2. A harmonia do Universo.

Se, como vimos, a ordem das causas eficientes é inversa da das causas finais, as causas mais gerais do Universo devem orientá-lo para os seus últimos fins. Ora o supremo fim da Criação é dar uma imagem, forçosamente imperfeita, tuas nem por isso menos admirável, da inteligência criadora de Deus; o que, já o fiz notar, acontece pela perfeita integração de todas as suas partes num conjunto harmonioso. O estudo da harmonia do Universo, harmonia de que, observe-se, não devemos fazer um conceito estático, mas um conceito dinâmico, que abranja também a ordem manifestada pela realização progressiva do plano que o rege, compete por isso, eminentemente, à filosofia.

Neste ponto, não é fácil exceder a grandeza do quadro que nos traça a filosofia tomista. Dominam-no três elementos, que é indispensável compreender bem porque se manifestam em todos os pormenores. O primeiro é um princípio: o de que a perfeição do conjunto resulta da desigualdade das partes [94]; a harmonia, realmente, é a coordenação de seres diferentes para um fim único, comum a todos. O segundo é o critério de perfeição de que já falei; faz depender a perfeição de cada ser da universalidade do seu fim, e, entre os que têm o mesmo fim, da simplicidade dos meios por que o atingem. O terceiro é a convicção de que a diferenciação dos seres é feita por gradações insensíveis; de forma que o mais perfeito de cada ordem confina com o menos perfeito da ordem imediata.

Consideremos então a maneira por que S. Tomás ordena os seres do Universo. No grau mais baixo, estão os seres inanimados, de existência limitada à matéria que os compõe. Sofrem, passivamente, as ações do exterior, e não conhecem o fim das ações que causam. Nem pela utilização do meio, nem pelo conhecimento, excedem os seus limites corpóreos.

Seguem-se as plantas. Estas já sabem aproveitar o meio que as rodeia para desenvolver e sustentar o seu organismo. Longe de sofrerem, passivamente, as ações exteriores, integram-nas no plano da sua própria atividade, e fazem-nas concorrer para a conservação da sua existência. E, na sua atividade mais perfeita, a reprodução, dirigem a sua ação para um fim superior à sua existência individual, e procuram a perpetuidade da espécie a que pertencem, pela produção de novos indivíduos. A vida da planta já excede, portanto, os limites do seu organismo, pela ação e pelo fim; domina o meio que a cerca, e tende à preservação da espécie.

Esta última função vegetativa já anuncia a atividade dos animais, toda dirigida para fins exteriores a eles. Esses fins são-lhes dados a conhecer pelos sentidos; e, pela sensibilidade a vida dos animais excede os limites do seu corpo de mais uma maneira, visto que o animal se assimila ao objeto que conhece. No entanto, o conhecimento sensível não ultrapassa o que, no objeto, há de particular.

O homem está na fronteira de dois mundos, o animal o espiritual. É natural que assim seja, depois do que disse sobre a continuidade na transição entre as várias classes de geres. Da mesma forma, vemos a função vegetativa mais elevada aproximar as plantas dos animais; e os virus, parecem prová-lo os recentes estudos com o microscópio eletrônico, estão também na fronteira de dois mundos, o vivo e o inanimado. Ser fronteiriço, o homem não é um híbrido, nas, por assim dizer, uma unidade bivalente. Exerce atividade, ao mesmo tempo, em dois planos distintos. Sabe ver, ios objetos individuais que conhece pelos sentidos, o elemento universal que contêm. Pode portanto compreender o papel que lhes cabe no plano da Criação, adivinhar este, e ser, por ele levado ao conhecimento do Criador.

Pela inteligência, o homem excede, não só o seu próprio corpo, mas todos os corpos, e é capaz de atingir a razão de ser do Universo. O fim a que tende por Natureza é o mais elevado dos fins naturais. Mas por que meios complicados o atinge, e depois de percorrido que caminho! O seu pensamento progride, passo a passo, pelo raciocínio, partindo das noções abstraídas do concreto que conheceu pela sensibilidade. Isso exige nele, além da inteligência, um corpo sensível, e, para manter a vida deste, todas as funções vitais dos animais e das plantas. O seu organismo é por isso o mais complicado de todos.

Desde a estrutura relativamente simples das substâncias inanimadas ao organismo tão diferenciado do homem, o progresso para a perfeição foi portanto marcado, até aqui, pela complicação crescente, que permite atingir um fim cada vez mais universal. Daqui por diante, o aumento de perfeição só pode consistir na simplificação dos meios. Por isso vemos que os Anjos são tanto mais perfeitos quanto menor o número de idéias de que necessitam para conhecer o Universo. E o de maior perfeição, se não serve de transição para Deus, porque não há transição do finito para o infinito, já anuncia, pela simplicidade do seu conhecimento, a simplicidade absoluta de Deus.

É assim que S. Tomás ordena os seres. Vejamos como essa ordenação se harmoniza com a maneira como vê a sua individuação, e com a solução que dá da questão dos universais.

Os Anjos não têm matéria. No seu ser, por isso, nada é devido ao concurso acidental de causas estranhas; cada um realiza, perfeitamente, a sua essência. Se o que importa à harmonia do Universo é, como disse, a multiplicação formal dos seres, a coordenação de seres diferentes, não há motivo para haver mais do que um Anjo de cada espécie. Os diversos Anjos distinguem-se portanto por essência; são todos diferentes. Do que resulta que cada Anjo é inteligível. por si mesmo.

O homem, porque à sua maneira normal de conhecer são indispensáveis os sentidos, precisa dum corpo, sujeito às ações que regem a matéria. A formação desse corpo está exposta aos acasos das influências estranhas; e a sua duração é limitada. Torna-se por isso necessária a multiplicação numérica dos homens. É a matéria, o mesmo elemento que exige a existência de muitos indivíduos de igual espécie, que serve de principio de individuação. E, dissolvido o corpo, a relação para com ele basta para individuar a alma separada.

Os mesmos motivos explicam a multiplicação dos animais, das plantas e dos corpos inanimados dentro de cada espécie, e justificam que seja a matéria o seu principio individuante.

A multiplicação dos indivíduos é exigida pela matéria, e, para a harmonia do Universo, puramente acidental; o que realmente interessa é a distinção das espécies. Para a compreensão dessa harmonia, portanto, é também a espécie que importa. Isso explica o modo particular do conhecimento intelectual, orientado para o universal; conhecimento cujo objeto é a essência que, na realidade, existe individuada, mas é conhecida como idéia, abstrata, geral.

Pode-se adivinhar, pelo esboço rápido que tracei, a unidade de estrutura da visão tomista do Universo. Para a apreciar como merece, é preciso mais; é preciso observar como S. Tomás, quando se trata de metafísica, e apesar de haver no seu sistema elementos das procedências mais diveras, de Aristóteles e de Platão, de S. Agostinho e do Pseudo Dionísio, dos árabes e dos primeiros escolásticos, olha cada questão em função do lugar que lhe cabe no plano de conjunto e resolve, com a mesma facilidade, os assuntos vais diferentes, à luz dos mesmos princípios gerais.