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A noção de ser, tal como a nossa inteligência a forma ao contato
da realidade, não pode ser estática. "O mundo é todo feito de
mudanças; a frase é de Camões, mas não exprime uma ficção
poética; é uma grande verdade. Vivemos num universo em permanente
evolução; da destruição duns seres nascem outros que os
substituem, e que por sua vez hão-de desaparecer. Nós próprios
mudamos; de crianças para velhos, de mais ignorantes para menos
ignorantes, não digo para sábios porque a filosofia não nos permite
aspirar a esse título; filósofo foi nome adotado por modéstia, e
não significa, etimologicamente, senão amigo da sabedoria. Todo o
conceito rígido do ser, que não atenda à evolução, ao devir
(adotando, como hoje, é uso, esse termo arcaico, que alguém
lembrou ressuscitar, para traduzir o latim fieri, o francês devenir,
o alemão Nerden), é um conceito falso, estéril, sobre o qual
nunca se poderá basear um conhecimento verdadeiro do que nos rodeia.
No entanto, se há noção que pareça estática a um olhar
superficial é com certeza a de ser. É, é; não é, não é; não
se vê meio-termo. Por isso os eleatas afirmaram a absoluta
imutabilidade do ser, e reduziram toda a mudança a uma aparência;
enquanto os jônios, de acôrdo com eles em considerar o ser
incompatível com a evolução, mas discordando da solução dada,
negavam todo o ser, e faziam da mudança o fundo das coisas. Eram
soluções simplistas; a realidade é mais complexa; comporta o ser e
a mudança, como muito bem viu Aristóteles, que resolveu o problema
sem sacrificar uma coisa nem outra.
Em cada coisa devemos considerar, além daquilo que ela é
efetivamente, no momento dado, tudo o que pode vir a ser sem se negar
a si mesma. Além do ser existente de fato, há a possibilidade real
de existência. Ao primeiro, perfeição possuída, forma de ser
realizada, chama Aristóteles o ato; à segunda, perfeição
realmente possível, mas não possuída, chama potência. Só o ato
é, plenamente, ser; a potência, no entanto, que não é
propriamente um ser, difere do puro não-ser. Não é, em ato; mas
o que tem possibilidade real de existir, embora não exista de
momento, não pode considerar-se, simplesmente, um nada.
Duma vez para sempre, quero lembrar que não devemos tentar imaginar
as noções da metafísica. A imaginação não sugere senão o
reflexo do que já vimos; é uma faculdade que depende dos sentidos, e
não pode formar nenhuma imagem que represente adequadamente o que os
sentidos não atingem. A potência, por exemplo, se a quisermos
imaginar, não pode aparecer-nos senão como um ser esquemático, um
fantasma, uma sombra de ser. Ora a potência não é nada disso;
é, como disse, uma possibilidade real de existência; e nós não
podemos imaginar uma possibilidade.
A nossa inteligência, dependente do sensível, não pode atingir a
potência senão por intermédio do ato, das coisas existentes
realmente, que, essas sim, podemos imaginar, se são materiais. A
potência é um postulado; uma noção que a inteligência reconhece
necessária, mas que não atinge senão indiretamente.
Feita assim a distinção do ato, que é, propriamente, o ser, e da
potência, de certo modo um não-ser, mas fecundo em vez de
estéril, cheio em vez de vazio, a mudança aparece como a passagem da
potência ao ato, do ser possível ao ser realizado. Essa passagem
exige uma causa, claro está; mas, antes de falarmos dela, vejamos
algumas condições gerais que resultam das próprias noções de
potência e ato.
Em primeiro lugar, a potência é relativa ao ato, que,
logicamente, a precede. Não se concebe a potência senão como
possibilidade de adquirir, em ato, uma certa modalidade de ser. Por
isso, a potência é qualificada pelo ato a que se refere.
Por outro lado, a potência só pode existir tendo, como suporte, um
ser em ato. É possibilidade real; a sua realidade tem de fundar-se
em seres realmente existentes. Uma coisa, que existe, pode vir a
adquirir esta ou aquela nova determinação; outra coisa, existente,
pode conferir-lha. Mas a pura potência não pode existir. Seria o
não-ser, em absoluto; realmente, não lhe corresponderia nada,
visto não haver nada real de que exprimisse uma capacidade. A
potência existe no ato, e para o ato; não pode existir pura.
Pelo contrário, nada se opõe, logicamente, à existência dum ato
puro.
Nenhuma coisa pode, numa dada ordem e sob o mesmo aspecto, estar
simultaneamente em ato e em potência. Não é possível adquirir o
que já se tem; é evidente, por exemplo, que ninguém pode abrir uma
porta aberta. Por isso, uma coisa é, em potência, tudo quanto
pode vir a ser, e não é, efetivamente, no momento considerado.
Finalmente, nada pode agir senão pelo que é, em ato. Para agir,
é preciso, antes de mais nada, ser. O ser em potência é agente em
potência. Para ser agente em ato, tem de ser em ato, também. A
recíproca não é verdadeira; um ser em ato pode ser agente em
potência, isto é, ter possibilidade de agir, e não estar a agir,
de momento. Tem então uma potência de agir, o que se chama uma
potência ativa. Distingue-se desta a potência passiva, que é a
possibilidade de sofrer a ação doutro ser.
O que uma coisa é, em potência, depende, como já disse, da coisa
de que se trata. Suponhamos, por exemplo, uma certa porção de
água, que está fria; essa água é fria em ato, mas quente em
potência, visto que pode ser aquecida, sem deixar de ser água.
Como comparação, suponhamos uma porção de gelo; é frio em ato,
mas não é quente em potência, porque, se o aquecermos, deixará de
ser gelo. Bem sei que a água, tomando agora o termo no seu sentido
mais largo, que, no estado sólido, constitui o gelo, pode ser
aquecida; mas o gelo, ficando gelo, não. Daquilo que uma coisa
não é em ato, é portanto, em potência, tudo o que pode vir a ser
sem deixar de ser o que a caracteriza; por outro lado, não pode vir a
ser, em ato, senão o que era anteriormente, em potência.
A potência e o ato dividem o ser de alto a baixo, em todas as suas
modalidades, numa zona de luz e uma zona de sombra, digamos assim, em
determinado e indeterminado, em plenitude e capacidade, em realidade e
possibilidade real. Manifestam-se de maneiras variadas; vamos tratar
das principais.
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