5. A imortalidade da alma.

É o fato de exceder a potencialidade da matéria, em parte da sua atividade, que nos obriga a procurar para a alma humana uma origem diferente da das almas sensíveis ou vegetativas e das formas dos seres inanimados. O mesmo motivo nos obriga a traçar-lhe destino diferente do destas, quando o corpo é destruído pela morte.

As formas materiais só podem existir pela matéria. Uma vez que a matéria que informavam passou a ser dominada por outras formas substanciais, deixam de existir em ato, e voltam a existir em potência na matéria. Indissolúveis em si mesmas, foram, como se diz na Escolástica, destruídas por acidente,, devido a terem desaparecido as condições indispensáveis à sua existência.

Mas uma forma espiritual como a alma humana não depende da matéria para todas as modalidades da sua existência. Tem uma operação em que a matéria não intervém: o ato intelectual. Por isso, privada do corpo, não é destruída por acidente como as outras formas. Também não pode decompor-se, visto não ser composta de partes distintas como o corpo; se fosse, alguma coisa as uniria, e seria essa alguma coisa o principio de unidade, a forma, e não ela. Como só pode nascer por criação, só pode portanto desaparecer por aniquilamento. Ora Deus, que podia fazê-lo, não aniquila aquilo que criou. A sua justiça, já o dissemos, dá a cada ser o que é exigido pela natureza de que o dotou; por isso diz S. Agostinho, em palavras que S. Tomás faz suas, que "acerca das coisas naturais não se deve considerar o que Deus pode fazer, mas o que convém à natureza de cada uma [80]". Deus, se deixa que as formas materiais desapareçam, é porque elas dependem totalmente da matéria, e convém a essa mudar de forma para reflectir, pela sua potencialidade de certo modo infinita, a infinidade do poder criador; os seres materiais não são aniquilados; transformam-se. A alma é uma forma que pode existir sem a matéria; não desaparece com a transformação desta; Deus também não a aniquila; deve continuar a existir, dissolvido o corpo.

A alma humana é portanto imortal, ou, como diziam os escolásticos, é uma forma substancial subsistente.

Resta saber que espécie de vida pode ter a alma separada do corpo, de acordo com as exigências da sua natureza. Já vimos que em todas as atividades da alma animal ou vegetativa intervém o corpo; todas elas devem portanto cessar na alma separada. Pelo contrário, a inteligência é independente da matéria, no seu ato supremo de conhecimento; correlativamente, como depois veremos, é também independente da matéria o ato livre da vontade. A atividade intelectual, nos seus aspectos cognitivo e afetivo, pode portanto exercer-se depois de separada a alma do corpo, e é a única que se pode assim exercer. A vida da alma depois da morte é vida da inteligência.

Mas, na vida presente, as idéias pelas quais a inteligência conhece o seu objeto têm origem nos sentidos, são elaboradas com o auxilio da imaginação e da memória. Tudo isso depende do corpo, e não pode exercer-se dissolvido este. As idéias, que a alma separada é capaz de conhecer, devem ter outra proveniência; é, de resto, natural que, mudado o modo de existir, mude o modo de operar.

Lembram três modos possíveis, que, aliás, não se excluem. A alma, separada do corpo, pode ter o conhecimento intuitivo da sua própria natureza, que atualmente só conhece por reflexão sobre a sua atividade. Pode ser-lhe dado conhecer a essência doutras inteligências separadas, Anjos, ou outras almas como ela. Pode, finalmente, receber de Deus as idéias, infusas, como se diz na Escola.

Nenhuma destas três maneiras de conhecer excede a capacidade da inteligência humana; e todas elas, por serem conhecimento direto do inteligível, sem intermédio das coisas sensíveis, são mais perfeitas em si mesmas do que o conhecimento por idéias abstraídas dos seres concretos. Mas, para a alma humana, são menos perfeitas, porque a nossa inteligência, feita para se aplicar às coisas particulares, não consegue, como a dos Anjos, abranger dum só golpe todas as conseqüências contidas num princípio geral. Guardadas as proporções, dá-se com ela, diz S. Tomás, o que se dá com as pessoas pouco inteligentes, que não compreendem uma questão posta em abstrato, com generalidade, e só conseguem compreendê-la pela multiplicação dos exemplos concretos [81]. No mundo das idéias gerais, transparente para o Anjo, a alma humana vê menos claramente do que no das idéias abstraídas do sensível. Note-se que a elevação dos nossos pensamentos nesta vida não deixará de ser um auxílio para a alma separada; ficam dela, no espírito, vincos, hábitos intelectuais, que facilitam a compreensão do que então lhe for dado conhecer. Quanto mais nos habituarmos, em vida, a ver as coisas de alto, mais capazes seremos de aproveitar o alimento concentrado, digamos assim, que o nosso espirito então receberá.

A Revelação cristã diz-nos que Deus preparou à alma separada um destino infinitamente mais glorioso do que a vida de certo modo diminuída que por natureza lhe compete

a visão de Deus face a face, em união, um dia, com o corpo ressuscitado. Nada, na natureza humana, dá à alma o direito a uma tal condição. A capacidade da inteligência humana, por grande que seja, não basta para conhecer a essência divina; é necessário que Deus a exalte por uma iluminação que é obra só da sua bondade, dom gratuito de Deus. O futuro glorioso que Deus nos reserva, e que não exclui as formas naturais de conhecimento de que falei, embora, evidentemente, lhes dê importância muito secundária, só nos pode por isso ser conhecido por revelação divina; é assunto que não pertence à filosofia, mas à teologia.

Uma última questão, ainda acerca das almas separadas. Como individualizá-las? Falando dos Anjos, vimos que não pode haver dois seres imateriais distintos pertencentes à mesma espécie. Pode por isso parecer que é impossível distinguir entre si as almas humanas, uma vez separadas do corpo. Mas as almas humanas não são formas puramente espirituais, como os Anjos. Se já não animam, animaram um corpo material; e o ter animado um corpo distinto dos que as outras animaram basta para diferençar uma alma entre todas. As almas separadas são portanto individuadas pela sua relação, relação essencial, para com certo e determinado corpo, que foi o seu.