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A maneira de ver antropomórfica que apontei deve portanto ser posta de
parte. E a metafísica há-de encarar o problema de forma a não cair
nos mesmos erros; para o que poderemos dizer, com S. Tomás, que
a Criação é a relação de dependência do Universo para com
Deus, princípio do seu ser [64].
Como toda a relação, esta tem dois termos: o Mundo e Deus. O
Mundo é termo real, visto que o afeta realmente esta relação pela
qual recebe o ser. Em Deus, o termo é só de razão, porque
Deus, na sua imutabilidade, não é afetado em nada pela existência
do Mundo. Por outras palavras, nas coisas,
a Criação é a sua dependência de Deus; em Deus, a
Criação é o próprio Deus, olhado na sua vontade de que exista um
Universo sobre o qual a sua bondade possa irradiar.
A Criação não é portanto um intermediário entre Deus e o
Mundo. Não devemos no nosso espírito, e seja sob que aspecto for,
seriar: Deus, a Criação, o Mundo. Há só Deus, e o Mundo,
de que a Criação faz parte. Como todo o acidente pressupõe a
substância, a Criação, que é acidente por ser relação, longe
de se interpor entre Deus e o Universo, é até posterior ao
Universo do ponto de vista lógico [65],
só acerca dum Universo
existente se põe o problema da dependência do seu ser; conseqüência
esta, diz Sertillanges, "que S. Tomás deduz tranqüilamente, e
que tem feito estremecer muitos filósofos[66]".
Para falarmos com correção, não diremos portanto: o Mundo foi
criado; o que devemos dizer é: o Mundo é criado. O ser do Mundo
deriva dum principio exterior, o que nos fez afirmar a existência de
Deus; nisso mesmo consiste o fato de ser criado.
Fica assim formulada a questão em termos aceitáveis para a
metafísica, independentemente de todo o antropomorfismo na maneira de
encarar a Criação, quer do lado de Deus, quer do lado das coisas,
independentemente também de toda a ligação com o problema do começo
do Mundo.
Acrescente-se que criar é exclusivo de Deus. Todas as outras
causas estão determinadas a um efeito particular; imprimem à matéria
sobre que actuam esta ou aquela modalidade do ser. Dar o ser, em
absoluto, só pode convir à causa mais universal, a Deus.
Há causas eficientes que actuam na dependência doutras causas, como
o formão na mão do entalhador, e que por isso se chamam causas
instrumentais. Essas causas, produzindo o seu efeito próprio,
realizam o efeito procurado pela causa principal; o formão, por
exemplo, cortando a madeira, produz a obra de talha que o artista quer
realizar. É natural preguntar se uma causa secundária não pode
criar, ao menos como instrumento nas mãos de Deus. Mas nem isso.
O efeito da causa instrumental é dispor a matéria, pela sua ação
própria, para a ação da causa principal; na Criação, que não
supõe nada pre-existente, uma tal causa não tem nenhum papel a
desempenhar.
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