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E à nova do desastre, avolumando a gravidade da luta nos sertões, o
governo não descobriu quem melhor lhe pudesse balancear as exigências
gravíssimas. Escolheu-o para chefe da expedição vingadora. Em
torno do nomeado criara-se uma legenda de bravura.
Recém-vindo de Santa Catarina, onde fora o principal ator no
epílogo da campanha federalista do Rio Grande, tinha excepcional
renome feito de aclamações e apodos, consoante o modo de julgar
incoerente e extremado da época em que eram vivos os mínimos
incidentes da guerra civil distendida da baía do Rio de Janeiro para
o Sul, pela revolta da esquadra.
Entre dous extremos, do arrojo de Gumercindo Saraiva à abnegação
de Gomes Carneiro, a opinião nacional oscilava espelhando os mais
díspares conceitos no aquilatar vitoriosos e vencidos; e nessa
instabilidade, nesse baralhamento, nesse afogueado expandir da nossa
sentimentalidade suspeita, o que de fato se fazia em todos os tons,
com todas as cores e sob aspectos vários — era a caricatura do
heroísmo. Os heróis imortais de quarto de hora, destinados à
suprema consagração de uma placa à esquina das ruas, entravam,
surpreendidos e de repente, pela história dentro, aos encontrões,
como intrusos desapontados, sem que se pudesse saber se eram bandidos
ou santos, envoltos de panegíricos e convícios, surgindo entre
ditirambos ferventes, ironias diabólicas e invectivas despiedadas, da
sangueira de Inhanduí, da chacina de Campo Osório, do cerco
memorável da Lapa, dos barrocais do Pico do Diabo, ou do
platonismo marcial de Itararé.
Irrompiam a granel. Eram legião. Todos saudados; amaldiçoados
todos.
Ora, entre eles, o coronel Moreira César era figura à parte.
Surpreendiam-se igualmente ao vê-lo admiradores e adversários. O
aspecto reduzia-lhe a fama. De figura diminuta — um tórax
desfibrado sobre pernas arcadas em parênteses — era organicamente
inapto para a carreira que abraçara.
Faltava-lhe esse aprumo e compleição inteiriça que no soldado são
a base física da coragem. Apertado na farda, que raro deixava, o
dólmã feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe a
postura. A fisionomia inexpressiva e mórbida completava-lhe o porte
desgracioso e exíguo. Nada, absolutamente, traía a energia
surpreendedora e temibilidade rara de que dera provas, naquele rosto de
convalescente sem uma linha original e firme: — pálido alongado pela
calva em que se expandia a fronte bombeada, e mal alumiado por olhar
mortiço, velado de tristeza permanente.
Era uma face imóvel como um molde de cera, tendo a impenetrabilidade
oriunda da própria atonia muscular. Os grandes paroxismos da cólera
e a alacridade mais forte ali deviam amortecer-se inapercebidos, na
lassidão dos tecidos, deixando-a sempre fixamente impassível e
rígida.
Os que pela primeira vez o viam custava-lhes admitir que estivesse
naquele homem de gesto lento e frio, maneiras corteses e algo
tímidas, o campeador brilhante, ou o demônio crudelíssimo que
idealizavam. Não tinha os traços característicos nem de um, nem de
outro. Isto, talvez, porque fosse as duas cousas ao mesmo tempo.
Justificavam-se os que o aplaudiam e os que o invectivavam. Naquela
individualidade singular entrechocavam- se, antinômicas, tendências
monstruosas e qualidades superiores, umas e outras no máximo grau de
intensidade. Era tenaz, paciente, dedicado, leal, impávido,
cruel, vingativo, ambicioso. Uma alma proteiforme constrangida em
organização fragílima.
Aqueles atributos, porém, velava-os reserva cautelosa e
sistemática. Um único homem os percebeu ou decifrou bem, o marechal
Floriano Peixoto. Tinha para isto a afinidade de inclinações
idênticas. Aproveitou-o, na ocasião oportuna, como Luís XII
aproveitaria Bayard, se pudesse enxertar na bravura romanesca do
Cavaleiro sem Máculas as astúcias de Fra Diavolo.
Moreira César estava longe da altitude do primeiro e mais longe ainda
da depressão moral do último. Não seria, entretanto, imperdoável
exagero considerá-lo misto reduzido de ambos. Alguma cousa de grande
e incompleto, como se a evolução prodigiosa do predestinado parasse,
antes da seleção final dos requisitos raros com que o aparelhara,
precisamente na fase crítica em que ele fosse definir-se como herói
ou como facínora. Assim, era um desequilibrado. Em sua alma a
extrema dedicação esvaía-se no extremo ódio, a calma soberana em
desabrimentos repentinos e a bravura cavalheiresca na barbaridade
revoltante.
