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A demonstração é positiva. Há um notável traço de originalidade
na gênese da população sertaneja, não diremos do Norte, mas no
Brasil subtropical.
Esbocemo-lo; e para não nos delongarmos demais, afastemo-nos pouco
do teatro em que se desenrolou o drama histórico de Canudos,
percorrendo rapidamente o rio de S. Francisco, “o grande caminho da
civilização brasileira”, conforme o dizer feliz de um
historiador.
Vimos, de relance, em páginas anteriores, que ele atravessa as
regiões mais díspares. Ampla nas cabeceiras, a sua dilatada bacia
colhe na rede de numerosos afluentes a metade de Minas, na zona das
montanhas e das florestas. Estreita-se depois passando na parte
mediana pela paragem formosíssima dos gerais. No curso inferior, a
jusante de Juazeiro, constrita entre pendores que a desnivelam
torcendo-a para o mar, torna-se pobre de tributários, quase todos
efêmeros, derivando, apertada por uma corredeira única de centenares
de quilômetros, até Paulo Afonso — e corta a região maninha das
caatingas.
Ora, sob esta tríplice disposição, é um diagrama da nossa marcha
histórica, refletindo, paralelamente, as suas modalidades
variáveis.
Balanceia a influência do Tietê.
Enquanto este, de traçado incomparavelmente mais próprio à
penetração colonizadora, se tornou o caminho predileto dos
sertanistas visando sobretudo a escravização e o descimento do
gentio, o S. Francisco foi, nas altas cabeceiras, a sede essencial
da agitação mineira, no curso inferior o teatro das missões, e na
região média a terra clássica do regime pastoril, único compatível
com a situação econômica e social da colônia. Bateram-lhe por
igual as margens o bandeirante, o jesuíta e o vaqueiro.
Quando, mais tarde, maior cópia de documentos permitir a
reconstrução da vida colonial, do século XVI ao fim do
XVIII, é possível que o último, de todo olvidado ainda,
avulte com o destaque que merece na formação da nossa gente. Bravo e
destemeroso como o primeiro, resignado e tenaz como o segundo, tinha a
vantagem de um atributo supletivo que faltou a ambos — a fixação ao
solo.
As bandeiras, sob os dous aspectos que mostram, já destacados, já
confundidos, investindo com a terra ou com o homem, buscando o ouro ou
o escravo, desvendavam desmedidas paragens, que não povoavam e
deixavam porventura mais desertas, passando rápidas sobre as
“malocas” e as “catas”.
A sua história, às vezes inextricável como os dizeres adrede
obscuros dos roteiros, traduz a sucessão e enlace destes estímulos
únicos, revezando-se quer consoante a índole dos aventureiros, quer
de acordo com a maior ou menor praticabilidade das empresas planeadas.
E neste permanente oscilar entre aqueles dous desígnios, a sua
função realmente útil, no desvendar o desconhecido, repontava com
incidente obrigado, conseqüência inevitável em que se não cuidava.
Assim é que extinta com a expedição de Glimmer (1601) a
visão enganadora da Serra das Esmeraldas, que desde meados do
século XVI atraíra para os flancos do Espinhaço, um após
outros, inacessíveis a constantes malogros, Bruzzo Spinosa,
Sebastião Tourinho, Dias Adorno e Martins Carvalho, e
desaparecendo ao norte o país encantado que idealizara a imaginação
romântica de Gabriel Soares, grande parte do século XVII é
dominada pelas lendas sombrias dos caçadores de escravos,
centralizados pela figura brutalmente heróica de Antônio Raposo. É
que se haviam apagado quase que ao mesmo tempo as miragens da misteriosa
Sabarabuçu e as das Minas de Prata, eternamente inatingíveis;
até que, renovadas pelas pesquisas indecisas de Pais Leme, que
avivou, depois de um apagamento quase secular, as veredas de
Glimmer; alentadas pelas oitavas de ouro de Arzão pisando em
1693 as mesmas trilhas de Tourinho e Adorno; e ao cabo
francamente ressurgindo logo depois com Bartolomeu Bueno, em
Itaberaba, e Miguel Garcia, no Ribeirão do Carmo, as entradas
sertanejas volvessem ao anelo primitivo e, irradiando do distrito de
Ouro Preto, se espraiassem de novo, mais fortes, pelo país
inteiro. Ora, durante este período em que, aparentemente, só se
observam, no litoral a luta contra o batavo e no âmago dos planaltos o
espantoso ondular das bandeiras, surgira na região que interfere o
médio S. Francisco um notável povoamento do qual os resultados
somente depois apareceram.
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