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O mal era antigo.
O trato do território que recortam as cadeias de Sincorá até as
margens do S. Francisco era, havia muito, dilatado teatro de
tropelias às gentes indisciplinadas do sertão.
Opulentada de esplêndidas minas, aquela paragem, malsina-a a
própria opulência. Procuram-na há duzentos anos irrequietos
aventureiros ferrotoados pelo anelo de espantosas riquezas, e eles,
esquadrinhando afanosamente os flancos das suas serranias e as nascentes
dos rios, fizeram mais do que amaninhar a terra com a ruinaria das
catas e o indumento áspero das grupiaras: legaram à prole erradia e,
de contágio, aos rudes vaqueiros que os seguiram, a mesma vida
desenvolta e inútil livremente expandida na região fecunda, onde por
muitos anos foram moeda corrente o ouro em pó e o diamante bruto.
De sorte que sem precisarem despertar pela cultura as energias de um
solo em que não se fixam e atravessam na faina desnorteada de
faiscadores, conservaram na ociosidade turbulenta a índole aventureira
dos avós, antigos fazedores de desertos. E como, a pouco e pouco,
se foram exaurindo os cascalhos e afundando os veeiros, o banditismo
franco impôs-se-lhes como derivativo à vida desmandada.
O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao garimpeiro, saqueador
da terra. O mandão político substituiu o capangueiro decaído.
A transição é antes de tudo um belo caso de reação mesológica.
Caracterizemo-la, de relance.
Vimos como se formaram ali os mamalucos bravos e diligentes,
interpostos tão a propósito, na quadra colonial, entre o torvelinho
das bandeiras e o curso das missões, como elemento conservador
formando o cerne da nossa nacionalidade nascente e criando uma
situação de equilíbrio entre o desvario das pesquisas mineiras e as
utopias românticas do apostolado. Ora, aqueles homens, depois de
esboçarem talvez a única feição útil da nossa atividade naqueles
tempos, tiveram desde o começo do século XVIII, quando se
desvendaram as lavras do Rio de Contas à Jacobina, perigosos
agentes que se lhes não derrancaram o caráter varonil os nortearam a
lamentáveis destinos. De feito, transmudaram-se em contacto com os
sertanistas gananciosos. Estes vinham, então, do oriente,
espavorindo a ferro e fogo o selvagem e fundando povoados que, ao
revés dos já existentes, não tinham o gérmen de uma fazenda de
gado, mas as ruínas das malocas. Bateram rudemente a região,
estacionando largo tempo ante a barreira de serras que vão de Caetité
para o norte; e quando as minas esgotadas lhes demandaram aparelhos
para a exploração intensiva, tiveram, logo adiante, entre as matas
que vão de Macaúbas a Açuruá, novas paragens opulentas,
atraindo-os para o âmago das terras.
Devassaram-nas até nova barreira, o Rio S. Francisco.
Transpuseram-na. Na frente, indefinido, se lhe antolhou, cavado
nos chapadões, aquele maravilhoso vale do Rio das Éguas, tão
aurífero que o ouvidor de Jacobina em carta dirigida à rainha Maria
I (1794) afirmava “que as suas minas eram a cousa mais rica de
que nunca se descobriu nos domínios de Sua Majestade”.
Naquele ponto se abeiravam das lindes de Goiás.
Não deram mais um passo além. Ultimara-se uma empresa
deplorável. Pelos campos de criação avermelhavam, nodoando-os,
os montões de argila revolvida das catas entorroadas; e da envergadura
atlética do vaqueiro surgira, destemeroso, o jagunço. A nossa
história tão malsinada de indisciplinados heróis adquiria um de seus
mais sombrios atores. Fez-se a metamorfose da situação anterior:
de par com a sociedade robusta e tranqüila dos campeiros, uma outra
caracterizando-se pelo nomadismo desenvolto, pela combatividade
irrequieta, e por uma ociosidade singular sulcada de tropelias.
Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de
súbito, a vibratibilidade incomparável do bandeirante. Teremos o
jagunço.
É um produto histórico expressivo. Nascendo de cruzamento tardio
entre colaterais, que o meio físico já diversificara, resume os
atributos essenciais de uns e outros — na atividade bifronte que
oscila, hoje, das vaquejadas trabalhosas às incursões dos
quadrilheiros. E a terra, aquela incomparável terra que mesmo quando
abrangida pelas secas, desnuda e empobrecida, ainda lhe sustenta os
rebanhos nas baixadas salinas dos barreiros, ampara-o de idêntico
modo ante as exigências da vida combatente: dá-lhe grátis em toda a
parte o salitre para a composição da pólvora, enquanto as balas,
luxuosos projetis feitos de chumbo e prata, lá estão, incontáveis,
na galena argentífera do Açuruá...
É natural que desde o começo do século passado a história dramática
dos povoados do S. Francisco começasse a refletir uma situação
anômala. E embora em todas as narrativas emocionantes, que a
formam, se destaquem rivalidades partidárias e desmandos impunes de
uma política intolerável de potentados locais, todas as desordens,
surgindo sempre precisamente nos lugares em que se ostentou, outrora,
mais ativa a ânsia mineradora, denunciam a gênese remota que
esboçamos.
Exemplifiquemos. Todo o vale do Rio das Éguas e, para o norte, o
do Rio Preto, formam a pátria original dos homens mais bravos e mais
inúteis da nossa terra. Dali abalam para as algaras aventurosas
alugando a bravura aos poteneados, e têm sempre, culminando-lhas, o
incêndio e o saque de vilas e cidades, em todo o vale do grande rio.
