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Outra coisa devemos exigir da verdadeira filosofia: não pode estar
dependente de modas nem de fantasias. Para ser verdadeira, deve
corresponder aos fatos; e, se estes não variam, as suas conclusões
não podem mudar também. Tem de ser perene; a expressão
atribuí-se a Leibniz, mas o ideal é de S. Tomás e de toda a
Escola.
As suas conclusões devem poder ser encontradas por todos os que
raciocinam corretamente. Deve para isso fundar-se nos princípios
naturalmente evidentes, e nos fatos mais gerais, verificados, sem
sombra de dúvida, pela experiência; os seus raciocínios devem ser
feitos de acordo com a lógica mais exigente. Se assim for, as suas
teses têm base larga e estrutura sólida; não têm nada a temer do
tempo.
Não deve portanto cada filósofo procurar construir um sistema seu,
diferente dos daqueles que o precederam, e, quantas vezes,
desprezando todo o material que o trabalho dos outros acumulou. A
verdadeira filosofia é, como as outras ciências, um corpo de
doutrina constituído, que progride com o tempo pelo trabalho de
todos. Está bem que se verifique o rigor dos raciocínios já
feitos; que se procurem novas maneiras de chegar às mesmas
conclusões; que se queira, nos campos inexplorados, criar doutrina
nova. Mas não se deve fazer tábua rasa de tudo o que existia, para
recomeçar de novo, perpetuamente num trabalho de Sísifo. Este
personagem mitológico foi, como todos sabem, condenado a rolar até
ao alto duma ladeira uma enorme pedra, que, apenas ele a largava,
rolava outra vez pelo seu peso até ao fundo; e a recomeçar
eternamente o mesmo esforço, sem resultado e sem esperança. Não é
isso o que nós queremos.
Não quero dizer que, do que os outros filósofos fizeram, nos
devemos limitar a aprender as conclusões ou a decorar os raciocínios.
Não. Os raciocínios de que eles se serviram, devemos tê-los
pensado também; mas nada impede que nos deixemos guiar pelo trabalho
dos outros, como em matemática não nos negamos a seguir uma
demonstração que outro fez. O auxílio dum Mestre, na aquisição
duma ciência como a filosofia, é puramente extrínseco; ajuda a
formação da ciência, mas esta apoia-se só nos elementos
intrínsecos. A nossa filosofia será bem nossa, de cada um de nós,
no sentido próprio da palavra, se lhe conhecermos os princípios, o
desenvolvimento dos raciocínios, a certeza das conclusões; não é
preciso, para isso, que tenhamos repetido todas as hesitações,
todas as tentativas, dos que primeiro criaram cada um dos seus
capítulos.
É essa a condição do progresso das ciências. A inteligência dum
homem, a duração duma vida, são pouco para tudo o que há a fazer.
Só podendo cada um adquirir, rapidamente, o que aos outros levou
muito tempo a descobrir, haverá possibilidade de se aplicar, depois,
ao estudo dos problemas que eles não tiveram tempo de abordar.
Ser filósofo é diferente de saber filosofia. A diferença foi bem
observada por Goethe, que, no seu Fausto, a põe em relevo no
diálogo entre o velho sábio, ainda não rejuvenescido pelo seu pacto
com o demônio, e um discípulo dócil, mas sem verdadeiro espírito
filosófico; o que o primeiro encontra na natureza, quer o segundo
procurá-lo nos livros. O filósofo não se limita a aprender o que
sabe; assimila-o. Pensa pela sua cabeça; é seu direito e seu
dever. Mas não se espanta nem desgosta se as suas conclusões
coincidem com as dos filósofos que o precederam. Se encontra um erro
no que está feito, deve desvendá-lo e corrigi-lo; não tem, no
entanto, o direito de duvidar de tudo, arbitrariamente, e de querer
proceder como se fosse o único filósofo de todos os tempos.
Consideramos portanto a filosofia como uma ciência, constituída por
tudo quanto há de verdadeiro no trabalho dos filósofos de todos os
tempos; e como dever de cada filósofo contribuir para o seu
progresso, eliminando o que, porventura, seja errado e passe por
bom, e estudando assuntos ainda não tratados, onde haja novas
verdades a descobrir. Só chamamos filosofia, no sentido estrito, à
filosofia perene.
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