10. Ser real e ser de razão.

E assim fica visto, rapidamente, o essencial duma ontologia, que não é mais, afinal, do que desenvolvimento e análise da noção basilar, primária, do ser, com adoção duma nomenclatura apropriada. Falou-se da composição de ato e potência, que se manifesta nas distinções de essência e existência e de forma e matéria. Estudaram-se as modalidades gerais segundo as quais o ser se realiza analogicamente, as categorias, e depois a distinção em gêneros, espécies e indivíduos. Mencionaram-se os transcendentais, noções em que desdobramos a de ser, considerando nela uma faceta de preferência às outras. Resta falar de certas noções que não correspondem, na realidade exterior, a nenhum ser, mas com as quais teremos de lidar mais adiante.

Toda a noção, como noção, é um ser; é idéia, existente na inteligência que a pensa. É ser de razão. Mas pode corresponder a um ser real, isto é, existente fora da inteligência; ou pode não lhe corresponder nenhum ser real, o que não quer dizer que seja errada, visto que só o seria se fosse acompanhada da convicção de que essa correspondência existia.

O primeiro é o caso das qüididades dos seres reais, isto é, das suas essências abstratas, consideradas independentemente da sua existência.

O segundo é o caso das qüididades dos seres simplesmente possíveis, isto é, das essências a que falta o ato de existência, e que por isso mesmo são abstratas e só abstratas. Enquanto esses seres não existem, e alguns podem não chegar nunca a existir, são noções que não correspondem a nenhuma realidade. A idéia que um arquitecto tem duma construção coerente, ainda em projeto, serve de exemplo de noção dum ser possível.

O segundo é o caso, também, das noções a que não corresponde nem pode corresponder nenhum ser real, por não exprimirem nenhuma essência. São assim os universais, gêneros e espécies, se os tomarmos com o seu caráter de universalidade; já vimos que, na realidade, só existem individuados. São assim ainda muitas noções utilizadas pela lógica: sujeito, predicado, etc.

Também são seres de razão as noções negativas, como a privação e a negação. A privação tem, como as anteriores, um fundamento na realidade, mas não corresponde a um ser real. O que existe não é ela, mas um ser privado duma perfeição que lhe compete. O nosso pensamento decompõe a noção desse ser em duas: a do ser perfeito, e a da perfeição que lhe falta, esta a subtrair da primeira, como privação. Quando pensamos num homem a quem falta um braço, por exemplo, o nosso espírito distingue duas noções: a do homem completo, com ambos os braços, e a da privação do braço que lhe falta. Logo se vê que a segunda não pode corresponder a nada de real, senão conjugada com a primeira.

A idéia da negação, do nada, do não-ser, nem mesmo tem fundamento em qualquer ser que exista ou possa existir na realidade. É devida a que a nossa inteligência, feita para o ser, tem de recorrer aqui a uma ficção, e de emprestar ao não-ser certos aspectos dum ser, sem, aliás, lhe atribuir existência, se raciocina bem.

Quanto ao absurdo, isto é, ao que se contradiz a si mesmo, não é: sequer um ser de razão. Podemos falar dele, não prestando atenção ao que a palavra significa; mas não podemos pensar nele, a não ser de forma muito superficial, porque não dá lugar a uma noção consistente. Pensar num círculo quadrado, por exemplo, é impossível; logo que queremos aprofundar a idéia a que demos esse nome, vemos que ela nem como idéia pode existir.

Note-se que o verbo ser, empregado quando se fala de seres de razão que sabemos não poderem existir realmente, não corresponde a qualquer atribuição de existência. É uma simples cópula verbal. Quando dizemos, por exemplo, que o não-ser é o contrário do ser, sabemos bem que, na realidade, o não-ser não é, não pode ser. Queremos dizer, unicamente, que tanto vale falar do não-ser como do contrário do ser; que as duas noções são equivalentes.