2. Potência e Ato.

A noção de ser, tal como a nossa inteligência a forma ao contato da realidade, não pode ser estática. "O mundo é todo feito de mudanças; a frase é de Camões, mas não exprime uma ficção poética; é uma grande verdade. Vivemos num universo em permanente evolução; da destruição duns seres nascem outros que os substituem, e que por sua vez hão-de desaparecer. Nós próprios mudamos; de crianças para velhos, de mais ignorantes para menos ignorantes, não digo para sábios porque a filosofia não nos permite aspirar a esse título; filósofo foi nome adotado por modéstia, e não significa, etimologicamente, senão amigo da sabedoria. Todo o conceito rígido do ser, que não atenda à evolução, ao devir (adotando, como hoje, é uso, esse termo arcaico, que alguém lembrou ressuscitar, para traduzir o latim fieri, o francês devenir, o alemão Nerden), é um conceito falso, estéril, sobre o qual nunca se poderá basear um conhecimento verdadeiro do que nos rodeia.

No entanto, se há noção que pareça estática a um olhar superficial é com certeza a de ser. É, é; não é, não é; não se vê meio-termo. Por isso os eleatas afirmaram a absoluta imutabilidade do ser, e reduziram toda a mudança a uma aparência; enquanto os jônios, de acôrdo com eles em considerar o ser incompatível com a evolução, mas discordando da solução dada, negavam todo o ser, e faziam da mudança o fundo das coisas. Eram soluções simplistas; a realidade é mais complexa; comporta o ser e a mudança, como muito bem viu Aristóteles, que resolveu o problema sem sacrificar uma coisa nem outra.

Em cada coisa devemos considerar, além daquilo que ela é efetivamente, no momento dado, tudo o que pode vir a ser sem se negar a si mesma. Além do ser existente de fato, há a possibilidade real de existência. Ao primeiro, perfeição possuída, forma de ser realizada, chama Aristóteles o ato; à segunda, perfeição realmente possível, mas não possuída, chama potência. Só o ato é, plenamente, ser; a potência, no entanto, que não é propriamente um ser, difere do puro não-ser. Não é, em ato; mas o que tem possibilidade real de existir, embora não exista de momento, não pode considerar-se, simplesmente, um nada.

Duma vez para sempre, quero lembrar que não devemos tentar imaginar as noções da metafísica. A imaginação não sugere senão o reflexo do que já vimos; é uma faculdade que depende dos sentidos, e não pode formar nenhuma imagem que represente adequadamente o que os sentidos não atingem. A potência, por exemplo, se a quisermos imaginar, não pode aparecer-nos senão como um ser esquemático, um fantasma, uma sombra de ser. Ora a potência não é nada disso; é, como disse, uma possibilidade real de existência; e nós não podemos imaginar uma possibilidade.

A nossa inteligência, dependente do sensível, não pode atingir a potência senão por intermédio do ato, das coisas existentes realmente, que, essas sim, podemos imaginar, se são materiais. A potência é um postulado; uma noção que a inteligência reconhece necessária, mas que não atinge senão indiretamente.

Feita assim a distinção do ato, que é, propriamente, o ser, e da potência, de certo modo um não-ser, mas fecundo em vez de estéril, cheio em vez de vazio, a mudança aparece como a passagem da potência ao ato, do ser possível ao ser realizado. Essa passagem exige uma causa, claro está; mas, antes de falarmos dela, vejamos algumas condições gerais que resultam das próprias noções de potência e ato.

Em primeiro lugar, a potência é relativa ao ato, que, logicamente, a precede. Não se concebe a potência senão como possibilidade de adquirir, em ato, uma certa modalidade de ser. Por isso, a potência é qualificada pelo ato a que se refere.

Por outro lado, a potência só pode existir tendo, como suporte, um ser em ato. É possibilidade real; a sua realidade tem de fundar-se em seres realmente existentes. Uma coisa, que existe, pode vir a adquirir esta ou aquela nova determinação; outra coisa, existente, pode conferir-lha. Mas a pura potência não pode existir. Seria o não-ser, em absoluto; realmente, não lhe corresponderia nada, visto não haver nada real de que exprimisse uma capacidade. A potência existe no ato, e para o ato; não pode existir pura.

Pelo contrário, nada se opõe, logicamente, à existência dum ato puro.

Nenhuma coisa pode, numa dada ordem e sob o mesmo aspecto, estar simultaneamente em ato e em potência. Não é possível adquirir o que já se tem; é evidente, por exemplo, que ninguém pode abrir uma porta aberta. Por isso, uma coisa é, em potência, tudo quanto pode vir a ser, e não é, efetivamente, no momento considerado.

Finalmente, nada pode agir senão pelo que é, em ato. Para agir, é preciso, antes de mais nada, ser. O ser em potência é agente em potência. Para ser agente em ato, tem de ser em ato, também. A recíproca não é verdadeira; um ser em ato pode ser agente em potência, isto é, ter possibilidade de agir, e não estar a agir, de momento. Tem então uma potência de agir, o que se chama uma potência ativa. Distingue-se desta a potência passiva, que é a possibilidade de sofrer a ação doutro ser.

O que uma coisa é, em potência, depende, como já disse, da coisa de que se trata. Suponhamos, por exemplo, uma certa porção de água, que está fria; essa água é fria em ato, mas quente em potência, visto que pode ser aquecida, sem deixar de ser água. Como comparação, suponhamos uma porção de gelo; é frio em ato, mas não é quente em potência, porque, se o aquecermos, deixará de ser gelo. Bem sei que a água, tomando agora o termo no seu sentido mais largo, que, no estado sólido, constitui o gelo, pode ser aquecida; mas o gelo, ficando gelo, não. Daquilo que uma coisa não é em ato, é portanto, em potência, tudo o que pode vir a ser sem deixar de ser o que a caracteriza; por outro lado, não pode vir a ser, em ato, senão o que era anteriormente, em potência.

A potência e o ato dividem o ser de alto a baixo, em todas as suas modalidades, numa zona de luz e uma zona de sombra, digamos assim, em determinado e indeterminado, em plenitude e capacidade, em realidade e possibilidade real. Manifestam-se de maneiras variadas; vamos tratar das principais.