8. Filosofia do bom senso.

No espírito de todo o homem, forma-se, ao contato das coisas com que lida, uma certa sistematização de conhecimentos, um conhecimento compreensivo rudimentar, espontâneo, que é como que uma filosofia inconsciente de si mesma, a que se chama o bom senso. O bom senso é realmente um conhecimento compreensivo; liga as conclusões aos princípios, visto que as pessoas que o têm desenvolvido, postas em condições diferentes das habituais, resolvem as dificuldades acertadamente e depressa, por meio de raciocínios simples, apoiados no corpo de conhecimentos que já têm. E os seus princípios são gerais, pois que se aplicam a circunstâncias muito variadas. Por outro lado, o bom senso não reflete sobre si mesmo; trata das coisas, mas não pensa em si; se é uma filosofia, é uma filosofia que se ignora. Todos os homens filosofam, desde que estão no uso da razão; mas fazem-no sem o saber, como Mr. Jourdain fazia prosa.

Não podemos pedir ao bom senso que se eleve a coisas afastadas do objeto habitual dos nossos pensamentos; isso exigiria encadeamentos de raciocínios a que os homens em geral não estão habituados; e seria de recear uma conclusão apressada, e por isso mesmo errada. Mas, no campo limitado das coisas acessíveis, onde não falta aos raciocínios a base experimental e a verificação das conclusões pelos fatos, o bom senso dá conhecimentos verdadeiros.

O bom senso é obra espontânea da razão, conforme com as leis do pensamento, baseado nos princípios evidentes, informado pela experiência. A filosofia, obra da mesma faculdade, não pode contradizê-lo. Difere do bom senso em ser refletida, isto é, em ter conhecimento de si mesma, dos seus princípios, dos seus fins, das suas leis; difere também em que dá aos seus raciocínios forma explícita, os pondera para lhes procurar as falhas, os critica para lhes encontrar os vícios, os encadeia para poder estender o seu domínio. Mas não dispõe doutros princípios senão dos do bom senso; não usa doutro instrumento senão do espírito humano, como o bom senso; não pode por isso, nas coisas simples que o bom senso abrange, chegar a conclusões diferentes das deste.

A força de aberrações, a filosofia criou fama de contrária ao bom senso, de ser quase uma loucura. E, de fato, que poderá pensar um homem de bom senso, que vê, por exemplo, um filósofo duvidar da sua própria existência, e da de quem com ele está a falar?

Mas a verdadeira filosofia não é nada disso. É, antes de mais nada, filosofia do bom senso; prolongamento dos raciocínios implícitos do bom senso, tornados explícitos, no campo onde já não basta o trabalho espontâneo da razão e se torna necessário o seu esforço consciente. Não é, nunca, negação do que o bom senso legitimamente afirma.