6. Origem da vida.

Qual é a origem da vida? Não se conhece nenhum caso de produção dum ser vivo sem o concurso duma semente (no sentido mais lato da palavra), proveniente doutro ser vivo. Mas se o Mundo começou, e a vida começou no Mundo, os primeiros seres vivos hão-de ter tido uma origem diferente. Qual pode ter sido essa origem? Não é à metafísica que compete resolver a questão, mas à biologia; a metafísica só pode examinar as diferentes hipóteses, e decidir quais são possíveis, quais impossíveis, por contradizerem as suas conclusões certas.

Deus pode ter criado os primeiros seres vivos diretamente. A hipótese, perfeitamente admissível aos olhos da metafísica, chama-se o criacionismo; não temos nenhuma prova de que Deus tenha, ou não, procedido assim. A esta hipótese pode opor-se uma outra, a que é costume dar o nome de geração espontânea. Os nomes, de resto, como se vai ver, são ambos pouco felizes.

Se se pretende que a vida começou sem causa, e causa que, em última análise, como todas as causas, recebe de Deus a sua eficácia e a sua determinação, a segunda hipótese é de rejeitar in limine, porque contradiz um principio fundamental, o de causalidade eficiente. Se, como parece sugerir o nome de geração espontânea, se entende que o ser vivo se produziu a si mesmo, a hipótese também é impossível. Para que um ser se causasse a si mesmo, seria preciso que estivesse, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, em potência e em ato, o que já vimos não poder ser.

Também não é possível atribuir a vida à causalidade acidental, ao acaso, muito embora possa ser obra do acaso o conjunto de circunstâncias propício à sua eclosão; isso equivaleria a dar caráter acidental aos seres vivos, portanto a negar-lhes unidade substancial.

Pelo contrário, nada impede de admitir que os primeiros seres vivos tivessem sido produzidos, sem intervenção dum germe proveniente doutro ser vivo, pela ação, em circunstâncias favoráveis, dos agentes naturais; pelo concurso dos diferentes factores em jogo no Universo, pela ação do meio, digamos, actuando como causa eficiente análoga. Pode-se inclusivamente admitir que ainda hoje, se se reproduzirem as condições necessárias, possam nascer seres vivos por geração espontânea. Não há nisso nada que contrarie a metafísica, ou diminua os direitos de Deus, pressuposto pelas causas análogas como pelas causas unívocas.

O Mundo foi criado por Deus. Já vimos que isso se conclui do estudo do ser, em si mesmo, na indigência revelada pela sua composição. Mas, das coisas materiais hoje existentes, nenhuma, provavelmente, foi criada diretamente por Deus. Veja-se, por exemplo, a estátua feita por um escultor. É obra de Deus, como tudo quanto existe. Mas a matéria de que se compõe foi criada dominada por outras formas. E a forma veio do espirito do artista, a quem Deus deu a capacidade de a imaginar. Coisa semelhante se dá com os outros seres materiais, que foram criados por Deus nas suas causas, unívocas ou análogas. No caso da estátua, que dei para exemplo, trata-se precisamente duma causa análoga, a causa inteligente é uma forma particular de causa análoga. Nada impede de supor que a vida tenha sido originada dessa maneira.

O criacionismo não é portanto a única hipótese compatível com a Criação.

A vida sensitiva e vegetativa está, como já disse, em potência na matéria. Uma causa natural, unívoca ou análoga, pode fazê-la passar ao ato. Não esqueçamos que, mesmo quando há um germe proveniente dum ser vivo, o concurso das causas análogas é indispensável para a geração doutro ser vivo e para a conservação da sua vida. A planta, o animal, vivem do meio. É o que S. Tomás exprime guando diz: "A ação do agente não-unívoco precede necessariamente a do agente unívoco. [...] Assim, o Sol" (na sua qualidade de fonte das energias que movem o Mundo), " é a causa da geração de todos os homens [96]".

S. Tomás, que não dispunha do microscópio, admitia a geração espontânea dos animálculos que vivem nos corpos em decomposição [97] e atribuía-a precisamente à ação das causas gerais que regem o Universo, ao que ele chamava a "virtude celeste" Redi, no século XVII, provou experimentalmente que esses animálculos não escapam à lei geral, e se reproduzem, como os outros, por "semente", Mais tarde, em experiências que ficaram célebres, Pasteur provou que as bactérias, pretensamente produzidas por geração espontânea, provinham na realidade de germes em suspensão no ar.

E, desde então, não foi possível observar um só caso de geração espontânea.

A posição da metafísica, por isso, não pode ser senão esta: o criacionismo é uma hipótese possível, como a geração espontânea entendida da maneira que disse. Não é, no entanto, admissível, que se queira apresentar como certo o que não passa de hipótese não verificada.