19. A individuação dos Anjos.

A imaterialidade dos Anjos põe o problema da sua individuação. Efetivamente, a matéria não é só o elemento permanente na evolução geral, é também o que permite distinguir entre si os indivíduos duma mesma espécie. De dois seres iguais, num dado momento, um é feito desta porção de matéria, outro daquela; por isso são distintos.

A ausência de matéria impediria realmente de distinguir entre si os Anjos pertencentes a uma mesma espécie. Por isso alguns filósofos, e bons, S. Boaventura, S. Alberto Magno, vendo claramente o problema, e não sabendo que solução lhe dar, renunciaram a considerar os Anjos da teologia formas puras, e supuseram neles uma matéria especial, diferente da nossa, uma matéria hipotética, desligada da extensão, elemento potencial que bastava para os individuar.

S. Tomás de Aquino resolve a questão de forma decisiva. Diz, simplesmente, que não há mais do que um Anjo de cada espécie. Cada Anjo constitui uma espécie distinta. Dois Anjos nunca são iguais; são todos diferentes. É a sua essência que os individualiza. Distinguem-se pela capacidade da sua inteligência, por aquilo que estão aptos a compreender.

Esta solução, à primeira vista, choca as nossas idéias, habituados como estamos, no Mundo que nos rodeia, a ver múltiplos indivíduos de cada espécie. Que, no entanto, é a única possível tratando-se de formas puras, resulta das noções fundamentais da ontologia de S. Tomás. Este é um ponto crucial do tomismo, como a rejeição do argumento de S. Anselmo e a possibilidade da Criação ab aeterno; quem o compreende, está no bom caminho, traz em boa ordem as idéias basilares que adquiriu até aqui.

A nossa estranheza desaparece se compararmos o que representam para a harmonia do Mundo a multiplicação qualitativa e a simples multiplicação numérica dos seres. A ordem do Mundo é a sua suprema perfeição; desempenha, repito-o, para o conjunto dos seres, o papel de forma, porque é por ela que eles formam um todo organizado. Já vimos que é para ela que Deus orienta todas as coisas, que para isso dispôs da melhor maneira possível. Ora, a ordem do Mundo resulta da subordinação harmoniosa dos gêneros, e, em cada gênero, da diferenciação das espécies. Cada nova espécie é um novo elemento de riqueza; é uma nova forma, uma nova maneira de ser que se integra no conjunto. A multiplicação de seres iguais, pelo contrário, não traz consigo senão um enriquecimento material do Mundo; é a mesma forma reproduzida em muitos exemplares. À ordem do Mundo não acrescenta nada como qualidade; não é senão um aumento quantitativo. Nessas condições, compreende-se que, em si mesma, uma multiplicação numérica dos indivíduos não tem razão de ser.

No entanto, nos seres materiais, essa multiplicação é indispensável por dois motivos. Na sua formação, esses seres estão sujeitos, em maior ou menor grau, à lei do acaso, porque a causa que os produz actua sobre uma matéria que faz parte da composição doutros corpos; e as formas desses outros corpos vêm concorrer com a causa, que podem privar, em parte pelo menos, do seu efeito. Por isso os indivíduos afastam-se sempre, mais ou menos, da perfeição da espécie, e só pela sua multiplicação se pode assegurar a esta uma boa representação.

Por outro lado, os seres materiais estão sujeitos à decomposição. Têm existência efêmera; correm permanente risco de serem destruídos. Para garantir à espécie uma perpetuidade pelo menos relativa, é preciso multiplicar o número dos seus representantes.

A razão justificativa da existência, no Mundo material, de muitos seres pertencentes à mesma espécie, deve portanto procurar-se na conservação e na boa representação dessa espécie. Os Anjos, criados dum jato e imortais, realizam a sua espécie perfeitamente e sem risco de desaparecimento. Nenhum sentido teria o aumento do seu número, desacompanhado do aumento do número de tipos diferentes que realizam.