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A nossa inteligência é incapaz de ver claramente, num ato simples,
todas as conseqüências dum princípio, todas as partes dum conjunto,
todas as determinações dum objeto. Conhece claramente um ponto, um
só; o que se relaciona com esse, conhece-o de maneira confusa. Por
isso, para progredir no seu conhecimento, tem de compor e decompor
idéias; de afirmar ou negar dum objeto noções que já conhece
doutros objetos; de percorrer ponto por ponto os diferentes aspectos e
as diferentes propriedades do objeto. Essa operação, pela qual a
inteligência passa progressivamente da potência ao ato relativamente a
um objeto, é o raciocínio. E a inteligência humana, considerada
na possibilidade e na necessidade que tem de raciocinar para conhecer,
chama-se a razão.
A razão não é portanto uma faculdade distinta da inteligência, mas
o movimento desta, como o simples conhecimento dum objeto é o seu
repouso.
Os raciocínios subordinam-se a leis que se estudam na lógica, e de
que vamos tratar na próxima lição. No início de todos, direta ou
indiretamente, estão certas verdades, os primeiros princípios, de
que temos conhecimento por natureza. Ê indispensável precisar o que
se deve entender por essa expressão. Já disse que as idéias do
homem não são inatas; que a inteligência, inicialmente, é uma
tábua rasa. Os primeiros princípios não fazem exceção à regra.
Não existem, formulados, no nosso espírito, independentemente de.
qualquer conhecimento sensível das coisas exteriores. O que nos
pertence naturalmente é a aptidão a conhecê-los, apenas
compreendemos o sentido dos termos em que se exprimem.
A primeira coisa que o intelecto agente revela nos objetos que
conhecemos é o ser, existente, inteligível, não-contraditório.
A noção do ser só muito tarde é aprofundada e analisada; às
vezes, não chega mesmo a sê-lo. Mas os primeiros princípios, que
a exprimem, são imediatamente aplicados como ponto de partida de toda
a atividade intelectual, de todos os raciocínios.
Não nos deixemos portanto enganar pelo qualificativo primeiros dado
aos princípios. Eles são primeiros no raciocínio; mas na ordem da
existência como na do conhecimento em geral, que inclui a simples
apreensão do objeto, o que é primeiro é o ser.
Assim como o conhecimento dos primeiros princípios não foge à regra
geral das nossas idéias nos virem por intermédio dos sentidos, o
raciocínio não é exceção à lei de que o intelecto agente abstrai
das imagens sensíveis as noções intelectuais. Todo o trabalho
intelectual é acompanhado dum trabalho paralelo da imaginação. Às
associações de idéias correspondem associações de imagens, e pode
dizer-se, com generalidade, que sem imagens não há pensamento.
Além da nossa observação interna, prova-o o fato de qualquer
lesão orgânica que afecte a imaginação ou a memória impedir a
atividade da inteligência no que se relaciona com a faculdade
afectada.
Quando se trata de raciocinar sobre coisas concretas, seres materiais
como os que conhecemos pelos sentidos, as imagens representam, mais ou
menos bem, os objetos em que pensamos. Mas quando são noções
abstratas, é impossível encontrar imagens adequadas. O pensamento
socorre-se então de imagens que não te"m outra função senão a de
servirem de suporte às idéias com que lidamos. Qualquer imagem,
imprecisa, fugitiva, imprópria, nos serve. Não precisa de ser
sempre a mesma para cada noção; as imagens podem substituir-se sem
inconveniente. As vezes, a imagem é um nome; o que põe em relevo o
grande auxílio que a linguagem presta ao pensamento. Outras vezes,
como na matemática, por exemplo, é um símbolo. Seja como for, na
imagem de que nos valemos, a inteligência lê a essência do que ela
representa. E, mesmo que não recorramos a nenhuma destas imagens
para representar o termo dos nossos raciocínios, a imagem lá está
sempre, como base do nosso pensamento. Só podemos conhecer as coisas
incorpóreas, de que não há imagens, ou por analogia, a partir das
coisas que têm imagem, ou invocando o princípio de causalidade,
fundando-nos em efeitos que podemos imaginar, ou negando delas o que
conhecemos por meio de imagens.
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