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Em que pode consistir a bem-aventurança do homem?
O homem, por natureza, é um ser intelectual, e a inteligência é
feita para o universal, para o ser, sem restrições, A capacidade
humana, pela lado intelectual, é assim, de certo modo, ilimitada.
Nenhum bem concreto nos pode por isso satisfazer completamente, e
constituir para nós a bem-aventurança. Possuído um tal bem, a
inteligência não tardaria a mostrar-nos as suas deficiências, as
suas limitações; incitar-nos-ia a procurar outros bens mais
perfeitos, e assim sucessivamente. Só o Supremo Bem pode
satisfazer o nosso espírito, que, não encontrando nele defeito,
vendo nele tudo quanto procura, fica em repouso na sua contemplação.
Não se diga que as outras faculdades, insatisfeitas, podem perturbar
o nosso contentamento, uma vez obtida a contemplação de Deus; em
Deus existe, de maneira eminente, tudo quanto há de bom, de
positivo, nos bens criados; conhecido Deus, o homem encontra todos
os bens que pode desejar, não, é certo, na forma imperfeita que
tomam Neste Mundo, mas excedendo-a e ultrapassando-a
infinitamente.
A bem-aventurança do homem, no essencial, no que é necessário e
suficiente, está por isso no conhecimento de Deus; o que não impede
que a posse deste bem possa ser acompanhada da de outros bens
secundários, como parte acessória da bem-aventurança.
Esta doutrina de S. Tomás sobre o fim último do homem não deve
atribuir-se a sugestão das idéias cristãs; resulta rigorosamente
das conclusões da sua metafísica. Já Aristóteles, pagão e
anterior ao cristianismo, e portanto insuspeito de qualquer sugestão,
guiado unicamente pela filosofia, fazia consistir a bem-aventurança
humana no conhecimento de Deus.
No entanto, porque somos homens, a bem-aventurança que podemos
conseguir pelos meios naturais é relativa, é bem-aventurança à
maneira humana. Neste mundo, já sabemos como é trabalhoso e
imperfeito o conhecimento que obtemos de Deus. E, para mais, porque
o trabalho do espírito é constantemente interrompido pelos acasos da
nossa vida material, sujeita à ação das coisas que nos cercam, a
contemplação é inevitavelmente limitada, reduzida a raros e curtos
momentos. Na vida da alma separada, nada pode interromper a
contemplação do divino. Mas teremos sempre de conhecer Deus por
espécies, em conceitos, como que num espelho, e portanto de maneira
imperfeita e inadequada.
Só pela Graça poderemos conseguir uma bem-aventurança absoluta,
uma bem-aventurança à maneira divina. Pela chamada luz da
Glória, que é a última perfeição da Graça, Deus
assemelha-nos, de certo modo, a si. Sobreeleva a nossa
inteligência de forma a podermos conhecê-lo por essência, e não
por espécies; face a face, e não num espelho. Teremos então dele
um conhecimento, senão exaustivo, porque esse só é possível ao
próprio Deus, pelo menos direto, imediato. Mas o estudo da
bem-aventurança absoluta, única que, de fato, interessa, visto
que Deus a quis acrescentar à outra, e ela a excede como Deus excede
o homem, compete à teologia e não à filosofia.
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