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O correio com a correspondência secreta alcançou o imperador enquanto
cavalgava com a escolta para o sul.
- Podes ficar conosco - disse Frederico. - Manfredo, apanha a
bolsa e lê-me as cartas. Dez ducados ao correio se as notícias são
más, trinta se são boas. Lê, Manfredo, ou melhor, resume
brevemente.
- Carta do conde de Caserta - começou Manfredo. - Pedro
Capócio, o legado papal, tentou ocupar a Sicília. Foi rechaçado
e perdeu dois mil homens. Dois sobrinhos seus foram feitos
prisioneiros.
Frederico aprovou com um estranho brilho nos olhos.
- Uma esperança a menos, santo padre. Adiante, Manfredo ...
- Comado esta para chegar - anunciou o jovem enrugando a testa. Os
filhos do imperador, todos de mães diversas, não se davam. Agora
Manfredo tinha dezoito anos, Comado vinte e seis, além do título
régio - rei Comado IV, - e mais do que nunca olhava o irmão com
desprezo.
- Terminou a campanha renana - prosseguiu o jovem - estipulando um
armistício com os arcebispos das cidades ao longo do Reno.
- Muito bem - aprovou Frederico. - Quando Comado estipula um
armistício quer dizer que segura os bispos pelo pescoço. )J um
espertalhão. Adiante!
- Avinhão e Arles homenagearam novamente o imperador. Vozes
fidedignas afirmam que o papa pediu asilo ao rei da Inglaterra, em
Bordéus.
- Dentre todas, é esta a mais bela notícia. Cinqüenta ducados ao
correio! Meu filho, sabes o que significa isso? É quase o fim da
minha luta contra o rei dos supersticiosos. Ora veja! Bordéus
... só lhe resta a Inglaterra e depois o Oceano. Aos peixes o
sucessor do pescador! Nem mesmo o piedoso francês pode valer-lhe:
ser-lhe-á preciso muito para refazer-se da surra que lhe deram meus
amigos muçulmanos. Eis o momento bom, Manfredo. Aqui queria
chegar. O resto é brincadeira. Berardo ... onde está Berardo?
- Eis-me aqui, majestade. - O arcebispo de Palermo, que não
via sua diocese há anos, isto é, desde quando fora excomungado junto
com o seu imperial patrão, seguira Frederico com fidelidade canina,
mas já era muito velho e tinha de se fazer levar quase sempre de
liteira.
- Berardo, despacha ao duque Alberto de Saxônia a carta que
preparamos ultimamente. Se os pintores saxões não são os maiores
aduladores do mundo, a filha dele deve ser muito bonita.
- Papai, pretenderás casar-te de novo? - perguntou Manfredo
despeitosamente. - Este mês completas cinqüenta e seis anos. Não
basta? Pretendes ter outros filhos?
Frederico parou o cavalo e gritou:
- Es o príncipe de Taranto e meu sucessor na Itália. De que te
queixas? Tens dezoito anos. Eu ponho no mundo filhos quantos quiser
e tu nada tens com isso. Não quero estragar o meu dia. Sai da minha
frente!
Palidíssimo e cheio de cólera, o jovem Manfredo virou o cavalo e
voltou atrás, para juntar-se ao esplêndido cortejo que seguia o
imperador a cinqüenta passos de distância.
- Que impertinente! - murmurou Frederico com um sorriso azedo. -
Sei o que ele quer ... e o que quer Conrado. Sei o que querem
todos. Parecem-se, os meus filhos. - E vermelho respirava com
dificuldade. De repente levou o cavalo para a beira da estrada e
vomitou. As convulsões agitavam aquele corpo possante que se dobrava
sôbre a sela.
Após um instante de espanto, alguém começou a gritar: - O
médico, o médico! - e João de Prócida apareceu. Era ainda
jovem apesar da grande fama que gozava. Os cabelos vermelhos saíam de
baixo do gorro de veludo negro; seu rosto era o de um símio
inteligente. Ajudou o imperador a desmontar (ninguém na confusão
havia pensado nisso), e pelo modo com que teve de o amparar todos
compreenderam que não se tratava de um banal mal-estar. O vômito
não lhe trouxera nenhum alívio.
