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É só dessa filosofia que trato nestas lições.
O título que escolhi pode, na aparência, contradizer o que deixo
dito: "Lições de Filosofia tomista" parece querer indicar que a
filosofia de que me ocupo é uma filosofia entre outras, igualmente
merecedoras do nome de filosofia. Mas não é assim; se escolhi esse
título, foi porque o conceito de filosofia está de tal modo deformado
na linguagem vulgar, que, se eu chamasse a estas lições "Lições
de filosofia", sem mais nada, todos entenderiam que se tratava dum
trabalho eclético, que pusesse no mesmo pé os sistemas coerentes e
os incoerentes, os princípios evidentes o os arbitrários, os
raciocínios errôneos e os exatos. Para marcar, logo pelo nome, a
índole que queria dar a estas lições, tive de dizer "filosofia
tomista"; mas tomando a expressão como sinônimo de filosofia no
sentido estrito, não como subdivisão desta.
É, afinal, o que acontece quando dizemos, tantas vezes,
"católico" em vez de "cristão", apesar de convencidos de que só
o catolicismo é cristianismo verdadeiro. Termos que são
essencialmente sinônimos têm de ser usados em sentido diferente,
porque há muito quem se reclame dum deles, e não do outro.
Resta, no entanto, dizer porque chamei tomista à filosofia no
sentido estrito. Ela não é obra exclusiva de S. Tomás. Longe
disso. Na história da filosofia perene, há dois nomes que se
destacam, acima de quaisquer outros: os de Aristóteles e S.
Tomás de Aquino. Mas, além destes, são inúmeros os que
concorreram, mais ou menos largamente, para o seu desenvolvimento.
Antes de Aristóteles, é preciso lembrar (além dos primitivos
gregos), os seus predecessores imediatos, Sócrates e Platão.
Antes de S. Tomás, os trabalhos de S. Agostinho, Pedro
Abelardo, S. Anselmo, S. Alberto Magno, representam
progressos notáveis da noção ou do corpo de doutrina da filosofia.
Depois de S. Tomás, há que citar os seus discípulos e
comentadores; Pascal, que, não conhecendo, provavelmente, o
tomismo, se apoiou no entanto, largamente, nos princípios da sã
filosofia, para as suas análises agudíssimas; e os neotomistas dos
nossos dias, que têm estudado, à luz da filosofia perene, os
problemas que os nossos tempos fizeram surgir. A filosofia de que me
ocupo é obra de todos eles; e, indiretamente, de todos os outros
filósofos, porque, como já disse, de algum modo, todos concorreram
para ela.
No entanto, era isto mesmo que S. Tomás entendia por filosofia.
Ele fez por estudar tudo quanto havia escrito no seu tempo sobre
assuntos filosóficos. Procurou compreender até ao íntimo, apesar
das diferenças de linguagem, o pensamento dos seus mestres e dos seus
adversários. Aproveitou tudo o que havia de bom, assimilando-o no
seu sistema; não, observe-se, fazendo deste como que uma manta de
retalhos, composta de peças heterogêneas mal ligadas entre si, mas
integrando todas as teses aceitáveis, fosse quem fosse o que primeiro
as defendeu, num sistema de lógica interna poderosa, de forma a
poder-se dizer que, se alguma coisa particulariza o tomismo, é o seu
esforço para ser universal, impessoal.
Digo filosofia tomista, portanto, para indicar que entendo, por
filosofia, o mesmo que entendia S. Tomás. Não foi ele o único a
pensar assim; mas ninguém fez obra que se aproximasse tanto como a
dele do ideal que procurava. Nem Aristóteles, que, no entanto,
tinha da filosofia um conceito muito impessoal. Mostra-o a frase com
que se recusou a seguir o sistema de Platão: "Sou amigo de
Platão, mas mais amigo da verdade"; não se invocava a si mesmo
para motivo, como poderia fazer quem quisesse construir um sistema
seu; apelava para a realidade dos fatos. Mas várias conclusões de
Aristóteles tiveram de ser corrigidas por S. Tomás, como
afetadas de erro; nenhum ponto importante da filosofia de S. Tomás
foi corrigido até hoje.
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