Avançando contra a corrente já chegaram, em 1879, à cidade
mineira de Januária que conquistaram, tornando a Carinhanha, de
onde haviam partido, carregados de despojos. Desta vila para o norte
a história das depredações avulta cada vez maior, até Xiquexique,
lendária nas campanhas eleitorais do Império.
Não há traçá-la em meia dúzia de páginas. O mais obscuro
daqueles arraiais tem a sua tradição especial e sinistra.
Um único, talvez, se destaca sob outro aspecto, o de Bom Jesus da
Lapa. É a Meca dos sertanejos. A sua conformação original,
ostentando-se na serra de grimpas altaneiras, que ressoam como sinos;
abrindo-se na gruta de âmbito caprichoso semelhando a nave de uma
igreja, escassamente aclarada; tendo pendidos dos tetos grandes
candelabros de estalactites; prolongando-se em corredores cheios de
velhos ossuários diluvianos; e a lenda emocionante do monge que ali
viveu em companhia de uma onça — tornaram-no objetivo predileto de
romarias piedosas, convergentes dos mais longínquos lugares, de
Sergipe, Piauí e Goiás.
Ora, entre as dádivas que jazem em considerável cópia no chão e
às paredes do estranho templo, o visitante observa de par com as
imagens e as relíquias, um traço sombrio de religiosidade singular:
facas e espingardas. O clavinoteiro ali entra, contrito,
descoberto. Traz à mão o chapéu de couro, e a arma à bandoleira.
Tomba genuflexo, a fronte abatida sobre o chão úmido do calcário
transudante... E reza. Sonda longo tempo, batendo no peito, as
velhas culpas. Ao cabo cumpre devotamente a promessa que fizera para
que lhe fosse favorável o último conflito que travara: entrega ao
Bom Jesus o trabuco famoso, tendo da coronha alguns talhos de
canivete lembrando o número de mortes cometidas. Sai desapertado de
remorsos, feliz pelo tributo que rendeu. Amatula-se de novo à
quadrilha. Reata a vida temerosa.
Pilão Arcado, outrora florescente e hoje deserta, na derradeira
fase de uma decadência que começou em 1856; Xiquexique, onde
durante decêncios se digladiaram liberais e conservadores;
Macaúbas, Monte Alegre e outras, e todas as fazendas de seus
termos, delatam, nas vivendas derruídas ou esburacadas a bala, esse
velho regime de desmandos.
São lugares em que se normalizou a desordem esteada no banditismo
disciplinado.
O conceito é paradoxal, mas exato.
Porque há, de fato, uma ordem notável entre os jagunços.
Vaidosos de seu papel de bravos condutícios e batendo-se lentamente
pelo mandão que os chefia, restringem as desordens às minúsculas
batalhas em que entram, militarmente, arregimentados.
O saque das povoações que conquistam, têm-no como direito de
guerra, e neste ponto os absolve a História inteira.
Fora disto, são raros os casos de roubos, que consideram desaire e
indigno labéu. O mais frágil positivo pode atravessar, inerme e
indene, procurando o litoral, aquelas matas e campos, com os picuás
atestados de diamantes e pepitas. Não lhe faltará um só no termo da
viagem. O forasteiro, alheio às lutas partidárias, atravessa-os
igualmente imune.
Não raro um mascate, seguindo por ali, com seus cargueiros
rengueando ao peso das caixas preciosas, estaca — tremendo — ao ver
aparecer inesperadamente um grupo de jagunços, acampados na volta do
caminho... Mas perde em momentos o medo. O clavinoteiro-chefe
aproxima-se. Saúda-o com boa sombra; dirige-lhe a palavra,
risonho; e mete-lhe à bulha o terror, galhofeiro. Depois lhe exige
um tributo — um cigarro. Acende-o numa pancada única do isqueiro;
e deixa-o passar, levando, intactas, a vida e a fortuna. São
numerosos os casos deste teor revelando notável nobreza entre aqueles
valentes desgarrados. Cerca de dez ou oito léguas de Xiquexique
demora a sua capital, o arraial de Santo Inácio, erecto entre
montanhas e inacessível até hoje a todas as diligências policiais.
Estas, de ordinário, conseguem pacificar os lugares conflagrados,
tornando-se interventoras neutras ante as facções combatentes. É
uma ação diplomática entre potências. A justiça armada
parlamentada com os criminosos; balanceia as condições de um e outro
partido; discute; evita os ultimatos; e acaba ratificando verdadeiros
tratados de paz, sancionando a soberania da capangagem impune.
Assim os estigmas hereditários da população mestiça se têm
fortalecido na própria transigência das leis. Não surpreende que
hajam crescido, avassalando todo o vale do S. Francisco, e
desbordando para o norte. Porque o cangaceiro da Paraíba e
Pernambuco é um produto idêntico, com diverso nome. Distingue-o
do jagunço talvez a nulíssima variante da arma predileta: a parnaíba
de lâmina rígida e longa suplanta a fama tradicional do clavinote de
boca-de-sino. As duas sociedades irmãs tiveram, entretanto, longo
afastamento que as isolou uma da outra. Os cangaceiros nas incursões
para o sul, e os jagunços nas incursões para o norte,
defrontavam-se, sem se unirem, separados pelo valado em declive de
Paulo Afonso.
A insurreição da comarca de Monte Santo ia ligá-las.
A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas
estas forças desvairadas, perdidas nos sertões.
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