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Somos assim levados a encarar de frente a dificuldade, que é real.
Se o inteligível e o sensível são coisas distintas, se o que a
inteligência conhece é duma ordem diferente do que conhecem os
sentidos, como pode a inteligência receber os seus conceitos por
intermédio da sensibilidade? Os sentidos, por exemplo, não nos
dão o conceito de dimensão, mas as dimensões deste ou daquele
corpo; não conhecem a noção de qualidade, mas algumas qualidades
dos objetos; não atingem a idéia do ser, mas a existência de certos
seres. De que maneira poderão fornecer à inteligência o que a
inteligência está apta a conhecer? Aristóteles e S. Tomás
respondem: pela abstração.
Nas coisas materiais, o que é inteligível é a forma, olhada, não
na sua união à matéria, mas como plano de organização, como
princípio que dá à coisa o existir segundo uma determinada
essência. A forma existe no objeto concreto, ligada à matéria,
realizada nela e individuada por ela. Se a imagem sensível reproduz o
objeto, por isso mesmo, e na medida em que o reproduz, a forma existe
na imagem também. Não na sua universalidade, visto que a imagem é
ato duma faculdade material; individualizada, como no objeto; mas
existe. Assim, a forma, a essência, o inteligível, não sendo
sensível por si, é, como se diz na Escola, sensível por
acidente. Como lei própria do objeto concreto que os sentidos
conhecem, é recebida pelos sentidos, que, no entanto, não sabem
distingui-la como princípio constituinte do objeto.
Nem no objeto, nem na imagem sensível, a forma existe de modo
inteligível, imaterial, universal. Por serem regidos pela forma, o
objeto e a imagem são inteligíveis erra potência, mas só em
potência. Não são inteligíveis em ato. Para conhecer
intelectualmente o objeto, é preciso distinguir nele a forma, em si
mesma, independentemente da união de fato à matéria, embora não,
porque isso seria falseá-la, da capacidade para a ela se unir. É
preciso abstrair a forma. Abstrair, em geral, é considerar num
objeto um dos seus aspectos ou modos independentemente dos outros, e
conservando a consciência de que, na realidade, existe unido a eles.
Aqui, é destacar a forma dos caracteres que lhe vêm da existência
na matéria; tornar inteligível em ato o que era inteligível em
potência no objeto e na imagem que o representa; dar existência
imaterial, na inteligência, à forma que existia materialmente na
realidade o na sensibilidade.
Já vimos que só um ser em ato pode fazer passar ao ato o que existe
em potência. Temos portanto de supor uma faculdade especial, o
intelecto agente, para fazer passar ao ato a inteligibilidade da imagem
sensível. Se, na sensibilidade, não supusemos nenhum sentido
agente, é porque o objeto é sensível em ato, como ser concreto que
é; a sensibilidade é portanto puramente passiva. Mas aqui, o
conhecimento muda de ordem; a forma adquire, em ato, um modo de ser
que só tinha em potência. É necessária uma faculdade activa,
intelecto agente; e, admitida esta, está resolvida a dificuldade.
Os elementos que especificam o conceito, não elementos brutos,
amorfos, mas determinados pelo objeto conhecido, provêm dos
sentidos; a existência atual, como conceito, não como princípio
informante da matéria, vem do intelecto agente.
Figuradamente, podemos dizer que o intelecto agente é uma luz que
revela, no objeto, o que a matéria encobre. Na imagem iluminada por
ele, a sensibilidade descobre os caracteres sensíveis, e,
paralelamente, a inteligência vê a essência abstrata. Assim, no
vago contorno triangular que a imaginação lhe apresenta, o geômetra
distingue o triângulo, com todas as propriedades que a sua essência
lhe confere. Por meio de figuras, mal desenhadas numa pedra, faz
compreender ao discípulo os teoremas da geometria; a ponto de se ter
podido dizer que esta é a ciência de raciocinar direito sobre figuras
tortas. Mas foi pela imagem que o geômetra chegou à consideração
do triângulo. Foi pelas figuras que traçou que fez compreender ao
discípulo a sua ciência; e, a não ter desenhado figuras, teria
inevitavelmente de, por palavras, fazer-lhas surgir no espírito,
para lhe dar a conhecer aquilo de que falava. Sensibilidade e
intelecto agente; potência e neto; são os dois elementos
indispensáveis ao conhecimento intelectual. O primeiro fá-lo
depender, verdadeiramente, do objeto conhecido; o segundo dá-lhe a
sua feição especial de universalidade.
Como se vê, a teoria tomista do conhecimento difere da de Kant em
que esta considera o objeto não inteligível, enquanto que a primeira
o considera inteligível em potência. Para Kant, a sensibilidade
só fornece à inteligência uma matéria, a percepção bruta,
informe; os quadros intelectuais são criados pelo intelecto. No
tomismo, pelo contrário, esses quadros existem no objeto,
realmente, mas numa modalidade que o intelecto não abrange, tal e
qual. Basta, sem os deformar, dar-lhes outra modalidade de
existência; fazê-los existir noutro plano; fazer-lhes conduzir,
segundo a sua lei, o nosso espírito, em vez da matéria que
actuavam; substituir ao vasar das percepções nas formas a priori a
abstração operada pelo intelecto agente. Resumindo: No kantismo,
a inteligência cria o elemento formal do conhecimento; no tomismo,
limita-se a desligá-lo do que o impedia de ser conhecido
intelectualmente.
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