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De sorte que ao fim de algum tempo a população constituída dos mais
díspares elementos, do crente fervoroso abdicando de si todas as
comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto, que lá
chegava de clavinote ao ombro em busca de novo campo de façanhas, se
fez a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta,
crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas,
pela só justaposição mecânica de levas sucessivas, à maneira de um
polipeiro humano. É natural que absorvesse, intactas, todas as
tendências do homem extraordinário do qual a aparência protéica —
de santo exilado na terra, de fetiche de carne e osso e de bonzo
claudicante — estava adrede talhada para reviver os estigmas
degenerativos de três raças. Aceitando, às cegas, tudo quanto lhe
ensinara aquele; imersa de todo no sonho religioso; vivendo sob a
preocupação doentia de outra vida, resumia o mundo na linha de
serranias que a cingiam. Não cogitava de instituições garantidoras
de um destino na terra.
Eram-lhes inúteis. Canudos era o cosmos.
E este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala
terminal, de onde decampariam sem demora; o último pouso na travessia
de um deserto — a Terra. Os jagunços errantes ali armavam pela
derradeira vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus...
Nada queriam desta vida. Por isto a propriedade tornou-se-lhes uma
forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos: apropriação
pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da
terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das
culturas, cujos donos recebiam exígua quota parte, revertendo o resto
para a companhia. Os recém-vindos entregavam ao Conselheiro noventa
e nove por cento do que traziam, incluindo os santos destinados ao
santuário comum. Reputavam-se felizes com a migalha restante.
Bastava-lhes de sobra. O profeta ensinara-lhes a temer o pecado
mortal do bem-estar mais breve. Voluntários da miséria e da dor,
eram venturosos na medida das provações sofridas. Viam-se bem,
vendo-se em andrajos. Este desprendimento levado às últimas
conseqüências, chegava a despi-los das belas qualidades morais,
longamente apuradas na existência patriarcal dos sertões. Para
Antônio Conselheiro — e neste ponto ele ainda copia velhos modelos
históricos — a virtude era como que o reflexo superior da vaidade.
Uma quase impiedade. A tentativa de enobrecer a existência na terra
implicava de certo modo a indiferença pela felicidade sobrenatural
iminente, o olvido do além maravilhoso anelado.
O seu senso moral deprimido só compreendia a posse deste pelo
contraste das agruras suportadas. De todas as páginas de catecismos
que soletrara ficara-lhe preceito único:
Bem-aventurados os que sofrem...
A extrema dor era a extrema-unção. O sofrimento duro a
absolvição plenária; a teriaga infalível para a peçonha dos
maiores vícios.
Que os homens se desmandassem ou agissem virtuosamente — era questão
somenos. Consentia de boa feição que errassem, mas que todas as
impurezas, todas as escorralhas de uma vida infame, saíssem,
afinal, gota a gota, nas lágrimas vertidas.
Ao saber de caso escandaloso em que a lubricidade de um devasso
maculara incauta donzela teve, certa vez, uma frase ferozmente
cínica, que os sertanejos repetiam depois sem lhe aquilatarem a
torpeza:
“Seguiu o destino de todas: passou por baixo da árvore do bem e do
mal!”
Não é para admirar que se esboçasse logo, em Canudos, a
promiscuidade de um hetairismo infrene. Os filhos espúrios não
tinham à fronte o labéu indelével da origem, a situação infamante
dos bänklings entre os germanos. Eram legião.
Porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre. Nos
conselhos diários não cogitava da vida conjugal, traçando normas aos
casais ingênuos. E era lógico. Contados os últimos dias do
mundo, fora malbaratá- los agitando preceitos vãos, quando o
cataclismo iminente viria, em breve, apagar para sempre as uniões
mais íntimas, dispersar os lares e confundir no mesmo vórtice todas
as virtudes e todas as abominações. O que urgia era antecipá-lo
pelas provações e pelo martírio. Pregava, então, os jejuns
prolongados, as agonias da fome, a lenta exaustão da vida. Dava o
exemplo fazendo constar, pelos fiéis mais íntimos, que atravessava
os dias alimentando-se com um pires de farinha. Conta-se que em
certo dia foi visitado por um crente abastado das cercanias. Repartiu
com ele a refeição escassa; e este — milagre que abalou o arraial
inteiro! — saiu do banquete minúsculo repleto, empanzinado, como se
volvesse de festim soberbo.
Esse regime severo tinha efeito duplo: tornava, pela própria
debilidade, mais vibrátil a inervação enferma dos crentes e
preparava-os para as aperturas dos assédios, talvez previstos.
Era, talvez, intenção recôndita de Antônio Conselheiro. Nem
de outro modo se compreende que permitisse assistissem no arraial
indivíduos cuja índole se contrapunha à sua placabilidade humilde.
Canudos era o homizio de famigerados facínoras. Ali chegavam, de
permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros
heróis da faca e da garrucha. E estes foram logo os mais quistos
daquele homem singular, os seus ajudantes-de-ordens prediletos,
garantindo-lhe a autoridade inviolável. Eram, por um contraste
natural, os seus melhores discípulos. A seita esdrúxula — caso de
simbiose moral em que o belo ideal cristão surgia monstruoso dentre
aberrações fetichistas — tinha os seus naturais representantes nos
batistas truculentos, capazes de carregar os bacamartes homicidas com
as contas dos rosários...
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