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- Repeti minhas palavras! - ordenou o mulah. - Allah il Allah,
ve Mohammed rassul Allah!
A maior parte dos duzentos prisioneiros berrou alguma coisa que bem
podia ser, para quem não escutasse atentamente, a fórmula sagrada do
Islã, tanto mais que as primeiras três palavras eram bem
compreensíveis.
Há muito que os prisioneiros estavam de acordo nesse ponto: não era
pecado, para um cristão, confirmar que Deus é Deus. Mas
confirmar que Maomé era o profeta de Deus já era outra coisa, e
assim resmungavam sons inarticulados até chegarem à palavra Alá,
que pronunciavam em voz bem alta.
Em Túnis, onde tinham passado os dois primeiros anos de prisão,
aquela bravura acústica não lhes teria servido muito. Os eruditos
sacerdotes do sultão de Túnis não se deixariam enganar com tanta
facilidade. Mas lá longe ninguém pretendera que orassem assim. Na
capital os escravos eram escravos e, orassem ao Deus cristão ou a um
fetiche, pouco importava ao patrão.
Mas El Mohar não era Túnis. Era um minúsculo oásis com alguns
milhares de palmeiras, a fonte e o casr, isto é, a fortaleza, que
os prisioneiros estavam construindo em torno da nascente.
Setenta árabes da guarnição, sob as ordens do cádi Ornar ben
Tavil, vigiavam-nos e dormiam num pequeno número de cabanas de barro
à espera que se terminasse a fortaleza. Naturalmente, os
prisioneiros dormiam ao relento, e passavam a noite acorrentados entre
si. Cinqüenta deles tinham pago com a vida tal tratamento, mas os
restantes bastavam para terminar a fortaleza.
Não havia pressa. Os jauros francos tinham sofrido tal derrota que
passaria mais de um ano antes que pudessem voltar ao ataque: dissera-o
o cádi, que conhecia bem os francos porque seu avô tinha servido o
grande Saladino, e ele próprio combatera perto de El Dimiat (que
os francos chamavam Damiette) contra o mesmo melek francês que agora
tinha sido derrotado diante de Túnis.
De porte enorme aqueles jauros, mas delicados como mulheres. Alá
investia-os com o sopro ardente do deserto e eles murchavam como
flores. Até o rei franco não agüentara e acabara morrendo, e os
francos asseveravam que se havia tornado um marabu, um santo.
O mulah era certamente um santo homem, mas era também um pouco louco
ao pretender ensinar a verdade do Islã àqueles cães incircuncisos:
era como ensina-la aos camelos ou às cabras. De fato, a instrução
era tarefa dele e nada é impossível a Alá, embora o grande
Saladino tivesse dito que o cristão disposto a tornar-se muçulmano
é um mau cristão, e de um mau cristão não se pode esperar se torne
um bom muçulmano.
Observando o mulah naquela faina cotidiana, o cádi Omar ria-se
sózinho e mastigava tâmaras: já que os alunos não tinham respondido
bem, deviam repetir muitas vezes a fórmula.
- Allah il Allah, va va va va va va va Allah!
- Agora, milorde, descobri com quem se parece - murmurou um
prisioneiro compridão. -Estava procurando há muito.. Pois é,
certa vez, em Nottingham. vi uma galinha preta muito velha ...
- Cale-se, Robin.
- E tal qual uma galinha com barba ...
- Fique quieto, agora ele te olha ...
- Tomara! - resmungou Robin. - Mas ainda olha para ele.
Piers suspirou. Já duas vezes o velho sacerdote tinha-se aproximado
de Rogério convidando-o a pronunciar a fórmula sozinho. Rogério,
Deus o abençoe, tinha recusado, mas seus olhos estavam cheios de
medo e isso não tinha escapado ao velho. Este não podia recorrer à
força, porque o cádi precisava dos seus trabalhadores e não permitia
que fossem torturados; podia, porém, induzir o prisioneiro a dar uma
resposta que soasse como blasfêmia ou ofensa ao grande sultão de
Túnis e, nesse caso, o próprio cádi era obrigado a punir.
Robin tentara distrair a atenção do mulah, mas sem o conseguir.
