INCÊNDIOS

Depois — era preciso uma diversão qualquer estupidamente dramática que lhes distraísse um momento as agonias fundas! — tomando de tições em fogo chegavam-nos aos colmos de sapê. Irrompiam as flamas, num deflagar instantâneo. Passavam os haustos rijos do nordeste e esparziam as fagulhas pela caatinga seca. Em breve, céleres, arredatadas pelo vento, enovelados em rolos de fumo cindidos de labaredas, rolando pelas quebradas e transpondo-as, circulando todas as encostas, avassalando o topo dos morros, repentinamente acesos num relampaguear de crateras súbitas, crepitavam as queimadas, inextinguíveis, derramando-se por muitas léguas em roda.

Os foragidos, já agora salvos, suportavam os últimos transes do êxodo penosíssimo requintando nas tropelias, ampliando o círculo de ruínas da guerra e iam-se de abalada para o litoral — ao mesmo tempo miserandos e maus, inspirando a piedade e o ódio — rudemente vitimados, brutalmente vitimando. Chegavam a Queimadas esparsos e exaustos, alguns quase moribundos. Atulhavam os trens da estrada de ferro e desciam para a Bahia. Primeiras notícias certas

Aguardava-os uma curiosidade ansiosa.

Iam chegar, afinal, as primeiras vítimas da luta que empolgara a atenção do país inteiro. A multidão desbordando da estação terminal da linha férrea, na Calçada, derramando-se pelas ruas próximas até ao forte de Jiquitaia, contemplava dia- riamente a passagem do heroísmo infeliz. E nunca lhe imaginou aspectos tão dramáticos.

Sacudiam-na frêmitos de emoções nunca sentidas.

Os feridos chegavam em estado miserando. Prolongavam pelas ruas da cidade aquela onda repulsiva de trapos e carcaças, que vinha rolando pelas veredas sertanejas o refluxo repugnante da campanha. Era um desfilar cruel. Oficiais e soldados, uniformizados pela miséria, vinham indistintos, revestidos do mesmo fardamento inclassificável: calças em fiapos, mal os resguardando, como tangas; camisas estraçoadas; farrapos de dólmãs sobre os ombros; farrapos de capotes, em tiras, escorridos pelos torsos desfibrados, dando ao conjunto um traço de miséria trágica. Coxeando, arrastando-se penosamente, em camabaleios, titubeantes e imprestáveis, traziam no escavado das faces e na atitude dobrada um traço comovente da campanha. Esta desvendava pela primeira vez a sua feição real, naqueles corpos combalidos, varados de balas e de espinhos, retalhados de golpes. E chegavam às centenas todos os dias: a 6 de agosto, 216 praças e 26 oficiais; a 8, 150; a 11, 400; a 12, 260; a 14, 270; a 18, 53; e assim por diante.

A população da capital recebia-os comovida. Como sempre sucede, o sentimento coletivo ampliara as impressões individuais. O grande número de pessoas identificadas pela mesma comoção fez-se o expoente do sentir de cada um e, vibrando uníssonas todas as almas, presas do mesmo contágio, e sugestionadas pelas mesmas imagens, todas as individualidades se apagaram no anonimato nobilitador da multidão piedosa que bem poucas vezes apareceu tão digna na História. A vasta cidade fez-se um grande lar. Organizaram-se em toda a linha comissões patrióticas, para agenciar donativos, que espontaneamente surgiram numerosos, constantes. No Arsenal de Guerra, na faculdade médica, nos hospitais, nos próprios conventos, se improvisaram enfermarias. Em cada uma destas os gloriosos mutilados foram postos sob o patrocínio de algum nome ilustre: Esmarch, Claude Bernard, Duplay, Pasteur, jamais tiveram tão bela consagração do futuro.

Avantajando-se à ação do governo, o povo constituíra-se tutor natural dos enfermos, amparando-os incondicionalmente, abrindo-lhes os lares, rodeando-os, animando-os, auxiliando-lhes os passos trôpegos nas ruas. Nos dias facultados às visitas, invadia os hospitais, em massa, em silêncio — religiosamente. Abeiravam-se então os visitantes dos leitos como se neles jazessem velhos conhecidos; tratavam com os doentes menos graves sobre as provações sofridas e lances arriscados ocorridos; e, ao deixarem aquelas trágicas exposições da guerra, feitas de traumatismos e moléstias horríveis, levavam, afinal, um juízo claro sobre a luta mais brutal dos nossos tempos. Mas, por um contraste inexplicável, sobre esta comiseração profunda e geral pairava, intenso, um entusiasmo vibrante. Os mártires tinham ovações de triunfadores. E estas despontavam ao acaso, sem combinações prévias, rápidas, espontâneas, incisivas, aparecendo e desaparecendo em quartos de hora, num desencadear intermitente de movimentos impulsivos. Os dias sucediam-se agitados numa larga movimentação de multidões ruidosas, turbilhonando nas ruas e nas praças, no meio de expansões discordes, numa alacridade singular rorejada de prantos, por meio da qual se fazia a comemoração sombria do heroísmo. Os feridos eram uma revelação dolorosíssima, certo, mas de algum modo alentadora. Naquelas sevícias retratava-se a energia de uma raça. Aqueles homens, que chegavam dilacerados pelas garras do jagunço e pelos espinhos da terra, eram o vigor de um povo posto à prova do ferro, à prova do fogo e à prova da fome. Abaladas pelo cataclismo da guerra, as camadas superficiais de uma nacionalidade cindiam-se, pondo à luz os seus elementos profundos naqueles titãs resignados e estóicos. Sobre tudo isto um pensamento diverso, não boquejado sequer mas por igual dominador, latente em todos os espíritos: a admiração pela ousadia dos sertanejos incultos, homens da mesma raça, de encontro aos quais se despedaçavam daquele modo batalhões inteiros...

E um longo frêmito tonificador vibrava nas almas. Faziam-se romarias ao quartel da Palma, onde estava ferido o coronel Carlos Teles; à Jiquitaia, onde convalescia o general Savaget; e quando este último pôde arriscar alguns passos nas ruas, paralisou-se inteiramente toda a azáfama comercial da Cidade Baixa, em ovação espontânea e imensa, que irradiando de repente e congregando a população em torno do heróico chefe da 2ª coluna, transmudou um dia comum de trabalho em dia de festa nacional...