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Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o
arraial, corrigindo os que saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia
ali paradoxalmente instituída — a poeira, no dizer dos jagunços —
viam-se, diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta
de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de
faltar às rezas.
Inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes
atentados, a justiça era, como tudo o mais, antinômica, no clã
policiado por facínoras. Visava uma delinqüência especial,
traduzindo-se na inversão completa do conceito do crime.
Exercitava-se, não raro duramente, cominando penas severíssimas
sobre leves faltas. O uso da aguardente, por exemplo, era delito
sério. Ai! do dipsomaníaco incorrigível que rompesse o interdito
imposto!
Conta-se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do
Juazeiro, foram ter a Canudos, levando alguns barris do líquido
inconcesso. Atraía-os o engodo de lucro inevitável. Levavam a
eterna cúmplice das horas ociosas dos matutos. Ao chegarem, porém,
tiveram, depois de descarregarem na praça a carga valiosa,
desagradável surpresa. Viram, ali mesmo, abertos os barris, a
machado, e inutilizado o contrabando sacrílego. E volveram
rápidos, desapontados, tendo às mãos, ao invés do ganho
apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas, amargos bolos com
que os presenteara aquela gente ingrata.
Este caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao
Conselheiro todos os perigos que adviriam deste haxixe nacional.
Interdizia-o menos por debelar um vício que para prevenir desordens.
Mas fora do povoado, estas podiam espalhar-se à larga. Dali
partiam bandos turbulentos arremetendo com os arredores. Toda a sorte
de tropelias era permitida, desde que aumentasse o patrimônio da
grei. Em 1894, as algaras, chefiadas por valentões de nota,
tornaram-se alarmantes. Foram em um crescendo tal, de depredações
e desacatos, que despertaram a atenção dos poderes constituídos,
originando mesmo calorosa e inútil discussão na Assembléia Estadual
da Bahia. Depredações
Em dilatado raio em torno de Canudos, talavam-se fazendas,
saqueavam-se lugarejos, conquistavam-se cidades! No Bom
Conselho, uma horda atrevida, depois de se apossar da vila, pô-la
em estado de sítio, dispersou as autoridades, a começar pelo juiz da
comarca e, como entreato hilariante na razzia escandalosa, torturou o
escrivão dos casamentos que se viu em palpos de aranha para impedir que
os crentes sarcásticos lhe abrissem, tosquiando-o, uma coroa larga,
que lhe justificasse o invadir as atribuições sagradas do vigário.
Os desordeiros volviam cheios de despojos para o arraial, onde
ninguém lhes tomava conta dos desmandos. Muitas vezes, diz o
testemunho unânime da população sertaneja, tais expedições eram
sugeridas por intuito diverso. Alguns fiéis abastados tinham
veleidades políticas. Sobrevinha a quadra eleitoral. Os grandes
conquistadores de urnas que, a exemplo de milhares de comparsas
disseminados neste país transformam a fantasia do sufrágio universal
na calva de Hércules da nossa dignidade, apelavam para o
Conselheiro. Canudos fazia-se, então, provisoriamente, o quartel
das guardas pretorianas dos capangas, que de lá partiam, trilhando
rumos prefixos, para reforçarem, a pau e a tiro, a soberania
popular, expressa na imbecilidade triunfante de um régulo qualquer; e
para o estraçoamento das atas; e para as mazorcas periódicas que a
lei marca, denominando-as “eleições”, eufemismo que é entre nós
o mais vivo traço das ousadias da linguagem. A nossa civilização de
empréstimo arregimentava, como sempre o fez, o banditismo sertanejo.
Ora, estas arrancadas eram um ensinamento. Eram úteis. Eram
exercícios práticos indispensáveis ao preparo para recontros mais
valentes. Compreendera-as, talvez, assim, o Conselheiro.
Tolerava-as. No arraial, porém, exigia, digamos em falta de
outro termo — porque os léxicos não o têm para exprimir um tumulto
disciplinado, — ordem inalterável. Ali permaneciam, inofensivos
porque eram inválidos, os seus melhores crentes: mulheres,
crianças, velhos alquebrados, doentes inúteis. Viviam
parasitariamente da solicitude do chefe, que lhes era o Santo
protetor, ao qual saudavam entoando versos há vinte e tantos anos
correntes nos sertões.
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Do céu veio uma luz
Que Jesus Cristo mandou.
Santo Antônio Aparecido
Dos castigos nos livrou!
Quem ouvir e não aprender
Quem souber e não ensinar
No dia do Juízo
A sua alma penará!
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Estas velhas quadras, que a tradição guardara, lembravam ao infeliz
os primeiros dias da vida atormentada e avivavam-lhe, porventura, os
últimos traços da vaidade, no confronto vantajoso com o santo
milagreiro por excelência.
O certo é que abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas
e produtos do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na
aparência inútil, era o cerne vigoroso do arraial. Formavam-na os
eleitos, felizes por terem aos ombros os frangalhos imundos,
esfiapados sambenitos de uma penitência que lhes fora a própria vida;
bem-aventurados porque o passo trôpego, remorado pelas muletas e
pelas anquiloses, lhes era a celeridade máxima, no avançar para a
felicidade eterna.
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