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A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro.
O povoado novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas.
Nascia velho. Visto de longe, desdobrado pelos cômoros, atulhando
as canhadas, cobrindo área enorme, truncado nas quebradas, revolto
nos pendores — tinha o aspecto perfeito de uma cidade cujo solo
houvesse sido sacudido e brutalmente dobrado por um terremoto.
Não se distinguiam as ruas. Substituía-as dédalo desesperador de
becos estreitíssimos, mal separando o baralhamento caótico dos
casebres feitos ao acaso, testadas volvidas para todos os pontos,
cumeeiras, orientando- se para todos os rumos, como se tudo aquilo
fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma multidão de
loucos...
Feitas de pau-a-pique e divididas em três compartimentos
minúsculos, as casas eram paródia grosseira da antiga morada romana:
um vestíbulo exíguo, um átrio servindo ao mesmo tempo de cozinha,
sala de jantar e de recepção; e uma alcova lateral, furna
escuríssima mal revelada por uma porta estreita e baixa. Cobertas de
camadas espessas de vinte centímetros, de barro, sobre ramos de
icó, lembravam as choupanas dos gauleses de César. Traíam a fase
transitória entre a caverna primitiva e a casa. Se as edificações
em suas modalidades evolutivas objetivam a personalidade humana, o
casebre de teto de argila dos jagunços equiparado ao wigwam dos peles-
vermelhas sugeria paralelo deplorável. O mesmo desconforto e,
sobretudo, a mesma pobreza repugnante, traduzido de certo modo, mais
do que a miséria do homem, a decrepitude da raça.
Quando o olhar se acomodava à penumbra daqueles cômodos exíguos,
lobrigava, invariavelmente, trastes raros e grosseiros: um banco
tosco; dous ou três banquinhos com a forma de escabelos; igual
número de caixas de cedro, ou canastras; um jirau pendido do teto; e
as redes. Eram toda a mobília. Nem camas, nem mesas. Pendurados
aos cantos, viam-se insignificantes acessórios: o bogó ou
borracha, espécie de balde de couro para o transporte de água; pares
de caçuás (jacás de cipó) e os aiós, bolsa de caça, feita das
fibras de caroá. Ao fundo do único quarto, um oratório tosco.
Neste, copiando a mesma feição achamboada do conjunto, santos mal
acabados, imagens de linhas duras, a objetivarem a religião mestiça
em traços incisivos de manipansos: Santo Antônios proteiformes e
africanizados, de aspecto bronco, de fetiches; Marias
Santíssimas, feias como megeras... Por fim as armas — a mesma
revivescência de estádios remotos: o facão jacaré, de folha larga
e forte; a parnaíba dos cangaceiros, longa como uma espada; o
ferrão ou guiada, de três metros de comprido, sem a elegância das
lanças, reproduzindo os piques antigos; os cacetes ocos e cheios pela
metade de chumbo, pesadelos como montantes; as bestas e as
espingardas.
Entre estas últimas, gradações completas, desde a de cano fino,
carregada com escumilha, até à “legítima de Braga”, cevada com
chumbo grosso, ao trabuco brutal ao modo de uma colubrina portátil,
capaz de arremessar calhaus e pontas de chifre, à lazarina ligeira,
ou ao bacamarte de boca-de-sino.
Nada mais. De nada mais necessitava aquela gente. Canudos surgia
com a feição média entre a de um acampamento de guerreiros e a de um
vasto kraal africano. A ausência de ruas, as praças que, à parte
a das igrejas, nada mais eram que o fundo comum dos quintais, e os
casebres unidos, tornavam-no como vivenda única, amplíssima,
estendida pelas colinas, e destinada a abrigar por pouco tempo o clã
tumultuário de Antônio Conselheiro.
Sem a alvura reveladora das paredes caiadas e telhados encaliçados, a
certa distância era invisível. Confundia- se com o próprio chão.
Aparecia, de perto, de chofre, constrito numa volta do
Vaza-Barris, que o limitava do levante ao sul abarcando-o.
Emoldurava-o uma natureza morta: paisagens tristes; colinas nuas,
uniformes, prolongando-se, ondeantes, até às serranias distantes,
sem uma nesga de mato; rasgadas de lascas de talcoxisto, mal
revestidas, em raros pontos, de acervos de bromélias, encimadas,
noutros, pelos cactos esguios e solitários. O monte da Favela, ao
sul, empolava- se mais alto, tendo no sopé, fronteiro à praça,
alguns pés de quixabeiras, agrupados em horto selvagem. À meia
encosta via-se solitária, em ruínas, a antiga casa da fazenda...
A uma banda, perto e dominante, um contraforte, o morro dos
Pelados, termina de chofre em barranca a prumo sobre o rio e este,
dali por diante progredindo numa inflexão forte para montante, abarca
o povoado em leito escavado e fundo, como um fosso. Ali vão ter
quebradas de bordas a pique, abertas pelas erosões intensas por onde,
no inverno, rolam acachoando afluentes efêmeros tendo os nomes falsos
de rios: o Mucuim, o Umburanas, e outro, que sucessos ulteriores
denominariam da “Providência”.
Canudos, assim circunvalado quase todo pelo Vaza-Barris, embatia
ao sul contra as vertentes da Favela e dominado no ocidente pelas
lombas mais altas de flancos em escarpa em que se comprimia aquele nas
enchentes, desatava-se para o levante segundo o expandir dos plainos
ondulados. As montanhas longínquas fechavam-se em roda, formando,
quase contínua, uma elipse de eixos dilatados. Feito postigos em
baluarte desmedido, abriam-se, estreitas, as gargantas em que
passavam os caminhos: o do Uauá, estrangulado entre os pendores
fortes do Caipã; o de Jeremoabo, insinuando-se nos desfiladeiros
de Cocorobó; o do Cambaio, em aclives, investindo com as vertentes
do Calumbi; e o do Rosário.