Vendo o velho aproximar-se de Rogério e murmurar alguma coisa,
Piers mordeu os lábios. Eram ameaças ou talvez promessas: se um
método não servia, recorria-se a outro. Desde que o mulah
começara a se empenhar, pelo menos cinco ou seis prisioneiros tinham
abraçado o Islã. Em primeiro lugar deviam "abjurar os erros do
passado, a adoração do homem Jesus e os três deuses em lugar de
um", depois deviam recitar solenemente o credo da nova religião e a
primeira surata, isto é, o primeiro capítulo do Alcorão. Enfim
sujeitavam-se à circuncisão, obtendo com isso o direito de usar o
turbante e deixando de ser escravos, pois que nenhum "verdadeiro
crente" podia ser escravo. Depois eram enviados a Túnis ou ficavam
ali mesmo vigiando os outros. Deles podia-se fiar tranqüilamente,
já que ao desprezo dos prisioneiros cristãos opunham o pior ódio que
haja, o ódio do mesquinho que se sabe culpado.
Piers via como Rogério estava cansado e esgotado: uma semana antes
tivera um acesso de desespero, coisa bastante freqüente em El
Mohar, mas sempre perigosa. Era noite e, felizmente, dormiam mais
ou menos próximos, separados apenas por dois homens, de modo que
Piers pudera falar-lhe e acalma-lo, como nas outras vezes. Mas a
resistência de Rogério estava muito abalada e o velho mulah o sabia.
- Avançou um passo - murmurou Robin.
- Pela Santa Virgem, - gritou Piers -. força, Rogério!
O mulah virou-se despedindo chamas dos olhos:
- Quem te permitiu, jauro, falar? - servia-se da "língua
franca" e Piers respondeu-lhe do mesmo modo.
- Envergonha-te, mulah, - exclamou. - Dir-se-á que só sabes
conquistar à tua fé apenas homens meio mortos de cansaço e
privações. Manda dar a ele dupla ração e trabalhos leves durante
um mês, depois repete a tua pergunta e vais ver o que te responde.
- Cão, filho de um cão - explodiu o mulah. - Deves ter nascido
de uma meretriz e de um escravo de galé.
- O bom homem não tem lógico - murmurou Robin entre os dentes. -
Só se pode ser ou uma ou outra coisa.
Piers aprovou:
- Quando duas teses se contradizem, ou uma ou outra é falsa, ou
são falsas ambas, mas não é possível que ambas sejam justas. Não
fora à toa que haviam sido frades leigos do convento de São Tiago.
- Com impropérios ele não me convence.
O mulah, porém, não estava disposto a cedera
- Em nome de quem ouvi jurar ainda agora? - perguntou em voz muito
alta. - Não se trata de uma mulher? Todos sabem que os homens do
Franquistão tornaram-se mulheres desde que em suas práticas
idólatras chegaram ao ponto de adorar uma mulher ...
- Milorde, é uma cilada, cuidado, ele quer apenas...
- . . e inventar toda sorte de mentiras em relação à sua pureza
...
- Acabemos com isso! - disse Piers com voz estranhamente calma
adiantando-se, e num instante seus dedos apertavam o pescoço rugoso
do velho mulah. Meia dúzia de árabes tentaram interpor-se, mas
Robin foi-lhes por cima como um touro furioso e, tendo abatido um com
um formidável soco por estar vibrando um golpe de punhal no amo,
aceitou a luta com os outros. Não podia, porém, durar muito: dois
minutos depois o mulah estava livre, Piers e Robin acorrentados, e
trinta flechas ameaçavam o prisioneiro que tivesse a imprudência de
intervir.
O cádi avançou:
- O chicote para estes dois - declarou aborrecido. - Trinta golpes
para cada um. Vós, Kamil e Achmed, executai a sentença.
Mulah, terminastes com os outros?
Esfregando o pescoço, o sacerdote voltou a tentar convencer
Rogério, o qual, porém, estava bem mudado. Depois de ter
levantado a mão um gesto de orgulhoso mal sucedido, voltou entre os
companheiros.
- Muito bem! - gritou Piers. - Se tivesse comportado assim
Adão no paraíso terrestre!
Robin pôs-se a rir, enquanto o cádi ordenava:
- A este cinco golpes a mais - mas acrescentava em voz baixa: -
Cuidai de não os tornar incapazes de trabalhar.
Depois começou-se. O cádi fez assistir à punição os outros
prisioneiros, pois que trinta e cinco chicotadas não faziam perder
muito tempo e eram sempre um exemplo.
- Tolo, - disse Piers - quem mandou que te metesses na minha
discussão com o sacerdote?
Como resposta Robin deu um grunhido.
- Sinto ter-te envolvido neste negócio - continuou Piers; nisso o
chicote golpeou-o sibilando: era um chicote de pele de rinoceronte, e
ele apertou os dentes.
