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Contravindo à opinião dos que demarcam aos países quentes um
desenvolvimento de 30º de latitude, o Brasil está longe de se
incluir em todo em tal categoria. Sob um duplo aspecto, astronômico
e geográfico, aquele limite é exagerado. Além de ultrapassar a
demarcação teórica vulgar, exclui os relevos naturais que atenuam ou
reforçam os agentes meteorológicos, criando climas equatoriais em
altas latitudes ou regimes temperados entre os trópicos. Toda a
climatologia, inscrita nos amplos lineamentos das leis cosmológicas
gerais, desponta em qualquer parte adicta de preferência às causas
naturais mais próximas e particulares. Um clima é como que a
tradução fisiológica de uma condição geográfica. E definindo-o
deste modo concluímos que o nosso país, pela sua própria estrutura,
se impropria a um regime uniforme.
Demonstram-no os resultados mais recentes, e são os únicos dignos
de fé, das indagações meteorológicas. Estas o subdividem em três
zonas claramente distintas: a francamente tropical, que se expande
pelos estados do Norte até ao sul da Bahia, com uma temperatura
média de 26º; temperada, de S. Paulo ao Rio Grande, pelo
Paraná e Santa Catarina, entre os isotermos 15º e 20º; e,
como transição, — a subtropical, alongando-se pelo centro e norte
de alguns estados, de Minas ao Paraná.
Aí estão, claras, as divisas de três habitats distintos.
Ora, mesmo entre as linhas mais ou menos seguras destes despontam
modalidades, que ainda os diversificam. Indiquemo-las a traços
rápidos.
A disposição orográfica brasileira, possantes massas sublevadas que
se orientam perlongando o litoral perpendicularmente ao rumo do SE,
determina as primeiras distinções em largos tratos de território que
demoram ao oriente, criando anomalia climatológica expressiva.
De fato, o clima aí inteiramente subordinado ao facies geográfico,
viola as leis gerais que o regulam. A partir dos trópicos para o
equador a sua caracterização astronômica, pelas latitudes, cede às
causas secundárias perturbadoras. Define-se, anormalmente, pelas
longitudes.
É um fato conhecido. Na extensa faixa da costa, que vai da Bahia a
Paraíba, se vêem transições mais acentuadas, acompanhando os
paralelos, no rumo do ocidente, do que os meridianos, demandando o
norte. As diferenças no regime e nos aspectos naturais, que segundo
este rumo são imperceptíveis, patenteiam-se, claras, no primeiro.
Distendida até às paragens setentrionais extremas, a mesma natureza
exuberante ostenta-se sem variantes nas grandes matas que debruam a
costa, fazendo que a observação rápida do estrangeiro prefigure
dilatada região vivaz e feracíssima. Entretanto a partir do 13º
paralelo as florestas mascaram vastos territórios estéreis,
retratando nas áreas desnudas as inclemências de um clima em que os
graus termométrico e higrométrico progridem em relação inversa,
extremando-se exageradamente.
Revela-o curta viagem para o ocidente, a partir de um ponto qualquer
daquela costa. Quebra-se o encanto de ilusão belíssima. A
natureza empobrece-se; despe-se das grandes matas; abdica o
fastígio das montanhas; erma-se e deprime-se — transmudando-se nos
sertões exsicados e bárbaros, onde correm rios efêmeros, e
desatam-se chapadas nuas, sucedendo-se, indefinidas, formando o
palco desmedido para os quadros dolorosos das secas. O contraste é
empolgante.
Distante menos de cinqüenta léguas, apresentam-se regiões de todo
opostas, criando opostas condições à vida. Entra-se, de
surpresa, no deserto.
E, certo, as vagas humanas que nos dous primeiros séculos do
povoamento embateram as plagas do Norte tiveram na translação para o
ocidente, demandando o interior, obstáculos mais sérios que a rota
agitada dos mares e das montanhas, na travessia das caatingas ralas e
decíduas. O malogro da expansão baiana, que entretanto precedera à
paulista no devassar os recessos do país, é um exemplo frisante.
