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Sabemos, também, por conhecimento direto, que existem coisas
distintas de nós, que se nos revelam pelos sentidos. É o que podemos
chamar o princípio de realidade.
Note-se que do que temos conhecimento imediato é da existência do
mundo exterior; só pela reflexão é que sabemos que tomamos contato
com ele pelos sentidos. Nunca, na sua existência, o homem se vê
perante o problema de procurar uma explicação, uma origem, para as
suas sensações, explicação fornecida pela hipótese dum mundo
exterior. Pelo contrário, o não-eu impõe-se-nos, desde o
princípio da nossa vida, antes de mais nada; invade o nosso eu, de
que só pela reflexão temos conhecimento. Só mais tarde,
estudando, por muito rudimentarmente que seja, a elaboração das
nossas idéias, é que reconhecemos que as coisas distintas de nós
agem sobre os sentidos, e que é por intermédio da sensação que
chegam à inteligência. Mas os sentidos, como a inteligência, são
faculdades nossas. Reconhecer que, em nós, o conhecimento passa
pelos sentidos, não é pôr os sentidos como intermediários entre
nós e as coisas; só seria assim se limitássemos arbitrariamente o
nosso ser à inteligência especulativa.
Nós, portanto, sensíveis e inteligentes, sabemos que existem
coisas exteriores a nós por meio das faculdades que nos permitem
estabelecer contato com elas.
Não pretendo dizer que os sentidos nos doem da realidade exterior um
conhecimento exaustivo. Não; dão-nos conhecimentos verdadeiros,
mas incompletos, mais ou menos confusos, como quando, por exemplo,
sabemos que alguém se aproxima, e que é um homem, mas não sabemos
que homem é. É certo, também, que os sentidos nos enganam às
vezes: são as conhecidas ilusões de ótica e de acústica, as
alucinações, etc.; mas essas ilusões podem descobrir-se, porque
os sentidos se fiscalizam mutuamente, e existe, como contraprova, o
testemunho dos sentidos dos outros homens. Nada disso invalida a
veracidade essencial do conhecimento que temos, pelos sentidos, da
existência dum mundo exterior. Pelo contrário; se é o confronto
com a realidade que nos dá a conhecer a existência das ilusões!
A existência desse mundo distinto de nós é uma evidência, uma
verdade que conhecemos por natureza. Ninguém pode, por exemplo,
duvidar, duvidar verdadeiramente, não por palavras, de que foi
criança, e teve pais que o geraram e criaram, mestres que o
educaram, amigos que o ajudaram e acompanharam; de que existem livros
que lê, alimentos de que se sustenta, ar que respira. Duvidará,
de fato, algum filósofo idealista, da existência real do papel em
que escreve, dos discípulos a quem se dirige, dos adversários que o
contradizem e com quem discute? Não, visto que pega no papel,
escreve para os discípulos, lê os adversários, e procura
responder-lhes.
A dúvida dos idealistas a respeito do princípio de realidade é
ilusória, e devida a que a evidência desse princípio resulta duma
intuição sensível, não do reconhecimento duma lei do pensamento,
como a do principio de contradição. Porque restringiram,
arbitrariamente, toda a evidência à evidência de ordem lógica,
consideram a realidade das coisas como não-evidente; e como não
podem fundá-la no principio lógico de não-contradição, têm de a
declarar indemonstrável. É um erro que provém da sua posição
inicial, que não olha o homem como a única entidade real a
considerar, mas o encerra numa faculdade isolada, artificialmente, de
todas as outras.
Recorde-se que dizer da existência do mundo que é evidente não quer
dizer que seja necessária. Não é evidente que o mundo tem de
existir; pelo contrário. O que é evidente é que, de fato, ele
existe.
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