3. A transcendência da metafísica.

O fato da metafísica assentar diretamente na observação da realidade, de toda a realidade, e se orientar na sua estrutura só pelos seus próprios princípios, dá-lhe ima independência tal que se pode, sem exagero, falar duma transcendência da metafísica relativamente às ciências naturais.

As conclusões da metafísica encontram-se muitas vezes som as hipóteses das ciências naturais. Ás vezes, há oposição; e então, como já disse, a metafísica aponta a hipótese como impossível, ou a pretensa conclusão como errada, e, se a sua sentença não é respeitada, aguarda pacientemente que os fatos, no próprio campo da ciência de que se trata, a Tenham confirmar. Outras vezes não há oposição. Mas isso não basta para se poder dizer que a metafísica confirma a Hipótese; para que assim fosse, seria necessário que a hipótese fosse a única compatível com a metafísica, isto é, no fim de contas, a única não-contraditória com os princípios gerais. compreende-se que são muito poucos os problemas que só possam ser resolvidos duma maneira, em face da metafisica. Por isso em todas as ciências, as hipóteses sucedem-se, as conclusões apressadas vão-se rectificando, e a metafísica, que, possivelmente, consentiu em muitas ou todas, fica sem alteração, e não é atingida na sua autoridade por tantas mudanças.

A mecânica clássica, por exemplo, explicava a queda dos corpos pesados por uma atração da Terra. A mecânica relativista explica-a por uma modificação das propriedades do espaço na vizinhança da Terra, pelo que ela chama uma curvatura do Universo nessa vizinhança. Que importa à metafísica? Em ambos os casos, o fenômeno notado tem uma causa; nenhuma das hipóteses contradiz as suas leis; considera-as por isso ambas como possíveis, e deixa que conhecimentos adquiridos pela experiência e a sua interpretação guiem os físicos na resolução do problema. Como este, poder-se-iam citar exemplos tirados de todas as ciências particulares.

Foi por terem esquecido o que acabo de dizer, por não terem compreendido que possível não quer dizer necessário, que os escolásticos do século XVII comprometeram gravemente o prestígio da metafísica, empenhando-a na defesa da física aristotélica. As teorias físicas de Aristóteles não contradiziam a sua metafísica; mas também a não contradiziam as da física moderna, bem compreendidas, e despojadas do que não passava de opiniões filosóficas dos seus autores. No entanto, havia muitos séculos que não se assistia a uma tal mudança de hipóteses no terreno científico. Não que a ciência tivesse estagnado durante a Idade-Média; a química, em particular, tinha progredido notavelmente com as experiências dos alquimistas. Simplesmente, os progressos tinham-se dado num ponto de cada vez; e, no principio da Idade Moderna, atingiam ao mesmo tempo a astronomia, a física e a biologia. Parecia o ruir dum mundo. Os escolásticos, esquecidos de que a derrocada duma teoria física não afecta a metafísica, quiseram defender hipóteses que os fatos condenavam, e provocaram assim a crise da metafísica que queriam, precisamente, evitar.

Nós, que temos a lição do que com eles se passou a confirmar o que a esse respeito diz o estudo teórico das relações entre a filosofia e as ciências naturais, não devemos cair nunca no mesmo erro. Devemos olhar com visão larga o progresso das ciências experimentais. Manter firme, no que é certo, a nossa posição, contando com o tempo para a confirmar. Mas não atribuir à filosofia opiniões insuficientemente fundadas, em terreno que pertence às ciências estudar.

Deve confessar-se que a atitude de alguns escolásticos, Neste particular, parece às vezes revelar um certo medo. Quando assimilaram uma teoria física, e verificaram que ela não contradiz a metafísica, receiam que essa teoria seja substituída por outra, no estudo da qual podem encontrar sérias dificuldades de ordem filosófica. É humano e compreensível, tanto mais que as dificuldades, à primeira vista, aparecem ainda avolumadas pela natural tendência dos cientistas a pôr em relevo as conclusões sensacionais, quantas vezes apressadas [95] das suas teorias.

Mas devemos procurar, no amor pela verdade, o alento necessário para estudar hipóteses que são, pelo menos, esforços para a atingir, e rejeitar sem hesitações as que os fatos vierem a condenar, por muito trabalho perdido que isso apresente. Felizmente, o exemplo do Cardial Mercier frutificou, e, hoje, os tomistas dignos desse nome procedem como quem não tem medo das ciências experimentais, por estar tão convencido como S. Tomás da unidade da verdade.

A transcendência da metafísica explica e justifica a sua pretensa esterilidade. Muito se tem acusado a metafísica de, durante tantos séculos que foi a preocupação dominante dos sábios, não ter dado origem a nenhum progresso notável de ordem técnica. A razão é que a metafísica não é ciência utilitária. É um esforço de compreensão, de adaptação das grandes linhas do nosso pensamento às grandes linhas da realidade. Útil, fecunda, é-o a metafísica, como disciplina da inteligência que se habitua a pensar bem, como fonte da serenidade que liberta o espírito, como base para uma vida verdadeiramente humana em que todas as atividades se sujeitam à ordem traçada pela Natureza, como escola de confiança reflectida no valor do nosso conhecimento, que é afinal o fundamento de todas as ciências. Útil, é-o ainda mais a metafísica como realização do destino mais elevado do homem no campo da atividade natural; porque o corpo existe para o espírito, e o espírito, não só pela Graça, mas pela natureza, existe para Deus. Mas utilitária não é; no campo da prática, uma ciência parcelar, mas especializada, é mais útil do que a metafísica. Como já disse, são muito poucos os problemas concretos que a metafísica permite resolver sem necessidade de estudos experimentais especializados que não são da sua competência. A metafísica não pode substituir as ciências físico-químicas na resolução das questões técnicas, nem a matemática na expressão quantitativa das relações entre os fenômenos observados. A metafísica é uma sabedoria. Censurá-la por não dar frutos de aplicação imediata é mostrar disso um desconhecimento completo.