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É o fato de exceder a potencialidade da matéria, em parte da sua
atividade, que nos obriga a procurar para a alma humana uma origem
diferente da das almas sensíveis ou vegetativas e das formas dos seres
inanimados. O mesmo motivo nos obriga a traçar-lhe destino diferente
do destas, quando o corpo é destruído pela morte.
As formas materiais só podem existir pela matéria. Uma vez que a
matéria que informavam passou a ser dominada por outras formas
substanciais, deixam de existir em ato, e voltam a existir em
potência na matéria. Indissolúveis em si mesmas, foram, como se
diz na Escolástica, destruídas por acidente,, devido a terem
desaparecido as condições indispensáveis à sua existência.
Mas uma forma espiritual como a alma humana não depende da matéria
para todas as modalidades da sua existência. Tem uma operação em
que a matéria não intervém: o ato intelectual. Por isso, privada
do corpo, não é destruída por acidente como as outras formas.
Também não pode decompor-se, visto não ser composta de partes
distintas como o corpo; se fosse, alguma coisa as uniria, e seria
essa alguma coisa o principio de unidade, a forma, e não ela. Como
só pode nascer por criação, só pode portanto desaparecer por
aniquilamento. Ora Deus, que podia fazê-lo, não aniquila aquilo
que criou. A sua justiça, já o dissemos, dá a cada ser o que é
exigido pela natureza de que o dotou; por isso diz S. Agostinho, em
palavras que S. Tomás faz suas, que "acerca das coisas naturais
não se deve considerar o que Deus pode fazer, mas o que convém à
natureza de cada uma [80]". Deus, se deixa que as formas materiais
desapareçam, é porque elas dependem totalmente da matéria, e
convém a essa mudar de forma para reflectir, pela sua potencialidade
de certo modo infinita, a infinidade do poder criador; os seres
materiais não são aniquilados; transformam-se. A alma é uma forma
que pode existir sem a matéria; não desaparece com a transformação
desta; Deus também não a aniquila; deve continuar a existir,
dissolvido o corpo.
A alma humana é portanto imortal, ou, como diziam os escolásticos,
é uma forma substancial subsistente.
Resta saber que espécie de vida pode ter a alma separada do corpo, de
acordo com as exigências da sua natureza. Já vimos que em todas as
atividades da alma animal ou vegetativa intervém o corpo; todas elas
devem portanto cessar na alma separada. Pelo contrário, a
inteligência é independente da matéria, no seu ato supremo de
conhecimento; correlativamente, como depois veremos, é também
independente da matéria o ato livre da vontade. A atividade
intelectual, nos seus aspectos cognitivo e afetivo, pode portanto
exercer-se depois de separada a alma do corpo, e é a única que se
pode assim exercer. A vida da alma depois da morte é vida da
inteligência.
Mas, na vida presente, as idéias pelas quais a inteligência conhece
o seu objeto têm origem nos sentidos, são elaboradas com o auxilio da
imaginação e da memória. Tudo isso depende do corpo, e não pode
exercer-se dissolvido este. As idéias, que a alma separada é capaz
de conhecer, devem ter outra proveniência; é, de resto, natural
que, mudado o modo de existir, mude o modo de operar.
Lembram três modos possíveis, que, aliás, não se excluem. A
alma, separada do corpo, pode ter o conhecimento intuitivo da sua
própria natureza, que atualmente só conhece por reflexão sobre a sua
atividade. Pode ser-lhe dado conhecer a essência doutras
inteligências separadas, Anjos, ou outras almas como ela. Pode,
finalmente, receber de Deus as idéias, infusas, como se diz na
Escola.
Nenhuma destas três maneiras de conhecer excede a capacidade da
inteligência humana; e todas elas, por serem conhecimento direto do
inteligível, sem intermédio das coisas sensíveis, são mais
perfeitas em si mesmas do que o conhecimento por idéias abstraídas dos
seres concretos. Mas, para a alma humana, são menos perfeitas,
porque a nossa inteligência, feita para se aplicar às coisas
particulares, não consegue, como a dos Anjos, abranger dum só
golpe todas as conseqüências contidas num princípio geral.
Guardadas as proporções, dá-se com ela, diz S. Tomás, o que
se dá com as pessoas pouco inteligentes, que não compreendem uma
questão posta em abstrato, com generalidade, e só conseguem
compreendê-la pela multiplicação dos exemplos concretos [81]. No
mundo das idéias gerais, transparente para o Anjo, a alma humana vê
menos claramente do que no das idéias abstraídas do sensível.
Note-se que a elevação dos nossos pensamentos nesta vida não
deixará de ser um auxílio para a alma separada; ficam dela, no
espírito, vincos, hábitos intelectuais, que facilitam a
compreensão do que então lhe for dado conhecer. Quanto mais nos
habituarmos, em vida, a ver as coisas de alto, mais capazes seremos
de aproveitar o alimento concentrado, digamos assim, que o nosso
espirito então receberá.
A Revelação cristã diz-nos que Deus preparou à alma separada um
destino infinitamente mais glorioso do que a vida de certo modo
diminuída que por natureza lhe compete
a visão de Deus face a face, em união, um dia, com o corpo
ressuscitado. Nada, na natureza humana, dá à alma o direito a uma
tal condição. A capacidade da inteligência humana, por grande que
seja, não basta para conhecer a essência divina; é necessário que
Deus a exalte por uma iluminação que é obra só da sua bondade, dom
gratuito de Deus. O futuro glorioso que Deus nos reserva, e que
não exclui as formas naturais de conhecimento de que falei, embora,
evidentemente, lhes dê importância muito secundária, só nos pode
por isso ser conhecido por revelação divina; é assunto que não
pertence à filosofia, mas à teologia.
Uma última questão, ainda acerca das almas separadas. Como
individualizá-las? Falando dos Anjos, vimos que não pode haver
dois seres imateriais distintos pertencentes à mesma espécie. Pode
por isso parecer que é impossível distinguir entre si as almas
humanas, uma vez separadas do corpo. Mas as almas humanas não são
formas puramente espirituais, como os Anjos. Se já não animam,
animaram um corpo material; e o ter animado um corpo distinto dos que
as outras animaram basta para diferençar uma alma entre todas. As
almas separadas são portanto individuadas pela sua relação,
relação essencial, para com certo e determinado corpo, que foi o
seu.
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