C. Considerações gerais.


12. Tomista porquê?

É só dessa filosofia que trato nestas lições.

O título que escolhi pode, na aparência, contradizer o que deixo dito: "Lições de Filosofia tomista" parece querer indicar que a filosofia de que me ocupo é uma filosofia entre outras, igualmente merecedoras do nome de filosofia. Mas não é assim; se escolhi esse título, foi porque o conceito de filosofia está de tal modo deformado na linguagem vulgar, que, se eu chamasse a estas lições "Lições de filosofia", sem mais nada, todos entenderiam que se tratava dum trabalho eclético, que pusesse no mesmo pé os sistemas coerentes e os incoerentes, os princípios evidentes o os arbitrários, os raciocínios errôneos e os exatos. Para marcar, logo pelo nome, a índole que queria dar a estas lições, tive de dizer "filosofia tomista"; mas tomando a expressão como sinônimo de filosofia no sentido estrito, não como subdivisão desta.

É, afinal, o que acontece quando dizemos, tantas vezes, "católico" em vez de "cristão", apesar de convencidos de que só o catolicismo é cristianismo verdadeiro. Termos que são essencialmente sinônimos têm de ser usados em sentido diferente, porque há muito quem se reclame dum deles, e não do outro.

Resta, no entanto, dizer porque chamei tomista à filosofia no sentido estrito. Ela não é obra exclusiva de S. Tomás. Longe disso. Na história da filosofia perene, há dois nomes que se destacam, acima de quaisquer outros: os de Aristóteles e S. Tomás de Aquino. Mas, além destes, são inúmeros os que concorreram, mais ou menos largamente, para o seu desenvolvimento. Antes de Aristóteles, é preciso lembrar (além dos primitivos gregos), os seus predecessores imediatos, Sócrates e Platão. Antes de S. Tomás, os trabalhos de S. Agostinho, Pedro Abelardo, S. Anselmo, S. Alberto Magno, representam progressos notáveis da noção ou do corpo de doutrina da filosofia. Depois de S. Tomás, há que citar os seus discípulos e comentadores; Pascal, que, não conhecendo, provavelmente, o tomismo, se apoiou no entanto, largamente, nos princípios da sã filosofia, para as suas análises agudíssimas; e os neotomistas dos nossos dias, que têm estudado, à luz da filosofia perene, os problemas que os nossos tempos fizeram surgir. A filosofia de que me ocupo é obra de todos eles; e, indiretamente, de todos os outros filósofos, porque, como já disse, de algum modo, todos concorreram para ela.

No entanto, era isto mesmo que S. Tomás entendia por filosofia. Ele fez por estudar tudo quanto havia escrito no seu tempo sobre assuntos filosóficos. Procurou compreender até ao íntimo, apesar das diferenças de linguagem, o pensamento dos seus mestres e dos seus adversários. Aproveitou tudo o que havia de bom, assimilando-o no seu sistema; não, observe-se, fazendo deste como que uma manta de retalhos, composta de peças heterogêneas mal ligadas entre si, mas integrando todas as teses aceitáveis, fosse quem fosse o que primeiro as defendeu, num sistema de lógica interna poderosa, de forma a poder-se dizer que, se alguma coisa particulariza o tomismo, é o seu esforço para ser universal, impessoal.

Digo filosofia tomista, portanto, para indicar que entendo, por filosofia, o mesmo que entendia S. Tomás. Não foi ele o único a pensar assim; mas ninguém fez obra que se aproximasse tanto como a dele do ideal que procurava. Nem Aristóteles, que, no entanto, tinha da filosofia um conceito muito impessoal. Mostra-o a frase com que se recusou a seguir o sistema de Platão: "Sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade"; não se invocava a si mesmo para motivo, como poderia fazer quem quisesse construir um sistema seu; apelava para a realidade dos fatos. Mas várias conclusões de Aristóteles tiveram de ser corrigidas por S. Tomás, como afetadas de erro; nenhum ponto importante da filosofia de S. Tomás foi corrigido até hoje.