14. A preciência divina e o livre-arbítrio.

É semelhante o caso das decisões livres dos seres inteligentes. O nome de presciência, dado ao conhecimento, por Deus, dos futuros contingentes, pode induzir em erro, dando a entender que a ciência de Deus é anterior, no tempo, às decisões das vontades livres. Na realidade, até o prefixo pre é aqui empregado por analogia. A ciência de Deus é exterior ao tempo, independente do tempo; o tempo faz parte do que Deus conhece, não afecta o modo de conhecer de Deus.

Devemos entender que as nossas decisões livres são verdadeiramente livres e verdadeiramente nossas, e que, no entanto, fazem parte da ordem providencial. O homem e Deus não são duas causas da mesma ordem, que tenham de repartir entre si o seu campo de ação. Deus é a origem de toda a causalidade, necessária ou livre. É ele que cria o livre-arbítrio, que é livre porque Deus assim o quer. Conhece as nossas decisões; conhece-as em si mesmas. E conhece-as como livres; para supor que esse conhecimento as tornava necessárias, teríamos de admitir que era errôneo.

Como acima disse dos efeitos do acaso, nós conhecemos os atos livres praticados no passado sem que isso destrua a liberdade de quem os praticou; e é assim porque os fatos passados nos são conhecidos, ou podem ser conhecidos, no seu ser. Não podemos da mesma forma conhecer os atos futuros porque só conhecemos o que é futuro nas suas causas. Deus, conhecendo o ser de todas as coisas, pode conhecer o futuro como nós conhecemos o passado, sem destruir o caráter de liberdade das relações de certas causas com os seus efeitos.

Há mistério em tudo isto, que a explicação que dei não pode dissipar totalmente? Sem dúvida. Mas não é mistério novo; é o mistério da transcendência de Deus, que excede a nossa inteligência mas não a contraria, o para fugir ao qual teríamos de cair na contradição dum ser essencialmente dependente que, em última análise, não dependesse de nada.