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A realidade não chega ao nosso conhecimento só pela observação;
é-nos também acessível pela Revelação divina. Di-lo a fé, e
nós somos cristãos. As nossas conclusões não deverão portanto
opor-se à doutrina revelada; a nossa filosofia deverá ser,
essencialmente, uma filosofia cristã.
Nenhuma das notas que caracterizam a verdadeira filosofia tem sido tão
mal compreendida como esta. No entanto é bem simples: Se a razão
nos afirma a possibilidade duma revelação, e a validade dos motivos
por que aceitamos a Revelação cristã, não podemos admitir que se
contradiga, e chegue, em filosofia, a conclusões opostas à verdade
revelada.
Raciocínio que termine por uma afirmação contrária à fé está
errado: ou teríamos de admitir que estão errados aqueles em que
fundamos a nossa crença; não há meio-termo. E não podendo nós
aceitar a segunda hipótese, tantos séculos de estudo não encontraram
nenhum vício nos raciocínios que conduzem à fé, resta só a
primeira. Quando, portanto, no fim dum raciocínio, chegarmos a uma
conclusão oposta a uma verdade teológica, podemos afirmar que há
vício nesse raciocínio exatamente como se a conclusão contradissesse
um fato observado, e procurar onde ele está. É o pensamento de S.
Tomás: "Se alguma coisa, no que dizem os filósofos, é
contrária à fé, não é filosofia, mas abuso da filosofia,
provocado pela fraqueza da razão. É por isso possível refutar o
erro, e refutá-lo pelos próprios princípios da filosofia, mostrando
que o que se objeta é complemente impossível, ou pelo menos que não
é necessário [11]".
Note-se que a recíproca não é verdadeira: a conclusão pode estar
de acordo com a teologia, e no entanto o raciocínio estar errado,
não na conclusão, mas no seu desenvolvimento. O caso tem-se dado
muitas vezes.
A fé auxilia a filosofia doutras maneiras ainda. Já não falo de
todos os auxílios pessoais que o filósofo cristão encontra,
diretamente, na Graça, nos Dons que a acompanham, na iluminação
da inteligência pela Fé, e indiretamente na liberdade de espírito
proveniente duma vida moralmente sã; falo só do auxilio prestado à
própria filosofia.
Assim, pode o filósofo cristão conhecer, antecipadamente, pela
teologia, a conclusão a que quer chegar, o que lhe torna o trabalho
muito mais fácil. O seu raciocínio não deixa, por isso, de ser
estritamente filosófico. Realmente, se o raciocínio se baseia,
exclusivamente, nos princípios naturais e na observação, é
filosófico, quer se conheça quer não, anteriormente, por outra
via, a veracidade da conclusão. Há uma analogia frisante: é
frequente dar-se aos alunos de matemática, como exercício, a
demonstração dum teorema cujo enunciado se lhes indica; os seus
cálculos não deixam de ser matemáticos, pelo fato deles já
saberem, de antemão, que o enunciado é verdadeiro. O mesmo se dá
aqui.
Mais ainda. A teologia afirma a possibilidade, para a razão, de
demonstrar certas verdades de fé. O Concílio do Vaticano definiu,
por exemplo, que a existência de Deus pode ser demonstrada
racionalmente. Uma tal certeza só pode aumentar a confiança com que
um filósofo cristão aborda esses problemas.
A filosofia recebe portanto da teologia um tríplice auxílio: a
descoberta de muitos erros, a indicação de algumas conclusões, a
afirmação da possibilidade de resolver certos assuntos. Em paga,
também auxilia a teologia. Estuda a possibilidade e a conveniência
duma revelação, nesse capítulo especial da filosofia que é a
apologética. Analisa e confirma os motivos de credibilidade, e
estabelece assim a evidência extrínseca da doutrina revelada. Refuta
os erros dos que opõem à fé, erros que a teologia não pode
combater, porque eles tomam, como posição inicial, a negação da
Revelação em que a teologia se baseia. Finalmente, fornece à
teologia noções e elementos de que ela se serve no estudo racional das
verdades de fé; por exemplo, o estudo, feito na filosofia de
noções como as de substância e acidente, natureza pessoa, é
utilizado pela teologia quando trata dos mistérios da Santíssima
Trindade, da Encarnação, da Eucaristia.
A natureza das relações entre a teologia e a filosofia deu origem ao
aforismo da Escolástica: "A filosofia é serva da teologia". Há
duas maneiras de entender essa expressão. Pode compreender-se como
significando que se estuda filosofia unicamente com o fim de poder
abordar a teologia prevenido com as noções indispensáveis; o que,
muitas vezes, tem como corolário o procurar-se menos, na filosofia,
veracidade duma solução, do que a sua conveniência sob ponto de
vista teológico. A filosofia fica então reduzida uma simples
ciência auxiliar da teologia, que se serve das suas teses e do seu
vocabulário. Esta maneira de ver não é propriamente filosófica: pode
ser aceitável, se quem a adota não erra nos seus raciocínios
filosóficos; mas, para a filosofia é sempre um sintoma de
decadência. A outra maneira de ver é a que, na filosofia, procura
a verdade, com os recursos que a filosofia dispõe, e por amor da
verdade; reconhecendo, no entanto, que à teologia cabe indicar que
está errada qualquer afirmação da filosofia que contradiga as suas.
Filosofia autônoma no seu campo, mas subordinada à teologia,
detentora de certezas de ordem superior; é a maneira de ver de S.
Tomás de Aquino.
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