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Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História,
resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na
precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando
caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro
apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos
quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem
poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre
profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem
brilhos. Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a
par de uma perspectiva maior, a vertigem... Ademais, não
desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se
amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios
lares, abraçadas aos filhos pequeninos?...
E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra
humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de
3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele
Antônio Beatinho que se nos entregara, confiante — e a quem devemos
preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa História?
Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir
desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas.
Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida
descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro. Jazia num dos
casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de
um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste
sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido
algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de
taboa, o corpo do “famigerado e bárbaro” agitador. Estava
hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos
cruzadas ao peito, rosto tumefacto e esquálido, olhos fundos cheios
de terra — mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado
durante a vida.
Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa — único
prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra! — faziam-se mister
os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse,
reduzindo-se a uma massa angulhenta de tecidos decompostos.
Fotografaram-nos depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a
sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que
estava, afinal extinto, aquele terribilíssimo antagonista.
Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a
sua cabeça tantas vezes maldita — e como fora malbaratar o tempo
exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma
atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de
sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores...
Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa,
aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali
estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas
essenciais do crime e da loucura...
É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das
nacionalidades...
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