- Uma - contou o cádi. - E uma duas aludo-. Alguém acabará
mal - resmungou Robin. - Sabeis a quem
- Sei. Não é possível dizer o que ele disse e continuar vivendo.
Encontraremos um meio.
- Três - contou o cádi. - E uma quatro.
Quando chegou a dezoito, Piers gritou:
- Nada temei, Rogério. Não tenhais medo. Vamos bem! - e
desmaiou. Depois de mais três golpes desmaiou também Robin, fiel
ao patrão e sempre pronto a segui-lo.
- Basta assim - sentenciou o cádi. - Bater no camelo morto não
adianta. Levai-os à minha cabana. Decidirei mais tarde se devem
receber o resto. Abdallah, conduz os prisioneiros ao trabalho. Pela
Caaba, perdemos um tempo precioso. Jallah! Avante!
Voltando a si, Piers achou-se num velho divã desbotado. As costas
apoiadas em almofadas doíam-lhe terrivelmente e, sem querer, levou a
mão a trás e notou que estava enfaixado. Levantando 'os olhos viu o
cádi que, diante dele, num outro divã, tomava um refresco. E eis
Robin, um Robin preocupado e enfaixado, mas consciente que ...
por sua vez, tomava um refresco.
- Seja bendita Nossa Senhora - cumprimentou Robin.
Piers sorriu-lhe e voltou a olhar para o cádi.
- Tive de mandar chicotear-vos - disse este quase rudemente. Tu,
que foste comandante entre os jauros, compreenderás. Toma, bebe.
- Não és mau, Omar bem Tavil - disse Piers cortesmente antes de
tomar o copo. O refresco estava morno, mas nunca bebida alguma lhe
agradara tanto. - Se em tua presença alguém tivesse blasfemado
contra o que te é sagrado, tu também lhe terias ido ao pescoço.
- De fato, tenho sangue nas veias - replicou o cádi. - Ambos
fizemos o que devíamos fazer. Não terás o resto das chicotadas,
nem este teu homem, que te é fiel como o mulah ao Corão. Os mulah
acrescentou lentamente - têm vista curta. Conhecem uma só espécie
de verdade: a deles.
Ainda não era fácil respirar, porque as marcas das vergastadas
doíam ao menor movimento.
- Uma espécie de verdade - repetiu Piers. - Parece-me já ter
ouvido falar nisso. Cádi, crês que haja mais que uma verdade?
- Há duas, - ensinou o outro - a verdade da religião e a verdade
da filosofia. Se chegam a resultados diversos, provam a variedade do
mundo de Alá.
- É o êrro de Averróis - disse Piers.
- Ibn Roschd - confirmou o cádi. - Um sábio tunisino deu-me a
conhecer seus escritos. Mas tu estás enganado: Ibn Roschd nunca
cometeu êrro, nem seu mestre, o grego ...
-... Aristóteles, o qual, por seu turno, errou algumas vezes
também. Averróis, ou seja Ibn Roschd, como tu o chamas,
ensinava que há três verdades, não duas: a verdade do filósofo que
deve ser demonstrada, a verdade do teólogo que só precisa de
argumentos verossímeis, e a verdade do homem comum que crê no que se
lhe diz e fica satisfeito com isso.
- Alá! - exclamou o cádi. - Como sabes todas essas coisas? Eu
também sabia que havia uma terceira verdade, mas não conseguia
lembrar qual fosse. És tu também discípulo de Ibn Roschd? Creio
que no Franquistão há mestres da sua sabedoria ...
- Há, realmente, e o maior deles chama-se Sigério de Brabante e
ensina em Paris.
- Então é verdade! Seja louvado Alá! Finalmente as nações
infiéis começam a buscar a verdadeira sabedoria. Logo perceberão
que esta destrói todos os seus falsos dogmas, e que é uma loucura
opor-se à difusão da verdadeira fé. Lendo Ibn Roschd pensava:
pudessem conhecer todas estas coisas todos os infiéis! Abandonassem
seu êrro, e o mundo inteiro estaria reunido sob a bandeira verde do
profeta. E tu és discípulo daquele Siger ... como disseste?
- Sigério de Brabante. Não, cádi, não sou seu discípulo.
Mas durante anos fui aluno de um mulah cristão que tinha estudado
tanto Aristóteles quanto Ibn Roschd, descobrindo os erros de
ambos.
- Não é possível!
