5. A razão particular.

A razão particular é á faculdade sensível que nos permite estabelecer entre os objetos relações fundadas, não na semelhança das suas imagens ou na existência entre elas de elementos comuns, mas em laços reais que ligam os próprios objetos. É a faculdade que corresponde, no homem, ao instinto dos animais, ao que os escolásticos chamavam a estimativa, por meio da qual os animais distinguem, no objeto representado por uma imagem, o que nele pode haver de útil ou de nocivo para a sua vida ou para a da espécie a que pertencem. Assim, a ovelha, vendo o lobo, reconhece que lhe deve fugir; e o pássaro sabe que deve apanhar o bocadinho de palha preciso para a construção do seu ninho. Não são as qualidades sensíveis dos objetos que atraem ou afastam, desta maneira, os animais; como muito bem observa S. Tomás, a ovelha não foge do lobo porque lhe desagrade a sua forma ou a sua cor [83]. A mesma ovelha, quando tem cordeiros, longo de fugir, sacrifica a sua vida, se for preciso, para os salvar. Há aí percepção doutra ordem; percepção do que, no sensível, convém ou se opõe à natureza do animal; o que exige, por isso mesmo, uma faculdade própria.

No homem, esta faculdade, subordinada, como todas as da sensibilidade, à inteligência, toma uma feição especial. São muito poucos os seus movimentos instintivos. Não vão além dos que são indispensáveis à criança até a sua inteligência começar a desabrochar. Intelectualiza-se, de certo modo, por ser dirigida pela razão nas suas operações. Os escolásticos davam-lhe por isso, no homem, um nome diferente, o de cogitativa; hoje, é mais freqüente o de razão particular. Por meio dela passamos dum objeto particular para outro, sem fazer apelo a nenhum princípio de alcance geral, mas aplicando só propriedades de interesse restrito. É da razão particular que se valem as pessoas de espírito pouco culto, mas habilidosas, como se costuma dizer, para resolverem de maneira às vezes inesperadamente feliz os problemas de ordem concreta que se lhes apresentam. Nunca pensaram, com generalidade, no problema de que esse que querem resolver é um caso particular; mas vêem., por assim dizer, as diferentes peças, os seus movimentos possíveis, e as conseqüências desses movimentos; é quanto lhes basta para encontrarem uma solução.

A inteligência não pode prescindir da razão particular quando quer levar até ao indivíduo as suas conclusões. Não pode abranger, de maneira abstrata, as mil e uma particularidades que distinguem um caso entre os congêneres. É à razão particular, próxima dos sentidos, dependente dos sentidos, que ela recorre então. O último passo, a ligação ao acaso concreto da conclusão mais restrita do intelecto, é dado pela razão particular. Da mesma maneira, é por reflexão sobre o ato da razão particular que a inteligência atinge a existência do indivíduo, a sua realidade.