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Vejamos as posições dos autores das duas críticas historicamente
mais importantes: Descartes e Kant. Descartes duvida de todos os
princípios. Porque os sentidos o enganam às vezes, e porque o que
toma por realidade pode não passar de um sonho, duvida da existência
do mundo sensível. Porque os homens podem ter-lhe mentido, ou
terem-no enganado involuntariamente, duvida de tudo quanto lhe
ensinaram. Duvida de todos os raciocínios que fez até então,
considerando-os insuficientemente fundamentados. Duvida até de
operações do seu espírito tão simples como as de somar dois e três
ou contar os lados de um quadrado, que são aplicação direta do
princípio de contradição. Em suma, começa a filosofar num estado
de dúvida em que admite, até, como possível a existência de um
gênio mau que se entretivesse a iludí-lo. A sua dúvida incide
primariamente sobre os princípios, ele mesmo o diz: "Porque a
ruína dos alicerces arrasta necessariamente consigo todo o resto do
edifício, começarei por atacar os princípios sobre os quais todas as
minhas opiniões se apoiavam" [32].
A certeza que encontra nas conclusões da matemática sugere-lhe a
idéia de exigir que a sua filosofia tenha aspecto matemático, isto
é, seja constituída por deduções sucessivas, derivadas todas de um
número muito pequeno de princípios, claros e simples. Resta
escolher, para princípios verdades de que não possa, de forma
alguma, duvidar. Descartes só encontra o Cogito, isto é, a
afirmação: "Penso, logo existo"; e sobre ele funda toda a sua
metafísica. Estabelecida a sua própria existência como ser
pensante, verifica que entre as suas idéias há a de Deus, ser
infinitamente perfeito; esta não pode, diz Descartes, ter por causa
um ser imperfeito, e por isso prova que Deus existe. Mas Deus,
infinitamente verdadeiro, não pode consentir que ele seja enganado em
todos os seus pensamentos; logo, todas as idéias que, como o
Cogito, lhe aparecem claras e distintas, são verdadeiras; o seu
corpo não é uma ilusão; o mundo exterior existe; e é-lhe
possível conhecê-lo dedutivamente, tomando por base o Cogito.
A esta critica prévia, que Descartes quis construtiva, "eu não
imitava os céticos, que duvidam só por duvidar e afetam estar
sempre irresolutos, mas, pelo contrário, toda a minha intenção era
firmar-me, e rejeitar a terra movediça e a areia para encontrar a
rocha [33] ",
diz ele, segue-se o resto da sua metafísica. É o
espírito reduzido ao pensamento, e a matéria à extensão. É, como
conseqüência, no homem, a dualidade da alma e do corpo, sem
unidade substancial; a dificuldade que daí provém, na ordem do
conhecimento, evita-se pelas idéias inatas; na ordem da atividade,
procura-se resolvê-la pela suposição dos espíritos animais, de
que já falei. Estas teses, juntamente com a teoria de que os animais
são puros autômatos, constituem o essencial do cartesianismo.
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