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Foi um grande filósofo. Dá-se o caso curioso de S. Tomás nunca
ter pretendido ser, propriamente, filósofo; considerava-se
teólogo, como convinha, acima de tudo, à sua vocação de
dominicano. E, com excepção dos comentários de Aristóteles,
dalgumas obras de polémica, e de pouco mais, os seus livros são,
direta ou indiretamente, de teologia.
Mas, em filosofia, era filósofo de verdade. Ninguém sabia melhor
do que ele quanto pode a razão, com os seus recursos naturais,
baseada nos princípios evidentes e nos dados da observação; ninguém
confiava, mais do que ele, em que as conclusões dos raciocínios
válidos não podem contrariar a fé. Olhava a filosofia como uma
ciência autônoma, completa, com os seus princípios próprios e a
sua maneira de ser particular, embora sem levar essa autonomia a ponto
de poder considerar demonstrado o que se opusesse às conclusões duma
ciência que dispõe de dados mais certos: a teologia. Em
filosofia, nunca se apoiava na autoridade; mas não desdenhava,
estudar cuidadosamente os mestres, e invocava-lhes o nome quando
estava de acordo com eles, com tanto escrúpulo como modéstia. Só
se valia da autoridade na teologia, porque, aí, a autoridade não é
humana, mas divina.
Se houve coisa que S. Tomás nunca quis ser, foi inovador. Não
queria criar uma filosofia sua, mas das coisas; era a filosofia do
ser. Disse, o melhor que pôde e soube, o que as coisas são, na
realidade; se já alguém o tinha dito antes dele, não era motivo
para não o repetir; se ninguém o tinha dito ainda, não era motivo
para ele o não dizer. Não fazia obra pessoal, mas trabalho
objetivo.
S. Tomás acreditava que, na medida em que os homens subordinam as
suas idéias à realidade das coisas, devem entender-se. Por isso,
procurava o acordo de fato, que muitas vezes se esconde sob o
aparência duma oposição de palavras. Assim, por exemplo, falando
da divergência entre os estóicos e os peripatéticos a respeito da
compatibilidade da virtude com as paixões, diz: "Esta
divergência, como observa S. Agostinho, está mais nas palavras do
que no pensamento duns e doutros" [5].
Assim também, apesar de
discordar deles em muitos pontos, está de acordo, no principal, com
Platão e com S. Agostinho, sem deixar de ser discípulo de
Aristóteles.
Se um assunto é acessível à simples razão, trata-o pela
filosofia, embora não deixe, quando o caso se dá, de mostrar, por
uma ou outra citação teológica, que ele faz também parte da
doutrina revelada; deste modo, quase toda a Primeira Parte da
Suma, e boa parte da primeira metade da Segunda, são de pura
filosofia. Mas se o assunto excede os recursos naturais da razão, e
só se pode tratar tomando por base a Revelação, di-lo de maneira a
não deixar dúvidas.
A teologia de que se ocupa não é a teologia positiva, que estuda a
passagem da Bíblia ou o documento da tradição em que uma doutrina se
funda, ou a decisão da Igreja que a definiu como dogma, ou os termos
em que foi primeiramente formulada; é a teologia especulativa, que
procura o verdadeiro sentido em que uma doutrina deve ser entendida.
Nela, os dados da Revelação fazem o papel que, em filosofia,
pertence aos fatos observados; S. Tomás passa duma para outra sem
que se note quebra de continuidade nos seus métodos ou na sua maneira
de ver.
O seu procedimento no caso do aristotelismo pode servir de modelo de
probidade intelectual. Afastar tudo o que, de fato, não pertence à
questão em estudo; procurar informação rigorosa sobre o assunto de
que se trata; estudá-lo com espirito objetivo, tentando descobrir o
verdadeiro significado das coisas; e depois, resolver com
desassombro, respeitando as pessoas, mas desvendando os erros. Não
se pode fazer melhor.
S. Tomás foi primeiro em teologia, e primeiro em filosofia. Mas
julgo bem que o contraste, se o confrontarmos com os que, num e noutro
campo, se lhe podem comparar, é maior ainda como filósofo do que
como teólogo. Por isso me pareceu que, para primeira lição de
filosofia, nada podia valer o exemplo da sua vida.
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