CAUSAS FAVORÁVEIS À FORMAÇÃO MESTIÇA DOS SERTÕES DISTINGUINDO-AS DOS CRUZAMENTOS NO LITORAL

Não sofismemos a história. Causas muito enérgicas determinaram o insulamento e conservação da autóctone. Destaquemo-las.

Foram, primeiro, as grandes concessões de sesmarias, definidoras da feição mais durável do nosso feudalismo tacanho.

Os possuidores do solo, de que são modelos clássicos os herdeiros de Antônio Guedes de Brito, eram ciosos dos dilatados latifúndios, sem raias, avassalando a terra. A custo toleravam a intervenção da própria metrópole. A ereção de capelas, ou paróquias, em suas terras fazia-se sempre através de controvérsias com os padres; e embora estes afinal ganhassem a partida caíam de algum modo sob o domínio dos grandes potentados. Estes dificultavam a entrada de novos povoadores ou concorrentes e tornavam as fazendas de criação, dispersas em torno das freguesias recém-formadas, poderosos centros de atração à raça mestiça que delas promanava.

Assim, esta se desenvolveu fora do influxo de outros elementos. E entregues à vida pastoril, a que por índole se afeiçoavam, os curibocas ou cafusos trigueiros, antecedentes diretos dos vaqueiros atuais, divorciados inteiramente das gentes do Sul e da colonização intensa do litoral, evolveram, adquirindo uma fisionomia original. Como que se criaram num país diverso.

A carta régia de 7 de fevereiro de 1701 foi, depois, uma medida supletiva desse isolamento. Proibira, cominando severas penas aos infratores, quaisquer comunicações daquela parte dos sertões com o Sul, com as minas de S. Paulo. Nem mesmo as relações comerciais foram toleradas; interditas as mais simples trocas de produtos.

Ora, além destes motivos, sobreleva-se, considerando a gênese do sertanejo no extremo norte, um outro; o meio físico dos sertões em todo o vasto território que se alonga do leito do Vaza-Barris ao do Parnaíba, no ocidente. Vimos-lhe a fisionomia original: a flora agressiva, o clima impiedoso, as secas periódicas, o solo estéril crespo de serranias desnudas, insulado entre os esplendores do majestoso araxá do centro dos planaltos e as grandes matas, que acompanham e orlam a curvatura das costas. Esta região ingrata para a qual o próprio tupi tinha um termo sugestivo, pora-porai-eima, remanescente ainda numa das serranias que a fecham pelo levante (Borborema), foi o asilo do tapuia. Batidos pelo português, pelo negro e pelo tupi coligados, refluindo ante o número, os indômitos cariris encontraram proteção singular naquele colo duro da terra, escalavrado pelas tormentas, endurado pela ossamenta rígida das pedras, ressequido pelas soalheiras, esvurmando espinheiras e caatingas. Ali se amorteciam, caindo no vácuo das chapadas, onde ademais nenhuns indícios se mostravam dos minérios apetecidos, os arremessos das bandeiras. A tapui-retama misteriosa ataviara-se para o estoicismo do missionário. As suas veredas multívias e longas retratavam a marcha lenta, torturante e dolorosa dos apóstolos. As bandeiras que a alcançavam, decampavam logo, seguindo, rápidas, fugindo, buscando outras paragens. Assombrava-as a terra, que se modelara para as grandes batalhas silenciosas da Fé. Deixavam-na, sem que nada lhes determinasse a volta; e deixavam em paz o gentio.

Daí a circunstância revelada por uma observação feliz, de predominarem ainda hoje, nas denominações geográficas daqueles lugares, termos de origem tapuia resistentes às absorções do português e do tupi, que se exercitaram noutros pontos. Sem nos delongarmos demais, resumamos às terras circunjacentes a Canudos a exemplificação deste fato de linguagem, que tão bem traduz uma vicissitude histórica.

“Transpondo o S. Francisco em direção ao sul, penetra-se de novo numa região ingrata pela inclemência do céu, e vai-se atravessando a bacia elevada do Vaza-Barris, antes de ganhar os trechos esparsos e mais deprimidos das chapadas baianas que, depois do salto de Paulo Afonso, depois de Canudos e de Monte Santo, levam a Itiúba, ao Tombador e ao Açuruá. Aí, nesse trecho do pátrio território, aliás dos mais ingratos, onde outrora se refugiaram os perseguidos destroços dos Orizes, Procás e Cariris, de novo aparecem, designando os lugares, os nomes bárbaros de procedência tapuia, que nem o português nem o tupi logrou suplantar.

Lêem-se então no mapa da região com a mesma freqüência dos acidentes topográficos os nomes como Pambu, Patamoté, Uauá, Bendegó, Cumbe, Maçacará, Cocorobó, Jeremoabo, Tragagó, Canché, Xorroxó, Quincuncá, Conchó, Centocé, Açuruá, Xiquexique, Jequié, Sincorá, Caculé ou Catolé, Orobó, Mocujé e outros, igualmente bárbaros e estranhos.”

É natural que grandes populações sertanejas, de par com as que se constituíram no médio S. Francisco, se formassem ali com a dosagem preponderante do sangue tapuia. E lá ficassem ablegadas, evolvendo em círculo apertado durante três séculos, até à nossa idade, num abandono completo, de todo alheias aos nossos destinos, guardando, intactas, as tradições do passado. De sorte que, hoje, quem atravessa aqueles lugares observa uma uniformidade notável entre os que os povoam: feições e estaturas variando ligeiramente em torno de um modelo único, dando a impressão de um tipo antropológico invariável, logo ao primeiro lance de vistas distinto do mestiço proteiforme do litoral. Porque enquanto este patenteia todos os cambiantes da cor e se erige ainda indefinidos, segundo o predomínio variável dos seus agentes formadores, o homem do sertão parece feito por um molde único, revelando quase os mesmos caracteres físicos, a mesma tez, variando brevemente do mamaluco bronzeado ao cafuz trigueiro; cabelo corredio e duro ou levemente ondeado; a mesma envergadura atlética, e os mesmos caracteres morais traduzindo-se nas mesmas superstições, nos mesmos vícios, e nas mesmas virtudes. A uniformidade, sob estes vários aspectos, é impressionadora. O sertanejo do Norte é, inegavelmente, o tipo de uma subcategoria étnica já constituída.