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Entretanto a observação cuidadosa do sertanejo do Norte mostra
atenuado esse antagonismo de tendências e uma quase fixidez nos
caracteres fisiológicos do tipo emergente.
Este fato, que contrabate, ao parecer, as linhas anteriores, é a
sua contraprova frisante. Com efeito, é inegável que para a
feição anormal dos mestiços de raças mui diversas contribui bastante
o fato de acarretar o elemento étnico mais elevado mais elevadas
condições de vida, de onde decorre a acomodação penosa e difícil
para aqueles. E desde que desça sobre eles a sobrecarga intelectual e
moral de uma civilização, o desequilíbrio é inevitável.
A índole incoerente, desigual e revolta do mestiço, como que denota
um íntimo e intenso esforço de eliminação dos atributos que lhe
impedem a vida num meio mais adiantado e complexo. Reflete — em
círculo diminuto — esse combate surdo e formidável, que é a
própria luta pela vida das raças, luta comovedora e eterna
caracterizada pelo belo axioma de Gumplowicz como a força motriz da
história. O grande professor de Gratz não a considerou sob este
aspecto. A verdade, porém, é que se todo o elemento étnico forte
“tende subordinar ao seu destino o elemento mais fraco ante o qual se
acha”, encontra na mestiçagem um caso perturbador. A expansão
irresistível do seu círculo singenético, porém, por tal forma
iludida, retarda-se apenas. Não se extingue. A luta
transmuda-se, tornando-se mais grave. Volve do caso vulgar, do
extermínio franco da raça inferior pela guerra, à sua eliminação
lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento.
E durante o curso deste processo redutor, os mestiços emergentes,
variáveis, com todas as mudanças da cor, da forma e do caráter,
sem feições definidas, sem vigor, e as mais das vezes inviáveis,
nada mais são, em última análise, do que os mutilados inevitáveis
do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades.
É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas,
esmaga-a pela civilização. Ora os nossos rudes patrícios dos
sertões do Norte forraram-se a esta última. O abandono em que
jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptação
penosíssima a um estádio social superior, e, simultaneamente,
evitou que descambassem para as aberrações e vícios os meios
adiantados.
A fusão entre eles operou-se em circunstâncias mais compatíveis com
os elementos inferiores. O fator étnico preeminente
transmitindo-lhes as tendências civilizadoras não lhes impôs a
civilização. Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem dos
sertões da do litoral. São formações distintas, senão pelos
elementos, pelas condições do meio. O contraste entre ambas
ressalta ao paralelo mais simples. O sertanejo tomando em larga
escala, do selvagem, a intimidade com o meio físico, que ao invés
de deprimir enrija o seu organismo potente, reflete, na índole e nos
costumes, das outras raças formadoras apenas aqueles atributos mais
ajustáveis à sua fase social incipiente.
É um retrógrado; não é um degenerado. Por isto mesmo que as
vicissitudes históricas o libertaram, na fase delicadíssima da sua
formação, das exigências desproporcionadas de uma cultura de
empréstimo, prepararam-no para a conquistar um dia.
A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a
ser, tem, agora, a garantia de um tipo fisicamente constituído e
forte. Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo,
original, transfigurando, pela própria combinação, todos os
atributos herdados; de sorte que, despeada afinal da existência
selvagem, pode alcançar a vida civilizada por isto mesmo que não a
atingiu de repente.
Aparece logicamente.
Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do
litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal
constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno
desenvolvimento — nos sertões a integridade orgânica do mestiço
desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de
evolver, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos
destinos, porque é a sólida base física do desenvolvimento moral
ulterior.
Deixemos, porém, este divagar pouco atraente.
Prossigamos considerando diretamente a figura original dos nossos
patrícios retardatários. Isto sem método, despretensiosamente,
evitando os garbosos neologismos etnológicos.
Faltaram-nos, do mesmo passo, tempo e competência para nos
enredarmos em fantasias psíquico-geométricas, que hoje se exageram
num quase materialismo filosófico, medindo o ângulo facial, ou
traçando a norma verticalis dos jagunços.
Se nos embaraçássemos nas imaginosas linhas dessa espécie de
topografia psíquica, de que tanto se tem abusado, talvez não os
compreendêssemos melhor. Sejamos simples copistas.
Reproduzamos, intactas, todas as impressões, verdadeiras ou
ilusórias, que tivemos quando, de repente, acompanhando a celeridade
de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do sertão, com
aqueles desconhecidos singulares, que ali estão — abandonados — há
três séculos.
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