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No espírito de todo o homem, forma-se, ao contato das coisas com
que lida, uma certa sistematização de conhecimentos, um conhecimento
compreensivo rudimentar, espontâneo, que é como que uma filosofia
inconsciente de si mesma, a que se chama o bom senso. O bom senso é
realmente um conhecimento compreensivo; liga as conclusões aos
princípios, visto que as pessoas que o têm desenvolvido, postas em
condições diferentes das habituais, resolvem as dificuldades
acertadamente e depressa, por meio de raciocínios simples, apoiados
no corpo de conhecimentos que já têm. E os seus princípios são
gerais, pois que se aplicam a circunstâncias muito variadas. Por
outro lado, o bom senso não reflete sobre si mesmo; trata das
coisas, mas não pensa em si; se é uma filosofia, é uma filosofia
que se ignora. Todos os homens filosofam, desde que estão no uso da
razão; mas fazem-no sem o saber, como Mr. Jourdain fazia prosa.
Não podemos pedir ao bom senso que se eleve a coisas afastadas do
objeto habitual dos nossos pensamentos; isso exigiria encadeamentos de
raciocínios a que os homens em geral não estão habituados; e seria
de recear uma conclusão apressada, e por isso mesmo errada. Mas, no
campo limitado das coisas acessíveis, onde não falta aos raciocínios
a base experimental e a verificação das conclusões pelos fatos, o
bom senso dá conhecimentos verdadeiros.
O bom senso é obra espontânea da razão, conforme com as leis do
pensamento, baseado nos princípios evidentes, informado pela
experiência. A filosofia, obra da mesma faculdade, não pode
contradizê-lo. Difere do bom senso em ser refletida, isto é, em
ter conhecimento de si mesma, dos seus princípios, dos seus fins,
das suas leis; difere também em que dá aos seus raciocínios forma
explícita, os pondera para lhes procurar as falhas, os critica para
lhes encontrar os vícios, os encadeia para poder estender o seu
domínio. Mas não dispõe doutros princípios senão dos do bom
senso; não usa doutro instrumento senão do espírito humano, como o
bom senso; não pode por isso, nas coisas simples que o bom senso
abrange, chegar a conclusões diferentes das deste.
A força de aberrações, a filosofia criou fama de contrária ao bom
senso, de ser quase uma loucura. E, de fato, que poderá pensar um
homem de bom senso, que vê, por exemplo, um filósofo duvidar da sua
própria existência, e da de quem com ele está a falar?
Mas a verdadeira filosofia não é nada disso. É, antes de mais
nada, filosofia do bom senso; prolongamento dos raciocínios
implícitos do bom senso, tornados explícitos, no campo onde já não
basta o trabalho espontâneo da razão e se torna necessário o seu
esforço consciente. Não é, nunca, negação do que o bom senso
legitimamente afirma.
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