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Também é vulgar, por culpa dos filósofos, a opinião de que o
filósofo é um homem que não vive no mundo, para quem a realidade
não existe; um homem fechado num universo fictício, imaginado por
ele. Deve ser o contrário. S. Tomás queria-o "de carnes
moles" [8], isto é, de sentidos apurados para bem tomar contato
com o que o rodeia. É negação da verdadeira filosofia supor que um
homem, para filosofar, tem de começar por se isolar das coisas, e de
tudo quanto, em si mesmo, não é a razão especulativa. A razão,
divorciada assim do ser, para o qual é feita, afastada de todas as
condições do seu funcionamento normal, privada dos seus princípios
naturais, e não informada pelos sentidos sobre os objetos de que se
ocupa, trabalha em falso, e constrói sistemas sem base, puramente
ideais. Não é isso que a filosofia pretende. Como já disse, ela
destina-se a melhorar o nosso conhecimento do Universo; tem de se
preocupar, necessariamente, com a realidade das coisas.
A base de todos os raciocínios filosóficos tem de ser constituída
por conceitos que, tão exatamente quanto possível, traduzam as
coisas, como de fato são. "Trata-se", diz Sertillanges, "para
o filósofo, de sistematizar a vida, de exprimir o mundo em termos
abstratos cujos laços, apertados em juízos particulares e depois em
sínteses sucessivas, devem exprimir, quanto possível, as
verdadeiras relações das coisas [9]". Em particular, resolver
um problema metafísico não é senão formular uma questão no nosso
espirito em termos que correspondam aqueles em que se põe na
realidade. Os conceitos devem formar-se ao contato da experiência;
e, visto que a filosofia trata das noções mais gerais, a
experiência que os funda é principalmente a observação quotidiana,
mil vezes repetida, para a qual o filósofo deve apurar a atenção.
É preciso o "esprit de finesse" de que fala Pascal, para não
deixar perder nada do que nos cerca, para apreender os mínimos
pormenores. Pascal diz: "No esprit de finesse, os princípios
estão no uso comum, e diante dos olhos de todos. Não é preciso
voltar a cabeça, nem fazer um esforço basta ter a vista boa, mas é
preciso tê-la boa; porque os princípios são tão subtis, e em
número tão grande, que é quase impossível não escapar algum".
Os princípios de que Pascal fala aqui não são os primeiros
princípios, gerais, e muito pouco numerosos; são os fatos
observados, que desempenham, no raciocínio filosófico, o papel de
princípios particulares. "Quase não se vêem", continua Pascal,
"sentem-se mais do que se vêem; dá um trabalho infinito fazê-los
sentir a quem os não sente por si mesmo; são coisas tão delicadas e
numerosas, que é preciso um sentido muito delicado e nítido para os
sentir [10]".
Além da observação do que nos rodeia, a experimentação
propriamente científica também tem o seu lugar; mas só depois de
suficientemente elaborada para merecer confiança absoluta; e,
sempre, do ponto de vista da ligação dos fatos com os princípios
mais gerais.
E constantemente, sempre que há ocasião, os raciocínios têm de ser
verificados pela observação, pela experiência. É a falta de
concordância com a experiência que nos revela, muitas vezes, a
existência dum vício de raciocínio. Aristóteles, por exemplo,
corrigiu a teoria do conhecimento de Platão, que admitia as idéias
inatas, porque ela não concordava com o fato experimental de num cego
faltarem todas as noções que se relacionam com a luz, e num surdo as
que se referem ao som. E Diógenes respondeu a Zenão de Eléia,
que pretendia ter demonstrado a impossibilidade do movimento,
levantando-se e andando em sua presença. Note-se que, para o
filósofo, só valem na experiência os fatos verificados; a
interpretação que lhes é dada, muitas vezes, pelos cientistas,
pode legitimamente ser discutida. Já disse que à filosofia compete
julgar as conclusões das outras ciências.
Assim, a verdadeira filosofia é filosofia da realidade.
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