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Os começos da missão japonesa estiveram estreitamente
ligados ao comércio marítimo português, pois os daimyos
haviam sempre calculado que o aparecimento dos missionários
traria em resultado uma vivificação do tráfego com o império
colonial português. Em compensação na China odiavam-se os
portugueses, desde havia muito tempo, e se os procurava
manter afastados dali por todos os meios.
Essa xenofobia visceral fora provocada, sobretudo, em
conseqüência da impressão desfavorável, que causara o
aparecimento dos portugueses nas águas chinesas. Assim é que
no ano de 1516 o vice-rei de Cantão escrevia ao imperador,
que os estrangeiros não tinham outra coisa em mente senão
saquear as costas e se apoderar de pontos fortificados, sob
pretexto de comércio. Precisamente quando os jesuítas deram
inicio à sua atividade no extremo, oriente, governava a China
a dinastia dos Ming, a qual estava dominada por espirito
nacionalista e procurava alienar o “ Império do Meio” , a
todas as influências estrangeiras, de maneira rigorosíssima.
Os jesuítas, no entretanto, souberam sempre tirar
vantagem de todas as situações, e se eles no Japão haviam
aproveitado o entusiasmo das autoridades pelo comércio
português, em compensação, aqui, valorizaram eles, para os
seus objetivos, a xenofobia dos chineses. Quando, pois, três
mercadores portugueses que haviam penetrado clandestinamente
em Cantão foram encarcerados, os padres jesuítas Barreto e
Góis se ofereceram para realizar as negociações referentes à
soma do resgate, estabelecida pelas autoridades chinesas.
Nessa qualidade de mediadores tornava-se-lhes possível
chegar a Cantão sem percalços. Barreto fez presente ao
governador chinês de um relógio, o qual este tinha visto com
o missionário e cobiçado vivamente, e isto levou dentro em
breve ao estabelecimento de uma amizade tão íntima, que o
governador tolerou que os dois padres continuassem em Cantão,
mesmo depois da satisfatória regularização do resgate. Não
criou mesmo nenhuma dificuldade, quando alguns outros
missionários seguiram as pegadas de seus dois irmãos de
Ordem, pois ele e os seus demais funcionários sentiam já viva
sinatia por esses estrangeiros, que sabiam se conduzir tão
amavelmente, com tanto tato e com tanto atilamento.
Enquanto Barreto e Góis dominavam a língua chinesa
deficientemente, os jesuítas que vieram mais tarde já falavam
o chinês correntemente e sabiam se entreter com os
funcionários sobre as cousas mais sábias. Pois o padre
Valignani, visitador da Ordem da missão asiatico-oriental,
havia, nesse meio tempo, organizado um “ assedio” da China
em perfeita forma e ajustado anlos preparativos, afim de que
os seus padres, na hora do seu aparecimento nesse país,
dispusessem também dos conhecimentos necessários.
No colégio de Macau os missionários jesuítas aprendiam,
agora, todas as sutilezas das expressões idiomáticas chinesas
da classe culta da mesma maneira que o dialeto da gente
simples; estudaram eles a complicada escrita ideográfica e se
apropriaram, por meio de numerosos livros, de conhecimentos
básicos sobre a história, os costumes, as leis e a literatura
da China.
Antes de partirem para a sua missão, reuniram eles,
cuidadosamente, os presentes adequados, mediante os quais
esperavam conquistar a benevolência dos altos funcionários e,
conforme o caso, até mesmo do imperador. Sabiam eles que
nesse país as ciências naturais gozavam de um prestígio
enorme e, assim, os padres tinham cuidado de todos os
instrumentos científicos possíveis, de fabricação européia,
dos quais era lícito esperar encontrarem agrado entre os
chineses. A familiaridade que tinham com a mentalidade e o
caráter dos chineses pôs os jesuítas, desde o princípio, a
resguardo do uso de um método que, infalivelmente, teria
conduzido a um fracasso rotundo. Os chineses mostravam-se
cheios de um orgulho desmedido pela sua alta cultura e
instrução, como se mostravam firmemente convencidos da sua
superioridade sobre os outros povos da terra. Em suas cartas
geográficas o “ Império do Meio” estava desenhado de maneira
que cobria a maior parte do mundo; somente na orla da China
estavam traçados pequenos “ impérios bárbaros.” Com um povo
assim, que considerava insignificantes todas as nações
situadas fora da muralha chinesa, não se poderia, de maneira
alguma, começar com as prédicas, pois os chineses estavam
convencidos de que nada tinham a aprender dos outros povos.
