9. Os transcendentais.

A noção de ser, que abrange tudo, é muito rica, e excede a capacidade da nossa inteligência. Desdobramo-la por isso em várias, considerando no ser um aspecto de preferência aos outros, encarando-o só por um certo lado. As noções assim obtidas, idênticas no fundo, dizem-se, como o próprio ser, transcendentais. As principais são a unidade, a verdade, o bem, a beleza; unidade transcendental, beleza transcendental, etc., para se distinguirem de noções habituais a que se dão os mesmos nomes.

Suponhamos um grupo de coisas que nada liga na realidade; só as une o fato de as considerarmos em conjunto. Esse grupo só tem unidade no nosso espírito; mas também, como grupo, só existe no nosso espírito. Suponhamos, pelo contrário, que algum laço liga essas coisas, na realidade. No plano em que existe esse laço, o grupo tem unidade real; mas nesse plano, também, tem existência real como grupo. O mesmo se dá em todos os casos. Podemos portanto dizer que um ser existe na medida em que é uno, e pelo aspecto segundo o qual participa da unidade. Unidade e ser são noções idênticas.

Consideremos agora o ser como susceptível de ser conhecido. Vemos que, em absoluto, é conhecível na medida em que é. Pode o conhecimento ser limitado pela capacidade da inteligência que conhece; mas, do lado do objeto conhecido, só aquilo que é limita o que dele se pode saber. Por ser a verdade a correspondência entre o conhecimento e o objeto conhecido, chama-se a esta cognoscibilidade verdade transcendental ou ontológica; é, como se vê, idêntica ao ser. Veremos mais adiante que só a inteligência divina conhece exaustivamente os seres, que causa, e de que não depende; veremos então que a verdade transcendental também pode definir-se como a correspondência exata entre os seres e o conhecimento que Deus deles tem.

O ser não é só conhecível, é amável, no sentido etimológico da palavra, desejável, isto é, capaz de provocar uma tendência que o procure. E só o ser é desejável, apesar de poder parecer o contrário a quem olhe as coisas superficialmente. De fato, o não-ser nunca é desejado por si mesmo; o que se procura é sempre um ser: o suicida, por exemplo, recusando a vida, procura o descanso, que julga encontrar assim. Ora o bem, - o bem ontológico, do bem moral falaremos mais tarde-, é aquilo que pode ser desejado, dando ao termo toda a generalidade com que o tomei. Em absoluto, pondo de parte as limitações que podem provir daquele que deseja, um ser é desejável na medida em que é. O bem e o ser são portanto noções convertíveis.

Conhecida a verdade dum ser, nós, que somos seres também, sentimos a harmonia íntima que há entre nós e ele; ouvimos o eco que esse ser encontra em nós; por outras palavras, ele diz-nos qualquer coisa; e nós achamo-lo belo. Diziam os escolásticos que "a beleza é o esplendor da verdade[41]". A beleza tomada em si mesma, a beleza transcendental, é portanto idêntica à verdade, ao bem, ao ser. É fato que há coisas belas que são más; mas nunca é sob o mesmo aspecto. Por aquilo que uma coisa tem de bom, é bela; pelo que tem de belo é boa.

Não devemos esquecer nunca que os transcendentais são desdobramentos da noção de ser, a que não acrescentam nada. São o ser contrastado com o que pertence aos outros seres; posto em relação com a inteligência e a vontade; olhado no que se harmoniza com o mais íntimo da nossa natureza. São o ser trasbordando dos quadros estreitos e rígidos em que o pensamento o quereria encerrar, e revelando-se-nos bondade, beleza e bem.

Idênticos ao ser, os transcendentais realizam-se, como ele, por analogia. Cada ser é à sua maneira; por isso mesmo, é bom, belo, verdadeiro e uno, à sua maneira também. Um homem é bom, por exemplo, como homem; um animal, como animal; um ser inanimado, como ser inanimado. Em todos os seres há bem; mas há bem conforme com o que eles são. O mesmo acontece com os outros transcendentais.