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Formara-se obscuramente. Determinaram-no, em começo, as entradas
à procura das minas de Moréia que embora anônimas e sem brilho
parecem ter-se prolongado até ao governo de Lencastre, levando até
às serranias de Macaúbas, além do Paramirim, sucessivas turmas de
povoadores. Vedado nos caminhos direitos e normais à costa, mais
curtos porém interrompidos pelos paredões das serras ou trancados
pelas matas, o acesso fazia-se pelo S. Francisco. Abrindo aos
exploradores duas entradas únicas à nascente e à foz, levando os
homens do Sul ao encontro dos homens do Norte, o grande rio
erigia-se desde o princípio com a feição de um unificador étnico,
longo traço de união entre as duas sociedades que se não conheciam.
Porque provindos dos mais diversos pontos e origens, ou fossem os
paulistas de Domingos Sertão, ou os baianos de Garcia d’Ávila,
ou os pernambucanos de Francisco Caldas, com os seus pequenos
exércitos de tabajaras aliados, ou mesmo os portugueses de Manuel
Nunes Viana, que dali partiu da sua fazenda do Escuro, em
Carinhanha, para comandar os emboabas no Rio das Mortes, os
forasteiros, ao atingirem o âmago daquele sertão, raro voltavam.
A terra, do mesmo passo exuberante e acessível, compensava-lhes a
miragem desfeita das minas cobiçadas. A sua estrutura geológica
original criando conformações topográficas em que as serranias,
últimos esporões e contrafortes da cordilheira marítima, têm a
atenuante dos tabuleiros vastos; a sua flora complexa e variável, em
que se entrelaçam florestas sem a vastidão e o trançado impenetrável
das do litoral, com o “mimoso” das planuras e o “agreste” das
chapadas desafogadas, todas, salteadamente, nos vastos claros das
caatingas; a sua conformação hidrográfica especial de afluentes que
se ajustam, quase simétricos, para o ocidente e o oriente
ligando-a, de um lado à costa, de outro, ao centro dos planaltos —
foram laços preciosos para a fusão desses elementos esparsos,
atraindo-os, entrelaçando-os. E o regime pastoril ali se esboçou
como uma sugestão dominadora dos gerais. Nem faltava para isto,
sobre a rara fecundidade do solo recamado de pastagens naturais, um
elemento essencial, o sal, gratuito, nas baixadas salobras dos
“barreiros”.
Constitui-se, desta maneira favorecida, a extensa zona de criação
de gado que já no alvorecer do século XVIII ia das raias
setentrionais de Minas a Goiás, ao Piauí, aos extremos do
Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte, e às serranias das lavras
baianas, a leste. Povoara-se e crescera autônoma e forte, mas
obscura, desadorada dos cronistas do tempo, de todo esquecida não já
pela metrópole longínqua senão pelos próprios governadores e
vice-reis. Não produzia impostos ou rendas que interessavam o
egoísmo da coroa. Refletia, entretanto, contraposta à turbulência
do litoral e às aventuras das minas, “o quase único aspecto
tranqüilo da nossa cultura”. À parte os raros contingentes de
povoadores pernambucanos e baianos, a maioria dos criadores opulentos,
que ali se formaram, vinha do Sul, constituída pela mesma gente
entusiasta e enérgica das bandeiras.
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