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Com efeito, ali, totalmente diversos na origem, os atuais povoados
sertanejos se formaram de velhas aldeias de índios, arrebatadas, em
1758, do poder dos padres pela política severa de Pombal.
Resumindo-nos aos que ainda hoje existem, próximos e em torno do
lugar onde existia há cinco anos a Tróia de taipa dos jagunços,
vemos, mesmo em tão estreita área, os melhores exemplos.
De fato, em toda esta superfície de terras, que abusivas concessões
de sesmarias subordinaram à posse de uma só família, a de Garcia
d’Ávila (Casa da Torre), acham-se povoados antiqüíssimos. De
Itapicuru de Cima a Jeremoabo e daí acompanhando o S. Francisco
até os sertões de Rodelas e Cabrobó, avançaram logo no século
XVII as missões num lento caminhar que continuaria até ao nosso
tempo.
Não tiveram um historiador.
A extraordinária empresa apenas se retrata, hoje, em raros
documentos, escassos demais para traçarem a sua continuidade. Os que
existem, porém, são eloqüentes para o caso especial que
consideramos. Dizem, de modo iniludível, que enquanto o negro se
agitava na azáfama do litoral, o indígena se fixava em aldeamentos
que se tornariam cidades. A solicitude calculada do jesuíta e a rara
abnegação dos capuchinhos e franciscanos incorporavam as tribos à
nossa vida nacional; e quando no alvorecer do século XVIII os
paulistas irromperam em Pambu e na Jacobina, deram de vistas,
surpresos, nas paróquias que, ali, já centralizavam cabildas. O
primeiro daqueles lugares, vinte e duas léguas a montante de Paulo
Afonso, desde 1682 se incorporara à administração da
metrópole. Um capuchinho dominava-o, desfazendo as dissensões
tribais e imperando, humílimo, sobre os morubixabas mansos. No
segundo preponderava, igualmente exclusivo, o elemento indígena da
velhíssima missão do Saí.
Jeremoabo aparece, já em 1698, como julgado, o que permite
admitir-se-lhe origem muito mais remota. Aí o elemento indígena se
mesclava ligeiramente com o africano, o canhembora ao quilombola.
Incomparavelmente mais animado do que hoje, o humilde lugarejo
desviava para si, não raro, a atenção de João de Lencastre,
governador-geral do Brasil, principalmente quando se exacerbavam as
rivalidades dos chefes índios, munidos com as patentes, perfeitamente
legais, de capitães. Em 1702 a primeira missão dos franciscanos
disciplinou aqueles lugares, tornando-se mais eficaz que as ameaças
do governo. Harmonizaram-se as cabildas; e o afluxo de silvícolas
captados pela igreja foi tal que em um só dia o vigário de Itapicuru
batizou 3.700 catecúmenos. Perto se erigia, também vetusta,
a missão de Maçacará, onde, em 1687, tinha o opulento Garcia
d’Ávila uma companhia de seu regimento. Mais para o sul avultavam
outras: Natuba, também bastante antiga aldeia, erecta pelos
jesuítas, Inhambupe, que no elevar-se a paróquia originou larga
controvérsia entre os padres e o rico sesmeiro precitado; Itapicuru
(1639), fundada pelos franciscanos.
Mais para o norte, ao começar o século XVIII, o povoamento,
com os mesmos elementos, continuou mais intenso, diretamente
favorecido pela metrópole.
Na segunda metade do século XVII surgira no sertão de Rodelas a
vanguarda das bandeiras do Sul. Domingos Sertão centralizou na sua
fazenda do Sobrado o círculo animado da vida sertaneja. A ação
desse rude sertanista, naquela região, não tem tido o relevo que
merece. Quase na confluência das capitanias setentrionais, próximo
ao mesmo tempo do Piauí, do Ceará, de Pernambuco e da Bahia, o
rústico landlord colonial aplicou no trato de suas cinqüenta fazendas
de criação a índole aventurosa e irrequieta dos curibocas.
Ostentando como os outros dominadores do solo um feudalismo achamboado
— que o levava a transmudar em vassalos os foreiros humildes e em
servos os tapuias mansos — o bandeirante atingindo aquelas paragens, e
havendo conseguido o seu ideal de riqueza e poderio, aliava-se na
mesma função integradora ao seu tenaz e humilde adversário, o
padre. É que a metrópole, no Norte, secundava, sem vacilar, os
esforços deste último. Firmara-se desde muito o princípio de
combater o índio com o próprio índio, de sorte que cada aldeamento
de catecúmenos era um reduto ante as incursões dos silvícolas soltos
e indomáveis.
Ao terminar o século XVII, Lencastre fundou com o indígena
catequizado o arraial da Barra, para atenuar as depredações do
Acaroazes e Mocoazes. E daquele ponto à feição da corrente do
São Francisco, sucederam-se os aldeamentos e as missões, em N.
S. do Pilar, Sorobabé, Pambu, Aracapá, Pontal, Pajeú,
etc. É evidente, pois, que precisamente no trecho dos sertões
baianos mais ligado aos dos demais estados do Norte — em toda a orla
do sertão de Canudos — se estabeleceu desde o alvorecer na nossa
história um farto povoamento, em que sobressaía o aborígine
amalgamando-se ao branco e ao negro, sem que estes se avolumassem ao
ponto de dirimir a sua influência inegável.
As fundações ulteriores à expulsão dos jesuítas calcaram-se no
mesmo método. Do final do século XVIII ao nosso, em Pombal,
no Cumbe, em Bom Conselho e Monte Santo, etc., perseverantes
missionários, de que é modelo belíssimo Apolônio de Todi,
continuaram até aos nossos dias o apostolado penoso. Ora toda essa
população perdida num recanto dos sertões, lá permaneceu até
agora, reproduzindo-se livre de elementos estranhos, como que
insulada, e realizando, por isso mesmo, a máxima intensidade de
cruzamento uniforme capaz de justificar o aparecimento de um tipo
mestiço bem definido, completo. Enquanto mil causas perturbadoras
complicavam a mestiçagem no litoral revolvido pelas imigrações e pela
guerra; e noutros pontos centrais outros empeços irrompiam no rastro
das bandeiras — ali, a população indígena, aliada aos raros
mocambeiros foragidos, brancos escapos à justiça ou aventureiros
audazes, persistiu dominante.
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