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É semelhante a questão da origem das espécies. A experiência não
revelou, até hoje, um único caso de animal ou planta duma espécie
originado por outros de espécie diferente. Por outro lado, a
paleontologia prova que as diferentes espécies foram aparecendo
sucessivamente, substituindo outras mais antigas que se iam
extinguindo, e formando com elas séries ordenadas segundo o
desenvolvimento gradual de certos caracteres e a desaparição doutros.
Aqui também, é à biologia que compete saber, se puder, como as
coisas se passaram de fato. A metafísica só interessa estudar a
possibilidade das diversas hipóteses.
Uma hipótese possível é o fixismo, que admite que Deus criou
diretamente os primeiros representantes de cada espécie, no momento em
que as condições do meio se tornavam favoráveis à sua vida. Outra
hipótese é o transformismo, segundo o qual as espécies derivam uma
das outras, ou por evolução gradual, ou por mutações mais ou menos
bruscas.
Se queremos com ela supor uma evolução sem causa, a segunda
hipótese é inadmissível. Tudo quanto acontece tem causa,
dependente por sua vez doutras causas, e, em última análise, de
Deus, fonte da causalidade. Também não podemos, para explicar a
evolução, dizer que a função cria o órgão. A função pode
desenvolver um órgão rudimentar: não pode criá-lo, porque o
pressupõe.
Não podemos sequer atribuir a evolução ao acaso unicamente, por
motivos análogos aos expostos mais atrás.
O concurso acidental de causas, por si mesmo, não produz efeitos
coerentes, dotados de unidade essencial, como os seres vivos das
diversas espécies; gera híbridos, monstros, aberrações.
Mas é perfeitamente possível que, pela ação dos agentes externos
em condições favoráveis, sob a ação do meio, das causas
naturais, agindo como causas análogas, um ser vivo possa originar
outro ser com caracteres diferentes dos seus. As formas das plantas e
dos animais não excedem a potência da matéria. Para as originar,
para as fazer passar ao ato, basta uma causa natural, que pode ser
unívoca ou análoga, como sempre.
Quanto à alma humana, já disse que é criada expressamente por
Deus, em cada caso, quando o embrião está suficientemente
desenvolvido para a receber. Por maioria de razão, teríamos de
supor criada diretamente por Deus a alma do primeiro homem, se
quiséssemos atribuir o seu corpo à evolução. Esta seria assim
causa ocasional, e nunca eficiente, da produção do homem. Do ponto
de vista metafísico, não há nisso dificuldade. No momento em que o
embrião, gerado por seres de espécie diferente sob a ação das
causas análogas da Natureza, estivesse suficientemente desenvolvido,
Deus insuflaria nele uma alma intelectual, como faz no embrião
produzido por seres da mesma espécie; a partir de então, seria a
alma humana que regularia a atividade do corpo, como nos casos
normais. Se, de fato, a evolução faz parte do plano da Natureza,
tal como Deus o quis, não haveria nisto mais milagre do que na
criação por Deus da alma de qualquer homem.
O supor a evolução gradual, sem mutações, obriga a admitir que o
número de espécies possíveis é infinito. Não há nisso,
também, qualquer dificuldade da ordem metafísica. Trata-se do
número de espécies possíveis, e portanto dum infinito potencial. O
número de espécies existentes em qualquer momento é finito, visto
ser finito o número de indivíduos, necessariamente maior. É quanto
basta à metafisica.
A própria tendência natural do indivíduo para a conservação da
espécie, que, como vimos, faz parte do plano geral do Universo,
não é incompatível com uma tendência mais profunda, destinada a
assegurar a conservação da vida, mesmo à custa duma modificação da
espécie, quando desaparecem as condições necessárias à
sobrevivência desta.
A posição que adopto é a defendida por Sertillanges [98], que,
no seu " Les grandes Thèses de la Philosophie Thomiste", não
hesita, a propósito, em usar estes termos enérgicos:
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"A filosofia tomista é muito mais larga do que alguns supõem, e,
se queremos que ela se difunda, não devemos começar por lhe pôr
antolhos [99]".
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S. Tomás, que admite a geração espontânea dos animais
inferiores, argumenta só, nota Sertillanges, contra a geração dos
animais superiores sem germe, e portanto, por maioria de razão,
contra a sua geração sem germe da mesma espécie, com o fato de a
Natureza a não fazer [100]. Não há oposição irredutível,
doutrinal; não se prova a impossibilidade da hipótese; há só uma
opinião baseada na experiência dum período muito limitado em face da
duração das épocas geológicas, e que nada poderia valer contra
fatos, não demonstradamente impossíveis, que porventura provassem
que a Natureza, em condições apropriadas, faz realmente nascer um
ser vivo doutros seres de espécie diferente.
Em conclusão: A metafísica não condena o transformismo entendido
de maneira que indiquei, como não condena o fixismo; admite,
ainda, soluções intermédias, mixtas; o que não pode é admitir
que o transformismo, hipótese não verificada, seja arvorado em
doutrina certa, ou, pior ainda, como que em dogma científico.
A fé podia dar-nos precisões maiores do que a metafísica,
indicando-nos qual, de entre as hipóteses possíveis, foi de fato a
escolhida por Deus. É o que acontece, por exemplo, quanto à
eternidade do Mundo; a metafisica considera igualmente possível que o
Mundo tenha começado ou seja eterno; a Revelação dá-nos a
conhecer que o Mundo, de fato, começou. Mas, a este respeito, à
falta duma decisão dogmática, há só a resposta da Comissão
Pontifícia "de Re Biblica" de 30 de Junho de 1909, segundo
a qual o texto do Gênesis obriga a admitir: a criação de todas as
coisas por Deus (portanto também da vida e das espécies, sem
precisar se é criação direta, ou nas causas análogas); a
criação particular do homem (sem indicar a origem da matéria,
certamente preexistente, em face dos textos, de que o corpo do homem
foi formado); a formação da mulher do corpo do homem (formação
miraculosa, alheia aos processos normais da Natureza, que, como
tal, não é do domínio da filosofia nem interessa para a questão);
a unidade do gênero humano (proveniente, portanto, dum só homem).
A Comissão, ressalvando que o texto deve ser entendido no sentido
literal histórico onde se trate dos fundamentos da religião cristã,
nega que todas as suas palavras e frases se devam tomar no sentido
próprio, atendendo a que a intenção do autor não foi expor os fatos
cientificamente, mas dar deles conhecimento ao povo, em termos
acomodados à sua preparação [101].
A resposta da Comissão Bíblica não envolve a infalibilidade
doutrinal da Igreja. Mas exprime uma opinião autorizadíssima, e,
como se vê, não fornece argumentos de origem teológica para escolher
entre o criacionismo e o fixismo dum lado, a geração espontânea e o
transformismo do outro. Alguns teólogos vão mais longe, e entendem
que a doutrina revelada não se coaduna com a atribuição da origem do
corpo humano à evolução natural. Seja como fôr, não é à
filosofia, mas à biologia (e eventualmente também à teologia,
quanto ao homem), que há-de caber a última palavra.
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