12. Deficiências da posição de Descartes.

Não é difícil ver que a posição de Descartes tem, inevitavelmente, incoerências e petições de princípio. A crítica prévia, como já disse, é uma destas, absolutamente arbritrária. Outra é a dúvida metódica, levada a ponto de não aceitar as leis da lógica, nem a existência do seu próprio corpo, dos outros homens, do mundo exterior. Descartes, de resto, contradiz-se logo na prática, escolhendo para norma provisória por que regular a sua vida, enquanto não tiver atingido alguma certeza, a de "obedecer às leis e aos costumes do meu país [...] governando-me em tudo segundo as opiniões mais moderadas [...] que fossem comumente admitidas na prática pelos mais sensatos daqueles com quem tivesse de viver" [34]. O matematismo imposto à metafísica é também uma petição de princípio. O raciocínio tem de progredir conforme pode, respeitando apenas as suas próprias leis, e adaptando-se no resto à feição especial do assunto de que se ocupa. Não pode obrigar-se a tomar por modêlo a forma que tem numa ciência diferente.

Depois, negando os princípios da lógica, Descartes não pode de forma alguma afirmar que existe, visto que pensa. O Cogito é uma grande verdade, se bem que não a única evidente. Mas como concluir do pensamento para a existência, duvidando das leis do raciocínio? A incoerência é tão manifesta, que o próprio Descartes emendou a mão nas "Meditações metafísicas", (o Cogito é do "Discours de la Méthode") e diz simplesmente que "a proposição "sou, existo", é necessariamente verdadeira todas as vezes que a pronuncio" [35]. Mas há mais, ainda acerca do Cogito. Descartes lida com os conceitos de pensar e existir; não duvida de que eles correspondem a qualquer coisa real, visto que com eles forma uma proposição verdadeira. Mas qual a origem do conceito de existência? Se examinasse a formação desse conceito, Descartes veria que o seu espírito o tinha abstraído das coisas conhecidas pelos sentidos, cuja existência, portanto, não podia pôr de parte. Se se dispensou de estudar o assunto, foi por causa de outra petição de princípio, oculta como as anteriores; a de que as idéias são inatas. Além disso, Descartes sabe que pensa, porque observa a sua atividade mental, porque se vê pensar; mas, da mesma maneira, observa a atividade do seu corpo, e a ação dos corpos com que ele entra em contacto. Assim como sabe que pensa, sabe que vive, e que vive num universo povoado de outros corpos. Não há nada, portanto, que justifique a sua dúvida.

A prova da existência de Deus fundada na idéia que dele faz não vale nada; a idéia do infinito pode tirar-se da do finito pela simples negação do limite, e ser portanto originada nas coisas imperfeitas. De nada vale, também, outro argumento que Descartes invoca, e que não difere essencialmente do de S. Anselmo, de que já falei. Fica assim por fazer a demonstração da existência de Deus, e portanto sem base o raciocínio em que se funda a existência da realidade exterior.

Note-se que, mesmo que assim não fosse, havia incoerência na maneira por que Descartes trata este ponto. Realmente, examinando os motivos porque não pode duvidar do seu Cogito, conclui que é só porque tem dele uma idéia clara e distinta; e funda na veracidade divina a verdade das outras idéias claras e distintas, de que duvidou. Como duvidar dumas e não de outras, se são todas claras e distintas? Ou se, em todas menos no Cogito, há qualquer coisa que nos autorize a duvidar delas legitimamente, não vejo como a veracidade de Deus pode eliminar a dúvida. Permitir que uma idéia duvidosa se nos mostre como duvidosa não é enganar-nos.

Descartes chama à exposição do seu sistema: "Discours de la Méthode pour [...] chercher la vérité dans les Sciences".

Diz, claramente: Fiz ver quais eram as leis da natureza, e, sem apoiar as minhas razões sobre outro princípio senão as perfeições infinitas de Deus, procurei demonstrar todas aquelas sobre as quais poderia haver dúvida, e mostrar que são tais que, mesmo que Deus tivesse criado vários mundos, não poderia haver nenhum onde deixassem de ser observadas" [36]. No entanto, no fim do Discours de la Méthode, escreveu: Devo confessar que a potência da natureza é tão ampla e tão vasta, e que os princípios são tão simples e tão gerais, que quase não encontrei efeito que não visse poder deduzir-se deles de várias maneiras diversas, e que a minha maior dificuldade é geralmente saber por qual dessas maneiras ele depende dos princípios, [37]. Isto é, o seu método levou-o à plena indeterminação, logo que se afastou do ponto de partida. Descartes apela para a experiência, como meio de levantar a indeterminação; e fá-lo em palavras cheias de bom senso. Mas fica convencido da excelência do seu método dedutivo.

O pensamento profundo de Descartes não é tão incoerente como o sistema metafísico que criou. Descartes é realista de intenção, e idealista quase por acaso. Sabe, todo o tempo, que existe e tem um corpo, que existem os outros homens e o mundo exterior. Mas a posição inicial em que se colocou, de limitar arbitrariamente o seu ser ao intelecto, povoado de idéias que admite inatas, de considerar em si, não o homem todo, mas a inteligência isolada, fechada em si mesma, obriga-o a procurar demonstrá-lo.

A posição real de Descartes é a de quem fez a aposta de, partindo da hipótese idealista, chegar às soluções realistas que sabe serem verdadeiras. Descartes julgou tê-lo conseguido. Enganou-se, porque a coisa é impossível; o princípio de realidade é irredutível aos princípios da lógica. Mas como nada nos obriga a partir dessa hipótese gratuita, o insucesso de Descartes só confirma o que acima disse: sobre a negação dos princípios evidentes não se pode edificar nada.