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Não é difícil ver que a posição de Descartes tem,
inevitavelmente, incoerências e petições de princípio. A crítica
prévia, como já disse, é uma destas, absolutamente arbritrária.
Outra é a dúvida metódica, levada a ponto de não aceitar as leis
da lógica, nem a existência do seu próprio corpo, dos outros
homens, do mundo exterior. Descartes, de resto, contradiz-se logo
na prática, escolhendo para norma provisória por que regular a sua
vida, enquanto não tiver atingido alguma certeza, a de "obedecer às
leis e aos costumes do meu país [...] governando-me em tudo
segundo as opiniões mais moderadas [...] que fossem comumente
admitidas na prática pelos mais sensatos daqueles com quem tivesse de
viver" [34]. O matematismo imposto à metafísica é também uma
petição de princípio. O raciocínio tem de progredir conforme
pode, respeitando apenas as suas próprias leis, e adaptando-se no
resto à feição especial do assunto de que se ocupa. Não pode
obrigar-se a tomar por modêlo a forma que tem numa ciência
diferente.
Depois, negando os princípios da lógica, Descartes não pode de
forma alguma afirmar que existe, visto que pensa. O Cogito é uma
grande verdade, se bem que não a única evidente. Mas como concluir
do pensamento para a existência, duvidando das leis do raciocínio?
A incoerência é tão manifesta, que o próprio Descartes emendou a
mão nas "Meditações metafísicas", (o Cogito é do "Discours
de la Méthode") e diz simplesmente que "a proposição "sou,
existo", é necessariamente verdadeira todas as vezes que a
pronuncio" [35]. Mas há mais, ainda acerca do Cogito.
Descartes lida com os conceitos de pensar e existir; não duvida de
que eles correspondem a qualquer coisa real, visto que com eles forma
uma proposição verdadeira. Mas qual a origem do conceito de
existência? Se examinasse a formação desse conceito, Descartes
veria que o seu espírito o tinha abstraído das coisas conhecidas pelos
sentidos, cuja existência, portanto, não podia pôr de parte. Se
se dispensou de estudar o assunto, foi por causa de outra petição de
princípio, oculta como as anteriores; a de que as idéias são
inatas. Além disso, Descartes sabe que pensa, porque observa a sua
atividade mental, porque se vê pensar; mas, da mesma maneira,
observa a atividade do seu corpo, e a ação dos corpos com que ele
entra em contacto. Assim como sabe que pensa, sabe que vive, e que
vive num universo povoado de outros corpos. Não há nada, portanto,
que justifique a sua dúvida.
A prova da existência de Deus fundada na idéia que dele faz não
vale nada; a idéia do infinito pode tirar-se da do finito pela
simples negação do limite, e ser portanto originada nas coisas
imperfeitas. De nada vale, também, outro argumento que Descartes
invoca, e que não difere essencialmente do de S. Anselmo, de que
já falei. Fica assim por fazer a demonstração da existência de
Deus, e portanto sem base o raciocínio em que se funda a existência
da realidade exterior.
Note-se que, mesmo que assim não fosse, havia incoerência na
maneira por que Descartes trata este ponto. Realmente, examinando os
motivos porque não pode duvidar do seu Cogito, conclui que é só
porque tem dele uma idéia clara e distinta; e funda na veracidade
divina a verdade das outras idéias claras e distintas, de que
duvidou. Como duvidar dumas e não de outras, se são todas claras e
distintas? Ou se, em todas menos no Cogito, há qualquer coisa que
nos autorize a duvidar delas legitimamente, não vejo como a veracidade
de Deus pode eliminar a dúvida. Permitir que uma idéia duvidosa se
nos mostre como duvidosa não é enganar-nos.
Descartes chama à exposição do seu sistema: "Discours de la
Méthode pour [...] chercher la vérité dans les Sciences".
Diz, claramente: Fiz ver quais eram as leis da natureza, e, sem
apoiar as minhas razões sobre outro princípio senão as perfeições
infinitas de Deus, procurei demonstrar todas aquelas sobre as quais
poderia haver dúvida, e mostrar que são tais que, mesmo que Deus
tivesse criado vários mundos, não poderia haver nenhum onde deixassem
de ser observadas" [36].
No entanto, no fim do Discours de la
Méthode, escreveu: Devo confessar que a potência da natureza é
tão ampla e tão vasta, e que os princípios são tão simples e tão
gerais, que quase não encontrei efeito que não visse poder
deduzir-se deles de várias maneiras diversas, e que a minha maior
dificuldade é geralmente saber por qual dessas maneiras ele depende dos
princípios, [37].
Isto é, o seu método levou-o à plena
indeterminação, logo que se afastou do ponto de partida. Descartes
apela para a experiência, como meio de levantar a indeterminação; e
fá-lo em palavras cheias de bom senso. Mas fica convencido da
excelência do seu método dedutivo.
O pensamento profundo de Descartes não é tão incoerente como o
sistema metafísico que criou. Descartes é realista de intenção, e
idealista quase por acaso. Sabe, todo o tempo, que existe e tem um
corpo, que existem os outros homens e o mundo exterior. Mas a
posição inicial em que se colocou, de limitar arbitrariamente o seu
ser ao intelecto, povoado de idéias que admite inatas, de considerar
em si, não o homem todo, mas a inteligência isolada, fechada em si
mesma, obriga-o a procurar demonstrá-lo.
A posição real de Descartes é a de quem fez a aposta de, partindo
da hipótese idealista, chegar às soluções realistas que sabe serem
verdadeiras. Descartes julgou tê-lo conseguido. Enganou-se,
porque a coisa é impossível; o princípio de realidade é
irredutível aos princípios da lógica. Mas como nada nos obriga a
partir dessa hipótese gratuita, o insucesso de Descartes só confirma
o que acima disse: sobre a negação dos princípios evidentes não se
pode edificar nada.
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