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Entre as maneiras de ser dos diversos acidentes há diferenças
profundas. Por isso Aristóteles, quando deu o nome de categorias
às modalidades mais gerais do ser (que também se designam pela
palavra latina correspondente, predicamentos), fez da substância a
primeira, e agrupou os acidentes nas restantes. Aristóteles
distingue dez predicamentos, dez gêneros supremos, irredutíveis uns
aos outros. Só são realmente importantes os oito primeiros
substância, qualidade, quantidade, relação, ação, paixão,
lugar e tempo.
Da substância já falei suficientemente. O predicamento qualidade
compreende tudo o que determina um ser em si mesmo, em razão da
forma, e independentemente dos outros seres; são qualidades, por
exemplo, as disposições estáveis e passageiras, as propriedades,
as faculdades de agir desta ou daquela maneira, a configuração, etc.
A quantidade inclui as noções de número e extensão. Relação é o
que estabelece a ordem entre dois ou mais seres; pode ser de razão,
se, na realidade, não afeta em nada esses seres, e só existe no
nosso espírito (como, por exemplo, uma relação de igualdade), ou
real, quando os seres que liga são realmente afetados por ela (como
acontece na relação de causalidade) [39].
Pode ainda ser unilateral, quando só afecta
realmente um dos seus termos; tem então
no outro, simplesmente, um fundamento de razão; é o caso da
relação da pessoa que conhece para o objeto conhecido: o conhecimento
depende do objeto, o objeto em nada é afetado pelo fato de o
conhecerem. A palavra ação, como nome de categoria, tem
sensivelmente o seu significado habitual; é o ato pelo qual um ser
causa, noutro ser, uma modificação. Paixão pelo contrário,
toma-se aqui no significado pouco usual, mas etimológico, de
passividade, e designa a modificação causada, no segundo ser, pela
ação do primeiro. São de lugar todas as determinações que se
referem à posição que um ser ocupa entre os restantes; são de tempo
as que se referem ao momento em que se considera um ser em evolução.
Os dois predicamentos de menor importância são o hábito (no sentido
de vestuário), que trata da maneira como um ser se apresenta
revestido ou equipado, e o estado (em latim situs), que se refere à
posição relativa das suas partes.
A dificuldade que temos em imaginar os acidentes leva-nos a
substancializá-los de certa maneira, pensando neles como se fossem
pequenas substâncias, destacadas da substância que qualificam. Numa
relação, por exemplo, temos tendência a ver uma coisa, um objeto,
que prende os dois termos um ao outro. É um erro. Acidentes e
substância são modalidades do ser distintas. É aqui ou nunca a
ocasião de nos lembrarmos da analogia do ser. A relação, por
exemplo, existe, mas como relação; é relação, não
substância. Como S. Tomás acentua numa frase luminosa: "À
relação, como relação, não compete ser alguma coisa, mas
simplesmente ser para alguma coisa. O ser, na realidade, alguma
coisa, vem-lhe daquilo a que está inerente [40]".
O mesmo se dá com os outros acidentes;
são, existem, como acidentes; são o que
as suas essências exigem que sejam. A sua maneira de ser é
irredutível à da substância. A diferença é tão profunda que,
como havemos de ver mais adiante, a Criação só se refere
propriamente às substâncias; os acidentes dizem-se antes
concriados, para significar que as substâncias não foram criadas
amorfas (digamos assim), mas plenamente determinadas por eles.
Uma última observação. Não devemos olhar o ser como um gênero,
o mais geral de todos, de que sejam subgêneros as categorias e depois
os gêneros cada vez mais próximos, e espécies as essências. Como
já disse, uma espécie é determinada por uma característica que se
acrescenta às que qualificam o gênero. Ora, para subdividir o ser,
não temos nada que não seja ser também. A divisão em categorias
corresponde a modalidades do ser distintas entre si; é divisão
intrínseca, não extrínseca. Ressalvada a analogia, cada ser é
ser pela totalidade do que o constitui, e não só por um conjunto de
notas capaz de caracterizar um gênero. Exprime-se isso dizendo que o
ser é um transcendental, isto é, uma noção mais vasta do que todas
as divisões que o particularizam.
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