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Claro que, para legislar no que interessa ao bem comum e aplicar o
legislado, é necessária a existência, na sociedade, dum órgão
próprio, duma autoridade que é o poder civil. Esse poder é o
elemento formal da sociedade, visto que é ele que lhe imprime a
unidade de ação; o elemento material são os indivíduos que a
compõem. Assim, nem todo o grupo de homens é uma sociedade; o que
o torna numa sociedade é a existência dum governo constituído, que
seja um princípio de unidade para a atuação dos seus membros.
A autoridade dos governos funda-se na Natureza, que torna
necessária a existência da lei civil e de pessoas que promovam e
vigiem a sua execução. E, como a Natureza é obra de Deus, pode
dizer-se com verdade que todo o poder vem de Deus. Quanto à forma
de governo preferível, não compete à filosofia decidir qual seja.
A única coisa que pode dizer é que, em si mesmos, são legítimos
todos os regimes que deem garantias suficientes de satisfazerem à sua
razão de ser, isto é, de promoverem o bem comum.
O estudo dos diversos regimes pertence à política. A escolha do
melhor, em cada caso particular, depende das circunstâncias: índole
do povo, tradições, grau de civilização, etc. A preferência
por uma forma de governo, em absoluto, não é assunto de certeza,
mas de opinião. S. Tomás, pessoalmente, entende que "o melhor
regime é um regime misto[110]", que reúne as vantagens da
monarquia, da aristocracia e da democracia; advirta-se que S.
Tomás toma os termos monarquia e aristocracia no sentido de " governo
dum só" e "governo dum escol", sem exigir necessariamente que os
cargos sejam vitalícios e hereditários; e descreve-o nos seguintes
termos: "O melhor regime é aquele [...] em que governa um homem
de valor [...]; subordinados a este, alguns homens de valor
participam do poder; e, da sua autoridade, alguma coisa pertence a
todos os cidadãos, porque são escolhidos de entre todos, e
possivelmente por todos [111]".
Como se vê, a doutrina política de S. Tomás difere muito da
monarquia de direito divino dos absolutistas dos séculos XVII e
XVIII. Para S. Tomás, não há ninguém com o direito, dado
por Deus, de governar os outros homens; há sociedades que têm, por
natureza, a necessidade e o direito de serem governadas. Mas não se
afasta menos das idéias dos teóricos do liberalismo, que, a exemplo
de Rousseau, fazem da autoridade um somatório de vontades individuais
arbitrárias, em vez duma instituição exigida pela Natureza e
orientada para o bem comum. A qualidade fundamental duma lei não é
agradar à maioria, mas ser apta a assegurar o bem da sociedade. A
primeira só interessa como critério da segunda, nos países em que se
pode confiar na educação, no bom senso, e no civismo dos cidadãos.
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