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Com as precauções indicadas, podemos então estudar os "atributos"
de Deus.
O primeiro é a simplicidade, que é a ausência, em Deus, de toda
e qualquer composição. Resulta de não poder haver em Deus
composição de potência e ato, porque, como já vimos, embora a
potência seja anterior ao seu ato, e por isso mesmo, toda a potência
pressupõe um ser em ato, que lhe tenha dado, ou possa dar,
realização atual. Se em Deus houvesse a distinguir potência e
ato, teríamos de lhe supor uma causa que tivesse feito passar ao ato
essa potência, e ele já não poderia ser, em absoluto, o
Primeiro. Deus é portanto Ato Puro, segundo a expressão lapidar
de Aristóteles.
Isso obriga-nos a dizer, antes de mais nada, que Deus não é
composto de partes quantitativas. A existência num todo é uma nova
determinação acrescentada às partes, um ato a que elas estão em
potência; e o todo está, por sua vez, em potência para a
decomposição. Deus, portanto, é incorpóreo. E é imaterial,
porque entre a matéria e a forma a relação, como vimos, é a da
potência para o ato. O que também não nos permite distinguir em
Deus a essência do sujeito. O motivo porque, nos seres materiais,
pode haver vários indivíduos com igual essência é precisamente a
matéria, como já vimos, com todos os caracteres acidentais a que dá
lugar. Os seres sem matéria são individuados pela essência.
Deus, portanto, é a sua divindade.
Também não há em Deus composição de essência e existência,
que, ao tratar do ser, vimos estarem entre si como a potência e o
ato. Deus é portanto o seu ser. É "o próprio Ser subsistente por
si mesmo [57]",
como escreve S. Tomás. Sem, entenda-se,
querer dizer com isso que Deus é o ser das coisas, o que seria o
panteísmo; a expressão designa o Ser em grau eminente, que, por
isso mesmo, se distingue do de tudo o resto.
Nem na ordem lógica pode atribuir-se a Deus composição, isto é,
não podemos incluí-lo em nenhum gênero nem em nenhuma espécie, o
que obrigaria a distinguir nele caracteres genéricos e específicos.
Fonte de todo o ser, que as categorias dividem, e depois os gêneros
e as espécies, está acima do ser e das suas divisões. Alheio aos
agrupamentos de que fazem parte todas as coisas, Deus é portanto o
grande Isolado. E é também o Indefinível; porque uma definição
essencial consta, precisamente, da indicação de gênero e da
diferença que constitui a espécie.
Também não há em Deus distinção de substância e acidentes. Os
acidentes são determinações acrescentadas à substância, atos para
os quais esta tem de estar em potência.
Enfim, Deus é simples de toda a maneira. Em toda a composição
há elementos; e, ou um desses elementos é o ato dos outros, ou
todos estão em ato no composto. De qualquer forma, há um principio
potencial. E, por sua vez, Deus não entra em composição com
coisa nenhuma. Admitir uma tal possibilidade seria supô-lo em
potência perante o composto.
Uma nota: a simplicidade de Deus não se opõe à Trindade das
Pessoas. Nesse dogma, que a filosofia tem de ignorar, porque se
funda unicamente na Revelação, Deus abre-nos um pouco do seu
íntimo, dá-nos até certo ponto a conhecer a sua essência,
revelando-nos que, embora único, não é solitário, na bela frase
de S. Hilário de Poitiers [58].
Mas cada uma das Pessoas
divinas é Deus, é a essência, o ser, a divindade de Deus.
Distinguem-nas só as relações pelas quais o Pai gera o Filho, e
de ambos procede o Espírito-Santo. Essas relações são eternas e
necessárias, por motivos de que a nossa razão não pode conhecer
senão a simples conveniência, e idênticas com a essência divina,
em que por isso não introduzem composição.
Mas isso é com a teologia. Eu não quis, aqui, senão evitar uma
interpretação errada das minhas palavras.
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