- Dois homens para ajudar o nosso senhor! - exclamou o médico, e
todos acorreram. - Uma liteira! - ordenou.
- A única que temos serve ao arcebispo.
João de Prócida bateu o pé.
- Uma liteira, digo! Não pode mais ir a cavalo. Mandai descer
aquele velho adulador.
Os cavaleiros olharam o cortesão. Na corte de Frederico podia-se
imprecar contra os arcebispos, mas Berardo era amigo pessoal do
imperador.
- Tirai-o daí! - gritou o médico. - Preciso da liteira para o
meu senhor, e a terei! Deixai-o ir a pé, aquele velho mercador de
superstições.
O imperador não possuía plena consciência, porém, Manfredo,
aproximando-se preocupado, viu-o virar-se para o outro lado e voltou
para trás.
O velho arcebispo tinha descido da liteira. Não ouvira as palavras
do médico, mas ainda que as tivesse ouvido não o teriam
impressionado. Conhecia João de Prócida e suas opiniões.
Aproximou-se, pois, para oferecer a liteira a Frederico, mas
quando o fitou no rosto, assustou-se: estava amarelo e tinha os olhos
encavados. Parecia sofrer muito e apoiava-se pesadamente em um dos
cavaleiros, os quais tiveram de levá-lo quase até a liteira e,
tendo-o deitado, cobriram-no com a manta do arcebispo.
- Quem assume o comando? - gritou o médico. - Seja quem for, a
viagem está terminada. Onde encontraremos um teto conveniente para o
nosso imperador?
A cidade mais próxima distava mais de duas horas de cavalgada, mas o
médico sacudiu energicamente a cabeça:
- Nem se pense nisso. Que é aquilo lá em cima?
Lá em cima havia um pequeno castelo cujas ameias brancas sobressaíam
do verde azulado de uma plantação de oliveiras. Ninguém o conhecia
nem sabia a quem pertencia.
- Pertença a quem quer que seja, nós vamos para lá - disse o
enérgico doutor. - Levantai a liteira.
- Sois muito imperioso, senhor charlatão, - observou o conde
Pedro Rufo, cavalariço-mor do imperador. - Minhas instruções
...
- Vosso criado, senhor conde, em qualquer outro momento interrompeu
João de Prócida. -Desde que recebestes vossas instruções
aconteceu um pequeno fato. Pela saúde do imperador eu é que sou
responsável. Por isso ser-vos-ei grato, e também o nosso soberano
o será, se nos providenciardes um teto naquele castelo.
Era claro que tinha razão, por isso Rufo ordenou que uma dúzia de
cavaleiros fosse à fortaleza e providenciasse tudo para a chegada do
paciente. Esses saíram a galope e o resto do cortejo seguiu
lentamente. Era impossível encontrar alojamento para mil e duzentas
pessoas e seiscentos cavalos num castelo tão pequeno. Rufo procurou
saber quando o imperador estaria em condições de prosseguir a viagem.
O médico respondeu com um levantar de ombros. Quando se poderia
falar ao imperador e pedir-lhe novas ordens? Outro levantar de
ombros. Talvez à noite, talvez amanhã. Rufo comunicou aos outros
nobres aquela resposta lacônica e decidiu levantar acampamento onde
estavam, a espera de ordens do imperador.
. Três dos cavaleiros enviados voltaram com a notícia de que o conde
Torrani, dono da cidadela, estava em Roma com toda a família, e
que a criadagem estava preparando os aposentos para o excelso doente.
.Uma hora depois, estava o imperador na cama, revirando-se
inquieto:
- Prócida ...
- Majestade!
- Diz-me: envenenaram-me?
