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Kant é incontentavelmente maior filósofo do que Descartes: mas a
sua posição também não está isenta de reparos. A perpétua
sucessão dos sistemas filosóficos, dos quais nenhum se consegue
impôr, impressiona justamente Kant, que procura os motivos porque a
filosofia não produz obra duradoura. Descartes tomava a matemática
como modelo; Kant vê na física o tipo da ciência que progride por
aquisição de conhecimentos novos, sem necessidade de refazer,
constantemente, todo o essencial do seu corpo de doutrina. Faz uma
crítica apertada do nosso processo de conhecimento, aceitando, dos
princípios que apontei, os dois primeiros, os de contradição e de
realidade, mas rejeitando o terceiro, o de inteligibilidade do ser.
Com efeito, Kant toma como ponto de partida a afirmação de que o
mundo existe, mas não pode ser conhecido por nós. Não podemos,
julga, atingir as coisas como são na realidade, o número; só
conhecemos as sensações a que elas dão lugar, os fenômenos. Não
conhecemos o mundo objetivo, mas o mundo subjetivo das nossas
próprias percepções. E nos fenômenos, pensa Kant, tomados em si
mesmos, não há nada de inteligível. O fenômeno é matéria para o
pensamento, segundo Kant, mas matéria bruta, que precisa de ser
previamente vazada nos moldes inteligíveis, preexistentes no nosso
espírito, que são as formas a priori.
A sensação começa por projetar a percepção bruta (sempre segundo
Kant), nas formas a priori da sensibilidade, o tempo e o espaço; o
espaço é a forma a priori dos sentidos externos, o tempo a dos
sentidos internos. A inteligência, pelo entendimento, torna o
fenômeno assim elaborado universal e necessário, capaz de fazer parte
dum raciocínio, vazando-o numa das doze formas a priori do
entendimento, a que Kant chama categorias (dando ao termo um sentido
diferente do que tem na filosofia aristotélica). Essas categorias,
ou conceitos, são as seguintes: unidade, pluralidade, totalidade,
realidade, negação, limitação, substância, causalidade, ação
mútua, possibilidade, existência, necessidade.
Desta maneira, tudo o que há de inteligível numa idéia provém de
nós. A verdade dum juízo nosso não pode ser por isso a sua
conformidade com o que se dá na realidade; é, simplesmente, a sua
conformidade com as leis que, no nosso espírito, regulam a síntese
do conceito e do fenômeno. Essas leis, diz Kant, não diferem de
homem para homem; pertencem à humanidade; são por isso necessárias
e universais.
Como Kant não admite para a metafísica qualquer base experimental,
conclui que todos os raciocínios metafísicos tratem de formas sem
matéria, de quadros vazios, de conceitos sem base sensível. À
possibilidade da metafísica chama Kant uma ilusão transcendental,
natural e inevitável, se a crítica prévia a não tiver
desmascarado. As teses filosóficas não passam de hipóteses
indemonstráveis, e só valem como tal. Podem contradizer-se. Kant
dá como exemplos quatro antinomias: as demonstrações (segundo
julga), de que o mundo é eterno, e começou, é infinito, e
limitado; os corpos são constituídos por elementos indivisíveis,
e, por outro lado, divisíveis indefinidamente; uma causa livre é
necessária, e impossível; e o ser necessário existe, e não pode
existir. Assim explica Kant a instabilidade dos sistemas
filosóficos.
Na parte construtiva do seu sistema, Kant afirma que o imperativo
categórico da razão prática, que nos impõe o cumprimento do dever,
tem valor numenal, e pode servir de fundamento à crença na liberdade
humana, na imortalidade da alma, na existência de Deus.
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