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De novo tiveram os romanos curiosos um pretexto para se
precipitar nas ruas em grandes turbas; pois, em uma manhã da
primavera do ano de l5l5 movimentava-se um cortejo fantástico
por sobre a ponte do castelo Santo Ângelo, ao longo da “ via
real” do Borgo Nuovo, em direção ao Vaticano; mulas ajaezadas
de brocado, dromedários de marcha oscilante, elefantes que
levavam sobre seus dorsos panteras enraivecidas e toda uma
cavalgata de magníficos corcéis, envoltos, das orelhas aos
garrões, em pérolas luzentes. Uma multidão de fidalgos
metidos em vestes suntuosas formava a cauda do cortejo, e,
bem no meio deles cavalgava com a sua cabeça altaneira, os
pés em estribos de ouro puro, o embaixador do rei de
Portugal. Hoje a sua missão era entregar ao Santo Padre, em
nome de seu soberano, esses tesouros e raridades do Império
Índico recém conquistado, como testemunho dos sentimentos
cristãos da corte de Lisboa.
Ainda muito tempo depois, quando os protestantes já
haviam induzido inúmeras almas à separação da Igreja
católica, quando chegavam da Alemanha, da Inglaterra e da
Suécia notícias cada vez mais contristadoras sobre a perda de
países inteiros com seus príncipes e sacerdotes, em Roma
ainda recordavam com prazer essa procissão. Podiam os herejes
luteranos ainda levar para o Inferno muitos transviados: em
compensação lá na India longínqua florescia para a Igreja
católica um novo império, muito maior do que a Europa toda
junta.
Pois desde que as naus de Vasco da Gama, com grandes
cruzes vermelhas nas velas, haviam alcançado as costas da
Índia, cada palmo que os navegantes portugueses conquistavam,
tornava-se um pedaço de novo país católico; por toda a parte,
junto com um soldado, ia aparecendo também, dentro em breve,
o sacerdote, afim de batizar os vencidos, e o solo que os
conquistadores haviam arrebatado aos indígenas era
imediatamente santificado pela ereção de igrejas.
No ano 30 do século XVI, a obra de cristianização da
Índia começada iria ser continuada com forças duplicadas. Se
até então dominicanos, franciscanos e padres seculares haviam
pregado o Evangelho nas novas regiões coloniais, em
compensação, o rei João III resolveu, agora, convencer o Papa
de que devia mandar alguns homens da Companhia de Jesus recém
em organização. O rei já por várias vezes ouvira louvar a
atividade desses padres e nutria a esperança de que eles
trabalhariam com zelo ainda maior do que os demais
eclesiásticos na propagação do cristianismo entre os pagãos.
De fato, essa decisão do rei iria iniciar uma época
inteiramente nova para a atividade missionária católica, mas
também para a Sociedade de Jesus: aquilo que os jesuítas
haviam realizado como pregadores apostólicos, faria sombra a
todos os sucessos das outras ordens missionárias, e, somente,
graças à sua atuação nas missões, foi que a Sociedade de
Jesus granjeou a sua fama universal propriamente dita.
Justamente o primeiro jesuíta que partiu para a Índia,
evidenciou-se como o missionário mais dotado e mais cheio de
êxito, que a Igreja Católica jamais produziu; e comove de
maneira tanto mais estranha a circunstância de que somente um
acaso tivesse evidenciado a vocação de Francisco Xavier para
essa tarefa. A princípio Ignácio designara a Bobadila para
essa viagem às Índias, mas esse adoeceu no último momento; um
outro discípulo da ordem deveria ocupar o seu lugar, e como
Francisco Xavier se encontrasse então em Roma, resolveu
Ignácio incumbi-lo dessa missão.
Xavier aproveitou a última noite que lhe restava para
remendar, às pressas, a sua sotaina rasgada. Já na manhã
seguinte encetou ele a viagem ; a roupa que levava no corpo,
o breviário e algumas provisões de boca constituíam todos os
seus haveres, quando partiu para Lisboa por terra, em
companhia do embaixador português. Depois de uma estadia de
um ano ali, Xavier tomou o veleiro que, contornando o cabo da
Boa Esperança, deveria levá-lo às Índias; outros longos
meses se escoaram, antes que ele pudesse ter à vista, por
fim, essa terra milagrosa, da qual deveria ser conquistado um
novo mundo “para maior glória de Deus” .
Entre as margens do anlo Mandovi, orladas de umbrosos
coqueirais, ia navegando o navio, corrente acima, até que,
por fim, foi avistada na margem direita Goa, a capital do
império índico português. Muralha de fortalezas européias,
estaleiros e arsenais, o edifício do convento dos
franciscanos, assim como as altas torres da Catedral e das
outras igrejas, permitiam reconhecer, ao primeiro olhar, que
o cristianismo já conquistara ali uma poderosa vitória sobre
os pagãos.
