15. O problema do mal.

A última dificuldade vem da existência do mal no Mundo regido pela Providência. Para a resolver, vejamos primeiro o que é o mal.

O mal é a ausência dum bem, a privação dum bem.

Mas nem toda a falta dum bem se pode chamar mal. É mal, mal moral, que um homem obedeça cegamente aos seus apetites instintivos; não é mal que o faça um macaco, ou outro qualquer animal irracional. Da mesma maneira, não podemos considerar mal a ausência de pernas numa serpente, enquanto que é um mal, um mal físico, a falta das pernas num homem ou num cão. Se reflectirmos, vemos que só podemos chamar mal à privação dum bem que convém a um ser, de acordo com a espécie a que pertence. Onde devia existir um bem, e não existe, dizemos que há um mal.

Para explicar a origem do mal, temos de pôr de parte, antes de mais nada, a hipótese dos maniqueus, de que há um primeiro princípio rival de Deus, e essencialmente mau. Com efeito, sendo o mal uma privação, o Supremo Mal deveria ser a privação total, o não-ser. Seria contraditório supô-lo existente.

É então Deus a causa do mal? Também não, vê-se bem porquê. O mal é uma privação, um ser de razão. Não tem existência real; o que existe é o bem que o mal limita. Como privação que é, o mal não tem causa eficiente; não precisa dela. Não pode ser causa final, já vimos que o efeito duma causa eficiente desempenha para ela o papel de fim; só um bem, um ser positivo, pode ser fim de qualquer ação. Nas séries que nos permitiram remontar até Deus, as da causalidade eficiente e da causalidade final, o mal não entra; o que entra é o bem que serve de sujeito ao mal. O mal é causado por acidente; só tem causa acidental. Resulta de uma causa ser frustrada do seu efeito por com ela concorrer acidentalmente outra causa ou outras causas.

Um leão mata uma ovelha para a comer. É à morte da ovelha que está determinado o instinto do leão? Não; é à conservação da vida do leão, que é um bem. Um homem, por gula, come do que lhe faz mal, e arruína a saúde. Não há na sua natureza nenhuma faculdade cujo fim seja esse. Há a vontade, que lhe foi dada como motor para executar livremente o que a inteligência lhe mostrasse ser seu dever; e há o instinto que o leva a procurar alimento, em subordinação à vontade, guiada pela razão. A vontade cedeu ao instinto; faltou à sua missão, e produziu o mal. O mal resultou, por acidente, de faculdades cuja finalidade era o bem.

Querer fazer de Deus a causa do mal é como atribuir ao Sol a existência das sombras. Do Sol vem a luz; um obstáculo interpõe-se, e produz a sombra. Essa sombra, esse contorno desenhado no chão, não existiria se não houvesse luz; apagar-se-ia na escuridão geral. No entanto, ninguém dirá que é do Sol que vem a sombra. Da mesma maneira, o mal não tem causa, causa destinada a produzi-lo, na Natureza que Deus criou. Não tem causa eficiente; tem só, diz S. Tomás, causa deficiente [72]. Existe num bem como no seu sujeito, quando algum outro bem se interpôs no caminho desse. Se não existisse o bem, não existiria o mal, como não haveria sombras se não houvesse luz. Mas o que tem causa é o bem, não o mal que o mutila.

Deus, portanto, não quero mal, no sentido de que não é causa do mal nem dispôs nenhuma causa para o produzir. No entanto, quer o Mundo em que o mal existe. Devemos por isso dizer que permite o mal; vejamos, para terminar este assunto, como isso possa ser.

Como já disse, Deus ordenou tudo, no Mundo, para a maior perfeição do conjunto. Ora a imperfeição de alguns seres, relativamente aos tipos das suas espécies, é condição da perfeição do conjunto. Por outras palavras, é um bem que haja o mal. Assim, a morte da ovelha é, como atrás recordei, condição da vida do leão; e o Mundo é mais perfeito existindo nele ovelhas e leões do que se só existissem ovelhas; a coragem e a força são perfeições, como a mansidão. Por outro lado, é bom que haja seres que, livremente, possam falhar nas suas ações, apesar de Deus lhes ter dado todos os meios necessários para o não fazerem. Alguns, corrigindo-se mais tarde, dão lugar à existência desse bem que é o arrependimento; todos dão ocasião a um esforço desinteressado por parte dos que procuram melhorá-los, e, nas suas vitimas, a que se manifestem qualidades que doutra forma não poderiam existir: "Não haveria a admirar a paciência do perseguido", diz S. Tomás, "se não fosse a maldade do perseguidor [73]".

O bem, portanto, e só o bem, é que Deus quer no Mundo. Mas, do mal, sabe tirar o bem; e quer esse bem como os outros. Como diz o nosso povo, "Deus escreve direito por linhas tortas". É por isso que permite que algumas das coisas que criou produzam o mal, por acidente.