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"A primeira e a mais manifesta das vias", diz S. Tomás, "é a
que parte do movimento [45]".
Realmente, a vida do Universo é uma perpétua evolução. Não há
só o movimento local, que modifica as posições relativas dos
corpos; há as mudanças qualitativas, substanciais, de que os
fenômenos de assimilação e desassimilação, nos corpos vivos, são
um exemplo frisante; e, no nosso próprio espírito, modificam-se os
conhecimentos da inteligência e as disposições da vontade. Seres,
qualidades, posições, determinações de toda a ordem, que existiam
em potência, passam ao ato; e, reciprocamente, outros que existiam
em ato voltam a existir só em potência. Ora, como já vimos, só
um ser em ato pode fazer passar ao ato o que existe em potência; e,
como nada pode estar simultaneamente, e sob o mesmo aspecto, em ato e
em potência, já o vimos também, temos de concluir que a mudança
dum ser é provocada por outro ser. O movimento, no sentido geral em
que estamos a tomar a palavra, exige um motor.
Se esse motor, para mover o corpo anteriormente considerado, tem de
mudar de qualquer forma, depende por sua vez doutro motor, e assim por
diante. Não é possível remontar ao infinito, visto tratar-se de
mudanças que têm todas de se realizar simultaneamente, na
dependência umas das outras. Não é possível fechar o círculo,
porque isso equivaleria, no fim de contas, a supor um corpo
movendo-se a si mesmo, por intermédio doutros. A série começa
portanto por um Primeiro Motor, que tem de ser imóvel.
Os seres vivos, que se movem a si mesmos, não constituem exceção
ao doe fica dito atrás. Neles, é sempre uma parte ou uma faculdade
que move a outra, e o movimento da primeira, o primeiro impulso,
exige um motor; estamos assim caídos no caso anterior.
Note-se bem: o Motor a que chegamos não é primeiro só pelo seu
número de ordem dentro da série. O fato de ser imóvel distingue-o
essencialmente de todos os outro, que têm de ser movidos para
moverem. O primeiro Motor, por ser primeiro, não recebe nada de
ninguém. Não é um motor entre outros, semelhante aos outros;
é, tem de ser, diferente. Quando pensamos nas qualidades que a sua
imobilidade pressupõe, compreendemos que estamos diante de qualquer
coisa para com a qual todo o respeito é pouco. Como Moisés no alto
do Horeb, parece-nos ouvir a voz a dizer-nos: "Descalça as tuas
sandálias, porque estás a pisar terreno sagrado [46]".
Estamos diante de Deus.
Mais do que qualquer outra, esta prova presta-se a uma
interpretação muito terra-a-terra, muito mecânica, digamos
assim. Há o risco de olharmos o Mundo como um sistema de
engrenagens, cada uma das quais transmite à seguinte o movimento que
recebe. Não nego que, até S. Tomás, esta prova, devida a
Aristóteles, tenha sido muitas vezes entendida assim, sob a
influência, de mais a mais, da teoria das esferas, que Aristóteles
defendia em astronomia. Mas S. Tomás, considerando no seu
conjunto o problema da evolução, entrando em conta com todas as
mudanças, de qualquer espécie que sejam, colocou a questão no seu
verdadeiro campo, o da metafísica. É esse, na expressão de
Sertillanges, "o golpe de gênio da Suma Teológica [47]".
S. Tomás admite o movimento natural. O motor, então, é quem
dá a natureza ao corpo considerado: "O que faz que um corpo seja
pesado", diz ele, "é que é o motor da sua queda [48]".
Por este exemplo extremo se vê que, para que os astros descrevam as suas
órbitas, esta prova não exige que lhes suponhamos aplicados como que
propulsores. Eles têm o movimento que sabemos. Mas podiam ter
outro, o que em mecânica se traduz pela necessidade de fixar a lei do
movimento e as suas condições iniciais. É necessário que alguma
causa lhes tenha determinado o movimento que os anima. Para o efeito
da prova é essa causa o seu motor.
O principio de inércia, portanto, não briga em nada com a primeira
via, entendida como deve ser. Também em nada a afeta o fato de
considerarmos só os movimentos relativos dos corpos. Olhada na
plenitude do seu significado metafisico, ela é bem, como disse S.
Tomás, a primeira e a mais manifesta das vias.
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