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Se, como vimos, a ordem das causas eficientes é inversa da das
causas finais, as causas mais gerais do Universo devem orientá-lo
para os seus últimos fins. Ora o supremo fim da Criação é dar uma
imagem, forçosamente imperfeita, tuas nem por isso menos admirável,
da inteligência criadora de Deus; o que, já o fiz notar, acontece
pela perfeita integração de todas as suas partes num conjunto
harmonioso. O estudo da harmonia do Universo, harmonia de que,
observe-se, não devemos fazer um conceito estático, mas um conceito
dinâmico, que abranja também a ordem manifestada pela realização
progressiva do plano que o rege, compete por isso, eminentemente, à
filosofia.
Neste ponto, não é fácil exceder a grandeza do quadro que nos
traça a filosofia tomista. Dominam-no três elementos, que é
indispensável compreender bem porque se manifestam em todos os
pormenores. O primeiro é um princípio: o de que a perfeição do
conjunto resulta da desigualdade das partes [94]; a harmonia,
realmente, é a coordenação de seres diferentes para um fim único,
comum a todos. O segundo é o critério de perfeição de que já
falei; faz depender a perfeição de cada ser da universalidade do seu
fim, e, entre os que têm o mesmo fim, da simplicidade dos meios por
que o atingem. O terceiro é a convicção de que a diferenciação
dos seres é feita por gradações insensíveis; de forma que o mais
perfeito de cada ordem confina com o menos perfeito da ordem imediata.
Consideremos então a maneira por que S. Tomás ordena os seres do
Universo. No grau mais baixo, estão os seres inanimados, de
existência limitada à matéria que os compõe. Sofrem,
passivamente, as ações do exterior, e não conhecem o fim das
ações que causam. Nem pela utilização do meio, nem pelo
conhecimento, excedem os seus limites corpóreos.
Seguem-se as plantas. Estas já sabem aproveitar o meio que as
rodeia para desenvolver e sustentar o seu organismo. Longe de
sofrerem, passivamente, as ações exteriores, integram-nas no plano
da sua própria atividade, e fazem-nas concorrer para a conservação
da sua existência. E, na sua atividade mais perfeita, a
reprodução, dirigem a sua ação para um fim superior à sua
existência individual, e procuram a perpetuidade da espécie a que
pertencem, pela produção de novos indivíduos. A vida da planta já
excede, portanto, os limites do seu organismo, pela ação e pelo
fim; domina o meio que a cerca, e tende à preservação da espécie.
Esta última função vegetativa já anuncia a atividade dos animais,
toda dirigida para fins exteriores a eles. Esses fins são-lhes dados
a conhecer pelos sentidos; e, pela sensibilidade a vida dos animais
excede os limites do seu corpo de mais uma maneira, visto que o animal
se assimila ao objeto que conhece. No entanto, o conhecimento
sensível não ultrapassa o que, no objeto, há de particular.
O homem está na fronteira de dois mundos, o animal o espiritual. É
natural que assim seja, depois do que disse sobre a continuidade na
transição entre as várias classes de geres. Da mesma forma, vemos
a função vegetativa mais elevada aproximar as plantas dos animais; e
os virus, parecem prová-lo os recentes estudos com o microscópio
eletrônico, estão também na fronteira de dois mundos, o vivo e o
inanimado. Ser fronteiriço, o homem não é um híbrido, nas, por
assim dizer, uma unidade bivalente. Exerce atividade, ao mesmo
tempo, em dois planos distintos. Sabe ver, ios objetos individuais
que conhece pelos sentidos, o elemento universal que contêm. Pode
portanto compreender o papel que lhes cabe no plano da Criação,
adivinhar este, e ser, por ele levado ao conhecimento do Criador.
Pela inteligência, o homem excede, não só o seu próprio corpo,
mas todos os corpos, e é capaz de atingir a razão de ser do
Universo. O fim a que tende por Natureza é o mais elevado dos fins
naturais. Mas por que meios complicados o atinge, e depois de
percorrido que caminho! O seu pensamento progride, passo a passo,
pelo raciocínio, partindo das noções abstraídas do concreto que
conheceu pela sensibilidade. Isso exige nele, além da
inteligência, um corpo sensível, e, para manter a vida deste,
todas as funções vitais dos animais e das plantas. O seu organismo
é por isso o mais complicado de todos.
Desde a estrutura relativamente simples das substâncias inanimadas ao
organismo tão diferenciado do homem, o progresso para a perfeição
foi portanto marcado, até aqui, pela complicação crescente, que
permite atingir um fim cada vez mais universal. Daqui por diante, o
aumento de perfeição só pode consistir na simplificação dos meios.
Por isso vemos que os Anjos são tanto mais perfeitos quanto menor o
número de idéias de que necessitam para conhecer o Universo. E o de
maior perfeição, se não serve de transição para Deus, porque
não há transição do finito para o infinito, já anuncia, pela
simplicidade do seu conhecimento, a simplicidade absoluta de Deus.
É assim que S. Tomás ordena os seres. Vejamos como essa
ordenação se harmoniza com a maneira como vê a sua individuação, e
com a solução que dá da questão dos universais.
Os Anjos não têm matéria. No seu ser, por isso, nada é devido
ao concurso acidental de causas estranhas; cada um realiza,
perfeitamente, a sua essência. Se o que importa à harmonia do
Universo é, como disse, a multiplicação formal dos seres, a
coordenação de seres diferentes, não há motivo para haver mais do
que um Anjo de cada espécie. Os diversos Anjos distinguem-se
portanto por essência; são todos diferentes. Do que resulta que
cada Anjo é inteligível. por si mesmo.
O homem, porque à sua maneira normal de conhecer são indispensáveis
os sentidos, precisa dum corpo, sujeito às ações que regem a
matéria. A formação desse corpo está exposta aos acasos das
influências estranhas; e a sua duração é limitada. Torna-se por
isso necessária a multiplicação numérica dos homens. É a
matéria, o mesmo elemento que exige a existência de muitos
indivíduos de igual espécie, que serve de principio de
individuação. E, dissolvido o corpo, a relação para com ele
basta para individuar a alma separada.
Os mesmos motivos explicam a multiplicação dos animais, das plantas
e dos corpos inanimados dentro de cada espécie, e justificam que seja
a matéria o seu principio individuante.
A multiplicação dos indivíduos é exigida pela matéria, e, para a
harmonia do Universo, puramente acidental; o que realmente interessa
é a distinção das espécies. Para a compreensão dessa harmonia,
portanto, é também a espécie que importa. Isso explica o modo
particular do conhecimento intelectual, orientado para o universal;
conhecimento cujo objeto é a essência que, na realidade, existe
individuada, mas é conhecida como idéia, abstrata, geral.
Pode-se adivinhar, pelo esboço rápido que tracei, a unidade de
estrutura da visão tomista do Universo. Para a apreciar como
merece, é preciso mais; é preciso observar como S. Tomás,
quando se trata de metafísica, e apesar de haver no seu sistema
elementos das procedências mais diveras, de Aristóteles e de
Platão, de S. Agostinho e do Pseudo Dionísio, dos árabes e
dos primeiros escolásticos, olha cada questão em função do lugar
que lhe cabe no plano de conjunto e resolve, com a mesma facilidade,
os assuntos vais diferentes, à luz dos mesmos princípios gerais.
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