“DEUS” CONTRA “DAIMITCHI”

Já a caminho da capital Xavier atravessara uma grande e próspera cidade chamada Jamagutchi; dado, porém, que ele nessa ocasião ansiava inacientemente por Miako, não dedicara também a Utchi Joschitaka, o daimyo de Jamagutchi maior inortância do que a todos os demais príncipes, a quem tivera oportunidade de conhecer durante a viagem.

Mas agora se convencera de que os daimyos representavam as únicas autoridades do país e agora também lembrou-se do príncipe de Jamagutchi e de sua ilustre corte. Desde que Miako fora arrasada em conseqüência da eterna guerra civil, uma grande parte da nobreza imperial se refugiara em Jamagutchi e, assim, essa cidade, no decurso dos últimos anos, se tornara a verdadeira capital do Japão. Com grande pressa viajou Xavier outra vez para Jamagutchi. As preciosas vestimentas de festa, que ele pretendera, a princípio, envergar por ocasião da audiência do imperador, vestiu-as ele para a recepção marcada por Utchi Joshitaka; a esse príncipe entregou ele também a mensagem do papa romano, a carta credencial do governador de Goa e os presentes de honra destinados ao Voo. Quando o Daimyo percebeu as honras que lhe prestava o estrangeiro, quando ele ouviu como esse sacerdote cristão envolto em paramentos brilhantes lhe dirigiu a palavra com todos os títulos e demonstrações de honra devidos ao imperador, então foi necessária apenas uma pequena arte dialética para assegurá-lo da autoridade e da verdade do cristianismo. No entretanto, depois que Xavier tocara ao fim da sua arenga e entregara ao Daimyo lindos rolos de pergaminho com a saudação do papa e do governador português, chegou o momento solene em que o estrangeiro pôs à mostra, um depois do outro, os magníficos presentes tirados do seu saco.

Em seguida foi chamado para ali o funcionário da corte, o qual recebeu a incumbência de registar para todos os tempos as palavras com que o embaixador vindo do país dos bárbaros do sul se dirigira ao Daimyo e os presentes maravilhosos que lhe entregara como sinal de respeito. “Um relógio” , registrou o cronista com o seu pincel, “que bate, com exatidão, doze vezes durante o dia e doze vezes durante a noite; um instrumento musical que emite sons maravilhosos, sozinho e sem necessidade de que se a toque; vidros para os olhos, com ajuda dos quais um ancião pode ver tão precisamente quanto um jovem.” Em voz alta o Daimyo ordenou que, ainda no mesmo dia, fosse dado a conhecer na cidade inteira, que o estrangeiro tinha licença para pregar a sua religião livremente, e que todos os súditos poderiam adotar o cristianismo.

Bem depressa se espalhou em todo o Japão, por meio de mercadores, viajantes e capitães de navios, a notícia da chegada de um homem milagroso, procedente do país dos bárbaros do sul, e, assim, Otomo Joshishige, o Daimyo de Bungo ouviu também falar de Xavier e dos seus pasmosos tesouros. Em seguida ordenou esse príncipe aos seus samurais que trouxessem, fosse lá de que maneira fosse, o santo à sua corte. “Tenho grande desejo de vê-lo” , escreveu ele mesmo ao missionário, “e falar-lhe confiadamente. Sinto-me emocionado com a esperança de vê-lo chegar dentro em breve.”

Pareceu que o céu quisesse providenciar sobre um sucesso especial para a viagem de Xavier a Bungo, pois, justamente quando o missionário ali chegou, entrou também no porto dessa cidade um navio mercante português. Por desejo de Xavier os portugueses fizeram logo tudo que lhes foi possível para preparar ao sacerdote tão altamente honrado por eles, uma triunfal entrada, correspondente aos seus méritos. Conduziram-no em uma chalupa festivamente ornamentada, acompanhado por muitos escravos que envergavam vestimentas preciosas, levando-o a Funai, residência do daimyo, e quando chegou a hora da recepção marcada por Otomo Joshishige, os oficiais navais portugueses estenderam sobre o solo os seus preciosos mantos, afim de que Xavier neles se sentasse.

Tudo isso não deixou de produzir certa impressão no príncipe. Imediatamente foi decretada para toda Bungo absoluta liberdade de consciência; o próprio Daimyo manifestou o desejo de conservar junto a si, para todo o sempre, o sacerdote do país dos bárbaros do sul, pretensão essa que Xavier, na verdade, inugnou.

Grandes foram os sucessos que o missionário conseguira, durante a sua curta atuação no Japão: havia já cinco cidades com comunidades cristãs, e o número de japoneses batizados orçava em mais de mil; além disso não eram eles, como na Índia, simples pertencentes às classes mais baixas; pelo contrário, eram, em sua maior parte, nobres e funcionários da corte. A despeito disso, Xavier não pode alimentar ilusões de que a maior parte da sua tarefa já fora realizada, até aquela data: os bonzos, os guardiães da “falsa religião”, não somente não estavam vencidos como também agora haviam passado a se mostrar como inimigos encarniçados e perigosos. Seguindo o conselho de Anjiro, Xavier, a princípio, designara o Deus cristão com o nome habitual no Japão de “Dainitchi” , “o criador de todas as coisas”; com isso os bonzos haviam declarado, satisfeitos, que esse deus dos bárbaros do sul outro não era senão o seu próprio Deus, e que o cristianismo representava uma espécie de doutrina budista. “Entre vós e nós” , disseram eles a Xavier, “ existe apenas a diferença de língua, nossa religião é a mesma.” A princípio receberam eles o “ irmão estrangeiro” de maneira amabilíssima. convidaram-no a que visitasse os seus conventos e prepararam-lhe solenes recepções ali. Sucedeu também nessa ocasião, que alguns bonzos se passaram para o cristianismo e pediram a Xavier que os batizasse.

Mas, quando Xavier penetrou fundo nas doutrinas do budismo e do shintoismo, reconheceu ele, para seu desengano, que o bom Anjiro, com as suas informações, o havia induzido em erro. Na verdade Anjiro se mostrara como um verdadeiro Paulo, o qual pregava o cristianismo com língua fogosa, mas, no fundo, era ele, como se evidenciava agora, muito inculto, e a maioria de suas informações haviam sido muito pouco exatas. Só assim é que pudera acontecer tivesse se abandonado, durante tanto tempo, a graves enganos sobre o verdadeiro caráter da religião japonesa e do bonzismo.

Agora via ele como a concordância que afirmara Anjiro existia entre esse credo pagão e o cristianismo, dizia respeito apenas a exterioridades de pouca monta. O budismo não conhecia, na verdade, nem um Salvador, cuja paixão deveria remir a humanidade, nem o anelo por uma bem- aventurança eterna; o objetivo do budismo não era o céu, mas o nirvana, o aniquilamento completo. Os adeptos do shinto adoravam até mesmo o sol e a lua, heróis guerreiros legendários e animais irracionais, crença essa que só poderia provocar repugnância e desprezo em um missionário católico.

Em conseqüência disso Xavier, agora, tornou-se mais cauteloso e, com o fito de evitar quaisquer mal-entendidos, passou a usar apenas o nome latino “Deus”. Com o intuito de reparar seus erros iniciais apressou-se ele a declarar por toda a parte que, o “ Dainitchi” dos bonzos não era nenhum deus, e sim engendro de Satã.

Mas com isso também a harmonia existente entre ele e o clero japonês terminou; a partir daí, este se lhe opôs de maneira hostil e empregou todas os esforços para combatê-lo e refutar as suas doutrinas em controvérsias violentas.