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Há na posição de Kant a petição de princípio da crítica
prévia, que já apontei. É também uma petição de princípio,
absolutamente arbitrária, a afirmação da existência dum númeno que
a nossa inteligência não pode atingir. O tomismo também afirma a
existência da substância, que não podemos conhecer diretamente; mas
fá-lo como condição necessária da existência dos acidentes, que a
sensibilidade nos dá diretamente a conhecer; e a substância, assim
fundada sobre o princípio de inteligibilidade, não pode ser utilizada
contra ele. Kant, negando esse princípio, não pode afirmar a
existência do número.
A análise do conhecimento, feita por Kant, tem muitas semelhanças
com a de S. Tomás. Mas há, logo de início, como que uma
inversão de sinal, que muda o sentido de todas as conclusões: o
princípio de Kant, que acabo de apontar, de que as coisas em si não
são inteligíveis. À elaboração do fenômeno pela sensibilidade
corresponde, em S. Tomás, a formação da imagem, pelos sentidos
externos e internos. Ao trabalho do entendimento, que torna o
fenômeno inteligível moldando-o nas formas a priori, corresponde a
abstração, realizada pelo intelecto agente. Simplesmente, como
S. Tomás não começou por considerar ininteligíveis as coisas em
si mesmas, não é forçado a supôr que é o intelecto agente quem
confere aos conceitos a sua inteligibilidade; a sua ação como que
ilumina a imagem, mostrando nela, à parte passiva do intelecto, o
que há de inteligível no objeto considerado.
A afirmação de que as leis do pensamento são as mesmas em todos os
homens é lógica e natural em quem, como nós, entende que se pode
concluir do que se vê para o que as coisas realmente são. Se
verificamos, pela observação, que a natureza humana é idêntica nos
outros homens e em nós, podemos afirmar que as leis naturais do seu
pensamento devem ser as mesmas que as do nosso. Mas Kant, fechado em
si mesmo pela sua teoria do número inacessível, não conhecendo dos
outros senão as suas próprias percepções, que só têm valor
subjetivo, e nada dizem sobre a realidade do objeto, como pode
fundamentar tal afirmação? Há aí incoerência ou petição de
princípio.
A tese da possibilidade da metafísica é, para Kant, natural à
inteligência humana. Afirma-a errônea, porque contraria as
conclusões da sua crítica do conhecimento; e por isso a qualifica de
ilusão. Não vejo, no entanto, por que critério, verificada a
contradição, se possa dar a preferência à critica sobre uma tese
natural. Se uma e outra se fundam nas leis do nosso espírito, e se
contradizem, a única atitude lógica seria desconfiar de ambas.
A idéia de que os conceitos da metafísica não têm base experimental
é gratuita. É a petição de princípio idealista de Descartes,
limitada aqui à filosofia. O tomismo, pelo contrário, afirma que
os conceitos da metafísica, como os das ciências, são todos, sem
exceção, derivados das coisas, ou diretamente, por abstração a
partir do que os sentidos revelam, ou indiretamente, pelo trabalho da
razão sobre os conceitos diretamente obtidos; e fá-lo de acôrdo com
o que podemos verificar pela reflexão.
As antinomias constituem uma tentativa de crítica interna; mas não
são demonstrações válidas. O princípio da crítica prévia leva a
fazer metafísica antes de tempo, e a abordar assuntos difíceis sem
bases suficientes, dando inevitavelmente origem a erros. Uma boa
preparação metafísica permite logo encontrar os pontos fracos das
antinomias. Vejamos, por exemplo, a pretensa demonstração de que o
mundo é eterno. "Admitamos", diz Kant, "que o mundo tenha
começado; como o começo é uma existência precedida dum tempo em que
a coisa não existia, deve ter havido um tempo em que o mundo não
existia, isto é, um tempo vazio. Ora, num tempo vazio, nada pode
nascer, porque nenhuma parte dum tal tempo tem em si, mais do que
outra, uma condição de preferência da existência à
não-existência (quer suponhamos que essa condição nasce por si
mesma, quer lhe suponhamos uma outra causa). Logo é possível que
as séries de coisas comecem no mundo, mas o próprio mundo não pode
ter começado [38].
É uma dificuldade que já S. Agostinho tinha resolvido. Quando
nós falamos em que o mundo começou, queremos dizer que começou em
absoluto, com tudo o que o constitui, e portanto também com o tempo
que mede a sua evolução. Falar dum tempo antes do começo do mundo
não tem sentido; não houve antes. Começou o mundo e começou o
tempo, que faz parte dele; o começo consiste precisamente em ter
havido um instante que foi de todos o primeiro. Contra um começo
assim entendido de nada vale a objeção de Kant.
Note-se que, para S. Tomás, também não é possível, como
julga Kant, demonstrar racionalmente que o mundo tenha começado.
Não há portanto contradição de raciocínios verdadeiros, nem
motivo para que as antinomias de Kant nos façam duvidar dos primeiros
princípios.
Pode, finalmente, perguntar-se o seguinte: Na idéia de Kant, a
metafísica, as ciências, o espírito humano, o processo de
conhecimento, são, realmente, o que as suas palavras dizem, ou
estas só estão de acôrdo com as leis subjetivas do seu pensamento?
No segundo caso, não têm nenhum interesse para a metafísica; no
primeiro, Kant contradiz-se na prática. Mais uma vez se confirma
que, sobre a negação dos princípios, nada se pode edificar que
pretenda ter alcance real.
Uma reflexão, para terminar este assunto: da física que escolheu
para modelo, o ramo que Kant olhava como o tipo das ciências
estáveis, em contraste com a instabilidade da metafísica, era a
mecânica newtoniana. Que diria ele se pudesse ter vivido até aos
nossos dias, quando visse a revolução feita, precisamente nesse
campo, pela teoria da relatividade?
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