Cheio de surpresa contemplou Xavier, depois de seu
desembarque, a multidão variada, que rodopiava pelas ruas,
gritando e cantando, entre elefantes e vacas sagradas:
silhuetas brancas, morenas e pretas metidas em longas
vestimentas e caftans; lavradores e comerciantes, árabes,
persas e hindus de Guzerat e Ormuz; entre eles, debaixo de
guarda-sóis enormes, caminhando por ali, os conquistadores,
os fidalgos portugueses, em suntuosas vestes de tafetá, seda
e tecidos preciosos; pagens numerosos e tropas inteiras de
escravos cafres de pele negra formavam o seu séquito. Por
toda a parte, nas paredes, grandes cartazes indicavam o lugar
e a época em que se poderiam ganhar indulgências, e em que
dias do ano se realizavam as diversas festas da igreja.
O primeiro caminho tomado por Xavier levou-o à frente da
Catedral, e, somente agora, iria se manifestar a ele, em toda
a sua grandeza, o triunfo do catolicismo nesses países
remotos. Ali viu os ricos e ilustres da cidade transportados
em seus palanquins; suntuosas liteiras abriam caminho por
através do burburinho da multidão, e baixavam delas damas de
pele morena, recamadas de pedras preciosas, com os rostos
pintados, os pés metidos em sandálias de salto alto. Rápidos
se precipitavam os pagens à frente para a Catedral, e
enquanto estendiam os tapetes que haviam trazido, colocavam
as cadeiras douradas e traziam para ali os livros de orações,
encaminhavam-se as damas, seguidas pelos filhos e criadas,
solenemente, em direção aos seus lugares. Mas apareceram
também em multidões aqueles homens estranhos, os quais se
deixavam reconhecer, graça ao vestuário e à cor das peles
como nativos. Também eles traziam grossos rosários em torno
do pescoço e, quando transpunham o portal da igreja
inclinavam piedosamente a cabeça.
Orgulho e ventura inundaram o missionário, quando ele,
após uma viagem tão longa de muitas milhas, julgou encontrar
agora no país dos pagãos uma segunda capital do cristianismo.
Alegre escreveu Xavier, baseado nas primeiras impressões que
teve nesses seus giros pela cidade: “Goa se encontra
inteiramente povoado por cristãos... Devemos dar graças a
Deus nosso Senhor pelo fato do nome de Cristo estar em tão
grande florescimento neste solo distante e entre essas massas
de incréus!”
Mas esse entusiasmo iria durar pouco tempo, pois, quando
Xavier teve oportunidade de conhecer mais de perto o país, os
seus dominadores cristãos e os seus nativos, teve de
perceber, dentro em breve, que havia se deixado induzir em
erro pelas altas muralhas de fortalezas européias, pelas
catedrais e pela afluência de fiéis à frente do portal da
igreja.
Quando o Papa Alexandre VI estabelecera no Extremo
Oriente a linha de demarcação, que deveria abranger o império
colonial português, ordenara ele ao rei “de mandar para os
continentes e ilhas recém descobertas, homens dignos e
tementes a Deus” , que estivessem em condições “de instruir
os habitantes dessas regiões na fé católica e nos bons
costumes”. Mas os europeus, que se haviam encaminhado para as
Índias, eram, quase que sem exceção, aventureiros e
especuladores cúpidos, que não pensavam em outra coisa mais a
não ser em ganhar dinheiro rapidamente e de maneira
inescrupulosa.
Na verdade podia se ouvir falar, diariamente, de muitas
conversões de pagãos, mas quando se atentasse mais
detidamente nessas coisas, dever-se-ia duvidar se nesse caso,
as coisas tinham se passado em boa forma; pois os sacerdotes
portugueses batizavam, na verdade, turbas inteiras de
nativos, mas, dado que não compreendiam a língua deles,
renunciavam a todo e qualquer trabalho preparatório de
catequese. O povo, por sua vez, se sujeitava, abulicamente,
ao processo do batismo e depois, voltava a freqüentar
tranqüilamente os seus templos, afim de, ali, adorar seus
elefantes, leões, macacos e outros ídolos semelhantes.
Todavia o mais entristecedor de tudo isso deveria ser a
conduta dos funcionários coloniais portugueses; esses se
arrastavam, literalmente, diante dos ricos pagãos,
reservavam-lhes, em troca de indenizações correspondentes, as
posições de maior influência na administração e permitiam-
lhes toda a sorte de opressão sobre os nativos recém
batizados.
