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Não me parece que satisfaço a quem ler este tratado, com dizer em algumas partes dele, que
os padres da Companhia ensinam aos índios a doutrina, sem declarar juntamente o trabalho e
ocupações que com eles tomam, por amor de Deus, e o fruto que dali se colhe, assim no que toca
ao conhecimento de nossa santa fé, como ao melhoramento de seus costumes.
E não trato como algumas vezes os vão buscar ao sertão, com cópia de índios das aldeias, daí
mais de cem léguas, e ainda mais de duzentas, com imenso trabalho de fomes, sedes, calmas,
frios, asperezas do caminho, e perigo de os saltearem, ou de lhes resistirem aqueles que vão
buscar, por não conhecer o bem que lhes vão oferecer, com outros muitos descontos e
incomodidades.
Mas, depois de trazidos e agasalhados em suas casas, o modo ordinário de os conservar e
ensinar é o seguinte:
ROSÁRIO DO NOME DE JESUS
Todos os dias, em amanhecendo, se tange às Ave Marias de pela manhã e daí a pouco à
missa, que acabada se lhes ensina a doutrina na sua língua. E depois vai cada um a seu serviço;
em algumas partes, como as aldeias da Capitania do espírito Santo, entre as Ave Marias e a missa,
se ajuntam os meninos e meninas na Igreja ou à porta de fora, e repartidos em coros cantam em
alta voz pelo português, o rosário do benditíssimo nome de Jesus, desta maneira.
Entoam os meninos:
“Bento e louvado seja o Santíssimo Nome de Jesus”.
E respondem as meninas:
“E da Santíssima Virgem Maria, Madre sua, para sempre, Amém”.
E no cabo das dez, dizem:
“Glória Patri”etc.
Desta maneira entoam os meninos e prosseguem até cinqüenta, que parece àquele tempo uma
alvorada de anjos.
A doutrina que a todos se ensina são as orações e parte do Diálogo que contém a declaração
dos artigos da fé, e após isto se recolhem os meninos para a escola, cada um à sua estância, uns a
ler, outros a cantar cantochão e canto de órgão, e outros a tanger flautas e charamelas, para
oficiarem as missas em dias de festa, e solenizarem as procissões na aldeia e na cidade, e em
outros atos públicos, como quando se examinam na sala dos estudantes do curso para bacharéis e
licenciados, e quando tomam os graus.
Às cinco horas da tarde se torna a tanger o sino à doutrina, a que acode a gente que se acha
pela aldeia, e se lhes ensina a doutrina com a outra parte do Diálogo, que contém a declaração dos
sacramentos. Finalmente à boca da noite saem os meninos em procissão, da porta da Igreja até à
cruz, cantando algumas orações e encomendando as almas do fogo do purgatório.
ADMINISTRAÇÃO DOS SACRAMENTOS – EUCARISTIA –
DISCIPLINA DAS ENDOENÇAS
Além deste trabalho e ocupação de cada dia, têm os padres outras, a seus tempos, de não
menos importância, como são: batizar as crianças, catequizar os adultos para batismo, e instruí-los
para receberem o sacramento do matrimônio; procurar sua liberdade; curá-los em suas doenças;
administrar-lhes o sacramento da Santa Unção, enterrar os defuntos com tumba e a modo cristãos.
E sobretudo – o que dá maior matéria de admiração e amor de Deus – escolhem os padres
alguns de melhor vida e mais capacidade, e com práticas espirituais, pouco a pouco os vão
dispondo para receberem dignamente o santíssimo sacramento da Eucaristia, assim homens como
mulheres, o que eles além da obrigação da Páscoa, continuam algumas festas do ano, quando o
confessor julga que convém.
À véspera do dia em que hão de comungar, está a aldeia mui quieta, tratando cada um consigo
de se aparelhar para a confissão. E no dia recebem o Senhor devotamente, e o restante dele
gastam em virem visitar a Igreja muitas vezes, rezando de joelhos um pouco, e outro pouco
assentados, sem tratarem aquele dia de outro negócio algum.
São mui devotos da paixão de Cristo Nosso Senhor, em memória da qual não perdem
disciplina, que todas as sextas-feiras da quaresma tomam. Na Igreja, depois da prática que a este
fim lhes faz o padre, e principalmente na procissão das endoenças, se disciplinam cruamente, com
muita edificação dos portugueses. E até as crianças seus filhos, com os rostinhos cobertos, vão
arremedando os pais.
Tão poderosa é a graça de Deus, e tão eficaz sua palavra, que faz de bárbaros devotos
cristãos, e de pedras filhos de Abraão, e dá a seus servos paciência e perseverança, para
continuarem com alegria estes trabalhos, e deles tira o fruto tão suave.
Suavíssimo fruto é a glória de Deus, que sempre daqui se colhe o merecimento dos obreiros
desta vinha, a salvação de muitas almas que não tinham outro remédio, o proveito temporal dos
portugueses, a mudança dos costumes desta gente bárbara.
Têm neles os portugueses fiéis e esforçados companheiros na guerra, cuja flecha muitas vezes
experimentaram os estrangeiros, que cometeram de entrar com mão armada algumas vilas deste
Estado, e confessaram que mais temiam a flecha destes que o nosso arcabuz. Também têm neles
um grande freio contra os negros de Guiné, de cuja multidão é para temer não ponham alguma
hora em aperto algumas Capitanias da costa do Brasil. Servem mais aos moradores em suas
fazendas; e para isso se põem com eles por soldada, por certos meses, por seu estipêndio,
conforme ao regimento de S. M.
VESTIDO DE QUE USAM
Vivem os índios por sua lavoura de mantimentos que plantam e semeiam, de caça, de pescaria
e criações.
As mulheres, quando hão de ir à Igreja, ou hão de aparecer diante de gente, vestem-se mui
decentemente, convém a saber, com uma camisa ou hábito muito bem feito, cerrado, largo e
comprido até o chão; os cabelos que são compridos enastrados com suas fitas, e nas mãos suas
contas de rezar. Os homens andam com o vestido que podem, mas na Igreja e pelas festas muitos
deles se tratam à portuguesa, como soldados bem pagos, seus chapéus forrados de seda, sapatos,
meias e mangas de cores, e vestidos de pano do Reino, que ganham por sua soldada.
Esta é a vida dos índios do Brasil, depois de alumiados com a luz do Evangelho e cultivados
com os contínuos trabalhos dos padres da Companhia. Este é o fruto que destes trabalhos se
recolhe nos celeiros da Igreja, de mais de cinqüenta anos a esta parte.
E assim parece que basta o dito nesta relação, porque tão impertinente trabalho seria querer
escrever a cegueira e bárbaros costumes, em que eles e seus maiores tantos mil anos
continuaram, quão escusado seria trazermos nós à memória a idolatria e outros desatinos, em que
nossos antepassados na Europa viveram tantas centenas de anos, antes que a verdadeira luz do
céu lhes amanhecesse.
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