era tolo nem inexperiente. Não. não precisava de proteção, mas alguém devia cuidar dele.

Apoiando-se ao espaldar da cadeira, olhava pela janela. Na horta dois frades leigos semeavam. Além do muro do convento, ouviam-se os, ruídos alegres vindos da rua: era dia de festa em Colônia. Naquela manhã iniciava-se a construção da nova catedral. Não chegaria a vê-Ia terminada. Que pena! Conhecia-lhe o projeto e a maquete: que ousadia e, ao mesmo tempo, quanta humildade! Torres que se elevavam até o trono de Deus para què se pudesse participar da sua divindade como ele participara da nossa humanidade ... E, ainda assim, o construtor daquelas torres tornava-se um pigmeu diante da própria obra. A missa construída em pedra.

Edifícios do mesmo porte erguiam-se agora em todos os países cristãos. Em toda parte cresciam as catedrais: Remos. Armiens, Ruão, Basiléia, Cantuária, Chichester, Lincólnia, Lichfield, Salisbúria, Durham, Southwark, Yorque e Londres, onde só três anos antes se começara a estupenda abadia de Westminster, menor mas não menos bela do que a gigantesca catedral de Cantuária; Sena e Santiago de Compostela..

Deus nos conduz além de nós mesmos, pensava. Cria invenções em nosso cérebro. E murmurava baixinho: "Amei a beleza de vossa casa, Senhor, e o lugar onde reside a vossa glória". O salmista fazia-o com o seu poema profético, o arquiteto com a oração de pedra. E nós ...

Havia outro reino onde se podiam construir catedrais: as catedrais da inteligência.

"Hoje lançaram a primeira pedra da catedral de Colônia. Eu também começarei hoje a minha catedral. Chegou a hora. Na horta espalham as sementes. Eu farei o mesmo".

Levantou-se e saiu da sua cela, miúdo como era, com movimentos rápidos. A sua entrada na cela contígua, um jovem gigante tentou levantar-se, mas foi obstado docemente pela mão do mestre. Seguiu-se um longo silêncio.

- A última página - exclamou de repente Alberto. - Deixa-me ver.

Tomás estendeu-lhe a fôlha onde o mestre leu:

"Depois há outro modo, um modo sublime de conhecer a Deus: através da negação. Nós conhecemos a Deus por ignorância unindo-nos a ele de um modo que transcende as nossas possibilidades de compreensão: isto é, quando o espírito se retira de todas as coisas e abandona até a si próprio e se une aos raios da divindade que vencem tudo com seu resplendor".

A tinta estava sêca: deviam ter passado alguns minutos desde que Tomás tinha escrito aquelas palavras. E agora estava pálido ...

"Cheguei muito cedo", pensou Alberto. "Se tivesse acontecido a mim, estaria aborrecido. Devia imaginar que isso o teria distraído'". Mas a sua voz era calma quando disse:

- Podes abandonar um pouco o teu trabalho,, meu filho, e escutar- com toda atenção?

- Certamente, padre Alberto. - A voz de Tomás revelava certa surpresa que o mestre notou com satisfação. A volta de uma verdadeira experiência mística é sempre brusca: Tomás, porém, não demonstrou sofrer com isso, pelo contrário, a coisa perecia-lhe óbvia. O sólito e o insólito eram ambos dons de Deus.

- Eis: qual é a faculdade racional mais importante do homem?

- A faculdade de conhecer o verdadeiro - foi a pronta resposta.

- Alguns negam que o verdadeiro possa ser conhecido.

- Estes são refutados pelo fato de que não podem fazer tal afirmação sem contradizerem a própria hipótese. Se o homem não pode conhecer a verdade, não pode também considerar verdadeira a tese que ele não pode conhecer o verdadeiro.

- Além disso, nunca estaremos em condições de conhecer um êrro como tal - acrescentou Alberto. - Certamente, muitas vezes é difícil. Que é que faz tão freqüentemente aceitável o êrro?

- A verdade que contém em proporção à não verdade.

A simplicidade quase pueril das perguntas não enganou Tomás: esse bem sabia que Alberto gostava de começar um assunto importante com uma porção de quesitos que qualquer estudante de filosofia resolveria após seis meses. Era como o atleta que se unge antes da luta. Não lhe passou pela mente que o mestre tinha descoberto aquilo que vivera nos últimos minutos e quisesse dar-lhe tempo para se refazer.

- Sim ... sim... - disse Alberto gravemente. - Verdade e não verdade misturadas: eis o perigo do nosso tempo. Perigo que ameaça conquistar o mundo e relegar mais uma vez a fé às catacumbas... a menos que se liberte o gigante.

- Libertar o gigante?

