UM LANCE ÉPICO

Outros tinham delineamentos épicos:

No dia 1º de julho, o filho mais velho de Joaquim Macambira, rapaz de dezoito anos, abeirou-se do ardiloso cabecilha:

“Pai! quero escangalhar a matadeira!”

O astuto guerrilheiro, espécie grosseira de Imanus, acobreado e bronco, encarou-o impassível: “Consulta o Conselheiro — e vai.”

O valente abalou, seguido de onze companheiros dispostos. Transpuseram o Vaza-Barris, cortado em cacimbas. Investiram com a larga encosta ondulante da Favela. Embrenharam-se, num deslizar flexuoso de cobras, pelas caatingas ralas.

Ia em meio o dia. O Sol irradiava a pino sobre a terra, jorrando, sem fazer sombras, até ao fundo dos grotões mais fundos, os raios verticais e ardentes...

Naquelas paragens o meio-dia é mais silencioso e lúgubre que a meia-noite. Transverberando nas rochas expostas, refletindo nas chapadas nuas, repelido pelo solo recrestado e duro, todo o calor emitido para a terra reflui, tresdobrado, para o espaço, nas colunas ascensionais dos ares irrespiráveis e candentes. A natureza queda-se, enervada em quietude absoluta. Não sopra a viração mais leve. Não bate uma asa nos ares, cuja transparência junto ao chão se perturba em ondulações rápidas e ferventes. Repousa, estivando, a fauna das caatingas. Pendem, murchos, os ramos das árvores estonadas...

O exército descansava no alto da montanha, abatido pela canícula. Deitados a esmo pelas encostas, bonés caídos sobre os rostos para os resguardar, dormitando ou pensando nos lares distantes, as praças aproveitavam alguns momentos de tréguas, refazendo forças para a afanosa lide. Em frente, derramado sobre colinas — minúsculas casinhas em desordem, sem ruas e sem praças, acervo incoerente de casebres — aparecia Canudos, deserto e mudo, como uma tapera antiga.

Todo o exército respousava...

Nisto despontam, cautos, emergindo à ourela do matagal rasteiro e trançado, de arbúsculos em esgalhos, na clareira, no alto, onde estaciona a artilharia, doze rostos inquietos, olhares felinos, rápidos, percorrendo todos os pontos. Doze rostos apenas de homens ainda jacentes, de rastro, nos tufos das bromélias. Surgem lentamente. Ninguém os vê; ninguém os pode ver. Dão-lhes as costas com indiferença soberana vinte batalhões tranqüilos. Adiante divisam a presa cobiçada. Como um animal fantástico, prestes a um bote repentino, o canhão Whitworth, a matadeira, empina-se no reparo sólido. Volta para Belo Monte a boca truculenta e rugidora que tantas granadas revessou já sobre as igrejas sacrossantas. Caem-lhe sobre o dorso luzidio e negro os raios do Sol, ajaezando-a de lampejos. Os fanáticos contemplam-na algum tempo. Aprumam-se depois à borda da clareira. Arrojam-se sobre o monstro. Assaltam-no; aferram-no; jugulam-no. Um traz uma alavanca rígida. Ergue-a num gesto ameaçador e rápido...

E a pancada bate, estrídula e alta, retinindo...

E um brado de alarma estala na mudez universal das cousas; multiplica-se nas quebradas; enche o espaço todo; e detona em ecos que, atroando os vales, ressaltam pelos morros numa vibração triunfal e estrugidora, sacundido num repelão violento o acampamento inteiro...

Formam-se em acelerado as divisões. Num segundo os assaltantes se vêem num círculo de espingardas e sabres, sob uma irradiação de golpes e de tiros. Um apenas se salva — chamuscado, baleado, golpeado — correndo, saltando, rolando, impalpável entre os soldados tontos, varando redes de balas, transpondo cercas dilaceradoras de baionetas, caindo em cheio nas macegas, rompendo-as vertiginosamente e despenhando-se, livre afinal, alcandorado sobre abismos, pelos pendores abruptos da montanha...

Estes e outros casos — exagerado romancear dos mais triviais sucessos — dando à campanha um tom impressionante e lendário, abalavam a opinião pública da velha capital e, por fim, a de todo o país...