9. As transformações dos corpos.

A matéria-prima, já o disse, é pura potência. Como tal, pode fazer parte de qualquer substância material. Acontece por isso que, pelo jogo da causalidade, uma dada porção de matéria deixe de constituir uma substância e passe a fazer parte doutra. Uma tal mudança é o que se chama uma transformação substancial; (trans-forma-ção significa, etimologicamente, passagem duma forma para outra). No seu aspecto metafísico, o fenômeno pode-se encarar assim: Pela ação duma causa eficiente apropriada, a substância considerada adquire uma forma acidental que contraria a sua maneira de ser. Continuando a causa a agir, a contrariedade pode ser suficiente para provocar a dissolução da forma substancial que actualizava a matéria, e que volta a existir só em potência. A matéria adquire então, de entre as formas substanciais nela existentes em potência, aquela para que está mais disposta pela ação da causa. A ação do agente traduziu-se, no paciente, pelo regresso à potência duma forma e a passagem ao ato de outra. O exemplo mais típico que se pode dar duma transformação substancial é a assimilação dos alimentos por um ser vivo. Nela, os alimentos perdem a sua existência substancial, autônoma; e a matéria que os constituía passa a pertencer ao organismo, à própria substância, do ser que os assimilou. No mundo inanimado, se realmente a substância corresponde ao composto químico, as reações químicas são transformações substanciais.

As mudanças menos radicais, que não afectam a substância, mudanças de posição, de estado, de temperatura, etc., correspondem à aquisição de certas formas acidentais e à perda doutras [102]. São transformações ocidentais.

Os acidentes, como já fiz notar, são individuados pela substância a que são inerentes; não é por isso possível o mesmo acidente passar duma substância para outra, do agente para o paciente. Os casos em que o fenômeno parece dar-se explicam-se pelo jogo da ação e da reação. Seja, por exemplo, um móvel animado dum certo ímpeto, do que os mecânicos exprimem pela força viva. Chocando com outro corpo, causa nele um ímpeto semelhante, que o põe em movimento. Mas, se o primeiro corpo agiu sobre o segundo, este reagiu sobre ele, e provocou uma diminuição do ímpeto que o animava. Tudo se passa, no fim de contas, como se parte do ímpeto do primeiro tivesse passado para o segundo. Coisa semelhante acontece quando um corpo quente aquece um corpo frio, que por sua vez causa. nele um abaixamento de temperatura, e em inúmeros outros casos em que o agente e o paciente são homogêneos. O princípio de ação e reação é geral, na física.

Trata-se dum princípio empírico, justificado, a posteriori, pela observação. Nada obriga a que, em todos os campos, o paciente provoque uma modificação do agente. O escultor, por exemplo, imprime à estátua a forma que imaginou; ela não deixa, por esse fato, de existir no seu espírito, nem a sua existência aí é de qualquer maneira diminuída. O orador, que comunicou a sua idéia aos ouvintes, não fica privado dela por isso, nem ela se lhe obscureceu, por menos que seja, na inteligência. Não é portanto lícito generalizar o princípio de ação e reação aos campos em que a sua aplicação não foi observada. Não é um princípio metafísico, mas um princípio físico.