6. O sentido largo da palavra.

A filosofia, no sentido largo da palavra, compreende todo o esforço sincero feito no campo do conhecimento filosófico, seja ou não coroado de resultados definitivos. O trabalho filosófico exige um esforço difícil, delicado, esgotante, e, pode dizer-se sem exagero, doloroso; porque, é trabalho ir ao extremo limite da nossa capacidade intelectual. Nesse terreno, a imaginação pouco pode auxiliar o pensamento, por causa do grau de abstração que ele atinge, dificilmente se encontram palavras para exprimir o que se pensa, e custa a fazer compreender aos outros o sentido em que se tomam as que se conseguem encontrar. Por outro lado, é impossível aplicar a atenção por muito tempo ao assunto que se estuda, do que resulta muitas vezes esvaírem-se as idéias que a memória não teve tempo de fixar; há dificuldade em elaborar, dar forma explícita, aos raciocínios que o subconsciente, obscuramente, adivinha; e é preciso vigilância constante, tantas são as distinções a fazer, de caso para caso, sob pena de errar as conclusões.

O reconhecimento destas dificuldades deve ditar a nossa maneira de ver aqueles que, procurando fazer progredir a filosofia, não puderam mais do que construir sistemas errôneos, muitas vezes por vício de origem, devido à má escolha dum princípio. Veja-se, por exemplo, o estudo do conhecimento feito por Kant. Quase ponto por ponto, a análise de Kant vai acompanhando as conclusões de S. Tomás no mesmo capítulo, conclusões que, aliás, julgo não terem sido conhecidas de Kant; mas transpondo-as, constantemente, para um plano em que tomam significado completamente diferente, e terminando, não pela identificação da inteligência com o objeto conhecido, como S. Tomás, mas pela identificação da inteligência consigo mesma; tudo por Kant ter partido do princípio de que o íntimo das coisas é inconhecível.

Mesmo tomando para princípios aqueles em que a nossa inteligência, realmente, se baseia, pode haver erro na sua aplicação a qualquer questão importante, e daí ficar falseado tudo o que se segue. Não é por isso de admirar que tantos filósofos tenham errado, a ponto de não haver talvez assunto nenhum em que não seja possível encontrar dois filósofos com opiniões opostas; a ponto de se poder dizer que a história da filosofia é a história dos erros da humanidade. Às vezes, das melhores intenções nasce a pior filosofia; um erro, que o filósofo não vê, vai, uma vez descoberto, destruir tudo quanto ele julgou fundar solidamente, e permitir aos seus adversários, quando não é aos seus continuadores, ou a ele próprio, coagido pela lógica da posição que adotou, que tirem conclusões opostas às que ele esperava estabelecer. Abundam os exemplos. Mais adiante veremos, entre outros, os de Descartes, Berkeley e Kant, que são significativos. Poderemos nós supor que as boas intenções, claramente afirmadas, de tantos filósofos autores de sistemas péssimos, sejam todas mentirosas? Julgo que não.

Apesar dos erros, muitas vezes fundamentais, dos seus sistemas, poucos serão os filósofos que não tenham concorrido duma maneira ou doutra para o progresso real das ciências e da própria filosofia. Os materiais que muitos deles utilizaram em construções caducas, são, quantas vezes, bons, aproveitáveis, definitivos. Podem vir expressos em linguagem muito pessoal, que é preciso compreender e traduzir, para os integrar num corpo de doutrina já constituído; podem ser um conjunto de observações justas, mas mal interpretadas, podem ser análises preciosas, não seguidas de obra construtiva; mas têm, quase sempre, algum aspecto pelo qual se podem tornar úteis. Na pior hipótese, o filósofo chamou a atenção para um problema de que ninguém ainda se tinha ocupado, ou para a fraqueza dum raciocínio que passava por bom: ou, tantas vezes, refutou o sistema, não menos errôneo do que o seu, doutro filósofo, enquanto um terceiro filósofo o não refuta a ele. Para uma filosofia assente em bases sólidas, pouco é de perder no trabalho dos filósofos, mesmo desorientados.

Tudo isto nos obriga ao respeito pelos que erraram em filosofia, quando buscaram sinceramente a verdade. Devemos combater os seus erros, pô-los a nu; mas respeitar quem, em assunto tão difícil, não conseguiu o que procurava. Só não merecem esse respeito os que, para defenderem preconceitos políticos ou religiosos, ou favorecerem interesses de partido, se servem da filosofia como meio de enganar, e, dando aspecto sério a sistemas insuficientemente fundamentados, atraem com eles quem não tem preparação suficiente para lhes ver os pontos fracos. Esses não são filósofos; são os moedeiros falsos da filosofia: não é a eles que me refiro nas considerações que precedem.

No sentido largo, portanto, "filosofia" e as palavras desta derivadas compreendem todo o esforço filosófico, bem ou mal sucedido. É sempre esse o sentido quando se fala em filósofos: é ainda o sentido na expressão; "história da filosofia". É o seu sentido, ainda, da primeira vez que aparece, e com uma nota depreciativa justificada por tantos erros dos filósofos, no pensamento célebre de Pascal: "Rir-se da filosofia, é, verdadeiramente, filosofar" [7].