4. Origem da alma.

A alma humana, pelo contrário, excede a potência da matéria. Tem uma operação que a matéria não pode executar, Isso obriga-nos a estudar o problema da sua origem.

Já disse noutra lição como se põe metafisicamente a questão da evolução das coisas. A matéria, pura potência, está apta a existir sob uma infinidade de forma. Dizemos que essas formas se encontram nela em potência. Sob a ação duma causa eficiente apropriada, uma dessas formas passa a existir em ato, substituindo outras formas, incompatíveis com ela, que a precederam, e voltam a existir só em potência na matéria. A causa eficiente não pode mais do que isso: fazer passar ao ato o que antes existia em potência; fazer regressar à potência o que anteriormente era ato.

Ora, a atividade da alma excede, num ponto, o que na matéria há em potência. Muitas, quase todas, as suas operações estão dentro do que pode a matéria, sob a ação duma forma apropriada. Mas na intelecção a matéria não intervém. Seja qual for a forma que a domine, a matéria não pode elevar-se ao pensamento, atividade incompatível com o seu caráter concreto e individualizante. A alma humana, na sua totalidade, não existe portanto em potência na matéria; e se não existe nela na sua totalidade não existe nela de forma alguma, porque uma forma, já o disse, é indivisível. Existem em potência, na matéria, uma infinidade de formas capazes de realizar alguns dos atos da alma humana. Está em potência, na matéria, o colaborar com a alma nas operações que esta realiza por seu intermédio. Mas a alma humana não está compreendida na sua potencialidade; não existe a síntese onde lhe falta um elemento. Devemos procurar-lhe a origem noutra parte.

Se, antes de existir em ato, a alma humana não existia em potência na matéria que constituía os outros corpos, já disse que a simples possibilidade de existência, sem um suporte real, não é existir em potência, é porque pura e simplesmente não existia. A produção da alma humana é por isso uma criação, e, como tal, obra de Deus, diretamente. Não há outra solução, porque não é possível pensar, como à primeira vista poderia parecer, numa produção da alma por divisão doutra alma. As formas não se dividem, nem quantitativamente, porque, por si mesmas, não têm extensão, nem qualitativamente, porque perder algumas das qualidades que a caracterizam seria, para uma forma, deixar de ser.

Cada alma humana é portanto criada por Deus. O seu começo é produção do nada, começo absoluto. Quando a matéria que constitui o corpo está suficientemente disposta para a receber, Deus cria uma alma para a informar. Não devemos ver nisso como que um milagre; é coisa que faz parte do plano da Natureza tal como Deus o estabeleceu. Assim como criou os Anjos duma vez para sempre, assim como criou seres materiais capazes de se transformarem uns nos outros por causa da capacidade receptiva existente na matéria, Deus cria as almas humanas para começarem a existir uma a uma, quando se apresentam as condições materiais necessárias à sua existência.

Não pertence à metafisica saber qual o momento da gestação em que o embrião está suficientemente desenvolvido para receber uma alma humana. Esse assunto é com a biologia. Parece no entanto não haver dúvidas de que, nas suas linhas gerais, a filosofia deve encarar assim o desenvolvimento do embrião: A disposição da matéria no germe tende, sob a ação das causas naturais a que este está submetido, a produzir um corpo apto a viver uma vida vegetativa, ou, o que tanto vale, a fazer passar ao ato a alma vegetativa que existia em potência na matéria. Sempre sob a ação das mesmas causas, o organismo do embrião desenvolve-se, e torna-se capaz de sensibilidade; isto é, passa a existir em ato a alma sensitiva que na matéria existia em potência. Essa alma exige, para a sua atividade, tudo quanto era até aí regido pela alma vegetativa; inclui, virtualmente, a alma vegetativa, que por isso substitui. Continuando o desenvolvimento do organismo embrionário, chega o momento em que ele pode receber uma alma humana, originada por criação, como já disse, visto que não existe em potência na matéria; as condições materiais são causa ocasional da sua produção, não são causa eficiente. Essa alma substitui a alma sensível, como esta substituiu a alma vegetativa, ou seja, integra numa unidade de ordem superior toda a atividade que a alma sensível dirigia; e passa a ser a lei única de existência do embrião, que, regido por ela, termina a sua evolução, e se torna num ser humano perfeito.