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Para o cristão, não há nenhuma dúvida de que o Mundo começou.
A fé afirma-o. Mas, em filosofia, o problema tem de pôr-se
assim: Pode demonstrar-se racionalmente que, na sucessão do tempo,
houve um momento que foi de todos o primeiro? A questão tem sido
muito discutida, e é na realidade delicada. Procurarei dar uma
idéia dos argumentos apresentados, e da posição tomista, que é
desassombrada e irrepreensível.
As objeções metafísicas contra a eternidade do Mundo firmam-se
todas na impossibilidade da existência atual do infinito numérico. O
infinito numérico é infinito potencial; exprime simplesmente a
possibilidade dum acréscimo indefinido. A existência é
determinação; toda a coleção realmente existente tem um número
determinado de elementos distintos, não mais um nem menos um. Não
pode portanto existir realmente uma infinidade de substâncias.
Ora, se o Mundo é eterno, hão-de ter existido substâncias em
número infinito. Sem dúvida. Mas não é necessário que em
momento nenhum existisse simultaneamente uma infinidade de
substâncias: e só isso é que é impossível.
Pode dizer-se também que, se o Mundo existiu sempre, a sua
duração se há-de exprimir por um número infinito de unidades de
tempo, sejam quais forem. Mas toda a contagem de tempo supõe uma
origem. A partir de qualquer momento que escolhamos para esse efeito,
o número de horas decorridas há-de, de fato, ser finito, por muito
grande que seja. Mas, se o Mundo não começou, não há origem
para a contagem da sua duração total. Esta não pode ser contada;
nada se opõe a que seja ilimitada.
Um raciocínio semelhante ao que nos levou a afirmar a existência de
Deus como a primeira causa parece opor-se à eternidade do Mundo.
Dissemos então que a série das causas não podia ser infinita, que
tinha de ter, necessariamente, um primeiro termo. Mas a força desse
raciocínio vem-lhe de se tratar de causas subordinadas, cada uma das
quais é indispensável à existência, ou pelo menos à causalidade,
de todas as seguintes. Causas que se substituem sucessivamente, sem
que a desaparição duma afete a seguinte, são encadeadas
acidentalmente no tempo, e nada se opõe a que nenhuma seja a
primeira.
Pode objetar-se ainda que, sendo imortal a alma humana, haveria,
se o mundo fosse eterno, uma infinidade atual de almas separadas. O
argumento, no entanto, só pode provar que a humanidade não existiu
sempre.
Finalmente, algumas teorias da física, quanto à degradação da
energia, por exemplo, ou à desintegração da matéria, ou à
expansão do Universo, parecem opôr-se à duração ilimitada do
Mundo. Mas será licito extrapolar a esse ponto resultados duma
experiência tão limitada? A metafísica, para as suas conclusões
universais, não se funda senão nos dados mais gerais da
experiência: existência dos seres, sua mutabilidade, sua
desigualdade, etc. Não deve tirar conclusões apressadas de teorias
insuficientemente verificadas quanto à sua universalidade.
No outro campo, as objeções contra o Mundo ter começado
baseiam-se quase todas na idéia dum tempo anterior ao começo.
Todo o instante é seguido doutro instante; da mesma maneira, há
sempre um instante antes dele. Sim. A experiência assim o diz; mas
toda a experiência se realiza num Mundo existente. E assim tem de
ser, se houver antes; mas antes e depois referem-se à sucessão dos
acontecimentos no Universo já existente; não têm sentido
independentemente da Criação. E o problema é precisamente saber se
começaram o tempo e o Mundo.
É impossível um tempo vazio, em que nada se passasse. Num tal
tempo, nada podia começar. Mas o começo absoluto em que pensamos
não supõe nenhum tempo vazio. Supõe só um tempo real, limitado no
passado.
Outro argumento é o seguinte: Deus é eterno e imutável. Por
isso, se criou, criou sempre, e o Mundo não pode deixar de ser
eterno. Mas a eternidade de Deus, como vimos, não é duração
ilimitada; é independência do tempo Não obriga a nada quanto à
duração do Mundo.
Nem num nem noutro campo, portanto, aparecem argumentos
concludentes.
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