Ora, por estas veredas, prendendo, no se ligarem a outras trilhas,
o povoado nascente ao fundo dos sertões do Piauí, Ceará,
Pernambuco e Sergipe — chegavam sucessivas caravanas de fiéis.
Vinham de todos os pontos, carregando os haveres todos; e,
transpostas as últimas voltas do caminho, quando divisavam o
campanário humilde da antiga capela, caíam genuflexos sobre o chão
aspérrimo. Estava atingido o termo da romagem. Estavam salvos da
pavorosa hecatombe, que vaticinavam as profecias do evangelizador.
Pisavam, afinal, a terra da promissão — Canaã sagrada, que o
Bom Jesus isolara do resto do mundo por uma cintura de serras...
Chegavam, estropiados da jornada longa, mas felizes. Acampavam à
gandaia pelo alto dos cômoros. À noite acendiam-se as fogueiras nos
pousos dos peregrinos relentados. Uma faixa fulgurante enlaçava o
arraial; e, uníssonas, entrecruzavam-se, ressoando nos pousos e
nas casas, as vozes da multidão penitente, na melopéia plangente dos
benditos.
Ao clarear da manhã entregavam-se à azáfama da construção dos
casebres. Estes, a princípio apinhando-se próximos à depressão
em que se erigia a primitiva igreja, e descendo desnivelados ao viés
das encostas breves até ao rio, começavam a salpintar, esparsos, o
terreno rugado, mais longe.
Construções ligeiras, distantes do núcleo compacto da casaria,
pareciam obedecer ao traçado de um plano de defesa. Sucediam-se
escalonadas, ladeando os caminhos. Marginavam o de Jeremoabo,
erectas numa e outra margem do Vaza-Barris, para jusante, até
Trabubu e o ribeirão de Macambira. Pontilhavam o do Rosário,
transpondo o rio e contornando a Favela. Espalhavam-se pelos
cerros, que se sucediam inúmeros segundo o rumo de Uauá. Inscritas
em cercas impenetráveis de gravatás, plantados na borda de um fosso
envolvente, cada uma era, do mesmo passo, um lar e um reduto.
Dispunham-se formando linhas irregulares de baluartes. Porque a
cidade selvagem, desde o princípio, tinha em torno, acompanhando-a
no crescimento rápido, um círculo formidável de trincheiras cavadas
em todos os pendores, enfiando todas as veredas, planos de fogo
volvidos, rasantes com o chão, para todos os rumos. Veladas por
touceiras inextricáveis de macambiras ou lascas de pedra, não se
revelavam à distância. Vindo do levante, o viajor que as
abeirasse, ao divisar, esparsas sobre os cerros, as choupanas
exíguas à maneira de guaritas, acreditaria topar uma rancharia
esparsa de vaqueiros inofensivos. Atingia, de repente, a casaria
compacta, surpreso, como se caísse numa tocaia. Para quem viesse do
sul, porém, pelo Rosário ou Calumbi, galgado o alto da Favela,
ou as ladeiras fortes que se derivam para o Rio Sargento, o casario
aparecia a um quilômetro, ao norte, esbatido num plano inferior,
francamente exposto, de modo a se poder num lance único de vista
aquilatar-lhe as condições de defesa. Eram na aparência
deploráveis. O arraial parecia disposto para o choque das cargas
fulminantes, rolando impetuosas, com a força viva de uma queda,
pelos aclives abruptos. O inimigo, livre de escaladas penosas,
varejá- lo-ia em tiros mergulhantes. Podia assediá-lo todo,
batendo todas as entradas, com uma bateria única. Tinha,
entretanto, condições táticas preexcelentes. Compreendera-as
algum Vauban inculto... Fechado ao sul pelo morro, descendo
escancelado de gargantas até ao rio, fechavam-no, a oeste, uma
muralha e um valo. De fato, infletindo naquele rumo, o
Vaza-Barris, comprimido entre as últimas casas e as escarpas a
pique dos morros sobranceiros, torcia para o norte feito um canyon
fundo. A sua curva forte rodeava, circunvalando-a, a depressão em
que se erigia o povoado, que se trancava a leste pelas colinas, a
oeste e norte pelas ladeiras das terras mais altas, que dali se
entumescem até aos contrafortes extremos do Cambaio e do Caipã; e
ao sul pela montanha. Canudos era uma tapera dentro de um furna. A
praça das igrejas, rente ao rio, demarcava-lhe a área mais baixa.
Dali, segundo um eixo orientado ao norte, se expandia alteando-se a
pouco e pouco, em plano inclinado breve, feito um vale largo, em
declive. Lá dentro se apertavam os casebres, atulhando toda a
baixada, subindo, mais esparsos, pelas encostas de leste,
transbordando, afinal, nas exíguas vivendas que vimos salpintando,
raras, o alto dos cerros minados de trincheiras. A grei revoltosa —
como se vê — não se ilhava em uma eminência, assoberbando os
horizontes, a cavaleiro dos assaltos. Entocara-se. Naquela região
belíssima, em que as linhas de cumeadas se rebatem no plano alto dos
tabuleiros, escolhera precisamente o trecho que recorda uma vala comum
enorme...
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