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Pela Criação, os seres recebem o seu ato de existência. Como é
às substâncias que compete, propriamente, existir, visto que os
acidentes existem na substância, são as substâncias que se devem
dizer, propriamente, criadas.
No entanto, a Criação não deixa as substâncias brutas, nuas.
São criadas com as suas qualidades, com as suas dimensões, nas suas
posições, numa palavra, com os seus acidentes. Os acidentes
recebem portanto a existência do ato criador; não imediatamente, mas
por intermédio das substâncias a que são inerentes. Diremos por
isso que são concriados.
A existência da matéria-prima tem dado a muitos filósofos lugar
para hesitações. A existência, os acidentes, todas as
perfeições, são atos; como supor criada a matéria, que é
potência? O efeito assemelha-se sempre mais ou menos à sua causa;
ora Deus é ato puro, e a matéria pura potência; como dizê-la
criada por Deus? Além disso, se o Mundo não existisse, seria
pelo menos possível a sua existência. E essa possibilidade, essa
pura potência, não é precisamente a matéria, que assim parece
escapar à Criação?
De fato, se Deus não tivesse criado o Mundo, a existência deste
seria possível. Mas o único fundamento dessa possibilidade seria a
omnipotência de Deus, que podia, se quisesse, tê-lo criado do
nada, sem necessidade de qualquer coisa preexistente, mesmo em
potência. A potência é possibilidade real, que, para ser real,
tem de ter por sujeito uma coisa realmente existente. A
matéria-prima, em última análise, é a possibilidade das coisas
existentes se transformarem quanto à sua substância. Daí se
conclui, como aliás já foi dito, que a potência não pode existir
pura, isolada. Só pode existir como princípio constituinte dos
seres, associada ao ato. A matéria não pode portanto existir
independentemente da Criação. Diremos por isso que é concriada
como os acidentes; criada, não diretamente, mas com os seres em cuja
constituição entra.
Para responder às objeções que apresentei, lembremo-nos de que,
como já disse, matéria e forma são noções relativas. Um ser,
já atualizado por uma forma, serve de matéria a outra forma, esta a
uma terceira, e assim sucessivamente, embora, não o esqueçamos,
só uma, a que atua diretamente a matéria-prima, possa ser
substancial. Nessas condições, podemos dizer, a matéria-prima
limita inferiormente a hierarquia das formas. E é limite inseparável
do limitado, como a superfície do volume que contém; produzido um
volume, fica ipso fato produzida a superfície que o limita. A
Criação dos corpos materiais implica por isso a Criação, ou
melhor a Concriação, da matéria-prima que os compõe.
Acrescente-se que as formas, como princípios de ser que são, e
não seres completos, também não se devem dizer criadas, mas
concriadas. São criadas com as substâncias que qualificam.
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