O mesmo não sucede, porém, dos trópicos para o sul.
Aí a urdidura geológica da terra, matriz de sua morfogenia
interessante, persiste inalterável, abrangendo extensas superfícies
para o interior, criando as mesmas condições favoráveis, a mesma
flora, um clima altamente melhorado pela altitude, e a mesma feição
animadora dos aspectos naturais.
A larga antemural da cordilheira granítica derivando a prumo para o
mar, nas vertentes interiores descamba suavemente em vastos plainos
ondulados.
É a escarpa abrupta e viva dos planaltos.
Sobre estes os cenários, sem os traços exageradamente dominadores
das montanhas, revelam-se mais opulentos e amplos. A terra patenteia
essa manageability of nature, de que nos fala Buckle, e o clima,
temperado quente, desafia na benignidade o admirável regime da Europa
meridional. Não o regula mais, como mais para o norte,
exclusivamente, o SE. Rolando dos altos chapadões do interior, o
NO prepondera então, em toda extensíssima zona que vai das terras
elevadas de Minas e do Rio ao Paraná, passando por S. Paulo.
Ora, estas largas divisões, esboçadas, mostram já uma diferença
essencial entre o Sul e o Norte, absolutamente distintos pelo regime
meteorológico, pela disposição da terra e pela transição variável
entre o sertão e a costa. Descendo à análise mais íntima
desvendaremos aspectos particulares mais incisivos ainda. Tomemos os
casos mais expressivos, evitando extensa explanação do assunto.
Vimos em páginas anteriores que o SE, sendo o regulador
predominante do clima na costa oriental, é substituído, nos estados
do Sul, pelo NO e nas extremas setentrionais pelo NE. Ora,
estes, por sua vez, desaparecem no âmago do planalto, ante o SO
que, como um hausto possante dos pampeiros, se lança pelo Mato
Grosso, originando desproporcionadas amplitudes termométricas,
agravando a instabilidade do clima continental, e submetendo as terras
centrais a um regime brutal, diverso dos que vimos rapidamente
delineando. Com efeito, a natureza em Mato Grosso balanceia os
exageros de Buckle. É excepcional e nitidamente destacada. Nenhuma
se lhe assemelha. Toda a imponência selvagem, toda a exuberância
inconceptível, unidas à brutalidade máxima dos elementos, que o
preeminente pensador, em precipitada generalização, ideou no
Brasil, ali estão francas, rompentes em cenários portentosos.
Contemplando-as, mesmo através da frieza das observações de
naturalistas pouco vezados a efeitos descritivos, vê-se que aquele
regime climatológico anômalo é o mais fundo traço da nossa
variabilidade mesológica.
Nenhum se lhe equipara, no jogar das antíteses. A sua feição
aparente é a de benignidade extrema: — a terra afeiçoada à vida; a
natureza fecunda erguida na apoteose triunfal dos dias deslumbrantes e
calmos; e o solo abrolhando em vegetação fantástica — farto,
irrigado de rios que irradiam pelos quatro pontos cardeais. Mas esta
placidez opulenta esconde, paradoxalmente, germens de cataclismos,
que irrompendo, sempre com um ritmo inquebrável, no estio,
traindo-se nos mesmos prenúncios infalíveis ali tombam com a
finalidade irresistível de uma lei.
Mal poderemos traçá-los. Esbocemo-los.
Depois de soprarem por alguns dias as rajadas quentes e úmidas de
NE, os ares imobilizam-se, por algum tempo, estagnados. Então
“a natureza como que se abate extática, assustada; nem as grimpas
das árvores balouçam; as matas, numa quietude medonha, parecem
sólidos inteiriços. As aves se achegam nos ninhos, suspendendo os
vôos e se escondem”.
