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Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível ou o
impulsivo violento, vivendo às disparadas pelos arrastadores.
Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e tenaz, com a
placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade
incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o
sempre perdidas, tragédias espantosas. Não há revivê-las ou
episodiá-las. Surgem de uma luta que ninguém descreve — a
insurreição da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos
postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé religiosa.
Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores
erguidos, bandeiras do Divino ruflando, lá se vão, descampados em
fora, famílias inteiras — não já os fortes e sadios senão os
próprios velhos combalidos e enfermos claudicantes, carregando aos
ombros e à cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos de uns
para outros lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos,
por onde passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas
tristes. Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas
dos penitentes... Mas os céus persistem sinistramente claros; o
sol fulmina a terra; progride o espasmo assombrador da seca. O matuto
considera a prole apavorada; contempla entristecido os bois
sucumbidos, que se agrupam sobre as fundagens das ipueiras, ou, ao
longe, em grupos erradios e lentos, pescoços dobrados, acaroados com
o chão, em mugidos prantivos “farejando a água”; — e sem que se
lhe amorteça a crença, sem duvidar da Providência que o esmaga.
Murmurando às mesmas horas as preces costumeiras, apresta-se ao
sacrifício. Arremete de alvião e enxada com a terra, buscando nos
estratos inferiores a água que fugiu da superfície. Atinge-os às
vezes; outras, após enormes fadigas, esbarra em uma lajem que lhe
anula todo o esforço despendido; e outras vezes, o que é mais
corrente, depois de desvendar tênue lençol líquido subterrâneo, o
vê desaparecer um, dous dias passados, evaporando-se sugado pelo
solo. Acompanha-o tenazmente, reprofundando a mina, em cata do
tesouro fugitivo. Volve, por fim, exausto, à beira da própria
cova que abriu, feito um desenterrado. Mas como frugalidade rara lhe
permite passar os dias com alguns manelos de paçoca, não lhe
afrouxa, tão de pronto, o ânimo.
Ali está, em torno, a caatinga, o seu celeiro agreste.
Esquadrinha-o. Talha em pedaços os mandacarus que desalteram, ou
as ramas verdoengas dos juazeiros que alimentam os magros bois
famintos; derruba os estípites dos ouricuris e rala-os, amassa-os,
cozinha-os, fazendo um pão sinistro, o bró, que incha os ventres
num enfarte ilusório, empanzinando o faminto: atesta os jiraus de
coquilhos; arranca as raízes túmidas dos umbuzeiros, que lhe
dessedentam os filhos, reservando para si o sumo adstringente dos
cladódios do xiquexique, que enrouquece ou extingue a voz de quem o
bebe, e demasia-se em trabalhos, apelando infatigável para todos os
recursos, — forte e carinhoso — defendendo-se e estendendo à prole
abatida e aos rebanhos confiados a energia sobre-humana.
Baldam-se-lhe, porém, os esforços.
A natureza não o combate apenas com o deserto. Povoa-a,
contrastando com a fuga das seriemas, que emigram para outros
tabuleiros e jandaias, que fogem para o litoral remoto, uma fauna
cruel. Miríades de morcegos agravam a magrém, abatendo-se sobre o
gado, dizimando-o. Chocalham as cascavéis, inúmeras, tanto mais
numerosas quanto mais ardente o estio, entre as macegas recrestadas.
À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros
e os novilhos, vem beirar a sua rancharia pobre.
É mais um inimigo a suplantar.
Afugenta-a e espanta-a, precipitando-se com um tição aceso no
terreiro deserto. E se ela não recua, assalta-a. Mas não a
tiro, porque sabe que desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a
onça, “vindo em cima da fumaça”, é invencível.
O pugilato é mais comovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão
esquerda a forquilha e à direita a faca, irrita e desafia a fera,
provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-a de um golpe.
Nem sempre, porém, pode aventurar-se à façanha arriscada. Uma
moléstia extravagante completa a sua desdita — a hemeralopia. Esta
falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações da luz; nasce
dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo
ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar.
Mal o sol se esconde no poente a vítima nada mais vê. Está cega.
A noite afoga-a, de súbito, antes de envolver a terra. E na
manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro
lampejo do levante, para se apagar, de novo, à tarde, com
intermitência dolorosa.
Renasce-lhe com ela a energia. Ainda se não considera vencido.
Restam-lhe, para desalterar e sustentar os filhos, os talos tenros,
os mangarás das bromélias selvagens. Ilude-os com essas iguarias
bárbaras. Segue, a pé agora, porque se lhe parte o coração só
de olhar para o cavalo, para os logradouros. Contempla ali a ruína
da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos sob as
árvores mortas, mal soerguendo o arcabouço murcho sobre as pernas
secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há dias e
intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a
bicadas as suas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira de
chão entorroado onde foi a aguada predileta; e, o que mais lhe dói,
os que ainda não de todo exaustos o procuram, e o circundam,
confiantes, urrando em longo apelo triste que parece um choro. E nem
um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas
verdes dos juás... Trançam-se, porém, ao lado, impenetráveis
renques de macambiras. É ainda um recurso. Incendeia-os, batendo o
isqueiro nas acendalhas das folhas ressequidas para os despir, em
combustão rápida, dos espinhos. E quando os rolos de fumo se
enovelam e se diluem no ar puríssimo, vêem-se, correndo de todos os
lados, em tropel moroso de estropiados, os magros bois famintos, em
busca do último repasto...
Por fim tudo se esgota e a situação não muda. Não há
probabilidade sequer de chuvas. A casca dos marizeiros não transuda,
prenunciando-as. O nordeste persiste intenso, rolante, pelas
chapadas, zunindo em prolongações uivadas na galhada estrepitante das
caatingas e o Sol alastra, reverberando no firmamento claro, os
incêndios inextinguíveis da canícula. O sertanejo assoberbado de
reveses, dobra-se afinal.
Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de “retirantes”.
Vê-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo
adiante, numa nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro
dia, outra. E outras. É o sertão que se esvazia.
Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão
caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no
êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para
quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial da vida.
Atinge-os. Salva-se.
Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o
saudade do sertão. Remigra. E torna feliz, revigorando,
cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas
passageiras da ventura perdidiça e instável, os mesmos dias longos de
transes e provações demorados.
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