10. Filosofia cristã.

A realidade não chega ao nosso conhecimento só pela observação; é-nos também acessível pela Revelação divina. Di-lo a fé, e nós somos cristãos. As nossas conclusões não deverão portanto opor-se à doutrina revelada; a nossa filosofia deverá ser, essencialmente, uma filosofia cristã.

Nenhuma das notas que caracterizam a verdadeira filosofia tem sido tão mal compreendida como esta. No entanto é bem simples: Se a razão nos afirma a possibilidade duma revelação, e a validade dos motivos por que aceitamos a Revelação cristã, não podemos admitir que se contradiga, e chegue, em filosofia, a conclusões opostas à verdade revelada.

Raciocínio que termine por uma afirmação contrária à fé está errado: ou teríamos de admitir que estão errados aqueles em que fundamos a nossa crença; não há meio-termo. E não podendo nós aceitar a segunda hipótese, tantos séculos de estudo não encontraram nenhum vício nos raciocínios que conduzem à fé, resta só a primeira. Quando, portanto, no fim dum raciocínio, chegarmos a uma conclusão oposta a uma verdade teológica, podemos afirmar que há vício nesse raciocínio exatamente como se a conclusão contradissesse um fato observado, e procurar onde ele está. É o pensamento de S. Tomás: "Se alguma coisa, no que dizem os filósofos, é contrária à fé, não é filosofia, mas abuso da filosofia, provocado pela fraqueza da razão. É por isso possível refutar o erro, e refutá-lo pelos próprios princípios da filosofia, mostrando que o que se objeta é complemente impossível, ou pelo menos que não é necessário [11]".

Note-se que a recíproca não é verdadeira: a conclusão pode estar de acordo com a teologia, e no entanto o raciocínio estar errado, não na conclusão, mas no seu desenvolvimento. O caso tem-se dado muitas vezes.

A fé auxilia a filosofia doutras maneiras ainda. Já não falo de todos os auxílios pessoais que o filósofo cristão encontra, diretamente, na Graça, nos Dons que a acompanham, na iluminação da inteligência pela Fé, e indiretamente na liberdade de espírito proveniente duma vida moralmente sã; falo só do auxilio prestado à própria filosofia.

Assim, pode o filósofo cristão conhecer, antecipadamente, pela teologia, a conclusão a que quer chegar, o que lhe torna o trabalho muito mais fácil. O seu raciocínio não deixa, por isso, de ser estritamente filosófico. Realmente, se o raciocínio se baseia, exclusivamente, nos princípios naturais e na observação, é filosófico, quer se conheça quer não, anteriormente, por outra via, a veracidade da conclusão. Há uma analogia frisante: é frequente dar-se aos alunos de matemática, como exercício, a demonstração dum teorema cujo enunciado se lhes indica; os seus cálculos não deixam de ser matemáticos, pelo fato deles já saberem, de antemão, que o enunciado é verdadeiro. O mesmo se dá aqui.

Mais ainda. A teologia afirma a possibilidade, para a razão, de demonstrar certas verdades de fé. O Concílio do Vaticano definiu, por exemplo, que a existência de Deus pode ser demonstrada racionalmente. Uma tal certeza só pode aumentar a confiança com que um filósofo cristão aborda esses problemas.

A filosofia recebe portanto da teologia um tríplice auxílio: a descoberta de muitos erros, a indicação de algumas conclusões, a afirmação da possibilidade de resolver certos assuntos. Em paga, também auxilia a teologia. Estuda a possibilidade e a conveniência duma revelação, nesse capítulo especial da filosofia que é a apologética. Analisa e confirma os motivos de credibilidade, e estabelece assim a evidência extrínseca da doutrina revelada. Refuta os erros dos que opõem à fé, erros que a teologia não pode combater, porque eles tomam, como posição inicial, a negação da Revelação em que a teologia se baseia. Finalmente, fornece à teologia noções e elementos de que ela se serve no estudo racional das verdades de fé; por exemplo, o estudo, feito na filosofia de noções como as de substância e acidente, natureza pessoa, é utilizado pela teologia quando trata dos mistérios da Santíssima Trindade, da Encarnação, da Eucaristia.

A natureza das relações entre a teologia e a filosofia deu origem ao aforismo da Escolástica: "A filosofia é serva da teologia". Há duas maneiras de entender essa expressão. Pode compreender-se como significando que se estuda filosofia unicamente com o fim de poder abordar a teologia prevenido com as noções indispensáveis; o que, muitas vezes, tem como corolário o procurar-se menos, na filosofia, veracidade duma solução, do que a sua conveniência sob ponto de vista teológico. A filosofia fica então reduzida uma simples ciência auxiliar da teologia, que se serve das suas teses e do seu vocabulário. Esta maneira de ver não é propriamente filosófica: pode ser aceitável, se quem a adota não erra nos seus raciocínios filosóficos; mas, para a filosofia é sempre um sintoma de decadência. A outra maneira de ver é a que, na filosofia, procura a verdade, com os recursos que a filosofia dispõe, e por amor da verdade; reconhecendo, no entanto, que à teologia cabe indicar que está errada qualquer afirmação da filosofia que contradiga as suas. Filosofia autônoma no seu campo, mas subordinada à teologia, detentora de certezas de ordem superior; é a maneira de ver de S. Tomás de Aquino.