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Qual é a origem da vida? Não se conhece nenhum caso de produção
dum ser vivo sem o concurso duma semente (no sentido mais lato da
palavra), proveniente doutro ser vivo. Mas se o Mundo começou, e
a vida começou no Mundo, os primeiros seres vivos hão-de ter tido
uma origem diferente. Qual pode ter sido essa origem? Não é à
metafísica que compete resolver a questão, mas à biologia; a
metafísica só pode examinar as diferentes hipóteses, e decidir quais
são possíveis, quais impossíveis, por contradizerem as suas
conclusões certas.
Deus pode ter criado os primeiros seres vivos diretamente. A
hipótese, perfeitamente admissível aos olhos da metafísica,
chama-se o criacionismo; não temos nenhuma prova de que Deus tenha,
ou não, procedido assim. A esta hipótese pode opor-se uma outra,
a que é costume dar o nome de geração espontânea. Os nomes, de
resto, como se vai ver, são ambos pouco felizes.
Se se pretende que a vida começou sem causa, e causa que, em última
análise, como todas as causas, recebe de Deus a sua eficácia e a
sua determinação, a segunda hipótese é de rejeitar in limine,
porque contradiz um principio fundamental, o de causalidade eficiente.
Se, como parece sugerir o nome de geração espontânea, se entende
que o ser vivo se produziu a si mesmo, a hipótese também é
impossível. Para que um ser se causasse a si mesmo, seria preciso
que estivesse, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, em potência e em
ato, o que já vimos não poder ser.
Também não é possível atribuir a vida à causalidade acidental, ao
acaso, muito embora possa ser obra do acaso o conjunto de
circunstâncias propício à sua eclosão; isso equivaleria a dar
caráter acidental aos seres vivos, portanto a negar-lhes unidade
substancial.
Pelo contrário, nada impede de admitir que os primeiros seres vivos
tivessem sido produzidos, sem intervenção dum germe proveniente
doutro ser vivo, pela ação, em circunstâncias favoráveis, dos
agentes naturais; pelo concurso dos diferentes factores em jogo no
Universo, pela ação do meio, digamos, actuando como causa
eficiente análoga. Pode-se inclusivamente admitir que ainda hoje,
se se reproduzirem as condições necessárias, possam nascer seres
vivos por geração espontânea. Não há nisso nada que contrarie a
metafísica, ou diminua os direitos de Deus, pressuposto pelas causas
análogas como pelas causas unívocas.
O Mundo foi criado por Deus. Já vimos que isso se conclui do
estudo do ser, em si mesmo, na indigência revelada pela sua
composição. Mas, das coisas materiais hoje existentes, nenhuma,
provavelmente, foi criada diretamente por Deus. Veja-se, por
exemplo, a estátua feita por um escultor. É obra de Deus, como
tudo quanto existe. Mas a matéria de que se compõe foi criada
dominada por outras formas. E a forma veio do espirito do artista, a
quem Deus deu a capacidade de a imaginar. Coisa semelhante se dá com
os outros seres materiais, que foram criados por Deus nas suas
causas, unívocas ou análogas. No caso da estátua, que dei para
exemplo, trata-se precisamente duma causa análoga, a causa
inteligente é uma forma particular de causa análoga. Nada impede de
supor que a vida tenha sido originada dessa maneira.
O criacionismo não é portanto a única hipótese compatível com a
Criação.
A vida sensitiva e vegetativa está, como já disse, em potência na
matéria. Uma causa natural, unívoca ou análoga, pode fazê-la
passar ao ato. Não esqueçamos que, mesmo quando há um germe
proveniente dum ser vivo, o concurso das causas análogas é
indispensável para a geração doutro ser vivo e para a conservação
da sua vida. A planta, o animal, vivem do meio. É o que S.
Tomás exprime guando diz: "A ação do agente não-unívoco
precede necessariamente a do agente unívoco. [...] Assim, o
Sol" (na sua qualidade de fonte das energias que movem o Mundo),
" é a causa da geração de todos os homens [96]".
S. Tomás, que não dispunha do microscópio, admitia a geração
espontânea dos animálculos que vivem nos corpos em decomposição
[97] e atribuía-a precisamente à ação das causas gerais que regem
o Universo, ao que ele chamava a "virtude celeste" Redi, no
século XVII, provou experimentalmente que esses animálculos não
escapam à lei geral, e se reproduzem, como os outros, por
"semente", Mais tarde, em experiências que ficaram célebres,
Pasteur provou que as bactérias, pretensamente produzidas por
geração espontânea, provinham na realidade de germes em suspensão
no ar.
E, desde então, não foi possível observar um só caso de geração
espontânea.
A posição da metafísica, por isso, não pode ser senão esta: o
criacionismo é uma hipótese possível, como a geração espontânea
entendida da maneira que disse. Não é, no entanto, admissível,
que se queira apresentar como certo o que não passa de hipótese não
verificada.
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