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Há seres que, por essência, não podem existir senão formados de
um material preexistente. É o caso de todos os corpos materiais. Se
pensarmos numa bola, por exemplo, definimo-la como uma esfera; mas,
para existir uma bola, terá de ser feita de qualquer coisa, madeira,
marfim, borracha, seja o que for. Isto é, a própria essência dos
seres materiais exige composição dum material, capaz de ser utilizado
para o fim em vista, a que se chama matéria, e dum elemento
imaterial, de ordem intelectual, dum elemento pensável, que é a
forma. Entre a forma e a matéria há relação de potência e ato; a
matéria é o corpo em potência; recebida a forma, torna-se no corpo
em ato.
Mais uma vez lembro que as noções da metafísica devem ser concebidas
da maneira mais abstrata. A forma isolada não pode imaginar-se; é
um elemento irredutível à matéria, e a imaginação não a figura
senão realizada na matéria, sem a qual, se é uma forma material,
não pode existir.
Matéria e forma não são seres; são elementos constitutivos do
ser. Para me exprimir melhor, não são dois seres que, pela sua
associação ou justaposição, deem origem a um novo ser. Não.
Pela forma, a matéria, que podia constituir coisa muito diferente,
constitui o ser de que se trata; a forma é a idéia imanente que a
matéria realiza, a lei que rege a sua organização, e segundo a qual
existe e age. Entre a forma e a matéria há mais do que união; há
unidade essencial; porque a matéria, por si mesma, pode ser tudo,
mas não é nada, e a forma material, sem a matéria, não pode
existir realmente.
Forma e matéria são irredutíveis uma à outra. Isso é claro do
ponto de vista metafísico, porque o ato não pode reduzir-se à
potência, nem a potência ao ato. Mas pode ver-se também,
diretamente, por alguns exemplos, que esclarecem as suas relações
mútuas e os seus verdadeiros conceitos. Suponhamos uma construção
feita com pedras de qualquer jogo, de dominó, por exemplo, ou de
Mah-Jong. Este jogo chinês principia pela disposição das pedras
em duas camadas, segundo um quadrado a que se chama a "muralha da
China. Num dado momento, as pedras, que até aí tinham outra
disposição qualquer, formam a "muralha da China,; não se lhes
acrescentou nada material; mudou-se a sua situação relativa;
deu-se-lhes nova forma; e passaram a constituir uma figura nova.
Há outro exemplo mais frisante. É conhecida a frase de
Miguel-Ângelo, que dizia não ser ele quem fazia as suas estátuas;
elas já existiam no bloco de mármore, e não era preciso senão
libertá-las. De fato, a matéria da estátua já existia no
mármore, e, neste caso, na disposição com que ficava; mas a
estátua não, como qualquer pessoa compreende; faltava-lhe a forma,
a idéia que realiza. O paradoxo de Miguel-Ângelo é verdadeiro
materialmente; mas, formalmente, é falso.
Espero ter dado assim uma idéia clara da imaterialidade do conceito de
forma.
Os termos forma e matéria, como os tomei até aqui, têm valor
relativo. A muralha da China, por exemplo, é constituída pelas
pedras do Mah-Jong, que são a sua matéria; estas, por sua vez,
são feitas de bambu, ou de marfim, ou doutra qualquer matéria, a
que se deu uma forma determinada, e assim por diante. Mas não se
pode remontar assim ao infinito. Vendo que o que, para um determinado
ser, serve de matéria, é constituído por sua vez duma forma e dum
elemento material, havemos de chegar a uma matéria sem forma, que é
a matéria-prima da metafísica (ou a matéria, sem mais, porque a
palavra é tomada muitas vezes, em filosofia, com esse significado
especial). A matéria-prima, exige-o a sua definição, não
realiza, no estado puro, qualquer idéia, não está submetida a
qualquer lei particular de existência; é pura indeterminação, pura
potência, e, como tal, não pode existir isolada, já disse que a
pura potência não pode existir; só existe nos corpos que constitui
pelas formas que a determinam. Mas, como elemento constitutivo, é
exigida para limite da análise que procura, nos corpos, as leis de
existência e ação por que são regidos.
Já que falei na impossibilidade de remontar ao infinito,
impossibilidade que intervém em muitos outros raciocínios
filosóficos, convém precisar desde já os casos em que existe essa
impossibilidade. Vê-se facilmente que toda a série de objetos ou de
acontecimentos, dependentes essencialmente uns dos outros, dum ponto
de vista dado (isto é, de forma que a existência de cada um, desse
ponto de vista, depende da existência do anterior), deve,
necessariamente, ter um primeiro termo, quero dizer, um termo do qual
todos os outros dependem, e que não precisa de depender de nenhum.
