|
Essa suspeita dos caçadores de escravos e possuidores de
comendas não era de toda injustificada: os jesuítas que
haviam travado conhecimento nas cidades sul americanas com os
usos e costumes dos colonos, haviam chegado, de fato, à
convicção de que os denominados “ selvagens” estavam nas
suas florestas virgens me1hor aparelhados para a organização
de uma Cidade de Deus do que os brancos. “ Pois,” escreveram
os padres nas suas informações, “ não é que os espanhóis se
limitem apenas a fazer dos índios, escravos; eles os corronem
também, dado que se entregam a vários vícios, dos quais os
nossos inocentes selvagens nada sabença.” Assim foi que, em
breve, surgiu entre os missionários a idéia de que os índios
deveriam ser completamente separados dos brancos, afim de,
por essa maneira, protege-los não só contra a sua tirania mas
também contra a contaminação pelo mau exenla ; pois a todo o
instante se evidenciava que a convivência dos índios com os
espanhóis muitas vezes aniquilava em poucas semanas aquilo
que os jesuítas tinham logrado alcançar em bons frutos,
durante anos e anos de penoso trabalho. Os jesuítas acabaram,
finalmente, transmitindo essas ponderações ao rei da Espanha
também. Se o soberano, assim pensavam eles, lhe quisesse
conceder o direito de organizarem um Estado índio na América
do Sul, independente completamente das autoridades coloniais
espanholas, então os jesuítas, por sua vez, se abrigavam a.
induzir os índios a um reconhecimento espontâneo da
autoridade suprema. espanhola e ao pagamento de um inosto
anual “ per capita’ à corte de Madri.
O rei Filipe III já havia muito se encontrava a braços com
dificuldades monetárias constantes, e, por isso, essa solene
promessa material dos inteligentes padres agiu sobre ele de
uma maneira bastante convincente. Assim foi que ele publicou
um privilegio, o qual concedia aos jesuítas a plenipotência
solicitada e estabelecia, especialmente, de acordo com os
desejos dos missionários que, d aí em diante, nenhum branco,
exceção feita do governador, deveria transpor sem a
necessária licença dos padres as localidades designadas pelos
missionários para moradia dos índios. Filipe IV que por
ocasião da sua ascensão ao trono, herdou também os embaraços
financeiros de seu antecessor, confirmou também o privilegio.
Assim é que, d aí em diante, os jesuítas puderam se dedicar à
tarefa de organizar nas margens ambas do rio Uruguai,
principalmente, nas florestas e planícies da América do Sul
oriental aquele Estado ideal no qual deveria reinar
unicamente a pureza evangélica. Nisso tomaram eles como ponto
de partida, o princípio exato de que um verdadeiro “ reino de
Cristo sobre a terra” só poderia ser fundado entre essas
tribos indias selvagens, na espessura da floresta virgem, e
com a exclusão mais rigorosa possível dos cristãos europeus.
As condições geográficas vieram em socorro das intenções dos
padres: os colonos espanhóis que, outrora, em sua busca de
prata, tinham se dirigido mais para o sudoeste da América do
Sul, haviam sempre se instalado nas embocaduras dos grandes
rios, ao passo que o “ hinterland” , desde que não fosse
atingível pelos rios, permanecia fechado. O rio Uruguai,
porém, tal como os jesuítas o haviam confirmado com as suas
viagens de descobrimento, exibiu, em um ponto do seu curso
uma grande catarata com escolhos perigosos e cachoeiras, a
qual obstava toda e qualquer viagem de embarcação européia;
por de trás d essas paragens intransponíveis começavam os
territórios, sobre os quais as tribos dos chiquitos e
guaranis haviam levantado as suas tabas. “ Os nossos
missionários,” escreveu o padre tirolez Sep, o qual viajou
pelo pais, mais tarde, depois da organização do “ Estado
jesuítico” “ são todos de opinião que Deus criou essas
quedas d água e essas cachoeiras para bem dos nossos pobres
índios” pois os espanhóis em sua cupidez insaciável chegaram
até aí com os seus grandes navios, mas não puderam ir mais
além. Até o dia de hoje não transpuseram eles as nossas
reduções e não puderam estabelecer nenhum contato, nenhum
comércio com os nossos índios.” Os cautelosos padres,
entretanto, não se confiaram nem na natureza e nem no
privilegio real que lhes fora concedido; pelo contrário,
fizeram tudo quanto se pode imaginar para inedir a
civilização européia de penetrar na região confiada à sua
guarda. Não somente que houvessem eles proibido sempre, de
maneira rigorosíssima, todo e qualquer contato com os
brancos; eles cuidaram também de que os nativos não
aprendessem nem a língua portuguesa nem a espanhola. Chegaram
mesmo a ponto de recomendar aos seus protegidos o emprego de
violência contra todos os estrangeiros, que se atrevessem a
entrar no território d eles sem uma licença expressa.
