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Monte Santo é um lugar lendário.
Quando, no século XVII, as descobertas das minas determinaram a
atração do interior sobre o litoral, os aventureiros que ao norte
investiam com o sertão, demandando as serras da Jacobina,
arrebatados pela miragem das minas de prata e rastreando o itinerário
enigmático de Belchior Dias, ali estacionavam longo tempo. A serra
solitária — a Piquaraçá dos roteiros caprichosos — dominando os
horizontes, norteava-lhes a marcha vacilante. Além disto,
atraía-os por si mesma, irresistivelmente.
É que em um de seus flancos, escritas em caligrafia ciclópica com
grandes pedras arrumadas, apareciam letras singulares — um A, um L
e um S — ladeados por uma cruz, de modo a fazerem crer que estava ali
e não avante, para o ocidente ou para o sul, o eldorado apetecido.
Esquadrinharam-na, porém, debalde os êmulos do Muribeca astuto,
seguindo, afinal, para os outros rumos, com as suas tropas de
potiguaras mansos e forasteiros armados de biscainhos...
A serra desapareceu outra vez entre as chapadas que domina...
No fim do século passado, porém, descobriu-a um missionário —
Apolônio de Todi. Vindo da missão de Maçacará, o maior
apóstolo do Norte impressionou-se tanto com o aspecto da montanha,
“achando-a semelhante ao calvário de Jerusalém”, que planeou logo
a ereção de uma capela. Ia ser a primeira do mais tosco e do mais
imponente templo da fé religiosa.
Descreve o sacerdote, longamente, o começo e o curso dos trabalhos e
o auxílio franco que lhe deram os povoadores dos lugares próximos.
Pinta a última solenidade, procissão majestosa e lenta ascendendo a
montanha, entre as rajadas de tufão violento que se alteou das
planícies apagando as tochas; e, por fim, o sermão terminal da
penitência, exortando o povo a “que nos dias santos viesse visitar os
santos lugares, já que vivia em tão grande desamparo das cousas
espirituais”.
“E aqui, termina, sem pensar em mais nada disse que daí em diante
não chamariam mais Serra de Piquaraçá, mas sim Monte Santo.”
E fez-se o templo prodigioso, monumento erguido pela natureza e pela
fé, mais alto que as mais altas catedrais da terra.
A população sertaneja completou a empresa do missionário.
Hoje, quem sobe a extensa via sacra de três quilômetros de
comprimento, em que se erigem, a espaços, vinte e cinco capelas de
alvenaria, encerrando painéis dos passos, avalia a constância e a
tenacidade do esforço despendido.
Amparada por muros capeados; calçada, em certos trechos; tendo,
noutros, como leito, a rocha viva talhada em degraus, ou rampeada,
aquela estrada branca, de quartzito, onde ressoam, há cem anos, as
litanias das procissões da quaresma e têm passado legiões de
penitentes, é um prodígio de engenharia rude e audaciosa. Começa
investindo com a montanha, segundo a normal de máximo declive, em
rampa de cerca de vinte graus. Na quarta ou quinta capelinha inflete
à esquerda e progride menos íngreme. Adiante, a partir da capela
maior — ermida interessantíssima erecta num ressalto da pedra a
cavaleiro do abismo — volta à direita, diminuindo de declive até à
linha de cumeadas. Segue por esta segundo uma selada breve. Depois
se alteia, de improviso, retilínea, em ladeira forte, arremetendo
com o vértice pontiagudo do monte, até ao Calvário, no alto!
À medida que ascende, ofegante, estacionando nos passos, o
observador depara perspectivas que seguem num crescendo de grandezas
soberanas: primeiro os planos das chapadas e tabuleiros, esbatidos
embaixo em planícies vastas; depois as serranias remotas, agrupadas,
longe, em todos os quadrantes; e, atingindo o alto, o olhar a
cavaleiro das serras — o espaço indefinido, a emoção estranha de
altura imensa, realçada pelo aspecto da pequena vila, embaixo, mal
percebida na confusão caótica dos telhados.
E quando, pela Semana Santa, convergem ali as famílias da
redondeza e passam os crentes pelos mesmos flancos em que vaguearam
outrora, inquietos de ambição, os aventureiros ambiciosos, vê-se
que Apolônio de Todi, mais hábil que o Muribeca, decifrou o
segredo das grandes letras de pedra, descobrindo o eldorado
maravilhoso, a mina opulentíssima oculta no deserto...
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