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E assim fica visto, rapidamente, o essencial duma ontologia, que
não é mais, afinal, do que desenvolvimento e análise da noção
basilar, primária, do ser, com adoção duma nomenclatura
apropriada. Falou-se da composição de ato e potência, que se
manifesta nas distinções de essência e existência e de forma e
matéria. Estudaram-se as modalidades gerais segundo as quais o ser
se realiza analogicamente, as categorias, e depois a distinção em
gêneros, espécies e indivíduos. Mencionaram-se os
transcendentais, noções em que desdobramos a de ser, considerando
nela uma faceta de preferência às outras. Resta falar de certas
noções que não correspondem, na realidade exterior, a nenhum ser,
mas com as quais teremos de lidar mais adiante.
Toda a noção, como noção, é um ser; é idéia, existente na
inteligência que a pensa. É ser de razão. Mas pode corresponder a
um ser real, isto é, existente fora da inteligência; ou pode não
lhe corresponder nenhum ser real, o que não quer dizer que seja
errada, visto que só o seria se fosse acompanhada da convicção de
que essa correspondência existia.
O primeiro é o caso das qüididades dos seres reais, isto é, das
suas essências abstratas, consideradas independentemente da sua
existência.
O segundo é o caso das qüididades dos seres simplesmente possíveis,
isto é, das essências a que falta o ato de existência, e que por
isso mesmo são abstratas e só abstratas. Enquanto esses seres não
existem, e alguns podem não chegar nunca a existir, são noções que
não correspondem a nenhuma realidade. A idéia que um arquitecto tem
duma construção coerente, ainda em projeto, serve de exemplo de
noção dum ser possível.
O segundo é o caso, também, das noções a que não corresponde nem
pode corresponder nenhum ser real, por não exprimirem nenhuma
essência. São assim os universais, gêneros e espécies, se os
tomarmos com o seu caráter de universalidade; já vimos que, na
realidade, só existem individuados. São assim ainda muitas noções
utilizadas pela lógica: sujeito, predicado, etc.
Também são seres de razão as noções negativas, como a privação
e a negação. A privação tem, como as anteriores, um fundamento
na realidade, mas não corresponde a um ser real. O que existe não
é ela, mas um ser privado duma perfeição que lhe compete. O nosso
pensamento decompõe a noção desse ser em duas: a do ser perfeito, e
a da perfeição que lhe falta, esta a subtrair da primeira, como
privação. Quando pensamos num homem a quem falta um braço, por
exemplo, o nosso espírito distingue duas noções: a do homem
completo, com ambos os braços, e a da privação do braço que lhe
falta. Logo se vê que a segunda não pode corresponder a nada de
real, senão conjugada com a primeira.
A idéia da negação, do nada, do não-ser, nem mesmo tem
fundamento em qualquer ser que exista ou possa existir na realidade. É
devida a que a nossa inteligência, feita para o ser, tem de recorrer
aqui a uma ficção, e de emprestar ao não-ser certos aspectos dum
ser, sem, aliás, lhe atribuir existência, se raciocina bem.
Quanto ao absurdo, isto é, ao que se contradiz a si mesmo, não
é: sequer um ser de razão. Podemos falar dele, não prestando
atenção ao que a palavra significa; mas não podemos pensar nele, a
não ser de forma muito superficial, porque não dá lugar a uma
noção consistente. Pensar num círculo quadrado, por exemplo, é
impossível; logo que queremos aprofundar a idéia a que demos esse
nome, vemos que ela nem como idéia pode existir.
Note-se que o verbo ser, empregado quando se fala de seres de razão
que sabemos não poderem existir realmente, não corresponde a qualquer
atribuição de existência. É uma simples cópula verbal. Quando
dizemos, por exemplo, que o não-ser é o contrário do ser, sabemos
bem que, na realidade, o não-ser não é, não pode ser. Queremos
dizer, unicamente, que tanto vale falar do não-ser como do
contrário do ser; que as duas noções são equivalentes.
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