- Não é contemporâneo nosso - explicou Alberto. - Não é Frederico II, embora ele possa parecer poderoso àqueles que espezinha. Corre pela Itália como uma fera, mas tanto ele como suas mesquinhas guerras serão logo esquecidos ... se bem que não pelos descendentes de suas vítimas ... Espero que tu não estejas entre eles. A tua família, pelo que me consta, ainda está na Itália.

- Meus dois irmãos estão em perigo, - disse Tomás - mas pelo menos combatem no campo justo. Desde que deixei Roca-sêca rezo por eles.

- Tens, então, notícias?

- As últimas chegaram há alguns meses.

- A tua família opôs-se vivamente à tua entrada na Ordem. Ainda há tal oposição?

- Sim, mas muito mais fraca. Creio.. . - acrescentou com um sorriso inesperado - creio que já se acostumaram.

- Bem, bem. - Alberto estava novamente pensando no assunto de antes. - Frederico será logo esquecido. Tampouco queria aludir a Luís de França, que manca será esquecido. O meu gigante não é de carne e osso, embora o tenha sido: nem os que o evocaram do limbo são de carne e osso, nem nunca o foram.

Tomás aguardava pacientemente.

- Vou-te contar uma fábula, meu filho, - redargüiu Alberto sorrindo. - Era uma vez nos países do Oriente um cameleiro que acreditava que Deus lhe falasse pela boca do arcanjo Gabriel. Retirou-se para uma gruta dos montes da Arábia, a fumar cânhamo índico e escrever um livro que, dizia ele, o arcanjo Gabriel lhe havia sugerido. Tanto ele como seus sequazes pregavam de modo tão atraente que centenas, e depois milhares de pessoas convenceram-se que o cameleiro era o maior profeta enviado por Deus à terra, e que era obrigação deles difundir pelo mundo todo, não com bondosa persuação, mas a ferro e fogo, a nova religião codificada no seu livro... E a nova religião difundiu-se pela Arábia, Egito e Turquia e por toda a costa norte-africana. Daí passou para a Espanha e a França. Nesta última só os cavaleiros e os soldados cristãos conseguiram, com a ajuda de Deus, sustar e repelir o assalto. Mas a bandeira verde do profeta Maomé ainda domina grande parte da Espanha e, no Oriente o Islã está às portas da grande cidade de Constantino. O símbolo da nova religião é a meia-lua, e como uma enorme meia-lua os países maometanos apertam dentro de si a cristandade. A qualquer momento podem desferir novo ataque.

Tomás continuava esperando, sério, com o olhar fixo. "Agora chega ao ponto" pensava. Não ignorava a história do Islã, e já parecia-lhe adivinhar onde mestre Alberto quisesse ir parar. Compreendia, porém, que o mestre tinha suas razões para contar-lhe aquela "fábula".

- A fé primitiva dos mouros e sarracenos - prosseguiu Alberto não poderia tornar-se um perigo para o cristianismo, embora os próprios muçulmanos estivessem convencidos de possuir a ideologia superior. Mas depois apresentou-se um novo perigo. Al-Kindi, no século IX, Al-Farabi no X, e Avicena no XI, começaram a evocar a sombra de um gigante entre os mortos que viveram três séculos antes de Nosso Senhor. A princípio não tinham absolutamente intenção de apresentar Aristóteles como precursor do Islã. Estavam apenas ávidos de saber. Entretanto, ao mágico contato destes, o gigante começou a sofrer uma estranha transformação. Eles inflamaram a sua sombra com o ar pesado do deserto; o misticismo do Oriente insinuou-se neles, e os raciocínios singulares dos neoplatônicos e dos pré-platônicos obscureceram a clareza do inteleto titânico. Aristóteles começou a parecer-se cada vez mais com um oriental. Poderia ter nascido em Bagdá, em Khorassan ou em Marráquexe. E afinal, há um século, apareceu Averróis.

Tomás inclinou-se e apoiou os braços sôbre os joelhos. Tudo que Alberto dissera até então era-lhe conhecido, e Alberto o sabia. Parecialhe mesmo estar escutando uma fábula ouvida muitas outra vezes.

