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A questão tinha um aspecto agudo no tempo de S. Tomás.
Aristóteles admitia a eternidade do Mundo; e os averroístas, que o
seguiam à letra, consideravam essa tese demonstrável racionalmente.
Como isso era contrário à fé, os augustinistas procuravam
demonstrar que o Mundo começou. Mas não conseguiam fundar-se em
boas razões; e S. Tomás, tão ortodoxo como o mais ortodoxo de
entre eles, entendia que defender as coisas da fé por meio de
argumentos sem valor era torná-la ridícula aos olhos dos incrédulos
[67].
Por isso, notando que a eternidade ou a não-eternidade do Mundo
não se podem concluir nem da experiência, que pressupõe a
existência do Universo, nem dos conceitos das coisas, noções
universais, que abstraem do tempo, e nada dizem sobre a possibilidade
duma existência eterna, nem da vontade de Deus, que é livre, S.
Tomás considera o começo total do Mundo e a sua existência sem
começo como duas hipóteses igualmente possíveis. Deus podia,
livremente, ter criado o Mundo duma ou doutra maneira. Que, de
fato, o criou limitado em duração, vê-se do primeiro versículo da
Bíblia: "No princípio criou Deus o Céu e a Terra [68]". A
não-eternidade do Mundo é portanto simplesmente uma verdade de fé.
A posição de S. Tomás Neste ponto é precisamente oposta à de
Kant, que julgou, numa antinomia, ter demonstrado validamente que o
Mundo é eterno e que começou, negando de resto todo o valor real a
qualquer das demonstrações, como a todas as da metafísica. S.
Tomás entende que nem uma nem outra coisa se pode demonstrar
racionalmente.
Como já perante o argumento ontológico, a atitude de S. Tomás
nesta questão é um ponto crucial do tomismo. Só pode ser
compreendida por quem tenha compreendido bem as provas que S. Tomás
dá da existência de Deus. Repare-se que as cinco vias são
igualmente válidas, quer o Mundo tenha começado, quer não. O
fazer da duração limitada do Mundo uma verdade de fé não prejudica
portanto em nada o valor da demonstração racional de que Deus
existe.
Note-se, para terminar, que nada impede de, como é uso, reservar
o nome de Criação para a dependência do Mundo considerada no
primeiro instante da sua existência, e de lhe chamar conservação em
qualquer outro momento, contanto que nos lembremos de que não há
entre as duas coisas nenhuma diferença essencial; porque o existir
hoje não é razão suficiente para existir amanhã, nem o ter existido
ontem dispensa, para existir hoje, a dependência perante a Causa
criadora, que dá (e não, simplesmente, deu), o ser.
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