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Os soldados, transposto o rio, acumularam-se junto à artilharia.
Eram uma multidão alvorotada sem coisa alguma recordando a força
militar, que se decompusera, restando, como elementos irredutíveis,
homens atônitos e inúteis, e tendo agora, como preocupação
exclusiva, evitarem o adversário que tão ansiosamente haviam
procurado. O cerro em que se reuniam estava próximo demais daquele,
e passível, talvez, de algum assalto, à noite. Era forçoso
abandoná-lo. Sem ordem, arrastando os canhões, deslocaram-se
logo para o alto do Mário, quatrocentos metros na frente. Ali
improvisaram um quadrado incorreto, de fileiras desunidas e bambas,
envolvendo a oficialidade, os feridos, as ambulâncias, o trem da
artilharia e os cargueiros. Centralizava-o uma palhoça em ruínas —
a Fazenda Velha; e dentro dela o comandante-em-chefe, moribundo.
A expedição era agora aquilo; um bolo de homens, animais, fardas e
espingardas, entupindo uma dobra de montanha...
Tinha descido a noite — uma destas noites ardentíssimas mas vulgares
no sertão, em que cada estrela, fixa, sem cintilações, irradia
como um foco de calor e os horizontes, sem nuvens, iluminam-se, de
minuto em minuto, como se refletissem relâmpagos de tempestades
longínquas...
Não se via o arraial. Alguns braseiros sem chamas, de madeiras
ardendo sob o barro das paredes e tetos; ou luzes esparsas de lanternas
mortiças bruxuleando nas sombras, deslizando vagarosamente, como em
pesquisas lúgubres, indicavam-no embaixo, e traindo também a
vigília do inimigo. Tinham, porém, cessado os tiros e nem uma voz
dali subia. Apenas na difusão luminosa das estrelas desenhavam-se,
dúbios, os perfis imponentes das igrejas. Nada mais. A casaria
compacta, as colinas circundantes, as montanhas remotas, desapareciam
na noite. O acampamento em desordem contrastava a placidez ambiente.
Constritos entre os companheiros, cento e tantos feridos e estropiados
por ali se agitavam ou se arrastavam, torturados de dores e da sede,
quase pisados pelos cavalos que espavoridos nitriam, titubeando no
atravancamento das carretas e fardos dos comboios. Não havia curá-
los no escuro onde fora temeridade incrível o rápido fulgurar de um
fósforo. Além disto não bastava para tantos o número reduzido de
médicos, um dos quais — morto, extraviado ou preso — desaparecera
à tarde para nunca mais tornar.
Faltava, ademais, um comando firme. O novo chefe não suportava as
responsabilidades, que o oprimiam. Maldizia talvez, mentalmente, o
destino extravagante que o tornara herdeiro forçado de uma
catástrofe. Não deliberava. A um oficial que ansiosamente o
interpelara sobre aquele transe, respondera com humorismo triste,
rimando um dito popular do Norte:
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“É tempo de murici
Cada um cuide de si...”
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Foi a sua única ordem do dia. Sentado na caixa de um tambor,
chupando longo cachimbo, com o estoicismo doente do próprio
desalento, o coronel Tamarindo, respondendo de tal jeito, ou por
monossílabos, a todas as consultas, abdicara a missão de remodelar a
turba esmorecida e ao milagre de subdividi-la em novas unidades de
combate.
Ali estavam, certo, homens de valor e uma oficialidade pronta ao
sacrifício. O velho comandante, porém, tivera a intuição de que
um ajuntamento em tais conjunturas não significa a soma das energias
isoladas e avaliara todos os elementos que, nas coletividades presas de
emoções violentas, reduzem sempre as qualidades pessoais mais
brilhantes. Quedava impassível, alheio à ansiedade geral, passando
de modo tácito o comando a toda a gente. Assim, oficiais
incansáveis davam por conta própria as providências mais urgentes;
retificando o pretenso quadrado, em que se misturavam, a esmo,
praças de todos os corpos; organizando ambulâncias e dispondo
padiolas; reanimando os ânimos abatidos. Pelo espírito de muitos
passara mesmo o intento animador de um revide, um novo assalto, logo
ao despontar da manhã, descendo a força toda, em arremetida
violenta, sobre os fanáticos, depois que os abalasse um bombardeio
maior do que o realizado. E concertavam-se em planos visando corrigir
o revés com um lance de ousadia. Porque a vitória devia ser
alcançada a despeito dos maiores sacrifícios. Pensavam: nos quatro
lados daquele quadrado malfeito inscreviam-se os destinos da
República. Era preciso vencer. Repugnava-os, revoltava-os,
humilhava-os angustiosamente aquela situação, ridícula e grave,
ali, no meio de canhões modernos, sopesando armas primorosas,
sentados sobre cunhetes repletos de cartuchos — e encurralados por uma
turba de matutos turbulentos...
A maioria, porém, considerava friamente as cousas. Não se
iludia. Um rápido confronto entre a tropa que chegara horas antes,
entusiasta e confiante na vitória, e a que ali estava, vencida,
patenteava-lhe uma solução única — a retirada.
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