3. A que se estende a Criação.

Pela Criação, os seres recebem o seu ato de existência. Como é às substâncias que compete, propriamente, existir, visto que os acidentes existem na substância, são as substâncias que se devem dizer, propriamente, criadas.

No entanto, a Criação não deixa as substâncias brutas, nuas. São criadas com as suas qualidades, com as suas dimensões, nas suas posições, numa palavra, com os seus acidentes. Os acidentes recebem portanto a existência do ato criador; não imediatamente, mas por intermédio das substâncias a que são inerentes. Diremos por isso que são concriados.

A existência da matéria-prima tem dado a muitos filósofos lugar para hesitações. A existência, os acidentes, todas as perfeições, são atos; como supor criada a matéria, que é potência? O efeito assemelha-se sempre mais ou menos à sua causa; ora Deus é ato puro, e a matéria pura potência; como dizê-la criada por Deus? Além disso, se o Mundo não existisse, seria pelo menos possível a sua existência. E essa possibilidade, essa pura potência, não é precisamente a matéria, que assim parece escapar à Criação?

De fato, se Deus não tivesse criado o Mundo, a existência deste seria possível. Mas o único fundamento dessa possibilidade seria a omnipotência de Deus, que podia, se quisesse, tê-lo criado do nada, sem necessidade de qualquer coisa preexistente, mesmo em potência. A potência é possibilidade real, que, para ser real, tem de ter por sujeito uma coisa realmente existente. A matéria-prima, em última análise, é a possibilidade das coisas existentes se transformarem quanto à sua substância. Daí se conclui, como aliás já foi dito, que a potência não pode existir pura, isolada. Só pode existir como princípio constituinte dos seres, associada ao ato. A matéria não pode portanto existir independentemente da Criação. Diremos por isso que é concriada como os acidentes; criada, não diretamente, mas com os seres em cuja constituição entra.

Para responder às objeções que apresentei, lembremo-nos de que, como já disse, matéria e forma são noções relativas. Um ser, já atualizado por uma forma, serve de matéria a outra forma, esta a uma terceira, e assim sucessivamente, embora, não o esqueçamos, só uma, a que atua diretamente a matéria-prima, possa ser substancial. Nessas condições, podemos dizer, a matéria-prima limita inferiormente a hierarquia das formas. E é limite inseparável do limitado, como a superfície do volume que contém; produzido um volume, fica ipso fato produzida a superfície que o limita. A Criação dos corpos materiais implica por isso a Criação, ou melhor a Concriação, da matéria-prima que os compõe.

Acrescente-se que as formas, como princípios de ser que são, e não seres completos, também não se devem dizer criadas, mas concriadas. São criadas com as substâncias que qualificam.