- Averróis, - prosseguiu Alberto - obsessionado por Aristóteles, compôs uma síntese do trabalho dos seus três predecessores, sem que isso lhe impedisse criticá-los a vontade. Na tripartição da inteligência humana (idéia sua, essa) parece ter desenvolvido mais o "inteleto adquirido". Em todo caso, isso serviu-lhe para apropriar-se de muitas coisas que outros tinham pensado antes dele. Com Averróis dava-se o nascimento da filosofia maometana, que não era uma filosofia nova, mas »ma filosofia aristotélica confusa e orientalizada. Porém... neste ponto o mestre tornou-se sério - era sempre uma filosofia e continha suficiente verdade aristotélica para inundar de erros orientais os cérebros cristãos. Finalmente ... o Islã tinha uma arma contra a fé cristã e essa arma era tão cortante que obrigava os nossos filósofos a uma confissão espantosa, isto é: admitir que há duas verdades, a verdade da fé e a verdade da filosofia às quais não é necessário o concordar entre si. Desse modo, nas consciências cristãs surgiram graves dúvidas às quais a teologia só podia opor esta resposta: "Não te ocupes com filosofia, atem-te à fé". Em outros têrmos: o cavalo de Tróia está dentro dos nossos muros e o seu nome é filosofia do Islã. Aquilo que não conseguiram os enormes exércitos do cameleiro pode ser conseguido pelo cavalo de Tróia, isto é, pelo espírito de Aristóteles tendo ao lombo o espírito de Averróis. Dizem que Frederico II macaqueia toda sorte de costumes orientais, que jura por Maomé e pela Caaba, que o Oriente está bastante em moda. Tudo isso é deplorável, mas nem de longe tão perigoso como a doutrina oriental que ofusca as nossas melhores cabeças. Como se explica isso? Pelo fato de que sob o êrro averroísta esconde-se uma verdade aristotélica. Verdade e êrro misturados: eis o perigo do nosso tempo ... a menos que consigamos libertar o gigante.

- Nós? - perguntou Tomás incrédulo. - Nós? ...

- Tu e eu. Há anos que estou procurando o homem que seja capaz disso. Toda a minha vida dediquei-a a esse objetivo, mas uma vida não basta. Um só homem não pode libertar Aristóteles dos grilhões. A tarefa é enorme, e não se trata apenas de traduzir Aristóteles para o latim.

- Claro que não - exclamou Tomás. - De fato, também Aristó- nem sempre tem razão.

- Filho, filho meu! - exultou Alberto. - Estas palavras bastam para demonstrar que tu és o homem que busco. - E no seu entusiasmo levantou-se de repente e pôs-se a caminhar pela pequena cela. - Aristóteles nem sempre tem razão - repetiu. - Sabes que talvez ninguém ousaria proclamá-lo pìzblicamente? Ninguém, quero dizer, que tenha lido seriamente Aristóteles. Realmente alguns, especialmente muitos teólogos que poderia citar, estão firmemente convencidos de que o verdadeiro autor das obras aristotélicas chama-se Satanás. Pensa só! Pessoas boas e honestas que se benzem quando se pronuncia o nome do Estagirita. Mas tu, meu filho, tu o leste ... e o compreendeste. - De repente parou. - De agora em diante nós dois tornamo-nos os personagens da minha fábula: tu e eu com o nosso plano de romper as cadeias do gigante e trazê-lo de novo à razão.

- Os grandes judeus ajudar-nos-ão, - asseverou Tomás com entusiasmo - especialmente o rabi Moisés ben Maimon. O seu Guia dos Perplexos...

- Já leste isso também? - perguntou Alberto surprêso.

- Quando estava em Nápoles - confessou Tomás. - Havia um bom exemplar na universidade. O rabi Moisés foi um grande homem ... e bom.

- Ele também acha que Aristóteles não era infalível. Filho meu, sabes até onde se chega desse modo?

Tomás anuiu:

- Os cristãos poderão dizer: "Pela graça de Deus, eu creio. Muitas coisas da minha fé transcendem a razão, mas nada a contradiz".

- Muito bem! - exclamou Alberto, e contendo o seu entusiasmo acrescentou com voz já calma, mas firme: - Tomás, devo pôr-te em guarda: nossos próprios amigos nos dificultarão. O franciscano mais sábio que já conheci (não o melhor, mas o mais inteligente), frei Rogério Bacon, riu-se de mim quando lhe comuniquei a minha idéia. "Não podes conseguir", objetou-me. h absolutamente impossível".

- Ve-lo-emos - disse Tomás com simplicidade.

- A oposição mais violenta, porém, não nos virá de homens da sua espécie, virá de espíritos medrosos, limitados,

estéreis... entre os quais há indivíduos de grande poder e influência. Esses cercar-te-ão como os touros de Basã. Empenharão contra ti toda a sua autoridade, citarão os grandes santos, até mesmo os Padres da Igreja. Procurarão sufocar-te com São Gregório, São Bernardo, com o maior de todos, Santo Agostinho...

- Não importa quem seja o homem que sentenciou - rebateu Tomás - Importa aquilo que sentenciou.

Alberto fixou-o e disse com voz comovida:

- Pela glória de Deus, creio que tu falas seriamente.

Tomás, por sua vez, olhou para ele:

- Se não falasse seriamente não teria falado.

O homenzinho diante do qual todos tremiam disse com voz sufocada:

- Dize-me uma coisa, filho, já tiveste alguém sujeito a ti?

- Sim - respondeu Tomás.

- Não o creio. Quem?

- Nosso Senhor ... sôbre o altar.