No conhecimento pleno dessas circunstancias, os jesuítas
apareceram, inicialmente, com extrema cautela e, durante
longo tempo, ocultaram as suas verdadeiras intenções.
Com os chineses, escreveu nessa ocasião para Roma um dos
missionários, é necessário que se ande com astúcia e se evite
cuidadosamente todo e qualquer zelo indiscreto; do contrário
poderia acontecer facilmente, “ que as portas, que o Senhor
Deus nos abriu para a China, se fechassem de novo”. Quando
lhes perguntavam a razão por que tinham vindo à China,
respondiam que a fama das instituições chinesas penetrara
até eles, e se sentiam irresistivelmente atraídos pela
sabedoria e virtude da China.
Adotaram os trajes dos chineses e se chamavam por nomes
chineses; como soubessem que os chineses olhavam os
portugueses com um desprezo especial, negavam eles,
obstinadamente, tivessem qualquer coisa de comum com esses
piratas bárbaros.
Entre os homens que haviam seguido os dois primeiros
missionários a Cantão, encontrava-se também aquele padre
Mateo Rici, cuja posterior influência iria criar as bases,
propriamente ditas, do admirável sucesso da Companhia de
Jesus na China. Rici apareceu em Cantão vestido com a singela
sotaina de sacerdote budista e usando o nome chinês de Li ma-
teu. A princípio adaptou ele o seu gênero de vida,
exatamente, ao dos bonzos; como eles, mendigava à frente dos
templos, instruía-se ardorosamente com eles sobre as
doutrinas de Buda, procurando conquistar-lhes a confiança.
Entretanto, uma vez, teve oportunidade de falar com um
mandarim culto sobre astronomia; Rici se encontrava aí em seu
próprio elemento, pois havia estudado em Roma com o famoso
sábio jesuíta Cristóvão Clavius, durante anos inteiros,
astronomia e matemática. Conseguiu, assim, assombrar o
mandarim de tal maneira com seus conhecimentos, que o chinês
acabou lhe dando um conselho importante. “ Vosso saber” ,
disse ele, “ provocou minha suprema admiração, e, por isso,
recomendo-vos que renuncieis, de agora em diante, à vossa
maneira de viver. No estado miserável que adotastes, só
podereis encontrar ouvido entre muito pouca gente. Aparecei,
pois, à maneira dos nossos sábios e então sereis recebidos em
toda a parte com honra.”
Rici decidiu-se, imediatamente, a seguir esse conselho.
Trocou a sua batina de padre budista pelas vestimentas
distintas de seda usadas pelos “literatos” chineses, e com
essa troca de roupa o piedoso bonzo que ele havia
representado ainda no dia anterior, desaparecera para sempre.
Com o auxílio dos presentes trazidos, transformou o aposento
de sua pequenina casa, que o governador lhe destinara, no
escritório de um sábio completo: ali estavam de pé e deitados
diversos instrumentos matemáticos, físicos e astronômicos,
vidros prismáticos, por através dos quais se podiam ver as
cores do arco-íris, obras da relojoaria de toda a espécie,
esferas, bússolas, instrumentos de música, brochuras, quadros
e cartas geográficas. Bem depressa se espalhou em Cantão a
notícia de que chegara um homem muito sábio do estrangeiro, o
qual trouxera consigo uma imensidade de coisas raras;
chamava-se Li, falava o dialeto dos mandarins e usava o
vestuário de um literato.
Não tardou muito tempo e a casinha do “ santo doutor
Li”, como Rici era comumente chamado, ficou literalmente
sitiada por chineses ilustres. O Doutor Li observava, como
natural, bem exatamente todas as fórmulas de cortesia que
estavam prescritas para com os visitantes, mas, no restante,
mantinha-se ele de preferência tão silencioso como um homem
completamente preocupado com seus trabalhos científicos.
