10. Impossibilidade de outros princípios.

Está visto, portanto, que o sistema fundado nos princípios evidentes só poderia cair por incoerência da sua estrutura interna, e nunca por uma crítica baseada em princípios diferentes. Pergunta-se: Não será possível, ao menos, basear noutros princípios uma filosofia diferente da nossa? Uma filosofia que não pudesse pretender impor-se-nos, em lugar da nossa, mas que fosse coerente, tão racional como a nossa? Seriam dois sistemas heterogêneos, mas equivalentes; não haveria entre eles qualquer contato: excluir-se-iam mutuamente, mas quem quer poderia escolher um ou outro, ou outros ainda, talvez, como igualmente bons.

O caso é possível em muitas ciências, e tem-se dado. Vejam-se, por exemplo, as geometrias não-euclidianas, que, desde o século passado, se têm desenvolvido a par da velha geometria, baseando-se em princípios diversos do postulado de Euclides em que se fundava esta. São sistemas absolutamente coerentes, e, como só a experiência poderia dizer qual dos princípios em que se fundam, são princípios de caráter hipotético, é verdadeiro, têm todas, do ponto de vista metafísico, igual legitimidade, e têm sido aplicadas indiferentemente à solução de vários problemas. E ainda há poucos anos, o aparecimento da mecânica relativista causou sensação e alvoroço no grande público, mesmo do que anda completamente afastado do estudo da física teórica. Substituindo os princípios da mecânica clássica por outros totalmente diferentes e menos numerosos, Einstein edificou uma mecânica absolutamente coerente, que concorda com a experiência dentro dos limites impostos pelo rigor que se pode atingir nas medidas, e está, pelo menos, tão próxima da verdade como a antiga mecânica. Se o sistema de Einstein deu lugar a especulações filosóficas muitas delas discutíveis, isso não é conseqüência necessária dos seus princípios, limitados ao campo da física, sem generalizações arbitrárias. Como mecânica, a relatividade é um sistema legítimo.

Não poderá dar-se um caso análogo em filosofia? Não. Lembremo-nos de que o raciocínio feito sobre os princípios da geometria, euclidiana ou não, e da mecânica, clássica ou relativista, obedece às leis do pensamento; e que, para poder confrontar os resultados com a experiência, é preciso começar por admitir que a experiência nos diz alguma coisa a respeito das coisas reais. Se negamos os primeiros princípios, destruímos pela base essas ciências e as outras todas, como expressão, mesmo aproximada, da realidade. O postulado de Euclides não é evidente, como o não são os princípios da mecânica, antiga ou nova. Uns e outros podem, por isso, ser substituídos sem ir de encontro senão a velhos hábitos. Mas os primeiros princípios da filosofia são evidentes. Substituir-lhes outros é contrariar a inteligência, e introduzir no sistema que se quer criar uma contradição inicial, que há-de tornar inconsistente toda a sua estrutura, a provocar, cedo ou tarde, a sua desagregação.

Precisando, podemos dizer que todo o sistema que nega o princípio de contradição é impossível, mesmo como construção do espírito, porque tem de admitir a possibilidade do contrário de tudo quanto afirmar. Os que negam a realidade e a inteligibilidade das coisas são possíveis como especulações da inteligência; mas têm de se manter isolados, sem qualquer contato com a realidade exterior; não podem integrar-se na atividade de quem os adota. Os primeiros contradizem-se diretamente, os segundos indiretamente. Quem os segue, não se contradiz como inteligência; mas contradiz-se como homem, visto que vive de acordo com princípios que rejeita quando filosofa.

Um exemplo flagrante. Os solipsistas, duvidando da realidade, entendem que só eles próprios existem, e o resto, a existência das coisas como a dos outros homens, é uma simples ilusão do seu espírito. Pois num jornal inglês, há pouco, foi publicada uma carta de um solipsista, que defendia o seu sistema como o único lógico; o que o admirava, dizia ao terminar, era que os outros não fossem da mesma opinião. Não precisa de comentários. Claro que, em geral, a contradição não é tão grosseira. Mas existe sempre, mais ou menos bem oculta.

Se, por isso, entendemos que a filosofia deve poder relacionar toda a nossa atividade, especulativa ou prática, com os primeiros princípios, devemos dizer que é impossível uma filosofia apoiada em princípios diferentes, na essência, daqueles que expus acima.