|
O conhecimento intelectual é de outra ordem. Tem por objeto o
universal, na sua generalidade. Não atinge o ser concreto,
material, mas a forma imaterial desse ser, ou melhor, a essência que
ela lhe confere; e atinge-a precisamente na sua qualidade de tipo
geral de ser, reprodutível na matéria em número ilimitado de
exemplares. Nos homens, distingue o homem; nas coisas boas, a
bondade. Conhece as maneiras por que, nos diferentes seres
concretos, se manifesta o ser multiforme. Por isso a atribuímos a
uma faculdade com sede na alma só, capaz, por ser imaterial, de
receber o universal sem, com fazê-lo, o par- ticularizar.
A heterogeneidade do conceito intelectual e da imagem sensível tem
chamado a atenção dos filósofos desde os tempos da antiga Grécia.
Com exceção dos pre-socráticos da escola de Demócrito, e de
alguns modernos, que reduzem toda a atividade intelectual a um
movimentar de imagens, todos os filósofos têm reconhecido a
diferença fundamental entre o objeto da inteligência e o do
conhecimento sensível. Os idealistas de vários matizes explicam-na
atribuindo às idéias origem absolutamente independente dos sentidos.
Para Platão, as nossas idéias são recordação do que a alma
conheceu numa vida separada do corpo, anterior ao nascimento.
Descartes admitia que as idéias são inatas; o homem já nasce com o
espírito povoado pelas representações intelectuais dos objetos. O
seu discípulo Malebranche entendia que a inteligência vê em Deus
tudo quanto conhece. Para Kant, mais subtil, é a inteligência que
cria a parte formal do conhecimento, e que a veste à matéria
fornecida pelas percepções brutas da sensibilidade. No fundo de
todos estes sistemas, ou está a confiança na veracidade divina como
única garantia da conformidade das nossas idéias com as coisas
conhecidas, ou a negação, como no de Kant, de qualquer
conformidade entre as duas coisas.
Simplesmente, o idealismo, nascido do desejo de evitar urna
dificuldade de que se reconhece a importância, e que não se sabe como
resolver, não tem nenhum fundamento sólido. Tudo quanto podemos
observar nos mostra que o que a nossa inteligência conhece lhe vem por
intermédio dos sentidos. É incontestável que progredimos
intelectualmente com a experiência, com a observação do que se passa
em nossa roda, e de que temos conhecimento pelos sentidos. É
incontestável também que podemos aprender com os outros; o mestre
comunica ao discípulo a sua ciência, pelas palavras que lhe diz,
pelos exemplos sobre que atrai a sua atenção. Em tudo isso, os
sentidos servem do intermediário. Como contraprova, serve o fato de
num homem a quem falta completamente um sentido faltarem todas as
idéias relacionadas com esse sentido; a um cego de nascença, por
exemplo, não só faltam as imagens das cores, mas também a noção
do que seja uma cor. Nada nos permite julgar, portanto, que as
idéias tenham origem independente dos sentidos.
De resto, o idealismo não evita a dificuldade; não faz mais do que
deslocá-la. Dispensa-nos de explicar a maneira por que o
conhecimento sensível serve de veículo ao conhecimento intelectual,
apesar da disparidade dos dois; mas torna impossível justificar a
união, no homem, da alma intelectual a um corpo sensível.
Realmente, a uma alma capaz de realizar sem o corpo o seu ato mais
perfeito, e da maneira que lhe é mais adequada, para que serviria
unir-se ao corpo? Se quiser salvaguardar o fato do nosso conhecimento
progredir com a experiência, o idealista terá de admitir que as
idéias das coisas existem em nós como que ligadas por causa da união
ao corpo, e são libertadas pela ação do conhecimento sensível;
como compreender então esta coisa contraditória da união ao corpo,
que é natural no homem, impedir a alma de conhecer idéias que nela
existem por natureza também? A não se querer simplesmente deixar
estas preguntas sem resposta, ou admitir que a união da alma ao corpo
é por conveniência deste, o que é subordinar o superior ao
inferior, a forma à matéria, o subsistente ao efêmero, tem-se de
cair em hipóteses como a de Platão, duma vida anterior de que não
temos nenhuma consciência, e em que a alma, ainda sem corpo, cometeu
faltas a que a união ao corpo serve de castigo.
É mais simples, e mais conforme com a observação, dizer como
Aristóteles que a inteligência, no começo da vida, é "uma
prancheta em que não há nada escrito" [84], e recebe todas as
idéias por intermédio da sensibilidade. O que os escolásticos
exprimiram por este aforismo clássico: "Não há nada na
inteligência que primeiro não estivesse nos sentidos".
|
|