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Como quer que fosse, porém, o certo é que em 1876 a repressão
legal o atingiu quando já se ultimara a evolução do seu espírito,
imerso de todo no sonho de onde não mais despertaria. O asceta
despontava, inteiriço, da rudeza disciplinar de quinze anos de
penitência. Requintara nessa aprendizagem de martírios, que tanto
preconizam os velhos luminares da Igreja. Vinha do tirocínio brutal
da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas e das
misérias fundas. Não tinha dores desconhecidas. A epiderme seca
rugava-se-lhe como uma couraça amolgada e rota sobre a carne morta.
Anestesiara-a com a própria dor; macerara-a e sarjara-a de
cilícios mais duros que os buréis de esparto; trouxera-a, de rojo,
pelas pedras dos caminhos; esturrara-a nos rescaldos das secas;
inteiriçara-a nos relentos frios; adormecera-a, em transitórios
repousos, nos leitos dilacerantes das caatingas... Abeirara muitas
vezes a morte nos jejuns prolongados, com requinte de ascetismo que
surpreenderia Tertuliano, esse sombrio propagandista da eliminação
lenta da matéria, “descarregando-se do seu sangue, fardo pesado e
importuno da alma impaciente por fugir...”.
Para quem estava neste tirocínio de amarguras, aquela ordem de
prisão era incidente mínimo. Recebeu-a indiferente. Proibiu aos
fiéis que o defendessem. Entregou-se. Levaram-no à capital da
Bahia. Ali, a sua fisionomia estranha: face morta, rígida como
uma máscara, sem olhar e sem risos; pálpebras descidas dentro de
órbitas profundas; e o seu entrajar singularíssimo; e o seu aspecto
repugnante, de desenterrado, dentro do camisolão comprido, feito uma
mortalha preta; e os longos cabelos corredios e poentes caindo pelos
ombros, emaranhando- se nos pêlos duros da barba descuidada, que
descia até a cintura — aferroaram a curiosidade geral. Passou pelas
ruas entre ovações de esconjuros e “pelos-sinais” dos crentes
assustados e das beatas retransidas de sustos.
Interrogaram-no os juízes estupefatos.
Acusavam-no de velhos crimes, cometidos no torrão nativo. Ouviu o
interrogatório e as acusações, e não murmurou sequer, revestido de
impassibilidade marmórea.
A escolta que o trouxera, soube-se depois, espancara-o covardemente
nas estradas. Não formulou a mais leve queixa.
Quedou na tranqüila indiferença superior de um estóico.
Apenas — e este pormenor curioso ouvimo-lo a pessoa insuspeita — no
dia do embarque para o Ceará pediu às autoridades que o livrassem da
curiosidade pública, a única coisa que o vexava.
Chegando à terra natal, reconhecida a improcedência da denúncia,
é posto em liberdade. E no mesmo ano reaparece na Bahia entre os
discípulos, que o aguardavam sempre.
Esta volta — coincidindo, segundo afirmam, com o dia que prefixara,
no momento de ser preso — tomou aspectos de milagre.
Tresdobrou a sua influência.
Vagueia então algum tempo, pelos sertões de Curaçá, estacionando
(1877) de preferência em Xorroxó, lugarejo de poucas centenas
de habitantes, cuja feira movimentada congrega a maioria dos povoadores
daquele trecho do S. Francisco. Uma capela elegante indica-lhe,
ainda, hoje, a estadia. E, mais venerável talvez, pequena
árvore, à entrada da vila, que foi muito tempo objeto de uma
fitolatria extraordinária. À sua sombra descansara o peregrino. Era
um arbusto sagrado. À sua sombra curvavam-se os crédulos doentes;
as suas folhas eram panacéia infalível.
O povo começava a grande série de milagres de que não cogitava
talvez o infeliz...
De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões, em todos os
sentidos, chegando mesmo até ao litoral, em Vila do Conde
(1887).
Em toda esta área não há, talvez, uma cidade ou povoado onde não
tenha aparecido. Alagoinhas, Inhambupe, Bom Conselho,
Jeremoabo, Cumbe, Mocambo, Maçacará, Pompal, Monte Santo,
Tucano e outros, viram-no chegar, acompanhado da farândola de
fiéis. Em quase todas deixava um traço de passagem: aqui um
cemitério arruinado, de muros reconstruídos; além uma igreja
renovada; adiante uma capela que se erguia, elegante sempre. A sua
entrada nos povoados, seguido pela multidão contrita, em silêncio,
alevantando imagens, cruzes e bandeiras do Divino, era solene e
impressionadora. Paralisavam-se as ocupações normais. Ermavam-se
as oficinas e as culturas. A população convergia para a vila onde,
em compensação, avultava o movimento das feiras; e durante alguns
dias, eclipsando as autoridades locais, o penitente errante e humilde
monopolizava o mando, fazia-se autoridade única.
Erguiam-se na praça, revestidas de folhagens, as latadas, onde à
tarde entoavam, os devotos, terços e ladainhas; e quando era grande
a concorrência, improvisava-se um palanque ao lado do barracão da
feira, no centro do largo, para que a palavra do profeta pudesse
irradiar para todos os pontos e edificar todos os crentes. As
prédicas
Ele ali subia e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas
existentes. Uma oratória bárbara e arrepiadora, feita de excertos
truncados das Horas Marianas, desconexa, abstrusa, agravada, às
vezes, pela ousadia extrema das citações latinas; transcorrendo em
frases sacudidas; misto inextricável e confuso de conselhos
dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias
esdrúxulas...
Era truanesco e era pavoroso.
Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalipse...
Parco de gestos, falava largo tempo, olhos em terra, sem encarar a
multidão abatida sob a algaravia, que derivava demoradamente, ao
arrepio do bom senso, em melopédia fatigante.
Tinha, entretanto, ao que parece, a preocupação do efeito
produzido por uma ou outra frase mais incisiva. Enunciava-a e
emudecia; alevantava a cabeça, descerrava de golpe as pálpebras;
viam-se-lhe então os olhos extremamente negros e vivos, e o olhar —
uma cintilação ofuscante... Ninguém ousava contemplá-lo. A
multidão sucumbida abaixava, por sua vez, as vistas, fascinada, com
o estranho hipnotismo daquela insânia formidável. E o grande
desventurado realizava, nesta ocasião, o seu único milagre:
conseguia não se tornar ridículo... Nestas prédicas, em que
fazia vitoriosa concorrência aos capuchinhos vagabundos das missões,
estadeava o sistema religioso incongruente e vago. Ora, quem as ouviu
não se forra a aproximações históricas sugestivas. Relendo as
páginas memoráveis em que Renan faz ressurgir, pelo galvanismo do
seu belo estilo, os adoudados chefes de seita dos primeiros séculos,
nota-se a revivescência integral de suas aberrações extintas. Não
há desejar mais completa reprodução do mesmo sistema, das mesmas
imagens, das mesmas fórmulas hiperbólicas, das mesmas palavras
quase. É um exemplo belíssimo da identidade dos estados evolutivos
entre os povos. O retrógrado do sertão reproduz o facies dos
místicos do passado. Considerando-o, sente-se o efeito maravilhoso
de uma perspectiva através dos séculos...
Está fora do nosso tempo. Está de todo entre esses retardatários
que Fouillée compara, em imagem feliz, à des coureurs sur le champ
de la civilisation, de plus en plus en retard.
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