Por toda a parte, para onde Xavier viajasse na Índia
cristã, era sempre o mesmo quadro que se oferecia aos seus
olhos: por sobre as cabanas de junco e os casebres de madeira
das cidades indígenas erguiam-se, em toda a parte, igrejas
poderosas, palácios de governadores e postos fiscais, e,
constantemente, podiam se encontrar multidões de europeus e
hindus à frente da Catedral. Mas também os nativos, onde quer
que fosse, adoravam seus ídolos dos templos de elefantes a
macacos, e, onde quer que fosse também os funcionários
coloniais eram igualmente corruptos.
Quando Xavier pode conhecer suficientemente a atuação
dos funcionários portugueses com respeito à cristianização da
Índia, escreveu ele ao rei em Lisboa: “Se vós não ameaçardes
os vossos funcionários com rilhões, cárcere e confiscação de
bens e se não executardes, de fato, essa ameaça, então todas
as vossas ordens relativas à propagação do cristianismo na
Índia serão baldadas. É uma verdadeira tortura o ter-se de
assistir, pacientemente, a maneira por que os vossos capitães
e outras classes de funcionários maltratam os neófitos!”.
Nessas condições o missionário jesuíta, dentro em breve,
foi forçado a considerar como parte importante da sua tarefa,
primeiro que tudo, o converter ao cristianismo os cristãos
que viviam na Índia; mas na Europa já ele tivera de
testemunhar, suficientemente, o quão difícil era conquistar
cristãos para Cristo.
Não obstante já aprendera ele, ao mesmo tempo, como a
gente, muitas vezes tem de agir com “santa astúcia” , para
atingir um piedoso objetivo; por isso, logo depois de sua
chegada, tratou ele o clero já estabelecido ali com aquela
prudente submissão, que seu mestre Ignácio tinha, as mais das
vezes, posto em prática em tais casos. Muito embora levasse
consigo um breve papal, que lhe assegurava a posição de
legado e com isso o colocava por cima de todo o clero da
Índia, resolveu assim mesmo fazer a sua visita ao bispo,
humildemente, e diante dele prostrou-se de joelhos, pedindo-
lhe que o considerasse o mais modesto dos colaboradores na
obra de catequese cristã e dispusesse dele a seu bel prazer.
E, enquanto os demais sacerdotes de Goa residiam em
casas confortáveis, ele, legado do papa, fixou residência em
um modesto quartinho do hospital. Não poderia ele,
entretanto, ter encontrado um alojamento mais adequado aos
seus intentos, pois ali, desde o primeiro dia, entrou em
contato com todas as camadas de povo e teve oportunidade de
aprender a conhecer as criaturas humanas na situação em que
elas estavam, mais do que nunca, aptas para receber
assistência espiritual. Todos eles, soldados brutais,
funcionários cúpidos, supersticiosos, idólatras, orgulhosos
comerciantes e pobres escravos, mostravam-se ali no hospital
inclinados a conversar com o amável sacerdote e se deixar
consolar por ele em suas dores. Mesmo quando depois haviam
regressado já restabelecidos aos seus lares, permanecia em
seus corações, quase sempre, uma recordação das prédicas
edificantes de Xavier.
Especialmente para os escravos humilhados e maltratados
tornaram-se os piedosos diálogos mantidos com o missionário,
muitas vezes, em significação total da sua existência
ulterior. O cristianismo de que lhes falava o sacerdote
estrangeiro, soava aos seus ouvidos como uma promessa de
felicidade extraterrena, a qual lhes iria trazer uma
compensação magnífica para todas as dores sofridas na
existência terrestre. Xavier, que se aproximara deles metido
em sua roupa singela, que lhes falara com palavras brandas e
simples e se introduzira junto a eles cheio de interesse
pelos seus pequeníssimos cuidados, pareceu-lhes, dentro em
breve, como um dos seus.
Por esse motivo eles lhe prestaram também a ajuda
cabível na medida das suas forças, em seus trabalhos e
informaram-no, secretamente, do gênero de vida, dos atos,
vícios e falhas de seus senhores. Xavier teve, dessa maneira,
oportunidade de adquirir conhecimentos exatos sobre a
natureza, o caráter, os interesses e as qualidades dessas
pessoas a quem pretendia converter. Assim é que ficou
inteirado, antes ainda de transpor uma casa na qual ele tinha
que se haver com homens que viviam em poligamia com mulheres
nativas, com aqueles que praticavam agiotagem, cometiam atos
de violência, exerciam as suas funções para realizar com elas
extorsões vergonhosas, ou então entrar em contato com aqueles
que maltratavam os seus escravos.
