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Está visto, portanto, que o sistema fundado nos princípios
evidentes só poderia cair por incoerência da sua estrutura interna, e
nunca por uma crítica baseada em princípios diferentes.
Pergunta-se: Não será possível, ao menos, basear noutros
princípios uma filosofia diferente da nossa? Uma filosofia que não
pudesse pretender impor-se-nos, em lugar da nossa, mas que fosse
coerente, tão racional como a nossa? Seriam dois sistemas
heterogêneos, mas equivalentes; não haveria entre eles qualquer
contato: excluir-se-iam mutuamente, mas quem quer poderia escolher
um ou outro, ou outros ainda, talvez, como igualmente bons.
O caso é possível em muitas ciências, e tem-se dado. Vejam-se,
por exemplo, as geometrias não-euclidianas, que, desde o século
passado, se têm desenvolvido a par da velha geometria, baseando-se
em princípios diversos do postulado de Euclides em que se fundava
esta. São sistemas absolutamente coerentes, e, como só a
experiência poderia dizer qual dos princípios em que se fundam, são
princípios de caráter hipotético, é verdadeiro, têm todas, do
ponto de vista metafísico, igual legitimidade, e têm sido aplicadas
indiferentemente à solução de vários problemas. E ainda há poucos
anos, o aparecimento da mecânica relativista causou sensação e
alvoroço no grande público, mesmo do que anda completamente afastado
do estudo da física teórica. Substituindo os princípios da
mecânica clássica por outros totalmente diferentes e menos numerosos,
Einstein edificou uma mecânica absolutamente coerente, que concorda
com a experiência dentro dos limites impostos pelo rigor que se pode
atingir nas medidas, e está, pelo menos, tão próxima da verdade
como a antiga mecânica. Se o sistema de Einstein deu lugar a
especulações filosóficas muitas delas discutíveis, isso não é
conseqüência necessária dos seus princípios, limitados ao campo da
física, sem generalizações arbitrárias. Como mecânica, a
relatividade é um sistema legítimo.
Não poderá dar-se um caso análogo em filosofia? Não.
Lembremo-nos de que o raciocínio feito sobre os princípios da
geometria, euclidiana ou não, e da mecânica, clássica ou
relativista, obedece às leis do pensamento; e que, para poder
confrontar os resultados com a experiência, é preciso começar por
admitir que a experiência nos diz alguma coisa a respeito das coisas
reais. Se negamos os primeiros princípios, destruímos pela base
essas ciências e as outras todas, como expressão, mesmo aproximada,
da realidade. O postulado de Euclides não é evidente, como o não
são os princípios da mecânica, antiga ou nova. Uns e outros
podem, por isso, ser substituídos sem ir de encontro senão a velhos
hábitos. Mas os primeiros princípios da filosofia são evidentes.
Substituir-lhes outros é contrariar a inteligência, e introduzir no
sistema que se quer criar uma contradição inicial, que há-de tornar
inconsistente toda a sua estrutura, a provocar, cedo ou tarde, a sua
desagregação.
Precisando, podemos dizer que todo o sistema que nega o princípio de
contradição é impossível, mesmo como construção do espírito,
porque tem de admitir a possibilidade do contrário de tudo quanto
afirmar. Os que negam a realidade e a inteligibilidade das coisas são
possíveis como especulações da inteligência; mas têm de se manter
isolados, sem qualquer contato com a realidade exterior; não podem
integrar-se na atividade de quem os adota. Os primeiros
contradizem-se diretamente, os segundos indiretamente. Quem os
segue, não se contradiz como inteligência; mas contradiz-se como
homem, visto que vive de acordo com princípios que rejeita quando
filosofa.
Um exemplo flagrante. Os solipsistas, duvidando da realidade,
entendem que só eles próprios existem, e o resto, a existência das
coisas como a dos outros homens, é uma simples ilusão do seu
espírito. Pois num jornal inglês, há pouco, foi publicada uma
carta de um solipsista, que defendia o seu sistema como o único
lógico; o que o admirava, dizia ao terminar, era que os outros não
fossem da mesma opinião. Não precisa de comentários. Claro que,
em geral, a contradição não é tão grosseira. Mas existe sempre,
mais ou menos bem oculta.
Se, por isso, entendemos que a filosofia deve poder relacionar toda a
nossa atividade, especulativa ou prática, com os primeiros
princípios, devemos dizer que é impossível uma filosofia apoiada em
princípios diferentes, na essência, daqueles que expus acima.
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