Somente quando era argüido a respeito da significação desse
ou daquele aparelho, de um livro ou de um quadro, é que dava
explicações minuciosas. E nisso não caiu nunca em um tom
pretensioso ou doutrinário; pelo contrário, manifestava o
maior respeito pelos conhecimentos de seus visitantes e,
humilde, pedia desculpas pela sua ignorância. De bom grado
entretinham-se mandarins e sábios com esse “ Doutor Li” , o
qual sabia, tão magnificamente, dar explicações sobre todas
as coisas que eles ignoravam e, ao lado disso, nunca lhes
dava a perceber que os estava ensinando.
Primeiro que tudo, cada qual quis saber o emprego que
tinham os aparelhos colocados por toda a parte. Rici
explicava-lhes o fim e o manejo dos instrumentos, e eles
faziam-no repetir constantemente as suas explicações. Um
depois do outro foram sendo examinados os vidros prismáticos,
os relógios e as bússolas, até que os visitantes, por fim, se
aproximaram mais das paredes para ver os quadros ali
dependurados. No lugar de mais destaque do quarto colocara
Rici uma carta geográfica do mundo e, quando os chineses
perguntavam a significação da mesma, explicava-lhes, em tom
indiferente, que era uma representação exata da terra. Mas
nela a China não estava figurando, absolutamente, como o
“Império do Meio” e sim como um país relativamente pequeno,
rodeado de grandes impérios e nações, as quais, tomadas em
conjunto, formavam a maior parte da terra. Dessa carta e das
explicações que o sábio Li ministrava aos visitantes, surgiu
a coisa incrível de que fora da China havia também outros
países grandes e outras grandes nações. No dia em que os
primeiros chineses contemplaram essa carta no gabinete do
Doutor Li, vacilou uma crença três vezes milenária, nesse dia
iniciou-se na cultura da China uma nova época. A princípio
ergueu-se ainda mais de uma objeção contra as irritantes
afirmações de Li. Porventura não tinham todas as autoridades
clássicas ensinado, até então, que a China era o centro do
mundo e que tudo em torno era pequeno e insignificante? Acaso
não tinham estado os antigos de posse da mais sublime
ciência, e era lícito ousar-se afirmar alguma coisa que se
afastasse de suas doutrinas?
O Doutor Li manifestou o maior respeito e admiração
pela sabedoria das autoridades chinesas, mas, enquanto isso,
foi conduzindo os seus visitantes de tal maneira para perto
das paredes, que eles também foram obrigados a observar as
demais cartas, desenhos e quadros ali dependurados; neles
estava traçado tudo quanto a Europa possuía em grandes
cidades, maravilhas arquitetônicas e belezas artísticas. Tudo
isso parecia indicar que os homens desses países não eram,
absolutamente, bárbaros incultos, como até então se admitia
na China, mas, iguais, pelo menos, aos chineses em sabedoria
e cultura. Quando esse giro pelo quarto de Li chegara ao fim,
insinuara-se automaticamente no espírito dos hóspedes uma
ligeira dúvida sobre a exatidão das noções ensinadas pelas
autoridades clássicas da China.
Quanto mais freqüentemente os mandarins e sábios
conversavam com Rici, tanto mais robustecidos foram se
sentindo eles em seu respeito por esses povos estrangeiros:
se lá no estrangeiro todas as pessoas fossem como esse Doutor
Li, então muitas coisas importantes se poderiam aprender com
os europeus para o bem do Império Chinês. O governador de
Cantão foi um dos primeiros a tirar conseqüências práticas
dessa verificação.
Pareceu-lhe sumamente desejável que o Doutor Li
instruísse os chineses exatamente sobre todas as coisas
existentes nesses países em boas instituições e inventos;
muitas dentre essas poderiam ser úteis para a China. Ele
pediu a Rici uma cópia também daquela carta geográfica sobre
a qual deveriam estar registrados em caracteres chineses os
nomes de todos os países, povos e cidades situados fora da
China. Mandou inrimir essa carta e enviou um exenlar a todos
os seus amigos. O missionário escreveu nessa ocasião para
Roma, dizendo que a sua carta geográfica conseguira “que
devagarinho todo o mundo fosse adquirindo uma noção
completamente diversa da que existira até então sobre os
nossos países, povos e, sobretudo, sobre os nossos sábios.”
A exibição da carta geográfica foi “a obra mais útil que se
poderia, por esses primeiros tempos, ter empreendido na
China.”
