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A filosofia, no sentido largo da palavra, compreende todo o esforço
sincero feito no campo do conhecimento filosófico, seja ou não
coroado de resultados definitivos. O trabalho filosófico exige um
esforço difícil, delicado, esgotante, e, pode dizer-se sem
exagero, doloroso; porque, é trabalho ir ao extremo limite da nossa
capacidade intelectual. Nesse terreno, a imaginação pouco pode
auxiliar o pensamento, por causa do grau de abstração que ele
atinge, dificilmente se encontram palavras para exprimir o que se
pensa, e custa a fazer compreender aos outros o sentido em que se tomam
as que se conseguem encontrar. Por outro lado, é impossível aplicar
a atenção por muito tempo ao assunto que se estuda, do que resulta
muitas vezes esvaírem-se as idéias que a memória não teve tempo de
fixar; há dificuldade em elaborar, dar forma explícita, aos
raciocínios que o subconsciente, obscuramente, adivinha; e é
preciso vigilância constante, tantas são as distinções a fazer, de
caso para caso, sob pena de errar as conclusões.
O reconhecimento destas dificuldades deve ditar a nossa maneira de ver
aqueles que, procurando fazer progredir a filosofia, não puderam mais
do que construir sistemas errôneos, muitas vezes por vício de
origem, devido à má escolha dum princípio. Veja-se, por
exemplo, o estudo do conhecimento feito por Kant. Quase ponto por
ponto, a análise de Kant vai acompanhando as conclusões de S.
Tomás no mesmo capítulo, conclusões que, aliás, julgo não terem
sido conhecidas de Kant; mas transpondo-as, constantemente, para um
plano em que tomam significado completamente diferente, e terminando,
não pela identificação da inteligência com o objeto conhecido, como
S. Tomás, mas pela identificação da inteligência consigo mesma;
tudo por Kant ter partido do princípio de que o íntimo das coisas é
inconhecível.
Mesmo tomando para princípios aqueles em que a nossa inteligência,
realmente, se baseia, pode haver erro na sua aplicação a qualquer
questão importante, e daí ficar falseado tudo o que se segue. Não
é por isso de admirar que tantos filósofos tenham errado, a ponto de
não haver talvez assunto nenhum em que não seja possível encontrar
dois filósofos com opiniões opostas; a ponto de se poder dizer que a
história da filosofia é a história dos erros da humanidade. Às
vezes, das melhores intenções nasce a pior filosofia; um erro, que
o filósofo não vê, vai, uma vez descoberto, destruir tudo quanto
ele julgou fundar solidamente, e permitir aos seus adversários,
quando não é aos seus continuadores, ou a ele próprio, coagido pela
lógica da posição que adotou, que tirem conclusões opostas às que
ele esperava estabelecer. Abundam os exemplos. Mais adiante
veremos, entre outros, os de Descartes, Berkeley e Kant, que são
significativos. Poderemos nós supor que as boas intenções,
claramente afirmadas, de tantos filósofos autores de sistemas
péssimos, sejam todas mentirosas? Julgo que não.
Apesar dos erros, muitas vezes fundamentais, dos seus sistemas,
poucos serão os filósofos que não tenham concorrido duma maneira ou
doutra para o progresso real das ciências e da própria filosofia. Os
materiais que muitos deles utilizaram em construções caducas, são,
quantas vezes, bons, aproveitáveis, definitivos. Podem vir
expressos em linguagem muito pessoal, que é preciso compreender e
traduzir, para os integrar num corpo de doutrina já constituído;
podem ser um conjunto de observações justas, mas mal interpretadas,
podem ser análises preciosas, não seguidas de obra construtiva; mas
têm, quase sempre, algum aspecto pelo qual se podem tornar úteis.
Na pior hipótese, o filósofo chamou a atenção para um problema de
que ninguém ainda se tinha ocupado, ou para a fraqueza dum raciocínio
que passava por bom: ou, tantas vezes, refutou o sistema, não menos
errôneo do que o seu, doutro filósofo, enquanto um terceiro
filósofo o não refuta a ele. Para uma filosofia assente em bases
sólidas, pouco é de perder no trabalho dos filósofos, mesmo
desorientados.
Tudo isto nos obriga ao respeito pelos que erraram em filosofia,
quando buscaram sinceramente a verdade. Devemos combater os seus
erros, pô-los a nu; mas respeitar quem, em assunto tão difícil,
não conseguiu o que procurava. Só não merecem esse respeito os
que, para defenderem preconceitos políticos ou religiosos, ou
favorecerem interesses de partido, se servem da filosofia como meio de
enganar, e, dando aspecto sério a sistemas insuficientemente
fundamentados, atraem com eles quem não tem preparação suficiente
para lhes ver os pontos fracos. Esses não são filósofos; são os
moedeiros falsos da filosofia: não é a eles que me refiro nas
considerações que precedem.
No sentido largo, portanto, "filosofia" e as palavras desta
derivadas compreendem todo o esforço filosófico, bem ou mal
sucedido. É sempre esse o sentido quando se fala em filósofos: é
ainda o sentido na expressão; "história da filosofia". É o seu
sentido, ainda, da primeira vez que aparece, e com uma nota
depreciativa justificada por tantos erros dos filósofos, no pensamento
célebre de Pascal: "Rir-se da filosofia, é, verdadeiramente,
filosofar" [7].
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