Tinha o temperamento desigual e bizarro de um epiléptico provado,
encobrindo a instabilidade nervosa de doente grave em placidez
enganadora.
Entretanto, não raro, a sua serenidade partia-se rota pelos
movimentos impulsivos da moléstia que somente mais tarde, mercê de
comoções violentas, se desvendou inteiramente nas manifestações
físicas dos ataques. E se pudéssemos acompanhar a sua vida
assistiríamos ao desdobramento contínuo do mal, que lhe imprimiu,
como a outros sócios de desdita, um feitio original e interessante,
definido por uma sucessão por demais eloqüente de atos que,
aparecendo intercalados por períodos de calma crescentemente
reduzidos, constituem os pontos determinantes da curva inflexível em
que o arrebatava a fatalidade biológica.
De feito, eram correntes entre os seus companheiros de armas os
episódios frisantes que, de tempos a tempos, com ritmo inabalável,
lhe interferiam a linha de uma carreira militar correta como poucas.
Fora longo rememorá-los, além do perigo de incidirmos no arquivar
versões exageradas ou falsas. À parte, porém, todos os casos
duvidosos, definidos sempre pelo traço preponderante de vias de fato
violentíssimas — aqui o ultraje, a rebencadas, de um médico
militar; além a arremetida a faca, felizmente tolhida em tempo,
contra o oficial argentino, por certa palavra mal compreendida —
apontemos, de relance, os mais geralmente conhecidos.
Um sobretudo dera relevo à sua energia selvagem.
Foi em 1884, no Rio de Janeiro. Um jornalista, ou melhor, um
alucinado, criara, agindo libérrimo graças à frouxidão das leis
repressivas, escândalo permanente de insultos intoleráveis na Corte
do antigo Império; e tendo respingado sobre o exército parte das
alusões indecorosas, que por igual abrangiam todas as classes, do
último cidadão ao monarca, foi infelizmente resolvida por alguns
oficiais, como supremo recurso, a justiça fulminante e desesperadora
do linchamento.
Assim se fez. E entre os subalternos encarregados de executar a
sentença — em plena rua, em pleno dia, diante da justiça armada
pelos Comblains de toda a força policial em armas — figurava, mais
graduado, o capitão Moreira César, ainda moço, à volta dos
trinta anos, e tendo já em seus assentamentos, averbados, merecidos
elogios por várias comissões exemplarmente cumpridas. E foi o mais
afoito, o mais impiedoso, o primeiro talvez no esfaquear pelas costas
a vítima, exatamente na ocasião em que ela, num carro, sentada ao
lado de autoridade superior do próprio exército, se acolhera ao
patrocínio imediato das leis...
O crime acarretou-lhe a transferência para Mato Grosso, e dessa
Sibéria canicular do nosso exército tornou somente após a
proclamação da República.
Vimo-lo nessa época.
Era ainda capitão e embora nunca houvesse arrancado da espada em
combate, recordava um triunfador. Nos dias ainda vacilantes do novo
regime, o governo parecia desejar ter perto de si aquele esteio firme
— o homem para as crises perigosas e para as grandes temeridades. A
sua figura de menino atravessava os quartéis e as ruas envolta de
murmúrio simpático e louvaminheiro comentando-lhe em lisonjarias os
lances capitais da vida, acerca dos quais, entretanto, era de todo
muda uma fé de ofício de burocrata inofensivo e tímido, repleta de
encômios ao desempenho de missões pacíficas.
Por um contraste expressivo, nos documentos da profissão guerreira é
que estava a placabilidade de uma existência acidentada, revolta e
turbulenta em que, não raro, relampagueara a faca, ao lado da espada
inteiramente virgem.
Esta sai-lhe da bainha, afinal, nos últimos anos da existência.
Em 1893, já coronel, porque galgara velozmente três postos em
dous anos, ao declarar-se a revolta da armada, o marechal Floriano
destacou-o armado de poderes discricionários para Santa Catarina,
como uma barreira à conflagração que se reanimara no Sul e ameaçava
os estados limítrofes. Seguiu; e em ponto algum do nosso território
pesou tão firme e tão estrangulador o guante dos estados de sítio.
Os fuzilamentos que ali se fizeram, com triste aparato de imperdoável
maldade, dizem-no de sobra. Abalaram tanto a opinião nacional que,
ao terminar a revolta, o governo civil, recém-inaugurado, pediu
contas de tais sucessos ao principal responsável. A resposta, pelo
telégrafo, foi pronta. Um “não”, simples, seco, atrevido,
cortante, um dardo batendo em cheio a curiosidade imprudente dos
poderes constituídos, sem o atavio, sem o rodeio, sem a ressalva da
explicação mais breve.
