CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO. DA MORTE E SEPULTURA DO PADRE JOSÉ

DOENÇAS DO PADRE JOSÉ

As doença e indisposições do Padre José foram muitas e quase contínuas, por todo o tempo em viveu no Brasil, que foram quarenta e quatro anos, nas quais sempre mostrou muita paciência, ânimo e exemplo. Tiveram elas princípio daquela grande que teve em Coimbra, que se lhe gerou, do que direi.

Servia na sacristia, e tinha por ocupação ajudar cada dia a oito ou mais missas, de joelhos, do qual trabalho, como noviço, se não sabia escusar, e pela devoção e gosto espiritual que sentia, não imaginava poder-lhe dali vir dano algum. Todavia daqui se lhe veio a gerar uma dor em uma ilharga, que muito o atormentava, mas não deixava de ir por diante em sua em sua santa ocupação.

E quando lhe vinha a dor, não fazia mais que, torcendo-se acudir ao lugar em que a sentia, e com a mão no ourelo (a palavra aqui tem o sentido de “cinta” ou “cintura”) apertar-se rijamente, o que fez tantas vezes, e com tanta força, que veio a abalar os ossos do espinhaço; e assim apareceu aquele jeito nele, sem nunca mais tornarem a seu lugar. Uma das coisas que mais realçava suas virtudes, oração e mais exercícios espirituais, e o zelo da salvação das almas, é que nunca suas doenças e indisposições foram causa de se negar a nenhuma empresa desta qualidade, ainda que muito trabalhosa, nem o acovardaram para deixar de fazer com muita perfeição, as obras que pedem muita atenção no interior, e no exterior devota composição.

Louvor semelhante àquele que os escritores de vidas de santos dão ao Papa São Gregório, e a São Jerônimo, e a outros grandes servos de Deus em todas as idades, que lutando quase de contínuo com as enfermidades, não afrouxaram em suas santas ocupações.

DE SUA MORTE GLORIOSA - IDADE DO PADRE

Ajuntaram-se à sua pouca saúde outras doenças, causadas de novo de frios, fomes, cansaço, e outras incomodidades corporais, das quais por irem em crescimento com a idade, entendeu serem já poucos seus dias.

Estava neste tempo, na casa do Espírito Santo; recolheu-se para uma aldeia dos índios, quatorze léguas da vila onde nossos padres residem doutrinando a gente da terra, do orago de Nossa Senhora, de quem era devotissimo (aldeia de Roritiba, hoje cidade de Anchieta, ES. Orago, N.S. da Assunção). Parece que quis receber da mão de Deus a morte entre os índios, em cuja conversão, com muitos trabalhos, tinha recebido da mão do mesmo Senhor muita perfeição. Adoeceu e durou a enfermidade obra de seis meses, fazendo várias mostras de mais, ou menos saúde.

Veio-se à vila por ordem do Superior Sacramento da Eucaristia por Viático, e depois o da Santa Unção, e ao mesmo dia entrou no artigo da morte, estando presente cinco padres nossos que residiam nas aldeias.

Esteve agonizando obra de meia hora, com tanta quietação e paz, como se estivera em oração, e com os olhos agradecia as lembranças que lhe faziam. E assim deu seu espírito a Deus, em nove de junho de mil quinhentos e noventa e sete anos, dos quais viveu na Companhia quarenta e sete, e dezessete de que entrou nela, são sessenta e quatro, que foram os que viveu neste mundo, (colocando o nascimento de Anchieta no ano de 1533, como faz Pero Rodrigues, seriam exatamente 64 os seus anos de vida. Sabe-se todavia, que seu nascimento se deu no ano de 1534) três em Portugal e quarenta e quatro no Brasil.

