13. O tempo.

Pela consideração do movimento somos levados à do tempo, que Aristóteles define "o número do movimentos [103].

Bela definição, que, suponho, nenhum moderno repudiaria. Podem-se numerar os estados sucessivos dum móvel [104]; o tempo consiste, precisamente, nessa numeração.

Esta definição do tempo, como a que acima dei da posição espacial, é essencialmente relativa, visto que faz depender o tempo do critério adoptado para a numeração. Nada diz sobre a possibilidade da existência dum critério aplicável a todos os móveis, dum tempo único, universal. S. Tomás, como toda a gente até aos nossos dias, acreditava na existência desse tempo único. Mas não a considerava evidente; sabia bem distinguir a evidência autêntica, que é conhecimento natural de certas verdades, duma evidência aparente, resultante do hábito de muitos anos. Como ele próprio faz notar, "o hábito, sobretudo quando é tão velho como o espírito, tem tanta força como a Natureza, e acontece julgarmos que as opiniões que aceitamos desde a infância são naturais e evidentes por si mesmas" [105]. Por isso, num artigo interessantíssimo da Suma Teológica, a propósito dum assunto bastante diferente, S. Tomás estuda os motivos porque existe um tempo único [106], e conclui que é porque os movimentos de todos os corpos celestes provêm dum só movimento, o da primeira esfera móvel. A conclusão é perfeitamente lógica, visto a hipótese cosmogônica então aceita admitir que cada uma das esferas que constituíam o Universo imprimia movimento à de ordem imediatamente inferior. O movimento de todas dependia assim essencialmente, mecanicamente, podemos dizer, do da primeira esfera móvel, e as suas posições estavam ligadas, por uma relação intrínseca, com as posições desta. Compreende-se pois que o movimento da primeira esfera móvel servisse para definir os movimentos de todas as outras.

Sabemos hoje que os movimentos dos astros não se subordinam todos a um movimento único, que seja, por isso mesmo, uma medida comum de tempo. Não há, portanto, correspondência essencial entre os instantes dos diversos movimentos. Mas é possível estabelecer arbitrariamente uma correspondência entre eles, adoptando um critério de simultaneidade. Se puder dar-se uma definição de simultaneidade independente do movimento do observador, poder-se-á estabelecer um sistema único de contagem do tempo; se tal critério for impossível, haverá tantos tempos quantos os sistemas em movimento.

Não se suponha, pelo que disse, que o tomismo está ligado, necessariamente, à relatividade de Einstein. A existência ou não-existência dum critério unívoco de simultaneidade é do domínio da física e não da metafísica [107]; esta pode e deve admitir as duas hipóteses. Mas deve afirmar-se que a filosofia tomista não se coaduna com a noção newtoniana dum tempo absoluto, como aliás, verifica-se pelo que já disse, não se coaduna com a sua noção de espaço absoluto, infinito, homogêneo, imutável. Essas noções, recorde-se, pertencem ao domínio da filosofia; não são indispensáveis à mecânica clássica.. Esta admite a existência dum critério de simultaneidade independente do movimento do observador; supõe portanto um tempo único, mas não o exige absoluto, no sentido newtoniano. O tempo absoluto seria independente da existência dos seres mutáveis, infinito em duração, e escoar-se-ia uniformemente, alterando todas as coisas sem ser alterado por nenhuma; teria, em suma, atributos quase divinos, o que explica que Newton o confundisse com a eternidade de Deus. Tal tempo absoluto conduz logicamente ao tempo vazio em que Kant, na antítese de primeira antinomia, se baseou para demonstrar a impossibilidade de o Mundo ter começado. Mas a verdade é que o tempo depende do movimento, e este da existência do ser móvel. Como o movimento que mede, o tempo é ser de razão com fundamento real. Não pode existir como ser de razão se não existir o espírito que o pensa; não pode existir no seu fundamento, que é o móvel, se este não existir. Sem o Mundo, por isso, não há o tempo. O que faz cair pela base a demonstração de Kant.