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A razão particular é á faculdade sensível que nos permite
estabelecer entre os objetos relações fundadas, não na semelhança
das suas imagens ou na existência entre elas de elementos comuns, mas
em laços reais que ligam os próprios objetos. É a faculdade que
corresponde, no homem, ao instinto dos animais, ao que os
escolásticos chamavam a estimativa, por meio da qual os animais
distinguem, no objeto representado por uma imagem, o que nele pode
haver de útil ou de nocivo para a sua vida ou para a da espécie a que
pertencem. Assim, a ovelha, vendo o lobo, reconhece que lhe deve
fugir; e o pássaro sabe que deve apanhar o bocadinho de palha preciso
para a construção do seu ninho. Não são as qualidades sensíveis
dos objetos que atraem ou afastam, desta maneira, os animais; como
muito bem observa S. Tomás, a ovelha não foge do lobo porque lhe
desagrade a sua forma ou a sua cor [83]. A mesma ovelha, quando tem
cordeiros, longo de fugir, sacrifica a sua vida, se for preciso,
para os salvar. Há aí percepção doutra ordem; percepção do
que, no sensível, convém ou se opõe à natureza do animal; o que
exige, por isso mesmo, uma faculdade própria.
No homem, esta faculdade, subordinada, como todas as da
sensibilidade, à inteligência, toma uma feição especial. São
muito poucos os seus movimentos instintivos. Não vão além dos que
são indispensáveis à criança até a sua inteligência começar a
desabrochar. Intelectualiza-se, de certo modo, por ser dirigida
pela razão nas suas operações. Os escolásticos davam-lhe por
isso, no homem, um nome diferente, o de cogitativa; hoje, é mais
freqüente o de razão particular. Por meio dela passamos dum objeto
particular para outro, sem fazer apelo a nenhum princípio de alcance
geral, mas aplicando só propriedades de interesse restrito. É da
razão particular que se valem as pessoas de espírito pouco culto, mas
habilidosas, como se costuma dizer, para resolverem de maneira às
vezes inesperadamente feliz os problemas de ordem concreta que se lhes
apresentam. Nunca pensaram, com generalidade, no problema de que
esse que querem resolver é um caso particular; mas vêem., por assim
dizer, as diferentes peças, os seus movimentos possíveis, e as
conseqüências desses movimentos; é quanto lhes basta para
encontrarem uma solução.
A inteligência não pode prescindir da razão particular quando quer
levar até ao indivíduo as suas conclusões. Não pode abranger, de
maneira abstrata, as mil e uma particularidades que distinguem um caso
entre os congêneres. É à razão particular, próxima dos sentidos,
dependente dos sentidos, que ela recorre então. O último passo, a
ligação ao acaso concreto da conclusão mais restrita do intelecto,
é dado pela razão particular. Da mesma maneira, é por reflexão
sobre o ato da razão particular que a inteligência atinge a
existência do indivíduo, a sua realidade.
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