7. Origem das espécies.

É semelhante a questão da origem das espécies. A experiência não revelou, até hoje, um único caso de animal ou planta duma espécie originado por outros de espécie diferente. Por outro lado, a paleontologia prova que as diferentes espécies foram aparecendo sucessivamente, substituindo outras mais antigas que se iam extinguindo, e formando com elas séries ordenadas segundo o desenvolvimento gradual de certos caracteres e a desaparição doutros. Aqui também, é à biologia que compete saber, se puder, como as coisas se passaram de fato. A metafísica só interessa estudar a possibilidade das diversas hipóteses.

Uma hipótese possível é o fixismo, que admite que Deus criou diretamente os primeiros representantes de cada espécie, no momento em que as condições do meio se tornavam favoráveis à sua vida. Outra hipótese é o transformismo, segundo o qual as espécies derivam uma das outras, ou por evolução gradual, ou por mutações mais ou menos bruscas.

Se queremos com ela supor uma evolução sem causa, a segunda hipótese é inadmissível. Tudo quanto acontece tem causa, dependente por sua vez doutras causas, e, em última análise, de Deus, fonte da causalidade. Também não podemos, para explicar a evolução, dizer que a função cria o órgão. A função pode desenvolver um órgão rudimentar: não pode criá-lo, porque o pressupõe.

Não podemos sequer atribuir a evolução ao acaso unicamente, por motivos análogos aos expostos mais atrás.

O concurso acidental de causas, por si mesmo, não produz efeitos coerentes, dotados de unidade essencial, como os seres vivos das diversas espécies; gera híbridos, monstros, aberrações.

Mas é perfeitamente possível que, pela ação dos agentes externos em condições favoráveis, sob a ação do meio, das causas naturais, agindo como causas análogas, um ser vivo possa originar outro ser com caracteres diferentes dos seus. As formas das plantas e dos animais não excedem a potência da matéria. Para as originar, para as fazer passar ao ato, basta uma causa natural, que pode ser unívoca ou análoga, como sempre.

Quanto à alma humana, já disse que é criada expressamente por Deus, em cada caso, quando o embrião está suficientemente desenvolvido para a receber. Por maioria de razão, teríamos de supor criada diretamente por Deus a alma do primeiro homem, se quiséssemos atribuir o seu corpo à evolução. Esta seria assim causa ocasional, e nunca eficiente, da produção do homem. Do ponto de vista metafísico, não há nisso dificuldade. No momento em que o embrião, gerado por seres de espécie diferente sob a ação das causas análogas da Natureza, estivesse suficientemente desenvolvido, Deus insuflaria nele uma alma intelectual, como faz no embrião produzido por seres da mesma espécie; a partir de então, seria a alma humana que regularia a atividade do corpo, como nos casos normais. Se, de fato, a evolução faz parte do plano da Natureza, tal como Deus o quis, não haveria nisto mais milagre do que na criação por Deus da alma de qualquer homem.

O supor a evolução gradual, sem mutações, obriga a admitir que o número de espécies possíveis é infinito. Não há nisso, também, qualquer dificuldade da ordem metafísica. Trata-se do número de espécies possíveis, e portanto dum infinito potencial. O número de espécies existentes em qualquer momento é finito, visto ser finito o número de indivíduos, necessariamente maior. É quanto basta à metafisica.

A própria tendência natural do indivíduo para a conservação da espécie, que, como vimos, faz parte do plano geral do Universo, não é incompatível com uma tendência mais profunda, destinada a assegurar a conservação da vida, mesmo à custa duma modificação da espécie, quando desaparecem as condições necessárias à sobrevivência desta.

A posição que adopto é a defendida por Sertillanges [98], que, no seu " Les grandes Thèses de la Philosophie Thomiste", não hesita, a propósito, em usar estes termos enérgicos:

"A filosofia tomista é muito mais larga do que alguns supõem, e, se queremos que ela se difunda, não devemos começar por lhe pôr antolhos [99]".

S. Tomás, que admite a geração espontânea dos animais inferiores, argumenta só, nota Sertillanges, contra a geração dos animais superiores sem germe, e portanto, por maioria de razão, contra a sua geração sem germe da mesma espécie, com o fato de a Natureza a não fazer [100]. Não há oposição irredutível, doutrinal; não se prova a impossibilidade da hipótese; há só uma opinião baseada na experiência dum período muito limitado em face da duração das épocas geológicas, e que nada poderia valer contra fatos, não demonstradamente impossíveis, que porventura provassem que a Natureza, em condições apropriadas, faz realmente nascer um ser vivo doutros seres de espécie diferente.

Em conclusão: A metafísica não condena o transformismo entendido de maneira que indiquei, como não condena o fixismo; admite, ainda, soluções intermédias, mixtas; o que não pode é admitir que o transformismo, hipótese não verificada, seja arvorado em doutrina certa, ou, pior ainda, como que em dogma científico.

A fé podia dar-nos precisões maiores do que a metafísica, indicando-nos qual, de entre as hipóteses possíveis, foi de fato a escolhida por Deus. É o que acontece, por exemplo, quanto à eternidade do Mundo; a metafisica considera igualmente possível que o Mundo tenha começado ou seja eterno; a Revelação dá-nos a conhecer que o Mundo, de fato, começou. Mas, a este respeito, à falta duma decisão dogmática, há só a resposta da Comissão Pontifícia "de Re Biblica" de 30 de Junho de 1909, segundo a qual o texto do Gênesis obriga a admitir: a criação de todas as coisas por Deus (portanto também da vida e das espécies, sem precisar se é criação direta, ou nas causas análogas); a criação particular do homem (sem indicar a origem da matéria, certamente preexistente, em face dos textos, de que o corpo do homem foi formado); a formação da mulher do corpo do homem (formação miraculosa, alheia aos processos normais da Natureza, que, como tal, não é do domínio da filosofia nem interessa para a questão); a unidade do gênero humano (proveniente, portanto, dum só homem). A Comissão, ressalvando que o texto deve ser entendido no sentido literal histórico onde se trate dos fundamentos da religião cristã, nega que todas as suas palavras e frases se devam tomar no sentido próprio, atendendo a que a intenção do autor não foi expor os fatos cientificamente, mas dar deles conhecimento ao povo, em termos acomodados à sua preparação [101].

A resposta da Comissão Bíblica não envolve a infalibilidade doutrinal da Igreja. Mas exprime uma opinião autorizadíssima, e, como se vê, não fornece argumentos de origem teológica para escolher entre o criacionismo e o fixismo dum lado, a geração espontânea e o transformismo do outro. Alguns teólogos vão mais longe, e entendem que a doutrina revelada não se coaduna com a atribuição da origem do corpo humano à evolução natural. Seja como fôr, não é à filosofia, mas à biologia (e eventualmente também à teologia, quanto ao homem), que há-de caber a última palavra.