- Não, senhor. A menos que tenhais comido algo em minha
ausência, mas não o creio. Provei tudo que vos levaram para comer e
beber.
- Que será então isso?
- Ainda não sei.
- Parece-me ter fogo no ventre e na cabeça.
- Tomai, majestade. Isso vos fará dormir.
Frederico engoliu com uma careta o sumo de papoula.
Não havia inchações nem zonas inflamadas. Mas Frederico fora de
novo caçar nos pauis durante diversos dias, e os charcos eram
perigosos: zonas de toda sorte de febres. O pulso, era rápido e
irregular, de modo que João de Prócida resolveu ficar no quarto do
imperador e não deixar entrar ninguém.
Após cerca de meia hora o imperador adormeceu. Sentado perto da
cama, o médico observava o doente. O melhor e mais extraordinário
cérebro do mundo estava-lhe confiado. Desde rapaz admirara o
imperador ouvindo como as pessoas dirigiam bênçãos e maldições para
suas incríveis gestas. Mesmo os piores inimigos tiveram de admitir a
sua aguda inteligência, e desde criança o médico admirava, acima de
tudo, a inteligência. Muito cedo percebera que o seu ídolo odiava e
desprezava os padres e não acreditava nos dogmas religiosos que padre
Filipe ensinava na escola. Tanto este como os outros sacerdotes
torciam o nariz quando se falava do imperador. Mas às insistentes
perguntas do rapaz só sabiam responder:
- Tu deves crer se queres ser um bom cristão.
- Tu deves... Por quê?
Se todas essas histórias eram verdadeiras, por que não lhas
explicavam? E se não eram verdadeiras, por que precisava crer
nelas? Na escola aquele cabecinha vermelha tornou-se um verdadeiro
rebelde e foi apresentado aos companheiros como exemplo a ser evitado.
enquanto, justamente por isso, o adoravam. Na universidade de
Nápoles. e depois na de Toledo, João perdeu os últimos resíduos
da fé. Para ele a religião era uma superstição. Razão e fé
excluíam-se reciprocamente, aliás a inteligência de um homem era
proporcional à exigüidade da sua fé.
Nomeado médico particular do imperador, ficou radiante e feliz. A
sua admiração pelo espírito mais brilhante do século nunca se
afrouxara e, mesmo visto de perto, o seu ídolo não o desiludiu. O
espírito pronto, as observações irônicas sôbre os loucos de
sobrepeliz e estola, a astúcia com que os tratava, deliciavam o
médico, juntamente com o seu imenso saber.
O imperador dormiu até horas avançadas do dia seguinte e acordou com
o corpo dolorido. A febre estava ainda alta, os olhos vítreos, a
pele seca e ardente.
João mandou prevenir o príncipe de Tarento e os outros nobres que o
imperador estava gravemente enfermo e que não melhoraria antes de
algumas semanas.
O vômito repetiu-se, mas o coração resistiu. O médico
trabalhava como um mouro. Era preciso fazer compressas e renová-las
cada dez minutos: entregue essa tarefa a duas jovens a serviço do
conde Torrani, João instalou-se no aposento contíguo,
transformado num verdadeiro laboratório de alquimista. Também na
noite seguinte conseguiu fazer o imperador dormir e, ao amanhecer,
verificou que a febre havia diminuído um pouco. Então permitiu-se
duas horas de sono. Mal, porém, havia deitado quando ouviu um grito
improviso: levantou-se e acorreu. Sentado na cama, Frederico tinha
os lábios exangues e os olhos fora das órbitas.
- Prócida, manda levar-me daqui!
- Acalmai-vos, majestade, rogo-vos! Que tendes?
- Embora ... vamos embora, já ...
- Não, senhor, ainda não. A febre está muito alta para que
possais viajar. Mas por que quereis ir embora? Falta-vos alguma
coisa? - Pobre coitado! Sim ... é verdade ... tu não sabes
... o destino é um trapaceiro... - E começou a rir com um riso
desesperado que parecia não querer parar.
