14. O objeto da inteligência humana.

Uma coisa pode ser conhecida na medida em que é, e de acordo com o que é; como já vimos, a verdade transcendental é idêntica ao ser. Mas nem todas as inteligências estão aptas a conhecer tudo. Nem tudo o que é inteligível em si mesmo é inteligível para quem quer. Resta por isso examinar o que é, do domínio do inteligível, que constitui o objeto apropriado à inteligência do homem.

Seria um erro supor que o objeto da inteligência é a espécie inteligível que o intelecto agente nela imprime. Por ser a espécie originada a partir do objeto concreto, de que provém todo o seu conteúdo formal, vê-se que conhece-la é conhecer o objeto que representa. A semelhança do objeto, recebida no nosso espírito, transmite-nos o que há no objeto; o que sabemos por seu intermédio é verdade do objeto. O conhecimento, por isso, não pára na espécie, mas prolonga-se, para além dela, até ao objeto.

Da sua maneira de operar, que exige o concurso dos sentidos, conclui-se facilmente que a nossa inteligência é feita para conhecer, por abstração, as essências das coisas materiais, ou, mais precisamente, as suas qüididades, isto é, o que elas são pelo fato de existirem segundo as suas essências. Essas qüididades constituem por isso o objeto próprio do nosso conhecimento. São o que podemos, diretamente, conhecer. Indiretamente, por intermédio das qüididades, conhecemos as próprias essências dos objetos. A qüididade é o que a coisa é, e a essência o motivo porque ela é assim; a qüididade, por isso, manifesta-nos a essência.

A abstração, que está na origem de todas as nossas idéias, pode ter vários graus. No primeiro, que é o das ciências físicas, abstrai-se da matéria individual, mas entrando em consideração com todas as propriedades direta ou indiretamente sensíveis que provêm da existência na matéria. No segundo, põe-se de parte as qualidades sensíveis, mas conserva-se a quantidade nas suas diversas modalidades, número, dimensões, configuração, posição, etc.; é o grau de abstração das ciências matemáticas. No último grau, o da metafísica, abstrai-se mesmo da quantidade; consideram-se só os conceitos mais universais, ou o que, em si mesmo, é imaterial: o ser, o ato e a potência; as essências, a causalidade, a inteligência, por exemplo.

Além do seu objeto próprio, a inteligência pode, pelo raciocínio, e recorrendo a vários artifícios, chegar ao conhecimento doutros objetos. As coisas concretas, em si mesmas, na sua qualidade de coisas concretas realmente existentes, conhece-as por reflexão sobre os sentidos. Conhece a coisa individual porque sabe, intelectualmente, que os sentidos a conhecem. Assim, não só conhece abstratamente a qüididade, mas sabe que ela é a do objeto considerado.

Os universais são conhecidos indistintamente nas essências das coisas em que se realizam; com clareza, com conhecimento da sua universalidade, são conhecidos depois pelo raciocínio.

Certas noções simples de geometria, como o ponto, a linha, etc., são conhecidas pela negação de dimensões que existem nos seres reais. O infinito numérico ou geométrico, como infinito potencial que é [87], não é inteligível em ato; só nos é conhecido em potência, pela consciência de que se pode sempre acrescentar a um número ou prolongar uma linha ilimitada.

As nossas idéias, como idéias, são-nos conhecidas pela reflexão, pela observação do modo por que pensamos quando pensamos num objeto; e a reflexão é-nos conhecida por uma segunda reflexão sobreposta à primeira, pela consideração de que podemos pensar no nosso pensamento.

A si própria, a alma humana conhece-se reflectindo sobre si mesma quando no ato de apreender o seu objeto. Conhece o objeto; por reflexão, a operação que lho dá a conhecer; finalmente, como causa necessária dessa operação, a sua própria existência e a sua natureza imaterial.

Às formas puras, conhece-as por analogia. E a Deus por uma analogia suprema, afirmando a Causa dos seres, e negando dessa Causa todas as imperfeições destes.

Para tudo quanto conhece, o homem parte portanto das coisas sensíveis. Quando se eleva ao que excede estas, utiliza um raciocínio dependente do socorro das imagens. Tem de valer-se das imagens, mantendo bem presente que elas são inadequadas. Daí resulta um esforço que torna o seu caminho tanto mais difícil quanto mais se afasta do concreto que lhe serve de ponto de partida. Somos filhos da Terra, e, se podemos voar, cansamos depressa.

Como os olhos feitos para verem objetos pouco luminosos veem com dificuldade quando a luz é intensa; o que, no entanto, torna as coisas mais visíveis, o nosso intelecto, feito para utilizar o inteligível que os sentidos lhe transmitem, sente-se fraco para abordar o domínio do inteligível puro. Mas apesar do muito que nos custa, só o esforço da inteligência para se ultrapassar satisfaz a nossa sede de verdade. O que faz dizer a S. Tomás de Aquino que "o conhecimento imperfeito que se pode ter das coisas elevadas é mais desejável do que a ciência, mesmo perfeita, das coisas de menor categoria [88].