12. O livro-arbítrio.

Disse que a vontade quer o que a inteligência lhe mostra como desejável, ou, visto que desejável e bom são termos equivalentes, o que a inteligência lhe mostra como bom; bom, entenda-se, nem sempre do ponto de vista moral, mas bom imediatamente, aqui e agora. Sendo assim, poderá afirmar-se que o homem é livre nas suas decisões?

Nem todos os atos do homem são livres; é claro, por exemplo, que o homem não é livre de cair ou não cair, se o largarem no espaço. Mas temos consciência de sermos livres nos atos que dependem da nossa vontade, e na medida em que dependem dela. Poderá isso conciliar-se com o quadro que tracei?

Ser livre é determinar-se a si mesmo na escolha a fazer. Dai resulta que os atos humanos são realmente livres, na medida em que é a vontade que os dita.

Posta em presença do fim último do homem, do fim que satisfaz todas as suas tendências, conhecido plenamente esse fim, a vontade não pode deixar de aderir a ele e de repousar nele totalmente. A inteligência mostra-lhe esse fim como evidentemente e eminentemente desejável; a vontade adere a ele necessariamente. Mas não deixa de ser livre ao fazê-lo; porque, se o quer, é porque é ele o que, no seu íntimo, procura. É auto-necessitada, e não necessitada de fora. Não pode deixar de querer aquilo que, precisamente, quer, como nenhuma coisa pode deixar de ser o que é, enquanto o é. A necessidade do seu ato corresponde à evidência com que a inteligência o julga bom.

O ato da vontade é ao mesmo tempo livre e necessário, nesse caso. Mas só nesse caso. Todos os outros fins são parciais; não esgotam as tendências naturais do espírito humano. Ao escolhê-los, portanto, a inteligência encontra em todos vantagens e inconvenientes; nenhum é evidentemente preferível aos outros. A escolha só se consegue ao fim dum raciocínio às vezes complicado, e em que se pesam todos os prós e contras.

Ora o que move a inteligência a pensar, e a procurar o fim particular a atingir, é a vontade. Enquanto a inteligência não lhe propõe um fim que lhe agrade, a vontade não a deixa dar por concluída a sua escolha. E a inteligência, entre as objeções que pesa, inclui a repugnância da vontade; entre os motivos favoráveis, inclui a prontidão desta. Assim, as nossas preferências deitam a espada na balança das decisões da inteligência, quanto ao que devemos fazer; assim, a inteligência indica à vontade aquilo que a vontade quer.

Nisso consiste o livre-arbítrio, de que temos consciência. Não é o poder de querer ou não querer qualquer bem, mas a faculdade de escolher um de entre vários bens que se excluem. Há realmente liberdade, visto que sendo a vontade guiada pela razão, e a razão influenciada pela vontade, não há nada que necessite uma escolha. Alguma tem de desempatar, sob pena de círculo vicioso; é a vontade, de acordo, em parte, com as disposições que criou em si, com os seus hábitos, no sentido tomista que já vamos ver. Melhor, sorvos nós, por aquela parte inacessível do nosso eu onde se ocultam as nossas preferências pessoais; são os nossos afetos, o nosso amor por determinados bens. Por isso os escolásticos, muito justificada mente, deram ao amor intelectual, como sede, a vontade.

Escolhemos o que queremos, o melhor relativamente a nós, e não o melhor em absoluto, como faríamos se raciocinássemos sobre um caso abstrato. Pelo livre-arbítrio, tornamo-nos portanto responsáveis pelos nossos atos, que escolhemos como quisemos entre os vários atos possíveis. Por ele temos o poder, glorioso e temível, de cooperar livremente no plano divino de que fazemos parte, ou de nos furtarmos a essa colaboração. Lembremo-nos disso, e não nos deixemos enganar acerca do intelectualismo pretensamente frio de S. Tomás. O intelectualismo de S. Tomás não é abstrato, desumano; é intelectualismo ardente e afetivo, que não esquece que a inteligência pertence ao homem, e, no terreno da ação, se deixa influenciar pelas suas afeições quando julga e compara coisas que lhe tocam de perto.