- Que acontece? - perguntou o médico em voz baixa. As duas jovens
estavam tão espantadas que ele teve de repetir a pergunta mais de uma
vez antes que uma delas respondesse com voz chorosa:
- Não sei, senhor, não sei. O imperador perguntou-nos o nome da
cidadela, eu o disse e logo ele começou a gritar ...
A horrível risada de Frederico durava ainda e terminou num longo
gemido.
- Morro ... vou morrer ...
- Não, majestade - protestou João. - Já vi outras vezes essa
espécie de febre e tenho-a curado. Não morrereis. Absolutamente!
- Sub flore - murmurou Frederico. - Miguel Escoto tinha razão:
devo morrer sub flore Sabes, Prócida, como se chama este castelo?
Tu o sabes? Castelo Florentino. Ah! ah! ah! ... Castelo
Florentino! Vítima de convulsões - comprimia o estômago com ambas
as mãos. Por toda a vida evitei Florença ... Nunca fui lá,
nunca ... nunca tolerei flores sôbre a minha cabeça ... e eis
que me trazem ao Castelo Florentino!
- Ora, vós não acreditais nisso - exclamou o médico aterrado. -
Não podeis acreditar ... Não é possível que ...
- Morro - disse Frederico. - Chama, manda vir todos. tornou a
vomitar com grande sofrimento, pois nas últimas trinta e seis horas
não tinha comido nada. Logo que melhorou, repetiu a ordem e
Prócida teve de obedecer. Alguns minutos depois todos entraram,
assustados e profundamente comovidos à vista do homem que pouco antes
fora o símbolo da energia e da segurança de si próprio.
Frederico pôs-se a ditar uma série de atos de governo. Para
estupor do médico, sua mente estava lúcida, seu pensamento lógico e
preciso. Mas como podia dar fé a uma profecia tão idiota? Prócida
sabia que o imperador fazia-se rodear de astrólogos e de ocultistas;
mas também de bailarinas sarracenas e bobos de corte, já que amava
todas as formas de vida, sem dar muita importância a nenhuma.
Estava gravemente enfermo e podia ser que morresse. Mas aquele
pensamento ilógico e tão pouco científico de ter de morrer porque o
nome daquele maldito castelo parecia confirmar a profecia do
astrólogo, paralizava a sua vontade, isto é, o maior coeficiente da
sua cura.
Ah! a superstição! Nem mesmo o espírito mais brilhante do século
estava livre dela. Ou seria realmente possível atirar um olhar ao
futuro, seria possível que existisse uma espécie de memória
antevidente em vez de retrospetiva? Em Toledo havia pessoas
inteligentes que o admitiam e faziam experiências a respeito. Era
mais fácil aceitar esta hipótese do que imaginar a mente do grande
Frederico movendo-se na mesma esfera das mulherezinhas de ambos os
sexos. Talvez isso dependesse da grande erudição do imperador, não
da sua fé: mas ainda nesse caso a ciência seria prejudicial porque
enfraquecia a resistência. Mas o saber podia ser prejudicial? Este
era uma argumento explorado pelos mercadores de superstições, que
falavam de uma árvore do conhecimento cujo fruto era mortífero. Eles
sabiam discutir sôbre muitas coisas, e assim faziam-se admirar pelo
povo, e o dominavam.
Diversos documentos foram ditados, escritos, assinados, selados,
honrarias e títulos e cargos distribuídos.
Prócida não era muito entendido dessa coisas, mas compreendia que
naquele pequeno aposento a Itália estava sendo dividida em esferas de
influência sob os vários filhos do imperador. A Itália tornava-se
propriedade privada dos Suevos. Outras cartas foram expedidas aos
príncipes tudescos, rei de França, duque de Borgonha, Henrique
III de Inglaterra, ao emir de Túnis. E assim prosseguiu-se por
horas seguidas.
