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Foi vagaroso. As gentes portuguesas não abordavam o litoral do
Norte robustecidas pela força viva das migrações compactas, grandes
massas invasoras capazes, ainda que destacadas do torrão nativo, de
conservar, pelo número, todas as qualidades adquiridas em longo
tirocínio histórico. Vinham esparsas, parceladas em pequenas levas
de degredados ou colonos contrafeitos, sem o desempeno viril dos
conquistadores. Deslumbrava-as ainda o Oriente.
O Brasil era a terra do exílio; vasto presídio com que se
amedrontavam os heréticos e os relapsos, todos os passíveis do morra
per ello da sombria justiça daqueles tempos. Deste modo nos primeiros
tempos o número reduzido de povoadores contrasta com a vastidão da
terra e a grandeza da população indígena. As instruções dadas,
em 1615, ao capitão Fragoso de Albuquerque, a fim de regular
com o embaixador espanhol em França o tratado de tréguas com La
Ravardière, são claras a respeito. Ali se afirma “que as terras
do Brasil não estão despovoadas porque nelas existem mais de três
mil portugueses”.
Isto para o Brasil todo — mais de cem anos após o
descobrimento...
Segundo observa Aires de Casal “a população crescia tão devagar
que na época da perda do Sr. D. Sebastião (1580) ainda não
havia um estabelecimento fora da ilha de Itamaracá cujos vizinhos
andavam por uns 200, com 3 engenhos de açúcar”.
Quando alguns anos mais tarde se povoou melhor a Bahia, a
desproporção entre o elemento europeu e dos dous outros continuou
desfavorável, em progressão aritmética perfeita. Segundo Fernão
Cardim, ali existiam 2.000 brancos, 4.000 negros e
6.000 índios. É visível durante muito tempo a predominância do
elemento autóctone. Nos primeiros cruzados, portanto, ele deve ter
influído muito.
Os forasteiros que aproavam àquelas plagas eram, ademais, de molde
para essa mistura em larga escala. Homens de guerra, sem lares,
afeitos à vida solta dos acampamentos, ou degredados e aventureiros
corrompidos, norteava-os a todos como um aforismo o ultra
aequinoctialem non peccari, na frase de Barleus. A mancebia com as
caboclas descambou logo em franca devassidão, de que nem o clero se
isentava. O padre Nóbrega definiu bem o fato, na célebre carta ao
rei (1549) em que, pintando com ingênuo realismo a dissociação
dos costumes, declara estar o interior do país cheio de filhos de
cristãos, multiplicando-se segundo os hábitos gentílicos. Achava
conveniente que lhe enviassem órfãs, ou mesmo mulheres que fossem
erradas, que todas achariam maridos, por ser a terra larga e grossa.
A primeira mestiçagem fez-se, pois, nos primeiros tempos,
intensamente, entre o europeu e o silvícola. “Desde cedo, dilo
Casal, os tupiniquins, gentio de boa índole, foram cristianizados e
aparentados com os europeus, sendo inúmeros os brancos naturais do
país com casta tupiniquina.” Por outro lado, embora existissem em
grande cópia mesmo no reino, os africanos tiveram, no primeiro
século, uma função inferior. Em muitos lugares rareavam. Eram
poucos, diz aquele narrador sincero, no Rio Grande do Norte “onde
os índios há largo tempo que foram reduzidos, apesar da sua
ferocidade e cujos descendentes por meio das alianças com os europeus e
africanos têm aumentado as classes dos brancos e dos pardos”. Estes
excertos são expressivos.
Sem idéia alguma preconcebida, pode-se afirmar que a extinção do
indígena, no Norte, proveio, segundo o pensar de Varnhagen, mais
em virtude de cruzamentos sucessivos que de verdadeiro extermínio.
Sabe-se ainda que havia no ânimo dos donatários a preocupação de
aproveitar-lhes o mais possível a aliança, captando-lhes o apego.
Este proceder refletia os intuitos da metrópole. Demonstram-no-lo
as sucessivas cartas régias que, de 1570 a 1758 — em que pese
“a uma série nunca interrompida de hesitações e contradições”
— apareceram como minorativo à ganância dos colonos visando a
escravização do selvagem. Sendo que algumas, como a de 1680,
estendiam a proteção ao ponto de decretar que se concedessem ao gentio
terras “ainda mesmo as já dadas a outros de sesmaria” visto que
deviam ter preferência os mesmos índios “naturais senhores da
terra”. Contribuiu para esta tentativa persistente de incorporação
a Companhia de Jesus que, obrigando-se no Sul a transigências
forçadas, dominava no Norte. Excluindo quaisquer intenções
condenáveis, os jesuítas ali realizaram tarefa nobilitadora. Foram
ao menos rivais do colono ganancioso. No embate estúpido da
perversidade contra a barbaria, apareceu uma função digna àqueles
eternos condenados. Fizeram muito. Eram os únicos homens
disciplinados do seu tempo. Embora quimérica a tentativa de alçar o
estado mental do aborígine às abstrações do monoteísmo, ela teve o
valor de o atrair por muito tempo, até à intervenção oportuna de
Pombal, para a nossa história.
O curso das missões, no Norte, em todo o trato de terras do
Maranhão à Bahia, patenteia sobretudo um lento esforço de
penetração no âmago das terras sertanejas, das fraldas da Ibiapaba
às da Itiúba, que completa de algum modo a movimentação febril das
bandeiras. Se estas difundiam largamente o sangue das três raças
pelas novas paragens descobertas, provocando um entrelaçamento geral,
a despeito das perturbações que acarretavam — os aldeamentos,
centros da força atrativa do apostolado, fundiam as malocas em
aldeias; unificavam as cabildas; integravam as tribos. Penetrando
fundo nos sertões, graças a um esforço secular, os missionários
salvaram em parte este favor das nossas raças. Surpreendidos vários
historiadores pela vinda, em grandíssima escala, do africano, que
iniciada em fins do século XVI nunca mais parou até ao nosso
(1850) e considerando que ele foi o melhor aliado do português na
quadra colonial, dão-lhe geralmente influência exagerada na
formação do sertanejo do Norte. Entretanto, em que pese a esta
invasão de vencidos e infelizes, e à sua fecundidade rara, e a suas
qualidades de adaptação, apuradas na África adusta, é discutível
que ela tenha atingido profundamente os sertões. É certo que o
consórcio afro-lusitano era velho, anterior mesmo ao descobrimento,
porque se consumara desde o século XV, com os azenegues e jalofos de
Gil Eanes e Antão Gonçalves. Em 1530 salpintavam as ruas de
Lisboa mais de dez mil negros, e o mesmo sucedia noutros lugares. Em
Évora tinham maioria sobre os brancos. Os versos de um
contemporâneo, Garcia de Rezende, são um documento:
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“Vemos no reyno metter,
Tantos captivos crescer,
Irem-se os naturaes
Que, se assim for, serão mais
Elles que nós, a meu ver.”
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