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Resumamos; enfeixemos estas linhas esparsas.
Hegel delineou três categorias geográficas como elementos
fundamentais colaborando com outros no reagir sobre o homem, criando
diferenciações étnicas:
As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os
vales férteis, profusamente irrigados; os litorais e as ilhas.
Os llanos da Venezuela: as savanas que alargam o vale do
Mississippi, as pampas desmedidas e o próprio Atacama desatado sobre
os Andes — vasto terraço onde vagueiam dunas — inscrevem-se
rigorosamente nos primeiros.
Em que pese aos estios longos, às trombas formidáveis de areia, e
ao saltear de súbitas inundações não se incompatibilizam com a
vida.
Mas não ficam o homem à terra.
A sua flora rudimentar, de gramíneas e ciperáceas, reviçando
vigorosa nas quadras pluviosas, é um incentivo à vida pastoril, às
sociedades errantes dos pegureiros, passando móveis, num constante
armar e desarmar de tendas, por aqueles plainos — rápidas, dispersas
aos primeiros fulgores do verão.
Não atraem. Patenteiam sempre o mesmo cenário de uma monotonia
acabrunhadora, com a variante única da cor: um oceano imóvel, sem
vagas e sem praias.
Têm a força centrífuga do deserto: repelem; desunem; dispersam.
Não se podem ligar à humanidade pelo vínculo nupcial do sulco dos
arados. São um isolador étnico como as cordilheiras e o mar, ou as
estepes da Mongólia, varejadas, em corridas doudas, pelas catervas
turbulentas dos tártaros errabundos. Aos sertões do Norte,
porém, que à primeira vista se lhes equiparam, falta um lugar no
quadro do pensador germânico.
Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela
primeira subdivisão; ao atravessá-los no inverno, acredita-se que
são parte essencial da segunda.
Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes...
Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas
não se prolongam ao ponto de originarem penosíssimos êxodos, o homem
luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias de
abastança e, neste combate feroz, anônimo, terrivelmente obscuro,
afogado na solidão das chapadas, a natureza não o abandona de todo.
Ampara-o muito além das horas de desesperança, que acompanham o
esgotamento das últimas cacimbas.
Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em
mutações fantásticas, contrastando com a desolação anterior. Os
vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados,
repentinamente verdejantes. A vegetação recama de flores,
cobrindo-os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das
barrancas, e arredonda em colinas os acervos de blocos disjungidos —
de sorte que as chapadas grandes, intermeadas de convales, se ligam em
curvas mais suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o
desaparecer das soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos
tons na paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas mais
ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor.
Dilatam-se os horizontes. O firmamento, sem o azul carregado dos
desertos, alteia-se, mais profundo, ante o expandir revivescente da
terra.
E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.
Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera
asfixiadora; o empedramento do solo; a nudez da flora; e nas
ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas — o
espasmo assombrador da seca.
A natureza compraz-se em um jogo de antíteses.
Eles impõem por isto uma divisão especial naquele quadro. A mais
interessante e expressiva de todas — posta, como mediadora, entre os
vales nimiamente férteis e os estepes mais áridos.
Relegando a outras páginas a sua significação como fator de
diferenciação étnica, vejamos o seu papel na economia da terra.
A natureza não cria normalmente os desertos. Combate-os,
repulsa-os. Desdobram-se, lacunas inexplicáveis, às vezes sob as
linhas astronômicas definidoras da exuberância máxima da vida.
Expressos no tipo clássico do Saara — que é um termo genérico da
região maninha dilatada do Atlântico ao Índico, entrando pelo
Egito e pela Síria, assumindo todos os aspectos da enorme depressão
africana ao platô arábico ardentíssimo e Nedjed e avançando daí
para as areias do bejabãs, na Pérsia — são tão ilógicos que o
maior dos naturalistas lobrigou a gênese daquele na ação tumultuária
de um cataclismo, uma irrupção do Atlântico, precipitando-se,
águas revoltas, num irresistível remoinhar de correntes, sobre o
norte da África e desnudando-a furiosamente. Esta explicação de
Humboldt, embora se erija apenas como hipótese brilhante, tem um
significado superior. Extinta a preponderância do calor central e
normalizados os climas, do extremo norte e do extremo sul, a partir
dos pólos inabitáveis, a existência vegetativa progride para a linha
equinocial. Sob esta ficam as zonas exuberantes por excelência, onde
os arbustos de outras se fazem árvores e o regime, oscilando em duas
estações únicas, determina uniformidade favorável à evolução dos
organismos simples, presos diretamente às variações do meio. A
fatalidade astronômica da inclinação da eclíptica, que coloca a
Terra em condições biológicas inferiores às de outros planetas,
mal se percebe nas paragens onde uma montanha única sintetiza, do
sopé às cumeadas, todos os climas do mundo.
Entretanto, por elas passa, interferindo a fronteira ideal dos
hemisférios, o equador termal, de traçado perturbadíssimo de
inflexões vivas, partindo-se nos pontos singulares em que a vida é
impossível; passando dos desertos às florestas, do Saara, que o
repuxa para o norte, à Índia opulentíssima, depois de tangenciar a
ponta meridional da Arábia paupérrima; varando o Pacífico num
longo traço — rarefeito colar de ilhas desertas e escalvadas — e
abeirando, depois, em lento descambar para o sul, a Hylaea
portentosa do Amazonas. Da extrema aridez à exuberância
extrema...
É que a morfologia da Terra viola as leis gerais dos climas. Mas
todas as vezes que o facies geográfico não as combate de todo, a
natureza reage. Em luta surda, cujos efeitos fogem ao próprio raio
dos ciclos históricos, mas emocionante, para quem consegue
lobrigá-la ao través dos séculos sem conto, entorpecida sempre
pelos agentes adversos, mas tenaz, incoercível, num evolver seguro,
a Terra, como um organismo, se transmuda por intuscepção,
indiferente aos elementos que lhe tumultuam à face.
De sorte que se as largas depressões eternamente condenadas, a
exemplo da Austrália, permanecem estéreis, se anulam, noutros
pontos, os desertos.
A própria temperatura abrasada acaba por lhe dar um mínimo de
pressão atraindo o afluxo das chuvas; e as areias móveis, riscadas
pelos ventos, negando largo tempo a pega à planta mais humilde,
imobilizam-se, a pouco e pouco, presas nas radículas das
gramíneas; o chão ingrato e a rocha estéril decaem sob a ação
imperceptível dos líquens, que preparam a vinda das lecídeas
frágeis; e, por fim, os platôs desnudos, llanos e pampas de
vegetação escassa, as savanas e as estepes mais vivazes da Ásia
central surgem, num crescendo, refletindo sucessivas fases de
transfigurações maravilhosas.
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