A voz de Frederico, fraca e rouca, às vezes reduzia-se a um
sussurro: mas a mente estava límpida, e as mãos frescas como se a
morte próxima tivesse expulso a febre.
Afinal durante a leitura de uma longa carta à Espanha, Frederico
adormeceu. Alguns nobres começaram a chorar pensando tivesse
morrido. O médico, porém, sacudiu a cabeça e instou-os a sair.
Eles obedeceram em silêncio, mais moços assustados do que
príncipes. Meia hora depois Frederico começou a murmurar palavras
incoerentes, interrompidas por breves risadas e gemidos, já que a
febre voltara violenta.
A certo momento sentou-se sozinho na cama e disse com voz clara e
metálica:
- Eu vim para cumprir a lei.
Depois caiu deitado e recomeçou a murmurar.
Após quatro dias de luta ininterrupta, Prócida compreendeu que não
havia mais esperanças. Os sintomas eram eloqüentes: pele úmida e
pegajosa, rosto azulado, respiração difícil e coração a ponto de
ceder.
Frederico, em plena consciência, olhou para o médico com um
vislumbre de sorriso nos lábios:
- Diz-me a verdade, Prócida ... compreendes? a verdade ...
Quantas ... quantas horas... ainda me restam?
O tempo da prudência tinha terminado, nem era possível, por outro
lado, enganar àqueles olhos.
- Não muitas, senhor.
Frederico fez um aceno quase imperceptível e disse:
- Berardo ... chama-me Berardo.
De má vontade o médico mandou uma das mulheres chamar o velho
prelado. Mas quando o arcebispo Berardo, acompanhado de dois
acólitos que traziam uma mesinha com ampulhetas de óleo e de água e
mais duas velas acesas, entrou trazendo um cálice coberto, Prócida
levantou-se com um salto, protestando, embora com voz reprimida.
- Silêncio, Prócida, - impôs Frederico. - A tua tarefa
... terminou... 'agora começa a dele.
João de Prócida olhou para ele assombrado:
- Meu senhor, não querereis ... não querereis permitir que este
... não podeis acreditar nessas coisas, depois que por toda á vida
...
Os olhos muito abertos fixaram-no e o obrigaram a calar-se.
- Jovem, - disse Frederico - não é a tua vez de morrer.
O médico atirou-se de joelhos:
- Oh! meu grande imperador, sempre vos amei e venerei. Vós éreis
o símbolo daquilo que há de mais alto no mundo, o símbolo e o ápice
do espírito humano livre e sem grilhões. Vós tínheis descoberto os
enganos dos supersticiosos, éreis o imperador do espírito, do
espírito forte e corajoso. Não permiti que se diga que, estando na
encruzilhada entre a vida e a morte, tenhais cedido à superstição.
Não se diga que o maior realista de todos nós tenha tido necessidade
de confortar-se com a ilusão!.. . - E soluçava.
- Pobre tolo! - disse Frederico carinhosamente. - Aquilo que o
homem conhece de mais alto ... nós o chamamos Deus. Eu era,
pois, o teu deus ... E agora este deus está morrendo. Coisa
triste e dolorosa... a morte de Deus. Dizes bem... estou na
encruzilhada. Es médico -acrescentou num sopro - no entanto não
sabes ... o que seja morrer. Não é ... medo ... é o
início ... do ver. Ver... sem ilusões. Feliz daquele...
que o suporta... se é que haja quem o suporte. Vai, agora...
meu bom bobinho...
Prócida fugiu chorando do quarto onde o seu deus tinha ruído.
Os olhos arregalados fixaram-se no arcebispo.
- Berardo, velho amigo... a tua fidelidade... custou-te a
excomunhão. Dize-me ... podes ouvir uma confissão... e dar
uma absolvição válida?
- Sim, quando há urgência e não haja outro sacerdote - respondeu
o velho com voz trêmula. -Esta hora recompensa todas as minhas
dores. Posso confessar-vos e dar-vos o viático. Os votos de um
sacerdote sempre têm valor, por muito que ele possa ter pecado.
