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A alma humana, pelo contrário, excede a potência da matéria. Tem
uma operação que a matéria não pode executar, Isso obriga-nos a
estudar o problema da sua origem.
Já disse noutra lição como se põe metafisicamente a questão da
evolução das coisas. A matéria, pura potência, está apta a
existir sob uma infinidade de forma. Dizemos que essas formas se
encontram nela em potência. Sob a ação duma causa eficiente
apropriada, uma dessas formas passa a existir em ato, substituindo
outras formas, incompatíveis com ela, que a precederam, e voltam a
existir só em potência na matéria. A causa eficiente não pode mais
do que isso: fazer passar ao ato o que antes existia em potência;
fazer regressar à potência o que anteriormente era ato.
Ora, a atividade da alma excede, num ponto, o que na matéria há em
potência. Muitas, quase todas, as suas operações estão dentro do
que pode a matéria, sob a ação duma forma apropriada. Mas na
intelecção a matéria não intervém. Seja qual for a forma que a
domine, a matéria não pode elevar-se ao pensamento, atividade
incompatível com o seu caráter concreto e individualizante. A alma
humana, na sua totalidade, não existe portanto em potência na
matéria; e se não existe nela na sua totalidade não existe nela de
forma alguma, porque uma forma, já o disse, é indivisível.
Existem em potência, na matéria, uma infinidade de formas capazes
de realizar alguns dos atos da alma humana. Está em potência, na
matéria, o colaborar com a alma nas operações que esta realiza por
seu intermédio. Mas a alma humana não está compreendida na sua
potencialidade; não existe a síntese onde lhe falta um elemento.
Devemos procurar-lhe a origem noutra parte.
Se, antes de existir em ato, a alma humana não existia em potência
na matéria que constituía os outros corpos, já disse que a simples
possibilidade de existência, sem um suporte real, não é existir em
potência, é porque pura e simplesmente não existia. A produção
da alma humana é por isso uma criação, e, como tal, obra de
Deus, diretamente. Não há outra solução, porque não é
possível pensar, como à primeira vista poderia parecer, numa
produção da alma por divisão doutra alma. As formas não se
dividem, nem quantitativamente, porque, por si mesmas, não têm
extensão, nem qualitativamente, porque perder algumas das qualidades
que a caracterizam seria, para uma forma, deixar de ser.
Cada alma humana é portanto criada por Deus. O seu começo é
produção do nada, começo absoluto. Quando a matéria que constitui
o corpo está suficientemente disposta para a receber, Deus cria uma
alma para a informar. Não devemos ver nisso como que um milagre; é
coisa que faz parte do plano da Natureza tal como Deus o estabeleceu.
Assim como criou os Anjos duma vez para sempre, assim como criou
seres materiais capazes de se transformarem uns nos outros por causa da
capacidade receptiva existente na matéria, Deus cria as almas humanas
para começarem a existir uma a uma, quando se apresentam as
condições materiais necessárias à sua existência.
Não pertence à metafisica saber qual o momento da gestação em que o
embrião está suficientemente desenvolvido para receber uma alma
humana. Esse assunto é com a biologia. Parece no entanto não haver
dúvidas de que, nas suas linhas gerais, a filosofia deve encarar
assim o desenvolvimento do embrião: A disposição da matéria no
germe tende, sob a ação das causas naturais a que este está
submetido, a produzir um corpo apto a viver uma vida vegetativa, ou,
o que tanto vale, a fazer passar ao ato a alma vegetativa que existia
em potência na matéria. Sempre sob a ação das mesmas causas, o
organismo do embrião desenvolve-se, e torna-se capaz de
sensibilidade; isto é, passa a existir em ato a alma sensitiva que na
matéria existia em potência. Essa alma exige, para a sua
atividade, tudo quanto era até aí regido pela alma vegetativa;
inclui, virtualmente, a alma vegetativa, que por isso substitui.
Continuando o desenvolvimento do organismo embrionário, chega o
momento em que ele pode receber uma alma humana, originada por
criação, como já disse, visto que não existe em potência na
matéria; as condições materiais são causa ocasional da sua
produção, não são causa eficiente. Essa alma substitui a alma
sensível, como esta substituiu a alma vegetativa, ou seja, integra
numa unidade de ordem superior toda a atividade que a alma sensível
dirigia; e passa a ser a lei única de existência do embrião, que,
regido por ela, termina a sua evolução, e se torna num ser humano
perfeito.
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