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O comboio chegou ao alto da Favela a 13 de julho; e no dia
subseqüente convocados os comandantes de brigadas, na tenda do general
Savaget, enfermo do ferimento recebido em Cocorobó, concertaram
sobre o assalto. O dia era propício: uma data de festa nacional.
Logo pela manhã uma salva de vinte e um tiros de bala a comemorara.
Os matutos broncos foram varridos cedo — surpreendidos, saltando
estonteadamente das redes e dos catres miseráveis —, porque havia
pouco mais de cem anos um grupo de sonhadores falara nos direitos do
homem e se batera pela utopia maravilhosa da fraternidade humana...
O ataque contra o arraial era urgente.
O comandante da 1ª Brigada ao voltar comunicara que na pretensa base
de operações nada existia. Encontrara-a desprovida de tudo,
tendo-lhe sido necessário organizar com dificuldades o comboio que
trouxera. Este em pouco se esgotaria E volver-se-ia de novo à
crítica situação anterior.
Deliberou-se. As opiniões, dissentindo em minúcias, firmaram-se
acordes no pensamento da investida em grandes massas por um único
flanco. Os comandantes da 3ª, 4ª e 5ª Brigadas opinaram pelo
abandono preliminar da Favela por uma posição mais próxima de onde,
depois, empenhassem a ação. Os demais, fortalecidos pelo voto
favorável dos três generais, contravieram: permaneceriam na Favela
o hospital de sangue, a artilharia e duas brigadas, garantindo-os.
Este alvitre, que afinal pouco divergia do primeiro, prevaleceu.
Reincidia-se num erro. O inimigo ia ter, mais uma vez, diante da
sua fugacidade a potência ronceira das brigadas. Havia, como se
vê, persistente na maioria dos ânimos, o intento de se não executar
o que a campanha desde o começo reclamava: a divisão dos corpos
combatentes. O ataque por dous pontos, pelo caminho de Jeremoabo e
pela extrema esquerda, derivando pelos contrafortes da Fazenda
Velha, enquanto a artilharia, sem deixar a sua posição, agisse,
bombardeando pelo centro, surgia, entretanto, como único plano —
imperioso e intuitivo — à mais ligeira observação do teatro da
luta. Não se cogitou, porém, de observar o teatro da luta. O
plano firmado era mais simples. As duas colunas combatentes, após
uma marcha de flanco de quase dous quilômetros para a direita do
acampamento, que se preestabeleceu realizada sem que a perturbasse o
inimigo, obliquariam à esquerda demandando o Vaza-Barris. Dali
volvendo ainda à esquerda arremeteriam em cheio até à praça das
igrejas. O movimento, contornante a princípio, ultimar-se-ia em
trajetória retilínea; e se fosse impulsionado com sucesso
favorável, os jagunços, mesmo no caso de inteiro desbarate,
teriam, francos ao recuo, três ângulos do quadrante. Poderiam, a
salvo, deslocar-se para as posições inacessíveis do Caipã, ou
qualquer outra de onde renovassem a resistência.
Esta era certa e previa-se a todo o transe.
Diziam-no acontecimentos recentes. Duas semanas de canhoneio e o
reforço de munições aos adversários não tinham desinfluído os
sertanejos. Revigoraram-nos. No dia 15, como se ideassem
atrevida paródia à recente vinda do comboio, foram vistos, em
bandos, em que se incluíam mulheres e crianças, avançando pela
direita do acampamento, tangendo para o arraial numerosas reses. O
25º Batalhão enviado a atacá-los não os alcançara. Naquele
mesmo dia os expedicionários, fartos e alentados de novo pela
esperança da vitória próxima, não tiveram permissão de andar à
vontade na própria posição em que acampavam. A travessia de um para
outro abarracamento era a morte. Tombaram, baleados, o
sargento-ajudante do 9º e várias praças. Foi assaltado o pasto,
a dous passos da 2ª coluna, e capturados alguns animais de montaria e
tração, sem que os retomasse o 30º de Infantaria, imediatamente
destacado para a diligência. A 16 ostentaram o mesmo afoitar-se
desafiador com o adversário abastecido. Bateram todas as linhas. A
comissão de engenheiros, para fazer ligeiros reconhecimentos nas
cercanias, fê-lo combatendo, levando a escolta formidável de dous
batalhões, o 7º e o 5º. Esta atitude indicava-os dispostos a
reagir com vigor; e, como se não conheciam os recursos que contavam,
o ataque planeado devia ater-se à condição essencial de não ser
nele, de chofre, comprometida toda a força, o que ademais
impropriava a zona mesma do combate. Vista do alto da Favela, esta
parecia ser, de fato, a de mais fácil acesso. Apesar disto, o
solo, pregueado de sangas e ondeando em outeiros, impossibilitava o
desdobramento rápido das colunas; permitia prever-se o travamento
forçado da investida em massa e sugeria por si mesmo, como corretivo
único à sua conformação especial, a ordem largamente dispersa.
