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O fato da metafísica assentar diretamente na observação da
realidade, de toda a realidade, e se orientar na sua estrutura só
pelos seus próprios princípios, dá-lhe ima independência tal que
se pode, sem exagero, falar duma transcendência da metafísica
relativamente às ciências naturais.
As conclusões da metafísica encontram-se muitas vezes som as
hipóteses das ciências naturais. Ás vezes, há oposição; e
então, como já disse, a metafísica aponta a hipótese como
impossível, ou a pretensa conclusão como errada, e, se a sua
sentença não é respeitada, aguarda pacientemente que os fatos, no
próprio campo da ciência de que se trata, a Tenham confirmar.
Outras vezes não há oposição. Mas isso não basta para se poder
dizer que a metafísica confirma a Hipótese; para que assim fosse,
seria necessário que a hipótese fosse a única compatível com a
metafísica, isto é, no fim de contas, a única não-contraditória
com os princípios gerais. compreende-se que são muito poucos os
problemas que só possam ser resolvidos duma maneira, em face da
metafisica. Por isso em todas as ciências, as hipóteses
sucedem-se, as conclusões apressadas vão-se rectificando, e a
metafísica, que, possivelmente, consentiu em muitas ou todas, fica
sem alteração, e não é atingida na sua autoridade por tantas
mudanças.
A mecânica clássica, por exemplo, explicava a queda dos corpos
pesados por uma atração da Terra. A mecânica relativista
explica-a por uma modificação das propriedades do espaço na
vizinhança da Terra, pelo que ela chama uma curvatura do Universo
nessa vizinhança. Que importa à metafísica? Em ambos os casos, o
fenômeno notado tem uma causa; nenhuma das hipóteses contradiz as
suas leis; considera-as por isso ambas como possíveis, e deixa que
conhecimentos adquiridos pela experiência e a sua interpretação guiem
os físicos na resolução do problema. Como este, poder-se-iam
citar exemplos tirados de todas as ciências particulares.
Foi por terem esquecido o que acabo de dizer, por não terem
compreendido que possível não quer dizer necessário, que os
escolásticos do século XVII comprometeram gravemente o prestígio
da metafísica, empenhando-a na defesa da física aristotélica. As
teorias físicas de Aristóteles não contradiziam a sua metafísica;
mas também a não contradiziam as da física moderna, bem
compreendidas, e despojadas do que não passava de opiniões
filosóficas dos seus autores. No entanto, havia muitos séculos que
não se assistia a uma tal mudança de hipóteses no terreno
científico. Não que a ciência tivesse estagnado durante a
Idade-Média; a química, em particular, tinha progredido
notavelmente com as experiências dos alquimistas. Simplesmente, os
progressos tinham-se dado num ponto de cada vez; e, no principio da
Idade Moderna, atingiam ao mesmo tempo a astronomia, a física e a
biologia. Parecia o ruir dum mundo. Os escolásticos, esquecidos de
que a derrocada duma teoria física não afecta a metafísica, quiseram
defender hipóteses que os fatos condenavam, e provocaram assim a crise
da metafísica que queriam, precisamente, evitar.
Nós, que temos a lição do que com eles se passou a confirmar o que
a esse respeito diz o estudo teórico das relações entre a filosofia e
as ciências naturais, não devemos cair nunca no mesmo erro. Devemos
olhar com visão larga o progresso das ciências experimentais. Manter
firme, no que é certo, a nossa posição, contando com o tempo para
a confirmar. Mas não atribuir à filosofia opiniões
insuficientemente fundadas, em terreno que pertence às ciências
estudar.
Deve confessar-se que a atitude de alguns escolásticos, Neste
particular, parece às vezes revelar um certo medo. Quando
assimilaram uma teoria física, e verificaram que ela não contradiz a
metafísica, receiam que essa teoria seja substituída por outra, no
estudo da qual podem encontrar sérias dificuldades de ordem
filosófica. É humano e compreensível, tanto mais que as
dificuldades, à primeira vista, aparecem ainda avolumadas pela
natural tendência dos cientistas a pôr em relevo as conclusões
sensacionais, quantas vezes apressadas [95] das suas teorias.
Mas devemos procurar, no amor pela verdade, o alento necessário para
estudar hipóteses que são, pelo menos, esforços para a atingir, e
rejeitar sem hesitações as que os fatos vierem a condenar, por muito
trabalho perdido que isso apresente. Felizmente, o exemplo do
Cardial Mercier frutificou, e, hoje, os tomistas dignos desse nome
procedem como quem não tem medo das ciências experimentais, por estar
tão convencido como S. Tomás da unidade da verdade.
A transcendência da metafísica explica e justifica a sua pretensa
esterilidade. Muito se tem acusado a metafísica de, durante tantos
séculos que foi a preocupação dominante dos sábios, não ter dado
origem a nenhum progresso notável de ordem técnica. A razão é que
a metafísica não é ciência utilitária. É um esforço de
compreensão, de adaptação das grandes linhas do nosso pensamento às
grandes linhas da realidade. Útil, fecunda, é-o a metafísica,
como disciplina da inteligência que se habitua a pensar bem, como
fonte da serenidade que liberta o espírito, como base para uma vida
verdadeiramente humana em que todas as atividades se sujeitam à ordem
traçada pela Natureza, como escola de confiança reflectida no valor
do nosso conhecimento, que é afinal o fundamento de todas as
ciências. Útil, é-o ainda mais a metafísica como realização do
destino mais elevado do homem no campo da atividade natural; porque o
corpo existe para o espírito, e o espírito, não só pela Graça,
mas pela natureza, existe para Deus. Mas utilitária não é; no
campo da prática, uma ciência parcelar, mas especializada, é mais
útil do que a metafísica. Como já disse, são muito poucos os
problemas concretos que a metafísica permite resolver sem necessidade
de estudos experimentais especializados que não são da sua
competência. A metafísica não pode substituir as ciências
físico-químicas na resolução das questões técnicas, nem a
matemática na expressão quantitativa das relações entre os
fenômenos observados. A metafísica é uma sabedoria. Censurá-la
por não dar frutos de aplicação imediata é mostrar disso um
desconhecimento completo.
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