- Aquele mulah, que tinha escrito um kitab, um livro de ciência
chamado Summa contra Gentiles, convidou Sigério de Brabante para
um duelo espiritual na escola de filosofia em Paris diante do supremo
imane da cidade, o bispo Tempier. '
- E naturalmente foi derrotado.
- Tanto era o poder do seu nome e a fama da sua sabedoria que durante
muito tempo Sigério evitou o combate. Mas afinal teve de aceitar o
desafio para não ser ridicularizado pelos seus próprios discípulos.
Aliás, ele também era um lutador muito temido, e diversos eruditos
pensavam que no Franquistão ou mesmo em todo o Ocidente não houvesse
ninguém simil a ele.
Os olhos do cádi cintilavam.
- Sei que os eruditos combatem com o cérebro como eu combato com a
lança e a cimitarra. Embora não corra sangue, ou pelo menos não em
grande quantidade, é uma luta sem quartel. E como acabou?
- O combate teve lugar pouco antes que eu embarcasse com o exército
do grande rei. Durou sete horas sem intervalos e Sigério foi
derrotado tão decisivamente que o grande imane declarou nula e superada
a sua doutrina.
- Pela Caaba! Por todos os califas! Aquele homem não devia
conhecer a fundo as doutrinas de Ibn Roschd, senão teria vencido.
- Conhecia-as muito bem. Eu estive presente. Sigério combateu
uma boa batalha. Mas não há no mundo ninguém que em questão de
cérebro possa medir-se com Tomás de Aquino, que escreveu também
outro kitab que destrói a teoria averroísta, especialmente o
pensamento da existência de um único intelecto que se manifesta em
todos os homens. - Alá é grande! Então também aquele
mulah... Tomás, sabia, e tu também.
- Eu recolhi apenas as migalhas caídas de sua mesa - respondeu
Piers.
O cádi suspirou:
- É preciso matá-lo logo, aquele mulah Tomás, se queremos que o
Islã conquiste inteiramente o Franquistão: porém daria a minha
melhor égua para tê-lo aqui e poder interrogá-lo horas seguidas.
Estás em condições de caminhar?
- Piers levantou-se, sentindo dores lancinantes.
- Posso caminhar, cádi.
- E o teu homem?
Robin levantou-se sem visível dificuldade.
- Está bem - disse o cádi. - Hoje repousareis e amanhã
voltareis ao trabalho. Se me jurardes por tudo que vos é sagrado que
não fareis tentativas de fuga, esta noite, deixo-vos sem correntes.
- Juro - exclamou Piers - por tudo que me é mais sagrado que
tentarei fugir na primeira ocasião.
O cádi sorriu:
- Pena. Porém, se eu fosse teu prisioneiro, teria dito a mesma
coisa. E agora ide e não provoqueis de novo a cólera do mulah.
Naquela noite, estando acorrentados juntos, ficaram muito afastados
de Rogério para poderem conversar, mas ele sorriu para Piers e
esboçou uma comovente tentativa de persignar-se... sem conseguir
porque a corrente era demasiado curta.
- Fica cada vez mais fraco - murmurou Piers.
Robin aprovou:
- Temo que não dure muito.
Piers suspirou:
- Prometi cuidar dele, Robin, prometi ...
- Não fostes vós, milorde, a propor o ataque, nem devíeis
intervir.
- Que podia fazer? Rogério já estava na embrulhada.
- Quereis parar de fazer barulho, patifes? - grunhiu um dos
vigias. - As costas não vos ardem bastante? - Era um francês,
cristão renegado, a quem os prisioneiros, por tácito acordo, nunca
respondiam. Piers e Robin calaram-se, torturados pelas dores.
De não muito longe chegavam os ruídos a que já estavam acostumados:
a estrídula risada da hiena, que rondava cautelosamente em torno do
oásis, o rouco latido dos chacais, o patear dos cavalos sob os
compridos telheiros. Os cavalos eram muito preciosos para serem
deixados expostos aos perigos das noites tunisinas.
O pior era que cada novo dia diminuía as possibilidades de fuga. A
princípio, quando começaram os trabalhos em El Mohar, Piers
esperara. Eram em número três vezes maior que os vigias e, logo que
estivessem seguros de quem fiar-se, podia-se organizar uma revolta.
O trabalho esgotante e o alimento ruim e insuficiente enfraquecera logo
os prisioneiros e, ainda que a revolta tivesse bom êxito, que se
podia esperar? Entre eles e a Europa havia o mar, dominado pelos
velozes navios árabes. Na verdade, o mar não era muito distante,
mas era muito provável que tornariam a ser presos antes de se
apoderarem de uma embarcação nalgum porto. A rebelião e a fuga eram
punidas com a morte ... e com uma morte nada agradável.