Meses depois chamaram-no ao Rio de Janeiro.
Embarca com o seu batalhão, o 7º, num navio mercante; e em pleno
mar, com surpresa dos próprios companheiros, prende o comandante.
Assaltara-o — sem que para tal houvesse o mínimo pretexto — a
suspeita de uma traição, um desvio na rota, adrede disposto para o
perder e aos soldados. O ato seria absolutamente inexplicável se não
o caracterizássemos como aspecto particular da desorganização
psíquica que o vitimava. Não lhe diminuiu, contudo, o prestígio.
Fez-se dono do batalhão que comandava; deu-lhe um pessoal que
ultrapassava, de muito, o número regulamentar de praças, entre as
quais — em manifesta violação de lei — dezenas de crianças que não
podiam carregar as armas; e, imperando incondicionalmente, organizou
o melhor corpo do exército, porque nos longos intervalos lúcidos
patenteava francas qualidades eminentes e raras de chefe disciplinador e
inteligente, contrastando com os paroxismos da exaltação
intermitente. Estes tornaram-se, por fim, mais ostensivos e
repetidos — num crescendo inflexível.
Nomeado para a expedição contra Canudos, estadeou-os numa série
de desatinos culminados afinal por uma catástrofe.
Vê-los-emos em breve, extremados por dous ímpetos de impulsivo: a
partida caprichosa de Monte Santo, de improviso, com espanto de seu
próprio estado-maior, precisamente na véspera do dia prefixo em
detalhe para a marcha; e, três dias mais tarde, o arremesso contra o
arraial, de mil e tantos homens exaustos de uma carreira de léguas,
precisamente na véspera do dia marcado para o assalto.
Estes últimos fatos, e a sua identidade está no objetivarem a mesma
nevrose, tiveram a intercorrência dos ataques.
Foram uma revelação.
Todos os acidentes singulares de sua existência desconexa, viu-se
afinal que eram sinais comemorativos enfeixando uma diagnose única e
segura...
Realmente, a epilepsia alimenta-se de paixões; avoluma-se no
próprio expandir das emoções subitâneas e fortes; mas, quando,
ainda larvada, ou traduzindo-se em uma alienação apenas afetiva,
solapa surdamente as consciências, parece ter na livre manifestação
daquelas um derivativo salvador atenuando os seus efeitos. De sorte
que, sem exagero de frase, se pode dizer que há muitas vezes num
crime, ou num lance raro de heroísmo, o equivalente mecânico de um
ataque. Contido o braço homicida, ou imobilizado, de chofre, o
herói no arremesso glorioso, o doente pode surgir, ex abrupto,
sucumbindo ao acesso. Daí esses atos inesperados, incompreensíveis
ou brutais, em que a vítima procura iludir instintivamente o próprio
mal, buscando muitas vezes o crime como um derivativo à loucura.
Durante longo tempo numa semiconsciência de seu estado, numa série
de delírios breves e fugazes, que ninguém percebe, que nem ela às
vezes percebe, sente crescer a instabilidade da vida. E luta
tenazmente. Os intervalos lúcidos fazem-se-lhe ponto de apoio à
consciência vacilante à procura de motivos inibitórios numa
ponderação cada vez mais penosa das condições normais ambientes.
Aqueles, entretanto, a pouco e pouco se enfraquecem. A
inteligência abalada afinal mal se subordina às condições exteriores
ou relaciona os fatos e, em contínuo descair, baralha-os,
perturba-os, inverte-os, deforma-os. O doente cai, então, no
estado crepuscular, segundo uma expressão feliz, e condensa no
cérebro, como se fosse a soma de todos os delírios anteriores,
instável, pronto a desencadear-se em ações violentas, que o podem
atirar no crime ou, acidentalmente, na glória, o potencial da
loucura.
Cabe à sociedade, nessa ocasião, dar-lhe a camisa-de-força ou a
púrpura. Porque o princípio geral da relatividade abrange as mesmas
paixões coletivas. Se um grande homem pode impor-se a um grande povo
pela influência deslumbradora do gênio, os degenerados perigosos
fascinam com igual vigor as multidões tacanhas. Ora, entre nós, se
exercitava o domínio do caput mortuum das sociedades. Despontavam,
efêmeras, individualidades singulares; e entre elas o coronel César
destacava-se em relevo forte, como se a niilidade do seu passado
salientasse melhor a energia feroz que desdobrara nos últimos tempos.
É cedo ainda para que se lhe defina a altitude relativa e a depressão
do meio em que surgiu. Na apreciação dos fatos o tempo substitui o
espaço para a focalização das imagens: o historiador precisa de
certo afastamento dos quadros que contempla.
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