A UTOPIA NA FLORESTA VIRGEM

Em breve, porém, surgiu a alvorada de uma época melhor para os mercadores de escravos da América do Sul, pois, agora, após as inesperadas dificuldades de retificação de fronteiras, as suas queixas contra os facinorosos padres, os quais lhes haviam estragado o negócio durante cento e cinqüenta anos, iriam encontrar ouvidos conlacentes. Agora, por fim, também os senhores de Madri e Lisboa deveriam ficar inteirados do perigo que “ os direitos humanos dos índios” representavam para a toda a política colonial! Nessa época foram, então, levantadas as acusações mais graves contra os jesuítas: os inostos que os padres arrecadavam, constava aí, não estavam em proporção com a renda enorme do país, obtida com o comércio. Os padres, por sua alta recreação, haviam firmado tratados formais com as tribos Índias vizinhas, eles tinham até mesmo instigado os seus súditos a recusar obediência às autoridades espanholas e portuguesas, sim, havia no Paraguay até um rei jesuíta próprio, chamado Nicolao, o qual mandara cunhar moedas com a sua efígie.

Se tudo isso ainda não bastasse para induzir as autoridades européias a uma intervenção enérgica, então os inimigos dos jesuítas saberiam trazer à colação ainda um outro argumento, que não podia deixar de causar o seu efeito. Os padres, constava agora, haviam descoberto no Paraguay minas de ouro, cuja existência eles mantinham em absoluto segredo.

Chegou mesmo a aparecer diante do governador de Buenos Aires um índio munido de uma carta geográfica, na qual estavam assinaladas estas minas de ouro; também as obras de fortificação destinadas à defesa d esse tesouro e que haviam sido construídas pelos jesuíta.-, podiam ser clara e perfeitamente vistas na planta. O governador pôs a caminho, imediatamente, afim de examinar o assunto no próprio local, e se não descobriu o menor traço sequer das minas de ouro, apesar d isso ninguém mais, d aí por diante, alimentou dúvidas sobre a existência de tesouros imensuráveis. Essa crença firme produziu um efeito que, de outra maneira, só a muito custo teria sido alcançado; todos os funcionários do império mundial espanhol, a partir do ministro até o último servente,, estavam agora animados somente pelo pensamento apaixonado de se apoderar d esse ouro.

A hostilidade geral que, nesse meio tempo, surgira também nas cortes, nos conventos, nos quartos das damas e nos gabinetes dos sábios da Europa, contra a Sociedade de Jesus, veio, naturalmente, ao encontro da decisão, e isso em anla medida, de se destruir a republica jesuíta. No ano de 1759 a Ordem foi expulsa de Portugal, em 17ó6 o mesmo aconteceu na Espanha, e agora o ministro presidente espanhol Aranda tomou as necessárias deliberações para por um fim ao domínio jesuítico no Paraguay.

Alguns comissários foram enviados às reduções, e onde quer que esses funcionários chegassem, farejavam eles em todos os colégios, em todas as gavetas, em busca das fabulosas riquezas dos jesuítas ; mas aí houve apenas cruéis decepções

“ O primeiro negócio” , informa o padre Floriano Baucke, acerca do seu encontro com esses comissários, “ foi a tomada da minha pequena propriedade. Até mesmo os mais insignificantes objetos de uso doméstico foram registados, o comprimento, a largura da mesa e a madeira de que era feita, e assim por diante. Depois que todas as caixas e caixões haviam sido examinadas perguntaram pelo dinheiro. Eu lhes expliquei que a redução não possuía dinheiro algum, porque nós tínhamos sempre suprido as nossas necessidades mediante o processo de troca direta...”

