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Coerente com a missão a que se devotara, ordenava, depois destas
homilias, penitências que de ordinário redundavam em benefício das
localidades. Reconstruíam-se templos abatidos; renovavam-se
cemitérios em abandono; erigiam-se construções novas e elegantes.
Os pedreiros e carpinteiros trabalhavam de graça; os abastados
forneciam, grátis, os materiais indispensáveis; o povo carregava
pedras. Durante dias seguidos, na azáfama piedosa, se agitavam os
operários cujos salários se averbavam nos céus.
E terminada a empresa o predestinado abalava... para onde? Ao
acaso, tomando a primeira vereda, pelos sertões em fora, pelas
chapadas multívias, sem olhar sequer para os que o encalçavam.
Não o contrariava o antagonismo de um adversário perigoso, o padre.
A dar-se crédito a testemunho valioso, aquele, em geral,
estimulava-lhe ou permitia-lhe as práticas pelas quais, sem nada
usufruir, promovia todos os atos de onde saem os rendimentos do clero:
batizados, desobrigas, festas e novenas.
Os vigários toleravam com boa sombra os despropósitos do Santo
endemoninhado que ao menos lhes acrescia a côngrua reduzida.
Percebeu-o, em 1882, o arcebispo da Bahia, procurando pôr
paradeiro a esta transigência, senão mal disfarçada proteção, por
uma circular dirigida a todos os párocos.
“Chegando ao nosso conhecimento, que pelas freguesias do centro deste
arcebispado, anda um indivíduo denominado Antônio Conselheiro,
pregando ao povo, que se reúne para ouvi-lo, doutrinas
supersticiosas e uma moral excessivamente rígida com que está
perturbando as consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade
dos párocos destes lugares, ordenamos a V. Revma., que não
consinta em sua freguesia semelhante abuso, fazendo saber aos
Paroquianos que lhes proibimos absolutamente, de se reunirem para
ouvir tal pregação, visto como, competindo na igreja católica,
somente aos ministros da religião, a missão santa de doutrinar os
povos, um secular, quem quer que ele seja, ainda quando muito
instruído e virtuoso, não tem autoridade para exercê-la.
Entretanto sirva isto para excitar cada vez mais o zelo de V.
Revma, no exercício do ministério da pregação, a fim de que os
seus paroquianos, suficientemente instruídos, não se deixem levar
por todo o vento de doutrina” etc.
Foi inútil a intervenção da Igreja.
Antônio Conselheiro continuou sem embaraços a sua marcha de
desnorteado apóstolo, pervagando nos sertões. E como se desejasse
reviver sempre a lembrança da primeira perseguição sofrida, volve
constantemente ao Itapicuru, cuja autoridade policial, por fim,
apelou para os poderes constituídos, em ofício onde, depois de
historiar ligeiramente os antecedentes do agitador, disse:
“...Fez neste termo seu acampamento e presentemente está no
referido arraial construindo uma capela a expensas do povo.
Conquanto esta obra seja de algum melhoramento, aliás dispensável,
para o lugar, todavia os excessos e sacrifícios não compensam este
bem, e, pelo modo por que estão os ânimos, é mais que justo e
fundado o receio de grandes desgraças.
Para que V. Sa. saiba quem é Antônio Conselheiro, basta dizer
que é acompanhado por centenas e centenas de pessoas, que ouvem-no e
cumprem suas ordens de preferência às do vigário da paróquia.
O fanatismo não tem limites e assim é quem, sem medo de erro, e
firmando em fatos, posso afirmar que adoram-no, como se fosse um
Deus vivo.
Nos dias de sermões, terços e ladainhas, o ajuntamento sobe a mil
pessoas. Na construção desta capela, cuja féria semanal é de
quase cem mil réis, décuplo do que devia ser pago, estão empregados
cearenses, aos quais Antônio Conselheiro presta a mais cega
proteção, tolerando e dissimulando os atentados que cometem, e esse
dinheiro sai dos crédulos e ignorantes, que, além de não
trabalharem, vendem o pouco que possuem e até furtam para que não
haja a menor falta, sem falar nas quantias arrecadadas que têm sido
remetidas para outras obras do Xorroxó, termo do Capim Grosso.”
E depois de apontar a última tropelia dos fanáticos:
“Havendo desinteligência entre o grupo de Antônio Conselheiro e o
vigário de Inhambupe, está aquele municiado como se tivesse de ferir
uma batalha campal, e consta que estão à espera que o vigário vá ao
lugar denominado Junco para assassiná-lo. Faz medo aos transeuntes
passar por alto, vendo aqueles malvados munidos de cacetes, facas,
facões, clavinotes; e ai daquele que for suspeito de ser infenso a
Antônio Conselheiro.”
Ao que se figura, este apelo, feito em termos tão alarmantes, não
foi correspondido. Nenhuma providência se tomou até meados de
1887, quando a diocese da Bahia interveio de novo, oficiando o
arcebispo ao presidente da província, pedindo providências que
contivessem o “indivíduo Antônio Vicente Mendes Maciel que
pregando doutrinas subversivas, fazia um grande mal à religião e ao
Estado, distraindo o povo de suas obrigações e arrastando-o após
si, procurando convencer de que era Espírito Santo” etc.
Ante o reclamo, o presidente daquela província dirigiu-se ao
ministro do Império, pedindo um lugar para o tresloucado no hospício
de alienados do Rio. O ministro respondeu ao presidente contrapondo o
notável argumento de não haver, naquele estabelecimento, lugar algum
vago; e o presidente oficiou de novo ao prelado, tornando-o ciente da
resolução admirável do governo.
Assim se abriu e se fechou o ciclo das providências legais que se
fizeram durante o Império.
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