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As relações entre o acaso e a Providência têm de ser estudadas à
parte. Não suponhamos que, para admitir a Providência, temos de
negar o acaso, nem, para atribuir uma coisa ao acaso, nos julguemos
obrigados a subtraí-Ia à Providência divina. Devemos pensar,
pelo contrário, que a Providência inclui as causas acidentais; que
os efeitos do acaso estão previstos na ordem providencial.
Para compreendermos como isso possa ser, vejamos o que se passa
conosco. Suponhamos, por exemplo, que um homem deitou, ontem, os
dados, e tirou um determinado número. O fato de conhecermos a ação
e o seu resultado não impede que o número saído fosse obra do acaso.
Se, por outro lado, soubermos que o homem vai deitar os dados
amanhã, não podemos de forma nenhuma prever o número que há-de
sair, a não ser que, por qualquer artifício, tenhamos disposto as
coisas de maneira a que saia um dado número, que, por isso mesmo,
não será devido ao acaso. Qual a razão da diferença entre os dois
casos?
Quando se trata de fatos passados, podemos conhecer a causa e os
efeitos em si mesmos, no seu ser. O conhecimento que deles temos não
depende da espécie de laço que os une, nem altera em nada esse
laço. Mas os efeitos futuros só nos podem ser conhecidos nas suas
causas; só podemos por isso prevê-los se resultam necessariamente
dessas causas. Assim, podemos prever um eclipse futuro a partir das
posições dos astros no passado e no presente, por se tratar dum
fenômeno em que a parte do acaso é praticamente nula; mas não
podemos saber o número que vai sair num jogo de dados, porque depende
do concurso de muitas causas que não têm entre si qualquer relação
necessária.
Ora Deus não está sujeito ao tempo. Conhece os fatos futuros como
os passados, no seu ser, que recebem dele. Pode prever os efeitos
futuros de causas contingentes, porque os conhece em si mesmos, e não
apenas nas suas causas. E o fato de os conhecer não torna esses
efeitos necessários, como o fato de nós conhecermos os efeitos
devidos, no passado, ao acaso, não os impede de terem sido
fortuitos.
A Providência, longe de impedir o acaso, é o seu fundamento. O
ser vem de Deus, com todas as suas divisões, em todas as suas
modalidades, com todas as suas relações; portanto vem de Deus,
também, a causalidade contingente ou necessária. Se o efeito duma
causa é contingente, o último motivo disso é que Deus assim o
quer. Não podemos invocar, contra uma coisa, aquilo mesmo em que
ela se funda; não podemos portanto opor o acaso à Providência.
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