IX. O conhecimento.

A. O conhecimento sensível.


1. Introdução.

Conhecer uma coisa é recebê-la, de certo modo, em nós. É, continuando nós a ser o que somos, e ela a ser o que é, dar-lhe existência no nosso espírito. Todo o conhecimento pressupõe um sujeito que conhece, um objeto que é conhecido, e meios que permitam conhecer. No ato do conhecimento, dá-se a síntese do sujeito e do objeto; o sujeito torna-se no objeto, não realmente, mas intencionalmente, como se diz na terminologia escolástica. O problema do conhecimento, em si, é portanto idêntico em todos os casos. h. o da interpenetração formal de dois seres, o de nos assimilarmos a outro ser mantendo a consciência de que ele é distinto de nós: "fieri aliud in quantum aliud", segundo uma expressão famosa, atribuída ao nosso João de S. Tomás.

Mas o conhecimento não é idêntico, nem no grau, nem no modo de conhecer, nos animais, no homem e nos Anjos. Varia com a espécie a que pertence o indivíduo que conhece. Nos animais é sensível; no homem e nos Anjos, intelectual; mas abstraído das coisas sensíveis no homem, intuitivo nos Anjos. A minha intenção, no que se segue, é cinicamente estudar o conhecimento humano; só me referirei às outras modalidades do conhecimento na medida em que isso for necessário para o fim que indiquei.

Muitos filósofos têm feito do estudo critico do conheci mento intelectual o fundamento, quando não o todo, das suas teorias. Já disse, ao tratar dos princípios, que pôr a questão dessa maneira é afastar, arbitrariamente, evidências basilares que nenhum trabalho mental pode substituir. É querer resolver pelo raciocínio um problema que não se põe, um problema fabricado ad hoc, e que o raciocínio não poderia resolver se se pusesse; porque o raciocínio não pode senão edificar sobre os princípios, nunca fundamentá-los. A posição idealista, que quer, a partir do pensamento, demonstrar o real, é ao mesmo tempo arbitrária e insolúvel. Não a adoptaremos.

O nosso estudo do conhecimento será feito dentro do quadro da metafísica tomista. Não vamos discutir o fato do conhecimento, que está implicado nos princípios em que nos fundamos. O ponto de partida dos nossos raciocínios, mesmo dos que se ocupam da maneira como conhecemos, tem necessariamente de ser a existência dum mundo real, de cuja lei é um reflexo a lei do nosso pensamento. É esse um princípio evidente, aceito até mesmo pelos que o negam, quando tentam dar alcance real às suas idéias e transmiti-las aos outros. O que vamos portanto estudar é o como do conhecimento; o modo por que a forma de existência do objeto conhecido se reproduz no nosso espírito, onde serve de ponto de partida de raciocínios válidos.

O problema que vamos abordar, a posição realista do estudo do conhecimento, é problema que se põe de fato, e incontentavelmente difícil. Mas é solúvel. A nossa inteligência pode estudar-se pela chamada reflexão, isto é, aplicando ao estudo dos nossos meios de conhecimento as mesmas faculdades com que estuda todos os outros objetos. Pode observar-se a si mesma; voltar sobre si o olhar que em geral diria para fora; e, fundada na sua base imprescindível, os princípios, sem a qual não pode senão deixar de funcionar, analisar o conhecimento humano desde o objeto real à idéia em que o conhecemos.

Como é pelos sentidos que tomamos contacto com os objetos, temos de começar pelo estudo do conhecimento sensível. Passaremos depois ao conhecimento intelectual, a que o primeiro serve de base.