Com efeito, supor que não existe esse primeiro termo obriga a supor
que não existe o segundo; supor que não existe o segundo a supor que
não existe o terceiro, e assim por diante. Negar o primeiro termo é
portanto negar a existência de toda a série. E a conclusão não se
altera, por muito que aumentemos o número de termos intermédios.
Há uma anedota popular que ilustra bem o que acabo de dizer. Todos a
conhecem. É a dum grupo de homens que, para chegar a qualquer coisa
que tinha caído ao fundo dum poço, se suspenderam uns dos outros em
cadeia, pendurando-se o primeiro da beira do poço, o segundo das
pernas do primeiro, etc. A certa altura, disse o primeiro:
"Segurem-se bem, rapazes, que eu quero cuspir nas mãos". É
evidente que, apenas ele largou as mãos da beira do poço, caíram
todos à água; é evidente também que o mesmo sucederia qualquer que
fosse o número de homens. A série tinha necessariamente de começar
por um homem suspenso, não doutro homem, mas da beira do poço.
Pelo contrário, não há impossibilidade lógica em remontar ao
infinito numa série de coisas encadeadas acidentalmente no tempo, isto
é, que se sucedem umas às outras, mas de forma que cada uma pode
manter a sua existência (do ponto de vista considerado), suprimida a
anterior. É o caso de supormos que cada homem dos que dei para exemplo
queria tirar uma coisa do poço, tão pouco fundo, admita-se, que um
só homem, suspenso da borda, bastava para atingir a água. À vez,
os homens vinham, seguravam-se à beira, tiravam do poço o que
queriam tirar, o saíam para dar lugar a outro. Aqui, é
indiferente, logicamente, que a série tenha ou não um primeiro
termo; a sucessão de homens podia não ter tido começo; isso não
implicaria a impossibilidade da existência de qualquer termo da
série.
No primeiro caso há uma dependência termo a termo que exige um apoio
inicial, sem que essa exigência seja alterada pela multiplicação do
número de termos; no segundo, cada termo depende individualmente
desse apoio.
Voltando à matéria-prima. Já disse que ela é pura potência, e
só como tal se pode definir. É a indeterminação, a
possibilidade. Não podemos conhecê-la diretamente; só a
conhecemos como substrato das coisas, em que existe informada, isto
é, determinada pelas formas. Não é possível dizer dela nem o que
é, nem como é, nem quanta é, segundo uma frase célebre de
Aristóteles, por causa de sua indeterminação. Só sabemos que
pode ser tudo, na ordem dos seres materiais; que pode, note-se, em
si mesma, o que não quer dizer que tenhamos na nossa mão os meios de
a tornar em tudo.
Salvo o caso da Criação, portanto, devemos supor a matéria
preexistente a qualquer coisa produzida de novo, e preexistente, não
pura, mas determinada pelas formas dos corpos que anteriormente
constituía.
E a forma do novo corpo? Deveremos também supô-la preexistente?
Preexiste em potência, na matéria. É outra maneira de dizer que a
matéria é pura potência: existem nela, em potência, as formas de
todos os seres puramente materiais; ou, por outras palavras, pode,
como elemento passivo, dar origem a todas elas. Por outro lado,
quando é obra duma ação inteligente, preexiste também, como
exemplar, na inteligência daquele que a imprime à matéria. Assim,
no espírito do escultor, antes de começado o seu trabalho, existe a
forma, a idéia, o exemplar, da estátua que vai extrair do
mármore. Mais adiante voltaremos a este assunto.
A matéria-prima da metafísica pode aproximar-se de noções à
primeira vista muito afastadas dela. Por exemplo (Sertillanges
insiste nesse ponto), da noção do devir em certas filosofias; de fato,
como adiante veremos, ela é o substrato e o princípio real da
evolução das coisas. Ou da noção do espaço em algumas teorias físicas,
que não consideram o espaço geométrico, abstrato, mas um espaço
físico, real, sede de determinadas propriedades, potencial e
receptivo como a matéria-prima. Pelo contrário, não deve ser
confundida com a matéria dos físicos. A física entende por esse
nome os últimos constituintes conhecidos dos corpos; mas esses
constituintes são organizados, têm maneiras de ser suas, formas,
numa palavra; não são a matéria-prima, mas compostos de forma e
matéria; para a metafísica, são matéria-segunda.
Também na ordem da essência pode haver ato puro, isto é, são
possíveis seres em que não haja outra composição de ato e potência
senão a de essência e existência de que atrás falei. Tais seres
serão imateriais, visto que, por definição, não têm elementos
que possam tornar-se em outros seres. É costume chamar-lhes formas
puras, para os distinguir do ato puro, em absoluto, em que nem mesmo
há composição de existência e essência. Mas a palavra forma não
é aqui tomada no seu sentido próprio; é preciso não o esquecer,
para evitar o perigo de se olharem as formas propriamente ditas como
verdadeiros seres imateriais, associados, simplesmente, a uma
matéria, à qual não sejam intrinsecamente unidos.
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