VERSÕES E LENDAS

Transfiguravam-nos, além disto, numa distensão exagerada, as imaginações superexcitadas. Recente mensagem do Senado Federal, onde batera também a onda da comoção geral, tendo requerido, esteada em veementes denúncias, esclarecimentos sobre o terem sido despachadas em Buenos Aires com destino aos portos de Santos e Bahia, armas, que tudo delatava se destinarem aos conselheirista; tal incidente, em que incidiam todas as fantasias, assumiu, ampliado pela nevrose comum, visos de realidade.

Completavam-no, justificando e do mesmo passo refletindo o modo de pensar das Repúblicas Americanas, todas as notícias transmitidas pelos seus órgãos mais sérios. O de mais peso talvez na América do Sul, depois de se referir aos curiosos sucessos da campanha, aditava-lhes pormenores de um simbolismo estranho e pavoroso: “Trata-se de duas missivas que, com intervalo de dois dias, recebemos da ‘Sección Buenos Aires de la unión internacional de los amigos del imperio del Brasil’ comunicando-nos por ordem da seção executiva em New York, que a referida União tem ainda uma reserva de não menos 15.000 homens — só no Estado da Bahia — para reforçar, em caso de necessidade, o exército dos fanáticos; além de 100.000 em vários Estados do Norte do Brasil e mais 67.000 em certos pontos dos Estados Unidos da América do Norte, prontos a sair em qualquer momento para as costas do ex-império, todos muito bem armados e preparados para a guerra. Também temos, ajuntam as missivas, armas dos mais modernos sistemas, munições e dinheiro em abundância.

De uma redação, caligrafia e ortografia corretas, estas enigmáticas comunicações trazem à sua frente a mesma inscrição que as subscreve, escrita com tinta que faz recordar a violácea cor dos mortos, destacando-se as maiúsculas em vermelho, da vermelha cor do sangue.

Ante o quadro formidável de homens e armas que nos oferecem os misteriosos amigos do império, de forma não menos misteriosa, não sabemos se pensar em uma daquelas terríveis associações que forjam nas trevas seus planos de destruição ou em alguns cavalheiros dados à mistificação do próximo.

Entretanto, pelo que possa haver no fundo de tudo isto, é que fazemos constar e acusamos recebimento das repetidas missivas”.

Acreditava-se. A quarta expedição ilhara-se de todo, no território conflagrado, a pique de uma catástrofe. Diziam-no insuspeitos informes. Só do município de Itapicuru, garantia-se, haviam partido 3.000 fanáticos para Canudos, conduzidos por um padre que, aberrando dos princípios ortodoxos, lá se ia comungar das tolices abstrusas do cismático. Pela Barroca passavam centenares de quadrilheiros armados, seguindo o mesmo rumo. Citavam-se nomes de novos cabecilhas. Apelidos funambulescos, como os dos chouans: Pedro, o Invisível, José Gamo, Caco de Ouro; e outros.

Agravando estas conjecturas vinham notícias verdadeiras. Os sertanejos dispartiam pelos sertão em algaras atrevidas: atacaram o termo de Mirandela, guiados por Antônio Fogueteiro; investiram, tomaram e saquearam a Vila de Santana do Brejo; irradiavam para toda a banda. Alargavam o âmbito da campanha, reelando mesmo lineamentos firmes de estratégia segura. Além do arraial, duas novas posições de primeira ordem e defensáveis estavam guarnecidas: as vertentes caóticas do Caipã e as cordas de cerros em torno da Várzea da Ema. Desbordando de Canudos, a insurreição espraiava-se desta maneira pelos lados de um triângulo enorme, em que podiam inscrever- se cinqüenta mil baionetas. Alastrava-se.

Os comboios que partiam de Monte Santo, ainda que reforçados não por batalhões mas por brigadas, tinham viagem acidentada, tolhida de constantes assaltos. Atingindo o Aracati, era indispensável que viessem de Canudos dous ou três batalhões a protegê-los. O sinistro trecho de estrada, entre o Rancho do Vigário e as Baixas, tornara- se o pavor dos mais provados valentes. Era o lugar clássico do estouro das boiadas e da dispersão dos cargueiros, espantados pelos tiroteios vivos e atropelando pelotões inteiros no recuar precípite da fuga. E nesses recontros sucessivos, adrede feitos à perturbação das marchas, começara-se a lobrigar, por fim, uma variante do jagunço, auxiliando-o, indiretamente, com outros intuitos. Distinguiam-se, entre os claros das galhadas rarefeitas, passando, céleres, no vertiginoso pervagar das guerrilhas, brilhos de botões de fardas, laivos rubros de calças carmesins...

O desertor faminto atacava os antigos companheiros.

Era um lastimável sintoma, completando com um outro caráter a campanha, cuja feição dia a dia se agravava num episodiar extremado de sucessos mais triviais.

Os soldados enfermos, em perene contacto com o povo, que os conversava, tinham-se, ademais, constituído rudes cronistas dos acontecimentos e confirmavam-nos mercê da forma imaginosa por que a própria ingenuidade lhes ditava os casos, verídicos na essência, mas deformados de exageros, que narravam. Urdiam-se estranhos episódios. O jagunço começou a aparecer como um ente à parte, teratológico e monstruoso, meio homem e meio trasgo; violando as leis biológicas, no estadear resistências inconceptíveis; arrojando-se, nunca visto, intangível, sobre o adversário; deslizando, invisível, pela caatinga, como as cobras; resvalando ou tombando pelos despenhadeiros fundos, como espectro; mais leve que a espingarda que arrastava; e magro, seco, fantástico, diluindo-se em duende, pesando menos que uma criança, tendo a pele bronzeada colada sobe os ossos, áspera como a epiderme das múmias...

A imaginação popular, daí por diante, delirava na ebriez dos casos estupendos, apontoados de fantasias. Alguns eram rápidos, espelhando incisivamente a energia inamolgável daqueles caçadores de exércitos. “Viva o Bom Jesus”

Numa das refregas subseqüentes ao assalto, ficara prisioneiro um curiboca ainda moço que a todas as perguntas respondia, automaticamente, com indiferença altiva:

“Sei não!”

Perguntaram-lhe por fim como queria morrer.

“De tiro!”

“Pois há de ser a faca!” contraveio, terrivelmente, o soldado.

Assim foi. E quando o ferro embotado lhe rangia nas cartilagens da glote, a primeira onda de sangue borbulhou, escumando, à passagem do último grito gargarejando na boca ensangüentadas:

“Viva o Bom Jesus!...”