Sabida a morte do bom Padre José, houve muitas lágrimas e geral sentimento nos padres, nos portugueses e índios de toda a Capitania, porque todos o tinham por pai, e sabiam quanto o haviam de achar menos em suas necessidades. Foi amortalhado sem cal nem outro defensivo para a corrupção e mau cheiro, e, metido em um caixão, o trouxeram os índios às costas, e o padre João Fernandes o acompanhou a pé aquelas catorze léguas, e no cabo da jornada disseram os índios que, em lugar de cansaço, sentiram muito alívio e consolação, e o mesmo afirma de si o padre em seu testemunho. Os índios todos da própria aldeia vinham por essas praias pranteando-o, e seguindo os que o traziam, porque a todos tinha merecido muitas mostras de amor. Chegado o corpo ao porto da Vila do Espírito Santo, acudiu logo o Capitão Miguel de Azeredo, o Administrador Bartolomeu Simões Pereira, com toda a clerezia, os religiosos de São Francisco, que ali têm casa, o provedor da Santa Misericórdia com a Irmandade, bandeira e tumba, ricamente ornada, as confrarias com sua cera, e toda a gente da vila. Trouxeram-no da praia o provedor e Irmãos da Misericórdia na sua tumba, até à porta da nossa Igreja, onde os nossos padres o tomaram e levaram ao lugar da sepultura. O Administrador com os clérigos e religiosos, lhe fizeram o ofício de nove lições , com toda a solenidade e música possível, e ao outro dia lhe cantaram a missa, e o mesmo Administrador lhe pregou as exéquias, referindo alguns milagres que Deus por ele obrara, e chamando-lhe apóstolo do Brasil, com outras coisas de muito louvor de Deus, e honra do defunto. Houve grandíssimo abalo de lágrimas, assim no acompanhamento da praia, como no sermão, porque de todos era muito amado e reverenciado. E muitas pessoas houve que pela opinião que tinham da santidade do padre, em lugar de o encomendarem a Deus, se encomendavam a ele, que os favorecesse com este Senhor.

DUAS PROFECIAS

Para Deus Nosso Senhor honrar mais a seu servo ordenou que, neste enterramento, sucedessem coisas por onde se cumprissem duas profecias, que o padre muito antes que falecesse tinha dito haviam de acontecer depois de ele morto. A primeira é esta: João Soares, morador da Vila de São Paulo, amigo antigo do Padre José, acertou de se achar nesta Capitania na doença do padre; foi-o visitar, e o padre, entre outras, lhe disse estas palavras: “filho, ficai-vos embora, que já nós não nos veremos senão no outro mundo; mas vós neste me tornareis a ver, mas será de maneira que eu vos não possa falar”.

Daí a algum tempo trouxeram o corpo do padre à vila, achou-se João Soares na praia com mais gente e, querendo os irmãos da Misericórdia levantar o caixão para darem princípio à procissão, acudiu ele, pedindo ao Administrador lhe deixasse ver o morto, que tão boa doutrina lhe tinha dado em vida. Consentiu o Administrador, abriu-se o caixão, chegou-se a ele João Soares com outros homens, viram o corpo e deram fé que não tinha nenhum mau cheiro, com haver três dias que era falecido, e trazendo-o com tanto abalo caminho de quatorze léguas, com que se cumpriu o que o padre dissera a João Soares. E ele o depôs assim em seu testemunho.

A segunda foi deste modo: muitos anos antes, sendo provincial, estando no Colégio da Bahia, avisou ao Padre Gregório Serrão que havia de ir para o Rio de Janeiro. Disse o padre (por andar doente):

“Sabe Vossa Reverência como eu ando?”

Respondeu o Padre José:

“Sim, sei”.

“Contudo isso me manda?”

Respondeu:

"Sim".

Acrescentou o padre:

"Bota-me de si?"

Acudiu o Padre José:

"Isto não. Vade, frater, quia postea locus nos conjunget".

E assim aconteceu, que o Padre Gregório Serrão, faleceu na casa do Espírito Santo, e está enterrado na capela de São Tiago e o Padre José foi sepultado na mesma capela junto dele, cova com cova. Por tudo seja Deus glorificado em seus Santos, amém.