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A última dificuldade vem da existência do mal no Mundo regido pela
Providência. Para a resolver, vejamos primeiro o que é o mal.
O mal é a ausência dum bem, a privação dum bem.
Mas nem toda a falta dum bem se pode chamar mal. É mal, mal moral,
que um homem obedeça cegamente aos seus apetites instintivos; não é
mal que o faça um macaco, ou outro qualquer animal irracional. Da
mesma maneira, não podemos considerar mal a ausência de pernas numa
serpente, enquanto que é um mal, um mal físico, a falta das pernas
num homem ou num cão. Se reflectirmos, vemos que só podemos chamar
mal à privação dum bem que convém a um ser, de acordo com a
espécie a que pertence. Onde devia existir um bem, e não existe,
dizemos que há um mal.
Para explicar a origem do mal, temos de pôr de parte, antes de mais
nada, a hipótese dos maniqueus, de que há um primeiro princípio
rival de Deus, e essencialmente mau. Com efeito, sendo o mal uma
privação, o Supremo Mal deveria ser a privação total, o
não-ser. Seria contraditório supô-lo existente.
É então Deus a causa do mal? Também não, vê-se bem porquê.
O mal é uma privação, um ser de razão. Não tem existência
real; o que existe é o bem que o mal limita. Como privação que
é, o mal não tem causa eficiente; não precisa dela. Não pode ser
causa final, já vimos que o efeito duma causa eficiente desempenha
para ela o papel de fim; só um bem, um ser positivo, pode ser fim de
qualquer ação. Nas séries que nos permitiram remontar até Deus,
as da causalidade eficiente e da causalidade final, o mal não entra;
o que entra é o bem que serve de sujeito ao mal. O mal é causado
por acidente; só tem causa acidental. Resulta de uma causa ser
frustrada do seu efeito por com ela concorrer acidentalmente outra causa
ou outras causas.
Um leão mata uma ovelha para a comer. É à morte da ovelha que está
determinado o instinto do leão? Não; é à conservação da vida do
leão, que é um bem. Um homem, por gula, come do que lhe faz mal,
e arruína a saúde. Não há na sua natureza nenhuma faculdade cujo
fim seja esse. Há a vontade, que lhe foi dada como motor para
executar livremente o que a inteligência lhe mostrasse ser seu dever;
e há o instinto que o leva a procurar alimento, em subordinação à
vontade, guiada pela razão. A vontade cedeu ao instinto; faltou à
sua missão, e produziu o mal. O mal resultou, por acidente, de
faculdades cuja finalidade era o bem.
Querer fazer de Deus a causa do mal é como atribuir ao Sol a
existência das sombras. Do Sol vem a luz; um obstáculo
interpõe-se, e produz a sombra. Essa sombra, esse contorno
desenhado no chão, não existiria se não houvesse luz;
apagar-se-ia na escuridão geral. No entanto, ninguém dirá que é
do Sol que vem a sombra. Da mesma maneira, o mal não tem causa,
causa destinada a produzi-lo, na Natureza que Deus criou. Não tem
causa eficiente; tem só, diz S. Tomás, causa
deficiente [72].
Existe num bem como no seu sujeito, quando algum outro bem se
interpôs no caminho desse. Se não existisse o bem, não existiria o
mal, como não haveria sombras se não houvesse luz. Mas o que tem
causa é o bem, não o mal que o mutila.
Deus, portanto, não quero mal, no sentido de que não é causa do
mal nem dispôs nenhuma causa para o produzir. No entanto, quer o
Mundo em que o mal existe. Devemos por isso dizer que permite o mal;
vejamos, para terminar este assunto, como isso possa ser.
Como já disse, Deus ordenou tudo, no Mundo, para a maior
perfeição do conjunto. Ora a imperfeição de alguns seres,
relativamente aos tipos das suas espécies, é condição da
perfeição do conjunto. Por outras palavras, é um bem que haja o
mal. Assim, a morte da ovelha é, como atrás recordei, condição
da vida do leão; e o Mundo é mais perfeito existindo nele ovelhas e
leões do que se só existissem ovelhas; a coragem e a força são
perfeições, como a mansidão. Por outro lado, é bom que haja
seres que, livremente, possam falhar nas suas ações, apesar de
Deus lhes ter dado todos os meios necessários para o não fazerem.
Alguns, corrigindo-se mais tarde, dão lugar à existência desse
bem que é o arrependimento; todos dão ocasião a um esforço
desinteressado por parte dos que procuram melhorá-los, e, nas suas
vitimas, a que se manifestem qualidades que doutra forma não poderiam
existir: "Não haveria a admirar a paciência do perseguido", diz
S. Tomás, "se não fosse a maldade do perseguidor [73]".
O bem, portanto, e só o bem, é que Deus quer no Mundo. Mas,
do mal, sabe tirar o bem; e quer esse bem como os outros. Como diz o
nosso povo, "Deus escreve direito por linhas tortas". É por isso
que permite que algumas das coisas que criou produzam o mal, por
acidente.
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