10. O intelecto agente.

A natureza do intelecto agente deu origem a muitas divergências de opinião entre os discípulos de Aristóteles.

Alguns, os árabes, admitiam um só intelecto agente para todos os homens; um ser separado, distinto das inteligências individuais, para o qual estas se voltavam para receberem dele a iluminação intelectual. Os averroístas latinos seguiam também esta opinião, que, como já contei, provocou lutas titânicas no tempo de S. Tomás.

Outros, augustinistas, não viam no intelecto agente senão urna iluminação do nosso espírito vinda diretamente de Deus.

No fundo, era a tendência para o deus ex machina, para um Deus que se substituísse à natureza em vez de a criar, em toda a plenitude do termo. No tomismo não há nada disso. Basta observar que todo o estudo da psicologia se pôde até agora fazer sem, pode dizer-se, falar em Deus. O que não quer dizer que o tomismo dispense Deus, na psicologia ou em qualquer outro assunto. O simples fato de haver uma natureza humana a estudar, de se reconhecer que o homem é duma maneira e não doutra, põe imediatamente o problema da existência do ser limitado, determinado, e a sua solução, única possível, pela existência de Deus. O mesmo acontece se partirmos da mutabilidade do homem, da diversidade das suas faculdades harmoniosamente dispostas, de todos os outros sinais da sua dependência. Esta característica do tomismo, que se verifica sempre que se trata das causas imediatas das coisas, significa só que o tomismo não esquece a transcendência de Deus; que Deus não é um primus inter pares, uma causa como as outras, mas a Causa das causas, a fonte da causalidade.

Por isso, no tomismo, o intelecto agente é uma faculdade da alma. S. Tomás afasta a hipótese do intelecto agente único por razoes metafísicas de ordem geral. Na natureza, diz ele, "além das causas universais, há em cada ser potências próprias, derivadas dessas causas" [85]. É o que acabo de dizer; a eficácia real das causas segundas é um princípio constante do tomismo. Além disso, nota S. Tomás que "nós nos podemos observar no ato de abstrair as formas universais das condições particulares" [86]. Ora, para que uma ação seja nossa, é preciso que seja nosso, por essência, o seu princípio, isto é, que o intelecto agente pertença à alma. Não há portanto iluminação direta por Deus ou por uma inteligência separada, quase divina.

No entanto, podemos dizer com verdade que o intelecto agente é uma participação da inteligência de Deus. Na linguagem de S. Tomás, participação não implica homogeneidade, mas, pelo contrário, dependência. O inferior participa do superior naquilo em que, por analogia, se lhe assemelha. Dizemos, por analogia, que Deus é, e que é vivo e inteligente. Podemos dizer por isso que todo o ser é participação do ser de Deus, toda a vida participação da sua vida, toda a inteligência participação da sua inteligência. Mas, com esta reserva, que aliás tem de ser feita para tudo quanto possuímos, visto que somos seres criados, o intelecto agente é nosso, faculdade da nossa alma.