14. Moralidade e intenção.

Há nos nossos atos uma hierarquia de fins, já o disse. Muitas vezes, o que procuramos numa ação, querêmo-lo com a intenção dum fim mais remoto. Como este não é ainda o fim último, pode considerar-se em relação com ele; será bom ou mau conforme é ou não apto a conduzir-nos a ele.

Olhando em conjunto o ato e o fim remoto para que, pela intenção, o orientamos, temos de encarar quatro casos. Pode o ato, em si mesmo, ser mau, e o fim mau também; ninguém então hesitará em dizer que procedemos mal. Podem ser bons o ato e o fim; não pode então duvidar-se de que procedemos bem. Mas pode o ato ser bom e o fim mau, ou o ato mau e o fim bom. Então já se compreende uma hesitação, que, de resto, facilmente se dissipa.

O mal é a falta, num bem, duma perfeição que deve ter. Qualquer que seja a perfeição obrigatória que falta na coisa que consideramos, temos de a julgar má. Correlativamente, para ser boa, é preciso que lhe não falte perfeição nenhuma das que lhe competem. No ato bom, feito para um mau fim, falta a intenção de que ele se destine ao nosso fim último; o nosso procedimento é portanto mau. No ato mau, que sabemos mau, mas que por um artifício orientamos, acidental e. não essencialmente, portanto, para um fim bom, falta a bondade intrínseca do ato; o nosso procedimento é por isso mau também.

À pregunta se o fim justifica os meios, devemos portanto responder terminantemente que não. O bem só pode procurar-se por meios bons. A desobediência à lei moral não pode desculpar-se pela boa intenção. A má intenção vicia o ato; a intenção boa não basta para o justificar. Assim, não é licito roubar, nem mesmo para fazer o bem com o produto do roubo. As benemerências do milionário desonesto nos negócios não desculpam a sua desonestidade. Da mesma maneira, não se pode matar um inocente, nem mesmo para salvar uma vida. Pode matar-se um agressor em legitima defesa; mas a razão disso é que o agressor comete um crime, e fica, por isso, com a responsabilidade das conseqüências do seu ato. O inocente que, sem culpa sua, se atravessa no nosso caminho, não é agressor; não há contra ele legitima defesa. É o caso, por exemplo, do aborto provocado. A criança que nasce é inocente; não é um agressor; não se pode causar a sua morte, por grande que seja o risco que daí resulta.

Também é semelhante o caso da guerra. Ë lícito matar o inimigo em combate, numa guerra justa; e não é da competência nem da responsabilidade dos cidadãos, individualmente, decidir se a guerra é justa. O inimigo, numa tal guerra, é agressor injusto da Pátria, pelas armas ou por outros meios menos sanguinários mas não menos nefastos. No entanto, só é agressor o combatente, direto ou indireto; o que combate de armas na mão ou o que forja as armas para o combate. A guerra não justifica, por isso, o morticínio dos não-combatentes, embora pertençam ao país inimigo.

Porque um ato deve ser bom em si mesmo e na intenção com que é feito, são más as ações que fazemos com um fim oposto ao fim último marcado pela Natureza, nos quais, portanto, arvoramos em fim último qualquer bem que não seja Deus. Chegamos assim ao critério de moralidade de S Agostinho, que nos diz que o mal consiste em "utilizar o que devemos fruir e fruir o que devemos utilizar, [112]. Realmente só se deve repousar na posse do último fim; todos os outros são fins subordinados, que se devem utilizar em vista desse. Fazer fim último dum fim subordinado, pela intenção, é portanto fruir do que se deve utilizar, e é mal, como queria S. Agostinho.