3. O que pretende.

Toda a ciência particular bem desenvolvida consegue um certo conhecimento compreensivo dos fatos de que se ocupa; mas esse conhecimento é limitado ao domínio próprio dessa ciência. A filosofia procura levar o conhecimento das coisas tão longe quanto possível, tentando relacionar tudo com os princípios mais gerais; e esse esforço caracteriza-a.

Procura alargar o seu conhecimento; descobrir novos campos, ainda não estudados, que possa abordar à luz dos seus princípios; tirar novas conclusões; encontrar relações novas, mais gerais. Procura também estender os seus estudos aos campos abertos pelas ciências particulares e enquadrar os fatos novos descobertos por elas, assimilando aquelas conclusões que se relacionam com a sua maneira de ver. No primeiro caso, a filosofia abre o caminho para as outras ciências; no segundo, abrange, do seu ponto de vista especial, o domínio que as outras ciências conquistaram; devemos confessar que, nos últimos séculos, com o progresso das ciências físicas e a decadência da filosofia, é muito maior a matéria científica que a filosofia tem necessidade de estudar do que a matéria filosófica onde há ocasião de germinar uma nova ciência.

Mas a filosofia quer também aprofundar. Toda a ciência se baseia em princípios; mas, que valem esses princípios? São evidentes? E se o são, não serão casos particulares doutros princípios evidentes, mais gerais? Podem não ser evidentes, mas empíricos, baseados em fatos experimentais. E que vale a experiência? O seu valor não é, justamente, um dos princípios? Tudo isto são questões que nenhuma ciência especializada pode abordar; mas que estão ocultas debaixo de todas as suas conclusões, e podem falsear todos os seus resultados, ou pelo menos fá-los pôr em dívida. O seu estudo compete à filosofia, que o deve levar até ao seu último termo, isto é, até àquelas verdades elementares de que temos conhecimento natural.

Quer ainda a filosofia elevar os nossos conhecimentos. As ciências estudam o mundo material que nos rodeia. Mas, não haverá mais nada? Nenhuma ciência particular pode afirmá-lo. A filosofia pode, legitimamente, encarar o caso, e concluir que as coisas materiais exigem uma Primeira Causa imaterial, transcendente, necessária, de que recebem a sua existência.

Enfim, precisamente porque estuda os princípios em que as ciências se baseiam, compete à filosofia julgar todos os nossos conhecimentos. Tentativas infelizes, e ilegítimas, deve dizer-se, feitas nesse sentido quando do alvorecer da física moderna, desacreditaram muito este direito da filosofia. Os escolásticos da decadência quiseram tolher o passo à nova física, sem verem que a oposição notada era contra a física de Aristóteles, e não contra a filosofia. Não conseguiram o que queriam; mas conseguiram que não falte hoje quem recuse à filosofia, não só o direito de julgar as conclusões das ciências, mas até a categoria da ciência, considerando-a matéria de simples opinião. No entanto, não se pode negar que baseando-se a filosofia, diretamente, nos mesmos princípios em que, de modo mais ou menos indireto, se fundam todas as ciências, não é possível que as suas conclusões se contrariem; e que, se as afirmações duma ciência são opostas às da filosofia, e as desta são validamente tiradas, as primeiras não o são. Há sempre que fazer a reserva de que não basta a oposição verbal; porque as palavras têm muitas vezes, nas ciências, significado diferente do que a filosofia lhes dá; a oposição deve procurar-se entre as idéias que as palavras traduzem, e ser direta, no mesmo campo e do mesmo ponto de vista. Mas, com essa restrição, vale o que acima disse; e é bom lembrá-lo, porque o domínio da filosofia tem sido invadido pelos homens de ciência, quase sempre, confesse-se, por os filósofos o terem abandonado. A filosofia deve recordar-lhes que, ao fazerem isso, estão a filosofar sem o saberem, e, o que é grave, aplicando, às vezes, princípios e métodos que não são de alcance geral [6].

Resumindo, podemos dizer que a filosofia envolve, fundamenta e coroa o conjunto das ciências particulares.

Envolve-as, porque as precede, ou deve preceder, nos domínios, inacessíveis aos métodos científicos especializados, de que só as leis de caráter mais geral, próprias à filosofia, nos podem dar algum conhecimento. Fundamenta-as, porque os seus princípios aí estão na base dos princípios de cada uma, coordenando-os, reduzindo a um todo solidário aqueles que têm valor definitivo. Coroa-as, porque se eleva até onde elas não podem chegar, ao que não nos é imediatamente acessível, mas só podemos conhecer como condição necessária da existência do que nos cerca.

Podemos ainda dizer que a filosofia ilumina todo o domínio do nosso conhecimento, mostrando-nos nele o que tem de mais essencial: a sua unidade, a sua harmonia, o seu significado profundo.