Quando os primeiros jesuítas, seguindo o curso dos rios,
haviam penetrado nas florestas virgens do Paraguai, pareceu a
princípio que fosse impossível qualquer obra missionaria,
pois os índios sempre recuavam atemorizados diante d eles.
Mas, dentro em breve, observaram que, quando eles cantavam
hinos sacros em suas canoas, em seguida surgiam da espessura
da mata, d aqui e d ali, índios, os quais os ouviam
atentamente e deixavam perceber uma enorme satisfação com
esses sons. Mas com essa observação também os missionários
haviam descoberto, simultaneamente, o meio .apropriado para
atrair os índios lá das suas florestas: a partir, d aí os
missionários levavam consigo em suas viagens instrumentos de
musica e tocavam e cantavam tanto quanto podiam.
“ Os índios caíram na doce armadilha” , escreve Chateaubriand
no seu “ Gênio do Cristianismo” , “ baixaram de seus montes,
dirigiram-se para as margens dos rios afim de melhor ouvir os
sons sedutores e muitos se precipitavam na água e seguiam
nadando o barco encantado. Flechas e arcos escorregavam,
inconscientemente, das mãos dos selvagens; em suas almas o
pressentimento de formas de vida mais elevada começou a
dominar e fez a sua entrada nelas a primeira doçura da
humanidade.”
Além disso, os missionários sabiam explicar aos índios que,
perplexos, os estavam escutando, em sua língua materna aquilo
que eles tinham cantado; d essa maneira surgiu um tal
interesse por parte dos selvagens, que eles os convidaram a
que os seguissem nas florestas e planícies afim de ali
cantarem também em presença dos anciãos e explicassem aos
mesmos a significação dos seus cânticos. D essa maneira os
padres conseguiram chegar a essas regiões, onde, até então,
nenhum europeu tinha posto o pé, onde os guaranis e chiquitos
viviam rodeados de uma natureza virgem. Ali encontraram eles
criaturas humanas, cuja vestimenta consistia, de acordo com
as descrições dos missionários, em peles de veado; as
raparigas e rapazes estavam nus, suas longas cabeleiras
despenteadas, semelhantes a uma cauda de cavalo, caíam-lhes
pelos ombros abaixo; nas orelhas perfuradas usavam eles ossos
ou penas tingidas, pendentes de fios, e costumavam enfeitar o
pescoço também com berloques semelhantes. Os semblantes dos
homens pareceram aos padres que tinham quase todos a mesma
forma, redondos, achatados e de um escuro carregado. As
mulheres eram feias; seus cabelos negros como carvão caíam-
lhes em tranças por sobre o rosto enrugado, queimado, costas
abaixo. Esses selvagens eram de caráter infantil, confiado e
dócil, e já, os primeiros missionários que haviam chegado até
eles informaram que tinham visto “ duas vezes cem mil índios”
, os quais “ eram sumamente aptos para o reino de Deus.” Os
padres agora já sabiam que, valendo-se de cânticos, era
possível exercer um efeito magico sobre os índios, e souberam
aproveitar bem essa circunstancia em benefício de seus
desígnios. Se os selvagens antes haviam oposto resistência
contra toda e qualquer medida, em compensação essa
resistência desaparecia em seguida, logo que houvessem
entoado um cântico solene. Mas coisa mais estranha ainda:
dentro em pouco os próprios selvagens procuraram imitar os
exercícios musicais dos missionários e, sob a direção dos
padres, aprenderam com grande entusiasmo a cantar corais
polifônicos dificílimos. D essa ligação por meio da música
foi que, propriamente, surgiu, a princípio, a estrutura d
esse Estado em gênesis, pois o objetivo do canto em comum não
era o último pelo qual os índios, até então dispersos pelas
florestas, se reuniam cada vez mais estreitamente. De começo
uniu-se um certo número de famílias guaranis em uma
localidade a que os jesuítas deram o nome de Loreto; pouco
