NOVA ESTRADA

Mas a expedição por ali enveredava na quadra mais imprópria. E tinha que caminhar, de arranco, sob temperatura altíssima que esgotava os soldados e não os insolava mercê da secura extrema dos ares, até ao ponto prefixado, onde a existência de uma cacimba facultaria a alta.

A travessia foi penosamente feita. O terreno inconsistente e móvel fugia sob os passos aos caminhantes; remorava a tração das carretas absorvendo as rodas até ao meio dos raios; opunha, salteadamente, flexíveis barreiras de espinheirais, que era forçoso destramar a facão; e reduplicava, no reverberar intenso das areias, a adustão da canícula. De sorte que ao chegar, à tarde, à Serra Branca, a tropa estava exausta. Exausta e sequiosa. Caminhara oito horas sem parar, em pleno ardor do Sol bravio do verão.

Mas para a sede inaturável que resulta da quase completa depleção das veias esgotadas pelo suor, encontraram- se, ali, na profundura de uma cava, alguns litros d’água.

Fora previsto o transe, como vimos. Procurou-se cravar o tubo da bomba artesiana. A operação, porém, e os seus efeitos que eram impacientemente aguardados, resultou inútil. Era inexeqüível. Ao invés de um bate-estacas que facilitasse a penetração da sonda, haviam conduzido aparelho de função inteiramente oposta, um macaco de levantar pesos.

Ante o singularíssimo contratempo, só havia alvitrar-se a partida imediata, malgrado a distância percorrida, para o sítio do Rosário, seis léguas mais longe.

A tropa combalida abalou à tarde.

A noite colheu-a na marcha, feita ao brilho das estrelas, varando pelas veredas rendilhadas de espinhos... Calcula-se o que foi essa jornada de oito ou dez léguas, sem folga. Mil e tantos homens penetrando, quase em cambaleios, torturados de sede, acurvados sob as armas, em pleno território inimigo. O tropear soturno das fileiras, o estrépido dos reparos e carretas, os tinidos das armas, esbatiam-se na calada do ermo e naquela assonância ilhada no silêncio se afogavam imperceptíveis estalidos nas macegas.

Ladeavam a tropa — em rastejamentos à ourela dos desvios, — os espias dos jagunços.

Ninguém cuidava neles. Abatidos de um dia inteiro de viagem os expedicionários, deslembrados da luta, iam sob o anelo exclusivo do pouso apetecido, seguiam imprudentemente, de todo entregues ao tino e lealdade dos guias.

Mas afinal pararam, em plena estrada: alguns estropiados perdiam-se distanciados à retaguarda e os mais robustos mesmo a custo caminhavam. Foi uma alta breve, ilusório descanso: praças caídas ao longo dos caminhos, oficiais dormindo, os que dormiam, com as rédeas dos cavalos enleadas aos punhos. E reatada a marcha, na antemanhã seguinte, reconheceram que estavam na zona perigosa. Cinzas de fogueiras a cada passo encontradas e algumas ainda mornas; restos de repasto em que eram preexcelente vitualha jabutis assados e quartos de cabrito; rastros frescos na areia, entranhando-se tortuosamente nas caatingas, diziam que os sertanejos ali tinham estado, e passado também a noite, rodeando-os, invisíveis, nas rondas cautelosas.

Na Porteira Velha a vanguarda parece mesmo havê-los surpreendido, ocasionalmente precípite debandada. Ficaram junto à fogueira uma pistola de dous canos e um ferrão de vaqueiro.

O Rosário foi alcançado antes do meio-dia, ao tempo que caía violento e transitório aguaceiro, como soem sobrevir durante aquela quadra nos sertões. Aquele sítio, destinado a celebrizar-se no correr da campanha, era o que eram os demais das cercanias; uma ou duas casas pequenas de telha-vã, sem soalho; ladeadas de uma cerca de achas, ou paus roliços; fronteando um terreiro limpo com algumas árvores franzinas; e tendo, pouco distante, a cacimba ou a ipueira que determinou a escolha do local.

A expedição ali acampou. Estava no âmago do território inimigo; e, ao que se figura, invadiram-na pela primeira vez as apreensões da guerra.

Di-lo incidente expressivo.

No dia 1º de março, precisamente na hora em que outra chuva passageira e forte caía sobre a tropa desabrigada, estrugiram as notas de um alarma. O inimigo certo aproveitara o ensejo para sobressaltear os invasores, ligando-se ao furor dos elementos e surgindo naquele chuveiro, de improviso, armas disparadas no fragor da trovoada que abalava a altura...

Correndo e caindo, resvalando no chão escorregadio e encharcado; esbarrando-se em carreiras cruzadas sob o fustigar das bátegas, oficiais e praças procuravam a formatura impossível, vestindo-se, apresilhando cinturões e talins, armando-se às carreiras; surdos às discordes vozes de comando; alinhando seções e companhias ao acaso, num tumulto. E daquele enredamento de fileiras, rompeu aforradamente, de arremesso, um cavaleiro isolado, sem ordenanças, precipitando-se a galope entre os soldados tontos, e lançando-se pela estrada, na direção provável do inimigo, mal alcançado pelo engenheiro militar Domingos Leite.

Era o coronel Moreira César.

Felizmente o inimigo imaginário, a quem ia entregar-se, procurando-o naquela arremetida inútil, era um comboio de gêneros enviado por um fazendeiro amigo, das cercanias.

Tirante este incidente o dia passou em completa paz, tendo vindo à tarde um correio de Monte Santo e cavalos para o esquadrão que até ali viajara em muares imprestáveis.

E na alta madrugada do dia 2, os batalhões marcharam para o Angico onde chegaram às 11 horas da manhã, acampando dentro do grande curral do sítio em abandono.

Estava assente o plano definitivo da rota, adrede concebido de modo a diminuir o esfalfamento das marchas forçadas anteriores: descansando todo o resto do dia no Rancho do Vigário a tropa abalaria, a 3, para o Angico, andando apenas uns oito quilômetros, e ali, novamente descansando, pernoitaria. Decampando a 4, iria diretamente sobre Canudos, depois de caminhar pouco mais de légua e meia. Como estavam em pleno território inimigo, tomaram-se dispositivos para garantir o acampamento, rodeando-o de piquetes e sentinelas circulantes. O coronel César internou-se na caatinga próxima, onde mandou armar a sua barraca. Ali, não ocultou aos chefes dos corpos a segurança absoluta que tinha na vitória. Apresentaram-lhe vários alvitres atinentes a rodearem de maiores resguardos a investida, um dos quais, aventado pelo comandante do 7º, impunha a modificação preliminar da ordem até então adotada na marcha. Sugeria a divisão em duas, da coluna até então unida, destinando- se uma forte vanguarda para o reconhecimento e o primeiro combate; entrando a outra na ação, como reforço. Desse modo se por qualquer circunstância se verificassem poderosos os recursos do adversário, tornar-se-ia factível um recuo em ordem para Monte Santo, onde se reorganizariam, aumentadas, as forças. Contra o que era de esperar, o chefe expedicionário não desadorou o alvitre. A tropa prosseguiria a 3, pelo amanhecer, adstrita a um plano lucidamente traçado.