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A divisão em ato e potência afeta o ser, como disse, em todas as
suas modalidades. Passemos agora ao estudo dessas modalidades, isto
é, das diferentes maneiras por que o ser se manifesta.
Vejamos, em primeiro lugar, os seres propriamente ditos, os seres
autônomos, que existem em si mesmos, e por si mesmos, o que não
quer dizer que existam de per si. Designam-se por substâncias.
São os seres cuja lei própria, cuja essência, não exige que
existam noutro ser, a que simplesmente acrescentem uma nova
determinação. Serão substâncias, por exemplo, um homem, um
animal, uma planta, um metal. Só as substâncias existem, na
plenitude do termo, e é nelas que pensamos instintivamente quando
falamos em seres.
Mas nem todos os seres são substâncias; há outras maneiras de ser:
as das determinações secundárias das substâncias. Essas são os
acidentes, menos seres do que seres doutro ser, seres cuja essência
exige que existam numa substância, a que, para usar o termo exato,
são inerentes. Como exemplas, podem dar-se as qualidades, as
dimensões, etc.
Os acidentes são, para a substância, atos secundários; a
substância desempenha, para com eles, o papel de potência.
A noção de substância corresponde, no tomismo, ao númeno de
Kant, mas sem a obsessão de não sei que propriedades encobertas,
verdadeiros acidentes ocultos sob os acidentes que podemos conhecer,
que é característica do Kantismo. Os acidentes que conhecemos
exigem a existência duma substância que os suporte, digamos assim.
Não são como que uma casca, que encubra a substância e a oculte aos
nossos olhos; são as determinações secundárias da substância.
Não podemos afirmar que a substância não tenha outros acidentes que
não conhecemos; mas, pelos acidentes, alguma coisa conhecemos
verdadeiramente da substância, que eles exprimem, não escondem. À
substância compete existir e servir de sujeito aos acidentes; quando
conhecemos um acidente, sabemos que a substância que afeta existe, e
apresenta esse acidente pelo menos; o conhecimento que dela conseguimos
assim, se é indireto e incompleto, não deixa de ser verdadeiro,
como acima fiz notar acerca dum caso análogo.
Nos seres materiais, chama-se forma substancial aquela que determina
a substância que uma dada porção de matéria constitui; a que se une
diretamente à matéria-prima, e confere a existência ao corpo
considerado, visto que só à substância compete propriamente
existir. São formas acidentais as que acrescentam à substância as
suas determinações secundárias. Num dado ser não pode haver senão
uma forma substancial, é claro; a mesma matéria não pode constituir
simultaneamente dois seres materiais, com leis próprias diferentes.
As formas acidentais, pelo contrário, são tantas quantas as
particularidades que apresenta o ser considerado.
É muitas vezes difícil distinguir, na prática, o que é forma
substancial do que é forma acidental. À metafísica só interessa,
nesses casos, saber que há formas substanciais, sejam ou não aquelas
que a experiência parece indicar. Com efeito, precisando as formas
acidentais, por definição, de ter por suporte uma forma
substancial, e não sendo possível remontar ao infinito, como disse
acima, é necessário chegar sempre a uma forma substancial, sob pena
de termos de negar a existência do ser de que tratamos.
A matéria-prima, a que já chegámos como elemento constituinte
exigido pela essência dos seres materiais, aparece-nos também como
substrato permanente e necessário da evolução universal. Nós vemos
que os corpos se transformam uns nos outros. É claro, por exemplo, o
caso da assimilação dum alimento por um ser vivo, ou o da
decomposição dum cadáver depois da morte. Ora, a transformação
exige que alguma coisa do primeiro corpo passe para o segundo. Se é
completa, substancial, como nos exemplos que apontei, só transita
dum para o outro corpo a matéria despida de qualquer forma, a
matéria-prima da metafísica.
Como conseqüência, devemos concluir que as formas puras não podem
transformar-se substancialmente. Podem adquirir ou perder certas
determinações acidentais; mas, como substâncias, existem, ou não
existem. Não há nelas nada que possa passar para uma substância
diversa.
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