O MARECHAL BITTENCOURT

O marechal Carlos Machado de Bittencourt, principal árbitro da situação, desenvolveu, então, atividade notável.

Vinha de molde para todas as dificuldades do momento.

Era um homem frio, eivado de um ceticismo tranqüilo e inofensivo. Na sua simplicidade perfeitamente plebéia se amorteciam todas as expansões generosas. Militar às direitas, seria capaz — e demonstrou-o mais tarde ultimando tragicamente a vida — de se abalançar aos maiores riscos. Mas friamente, equilibradamente, encarrilhado nas linhas inextensíveis do dever. Não era um bravo e não era um pusilânime. Ninguém podia compreendê-lo arrebatado num lance de heroísmo. Ninguém podia imaginá-lo subtraindo-se tortuosamente a uma conjuntura perigosa. Sem ser uma organização militar completa e inteiriça, afeiçoara-se todavia ao automatismo típico dessas máquinas de músculos e nervos feitas para agitarem mecanicamente à pressão inflexível das leis.

Mas isto menos por educação disciplinar e sólida que por temperamento, inerte, movendo-se passivo, comodamente endentado na entrosagem complexa das portarias e dos regulamentos. Fora disto era um nulo. Tinha o fetichismo das determinações escritas. Não as interpretava, não as criticava: cumpria-as. Boas ou péssimas, absurdas, extravagantes, anacrônicas, estúpidas ou úteis, fecundas, generosas e dignas, tornavam-no, proteiforme, espelhando-as — bom ou detestável, extravagante ou generoso e digno. Estava escrito. Por isto todas as vezes que os abalos políticos lhas baralhavam, se retraía cautelosamente ao olvido.

O marechal Floriano Peixoto — profundo conhecedor dos homens do seu tempo — nos períodos críticos de seu governo, em que a índole pessoal de adeptos ou adversários influía, deixou-o sempre, sistematicamente, de parte. Não o chamou; não o afastou; não o prendeu. Era-lhe por igual desvalioso como adversário ou como partidário. Sabia que o homem, cuja carreira se desatava numa linha reta seca, inexpressiva e intorcível, não daria um passo a favor ou contra no travamento dos estados de sítio.

A República fora-lhe acidente inesperado no fim da vida. Não a amou nunca. Sabem-nos quantos com ele lidaram. Foi-lhe sempre novidade irritante, não porque mudasse os destinos de um povo senão porque alterara umas tantas ordenanças e uns tantos decretos, e umas tantas fórmulas, velhos preceitos que sabia de cor e salteado. Ao seguir para a Bahia desinfluíra todos os entusiasmos. Quem dele se abeirasse, buscando alentos de uma intuição feliz ou um traço varonil, sulcando a situação emocionante e grave, que até lá o arrastava, topava, surpreso, a esterilidade de uns conceitos triviais, longas frivolidades cruelmente enfadonhas sobre paradas de tropas, intermináveis minúcias sobre distribuição de gênero e remontas de cavalhadas — como se este mundo todo fosse uma imensa Casa da Ordem, e a História uma variante da escrituração dos sargentos.

Saltou naquela capital quando ia em sua plenitude o fervor patriótico de todas as classes; e de algum modo o amorteceu. Manifestações ruidosas, versos flamívomos, oradores explosivos, passaram-lhe por diante, estrondaram-lhe em torno, deflagraram-lhe aos ouvidos, num estrepitar de palmas e aplausos. Ouviu-os indiferente e contrafeito. Não sabia respondê-los. Tinha a frase emperrada e pobre. Além disso, tudo quanto saía do passo ordinário da vida não o comovia, desorientava-o, contrariava-o.

Recém-vindos da luta, requerendo uma transferência ou uma licença, nada adiantavam se, dispensando a formalidade de um atestado médico, lhe pusessem à vista apenas o rombo de um tiro de trabuco ou um gilvaz sangüíneo ou um rosto cadavérico de esmaleitado. Eram cousas banais, do ofício.