|
Continuando o estudo dos seres criados, vamos tratar, depois dos
Anjos, do homem.
O homem não é, como os Anjos, um ser puramente espiritual. Tem
um corpo, material, extenso, composto de partes diferenciadas. Esse
corpo não é um simples agregado acidental das partes que o compõem.
Uma observação atenta da nossa maneira de ser convence-nos de que
ele tem unidade substancial. Sou eu, por exemplo, que me nutro, sou
eu que me movo, sou eu que sinto; é a mim que dói quando me magôo
na mão, e não à mão que magoei. São meus todos os órgãos do
meu corpo, meus todos os atos que eles executam. Sou eu que existo,
em mim mesmo, plenamente; é para a minha vida que estão dispostas
todas as partes do corpo; sou, no sentido que a palavra tem em
metafísica, uma substância.
Ora, já o vimos na ontologia, há em todas as substâncias
materiais, e portanto também no homem, um princípio que determina a
matéria ao modo de existência que tem, de preferência a qualquer
outro: uma forma substancial. Essa forma rege a disposição das
partes no todo, a existência deste e a sua atividade. No homem, e
em todos os seres vivos, a forma substancial chama-se alma. A alma
pode portanto definir-se, em metafísica, como a forma substancial
dum corpo vivo.
Vistas assim as coisas, não se põe o problema da união da alma e do
corpo, que tantos sistemas filosóficos têm tentado resolver, sem
resultado. A alma e o corpo não são dois seres distintos; são
princípios distintos do mesmo ser. Não há dum lado a alma, do
outro um corpo com existência separada da da alma. Sem a alma, não
há um corpo; há a matéria que compôs, ou vai compor, um corpo
humano, mas dominada por outras formas, constituindo outras
substâncias. Um cadáver não é um corpo humano; é um agregado
acidental de células, sem unidade essencial. Cada uma das suas
partes segue a sua evolução própria, independentemente das outras,
sem se subordinar a nenhuma lei que regule o conjunto. É a alma o
princípio de unidade do corpo humano; é elemento indispensável à
sua existência como corpo; a da sua união ao corpo é questão que
não existe.
Devemos entender que a alma é a única forma substancial do homem;
nem pode, como já vimos, haver num mesmo ser várias formas
substanciais. É a alma que se une diretamente à matéria do corpo, e
rege toda a sua atividade, tanto no que é propriamente humano como no
que é comum às plantas e aos animais. As próprias formas dos
elementos químicos que constituem o corpo desaparecem como formas
autônomas. Subsistem virtualmente, pelas suas qualidades,
integradas na disposição do conjunto; mas é à lei deste que os
elementos se subordinam, lei, de resto, que engloba a sua lei
própria, e não os violenta.
A forma duma substância material é tanto mais complexa quanto mais
perfeita esta é. É uma síntese, de que são elementos constituintes
as leis das substâncias de ordem inferior que nela se reúnem. Tem
todas as perfeições que existem nas destas últimas, e outras
perfeições que, como todo, lhe são próprias. No formarem todas
essas perfeições um só feixe, ordenado para um só fim,
constituindo um só ser, está a unidade da substância, que exige
evidentemente a do seu principio de existência, da forma substancial.
Nada impede, pelo contrário, que haja no homem várias formas
acidentais. A alma propriamente dita dispõe a matéria do corpo em
tudo o que é exigido pela sua essência de homem. O que é
indiferente a essa essência, estatura, cor, saúde, gênio,
etc., é acidente, e determinado por formas secundárias, distintas
da alma, e inerentes a ela ou ao conjunto alma e corpo.
Esta teoria da alma forma substancial do corpo é de Aristóteles.
S. Tomás retoma-a, desenvolve-a e completa-a; e condensa-a
nesta expressão lapidar: a alma é o princípio "pelo qual o homem
existe, e é corpo, ser vivo, animal e homem" [75].
|
|