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A reação, porém, crescendo, malignou-lhe o ânimo. Dominador
incondicional, principiou de se irritar ante a menor contrariedade.
Certa vez, em Natuba, estando ausente o vigário, com quem não
estava em boas graças, apareceu e mandou carregar pedras para
consertos da igreja. Chega o padre; vê a invasão dos domínios
sagrados; irrita-se e resolve pôr embargos à desordem. Era homem
prático; apelou para o egoísmo humano.
Tendo a Câmara, dias antes, imposto aos proprietários o
calçamento dos passeios das casas, cedeu ao povo, para tal fim, as
pedras já acumuladas.
O Conselheiro não se limitou, desta vez, a sacudir as sandálias.
Saiu-lhe da boca a primeira maldição, às portas da cidade
ingrata; e partiu.
Tempos depois, a pedido do mesmo vigário, certa influência
política do local o chamou. O templo desabava, em ruínas; o mato
invadira todo o cemitério; e a freguesia era pobre. Só podia
renová-los quem tão bem dispunha dos matutos crédulos. O apóstolo
deferiu ao convite. Mas fê-lo através de imposições
discricionárias, relembrando, com altaneria destoante da pacatez
antiga, a afronta recebida.
Iam-no tornando mau.
Viu a República com maus olhos e pregou, coerente, a rebeldia
contra as novas leis. Assumiu desde 1893 uma feição combatente
inteiramente nova.
Originou-a fato de pouca monta.
Decretada a autonomia dos municípios, as Câmaras das localidades do
interior da Bahia tinham afixado nas tábuas tradicionais, que
substituem a imprensa, editais para a cobrança de impostos, etc. Ao
surgir esta novidade Antônio Conselheiro estava em Bom Conselho.
Irritou-o a imposição; e planejou revide imediato. Reuniu o povo
num dia de feira e, entre gritos sediciosos e estrepitar de foguetes,
mandou queimar as tábuas numa fogueira, no largo. Levantou a voz
sobre o “auto de fé”, que a fraqueza das autoridades não impedira,
e pregou abertamente a insurreição contra as leis.
Avaliou, depois, a gravidade do atentado.
Deixou a vila, tomando pela estrada de Monte Santo, para o norte.
O acontecimento repercutia na capital, de onde partiu numerosa força
de polícia para prender o rebelde e dissolver os grupos turbulentos.
Estes naquela época não excediam duzentos homens. A tropa
alcançou-os em Massete, lugar desabrigado e estéril entre Tucano e
Cumbe, nas cercanias das serras do Ovó. As trinta praças, bem
armadas, atacaram impetuosamente a turba de penitentes depauperados,
certas de os destroçarem à primeira descarga. Deram, porém, de
frente, com os jagunços destemerosos. Foram inteiramente
desbaratadas, precipitando-se na fuga, de que fora o primeiro a dar
exemplo o próprio comandante.
Esta batalha minúscula teria, infelizmente, mais tarde, muitas
cópias ampliadas.
Realizada a façanha, os crentes acompanharam, reatando a marcha, a
hégira do profeta. Não procuravam mais os povoados, como dantes.
Demandavam o deserto.
O desbarato da tropa prenunciava-lhes perseguições mais vigorosas;
e, certos do amparo da natureza selvagem, contavam com a vitória
enterreirando entre as caatingas os novos contendores. Estes
partiram, de fato, sem perda de tempo, da Bahia, em número de
oitenta praças, de linha. Mas não prosseguiram além de Serrinha,
de onde tornaram sem se aventurarem com o sertão. Antônio
Conselheiro, porém, não se iludiu com o inexplicável recuo, que o
salvara. Arrastou a matula de fiéis, a que se aliavam, dia a dia,
dezenas de prosélitos, pelas trilhas sertanejas fora, seguindo
prefixado rumo.
Conhecia o sertão. Percorrera-o todo numa romaria ininterrupta de
vinte anos. Sabia de paragens ignotas de onde o não arrancariam.
Marcara-as já talvez, prevenindo futuras vicissitudes.
Endireitou, rumo firme, em cheio para o norte.
Os crentes acompanharam-no. Não inquiriram para onde seguiam. E
atravessaram serranias íngremes, tabuleiros estéreis e chapadas
rasas, longos dias, vagarosamente, na marcha cadenciada pelo toar das
ladainhas e pelo passo tardo do profeta...
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