6. Substância e acidentes.

A divisão em ato e potência afeta o ser, como disse, em todas as suas modalidades. Passemos agora ao estudo dessas modalidades, isto é, das diferentes maneiras por que o ser se manifesta.

Vejamos, em primeiro lugar, os seres propriamente ditos, os seres autônomos, que existem em si mesmos, e por si mesmos, o que não quer dizer que existam de per si. Designam-se por substâncias. São os seres cuja lei própria, cuja essência, não exige que existam noutro ser, a que simplesmente acrescentem uma nova determinação. Serão substâncias, por exemplo, um homem, um animal, uma planta, um metal. Só as substâncias existem, na plenitude do termo, e é nelas que pensamos instintivamente quando falamos em seres.

Mas nem todos os seres são substâncias; há outras maneiras de ser: as das determinações secundárias das substâncias. Essas são os acidentes, menos seres do que seres doutro ser, seres cuja essência exige que existam numa substância, a que, para usar o termo exato, são inerentes. Como exemplas, podem dar-se as qualidades, as dimensões, etc.

Os acidentes são, para a substância, atos secundários; a substância desempenha, para com eles, o papel de potência.

A noção de substância corresponde, no tomismo, ao númeno de Kant, mas sem a obsessão de não sei que propriedades encobertas, verdadeiros acidentes ocultos sob os acidentes que podemos conhecer, que é característica do Kantismo. Os acidentes que conhecemos exigem a existência duma substância que os suporte, digamos assim. Não são como que uma casca, que encubra a substância e a oculte aos nossos olhos; são as determinações secundárias da substância. Não podemos afirmar que a substância não tenha outros acidentes que não conhecemos; mas, pelos acidentes, alguma coisa conhecemos verdadeiramente da substância, que eles exprimem, não escondem. À substância compete existir e servir de sujeito aos acidentes; quando conhecemos um acidente, sabemos que a substância que afeta existe, e apresenta esse acidente pelo menos; o conhecimento que dela conseguimos assim, se é indireto e incompleto, não deixa de ser verdadeiro, como acima fiz notar acerca dum caso análogo.

Nos seres materiais, chama-se forma substancial aquela que determina a substância que uma dada porção de matéria constitui; a que se une diretamente à matéria-prima, e confere a existência ao corpo considerado, visto que só à substância compete propriamente existir. São formas acidentais as que acrescentam à substância as suas determinações secundárias. Num dado ser não pode haver senão uma forma substancial, é claro; a mesma matéria não pode constituir simultaneamente dois seres materiais, com leis próprias diferentes. As formas acidentais, pelo contrário, são tantas quantas as particularidades que apresenta o ser considerado.

É muitas vezes difícil distinguir, na prática, o que é forma substancial do que é forma acidental. À metafísica só interessa, nesses casos, saber que há formas substanciais, sejam ou não aquelas que a experiência parece indicar. Com efeito, precisando as formas acidentais, por definição, de ter por suporte uma forma substancial, e não sendo possível remontar ao infinito, como disse acima, é necessário chegar sempre a uma forma substancial, sob pena de termos de negar a existência do ser de que tratamos.

A matéria-prima, a que já chegámos como elemento constituinte exigido pela essência dos seres materiais, aparece-nos também como substrato permanente e necessário da evolução universal. Nós vemos que os corpos se transformam uns nos outros. É claro, por exemplo, o caso da assimilação dum alimento por um ser vivo, ou o da decomposição dum cadáver depois da morte. Ora, a transformação exige que alguma coisa do primeiro corpo passe para o segundo. Se é completa, substancial, como nos exemplos que apontei, só transita dum para o outro corpo a matéria despida de qualquer forma, a matéria-prima da metafísica.

Como conseqüência, devemos concluir que as formas puras não podem transformar-se substancialmente. Podem adquirir ou perder certas determinações acidentais; mas, como substâncias, existem, ou não existem. Não há nelas nada que possa passar para uma substância diversa.