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Uma coisa pode ser conhecida na medida em que é, e de acordo com o
que é; como já vimos, a verdade transcendental é idêntica ao ser.
Mas nem todas as inteligências estão aptas a conhecer tudo. Nem
tudo o que é inteligível em si mesmo é inteligível para quem quer.
Resta por isso examinar o que é, do domínio do inteligível, que
constitui o objeto apropriado à inteligência do homem.
Seria um erro supor que o objeto da inteligência é a espécie
inteligível que o intelecto agente nela imprime. Por ser a espécie
originada a partir do objeto concreto, de que provém todo o seu
conteúdo formal, vê-se que conhece-la é conhecer o objeto que
representa. A semelhança do objeto, recebida no nosso espírito,
transmite-nos o que há no objeto; o que sabemos por seu intermédio
é verdade do objeto. O conhecimento, por isso, não pára na
espécie, mas prolonga-se, para além dela, até ao objeto.
Da sua maneira de operar, que exige o concurso dos sentidos,
conclui-se facilmente que a nossa inteligência é feita para
conhecer, por abstração, as essências das coisas materiais, ou,
mais precisamente, as suas qüididades, isto é, o que elas são pelo
fato de existirem segundo as suas essências. Essas qüididades
constituem por isso o objeto próprio do nosso conhecimento. São o
que podemos, diretamente, conhecer. Indiretamente, por intermédio
das qüididades, conhecemos as próprias essências dos objetos. A
qüididade é o que a coisa é, e a essência o motivo porque ela é
assim; a qüididade, por isso, manifesta-nos a essência.
A abstração, que está na origem de todas as nossas idéias, pode
ter vários graus. No primeiro, que é o das ciências físicas,
abstrai-se da matéria individual, mas entrando em consideração com
todas as propriedades direta ou indiretamente sensíveis que provêm da
existência na matéria. No segundo, põe-se de parte as qualidades
sensíveis, mas conserva-se a quantidade nas suas diversas
modalidades, número, dimensões, configuração, posição,
etc.; é o grau de abstração das ciências matemáticas. No
último grau, o da metafísica, abstrai-se mesmo da quantidade;
consideram-se só os conceitos mais universais, ou o que, em si
mesmo, é imaterial: o ser, o ato e a potência; as essências, a
causalidade, a inteligência, por exemplo.
Além do seu objeto próprio, a inteligência pode, pelo
raciocínio, e recorrendo a vários artifícios, chegar ao
conhecimento doutros objetos. As coisas concretas, em si mesmas, na
sua qualidade de coisas concretas realmente existentes, conhece-as por
reflexão sobre os sentidos. Conhece a coisa individual porque sabe,
intelectualmente, que os sentidos a conhecem. Assim, não só
conhece abstratamente a qüididade, mas sabe que ela é a do objeto
considerado.
Os universais são conhecidos indistintamente nas essências das coisas
em que se realizam; com clareza, com conhecimento da sua
universalidade, são conhecidos depois pelo raciocínio.
Certas noções simples de geometria, como o ponto, a linha, etc.,
são conhecidas pela negação de dimensões que existem nos seres
reais. O infinito numérico ou geométrico, como infinito potencial
que é [87], não é inteligível em ato; só nos é conhecido em
potência, pela consciência de que se pode sempre acrescentar a um
número ou prolongar uma linha ilimitada.
As nossas idéias, como idéias, são-nos conhecidas pela
reflexão, pela observação do modo por que pensamos quando pensamos
num objeto; e a reflexão é-nos conhecida por uma segunda reflexão
sobreposta à primeira, pela consideração de que podemos pensar no
nosso pensamento.
A si própria, a alma humana conhece-se reflectindo sobre si mesma
quando no ato de apreender o seu objeto. Conhece o objeto; por
reflexão, a operação que lho dá a conhecer; finalmente, como
causa necessária dessa operação, a sua própria existência e a sua
natureza imaterial.
Às formas puras, conhece-as por analogia. E a Deus por uma
analogia suprema, afirmando a Causa dos seres, e negando dessa Causa
todas as imperfeições destes.
Para tudo quanto conhece, o homem parte portanto das coisas
sensíveis. Quando se eleva ao que excede estas, utiliza um
raciocínio dependente do socorro das imagens. Tem de valer-se das
imagens, mantendo bem presente que elas são inadequadas. Daí
resulta um esforço que torna o seu caminho tanto mais difícil quanto
mais se afasta do concreto que lhe serve de ponto de partida. Somos
filhos da Terra, e, se podemos voar, cansamos depressa.
Como os olhos feitos para verem objetos pouco luminosos veem com
dificuldade quando a luz é intensa; o que, no entanto, torna as
coisas mais visíveis, o nosso intelecto, feito para utilizar o
inteligível que os sentidos lhe transmitem, sente-se fraco para
abordar o domínio do inteligível puro. Mas apesar do muito que nos
custa, só o esforço da inteligência para se ultrapassar satisfaz a
nossa sede de verdade. O que faz dizer a S. Tomás de Aquino que
"o conhecimento imperfeito que se pode ter das coisas elevadas é mais
desejável do que a ciência, mesmo perfeita, das coisas de menor
categoria [88].
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