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É semelhante o caso das decisões livres dos seres inteligentes. O
nome de presciência, dado ao conhecimento, por Deus, dos futuros
contingentes, pode induzir em erro, dando a entender que a ciência de
Deus é anterior, no tempo, às decisões das vontades livres. Na
realidade, até o prefixo pre é aqui empregado por analogia. A
ciência de Deus é exterior ao tempo, independente do tempo; o tempo
faz parte do que Deus conhece, não afecta o modo de conhecer de
Deus.
Devemos entender que as nossas decisões livres são verdadeiramente
livres e verdadeiramente nossas, e que, no entanto, fazem parte da
ordem providencial. O homem e Deus não são duas causas da mesma
ordem, que tenham de repartir entre si o seu campo de ação. Deus é
a origem de toda a causalidade, necessária ou livre. É ele que cria
o livre-arbítrio, que é livre porque Deus assim o quer. Conhece
as nossas decisões; conhece-as em si mesmas. E conhece-as como
livres; para supor que esse conhecimento as tornava necessárias,
teríamos de admitir que era errôneo.
Como acima disse dos efeitos do acaso, nós conhecemos os atos livres
praticados no passado sem que isso destrua a liberdade de quem os
praticou; e é assim porque os fatos passados nos são conhecidos, ou
podem ser conhecidos, no seu ser. Não podemos da mesma forma
conhecer os atos futuros porque só conhecemos o que é futuro nas suas
causas. Deus, conhecendo o ser de todas as coisas, pode conhecer o
futuro como nós conhecemos o passado, sem destruir o caráter de
liberdade das relações de certas causas com os seus efeitos.
Há mistério em tudo isto, que a explicação que dei não pode
dissipar totalmente? Sem dúvida. Mas não é mistério novo; é o
mistério da transcendência de Deus, que excede a nossa inteligência
mas não a contraria, o para fugir ao qual teríamos de cair na
contradição dum ser essencialmente dependente que, em última
análise, não dependesse de nada.
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