NOTAS DE UM DIÁRIO

Um diário minucioso da luta naqueles primeiros dias lhe patenteia o caráter anormalmente bárbaro. Esbocemo-lo em traços largos até ao dia 24 de julho, apenas para definir uma situação que daquela data em diante não se transmudou.

Dia 19 — A fuzilaria inimiga principia às cinco horas da manhã. Prossegue durante o dia. Entra pela noite dentro. O comandante da 1ª coluna, para revigorar a repulsa, determina a vinda de mais dous canhões Krupps, que estavam na retaguarda, a fim de serem assestados à noite. Às 12 ½ foi ferido, em seu acampamento, dentro de um casebre onde descansava, numa rede, o comandante da 7ª Brigada. Às 2 horas da tarde, depois de apontar e disparar o canhão da direita para uma das torres da igreja nova, morre trespassado por uma bala o tenente Tomás Braga. À tarde descem com dificuldade da Favela algumas reses para alimento da tropa. A boiada dispersa-se, fustigada a tiros, ao atravessar o Vaza-Barris, sendo a custo reunida, perdendo-se algumas cabeças. Ao toque de recolher os jagunços investem contra as linhas, perdurando o ataque até às 9 ½ e continuando, frouxo, daí por diante. Resultado: um comandante superior ferido; um subalterno morto, dez ou doze praças fora de combate. Dia 20 — O acampamento é subitamente atacado quando as cornetas de todos os corpos tocam a alvorada. Tiroteio durante o dia todo. Consegue-se assestar apenas um dos canhões reconduzidos. Há o mesmo número de baixas da véspera; um soldado morto.

Dia 21 — Madrugada tranqüila. Poucos ataques durante o dia. Os canhões da Favela bombardeiam até à boca da noite. Dia relativamente calmo. Poucas baixas.

Dia 22 — Sem aguardar a iniciativa do adversário, a artilharia abre o canhoneio às 5 horas da manhã — provocando revide pronto e virulento de atiradores encobertos nos muros das igrejas. São penosamente conduzidos do campo da ação para o acampamento da Favela os últimos feridos. Segue em reconhecimento pelas cercanias o tenente-coronel Siqueira de Meneses. Ao voltar declara estar o inimigo muito forte, e que muito poucas casas de Canudos estão em nosso poder, atenta a comparação com o número das que formam o povoado. Somente à noite se torna possível distribuir parcas rações de gêneros aos soldados da linha da frente, o que foi impossível fazer durante o dia, pela vigilância dos antagonistas. Às 9 horas da noite assalto violento pelos dous flancos. Resultado: 25 homens fora de combate.

Dia 23 — Alvorada tranqüila. Repentinamente, uma hora depois, às 6 da manhã, os jagunços, depois de um movimento contornante despercebido, caem impetuosamente sobre a retaguarda do campo de batalha. São repelidos pelo 34º Batalhão e Corpo Policial, deixando 15 mortos, uma cabocla prisioneira e um surrão de farinha. À noite tiroteios cerrados. Os três canhões deram apenas nove disparos por falta de munições. Dia 24 — Começou o bombardeio ao levantar do Sol. O povoado, contra o costume, suporta-o sem réplica. Os shrapnels da Favela caem lá dentro e estouram, como se batessem numa tapera deserta. Durante largo tempo trucida-o o canhoneio impunemente. Às 8 horas, porém, ouvem-se alguns estampidos, raros, à direita; e logo depois são assaltados os canhões daquele flanco. Enreda-se o conflito braço a braço, carabinas abocadas aos peitos, e generaliza-se num crescendo apavorante. Vibram de ponta a ponta dezenas de cornetas. Toda a tropa forma para a batalha. O ataque visava cortar a retaguarda da linha da frente. Um movimento temerário. Cortando-a cairiam sobre o quartel-general, e poriam os sitiantes entre dous fogos. Era um plano de Pajeú que, tendo deposto os demais cabecilhas, assumira a direção da luta. Esse assalto durou meia hora. Os jagunços repelidos, porém, volveram, minutos depois, outra vez sobre a tropa, arremetendo com maior arrojo sobre a direita. A custo repelidos recuam até às primeiras casas não conquistadas de onde reatam o tiroteio, cerrado, contínuo. Tombam o comandante do 33º, Antonio Nunes Sales, e muitos oficiais e praças. Ao meio-dia cessa a agitação.

Súbito silêncio desce sobre os dous campos. À 1 hora — novo assalto, mais impetuoso ainda. Formam-se todos os batalhões. Era como a oscilação de um aríete. A nova pancada percutiu, insistente, nas linhas do flanco direito. O impetuoso Pajeú baqueia mortalmente ferido. Tombam do nosso lado muitos combatentes entre os quais, morto, o tenente Figueira, de Taubaté; feridos o comandante do 33º, o capitão Joaquim Pereira Lobo e muitos oficiais. A fim de distrair o inimigo, o comandante-em-chefe determina que atirem os corpos do flanco esquerdo, ainda não investidos. A força toda descarrega as armas contra o arraial. Segue em acelerado uma metralhadora para reforçar a direita.

Atroam no alto todas as baterias da Favela...

Repele-se o inimigo. À noite tirotear constante até à madrugada.

No dia 25... Nesse dia, como nos outros, as mesmas cenas, pouco destoantes, imprimindo na campanha uma monotonia dolorosa. Os entrincheiramentos da linha de cerco faziam-se nesse intermitir de combates; e somente à noite podia ser distribuída a refeição insuficiente aos soldados famintos ou conseguiam, estes, ajoujados de cantis e marmitas, arriscar a tentativa heróica de alguns passos até às cacimbas do Vaza-Barris, buscando a água que lhes mitigasse a sede longamente suportada. Iam-se assim os dias.