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Um Estado assim, edificado sobre os direitos humanos dos
índios, no meio de uma região colonial cujo principal ramo de
comércio era o mercado de escravos, deveria, forçosamente,
causar a impressão de um desafio atrevido. Pois esse Paraguay
independente não tinha arrebatado, desde havia muito, aos
caçadores de homens, as suas peças mais preciosas? Continuar
tolerando isso por mais tempo, pareceu coisa idêntica a
tolerar a ameaça feita a toda a civilização européia na
América do Sul.
A princípio tentara-se obter por meio de negociações com os
jesuítas, que pelo menos certas reduções de zonas limítrofes
fossem repartidas. em “ encomiendas” ; mas os donos do
Paraguay apelaram para o privilegio real e fizeram menção da
fraternidade evangélica, argumento este último que deveria
parecer aos funcionários coloniais, nessa circunstancia,
absolutamente inoportuno. Em compensação, a patente de
privilegio real não era para ser tocada, assim sem mais
aquela, e, nessas condições, os brancos deixaram, a
princípio, todo o necessário entregue aos chamados “
mamelucos” .
Com esse nome designava-se uma horda de mestiços,
rebentos de salteadores europeus e forçados, os quais se
haviam casado com as mulheres Índias. Os mamelucos,
organizados em turbas bem armadas, percorriam as regiões
próximas e distantes de suas colônias, roubando tudo a tudo e
saqueando.
As autoridades coloniais julgaram então indicado chamar
a atenção para as reduções Índias e recomendá-las como
objetivo das suas expedições posteriores. Assim é que, dentro
em breve, poderosas tropas mamelucas invadiam o Paraguay,
aprisionavam todos os índios sobre os quais podiam deitar_
mão e vendiam-nos depois nas cidades marítimas. D essa
maneira, no começo do século XVIII, cerca de sessenta mil
índios de reduções foram reduzidos ao cativeiro.
Depois de todas as tentativas feitas no sentido de induzir o
governador de La Plata a uma intervenção; depois de terem as
mesmas ficado baldadas, os jesuítas resolveram evacuar a
região ameaçada pelos mamelucos, e conduziram doze mil dos
seus índios pelo Paraná abaixo, através da floresta virgem,
resguardando-os em uma região mais afastada e menos exposta.
Mas, dentro em pouco, os mamelucos penetraram ali
também, favorecidos especialmente pelas autoridades
portuguesas. Na verdade os jesuítas conseguiram obter um
breve papal, no qual o governador do Brasil, sob ameaça de
excomunhão era intimado a por um fim a essa atividade, mas,
dado que os mamelucos estavam combatendo a favor dos
interesses de todos os caçadores de homens e mercadores de
escravos, o breve, como era natural, não foi objeto de’
consideração.
Dentro de tais circunstancias o padre Montova, o então
chefe das reduções ameaçadas, viu-se forçado à conclusão de
que também o reino de Cristo neste mundo só mui dificilmente
poderia abrir mão das armas de fogo. Por isso procurou ele
obter junto ao rei de Espanha unia permissão para aperceber
os índios com armas européias. Tendo esclarecido ao rei que
um exército de índios assim organizado poderia também prestar
outros serviços à coroa, a petição foi despachada
favoravelmente.
Somente agora essa estranha republica do Paraguay que,
originariamente, nascera de uma espécie de “ sociedade
orfeônica índia” tornara-se um Estado, na extensão da
palavra. Dentro em breve os padres organizaram uma formação
militar de funcionamento preciso, aramaram os índios do país
inteiro e estabeleceram fundições de canhões e fabricas de
fuzis. A partir d aí cada redução tinha de manter duas
companhias de soldados, postas sob o comando de caciques
índios; oficiais e tropas usavam uniformes e armas copiadas
do modelo espanhol e, em presença dos padres faziam
exercícios militares e manobras com toda a regularidade. “
Todas as segundas-feiras,” informou nessa ocasião um
missionário, “ o corregedor da localidade passa em revista as
tropas na praça pública e fá-las exercitarem-se. Depois elas
se dividem em dois partidas que se atacam mutuamente, e isso
se desenrola muitas vezes com ardor tão intenso, que se é
forçado a tocar a retirada, afim de que não suceda alguma
desgraça... Constantemente um corpo de cavalaria patrulha as
circunvizinhanças e dá notícias de tudo que percebe. As
passagens estreitas, através das quais se poderia penetrar na
região, são vigiadas atentamente... Se surgisse um perigo,
então nós poderíamos, de imediato, mobilizar três mil índios
a cavalo, os quais sabem, bastante bem, usar o mosquetão,
brandir o sabre, formar um esquadrão e manobrar a rigor.
