16. Origem dos hábitos.

Os hábitos podem ter origens muito diversas.

Há hábitos naturais, isto é, tendências das nossas faculdades a agir em determinada direção, existentes em todos nós pelo simples fato de sermos homens. Serve de exemplo o conhecimento dos primeiros princípios. Realmente, no espírito de todo o homem, há uma predisposição a conhecer aplicar esses princípios ao primeiro contacto com as coisas ais. É como que um embrião de ciência, que existe em aos nós, não em ato, mas em hábito, desde o momento em que nascemos.

Há outros hábitos que existem em nós desde que pasmos, mas que não são comuns a todos os homens. Uns, mo certas taras, certas propensões, certas particularidades inteligência ou caráter, são hereditárias numa família numa raça. Outros são congênitos, e devidos a causas acidentais; são taras, tendências e vocações artísticas ou cientificas, que, desde a infância, se manifestam em determinados indivíduos de maneira a não permitir dúvidas, e que, nem sempre tão claramente, existem em todos nós, cada um no seu campo.

Nada se opõe a que haja hábitos infusos, isto é, produzidos por Deus, sobrenaturalmente, na nossa alma. A teologia diz-nos que é o caso da Graça e do cortejo de virtudes e dons que a acompanham. Mas ocupar-me desses hábitos é sair fora do campo da filosofia, de que estou a tratar.

Os hábitos congênitos, naturais, hereditários ou acidentais, podem afectar as faculdades da nossa vida vegetativa; assim acontece, por exemplo, com as predisposições e tendências mórbidas ou salutares, com os diversos temperamentos, etc. Podem afectar a sensibilidade; há homens que são fortemente atraídos numa direção, outros numa direção diferente. Tais hábitos são esboços de virtudes ou vícios, que nascem conosco. Nas faculdades intelectuais, os hábitos congênitos são em pequeno número. Além do conhecimento dos primeiros princípios, de que já falámos, e que é natural, há as aptidões especiais da nossa inteligência para certos campos de aplicação.

Nenhum hábito congênito tem a vontade por sede. A inclinação para o nosso fim natural não é um hábito, é da essência da vontade. H esta, como faculdade que é, por natureza, das decisões livres pelas quais podemos procurar esse fim, não pode, sem contradição, ser sede de hábitos naturais que a orientem para fins diferentes. Indiretamente, sofre a influência dos hábitos congênitos da inteligência e da sensibilidade; mas, em si mesma, é livre. Só ela pode originar hábitos que a afectem.

A grande maioria dos hábitos é adquirida, às vezes por ação doutra pessoa, pais, educadores, mas em regra pela nossa própria ação; pela repetição dum ato ou grupo de atos, ou, em casos raros, por um só ato excepcionalmente intenso. O procedimento em que insistimos torna-se-nos fácil e agradável. O exercício em que praticamos deixa de ter obstáculos para nós. Pelo uso, criamos o hábito. Pela continuação do uso, o hábito cresce, dum crescimento que é intensivo, e, em alguns casos, extensivo também. Sirva novamente de exemplo o caso da ciência. Pode crescer porque se estende a um número maior de conhecimentos, a novos campos relacionados com o primeiramente bordado; há então crescimento em extensão. Mas pode também crescer pelo domínio que adquirimos sobre ela, pelo treino cada vez maior com que ficamos; cresceu então em intensidade. Há hábitos que, pela sua própria essência, porque exigem, para existir, o equilíbrio de tudo aquilo a que se referem, não podem crescer senão intensivamente. É o caso das virtudes, que, como veremos, consistem num justo meio entre excessos opostos.

Assim como o uso desenvolve os hábitos adquiridos, a sua não-aplicação fá-los diminuir e desaparecer. Destrói-os também a aquisição de hábitos que os contrariem. Tanto num como noutro caso, o decrescimento dos hábitos pode ser intensivo ou extensivo, como a sua aquisição.

É pelos hábitos adquiridos que a inteligência, de passiva que era, se torna activa, flexível e fecunda. É por eles que a vontade se disciplina e tempera, criando o gosto, e mais do que o gosto, o talento, das decisões acertadas, rápidas, eficazes; é por eles ainda que dominamos a sensibilidade, tornando-a instrumento dócil das resoluções da vontade, corrigindo as tendências más e desenvolvendo as boas. Por outro lado, é pelos hábitos adquiridos, quando são maus, que a inteligência perde a serenidade, e a vontade abdica do seu primado sobre os apetites sensíveis. Não é por isso possível exagerar a importância dos hábitos em psicologia.

Era necessário este estudo resumido dos hábitos para completar o quadro da maneira por que a filosofia tomista encara o homem. Resta agora estudar, mais pormenorizadamente, a relação, do ponto de vista intelectual, entre o homem e o Universo, isto é, o processo do conhecimento. Trataremos dele na próxima lição.