Mas esta só seria factível se, excluído de todo o alvitre das
cargas de pelotões maciços, precipitando-se contra os cerros, a
batalha tivesse a preliminar de uma demonstração preparatória ou
reconhecimento enérgico feito por uma brigada única livremente
desenvolvida e agindo fora da compressão entibiadora de fileiras
compactas e inúteis. Esta vanguarda combatente à medida que
progredisse, varrendo as trincheiras abertas em todos os altos e em
todas as encostas, seria gradativamente seguida pelas outras, que a
reforçariam nos pontos mais convenientes, até se operar, afinal,
naturalmente, na própria esteira do recuo do antagonista, a
concentração de todas, dentro do arraial. Ia fazer-se o
contrário. O comandante-geral oscilava entre extremos. Saía da
anquilose para o salto; da inércia absoluta para os movimentos
impulsivos. Deixou a vacilação inibitória, que o manietava no alto
da Favela, para a obsessão delirante das cargas. Nas
disposições, dadas a 16, para o combate, são elas a nota
preponderante. Postos em plano inferior todos os dispositivos que
garantissem o desenlace do recontro, espelha-se, ali, a
preocupação absorvente dos choques violentos: três mil e tantas
baionetas rolando, como uma caudal de ferro e chamas, pelo leito vazio
do Vaza-Barris em fora...
“Dado o sinal da carga ninguém mais procura evitar a ação dos fogos
do inimigo. Carrega-se sem vacilar com a maior impetuosidade.
Depois de cada carga cada soldado procura a sua companhia, cada
companhia o seu batalhão e assim por diante”.
Estas instruções iam de nível com as tendências gerais. As longas
combinações concretas de um combate, adrede elaboradas consoante as
condições excepcionais do meio e do adversário, não as
satisfaziam. O rancor longamente acumulado por anteriores insucessos
exigia revides fulminantes. Era preciso levar às recuadas os bandidos
tontos e, de uma só vez, de pancada, socá-los dentro da cova de
Canudos, a couces de armas. A ordem do dia 17 de julho marcando o
ataque para o imediato, 18, foi recebida com delírio.
Esteando-se nas façanhas anteriores, o comandante-em-chefe, numa
dedução atrevida, voltava uma página do futuro e punha diante dos
lutadores a margem da vitória.
“Valentes oficiais e soldados das forças expedicionárias no interior
do Estado da Bahia! Desde Cocorobó até aqui o inimigo não tem
podido resistir à vossa bravura.
Atestam-nos os combates de Cocorobó, Trabubu, Macambira,
Angico, dous outros no alto da favela e dous assaltos que o inimigo
trouxe à artilharia.
Amanhã vamos abatê-lo na sua cidadela de Canudos. A pátria tem
os olhos fitos sobre vós, tudo espera da vossa bravura. O inimigo
traiçoeiro que não se apresenta de frente, que combate-nos sem ser
visto, tem, contudo, sofrido perdas consideráveis. Ele está
desmoralizado, e, pois, se...”
Paremos um momento diante de uma condicional comprometedora. Ante ela
a ordem no dia, lida com aplauso a 17, devia ter sido trancada ao
cair da noite de 18.
“... se tiverdes constância, se ainda uma vez fordes os bravos de
todos os tempos, Canudos estará em vosso poder amanhã, iremos
descansar e a Pátria saberá agradecer os vossos sacrifícios”.
Canudos cairia no dia seguinte. Era fatal. O inimigo mesmo parecia
ciente da resolução heróica: cessara os tiroteios irritantes.
Acolhia-se embaixo, timorato e quedo, vencido de véspera. O
acampamento não fora atormentado. À tarde as fanfarras dos corpos
vibraram harmoniosamente até cair a noite.
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