tempo depois surgiram também as outras comunidades indias
cristãs de Santo Ignácio, Itapuã e Santana, todas elas
localizadas no médio Paraná. D esse tronco fundamental de
aldeamentos índios surgiram as “ reduções” do Paraguai, as
quais, dentro em breve, vieram a abranger grande parte dos
atuais territórios da Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile,
Brasil e Bolívia. Na época de florescimento d esse estranho
império havia um total de trinta e uma d essas “ reduções” ,
as quais contavam de três até seis mil almas cada uma. Os
habitantes da região toda orçavam, nessa ocasião, em cerca de
cento e quarenta mil pessoas. A vida nas reduções do Paraguai
se desenrolava, quase que toda ela, por entre acompanhamentos
musicais. Já às cinco horas da manha., os tambores chamavam o
povo para a igreja, onde era celebrada uma missa com muito
canto, responsos e musica instrumental ; pois os missionários
acreditavam “ que nada contribuía tanto para insuflar nos
índios o fervor e o gosto pelo serviço divino e também para
tornar-lhes compreensível as próprias doutrinas, como isso de
faze-los acompanhar de cânticos” . Os índios eram de seu
natural muito avessos ao trabalho, mas, foi de novo a musica
que proporcionou aos padres o socorro necessário para
dominar-lhes a preguiça ingênita. Quando os homens pela manhã
se dirigiam ao cano, lá ia marchando à frente d eles uma’
banda de musica; com acompanhamento musical amanhavam eles os
canos, derribavam árvores e construíam prédios, com musica
tomavam a refeição do meio dia e com musica regressavam eles,
de noitinha, às suas aldeias.
O protestante alemão M. Bach, o qual no ano 40 do século
XIX encontrava-se a serviço do Estado boliviano e que, assim,
estudou minuciosamente os remanescentes da republica
jesuítica, conta que já os filhos dos índios eram obrigados,
diariamente, a freqüentar a escola de musica, durante horas a
fio ; a prática constante, aliada a um grande talento inato,
trouxe em resultado que “ mesmo nos coros constituídos por
milhares de pessoas, nunca soava uma nota desafinada” . Saber
cantar afinado era, por assim dizer, considerado como um
dever cívico.
Todos os missionários se manifestam com palavras de máxima
admiração sobre o admirável talento musical d esse povo; eles
não se fartavam de admirar a presteza com que os próprios
meninos índios aprendiam de maneira perfeita não apenas o
canto, mas também o manejo dos dificílimos instrumentos de
musica europeus, tanto os de corda como os de sopro. Eram os
padres alemães, principalmente que dirigiam o ensino musical:
Organizaram eles coros sacros regulares, e também orquestras
completas, nas quais se podiam encontrar “ violinos,
contrabaixos, clarinetes, flautas, harpas, trombetas, cornos
e tambores” . Cada aldeia tinha, tal como o informam os
padres, pelo menos “ quatro trombeteiros, três bons
teorbistas, quatro organistas e, além d isso, charamelistas,
fagotistas e cantores” . O repertório abrangia, ao lado da
musica sacra, também marchas e danças importadas da Alemanha,
sim, até mesmo partes de operas italianas. “ Entre os índios
simples das florestas virgens da América” , observou uma vez
o missionário Francisco de Zefyris, “ os padres não
conseguiram vitória alguma com a matemática, porque ali
ninguém compreendia ou exigia essa ciência, entretanto com a
mu
Abstração feita dos exercícios musicais, os missionários
se esforçaram também por entreter os moradores do seu Estado
índio com diversões de toda a espécie, pois, como eles
opinavam, a alegria não era prejudicial à virtude, pelo
contrário obrava de maneira “ a que a mesma fosse amada e
aumentada” . Habitualmente organizavam eles, por isso, festas
