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O vaqueiro, porém, criou-se em condições opostas, em uma
intermitência, raro, perturbada, de horas felizes e horas cruéis,
de abastança e misérias — tendo sobre a cabeça, como ameaça
perene, o Sol, arrastando de envolta no volver das estações
períodos sucessivos de desvastações e desgraças.
Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se
homem, quase sem ter sido criança. Salteou- o, logo,
intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho
das secas no sertão. Cedo encarou a existência pela sua face
tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em
combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de
todas as energias.
Fez-se forte, esperto, resignado e prático.
Aprestou-se, cedo, para a luta.
O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro
antigo exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no
gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete
também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda,
muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas,
articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos
pelas luvas e guarda-pés de pele de veado — é como a forma grosseira
de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo.
Esta armadura, porém, de um vermelho pardo, como se fosse de bronze
flexível, não tem cintilações, não rebrilha ferida pelo Sol. É
fosca e poenta. Envolve ao combatente de uma batalha sem
vitórias... A sela da montaria, feita por ele mesmo, imita o
lombilho rio-grandense, mas é mais curta e cavada, sem os apetrechos
luxuosos daquele. São acessórios uma manta de pele de bode, um
couro resistente, cobrindo as ancas do animal, peitorais que lhe
resguardam o peito, e as joelheiras apresilhadas às juntas. Este
equipamento do homem e do cavalo talha-se à feição do meio.
Vestidos doutro modo não romperiam, incólumes, as caatingas e os
pedregais cortantes.
Nada mais monótono e feio, entretanto, do que esta vestimenta
original, de uma só cor — o pardo avermelhado do couro curtido — sem
uma variante, sem uma lista sequer diversamente colorida. Apenas, de
longe em longe, nas raras encamisadas, em que aos descantes da viola o
matuto deslembra as horas fatigadas, surge uma novidade — um colete
vistoso de pele de gato do mato ou de suçuarana com o pêlo mosqueado
virado para fora, ou uma bromélia rubra e álacre fincada no chapéu
de couro.
Isto, porém, é incidente passageiro e raro.
Extintas as horas do folguedo, o sertanejo perde o desgarre folgazão
— largamente expandido nos sapateados, em que o estalo seco das
alpercatas sobre o chão se parte nos tinidos das esporas e soalhas dos
pandeiros, acompanhando a cadência das violas vibrando nos rasgados —
e cai na postura habitual, tosco, deselegante e anguloso, num
estranho manifestar de desnervamento e cansaço extraordinários.
Ora, nada mais explicável do que este permanente contraste entre
extremas manifestações de força e agilidade e longos intervalos de
apatia.
Perfeita tradução moral dos agentes físicos da sua terra, o
sertanejo do Norte teve uma árdua aprendizagem de reveses.
Afez-se, cedo, a encontrá-los, de chofre, e a reagir, de
pronto.
Atravessa a vida entre ciladas, surpresas repentinas de uma natureza
incompreensível, e não perde um minuto de tréguas. É o batalhador
perenemente combalido e exausto, perenemente audacioso e forte;
preparando-se sempre para um recontro que não vence e em que se não
deixa vencer; passando da máxima quietude à máxima agitação; da
rede preguiçosa e cômoda para o lombilho duro, que o arrebata, como
um raio, pelos arrastadores estreitos, em busca das malhadas.
Reflete, nestas aparências que se contrabatem, a própria natureza
que o rodeia — passiva ante o jogo dos elementos e passando, sem
transição sensível, de uma estação à outra, da maior
exuberância à penúria dos desertos incendidos, sob o reverberar dos
estios abrasantes. É inconstante como ela. É natural que o seja.
Viver é adaptar-se. Ela o talhou à sua imagem: bárbaro,
impetuoso, abrupto...
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