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A imaterialidade dos Anjos põe o problema da sua individuação.
Efetivamente, a matéria não é só o elemento permanente na
evolução geral, é também o que permite distinguir entre si os
indivíduos duma mesma espécie. De dois seres iguais, num dado
momento, um é feito desta porção de matéria, outro daquela; por
isso são distintos.
A ausência de matéria impediria realmente de distinguir entre si os
Anjos pertencentes a uma mesma espécie. Por isso alguns filósofos,
e bons, S. Boaventura, S. Alberto Magno, vendo claramente o
problema, e não sabendo que solução lhe dar, renunciaram a
considerar os Anjos da teologia formas puras, e supuseram neles uma
matéria especial, diferente da nossa, uma matéria hipotética,
desligada da extensão, elemento potencial que bastava para os
individuar.
S. Tomás de Aquino resolve a questão de forma decisiva. Diz,
simplesmente, que não há mais do que um Anjo de cada espécie.
Cada Anjo constitui uma espécie distinta. Dois Anjos nunca são
iguais; são todos diferentes. É a sua essência que os
individualiza. Distinguem-se pela capacidade da sua inteligência,
por aquilo que estão aptos a compreender.
Esta solução, à primeira vista, choca as nossas idéias,
habituados como estamos, no Mundo que nos rodeia, a ver múltiplos
indivíduos de cada espécie. Que, no entanto, é a única possível
tratando-se de formas puras, resulta das noções fundamentais da
ontologia de S. Tomás. Este é um ponto crucial do tomismo, como
a rejeição do argumento de S. Anselmo e a possibilidade da
Criação ab aeterno; quem o compreende, está no bom caminho, traz
em boa ordem as idéias basilares que adquiriu até aqui.
A nossa estranheza desaparece se compararmos o que representam para a
harmonia do Mundo a multiplicação qualitativa e a simples
multiplicação numérica dos seres. A ordem do Mundo é a sua
suprema perfeição; desempenha, repito-o, para o conjunto dos
seres, o papel de forma, porque é por ela que eles formam um todo
organizado. Já vimos que é para ela que Deus orienta todas as
coisas, que para isso dispôs da melhor maneira possível. Ora, a
ordem do Mundo resulta da subordinação harmoniosa dos gêneros, e,
em cada gênero, da diferenciação das espécies. Cada nova espécie
é um novo elemento de riqueza; é uma nova forma, uma nova maneira de
ser que se integra no conjunto. A multiplicação de seres iguais,
pelo contrário, não traz consigo senão um enriquecimento material do
Mundo; é a mesma forma reproduzida em muitos exemplares. À ordem do
Mundo não acrescenta nada como qualidade; não é senão um aumento
quantitativo. Nessas condições, compreende-se que, em si mesma,
uma multiplicação numérica dos indivíduos não tem razão de ser.
No entanto, nos seres materiais, essa multiplicação é
indispensável por dois motivos. Na sua formação, esses seres
estão sujeitos, em maior ou menor grau, à lei do acaso, porque a
causa que os produz actua sobre uma matéria que faz parte da
composição doutros corpos; e as formas desses outros corpos vêm
concorrer com a causa, que podem privar, em parte pelo menos, do seu
efeito. Por isso os indivíduos afastam-se sempre, mais ou menos,
da perfeição da espécie, e só pela sua multiplicação se pode
assegurar a esta uma boa representação.
Por outro lado, os seres materiais estão sujeitos à decomposição.
Têm existência efêmera; correm permanente risco de serem
destruídos. Para garantir à espécie uma perpetuidade pelo menos
relativa, é preciso multiplicar o número dos seus representantes.
A razão justificativa da existência, no Mundo material, de muitos
seres pertencentes à mesma espécie, deve portanto procurar-se na
conservação e na boa representação dessa espécie. Os Anjos,
criados dum jato e imortais, realizam a sua espécie perfeitamente e
sem risco de desaparecimento. Nenhum sentido teria o aumento do seu
número, desacompanhado do aumento do número de tipos diferentes que
realizam.
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