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Foi um mal.
Sob a sugestão de um aparato bélico, de parada, os habitantes
preestabeleceram o triunfo; invadida pelo contágio desta crença
espontânea, a tropa, por sua vez, compartiu-lhes as esperanças.
Firmara-se, de antemão, a derrota dos fanáticos.
Ora, nos sucessos guerreiros entra, como elemento paradoxal embora,
a preocupação da derrota. Está nela o melhor estímulo dos que
vencem. A história militar é toda feita de contrastes singulares.
Além disto a guerra é uma cousa monstruosa e ilógica em tudo. Na
sua maneira atual é uma organização técnica superior. Mas
inquinam-na todos os estigmas do banditismo original. Sobranceiras ao
rigorismo da estratégia, aos preceitos da tática, à segurança dos
aparelhos sinistros, a toda a altitude de uma arte sombria, que põe
dentro da frieza de uma fórmula matemática o arrebentamento de um
shrapnel e subordina a parábolas invioláveis o curso violento das
balas, permanecem — intactas — todas as brutalidades do homem
primitivo. E estas são, ainda, a vis a tergo dos combates.
A certeza do perigo estimula-as. A certeza da vitória deprime-as.
Ora, a expedição ia na opinião de toda a gente, positivamente —
vencer. A consciência do perigo determinaria mobilização rápida e
um investir surpreendedor com o adversário. A certeza do sucesso
imobilizou-a quinze dias em Monte Santo.
Analisemos o caso. O comandante expedicionário deixara em Queimadas
grande parte de munições, para não protelar por mais tempo a marcha
e impedir que os inimigos ainda mais se robustecessem. Assim, teve o
intento de uma arremetida fulminante. Revoltado com as dificuldades
que encontrara, entre as quais se notava quase completa carência de
elementos de transporte, dispusera-se a ir celeremente ao couto dos
rebeldes, embora levando apenas a munição que as praças pudessem
carregar nas patronas. Isto, porém, não se realizou. De sorte
que a partida rápida a uma localidade condena a demora inconseqüente
na outra. Esta somente se justificaria se, ponderando melhor a
seriedade das cousas, ele a aproveitasse para agremiar melhores
elementos, fazendo, principalmente, vir de Queimadas o resto dos
trens de guerra. Os inconvenientes de uma longa pausa,
justificá-los-iam as vantagens adquiridas. Ganharia em força o que
perdesse em celeridade. Às aventuras de um plano temerário,
resumindo-se numa investida e num assalto, substituiria operação
mais lenta e mais segura. Não fez isto. Fez o inverso: depois de
longa inatividade em Monte Santo, a expedição partiu ainda menos
aparelhada do que quando ali chegara quinze dias antes, abandonando,
ainda uma vez, parte dos restos de um trem de guerra já muitíssimo
reduzido. Entretanto, contravindo ao modo de ver dos propagandistas
de uma vitória fácil, chegavam constantes informações sobre o
número e recursos dos fanáticos. E no disparatado das opiniões —
entre as que elevavam aquele, no máximo, a quinhentos, e as que o
firmavam, decuplicando-o, no mínimo, em cinco mil, cumpria
inferir-se uma média razoável. Além disto, de envolta num
sussurrar de cautelosas denúncias e mal boquejados avisos,
esboçava-se a hipótese de uma traição. Apontavam-se influentes
mandões locais, cujas velhas relações com o Conselheiro sugeriam,
veemente, a presunção de que o estivessem auxiliando à socapa,
fornecendo-lhe recursos e instruindo-o dos menores movimentos da
investida. Ainda mais, sabia-se que a tropa, quando mesmo o maior
sigilo rodeasse as deliberações, seria, no avançar, precedida e
ladeada pelos espias espertos do inimigo, muitos dos quais,
verificou- se depois, dentro da própria vila acotovelavam os
expedicionários. Uma surpresa, depois de tantos dias perdidos e em
tais circunstâncias, era inadmissível. Em Canudos saberiam da
estrada escolhida para linha de operações com antecedência bastante
para se fortificarem os seus trechos mais difíceis, de sorte que,
reeditando o caso de Uauá, o alcance do arraial preestabelecia a
preliminar de um combate em caminho. Assim a partida da base de
operações, do modo por que se fez, foi um erro de ofício. A
expedição endireitava para o objetivo da luta como se voltasse de uma
campanha. Abandonando novamente parte das munições, seguia como
se, pobre de recursos em Queimadas, paupérrima de recursos em Monte
Santo, ela fosse abastecer-se — em Canudos... Desarmava-se à
medida que se aproximava do inimigo. Afrontava-se com o
desconhecido, ao acaso, tendo o amparo único da fragilidade da nossa
bravura impulsiva.
A derrota era inevitável.
Porque a tais deslizes se aditaram outros, denunciando a mais completa
ignorância da guerra. Revela-se a ordem do dia organizadora das
forças atacantes.
