|
Como é diferente a história do cartesianismo! Malebranche,
sucessor imediato de Descartes, e seu discípulo predileto, tirou as
conseqüências lógicas da doutrina cartesiana da dualidade da alma e
do corpo. Sobre o abismo cavado entre a alma-pensamento e o
corpo-extensão, Descartes tinha deitado, como uma ponte, a sua
teoria dos espíritos animais. Malebranche vê a impossibilidade da
solução, e nega radicalmente que entre os dois haja qualquer coisa de
comum; o que julgamos conhecer por intermédio do corpo, é em Deus
que o conhecemos; o que julgamos ordenar ao corpo, é Deus quem,
diretamente, faz com que seja cumprido. Berkeley vai mais longe,
-sigo uma ordem lógica, que não coincide rigorosamente com a
cronológica-; nega, pura e simplesmente, a existência dum corpo com
o qual a nossa alma não tem qualquer relação; além de Deus, só
há o espírito. O passo seguinte é dado por Spinoza; assim como,
para Berkeley, os corpos são uma ilusão, produzida por Deus nas
nossas almas, a distinção entre as almas e Deus é, para ele, uma
ilusão também. Pensamento e extensão, o espírito e a matéria de
Descartes, são atributos de Deus; só Deus existe como
substância. É o panteísmo.
Finalmente, Hume vai ao extremo. Reduz o "penso, logo existo" de
Descartes a um "penso, logo penso"; e, de fato, quem começa por
negar todos os princípios não pode afirmar mais. Sabemos que
pensamos; não podemos saber que existimos como substâncias, nem que
existem outras substâncias, nem mesmo Deus. É o fenomenismo,
última forma da filosofia de Descartes.
Mas se nos lembrarmos de que Descartes queria, com a sua filosofia,
atingir a certeza matemática, e conhecer as leis da natureza com
certeza tal que, mesmo que Deus tivesse criado outros mundos, elas
não pudessem deixar de ser neles respeitadas, torna-se impressionante
o contraste com a negação universal a que o seu sistema conduziu. De
tudo quanto Descartes quis edificar, não ficou nada. A história da
filosofia cartesiana é a da derrocada de toda a sua estrutura,
provocada, não pelos adversários de Descartes, mas pelos seus
continuadores.
|
|