|
Depois de termos estudado o que a dependência do ser nos permite
conhecer da sua Causa, de Deus, vamos estudar agora o outro aspecto
dessa dependência. Vamos vê-la pelo lado das coisas; vamos falar
da Criação.
Na nossa maneira de pensar sobre tudo quanto se refere a Deus, há,
instintivamente, um certo antropomorfismo que precisamos de combater.
E em nada, talvez, se faz sentir tanto essa tendência a imaginar a
ação de Deus à imagem da nossa como quando se fala da Criação.
Começarei por isso por afastar algumas noções erradas sobre a
Criação, muito generalizadas, e é compreensível, mas
absolutamente inadmissíveis do ponto de vista metafísico.
Quando nós fazemos qualquer coisa, servimo-nos sempre de materiais
existentes; agimos enquanto estamos a fazê-la, e, terminada ela,
deixamos de agir, pelo menos nesse campo; a coisa feita, regra
geral, subsiste uma vez terminada a nossa ação, e independentemente
dela. Quando ouvimos dizer que Deus fez o Mundo do nada, temos
tendência a olhar o nada como a matéria de que Deus fez o Mundo; a
pensar num período de ação criadora precedido e seguido de períodos
de inação; e a considerar a conservação do Mundo como coisa
natural, sem nada que ver com a sua Criação por Deus.
Nenhuma destas maneiras de ver é aceitável. O nada não pode servir
de matéria, porque o nada não é; é o nome que damos ao não-ser.
Com o nada não se pode fazer nada; do nada nada se pode tirar. Deus
fez as coisas sem matéria preexistente; criou-as. Tornou existente
o que não existia. É o que significa a expressão, imprópria,
claro está, como todas as que dizemos de Deus: "Deus fez as coisas
do nada".
Por outro lado, a ação de Deus é idêntica ao próprio Deus, e
portanto imutável e eterna, isto é, exterior ao tempo. Antes da
Criação é expressão sem sentido; porque não houve antes. Se o
Mundo começou, houve, no tempo, um instante que nenhum outro
precedeu; não faz sentido preguntar o que havia antes. Também não
faz sentido preguntar o que Deus faz depois da Criação. A
Criação não introduziu mudança em Deus. O Mundo, criado por
Deus, é que muda, sendo a sua mudança contada pelo tempo; Deus,
que não muda, e que nada relaciona de modo particular com nenhum
instante da evolução do Mundo, não está sujeito ao tempo, e não
há para ele depois da Criação.
Por outro lado ainda, o problema da Criação põe-se da mesma
maneira, quer o consideremos no primeiro instante da existência do
Mundo, quer noutro instante qualquer. É sempre o da existência dum
Universo que não tem em si mesmo a sua razão justificativa; em
qualquer período da sua evolução, esse universo não se basta;
recebe de fora a sua existência; é criado.
|
|