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Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados,
as beatas — êmulas das bruxas das igrejas — revestidas da capona
preta lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição; as solteiras,
termo que nos sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e
despejadas, soltas na gandaíce sem freios; as moças donzelas ou
moças damas, recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias;
nivelando-se pelas mesmas rezas. Faces murchas de velhas —
esgrouviados viragos em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece; —
rostos austeros de matronas simples; fisionomias ingênuas de raparigas
crédulas, misturavam-se em conjunto estranho. Todas as idades,
todos os tipos, todas as cores...
Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros,
de caboclas; trunfas escandalosas, de africanas; madeixas castanhas e
louras de brancas legítimas, embaralhavam-se, sem uma fita, sem um
grampo, sem uma flor, o toucado ou a coifa mais pobre. Nos
vestuários singelos, de algodão ou de chita, deselegantes e
escorridos, não havia lobrigar-se a garridice menos pretensiosa: um
xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor, atenuando a monotonia
das vestes encardidas quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas,
deixando expostos os peitos cobertos de rosários, de verônicas, de
cruzes, de figas, de amuletos, de dentes de animais, de bentinhos,
ou de nôminas encerrando cartas santas, únicos atavios que perdoava a
ascese exigente do evangelizador. Aqui, ali, extremando-se a
relanços naqueles acervos de trapos, um ou outro rosto formosíssimo,
em que ressurgiam, suplantando impressionadoramente a miséria e o
sombreado das outras faces rebarbativas, as linhas dessa beleza imortal
que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos. Madonas
emparceiradas a fúrias, belos olhos profundos, em cujos negrumes
afuzila o desvario místico; frontes adoráveis, mal escampadas sob os
cabelos em desalinho, eram profanação cruel afogando-se naquela
matulagem repugnante que exsudava do mesmo passo o fartum engulhento das
carcaças imundas e o lento salmear dos benditos lúgubres como
responsórios... A reveses, as fogueiras quase abafadas,
vasquejando sob nuvens de fumo, crepitam, revivendo ao sopro da
viração noturna e chofrando precípites clarões sobre a turba.
Destaca-se, então, mais compacto, o grupo varonil dos homens,
mostrando idênticos contrastes: vaqueiros rudes e fortes, trocando,
como heróis decaídos, a bela armadura de couro pelo uniforme reles de
brim americano; criadores, ricos outrora, felizes pelo abandono das
boiadas e dos pousos animados; e menos numerosos, porém mais em
destaque, gandaieiros de todos os matizes, recidivos de todos os
delitos.
Na claridade amortecida dos braseiros esbatem-se os seus perfis
interessantes e vários. Já são famosos alguns. Prestigia-os o
renome de arriscadas aventuras, que a imaginação popular romanceia e
amplia. Lugar-tenentes do ditador humilde, tomam armados a frente do
ajuntamento. Mas não há distinguir-se-lhes neste instante, na
atitude e no gesto, o desgarre provocante dos valentões
incorrigíveis.
De joelhos, mãos enclavinhadas sobre o peito, o olhar tençoeiro e
mau esvai-se-lhes contemplativo e vago... José Venâncio, o
terror da Volta Grande, deslembra-se das dezoito mortes cometidas e
do espantalho dos processos à revelia, dobrando, contrito, a fronte
para a terra.
Ladeia-o o afoito Pajeú, rosto de bronze vincado de apófises
duras, mal aprumado o arcabouço atlético. Estático, mãos
postas, volve, como as suçuaranas em noite de luar, olhar absorto
para os céus. Logo após o seu ajudante-de-ordens inseparável,
Lalau, queda-se igualmente humílimo, joelhos dobrados sobre o
trabuco carregado. Chiquinho e João da Mota, dous irmãos aos
quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes nas estradas de
Cocorobó e Uauá, aparecem unidos, desfiando, crédulos, as
contas do mesmo rosário. Pedrão, cafuz entroncado e bruto, que com
trinta homens escolhidos guardava as vertentes da Canabrava, mal se
distingue, afastado, próximo de um digno êmulo de tropelias.
Estêvão, negro reforçado, disforme, corpo tatuado a bala e a
faca, que lograra vingar centenas de conflitos graças à
disvulnerabilidade rara. Era o guarda do Cambaio. Joaquim
Tranca-Pés, outro espécime de guerrilheiro sanhudo, que velava no
Angico, ombreia com o Major Sariema, de estatura mais elegante,
lidador sem posição fixa, destemeroso mas irrequieto, talhado para
as arrancadas subitâneas e atrevidas. Antepõe-se-lhe, no
aspecto, o tragicômico Raimundo Boca-Torta, do Itapicuru,
espécie de funâmbulo patibular, face contorcida em esgar ferino,
como um traumatismo hediondo. O ágil Chico Ema, a quem se confiara
coluna volante de espias, surge junto a um cabecilha de primeira
linha, Norberto, predestinado à chefia suprema nos últimos dias de
Canudos.
Quinquim de Coiqui, um crente abnegado que alcançaria a primeira
vitória sobre a tropa legal; Antônio Fogueteiro, do Pau Ferro,
incansável aliciador de prosélitos; José Gamo; Fabrício de
Cocobocó... A massa restante dos fiéis volve-lhes,
intermitentes, nos intervalos dos kyries inçados de silabadas
incríveis, olhares carinhosos, refertos de esperanças.
O velho Macambira, pouco afeiçoado à luta, de coração mole,
segundo o dizer expressivo dos matutos, mas espírito infernal no gizar
tocaias incríveis; espécie de Imanus decrépito, mas perigoso
ainda, tomba de bruços no chão, tendo ao lado o filho, Joaquim,
criança arrojada e impávida, que figuraria em belo lance de
heroísmo, mais tarde.
Alheio à credulidade geral, um explorador solerte, Vila-Nova,
finge que ora, remascando cifras. E na frente de todos, o comandante
da praça, o chefe do povo, o astuto João Abade, abrange no olhar
dominador a turba genuflexa. No meio destes perfis trágicos uma
figura ridícula, Antônio Beato, mulato espigado, magríssimo,
adelgaçado pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio
sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando,
observando, indagando, insinuando-se jeitosamente pelas casas,
esquadrinhando todos os recantos do arraial, e transmitindo a todo
instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as
novidades existentes. Completa-o, como um prolongamento, José
Félix, o Taramela, quinhoneiro da mesma predileção, guarda das
igrejas, chaveiro e mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as
beatas de vestidos azuis cingidas de cordas de linho, encarregadas da
roupa, da refeição exígua daquele e de acenderem diariamente as
fogueiras para as rezas. E um tipo adorável, Manuel Quadrado,
olhando para tudo aquilo com indiferença nobilitadora. Era o
curandeiro; o médico. Na multidão suspeita a natureza tinha,
afinal, um devoto, alheio à desordem, vivendo num investigar perene
pelas drogarias primitivas das matas.
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