Se, então, um ou outro, dentre eles, o hospedava em sua
casa, a impressão que se tinha sempre era de que Xavier agia
inteiramente a favor dos interesses do seu anfitrião. Se era
um comerciante, o que fazia era discutir com o mesmo,
ardorosamente, a marcha dos negócios e todas as
possibilidades de novos ganhos monetários; no lar do
onzenário desdobrava uma admirável perícia em todas as
espécies de negócios crediários e sabia efetuar os mais
complicados cálculos de juros ; mas se o seu hóspede era um
marinheiro, então entretinha-se com ele a respeito de
questões náuticas e astronômicas, de sorte que o anfitrião se
confiava imediatamente a ele. Os oficiais, por sua vez,
admiravam-se da maneira por que esse padre simples discorria
sobre problemas militares e das questões técnicas que ele
sabia formular. Interessados e presos à sua sedução
escutavam-no todos, e a cada instante recebia novos convites.
Mas não se esquecia, também, nem mesmo da criadagem:
louvava a criada que trazia a comida, depois da refeição
pedia licença para conversar com a cozinheira e entretinha-se
com ela a respeito de receitas culinárias, e quando o criado,
à hora da partida, o conduzia a porta, informava-se ele cheio
de interesse dos seus embaraços pessoais, desejos e queixas.
Somente depois de um longo tempo, quando senhores e
criados já o tinham bem fechado no coração, chegou ele,
cautelosamente e sem precipitação, falando-lhes então de
maneira alegre acerca de suas verdadeiras intenções. Ao
onzenário, procurava então convencê-lo de que havia outros
negócios também que eram, ao mesmo tempo, menos censuráveis e
mais rendosos; ao explorador sem entranhas explicava ele como
os escravos trabalhavam melhor e mais espontaneamente, quando
a gente não os tratava de maneira tão desumana;
cautelosamente, ia expondo as desvantagens da poligamia,
traçando, ao mesmo tempo, um quadro ameno das delícias de um
matrimônio organizado moralmente. Assim estabeleceu ele a sua
obra de catequese, ficando fiel aos ensinamentos de seu pai
Ignácio, de que tudo era para todos, afim de a todos
conquistar.
Também não recuou diante do fato de ir ter às espeluncas
de marujos, mais mal afamadas. Muitas vezes sucedia que os
farristas quisessem terminar o seu jogo, por respeito ao
sacerdote; mas ele os incitava, amavelmente, a que não se
incomodassem, pois, soldados e marinheiros não são obrigados
a viver como os monges; ele mesmo se sentava junto aos
jogadores e beberrões, seguindo com interesse, os seus
divertimentos.
Aquilo que um sectário rigorista nunca iria conseguir
junto a essa gente rude, alcançou-o o jovial conanheiro de
farras sem nenhum trabalho: eles se habituaram de tal maneira
a comunicar-lhe seus cuidados e suas esperanças, que, dentro
em breve, já estavam também se confessando a ele,
espontaneamente.
Durante uma viagem marítima de Goa para a Índia
Meridional ouviu ele contar de um marinheiro que perdera
todos os seus haveres ao jogo: foi encontrar o mesmo
vomitando blasfêmias e maldições de todo o tamanho. Xavier
aproximou-se dele, ofereceu-lhe algumas moedas de ouro e
instigou-o a que fosse tentar a sorte mais uma vez com esse
dinheiro. De fato o marujo conseguiu ganhar dessa vez, e
Xavier não se privou de aproveitar a alegre disposição de
ânimo do jogador, para fazer-lhe uma prédica edificante, de
maneira absolutamente idêntica à de Ignácio outrora, o qual
enregara uma partida de bilhar para forçar um estudante à
prática dos EXERCÍCIOS.
Nas instruções que Xavier, mais tarde, legou ao seu
auxiliar e sucessor Barzeus, descreve ele mesmo o método que
costumava aplicar na Índia. Concita a Barzeus a tratar
qualquer pessoa com habilidade e com presença de espírito e,
assim, conquistar o prestígio necessário em todas as classes
e camadas sociais: “Se os argentários percebem que a gente é
tão experimentada nas causas da vida diária, como eles
mesmos, então sentem admiração e confiança; de outra maneira
as advertências do sacerdote só serão ridicularizadas.”
“Esforce-se, desde o primeiro dia,” continua Xavier,
“por saber que espécie de negócios são praticados nos
diferentes lugares, quais os usos e costumes adaptados na
região e arredores... Informe-se também dos pecados em que o
povo vive, e de como a prédica e a confissão deverão ser
postas em prática... Assegure-se, depois, dos casos
judiciários mais freqüentes, dos embustes, perjúrios e
corrupções...”
“Fale com os pecadores a respeito de suas faltas a sós;
e faça-o sempre com semblante risonho, sem violência, em tom
amigável e carinhoso. De acordo com a personalidade, abrace
um ou se humilhe diante de outro... Se quiser colher bons
frutos em sua alma e na alma do próximo, então trate sempre
os pecadores de maneira que eles lhe abram o coração e
depositem confiança em você; Esses são os livros vivos, mais
eloqüentes do que todos os livros mortos, e nos quais você
deverá estudar...”
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