PSICOLOGIA DO SOLDADO BRASILEIRO

Seguiam tranqüilamente a passo ordinário e seguro.

Da extensa linha da brigada evolava-se um murmúrio vago de milhares de sílabas emitidas a meia-voz, aqui, ali, repentinamente salteadas de risos joviais. Os nossos soldados estadeavam o seu atributo preeminente naquela alacridade singular com que se aproximavam do inimigo. Homens de todas as cores, amálgamas de diversas raças, parece que no sobrevir dos lances perigosos e no abalo de emoções fortíssimas, lhes preponderam, exclusivas, no ânimo, por uma lei qualquer de psicologia coletiva, os instintos guerreiros, a imprevidência dos selvagens, a inconsciência do perigo, o desapego à vida e o arremesso fatalista para a morte.

Seguem para a batalha como para algum folguedo turbulento. Intoleráveis na paz que os molifica, e infirma, e relaxa; inclassificáveis nas paradas das ruas, em que passam sem garbo, sem aprumo, corcundas sob a espingarda desastradamente manejada, a guerra é o seu melhor campo de instrução e o inimigo o instrutor predileto, transmudando-os em poucos dias, disciplinando-os, enrijando-os, dando-lhes em pouco tempo, nos exercícios extenuadores da marcha e do combate, o que nunca tiveram nas capitais festivas, — a altivez do porte, a segurança do passo, a precisão do tiro, a celeridade das cargas. Não sucumbem à provação. São inimitáveis no caminhar dias a fio pelos mais malgradados caminhos. Não boquejam a reclamação mais breve nas piores aperturas; e nenhuns se lhes emparelham no resistir à fome, atravessando largos dias à brisa, segundo o dizer de seu calão pinturesco. Depois dos mais angustiosos transes, vimos valentes escaveirados meterem à bulha o martírio e troçarem, rindo, com a miséria.

No combate, certo, nenhum é capaz de entrar e sair, como o prussiano, com um podômetro preso à bota — é desordenado, é revolto, é turbulento, é um garoto heróico e terrível, arrojando contra o adversário, de par com a bala ou a pranchada, um dito zombeteiro e irônico. Por isto se impropria ao desdobramento das grandes massas nas campanhas clássicas. Manietam-no as formaturas corretas. Estonteia-o o mecanismo da manobra complexa. Tortura-o a obrigação de combater adstrito ao ritmo das cornetas; e de bom grado obediente aos amplos movimentos da estratégia, seguindo, impassível, para os pontos mais difíceis, quando o inimigo lhe chega à ponta do sabre quer combater a seu modo. Bate-se, então, sem rancor, mas estrepitosamente, fanfarrão, folgando entre as cutiladas e as balas, arriscando-se doudamente, barateando a bravura. Fá-lo, porém, de olhos fixos nos chefes que o dirigem e de cuja energia parece viver exclusivamente. De sorte que à mínima vacilação daqueles tem, de chofre, extintas todas as ousadias e cai num abatimento instantâneo salteando de desânimos invencíveis. Ora, naquela ocasião, tudo vaticinava aos expedicionários a vitória. Com tal chefe não havia cogitar em reveses. E endireitavam firmes para frente, impacientes por virem às mãos com o adversário esquivo. Vendiam escandalosamente a pele do urso sertanejo. Gizavam antecipadas façanhas; cousas de pasmar, depois, aos ouvintes crédulos e tímidos; cenas joco-trágicas — lá dentro, na tapera monstruosa, quando a varressem a tiro. E faziam planos bizarros, projetos prematuros, iniciados todos por uma preliminar ingênua: “Quando eu voltar...” Alguns, às vezes, saíam-se com um pensamento extravagante, e no burburinho confuso passava, sulcando-o, um ondular de risos mal contidos...

Além disto, aquela manhã resplandecente os alentava. O belo firmamento dos sertões arqueava-se sobre a terra — irisado — passando em transições suavíssimas do zênite azul à púrpura deslumbrante do oriente. Ademais o adversário que deixara livre até ali o caminho desdenhando os melhores trechos para o cortar, ameaçava-os de um único contratempo sério: o toparem vazio o arraial sedioso.

Assustava-os esse desapontamento provável; a campanha transformada em passeio militar penoso; a volta inglória, sem o dispêndio de um cartucho.