populares com os mais diversos jogos, conetições atléticas e
combates simulados. O padre Charlevoix narra como os jesuítas
“ haviam introduzido também nas reduções o hábito, em voga
entre os espanhóis, de celebrar as festas eclesiásticas com
danças” , afim de que os índios pudessem sentir d essa
maneira tanto maior alegria com o cristianismo. “ Ora faziam
eles as mais artísticos bailadas” , conta o padre, “ ora
representavam torneios, parte a cavalo, parte a pé, ora
caminhavam eles em pernas de pau de seis côvados de altura,
ora na maromba, ou então corriam munidos de lances, em
direção às argolinhas. Uma outra vez fizeram representar uma
pequena comedia, a qual todos eles, embora a custa de muito
trabalho de minha parte, gravaram nas cabeças duras e
representaram de maneira excelente.” Essa arte teatral
primitiva agradou de tal maneira aos índios, que eles,
decorridos já muitos decênios após a expulsão dos jesuítas,
continuaram representando as peças que haviam aprendido
outrora com os padres. O missionário tirolês Sep descreve com
muita vivacidade uma grande festa celebrada por ocasião de
sua chegada ao Paraguai: “ Ao nascer do sol baixamos nós à
terra e fomos recebidos na margem pelos índios com a alegre
exclamação “ jopaean! jopaean!” Todo . o mundo se deu pressa
em sair de suas cabanas, qual ainda seminu, qual já vestido
com uma pele; era um que subia no seu tordilho, outro no seu
morzelo, este enunhava o arco e a flecha, aquele pedra e
funda, e todos eles corriam, o quanto as pernas lhe davam, em
direção ao rio...” “ Eis que então apareceram no meio do rio
duas lindas embarcações, as quais davam a impressão de
galeras de combate, cheias de trombeteiros, mosqueteiros,
tamboreiros e charameleiros. Então tocaram musica, salvaram e
entre os dois navios foi travada batalha simulada. Os índios
saltavam no rio e lutavam uns com os outros, ora debaixo d
água, ora na superfície, o que era um gosto ver-se. Por fim
vieram todos eles nadando, alegremente, em direção ao nosso
bote, saudando-nos.”
“ Mas na margem estava o padre superior com dois
esquadrões de cavalaria e duas companhias de infantes, todos
eles índios, vestidos, porém, com os trajes espanhóis,
sumamente enfeitados. Suas armas consistiam em sabre,
mosquete, flecha e arco, laços e cacetes ; realizaram eles um
belo combate simulado. Enquanto isso, quatro alferes agitavam
suas bandeiras, quatro trombeteiros entusiasmavam n povo, as
cornetas, fagotes e charamelas tocavam alarme, enquanto nós,
paulatinamente, saindo de nossas verdes cabanas de ramos,
abraçamo-nos uns aos outros e nos dirigimos à igreja, no meio
de alegre repiques de sinos, através de lindos arcos de
triunfo verdejantes, escoltados por cerca de uns mil
índios...” O dia de Corpus Cristi era celebrado de maneira
sumamente inonente, e aí os missionários tinham inventado
muita coisa que lembrava a solenidade da corte imperial
chinesa; pássaros vivos, de todas as cores, estavam amarrados
aos arcos de triunfo feitos de flores c ramos de árvores.
Aqui e ali tinham colocado “ tigres e leões acorrentados” e
posto pias de chafarizes com lindos peixes. Com esses
dispositivos pretendiam dar a impressão de que todos os seres
da natureza tomavam parte na homenagem prestada ao
Sacramento. Por ocasião da procissão da Ressurreição eram
transportadas imagens em tamanho natural, fabricadas pelos
índios as quais representavam plasticamente as diferentes
cenas da Paixão. Com o fito de aumentar ainda mais a
impressão sobre os índios, os padres se utilizavam também de
imagens de santos com olhos e membros moveis e espargiam pelo
solo ervas e flores, sobre as quais borrifavam depois águas
perfumadas.
|
|