Escassa como uma ordem qualquer distribuindo contingentes, não há
rastrear-se nela a mais fugaz indicação sobre o desdobramento,
formaturas ou manobras das unidades combatentes, consoante os vários
casos fáceis de prever. Não há uma palavra sobre inevitáveis
assaltos repentinos. Nada, afinal, visando uma distribuição de
unidades, de acordo com os caracteres especiais do adversário e do
terreno. Adstrito a uns rudimentos de tática prussiana,
transplantados às nossas ordenanças, o chefe expedicionário, como
se levasse o pequeno corpo de exército para algum campo esmoitado da
Bélgica, dividiu-o em três colunas, parecendo dispô-lo, de
antemão, para recontros em que lhe fosse dado entrar repartido em
atiradores, reforço e apoio. Nada mais, além desse subordinar-se
a uns tantos moldes rígidos de velhos ditames clássicos de guerra.
Ora estes eram inadaptáveis no momento.
Segundo o exato conceito de Von der Goltz, qualquer organização
militar deve refletir alguma cousa do temperamento nacional. Entre a
incoercível tática prussiana, em que é tudo a precisão mecânica da
bala, e a nervosa tática latina, em que é tudo o arrojo
cavalheiresco da espada, tínhamos a esgrima perigosa com os
guerrilheiros esquivos cuja força estava na própria fraqueza, na fuga
sistemática, num vaivém doudejante de arrancadas e recuos,
dispersos, escapantes no seio da natureza protetora. Eram por igual
inúteis as cargas e as descargas. Contra tais antagonistas e num tal
terreno não havia supor-se a probabilidade de se estender a mais
apagada linha de combate. Não havia até a possibilidade de um
combate, no rigorismo técnico do termo. A luta, digamos com mais
acerto, uma monteria a homens, uma batida brutal em torno à ceva
monstruosa de Canudos, ia reduzir-se a ataques ferozes, a esperas
ardilosas, a súbitas refregas, instantâneos recontros em que fora
absurdo admitir-se que se pudessem desenvolver as fases principais
daquele, entre os dous extremos dos fogos violentos, que o iniciam,
ao epílogo delirante das cargas de baioneta. Função do homem e do
solo, aquela guerra devia impulsionar-se a golpes de mão de
estrategista revolucionário e inovador. Nela iam surgir,
tumultuariamente, fundidas, penetrando-se, simultâneas, todas as
situações, naturalmente distintas, em que se pode encontrar qualquer
força em operações — a de repouso, a de marcha e a de combate. O
exército marchando pronto a encontrar o inimigo em todas as voltas dos
caminhos, ou a vê-lo romper dentre as próprias fileiras,
surpreendidas, devia repousar nos alinhamentos da batalha. Nada se
deliberou quanto a condições tão imperiosas. O comandante
limitou-se a formar três colunas e a ir para a frente, pondo diante
da astúcia sutil dos jagunços a potência ronceira de três falanges
compactas — homens inermes carregando armas magníficas. Ora, um
chefe militar deve ter algo de psicólogo. Por mais mecanizado que
fique o soldado pela disciplina, tendendo para esse sinistro ideal de
homúnculo, feito um feixe de ossos amarrados por um feixe de
músculos, energias inconscientes sobre alavancas rígidas, sem
nervos, sem temperamento, sem arbítrio, agindo como um autômato
pela vibração dos clarins, transfiguram-no as emoções da guerra.
E a marcha nos sertões desperta-as a todo o instante. Trilhando
veredas desconhecidas, envolto por uma natureza selvagem e pobre, o
nosso soldado, que é corajoso na frente do inimigo, acobarda-se,
invadido de temores, todas as vezes que este, sem aparecer, se
revela, impalpável, dentro das tocaias. Assim, se um tiroteio das
guardas da frente se constitui, na campanha, aviso salutar ao resto
dos lutadores, naquelas circunstâncias anormais era um perigo. Quase
sempre as seções se baralhavam, sacudidas pelo mesmo espanto, numa
desordem súbita, tendendo a um refluxo instintivo para a retaguarda.
Era natural que fossem previstas estas conjunturas inevitáveis. Para
atenuá-las, as diversas unidades deviam seguir com o máximo
afastamento, embora agissem, no primeiro momento, completamente
isoladas. Este dispositivo, além de lhes altear o ânimo, pela
certeza de um pronto auxílio por parte das que fora da ação imediata
do inimigo podiam acometê-lo levando a força moral do ataque,
evitava o alastramento do pânico e facultava um desdobramento
desafogado. Embora a direção dos vários movimentos escapasse da
autoridade de um comando único, substituída pela iniciativa mais
eficaz dos comandantes de pequenas unidades, agindo autônomas de
acordo com as circunstâncias do momento, impunha-se largo
fracionamento das colunas. Era parodiar a norma guerreira do
adversário, seguindo-a paralelamente, em traçados mais firmes e
opondo-lhe a mesma dispersão, única capaz de amortecer as causas de
insucesso, de anular o efeito de repentinas emboscadas, de criar
melhores recursos de reação, e de acarretar, ao cabo, a vitória,
do único modo por que esta poderia ser alcançada, feito uma soma de
sucessivos ataques parciais.
Em síntese, as forças, dispersas em marcha, a partir da base das
operações, deviam ir, a pouco e pouco, apertando os fanáticos,
concentrar-se em Canudos.
Fez-se sempre o contrário. Partiam unidas, em colunas, dentro da
estrutura maciça das brigadas. Avançavam emboladas pelos caminhos em
fora. Ia dispersar-se, repentinamente — em Canudos...
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