- Está bem, manda embora esses rapazes.
Os acólitos saíram em silêncio.
- Há quanto tempo estou aqui, Berardo?
- Há cinco dias, majestade.
- Cinco anos ... cinqüenta anos... - replicou Frederico. -
Podes ou não acreditar ... vivi toda a minha vida. Tudo que fiz
... pensei ... disse . . . dá-me um pressentimento de
eternidade. Por outro lado, só cometi um pecado: queria ser Deus.
- Não há outro pecado, meu filho. E o pecado de Adão. Tomar a
lei na própria mão, ser a lei. Ser como Deus. E o pecado dos
nossos ancestrais, o nosso pecado. Tu és Adão ... eu sou
Adão.
- Quis ... ser Deus - murmurou Frederico. - Desde pequeno,
quando era pobre ... e pedia a esmola de um pedaço de pão a
Palermo ... já então... queria ser poderoso... onipotente.
E quando ele me ajudou. o terrível velho ...
- Inocêncio III ...
- ... em troca odiei-o. Não queria... ser devedor a
ninguém... senão a mim mesmo. Desde o início ... odiei-o e a
tudo que ele representava. A ele e a seus sucessores ... eram uma
coisa só. Como podia... ser imperador .... se eu mesmo não
era o poder? Sempre ... sempre havia em Roma um velho ... que
me apresentava a lei ... e não era a minha lei. Um de nós dois
devia ceder. Mas ele era tenaz ... e quando morreu... veio outro
igualmente tenaz ... Cinco dias atrás pensava ... ;ter ganho a
batalha. Agora, porém ... olhe-me.... estou aqui, na minha
-sujeira... como aquele que a gente via em mim, .como Herodes
...
O arcebispo levantou o rosto lavado de lágrimas: diante dele Tuna
montanha de orgulho humano ruía.
- Não como Herodes - disse docemente - porque tu te arrependes.
Dois dias depois, rei Conrado chegou ao Castelo Florentino.
Dentro de uma armadura de ouro, era um jovem esguio, de cabelos
negros, olhos azuis e penetrantes, lábios finos e queixo bem
acentuado, um homem vigoroso e sadio.
Passada meia hora, tinha revogado quase todos os decretos do príncipe
Manfredo. A única coisa que aprovou foi a transladação do féretro
imperial para Palermo, onde o aguardava um magnífico sarcófago de
porfírio vermelho, escolhido pelo próprio Frederico. Em seguida
começou a estudar os documentos que o pai tinha assinado nos últimos
dias.
- Que é isto? - perguntou franzindo o cenho. - A Igreja deveria
reaver todos os seus bens, desde que se declarasse disposta a dar a
César o que é de César? E todos os prisioneiros deveriam ser
libertados, exceto os traidores verdadeiramente culpados? Não devia
estar em plena consciência, nosso glorioso pai, quando firmou estes
papéis.
- Estava lúcido como nunca - confirmou o arcebispo Berardo.
O sorriso de rei Conrado era perigoso.
- Felizmente para o Estado cabe-me decidir se a Igreja deve dar a
César o que é de César. E eu estabelecerei quais sejam os
traidores verdadeiramente culpados. Quem combateu contra nosso pai
deve morrer. E cuidaremos que os tesouros do Estado não se esvaziem
logo no início do nosso reinado.
- O sol do mundo pôs-se - disse o príncipe Manfredo.
- Em nossos corações não há ocaso - rebateu o rei Conrado.
Ordenaremos que nossos súditos orem ao grande espírito de nosso pai.
Ele era divino, e o que é divino é imortal. Cala-te, arcebispo!
Não pretendemos escutar tuas objeções dogmáticas. Um trono no
céu para nosso pai ... e a morte na terra a todos aqueles que são
culpados de traição! Estas são as nossas ordens.
Rei Conrado morreu um ano depois, em Púglia, do mesmo mal que
abatera seu pai.
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