“ Quando os jesuítas de Santa Fé foram presos,” escreve também Alexandre de Humboldt, “ não se encontraram com eles, absolutamente, os tais montões de piastras, as esmeraldas de Muzo, as barras de ouro de Choco que, segundo os adversários da Companhia, os jesuítas possuíam. Tirou-se, d aí, a falsa conclusão de que os tesouros haviam existido de fato, mas tinham sido confiados a índios fiéis e ocultos nas cataratas do Orinoco até o novo restabelecimento da Ordem.” Desiludidos na sua sede de presa, os espan4jis e portugueses trataram os padres prisioneiros da maneira mais brutal possível, conservaram-nos, primeiro, como criminosos em prisão rigorosa e transportaram-nos para a Europa nos porões dos seus navios de guerra. As igrejas, escolas e oficinas dos jesuítas foram ou destruídos ou entregues à ruína. Um escritor protestante informa sobre o destino das bibliotecas organizadas pelos jesuítas no Paraguai: “ Aconteceu a essas magnificas coleções a mesma coisa que à famosa biblioteca de Alexandria. Nenhum Omar, nenhum selvagem do Gran-Chaco destruiu as mesmas, mas foram cristãos que fizeram isso, parentes espirituais d aquele Teodosio, que mandou destruir a biblioteca de Alexandria. De uma grande parte das obras jesuíticas elas fizeram cartucheiras ou as utilizaram para assar biscoitos, ou à guisa de lanternas, e a mim me aconteceu coisa igual à que aconteceu ao historiador Orosius, o qual o que conseguiu ver em Alexandria foi somente os armários vazios da sua biblioteca.” Nas reduções, de agora em diante tornadas acéfalas, foram colocadas autoridades civis, as quais se esforçaram antes de tudo por se apropriar dos ornamentos das igrejas, das provisões guardadas nos celeiros e do gado. Dada, porém, que agora não se cantava mais nas reduções e nem se fazia mais musica, muitos índios procuraram_ se furtar ao novo regime, valendo-se da fuga e desapareceram, de novo, sem deixar traço nas florestas virgens, das quais outrora haviam sido atraídos pelos padres. “ Se se considera” , escreve Josef de Maistre,” que essa ordem, a qual atuou no espirito da religião cristã, apoiou o seu predomínio no Paraguay única e exclusivamente no poder de suas virtudes e do seu talento; que os jesuítas deram a conhecer aos selvagens da América o encanto da musica se, finalmente, se considera que em nossa época somente a colaboração de ministros infames e de tribunais judiciários acometidos de delírio foi que conseguiu aniquilar essa magnifica Sociedade, então é-se levado a crer que se tinha à frente aquele louco, o qual, radiante de alegria, sapateava sobre um relógio exclamando além d isso : “ eu vou te inedir de fazer mais barulho!” Montesquieu, por sua vez, manifesta no seu “ Espirito das Leis” : “ E’ uma glória para a Sociedade de Jesus que ela tivesse mostrado ao mundo, pela primeira vez, ser possível uma ligação de religião e humanidade” . Também os “ enciclopedistas” , os inimigos encarniçados da Ordem jesuíta, tiveram de reconhecer que naquele original Estado das florestas virgens brasileiras esteve prestes a ser realizada uma elevada idéia moral. “Por meio da religião” , observa D'Alembert, “os jesuítas conseguiram no Paraguay uma autoridade monárquica, apoiados exclusivamente na arte de convicção e no seu brando sistema de governo. Soberanos d esse país, tornaram eles felizes os povos que lhes obedeciam; lograram submete-los sem jamais enregar a violência.” Por fim Voltaire designa as missões dos jesuítas como “um triunfo da humanidade” . Na verdade, não faltaram também, desde o século XVIII até os nossos dias, vozes que tentaram amesquinhar o valor do que foi conseguido no Paraguay e procuraram por em dúvida as puras intenções dos padres, Não se pode suportar, assim simplesmente, que um Estado ideal nessas condições pudesse ter existido realmente, e ser, além d isso, obra dos odiados jesuítas. Os críticos que, baseados nas suas pesquisas, se sentiram obrigados a admitir a realidade do Estado índio do Paraguay e das suas instituições, tentaram, pelo menos, roubar aos jesuítas a originalidade e demonstrar que a criação d elas não havia sido outra coisa mais do que um decalque de certa novela politico-romantica escrita no século XVII. Se se compara a republica jesuíta, por exemplo, com a ilha “ Utopia” inventada pelo chanceler inglês More, então, se encontram de fato coincidências dignas de nota: Utopia consiste, da mesma maneira que o Paraguai, em um certo número de cidades colocadas a intervalos regulares e iguais umas às outras, das quais cada qual constitui o centro de uma zona agrícola de determinada grandeza. Os moradores não são proprietários e sim arrendatários do solo, o qual pertence à coletividade. Cada cidadão é obrigado a prestar uma certa quantidade de trabalhos agrícolas e, além d isso, lhe está destinado um certo ofício. Os homens praticam a tecelagem, fazem trabalhos de pedreiro e de poteiros, obras em madeira e em metal, ao passo que as mulheres se ocupam principalmente com a fiação. Coincidências igualmente frisantes verificaram entre as instituições das reduções jesuítas e as da “ Cidade do Sol” , imaginada pelo frade dominicano Cananela. Essa “ Cidade do Sol” é uma republica com um sacerdote à frente e na qual a vida social se apoia no comunismo absoluto e na regulação oficial da divisão dos produtos. Tudo é propriedade comum, e os cidadãos todos são obrigados a trabalhar, sendo que, na verdade, cabem às mulheres as atividades mais suaves. Dentre as artes é dedicado um especial cuidado à musica e quando os “ solarianos” fazem à divindade o seu sacrifício eucarístico, isso acontece em forma musical. Seria, no entretanto, fácil descobrir paralelos idênticos em todas as outras utopias comunistas; pois todas foram sempre fantasias de um Estado ideal sem classe oriundo do antiquíssimo sonho do “paraíso perdido”, sonho esse comum a toda a humanidade civilizada. Essa reflexão nos aproxima também mais da compreensão do motivo por que justamente os jesuítas no Paraguay lograram realizar essa utopia. Muito longe de quererem construir o seu Estado de acordo com qualquer teoria preconcebida, os padres, muito ao contrário, fizeram, simplesmente, da inocência paradisíaca dos seus índios o fundamento de toda a organização econômica e política das reduções.

Quando no século XX um grupo de visionários sábios fez de novo a tentativa de realizar o comunismo, já eles tiveram de defrontar uma tarefa infinitamente difícil. Pois os russos podiam bem estar retardados em muito do resto da Europa, no que diz respeito à civilização; entretanto eles eram bastante europeus, para que fossem se diferençar d eles por formas variadíssimas do talento e do vício, das inclinações e das paixões; eles haviam de ha muito perdido aquela santa simplicidade, aquela individualidade e carência de necessidade, que no Paraguay facilitara a realização do Estado ideal sem classes. Por isso o bolchevismo, a despeito de numerosas vítimas cruentas, até a presente data só conseguiu alcançar o seu objetivo de maneira sumamente incompleta; os jesuítas, no Paraguay, em compensação, não tiveram de fazer outra coisa senão adaptar as suas medidas aos instintos e necessidades dos seus índios selvagens das florestas, e logo nascera entre suas mãos automaticamente o “ Estado ideal”.