Uma dúzia ou talvez duas de prisioneiros estavam prontos a tentar, os
outros não. Portanto, se não se podia dar origem a uma ocasião,
era preciso aguardá-la. Certamente era possível que o rei Filipe
de França, e talvez mesmo o príncipe Eduardo oferecessem o preço
do resgate, mas não se podia contar com isso. Que o príncipe
Eduardo combatia na Terra Santa tinha-se sabido vagamente, mas não
era fácil fazer chegar a ele a notícia da prisão do seu vassalo. O
rei Filipe, por outro lado, não era o rei Luís. Ainda que
conhecesse a sorte dos homens que no último e insensato ataque, antes
da grande retirada, tinham caído prisioneiros, podia ser que os
tivesse esquecido há muito. E por aqueles que não eram seus súditos
não mexeria um dedo. Alguns corajosos tinham conseguido evadir de
Túnis, entre ele o senhor de Murailles, cavaleiro nobre e
corajoso: mas teriam alcançado a França?
Era preciso esperar, e esperar com confiança que surgisse uma boa
ocasião. Mas Robin tinha razão: ainda que surgisse, Rogério
estava esgotado. Talvez fosse melhor ficar e morrer com ele. El
Mohar era um purgatório, mas o purgatório é preferível ao
tremendo e insuportável inferno de encontrar-se diante de Teodora e
ter de dizer-lhe que o seu cavaleiro não manteve a promessa e que
seu marido morrera como morreram seus irmãos.
Após cerca de três semanas a sentinela postada sôbre a primeira
torre do casr recentemente construido, deu o alarma da tempestade de
areia. Os vigias mandaram logo interromper os trabalhos e abrigaram os
prisioneiros atrás do muro, enquanto os árabes levavam os cavalos sob
os telheiros.
O cádi subiu à torre.
- Uma tempestade de areia, Jakub? Nesta estação?
- Olha tu mesmo, cádi. Poderia tratar-se de uma caravana
numerosa, mas não podem ser as caravanas dos Lagos Salgados, e esta
vem do norte...
- Do norte? Por Alá, teu pai deve ter sido um patife sem um olho
e tua mãe sem nariz. Aquilo que brilha entre as nuvens de areia é
metal. São inimigos!
- Como podem ser inimigos, cádi, se ninguém ...
- As armas! - berrou o cádi. - Acavalo, filhos de heróis,
eleitos de Alá, gloriosas espadas do Islã. Preparai-vos para o
combate, abortos leprosos, mancos sem miolos, filhos de camelos sem
corcova! Ali, o meu cavalo! Agora podia-se vislumbrar o inimigo:
sem dúvida eram cavaleiros francos, enormes cavalos couraçados e
homens gigantescos. Um deles agitava um pequeno tronco de árvore com
um estandarte triangular. Mas, embora tivessem levantado enorme nuvem
de poeira, parecia não fossem mais de cinqüenta. O cádi desceu
correndo enquanto Ali trazia-lhe o cavalo. Montou e reuniu seus
homens.
Jallah! - gritou. - Devem ser prisioneiros escapos, mas nós
estamos em maior número. Segui-me!
A massa de homens e cavalos saiu como um turbilhão pelo portão ainda
não acabado do casr, gritando, relinchando, bufando e agitando
armas.
- Não creio - disse Robin rindo.
Todos os prisioneiros olhavam para fora do muro, lobrigando o seu
destino que chegava couraçado e envolto em nuvem de areia.
- Azul - exclamou Piers estonteado. - Azul e ... por todos os
santos, a bandeira de Eduardo Plantageneto! Está distante mil
milhas ... é um sonho, um sonho.
- Bom demais para ser um sonho - comentou. Robin. - Talvez estas
cadeias possam servir para alguma coisa!
- Tens razão. - As correntes que os prendiam à noite não eram
uma arma desprezível. Estava por dizê-lo aos prisioneiros, quando
ouviu uma voz rouca e febril:
- San Severino! San Severino!
Voltou-se, e vendo Rogério lançar-se furiosamente sôbre o
mullah, correu em seu socorro, mas compreendeu que era tarde demais.
O santo homem, de fato, tinha extraído um longo e recurvo punhal,
enquanto um dos vigias seguiu-o brandindo o chicote. Sob o ímpeto de
Rogério o mullah caiu, mas sem largar o punhal e ...
