2. O que é a Criação.

A maneira de ver antropomórfica que apontei deve portanto ser posta de parte. E a metafísica há-de encarar o problema de forma a não cair nos mesmos erros; para o que poderemos dizer, com S. Tomás, que a Criação é a relação de dependência do Universo para com Deus, princípio do seu ser [64].

Como toda a relação, esta tem dois termos: o Mundo e Deus. O Mundo é termo real, visto que o afeta realmente esta relação pela qual recebe o ser. Em Deus, o termo é só de razão, porque Deus, na sua imutabilidade, não é afetado em nada pela existência do Mundo. Por outras palavras, nas coisas, a Criação é a sua dependência de Deus; em Deus, a Criação é o próprio Deus, olhado na sua vontade de que exista um Universo sobre o qual a sua bondade possa irradiar.

A Criação não é portanto um intermediário entre Deus e o Mundo. Não devemos no nosso espírito, e seja sob que aspecto for, seriar: Deus, a Criação, o Mundo. Há só Deus, e o Mundo, de que a Criação faz parte. Como todo o acidente pressupõe a substância, a Criação, que é acidente por ser relação, longe de se interpor entre Deus e o Universo, é até posterior ao Universo do ponto de vista lógico [65], só acerca dum Universo existente se põe o problema da dependência do seu ser; conseqüência esta, diz Sertillanges, "que S. Tomás deduz tranqüilamente, e que tem feito estremecer muitos filósofos[66]".

Para falarmos com correção, não diremos portanto: o Mundo foi criado; o que devemos dizer é: o Mundo é criado. O ser do Mundo deriva dum principio exterior, o que nos fez afirmar a existência de Deus; nisso mesmo consiste o fato de ser criado.

Fica assim formulada a questão em termos aceitáveis para a metafísica, independentemente de todo o antropomorfismo na maneira de encarar a Criação, quer do lado de Deus, quer do lado das coisas, independentemente também de toda a ligação com o problema do começo do Mundo.

Acrescente-se que criar é exclusivo de Deus. Todas as outras causas estão determinadas a um efeito particular; imprimem à matéria sobre que actuam esta ou aquela modalidade do ser. Dar o ser, em absoluto, só pode convir à causa mais universal, a Deus.

Há causas eficientes que actuam na dependência doutras causas, como o formão na mão do entalhador, e que por isso se chamam causas instrumentais. Essas causas, produzindo o seu efeito próprio, realizam o efeito procurado pela causa principal; o formão, por exemplo, cortando a madeira, produz a obra de talha que o artista quer realizar. É natural preguntar se uma causa secundária não pode criar, ao menos como instrumento nas mãos de Deus. Mas nem isso. O efeito da causa instrumental é dispor a matéria, pela sua ação própria, para a ação da causa principal; na Criação, que não supõe nada pre-existente, uma tal causa não tem nenhum papel a desempenhar.