11. A crítica cartesiana.

Vejamos as posições dos autores das duas críticas historicamente mais importantes: Descartes e Kant. Descartes duvida de todos os princípios. Porque os sentidos o enganam às vezes, e porque o que toma por realidade pode não passar de um sonho, duvida da existência do mundo sensível. Porque os homens podem ter-lhe mentido, ou terem-no enganado involuntariamente, duvida de tudo quanto lhe ensinaram. Duvida de todos os raciocínios que fez até então, considerando-os insuficientemente fundamentados. Duvida até de operações do seu espírito tão simples como as de somar dois e três ou contar os lados de um quadrado, que são aplicação direta do princípio de contradição. Em suma, começa a filosofar num estado de dúvida em que admite, até, como possível a existência de um gênio mau que se entretivesse a iludí-lo. A sua dúvida incide primariamente sobre os princípios, ele mesmo o diz: "Porque a ruína dos alicerces arrasta necessariamente consigo todo o resto do edifício, começarei por atacar os princípios sobre os quais todas as minhas opiniões se apoiavam" [32].

A certeza que encontra nas conclusões da matemática sugere-lhe a idéia de exigir que a sua filosofia tenha aspecto matemático, isto é, seja constituída por deduções sucessivas, derivadas todas de um número muito pequeno de princípios, claros e simples. Resta escolher, para princípios verdades de que não possa, de forma alguma, duvidar. Descartes só encontra o Cogito, isto é, a afirmação: "Penso, logo existo"; e sobre ele funda toda a sua metafísica. Estabelecida a sua própria existência como ser pensante, verifica que entre as suas idéias há a de Deus, ser infinitamente perfeito; esta não pode, diz Descartes, ter por causa um ser imperfeito, e por isso prova que Deus existe. Mas Deus, infinitamente verdadeiro, não pode consentir que ele seja enganado em todos os seus pensamentos; logo, todas as idéias que, como o Cogito, lhe aparecem claras e distintas, são verdadeiras; o seu corpo não é uma ilusão; o mundo exterior existe; e é-lhe possível conhecê-lo dedutivamente, tomando por base o Cogito.

A esta critica prévia, que Descartes quis construtiva, "eu não imitava os céticos, que duvidam só por duvidar e afetam estar sempre irresolutos, mas, pelo contrário, toda a minha intenção era firmar-me, e rejeitar a terra movediça e a areia para encontrar a rocha [33] ", diz ele, segue-se o resto da sua metafísica. É o espírito reduzido ao pensamento, e a matéria à extensão. É, como conseqüência, no homem, a dualidade da alma e do corpo, sem unidade substancial; a dificuldade que daí provém, na ordem do conhecimento, evita-se pelas idéias inatas; na ordem da atividade, procura-se resolvê-la pela suposição dos espíritos animais, de que já falei. Estas teses, juntamente com a teoria de que os animais são puros autômatos, constituem o essencial do cartesianismo.