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Para concluir, resta dizer duas palavras das causas acidentais, que
estão por assim dizer fora do quadro que tracei até aqui.
Eu disse que a causa eficiente, se não interviessem outras causas,
produzia um efeito determinado. Intervindo outras causas, pode ficar
privada do seu efeito, total ou parcialmente; no segundo caso, o
efeito produzido é muito diferente do que seria sem o encontro das duas
causas, e diz-se causado acidentalmente.
Quando os seres ou acontecimentos dum dado conjunto estão encadeados
de maneira que cada um é a causa, eficiente do seguinte, o conjunto
chama-se uma série causal. Corresponde-lhe, na ordem da
causalidade final, uma série ordenada em sentido inverso; realmente,
se o primeiro ser está determinado a produzir o segundo, o segundo o
terceiro, e assim por diante, devemos dizer que está determinado a
produzir o último, que é portanto o fim de toda a série. Quando
duas ou mais séries causais convergem, o efeito pode diferir
totalmente daquele a que cada uma delas estava ordenada; as séries
funcionam como causas acidentais, e a determinação do efeito é
devida ao acaso do encontro; devendo no entanto ficar bem claro que
tudo quanto no efeito há de positivo, de real, de ser, é devido à
ação das causas que para ele concorreram, e não do acaso. Assim,
se uma causa, por causa da interferência acidental doutras causas,
produz só parte do seu efeito, o ser só parte é devido ao acaso,
mas essa parte é produzida pela causa considerada.
Suponhamos, por exemplo, o caso da roleta. O número em que pára a
bola depende da posição da roleta quando a puseram em movimento, do
impulso que lhe foi dado, da velocidade e da direção do impulso dado
à bola, do atrito da roda no eixo, e de vários outros factores não
relacionados entre si. É portanto obra do acaso, onde, apesar de
intervir um agente inteligente, não há finalidade, nem causalidade
senão acidental [44].
Em maior ou menor escala, o acaso é a regra dos fenômenos do mundo
material. Não que não haja séries de causas eficientes, e as
séries correlativas de causas finais. Mas a matéria dá
constantemente origem a encontros de séries causais, e a efeitos
acidentais; e é nisso, como disse, que consiste o acaso.
Realmente, uma causa que atua sobre a matéria não a encontra
informe, nua; já vimos que ela não pode existir nesse estado.
Encontra-a dotada duma forma que outra causa lhe imprimiu. E essa
predisposição da matéria influi no efeito obtido, que assim nunca é
devido a uma causa só, mas a muitas, praticamente a uma infinidade,
embora muitas vezes a influência duma seja preponderante. Assim se
explica, por exemplo, a geração dos monstros; eles não
correspondem a nenhuma finalidade natural; os meios de que a natureza
se serve para produzir os seres normais são frustrados dos seus
efeitos, em parte, pela intervenção de qualquer deficiência
orgânica, mesmo passageira, devida a uma causa estranha.
Note-se que, para haver verdadeiramente causalidade acidental, é
preciso que as séries causais que interferem não entronquem todas numa
única causa da mesma ordem, porque então o efeito estaria incluído
na finalidade dessa causa comum. Mas não é esse o caso do Universo
em que vivemos. Mesmo considerando só os agentes naturais, nada
permite supor que as séries causais dependam todas duma só, isto é,
que todos os fenômenos físico-químicos sejam regidos por uma única
lei. E mais claro se torna o fato se olharmos também aos agentes
livres e inteligentes; é certo que o que os leva a agir é um impulso
natural; mas a direção da sua atividade escolhem-na eles, e, na
série causal que se segue, a sua ação corresponde a um começo
absoluto. As séries causais iniciadas por um agente livre não podem
derivar de qualquer outra série causal. Por um motivo e outro, há
portanto em todos os fatos em que intervém a matéria uma dose de
acaso.
A existência de uma causa universal, única, transcendente ao
Universo, de Deus, enfim, de quem falaremos na próxima lição,
não altera em nada o que deixo dito. Deus criou a natureza, com as
distinções dos seres que a compõem, com a liberdade e a
determinação, a finalidade e o acaso. Não devemos olhá-lo como
um elemento perturbador da ordem que ele mesmo fundou. Está fora e
acima da natureza; é doutro plano; não é parte dela, nem pode
pertencer, como elemento homogêneo, a nenhuma das séries causais
criadas.
Não pode servir de argumento contra o acaso.
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