Fora de si, Piers atirou-se sôbre ele como um raio, bateu-lhe no
rosto com o punhal e arrancou-lhe Rogério das mãos. Do vigia nem
se preocupou: Robin, embora enfraquecido, teria despachado três.
Continuou batendo no homem que blasfemara contra a mais pura das
criaturas e matara aquele que lhe havia sido confiado; tendo-se
levantado quando o mullah imobilizou-se, voltou-se para Rogério.
Achou-o sôbre os joelhos de Robin, cujo rosto dizia claramente não
haver mais esperanças. Depois viu que o punhal do mullah penetrara
profundamente no peito de Rogério.
Abaixou-se murmurando:
- Vitória! Vencemos!
A sombra de um sorriso perpassou pelo rosto de Rogério, aquele rosto
tão juvenil, quase infantil, e aproximando o ouvido aos lábios dele
Piers pôde ouvir o nome que era tão caro a ambos e, quase
imperceptível, o pedido de perdão. Seguiu-se a agonia, enquanto
Piers e Robin, feito o sinal da cruz, recitavam as orações dos
moribundos.
E Rogério expirou.
Eles continuaram a rezar, enquanto o terreno tremia sob seus pés.
Depois, levantando os olhos, viram o que em outros momentos os teria
enchido de alegria: um grupo de cavaleiros armados, montados em
cavalos couraçados, entravam no pátio, enquanto em torno deles os
prisioneiros gritavam e saltavam como loucos. E um cavaleiro alto e
elegante, numa armadura de prata, montado em magnífico corcel ...
- Príncipe! - exclamou Piers, enquanto as lágrimas se lhe
corriam.
Eduardo apeou-se e o abraçou. Ficaram longamente abraçados em
silêncio, até que Piers conseguiu dizer:
- Pensava que estivésseis em Acre. Como fizestes para achar-nos?
- Estava em Acre, de fato. Derrotamos os sitiantes e marchamos
até Nazaré. Estamos retirando-nos, mas o senhor de Murailles
mandou-nos uma mensagem ...
- Deus o abençoe!
- ... comunicando-nos que estáveis prisioneiros dos tunisinos com
grande número de outros cristãos. Então pensei que valia a pena
desembarcar e procurar-vos e partir uma lança em memória do rei
Luís. Fizemos alguns prisioneiros e estes nos revelaram onde vos
encontraríamos. Eis-nos aqui.
- A batalha está ganha?
Eduardo riu:
- Não foi uma batalha, nem mesmo uma escaramuça. Pensavam que
fossemos apenas cinqüenta porque não podiam ver o grosso que vinha
atrás de nós. A areia turbilhonava demais. Somos quinhentos, e
mais quinhentos cobrem a retirada até o mar. Oito grandes navios
estão ancorados para vós, lorde Rudde! Prendemos o chefe deste
grupo, se não de engano.
- O cádi Omar?
- Assim diz chamar-se. Maltratou-vos? Se o fez, por minha
fé...
- Não, príncipe, - respondeu Piers com um estranho sorriso. -
E um bom estudante de filosofia. Levai-o à França ou alhures,
para que possa aprender que a verdade é uma. E um bravo homem.
Há, porem, aqui três renegados e um sacerdote infiel...
- Peço perdão, milorde, - interveio Robin respeitosamente. Os
três renegados já chegaram a um lugar mais quente que a Tunísia.
- O mullah - prosseguiu Piers - blasfemou contra a Santa Virgem.
- Será um de turbante verde? - perguntou um jovem cavaleiro da
escolta.
- Sim. Derrubei-o para salvar o meu pobre amigo San Severino,
mas cheguei tarde.
- Vós o derrubastes? - perguntou o cavaleiro estupefato. - Com
os punhos? Dir-se-ia que lhe pisotearam o rosto cem cavalos. Está
morto, milorde, morníssimo. E se um dia tiverdes de combater comigo
num torneio, espero que useis uma lança sem ponta e apenas um décimo
da vossa força.
- Parece que não nos deixastes muito que fazer - disse o príncipe,
rindo. - E preciso dar de beber aos cavalos ... e penso que
também aos homens ... Depois acho oportuno largar este reino de
areia e de escorpiões antes que se acorde o sultão de Túnis. Que
tendes? Não estais feliz de rever a Inglaterra?
- Deus vos abençoe, senhor, pelo que fizestes - respondeu Piers.
- Mas em minha vida não há mais alegria possível, e preferiria ter
morrido.
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