9. A abstração.

Somos assim levados a encarar de frente a dificuldade, que é real. Se o inteligível e o sensível são coisas distintas, se o que a inteligência conhece é duma ordem diferente do que conhecem os sentidos, como pode a inteligência receber os seus conceitos por intermédio da sensibilidade? Os sentidos, por exemplo, não nos dão o conceito de dimensão, mas as dimensões deste ou daquele corpo; não conhecem a noção de qualidade, mas algumas qualidades dos objetos; não atingem a idéia do ser, mas a existência de certos seres. De que maneira poderão fornecer à inteligência o que a inteligência está apta a conhecer? Aristóteles e S. Tomás respondem: pela abstração.

Nas coisas materiais, o que é inteligível é a forma, olhada, não na sua união à matéria, mas como plano de organização, como princípio que dá à coisa o existir segundo uma determinada essência. A forma existe no objeto concreto, ligada à matéria, realizada nela e individuada por ela. Se a imagem sensível reproduz o objeto, por isso mesmo, e na medida em que o reproduz, a forma existe na imagem também. Não na sua universalidade, visto que a imagem é ato duma faculdade material; individualizada, como no objeto; mas existe. Assim, a forma, a essência, o inteligível, não sendo sensível por si, é, como se diz na Escola, sensível por acidente. Como lei própria do objeto concreto que os sentidos conhecem, é recebida pelos sentidos, que, no entanto, não sabem distingui-la como princípio constituinte do objeto.

Nem no objeto, nem na imagem sensível, a forma existe de modo inteligível, imaterial, universal. Por serem regidos pela forma, o objeto e a imagem são inteligíveis erra potência, mas só em potência. Não são inteligíveis em ato. Para conhecer intelectualmente o objeto, é preciso distinguir nele a forma, em si mesma, independentemente da união de fato à matéria, embora não, porque isso seria falseá-la, da capacidade para a ela se unir. É preciso abstrair a forma. Abstrair, em geral, é considerar num objeto um dos seus aspectos ou modos independentemente dos outros, e conservando a consciência de que, na realidade, existe unido a eles. Aqui, é destacar a forma dos caracteres que lhe vêm da existência na matéria; tornar inteligível em ato o que era inteligível em potência no objeto e na imagem que o representa; dar existência imaterial, na inteligência, à forma que existia materialmente na realidade o na sensibilidade.

Já vimos que só um ser em ato pode fazer passar ao ato o que existe em potência. Temos portanto de supor uma faculdade especial, o intelecto agente, para fazer passar ao ato a inteligibilidade da imagem sensível. Se, na sensibilidade, não supusemos nenhum sentido agente, é porque o objeto é sensível em ato, como ser concreto que é; a sensibilidade é portanto puramente passiva. Mas aqui, o conhecimento muda de ordem; a forma adquire, em ato, um modo de ser que só tinha em potência. É necessária uma faculdade activa, intelecto agente; e, admitida esta, está resolvida a dificuldade. Os elementos que especificam o conceito, não elementos brutos, amorfos, mas determinados pelo objeto conhecido, provêm dos sentidos; a existência atual, como conceito, não como princípio informante da matéria, vem do intelecto agente.

Figuradamente, podemos dizer que o intelecto agente é uma luz que revela, no objeto, o que a matéria encobre. Na imagem iluminada por ele, a sensibilidade descobre os caracteres sensíveis, e, paralelamente, a inteligência vê a essência abstrata. Assim, no vago contorno triangular que a imaginação lhe apresenta, o geômetra distingue o triângulo, com todas as propriedades que a sua essência lhe confere. Por meio de figuras, mal desenhadas numa pedra, faz compreender ao discípulo os teoremas da geometria; a ponto de se ter podido dizer que esta é a ciência de raciocinar direito sobre figuras tortas. Mas foi pela imagem que o geômetra chegou à consideração do triângulo. Foi pelas figuras que traçou que fez compreender ao discípulo a sua ciência; e, a não ter desenhado figuras, teria inevitavelmente de, por palavras, fazer-lhas surgir no espírito, para lhe dar a conhecer aquilo de que falava. Sensibilidade e intelecto agente; potência e neto; são os dois elementos indispensáveis ao conhecimento intelectual. O primeiro fá-lo depender, verdadeiramente, do objeto conhecido; o segundo dá-lhe a sua feição especial de universalidade.

Como se vê, a teoria tomista do conhecimento difere da de Kant em que esta considera o objeto não inteligível, enquanto que a primeira o considera inteligível em potência. Para Kant, a sensibilidade só fornece à inteligência uma matéria, a percepção bruta, informe; os quadros intelectuais são criados pelo intelecto. No tomismo, pelo contrário, esses quadros existem no objeto, realmente, mas numa modalidade que o intelecto não abrange, tal e qual. Basta, sem os deformar, dar-lhes outra modalidade de existência; fazê-los existir noutro plano; fazer-lhes conduzir, segundo a sua lei, o nosso espírito, em vez da matéria que actuavam; substituir ao vasar das percepções nas formas a priori a abstração operada pelo intelecto agente. Resumindo: No kantismo, a inteligência cria o elemento formal do conhecimento; no tomismo, limita-se a desligá-lo do que o impedia de ser conhecido intelectualmente.