B. O conhecimento intelectual.


8. Sensibilidade e inteligência.

O conhecimento intelectual é de outra ordem. Tem por objeto o universal, na sua generalidade. Não atinge o ser concreto, material, mas a forma imaterial desse ser, ou melhor, a essência que ela lhe confere; e atinge-a precisamente na sua qualidade de tipo geral de ser, reprodutível na matéria em número ilimitado de exemplares. Nos homens, distingue o homem; nas coisas boas, a bondade. Conhece as maneiras por que, nos diferentes seres concretos, se manifesta o ser multiforme. Por isso a atribuímos a uma faculdade com sede na alma só, capaz, por ser imaterial, de receber o universal sem, com fazê-lo, o par- ticularizar.

A heterogeneidade do conceito intelectual e da imagem sensível tem chamado a atenção dos filósofos desde os tempos da antiga Grécia. Com exceção dos pre-socráticos da escola de Demócrito, e de alguns modernos, que reduzem toda a atividade intelectual a um movimentar de imagens, todos os filósofos têm reconhecido a diferença fundamental entre o objeto da inteligência e o do conhecimento sensível. Os idealistas de vários matizes explicam-na atribuindo às idéias origem absolutamente independente dos sentidos. Para Platão, as nossas idéias são recordação do que a alma conheceu numa vida separada do corpo, anterior ao nascimento. Descartes admitia que as idéias são inatas; o homem já nasce com o espírito povoado pelas representações intelectuais dos objetos. O seu discípulo Malebranche entendia que a inteligência vê em Deus tudo quanto conhece. Para Kant, mais subtil, é a inteligência que cria a parte formal do conhecimento, e que a veste à matéria fornecida pelas percepções brutas da sensibilidade. No fundo de todos estes sistemas, ou está a confiança na veracidade divina como única garantia da conformidade das nossas idéias com as coisas conhecidas, ou a negação, como no de Kant, de qualquer conformidade entre as duas coisas.

Simplesmente, o idealismo, nascido do desejo de evitar urna dificuldade de que se reconhece a importância, e que não se sabe como resolver, não tem nenhum fundamento sólido. Tudo quanto podemos observar nos mostra que o que a nossa inteligência conhece lhe vem por intermédio dos sentidos. É incontestável que progredimos intelectualmente com a experiência, com a observação do que se passa em nossa roda, e de que temos conhecimento pelos sentidos. É incontestável também que podemos aprender com os outros; o mestre comunica ao discípulo a sua ciência, pelas palavras que lhe diz, pelos exemplos sobre que atrai a sua atenção. Em tudo isso, os sentidos servem do intermediário. Como contraprova, serve o fato de num homem a quem falta completamente um sentido faltarem todas as idéias relacionadas com esse sentido; a um cego de nascença, por exemplo, não só faltam as imagens das cores, mas também a noção do que seja uma cor. Nada nos permite julgar, portanto, que as idéias tenham origem independente dos sentidos.

De resto, o idealismo não evita a dificuldade; não faz mais do que deslocá-la. Dispensa-nos de explicar a maneira por que o conhecimento sensível serve de veículo ao conhecimento intelectual, apesar da disparidade dos dois; mas torna impossível justificar a união, no homem, da alma intelectual a um corpo sensível. Realmente, a uma alma capaz de realizar sem o corpo o seu ato mais perfeito, e da maneira que lhe é mais adequada, para que serviria unir-se ao corpo? Se quiser salvaguardar o fato do nosso conhecimento progredir com a experiência, o idealista terá de admitir que as idéias das coisas existem em nós como que ligadas por causa da união ao corpo, e são libertadas pela ação do conhecimento sensível; como compreender então esta coisa contraditória da união ao corpo, que é natural no homem, impedir a alma de conhecer idéias que nela existem por natureza também? A não se querer simplesmente deixar estas preguntas sem resposta, ou admitir que a união da alma ao corpo é por conveniência deste, o que é subordinar o superior ao inferior, a forma à matéria, o subsistente ao efêmero, tem-se de cair em hipóteses como a de Platão, duma vida anterior de que não temos nenhuma consciência, e em que a alma, ainda sem corpo, cometeu faltas a que a união ao corpo serve de castigo.

É mais simples, e mais conforme com a observação, dizer como Aristóteles que a inteligência, no começo da vida, é "uma prancheta em que não há nada escrito" [84], e recebe todas as idéias por intermédio da sensibilidade. O que os escolásticos exprimiram por este aforismo clássico: "Não há nada na inteligência que primeiro não estivesse nos sentidos".