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Toda a ciência particular bem desenvolvida consegue um certo
conhecimento compreensivo dos fatos de que se ocupa; mas esse
conhecimento é limitado ao domínio próprio dessa ciência. A
filosofia procura levar o conhecimento das coisas tão longe quanto
possível, tentando relacionar tudo com os princípios mais gerais; e
esse esforço caracteriza-a.
Procura alargar o seu conhecimento; descobrir novos campos, ainda
não estudados, que possa abordar à luz dos seus princípios; tirar
novas conclusões; encontrar relações novas, mais gerais. Procura
também estender os seus estudos aos campos abertos pelas ciências
particulares e enquadrar os fatos novos descobertos por elas,
assimilando aquelas conclusões que se relacionam com a sua maneira de
ver. No primeiro caso, a filosofia abre o caminho para as outras
ciências; no segundo, abrange, do seu ponto de vista especial, o
domínio que as outras ciências conquistaram; devemos confessar que,
nos últimos séculos, com o progresso das ciências físicas e a
decadência da filosofia, é muito maior a matéria científica que a
filosofia tem necessidade de estudar do que a matéria filosófica onde
há ocasião de germinar uma nova ciência.
Mas a filosofia quer também aprofundar. Toda a ciência se baseia em
princípios; mas, que valem esses princípios? São evidentes? E
se o são, não serão casos particulares doutros princípios
evidentes, mais gerais? Podem não ser evidentes, mas empíricos,
baseados em fatos experimentais. E que vale a experiência? O seu
valor não é, justamente, um dos princípios? Tudo isto são
questões que nenhuma ciência especializada pode abordar; mas que
estão ocultas debaixo de todas as suas conclusões, e podem falsear
todos os seus resultados, ou pelo menos fá-los pôr em dívida. O
seu estudo compete à filosofia, que o deve levar até ao seu último
termo, isto é, até àquelas verdades elementares de que temos
conhecimento natural.
Quer ainda a filosofia elevar os nossos conhecimentos. As ciências
estudam o mundo material que nos rodeia. Mas, não haverá mais
nada? Nenhuma ciência particular pode afirmá-lo. A filosofia
pode, legitimamente, encarar o caso, e concluir que as coisas
materiais exigem uma Primeira Causa imaterial, transcendente,
necessária, de que recebem a sua existência.
Enfim, precisamente porque estuda os princípios em que as ciências
se baseiam, compete à filosofia julgar todos os nossos conhecimentos.
Tentativas infelizes, e ilegítimas, deve dizer-se, feitas nesse
sentido quando do alvorecer da física moderna, desacreditaram muito
este direito da filosofia. Os escolásticos da decadência quiseram
tolher o passo à nova física, sem verem que a oposição notada era
contra a física de Aristóteles, e não contra a filosofia. Não
conseguiram o que queriam; mas conseguiram que não falte hoje quem
recuse à filosofia, não só o direito de julgar as conclusões das
ciências, mas até a categoria da ciência, considerando-a matéria
de simples opinião. No entanto, não se pode negar que baseando-se
a filosofia, diretamente, nos mesmos princípios em que, de modo mais
ou menos indireto, se fundam todas as ciências, não é possível
que as suas conclusões se contrariem; e que, se as afirmações duma
ciência são opostas às da filosofia, e as desta são validamente
tiradas, as primeiras não o são. Há sempre que fazer a reserva de
que não basta a oposição verbal; porque as palavras têm muitas
vezes, nas ciências, significado diferente do que a filosofia lhes
dá; a oposição deve procurar-se entre as idéias que as palavras
traduzem, e ser direta, no mesmo campo e do mesmo ponto de vista.
Mas, com essa restrição, vale o que acima disse; e é bom
lembrá-lo, porque o domínio da filosofia tem sido invadido pelos
homens de ciência, quase sempre, confesse-se, por os filósofos o
terem abandonado. A filosofia deve recordar-lhes que, ao fazerem
isso, estão a filosofar sem o saberem, e, o que é grave,
aplicando, às vezes, princípios e métodos que não são de alcance
geral [6].
Resumindo, podemos dizer que a filosofia envolve, fundamenta e coroa
o conjunto das ciências particulares.
Envolve-as, porque as precede, ou deve preceder, nos domínios,
inacessíveis aos métodos científicos especializados, de que só as
leis de caráter mais geral, próprias à filosofia, nos podem dar
algum conhecimento. Fundamenta-as, porque os seus princípios aí
estão na base dos princípios de cada uma, coordenando-os, reduzindo
a um todo solidário aqueles que têm valor definitivo. Coroa-as,
porque se eleva até onde elas não podem chegar, ao que não nos é
imediatamente acessível, mas só podemos conhecer como condição
necessária da existência do que nos cerca.
Podemos ainda dizer que a filosofia ilumina todo o domínio do nosso
conhecimento, mostrando-nos nele o que tem de mais essencial: a sua
unidade, a sua harmonia, o seu significado profundo.
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