4. O principio de realidade.

Sabemos, também, por conhecimento direto, que existem coisas distintas de nós, que se nos revelam pelos sentidos. É o que podemos chamar o princípio de realidade.

Note-se que do que temos conhecimento imediato é da existência do mundo exterior; só pela reflexão é que sabemos que tomamos contato com ele pelos sentidos. Nunca, na sua existência, o homem se vê perante o problema de procurar uma explicação, uma origem, para as suas sensações, explicação fornecida pela hipótese dum mundo exterior. Pelo contrário, o não-eu impõe-se-nos, desde o princípio da nossa vida, antes de mais nada; invade o nosso eu, de que só pela reflexão temos conhecimento. Só mais tarde, estudando, por muito rudimentarmente que seja, a elaboração das nossas idéias, é que reconhecemos que as coisas distintas de nós agem sobre os sentidos, e que é por intermédio da sensação que chegam à inteligência. Mas os sentidos, como a inteligência, são faculdades nossas. Reconhecer que, em nós, o conhecimento passa pelos sentidos, não é pôr os sentidos como intermediários entre nós e as coisas; só seria assim se limitássemos arbitrariamente o nosso ser à inteligência especulativa.

Nós, portanto, sensíveis e inteligentes, sabemos que existem coisas exteriores a nós por meio das faculdades que nos permitem estabelecer contato com elas.

Não pretendo dizer que os sentidos nos doem da realidade exterior um conhecimento exaustivo. Não; dão-nos conhecimentos verdadeiros, mas incompletos, mais ou menos confusos, como quando, por exemplo, sabemos que alguém se aproxima, e que é um homem, mas não sabemos que homem é. É certo, também, que os sentidos nos enganam às vezes: são as conhecidas ilusões de ótica e de acústica, as alucinações, etc.; mas essas ilusões podem descobrir-se, porque os sentidos se fiscalizam mutuamente, e existe, como contraprova, o testemunho dos sentidos dos outros homens. Nada disso invalida a veracidade essencial do conhecimento que temos, pelos sentidos, da existência dum mundo exterior. Pelo contrário; se é o confronto com a realidade que nos dá a conhecer a existência das ilusões!

A existência desse mundo distinto de nós é uma evidência, uma verdade que conhecemos por natureza. Ninguém pode, por exemplo, duvidar, duvidar verdadeiramente, não por palavras, de que foi criança, e teve pais que o geraram e criaram, mestres que o educaram, amigos que o ajudaram e acompanharam; de que existem livros que lê, alimentos de que se sustenta, ar que respira. Duvidará, de fato, algum filósofo idealista, da existência real do papel em que escreve, dos discípulos a quem se dirige, dos adversários que o contradizem e com quem discute? Não, visto que pega no papel, escreve para os discípulos, lê os adversários, e procura responder-lhes.

A dúvida dos idealistas a respeito do princípio de realidade é ilusória, e devida a que a evidência desse princípio resulta duma intuição sensível, não do reconhecimento duma lei do pensamento, como a do principio de contradição. Porque restringiram, arbitrariamente, toda a evidência à evidência de ordem lógica, consideram a realidade das coisas como não-evidente; e como não podem fundá-la no principio lógico de não-contradição, têm de a declarar indemonstrável. É um erro que provém da sua posição inicial, que não olha o homem como a única entidade real a considerar, mas o encerra numa faculdade isolada, artificialmente, de todas as outras.

Recorde-se que dizer da existência do mundo que é evidente não quer dizer que seja necessária. Não é evidente que o mundo tem de existir; pelo contrário. O que é evidente é que, de fato, ele existe.