VII. A Criação. Os Anjos.

A. A Criação.


1. Noções erradas sobre a Criação.

Depois de termos estudado o que a dependência do ser nos permite conhecer da sua Causa, de Deus, vamos estudar agora o outro aspecto dessa dependência. Vamos vê-la pelo lado das coisas; vamos falar da Criação.

Na nossa maneira de pensar sobre tudo quanto se refere a Deus, há, instintivamente, um certo antropomorfismo que precisamos de combater. E em nada, talvez, se faz sentir tanto essa tendência a imaginar a ação de Deus à imagem da nossa como quando se fala da Criação. Começarei por isso por afastar algumas noções erradas sobre a Criação, muito generalizadas, e é compreensível, mas absolutamente inadmissíveis do ponto de vista metafísico.

Quando nós fazemos qualquer coisa, servimo-nos sempre de materiais existentes; agimos enquanto estamos a fazê-la, e, terminada ela, deixamos de agir, pelo menos nesse campo; a coisa feita, regra geral, subsiste uma vez terminada a nossa ação, e independentemente dela. Quando ouvimos dizer que Deus fez o Mundo do nada, temos tendência a olhar o nada como a matéria de que Deus fez o Mundo; a pensar num período de ação criadora precedido e seguido de períodos de inação; e a considerar a conservação do Mundo como coisa natural, sem nada que ver com a sua Criação por Deus.

Nenhuma destas maneiras de ver é aceitável. O nada não pode servir de matéria, porque o nada não é; é o nome que damos ao não-ser. Com o nada não se pode fazer nada; do nada nada se pode tirar. Deus fez as coisas sem matéria preexistente; criou-as. Tornou existente o que não existia. É o que significa a expressão, imprópria, claro está, como todas as que dizemos de Deus: "Deus fez as coisas do nada".

Por outro lado, a ação de Deus é idêntica ao próprio Deus, e portanto imutável e eterna, isto é, exterior ao tempo. Antes da Criação é expressão sem sentido; porque não houve antes. Se o Mundo começou, houve, no tempo, um instante que nenhum outro precedeu; não faz sentido preguntar o que havia antes. Também não faz sentido preguntar o que Deus faz depois da Criação. A Criação não introduziu mudança em Deus. O Mundo, criado por Deus, é que muda, sendo a sua mudança contada pelo tempo; Deus, que não muda, e que nada relaciona de modo particular com nenhum instante da evolução do Mundo, não está sujeito ao tempo, e não há para ele depois da Criação.

Por outro lado ainda, o problema da Criação põe-se da mesma maneira, quer o consideremos no primeiro instante da existência do Mundo, quer noutro instante qualquer. É sempre o da existência dum Universo que não tem em si mesmo a sua razão justificativa; em qualquer período da sua evolução, esse universo não se basta; recebe de fora a sua existência; é criado.