21. S. Tomás filósofo.

Foi um grande filósofo. Dá-se o caso curioso de S. Tomás nunca ter pretendido ser, propriamente, filósofo; considerava-se teólogo, como convinha, acima de tudo, à sua vocação de dominicano. E, com excepção dos comentários de Aristóteles, dalgumas obras de polémica, e de pouco mais, os seus livros são, direta ou indiretamente, de teologia.

Mas, em filosofia, era filósofo de verdade. Ninguém sabia melhor do que ele quanto pode a razão, com os seus recursos naturais, baseada nos princípios evidentes e nos dados da observação; ninguém confiava, mais do que ele, em que as conclusões dos raciocínios válidos não podem contrariar a fé. Olhava a filosofia como uma ciência autônoma, completa, com os seus princípios próprios e a sua maneira de ser particular, embora sem levar essa autonomia a ponto de poder considerar demonstrado o que se opusesse às conclusões duma ciência que dispõe de dados mais certos: a teologia. Em filosofia, nunca se apoiava na autoridade; mas não desdenhava, estudar cuidadosamente os mestres, e invocava-lhes o nome quando estava de acordo com eles, com tanto escrúpulo como modéstia. Só se valia da autoridade na teologia, porque, aí, a autoridade não é humana, mas divina.

Se houve coisa que S. Tomás nunca quis ser, foi inovador. Não queria criar uma filosofia sua, mas das coisas; era a filosofia do ser. Disse, o melhor que pôde e soube, o que as coisas são, na realidade; se já alguém o tinha dito antes dele, não era motivo para não o repetir; se ninguém o tinha dito ainda, não era motivo para ele o não dizer. Não fazia obra pessoal, mas trabalho objetivo.

S. Tomás acreditava que, na medida em que os homens subordinam as suas idéias à realidade das coisas, devem entender-se. Por isso, procurava o acordo de fato, que muitas vezes se esconde sob o aparência duma oposição de palavras. Assim, por exemplo, falando da divergência entre os estóicos e os peripatéticos a respeito da compatibilidade da virtude com as paixões, diz: "Esta divergência, como observa S. Agostinho, está mais nas palavras do que no pensamento duns e doutros" [5]. Assim também, apesar de discordar deles em muitos pontos, está de acordo, no principal, com Platão e com S. Agostinho, sem deixar de ser discípulo de Aristóteles.

Se um assunto é acessível à simples razão, trata-o pela filosofia, embora não deixe, quando o caso se dá, de mostrar, por uma ou outra citação teológica, que ele faz também parte da doutrina revelada; deste modo, quase toda a Primeira Parte da Suma, e boa parte da primeira metade da Segunda, são de pura filosofia. Mas se o assunto excede os recursos naturais da razão, e só se pode tratar tomando por base a Revelação, di-lo de maneira a não deixar dúvidas.

A teologia de que se ocupa não é a teologia positiva, que estuda a passagem da Bíblia ou o documento da tradição em que uma doutrina se funda, ou a decisão da Igreja que a definiu como dogma, ou os termos em que foi primeiramente formulada; é a teologia especulativa, que procura o verdadeiro sentido em que uma doutrina deve ser entendida. Nela, os dados da Revelação fazem o papel que, em filosofia, pertence aos fatos observados; S. Tomás passa duma para outra sem que se note quebra de continuidade nos seus métodos ou na sua maneira de ver.

O seu procedimento no caso do aristotelismo pode servir de modelo de probidade intelectual. Afastar tudo o que, de fato, não pertence à questão em estudo; procurar informação rigorosa sobre o assunto de que se trata; estudá-lo com espirito objetivo, tentando descobrir o verdadeiro significado das coisas; e depois, resolver com desassombro, respeitando as pessoas, mas desvendando os erros. Não se pode fazer melhor.

S. Tomás foi primeiro em teologia, e primeiro em filosofia. Mas julgo bem que o contraste, se o confrontarmos com os que, num e noutro campo, se lhe podem comparar, é maior ainda como filósofo do que como teólogo. Por isso me pareceu que, para primeira lição de filosofia, nada podia valer o exemplo da sua vida.