10. O mérito.

A satisfação do dever cumprido compensa os bons de muitas contrariedades; mas, por grande que seja, não basta para se poder considerar justamente premiado quem, tendo feito o bem toda a vida, não encontrou senão desgraças. É a imortalidade da alma, com a existência, que implica, duma outra vida em que não se está sujeito aos acasos da matéria, que permite restabelecer a justiça e assegurar a quem é bom a recompensa que merece.

A alma separada, como disse, conhece por idéias infusas. O grau do conhecimento de Deus que podemos ter na outra vida, e portanto a nossa bem-aventurança, depende por isso, sempre no campo do natural, porque estamos em filosofia, de dois elementos. Um é obra nossa; é a nossa capacidade para aproveitar as idéias abstratas que nos serão dadas a conhecer: por outras palavras, é o hábito da contemplação, adquirido nesta vida, e que dá frutos para a outra por causa da memória intelectual. O outro depende só de Deus, visto que é ele quem há-de infundir na alma essas idéias. E, porque Deus é justo, devemos confiar em que dará, a cada um, o que é necessário para que tenha a felicidade que merece. A necessidade duma outra vida para que a justiça seja satisfeita pode até servir de prova da imortalidade da alma, uma vez provado que Deus é justiça.

Por isso, a par da moralidade material, medida pelo efeito físico das nossas ações, devemos considerar uma moralidade formal, fundada no mérito, que lhes dá direito a uma recompensa perante a justiça de Deus. Note-se que não há nada, na teoria tomista do mérito e da bem-aventurança, que se assemelhe ao torrão de açúcar prometido a uma criança para que se porte bem. A imortalidade da alma é uma necessidade da nossa natureza; a obtenção do nosso fim último, como conseqüência dos atos que orientamos para ele, e por intermédio do mérito que fica inerente ã alma, é uma exigência da justiça; e a perda desse fim, em resultado dos atos que orientamos para um fim oposto, não é um castigo exterior, mas a satisfação da nossa própria vontade. No plano do espírito, o ato interior produz o seu efeito, pelo mérito, como o ato exterior produz o seu no plano da matéria; mas sem o risco de, como este, se ver frustrado desse efeito pelo acaso. Por isso, se a idéia da felicidade futura pode, acidentalmente, servir-nos de incitamento para o bem, é. errado considerar o bem que fazemos, essencialmente, como um negócio lucrativo. A noção de bem e a noção de fim estão ligadas entre si; são dois aspectos duma mesma coisa; não existem uma por causa da outra.