C. Os seres inanimados.


8. As substâncias inanimadas.

O mundo dos seres sem vida é constituído por uma série de substâncias, estudadas, nas suas propriedades e nas suas transformações, pelas ciências físico-químicas. Como em todas as substâncias materiais, há nas substâncias inanimadas a composição metafísica de matéria-prima e forma substancial. Simplesmente, enquanto que, tratando-se dos seres vivos, é fácil saber quais são as unidades substanciais, e portanto distinguir a forma substancial das formas acidentais, nos seres inanimados é difícil distinguir, de entre as formas que regem a matéria, quais correspondem a substâncias, e quais a acidentes. Realmente, nós conhecemos a nossa própria existência como unidade substancial pela observação interna. Sabemos que a nossa forma substancial há-de ser a forma do nosso corpo e o sujeito das nossas faculdades imateriais; a alma, portanto. A semelhança evidente entre a vida dos animais e das plantas e a nossa própria autoriza-nos a estender a conclusão aos outros seres vivos, e a dizer que as suas almas, sensitivas ou vegetativas, são formas substanciais. Mas aqui não temos uma indicação segura, e podemos legitimamente hesitar. Onde está a substância? No composto químico, caracterizado pela molécula? No cristal? Estará, por outro lado, no elemento químico, definido pelo átomo, ou pelo menos pelo seu núcleo, ou até nos constituintes do átomo, electrões, protões, etc.?

A questão tem sido muito discutida entre os filósofos tomistas. A sua resolução não depende da metafísica, mas da interpretação dos conhecimentos obtidos pela física. Pertence a uma física qualitativa, entendida à maneira de Aristóteles, que não se confunde com o sentido quantitativo em que a palavra é hoje tomada geralmente, mas não o exclui nem se lhe opõe; antes existe latente na base e na interpretação de todas as teorias físicas. Para bem do prestígio do tomismo, que só pode perder com ser envolvido em questões que lhe são estranhas, julgo conveniente que os tomistas não queiram decidir definitivamente este ponto, ou, se o fazem, que não deixem de salientar que é como físicos e não como filósofos.

A questão, no fundo, é a seguinte: A molécula é um agregado acidental de átomos, transitório e instável, sem lei bem definida de que a lei dos átomos que a compõem faça parte integrante, ou, pelo contrário, é um tipo de ser com essência bem determinada, em que os átomos, agindo segundo as leis que os regem quando autônomos, concorrem para a existência e a conservação do todo? Se a lei da molécula exige a lei do átomo em tudo o que tem de essencial, se a engloba numa síntese de ordem mais elevada, então o átomo não existe nela como ser autônomo, mas virtualmente; o composto químico que a molécula caracteriza é uma substância, no sentido metafísico, e a sua forma uma forma substancial. Se, pelo contrário, algumas propriedades essenciais do átomo não pertencem à essência da molécula, e podem contrariá-la, os átomos não perdem nela a sua autonomia, e a forma da molécula é uma forma acidental. Da mesma maneira se põe a questão de saber se o cristal é um agregado acidental ou substancial de moléculas, e o átomo um agregado acidental ou substancial de electrões e outras partículas.

A opinião mais vulgar é que as transformações químicas correspondem a modificações substanciais, e portanto que as substâncias inanimadas são os compostos químicos. Foi este uso que segui sempre que se tratou de procurar exemplos. Mas chamo expressamente a atenção para o fato de o ter feito sem querer com isso dizer que as outras soluções são inaceitáveis para a metafísica. A esta basta saber que, como suporte das várias formas acidentais, há-de sempre haver uma forma substancial, unida diretamente à matéria, e só uma para cada porção desta; porque, como já disse, sendo a acidente ser doutro ser, não é possível remontar ao infinito na série dos acidentes, e há-de necessariamente chegar-se a uma forma substancial. Mas é-lhe indiferente que essa forma seja a do cristal, a do composto, a do elemento, ou a das partículas elementares.

A existência nos seres inanimados dum princípio imaterial, a forma substancial, estabelece uma certa continuidade entre eles, as plantas e os animais. A diferença está na espécie de atividade de que a forma torna capazes uns e outros. É uma diferença de ordem; porque as formas superiores englobam, numa síntese de ordem mais elevada, os elementos que constituem as de ordem inferior, e outros elementos ainda que não pertencem a estas. Mas em todos os seres há uma idéia latente, uma tendência para a ação, um plano de existência e de expansão activa. O tomismo salvaguarda assim, dando-lhes o seu verdadeiro significado, todos os fatos em que os materialistas se têm querido basear para reduzir a vida a uma manifestação de atividades cegas. As semelhanças entre os seres vivos e os inanimados não provam que os primeiros são matéria e só matéria, mas que a Inteligência Criadora se reflecte e manifesta nuns e noutros, embora em graus muito diferentes.