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Evitada a intrusão dispensável de um médico, um antropologista
encontrá-lo-ia normal, marcando logicamente certo nível da
mentalidade humana, recuando no tempo, fixando uma fase remota da
evolução. O que o primeiro caracterizaria como caso franco de
delírio sistematizado, na fase persecutória ou de grandezas, o
segundo indicaria como fenômeno de incompatibilidade com as exigências
superiores da civilização — um anacronismo palmar, a revivescência
de atributos psíquicos remotíssimos. Os traços mais típicos do seu
misticismo estranho, mas naturalíssimo para nós, já foram, dentro
de nossa era, aspectos religiosos vulgares. Deixando mesmo de lado o
influxo das raças inferiores, vimo-los há pouco, de relance, em
período angustioso da vida portuguesa. Poderíamos apontá-los em
cenário mais amplo. Bastava que volvêssemos aos primeiros dias da
Igreja, quando o gnosticismo universal se erigia como transição
obrigatória entre o paganismo e o cristianismo, na última fase do
mundo romano em que, precedendo o assalto dos Bárbaros, a literatura
latina do Ocidente declinou, de súbito, mal substituída pelos
sofistas e letrados tacanhos de Bizâncio.
Com efeito, os montanistas da Frígia, os adamitas infames, os
ofiólatras, os maniqueus bifrontes entre o ideal cristão emergente e
o budismo antigo, os discípulos de Marcos, os encratitas abstinentes
e macerados de flagícios, todas as seitas em que se fracionava a
religião nascente, com os seus doutores histéricos e exegeses
hiperbólicas, forneceriam hoje casos repugnantes de insânia. E
foram normais. Acolchetaram-se bem a todas as tendências da época
em que as extravagâncias de Alexandre Abnótico abalavam a Roma de
Marco Aurélio, com as suas procissões fantásticas, os seus
mistérios e os seus sacrifícios tremendos de leões lançados vivos ao
Danúbio, com solenidades imponentes presididas pelo imperador
filósofo...
A história repete-se.
Antônio Conselheiro foi um gnóstico bronco.
Veremos mais longe a exação do símile.
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