Só muito mais tarde, quando já se firmara entre os
chineses a convicção da igualdade dos europeus, foi que Rici,
pouco a pouco, veio a falar, com a máxima cautela, de
assuntos religiosos. Por ocasião da décima ou vigésima.
visita de um de seus amigos chineses pôs ele,
disfarçadamente, uma imagem da Mãe de Deus e outros símbolos
religiosos entre os seus muitos livros e desenhos, e quando o
visitante, depois, pediu informações sobre a sua
significação, respondeu ele, sucintamente, que eram símbolos
da religião européia. Depois deixou cair ainda uma observação
sobre os bons costumes dos cristãos, que, em muita coisa,
lembravam as instituições chinesas e em seguida a isso, mudou
o tema da conversação até que os chineses instaram com ele,
curiosamente, para que lhes desse a conhecer algo sobre a
religião e os costumes dos europeus.
Quando logo depois disso o vice-rei da província Kiangsi
convidou o padre para ir à sua capital, foi Rici recebido por
ocasião de sua chegada com as honrarias que cabiam a uma
homem sábio e famoso; pois, em toda a parte, já se conhecia a
sua carta geográfica. Apesar d isso esperava por ele aí uma
tarefa extraordinariamente difícil: se em Cantão fora
suficiente apenas convencer os chineses da existência de uma
humanidade civilizada fora da China, em compensação aí, onde
se encontrava reunido um grande número dos sábios eminentes,
tornava-se necessário demonstrar a superioridade da ciência
européia sobre a chinesa.
Os sábios de Kiangsi eram, preponderantemente,
matemáticos e dispunham nessa ciência de conhecimentos não
escassos; pois já os antiquíssimos tratados do T’ung-tschih-
kantschib kangmu haviam descrito não apenas as quatro
operações fundamentais e a medição de superfícies de toda a
espécie, mas também a arte de extrair raízes cúbicas e
quadradas, da mesma maneira que as regras de mistura, os
fundamentos da trigonometria e diversas equações não lá muito
simples.
Entretanto, não fora debalde que Rici estudara no
Colégio Romano com o padre Clavius; os matemáticos chineses
não podiam levar-lhe a melhor. Dia e noite afundou-se no
estudo das obras dos autores chineses até que descobriu as
passagens aquelas em que o seu sistema mostrava lacunas e
erros. Tomando por base a Euclides, redigiu ele um tratado de
geometria em língua chinesa, no qual tudo aquilo que até
então as chineses conheciam fragmentaria e inerfeitamente,
estava agora exposto em ordem completa e sistemática. Depois
ensinou Rici aos sábios chineses também a arte de fabricar
relógios de sol, e explicou-lhes alguns cálculos astronômicos
complicados. Como se interessassem também pelas questões do
som, expôs-lhes ele os princípios fundamentais da acústica e,
em tudo isso, conquistou a sua maior admiração.
Quando, mais tarde, redigiu as suas primeiras obras
morais e religiosas, os chineses viram nele já “um dos
professores maiores e mais sábios” e aceitaram cada uma de
suas palavras como revelação científica. Ele conhecia
exatamente as doutrinas de Confúcio, referentes à
concordância da lei divina com a razão natural, e quando,
agora, se propôs, cautelosamente, a pregar o cristianismo em
seus tratados, buscou apoio sempre nas passagens da
literatura clássica chinesa, que mostrassem certas analogias
com as doutrinas cristãs.
Vestiu ele o catecismo, de acordo com o gosto dos
chineses, na forma de um grave diálogo entre um filósofo
chinês e um sacerdote cristão: essa obra encontrou a maior
aceitação, e os mais altos mandarins consideravam como uma
honra o fato de mandar-lhes Rici um exenlar de presente.
Ainda muito mais tarde os livros desse missionário foram
incorporados à coleção clássica das melhores obras de
literatura chinesa e, dessa maneira, “começou-se” , como
escreveu nessa ocasião um padre, “a se propagar por toda a
China o perfume da nossa religião.” Na verdade o número de
homens que Rici convertera de fato ao cristianismo e o número
dos que ele batizara era ainda sumamente escasso; mas eram,
por toda a parte, personalidades oriundas dos círculos mais
distintos, mandarins e sábios de grande prestígio, cuja
conversão constituiu uma recomendação extraordinária para a
doutrina cristã.
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