6. Apreciação da psicologia tomista.

Todo o edifício da psicologia de S. Tomás, em particular as suas provas da espiritualidade e da imortalidade da alma humana, se baseia em duas verdades fundamentais: a imaterialidade do pensamento, e a identidade entre o homem que pensa e o homem que vive e sente. A primeira resulta necessariamente da ontologia que expus, e que é toda ela 'análise das conseqüências dos primeiros princípios, leis basilares do ser tal como o vemos em todas as suas manifestações. A segunda é um fato, verificável pela observação.

O que estuda o homem é um dos capítulos mais equilibrados da filosofia tomista, tão equilibrada toda ela. A teoria da alma forma substancial do corpo, defendida por Aristóteles e S. Tomás, é a única que salvaguarda ao mesmo tempo as nossas semelhanças e as nossas diferenças com os seres materiais por um lado, com os Anjos por outro. É a única que respeita o fato do homem pertencer a um duplo universo, por assim dizer, de viver no mundo da matéria pelo corpo, e no das formas pela inteligência. 'Podas as teorias apresentadas por outros filósofos para explicar a natureza do homem, ou reduzem o homem a um ser material, esquecendo o caráter à parte da inteligência, ou o reduzem a um puro espírito, negando a evidência dos nossos sentidos, ou ainda introduzem nele uma dualidade desmentida pela experiência.

A solução tomista respeita a semelhança entre o homem e os outros seres materiais, vivos ou inanimados. Vê no corpo uma parte do mundo físico, em que são observadas as leis que regem esse mundo, em que é o jogo dos fenômenos que o constituem que mantém o corpo vivo e o movimenta. Mas não esquece que em toda a vida humana se manifesta a harmonia das funções do corpo, a sua unidade de tendências orientada para o todo, a sua estabilidade em circunstâncias tão variadas, que contrasta com a instabilidade dos agrupamentos simplesmente acidentais. E afirma que essa harmonia, essa unidade, essa estabilidade, têm um princípio; provêm duma forma, duma idéia orientadora feita realidade, que é parte intrínseca do corpo, considerado como tal, e não violenta as leis da matéria que o constitui, antes as inclui e sintetiza. Por outro lado ainda, afirma que esse princípio de unidade se estende mais longe do que o corpo, visto que pertencem ao mesmo homem operações em que o corpo não toma parte; ensina que a alma humana é espiritual, e portanto imortal, subsistente.

Só a posição tomista permite também explicar o motivo porque a alma, capaz de existir sem o corpo, é criada para um corpo, e só com o corpo realiza o seu modo normal de existência. Os que vêem no homem dois seres, um anjo e um animal, simplesmente associados para uma vida comum, ou desistem duma explicação, ou procuram o motivo da associação no bem do corpo, o que é subordinar o mais perfeito ao menos perfeito, ou têm de o procurar, à maneira de Platão, num castigo imposto à alma por faltas cometidas numa hipotética vida anterior. Para S. Tomás, o caso ó claro. A alma humana é capaz de compreender o inteligível. Mas o inteligível, no grau de generalidade em que os Anjos o conhecem, é alimento forte de mais para a sua fraqueza. Uma tal altura causa-lhe vertigens; uma luz tão brilhante deslumbra-a. Tira mais proveito dum alimento mais pobre, das idéias próximas do concreto, que obtém a partir do que os sentidos lhe fornecem. O motivo da união é portanto o bem da alma, quer porque pode assim exercer a sua operação mais perfeita de forma proporcionada à sua natureza, quer porque tem uma ocasião de criar os hábitos intelectuais que, depois da morte, a hão-de auxiliar a compreender o que, de certo modo, a ultrapassa. O fato de Deus, na sua bondade, ter querido dar ao homem infinitamente mais do que isso não altera a justeza deste quadro; porque a natureza dum ser tem de se julgar em si mesma, no seu conjunto, independentemente do que Deus, gratuitamente, lhe tenha acrescentado. A ordem da Graça não é retoque a uma obra mal feita, mas uma segunda Criação, mais admirável ainda, sobreposta à Criação da Natureza, que é digna em tudo da justiça e da sabedoria do seu Autor.