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A satisfação do dever cumprido compensa os bons de muitas
contrariedades; mas, por grande que seja, não basta para se poder
considerar justamente premiado quem, tendo feito o bem toda a vida,
não encontrou senão desgraças. É a imortalidade da alma, com a
existência, que implica, duma outra vida em que não se está sujeito
aos acasos da matéria, que permite restabelecer a justiça e assegurar
a quem é bom a recompensa que merece.
A alma separada, como disse, conhece por idéias infusas. O grau do
conhecimento de Deus que podemos ter na outra vida, e portanto a nossa
bem-aventurança, depende por isso, sempre no campo do natural,
porque estamos em filosofia, de dois elementos. Um é obra nossa; é
a nossa capacidade para aproveitar as idéias abstratas que nos serão
dadas a conhecer: por outras palavras, é o hábito da
contemplação, adquirido nesta vida, e que dá frutos para a outra
por causa da memória intelectual. O outro depende só de Deus,
visto que é ele quem há-de infundir na alma essas idéias. E,
porque Deus é justo, devemos confiar em que dará, a cada um, o que
é necessário para que tenha a felicidade que merece. A necessidade
duma outra vida para que a justiça seja satisfeita pode até servir de
prova da imortalidade da alma, uma vez provado que Deus é justiça.
Por isso, a par da moralidade material, medida pelo efeito físico
das nossas ações, devemos considerar uma moralidade formal, fundada
no mérito, que lhes dá direito a uma recompensa perante a justiça de
Deus. Note-se que não há nada, na teoria tomista do mérito e da
bem-aventurança, que se assemelhe ao torrão de açúcar prometido a
uma criança para que se porte bem. A imortalidade da alma é uma
necessidade da nossa natureza; a obtenção do nosso fim último, como
conseqüência dos atos que orientamos para ele, e por intermédio do
mérito que fica inerente ã alma, é uma exigência da justiça; e a
perda desse fim, em resultado dos atos que orientamos para um fim
oposto, não é um castigo exterior, mas a satisfação da nossa
própria vontade. No plano do espírito, o ato interior produz o seu
efeito, pelo mérito, como o ato exterior produz o seu no plano da
matéria; mas sem o risco de, como este, se ver frustrado desse
efeito pelo acaso. Por isso, se a idéia da felicidade futura pode,
acidentalmente, servir-nos de incitamento para o bem, é. errado
considerar o bem que fazemos, essencialmente, como um negócio
lucrativo. A noção de bem e a noção de fim estão ligadas entre
si; são dois aspectos duma mesma coisa; não existem uma por causa da
outra.
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