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O mundo dos seres sem vida é constituído por uma série de
substâncias, estudadas, nas suas propriedades e nas suas
transformações, pelas ciências físico-químicas. Como em todas
as substâncias materiais, há nas substâncias inanimadas a
composição metafísica de matéria-prima e forma substancial.
Simplesmente, enquanto que, tratando-se dos seres vivos, é fácil
saber quais são as unidades substanciais, e portanto distinguir a
forma substancial das formas acidentais, nos seres inanimados é
difícil distinguir, de entre as formas que regem a matéria, quais
correspondem a substâncias, e quais a acidentes. Realmente, nós
conhecemos a nossa própria existência como unidade substancial pela
observação interna. Sabemos que a nossa forma substancial há-de
ser a forma do nosso corpo e o sujeito das nossas faculdades
imateriais; a alma, portanto. A semelhança evidente entre a vida
dos animais e das plantas e a nossa própria autoriza-nos a estender a
conclusão aos outros seres vivos, e a dizer que as suas almas,
sensitivas ou vegetativas, são formas substanciais. Mas aqui não
temos uma indicação segura, e podemos legitimamente hesitar. Onde
está a substância? No composto químico, caracterizado pela
molécula? No cristal? Estará, por outro lado, no elemento
químico, definido pelo átomo, ou pelo menos pelo seu núcleo, ou
até nos constituintes do átomo, electrões, protões, etc.?
A questão tem sido muito discutida entre os filósofos tomistas. A
sua resolução não depende da metafísica, mas da interpretação dos
conhecimentos obtidos pela física. Pertence a uma física
qualitativa, entendida à maneira de Aristóteles, que não se
confunde com o sentido quantitativo em que a palavra é hoje tomada
geralmente, mas não o exclui nem se lhe opõe; antes existe latente
na base e na interpretação de todas as teorias físicas. Para bem do
prestígio do tomismo, que só pode perder com ser envolvido em
questões que lhe são estranhas, julgo conveniente que os tomistas
não queiram decidir definitivamente este ponto, ou, se o fazem, que
não deixem de salientar que é como físicos e não como filósofos.
A questão, no fundo, é a seguinte: A molécula é um agregado
acidental de átomos, transitório e instável, sem lei bem definida
de que a lei dos átomos que a compõem faça parte integrante, ou,
pelo contrário, é um tipo de ser com essência bem determinada, em
que os átomos, agindo segundo as leis que os regem quando autônomos,
concorrem para a existência e a conservação do todo? Se a lei da
molécula exige a lei do átomo em tudo o que tem de essencial, se a
engloba numa síntese de ordem mais elevada, então o átomo não
existe nela como ser autônomo, mas virtualmente; o composto químico
que a molécula caracteriza é uma substância, no sentido
metafísico, e a sua forma uma forma substancial. Se, pelo
contrário, algumas propriedades essenciais do átomo não pertencem à
essência da molécula, e podem contrariá-la, os átomos não perdem
nela a sua autonomia, e a forma da molécula é uma forma acidental.
Da mesma maneira se põe a questão de saber se o cristal é um
agregado acidental ou substancial de moléculas, e o átomo um agregado
acidental ou substancial de electrões e outras partículas.
A opinião mais vulgar é que as transformações químicas
correspondem a modificações substanciais, e portanto que as
substâncias inanimadas são os compostos químicos. Foi este uso que
segui sempre que se tratou de procurar exemplos. Mas chamo
expressamente a atenção para o fato de o ter feito sem querer com isso
dizer que as outras soluções são inaceitáveis para a metafísica.
A esta basta saber que, como suporte das várias formas acidentais,
há-de sempre haver uma forma substancial, unida diretamente à
matéria, e só uma para cada porção desta; porque, como já
disse, sendo a acidente ser doutro ser, não é possível remontar ao
infinito na série dos acidentes, e há-de necessariamente chegar-se
a uma forma substancial. Mas é-lhe indiferente que essa forma seja a
do cristal, a do composto, a do elemento, ou a das partículas
elementares.
A existência nos seres inanimados dum princípio imaterial, a forma
substancial, estabelece uma certa continuidade entre eles, as plantas
e os animais. A diferença está na espécie de atividade de que a
forma torna capazes uns e outros. É uma diferença de ordem; porque
as formas superiores englobam, numa síntese de ordem mais elevada, os
elementos que constituem as de ordem inferior, e outros elementos ainda
que não pertencem a estas. Mas em todos os seres há uma idéia
latente, uma tendência para a ação, um plano de existência e de
expansão activa. O tomismo salvaguarda assim, dando-lhes o seu
verdadeiro significado, todos os fatos em que os materialistas se têm
querido basear para reduzir a vida a uma manifestação de atividades
cegas. As semelhanças entre os seres vivos e os inanimados não
provam que os primeiros são matéria e só matéria, mas que a
Inteligência Criadora se reflecte e manifesta nuns e noutros, embora
em graus muito diferentes.
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