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A noção de ser, que abrange tudo, é muito rica, e excede a
capacidade da nossa inteligência. Desdobramo-la por isso em
várias, considerando no ser um aspecto de preferência aos outros,
encarando-o só por um certo lado. As noções assim obtidas,
idênticas no fundo, dizem-se, como o próprio ser,
transcendentais. As principais são a unidade, a verdade, o bem, a
beleza; unidade transcendental, beleza transcendental, etc., para
se distinguirem de noções habituais a que se dão os mesmos nomes.
Suponhamos um grupo de coisas que nada liga na realidade; só as une o
fato de as considerarmos em conjunto. Esse grupo só tem unidade no
nosso espírito; mas também, como grupo, só existe no nosso
espírito. Suponhamos, pelo contrário, que algum laço liga essas
coisas, na realidade. No plano em que existe esse laço, o grupo tem
unidade real; mas nesse plano, também, tem existência real como
grupo. O mesmo se dá em todos os casos. Podemos portanto dizer que
um ser existe na medida em que é uno, e pelo aspecto segundo o qual
participa da unidade. Unidade e ser são noções idênticas.
Consideremos agora o ser como susceptível de ser conhecido. Vemos
que, em absoluto, é conhecível na medida em que é. Pode o
conhecimento ser limitado pela capacidade da inteligência que conhece;
mas, do lado do objeto conhecido, só aquilo que é limita o que dele
se pode saber. Por ser a verdade a correspondência entre o
conhecimento e o objeto conhecido, chama-se a esta cognoscibilidade
verdade transcendental ou ontológica; é, como se vê, idêntica ao
ser. Veremos mais adiante que só a inteligência divina conhece
exaustivamente os seres, que causa, e de que não depende; veremos
então que a verdade transcendental também pode definir-se como a
correspondência exata entre os seres e o conhecimento que Deus deles
tem.
O ser não é só conhecível, é amável, no sentido etimológico da
palavra, desejável, isto é, capaz de provocar uma tendência que o
procure. E só o ser é desejável, apesar de poder parecer o
contrário a quem olhe as coisas superficialmente. De fato, o
não-ser nunca é desejado por si mesmo; o que se procura é sempre um
ser: o suicida, por exemplo, recusando a vida, procura o descanso,
que julga encontrar assim. Ora o bem, - o bem ontológico, do bem
moral falaremos mais tarde-, é aquilo que pode ser desejado, dando ao
termo toda a generalidade com que o tomei. Em absoluto, pondo de
parte as limitações que podem provir daquele que deseja, um ser é
desejável na medida em que é. O bem e o ser são portanto noções
convertíveis.
Conhecida a verdade dum ser, nós, que somos seres também, sentimos
a harmonia íntima que há entre nós e ele; ouvimos o eco que esse ser
encontra em nós; por outras palavras, ele diz-nos qualquer coisa; e
nós achamo-lo belo. Diziam os escolásticos que "a beleza é o
esplendor da verdade[41]".
A beleza tomada em si mesma, a beleza
transcendental, é portanto idêntica à verdade, ao bem, ao ser. É
fato que há coisas belas que são más; mas nunca é sob o mesmo
aspecto. Por aquilo que uma coisa tem de bom, é bela; pelo que tem
de belo é boa.
Não devemos esquecer nunca que os transcendentais são desdobramentos
da noção de ser, a que não acrescentam nada. São o ser
contrastado com o que pertence aos outros seres; posto em relação com
a inteligência e a vontade; olhado no que se harmoniza com o mais
íntimo da nossa natureza. São o ser trasbordando dos quadros
estreitos e rígidos em que o pensamento o quereria encerrar, e
revelando-se-nos bondade, beleza e bem.
Idênticos ao ser, os transcendentais realizam-se, como ele, por
analogia. Cada ser é à sua maneira; por isso mesmo, é bom,
belo, verdadeiro e uno, à sua maneira também. Um homem é bom,
por exemplo, como homem; um animal, como animal; um ser inanimado,
como ser inanimado. Em todos os seres há bem; mas há bem conforme
com o que eles são. O mesmo acontece com os outros transcendentais.
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