Todos eles foram treinados e exercitados pelos nossos
padres.” Breve as forças essas tiveram oportunidade de
demonstrar a sua aptidão. Quando no decurso de uma luta
contra os portugueses a fortaleza de São Sacramento foi
sitiada, a republica do Paraguai pôs à disposição, dentro de
onze dias, um corpo auxiliar conosto de três mil e trezentos
cavalarianos e duzentos atiradores com o seu conetente
comboio. Seiscentos índios com um padre alemão à frente
tombaram nessa expedição diante do inimigo. O rei Felipe V
teve, por isso, razão bastante para designar nessa época o
exército do Paraguay ainda como “ o baluarte militar avançado
da Espanha” . Mas pouco tempo depois os espanhóis iriam ainda
se convencer, embora de outra maneira, da habilidade do
exército índio, quando eles mesmos tiveram de sair a cano
contra estes e amargar derrota após derrota. No ano de 1750
as cortes de Madri e Lisboa resolveram liquidar os seus
litígios de fronteiras à custa das reduções paraguaias: a
Espanha cedeu mediante um tratado, sete localidades da região
índia a Portugal. Os portugueses exigiram então que essas
colônias, que agora lhes pertenciam, fossem evacuadas pelos
seus habitantes índios, pretensão essa a que os morapuseraai. Depois que os jesuítas por via
diplomática, conseguiram unia protelação da entrega oficial d
essa região aos portugueses e aproveitaram esse tempo para
organização da resistência armada, os oficiais espanhóis e
portugueses, que tinham a seu cargo a retificação das
fronteiras, em face da ameaçadora concentração de tropas
Índias, se viram forçados a retirar. O general português
Gomes Freire de Andrade escreveu nessa ocasião ao comandante
espanhol, Marques de Valdelirios: “ Vossa Excelência terá se
convencido pessoalmente, em face das cartas de informações
que Lhe chegaram às mãos, que os padres da Sociedade são
rebeldes formais. Se nós não afastarmos esses “ santos
padres” das aldeias, não assistiremos a outra coisa mais
senão revolta, agitação e desprezo... Todas essas coisas,
cuja simples menção provocou a nossa repulsa, não devem mais
ser postas em dúvida depois que nós examinamos, pessoalmente,
os fatos.” No ano seguinte já as forças espanholas e
portuguesas avançavam contra a republica jesuíta. Mas os
espanhóis se viram forçados, de novo, a recuar, nas margens
do rio da Prata, porquanto se chocaram contra formações
Índias muito superiores ; os portugueses, pelo seu lado, que,
partindo de São Pedro do Rio Grande, estavam em marcha em
direção ao oeste, não tiveram sorte melhor ; os índios
instruídos pelos padres envolveram-nos em escaramuças
constantes e enervantes, e por isso, eles se viram na
contingência de firmar um armistício. Depois que ficou
verificado ser inexeqüível uma ação em separado, os espanhóis
se uniram aos portugueses para um ataque em comum. Mas, em
seguida, deram eles de encontra a uma obra de fortificação
completa, dotada de canhões, a qual só pode ser tomada depois
de um violento combate e a custa de graves perdas ; os
índios, depois d isso, organizaram uma nova linha de defesa,
em terreno montanhoso, cuja conquista esgotou de tal maneira
o corpo expedicionário, que o ulterior avanço teve de ser
interronido por algumas semanas. Somente meio ano depois do
reinicio das hostilidades foi que as tropas européias
chegaram à primeira redução índia, a qual havia sido
abandonada e incendiada pelos seus habitantes. As localidades
que deviam ser entregues a Portugal tiveram de ser
conquistadas uma depois da outra, ocasião em que um corpo
completo da cavalaria espanhola foi atacada pelos índios e
por eles feito prisioneiro.
Somente com a ajuda de um novo exército de reforço foi
que o general espanhol conseguiu, em definitiva, tornar-se
senhor do cano ; os jesuítas fizeram as suas forças recuar
para a margem oriental do Uruguai, onde o corpo
expedicionário teve de defrontar uma resistência oposta por
um exército índio conosto de quatorze mil homens. N’ esse
meio tempo a republica viu-se forçada a combater pela sua
integridade também no norte, pois ali, igualmente, tinha que
ser regulada uma questão de limites entre a Espanha e
Portugal, a expensas de seu território. Como os jesuítas não
dispusessem de forças necessárias para opor um resistência
armada, simultaneamente em duas frentes, organizaram eles no
norte uma greve completa e um extenso movimento de “ boycot”.
Quando a comissão de limites do Rio Negro quis levantar
acampamento, os índios operários do Pará, a capital da
província, entraram em greve, afim de obstar a partida da
comissão. Não se encontrou remador algum para as embarcações,
e, quando, finalmente, conseguiram recrutar alguns à forca,
verificaram que os índios, em toda a parte haviam abandonado
as suas localidades por ordem dos jesuítas, levando consigo
todas as provisões.
Em uma carta do bispo do Pará dirigida à corte de Lisboa
consta: “ A desobediência dos missionários foi a tal ponto,
que eles proibiram expressamente o plantio da fruta-pão em
todas as aldeias da margem do Tapajós. Par sua ordem os
índios não podiam vender a mínima coisa aos brancos...”
Enquanto isso os padres se esforçavam também por anular
as tropas portuguesas, procurando solapar sistematicamente a
sua disciplina. O governador geral informou nessa ocasião: “
O padre Aleixo Antônio procurou contato com alguns oficiais e
reteve-os sob o virtuoso pretexto de que tencionava instruí-
los nos exercícios de Santo Ignácio... Ele e os seus
confrades tentaram convencer os oficiais de que eu havia
abandonado a cidade sem ordem de Sua Majestade e que, por
minha alta recreação, conduzira o exército a essas florestas,
nas quais eles iriam perecer de fome. Que tudo isto eu o
fizera, porque era um capricho meu faze-lo” . Sucedeu dentro
em breve que tropas portuguesas, levando suas munições e suas
provisões, desertassem e aderissem aos jesuítas. A raiva do
comando supremo, no entretanto, atingiu o seu ponto
culminante, quando por ocasião de um ulterior avanço
chocaram-se contra uma fortificação jesuíta, a qual estava
defendida pelos índios, com canhões, sob o comando de dois
padres. Esse forte estava organizado com tanta arte, que os
portugueses alimentaram a suspeita de que os dois padres não
eram eclesiásticos e sim oficiais de engenharia disfarçados.
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