3. A bem-aventurança natural.

Em que pode consistir a bem-aventurança do homem?

O homem, por natureza, é um ser intelectual, e a inteligência é feita para o universal, para o ser, sem restrições, A capacidade humana, pela lado intelectual, é assim, de certo modo, ilimitada.

Nenhum bem concreto nos pode por isso satisfazer completamente, e constituir para nós a bem-aventurança. Possuído um tal bem, a inteligência não tardaria a mostrar-nos as suas deficiências, as suas limitações; incitar-nos-ia a procurar outros bens mais perfeitos, e assim sucessivamente. Só o Supremo Bem pode satisfazer o nosso espírito, que, não encontrando nele defeito, vendo nele tudo quanto procura, fica em repouso na sua contemplação. Não se diga que as outras faculdades, insatisfeitas, podem perturbar o nosso contentamento, uma vez obtida a contemplação de Deus; em Deus existe, de maneira eminente, tudo quanto há de bom, de positivo, nos bens criados; conhecido Deus, o homem encontra todos os bens que pode desejar, não, é certo, na forma imperfeita que tomam Neste Mundo, mas excedendo-a e ultrapassando-a infinitamente.

A bem-aventurança do homem, no essencial, no que é necessário e suficiente, está por isso no conhecimento de Deus; o que não impede que a posse deste bem possa ser acompanhada da de outros bens secundários, como parte acessória da bem-aventurança.

Esta doutrina de S. Tomás sobre o fim último do homem não deve atribuir-se a sugestão das idéias cristãs; resulta rigorosamente das conclusões da sua metafísica. Já Aristóteles, pagão e anterior ao cristianismo, e portanto insuspeito de qualquer sugestão, guiado unicamente pela filosofia, fazia consistir a bem-aventurança humana no conhecimento de Deus.

No entanto, porque somos homens, a bem-aventurança que podemos conseguir pelos meios naturais é relativa, é bem-aventurança à maneira humana. Neste mundo, já sabemos como é trabalhoso e imperfeito o conhecimento que obtemos de Deus. E, para mais, porque o trabalho do espírito é constantemente interrompido pelos acasos da nossa vida material, sujeita à ação das coisas que nos cercam, a contemplação é inevitavelmente limitada, reduzida a raros e curtos momentos. Na vida da alma separada, nada pode interromper a contemplação do divino. Mas teremos sempre de conhecer Deus por espécies, em conceitos, como que num espelho, e portanto de maneira imperfeita e inadequada.

Só pela Graça poderemos conseguir uma bem-aventurança absoluta, uma bem-aventurança à maneira divina. Pela chamada luz da Glória, que é a última perfeição da Graça, Deus assemelha-nos, de certo modo, a si. Sobreeleva a nossa inteligência de forma a podermos conhecê-lo por essência, e não por espécies; face a face, e não num espelho. Teremos então dele um conhecimento, senão exaustivo, porque esse só é possível ao próprio Deus, pelo menos direto, imediato. Mas o estudo da bem-aventurança absoluta, única que, de fato, interessa, visto que Deus a quis acrescentar à outra, e ela a excede como Deus excede o homem, compete à teologia e não à filosofia.