Mas, volvendo-se o olhar para os céus, nem uma nuvem! O
firmamento límpido arqueia-se alumiado ainda por um Sol obscurecido,
de eclipse. A pressão, entretanto, decai vagarosamente, numa
descensão contínua, afogando a vida. Por momentos um cumulus
compacto, de bordas acobreado-escuras, negreja no horizonte, ao
sul. Deste ponto sopra, logo depois, uma viração, cuja velocidade
cresce rápida em ventanias fortes. A temperatura cai em minutos e,
minutos depois, os tufões sacodem violentamente a terra. Fulguram
relâmpagos; estrugem trovoadas nos céus já de todo bruscos e um
aguaceiro torrencial desce logo sobre aquelas vastas superfícies,
apagando, numa inundação única, o divortium aquarum indeciso que as
atravessa, adunando todas as nascentes dos rios e embaralhando-lhes os
leitos em alagados indefinidos...
É um assalto subitâneo. O cataclismo irrompe arrebatadamente na
espiral vibrante de um ciclone. Descolmam- se as casas; dobram-se,
rangendo, e partem-se, estalando, os carandás seculares; ilham-se
os morros; alagoam-se os plainos...
E uma hora depois o Sol irradia triunfalmente no céu puríssimo! A
passarada irrequieta descanta pelas frondes gotejantes; suavizam os
ares virações suaves — e o homem, deixando os refúgios a que se
acolhera trêmulo, contempla os estragos entre a revivescência
universal da vida. Os troncos e galhos das árvores rachadas pelos
raios, estorcidas pelos ventos; as choupanas estruídas, colmos por
terra; as últimas ondas barrentas dos ribeirões, transbordantes; a
erva acamada pelos campos, como se sobre eles passassem búfalos em
tropel — mal relembram a investida fulminante do flagelo...
Dias depois, os ventos rodam outra vez, vagarosamente, para leste;
e a temperatura começa a subir de novo; a pressão a pouco diminui; e
cresce continuamente o mal-estar, até que se reate nos ares
imobilizados a componente formidável do pampeiro e ressurja,
estrugidora, a tormenta, em rodéos turbilhonantes, enquadrada pelo
mesmo cenário lúgubre, revivendo o mesmo ciclo, o mesmo círculo
vicioso de catástrofes.
Ora — avançando para o norte — desponta, contrastando com tais
manifestações, o clima do Pará. Os brasileiros de outras
latitudes mal o compreendem, mesmo através das lúcidas observações
de Bates. Madrugadas tépidas, de 23º centígrados,
sucedendo-se inesperadamente a noites chuvosas; dias que irrompem como
apoteoses fulgurantes revelando transmutações inopinadas: árvores,
na véspera despidas, aparecendo juncadas de flores; brejos apaulados
transmudando-se em prados. E logo depois, no círculo estreitíssimo
de vinte e quatro horas, mutações completas: florestas silenciosas,
galhos mal vestidos pelas folhas requeimadas ou murchas; ares vazios e
mudos; ramos viúvos das flores recém-abertas, cujas pétalas
exsicadas se despegam e caem, mortas, sobre a terra imóvel sob o
espasmo enervante de um bochorno de 35º, à sombra. “Na manhã
seguinte, o Sol se alevanta sem nuvens e deste modo se completa o
ciclo — primavera, verão e outono num só dia tropical.” A
constância de tal clima faz que se não percebam as estações que,
entretanto, como em um índice abreviado, se delineiam nas horas
sucessivas de um só dia, sem que a temperatura quotidiana tenha
durante todo o ano uma oscilação maior que 1º ou 1,5º. Assim a
vida se equilibra numa constância imperturbável. Entretanto, a um
lado, para o ocidente, no Alto Amazonas manifestações diversas
caracterizam novo habitat. E este, não há negá-lo, impõe
aclimação penosa a todos os filhos dos próprios territórios
limítrofes. Ali, no pleno dos estios quentes, quando se diluem,
mortas nos ares parados, as últimas lufadas de leste, o termômetro
é substituído pelo higrômetro na definição do clima. As
existências derivam numa alternativa dolorosa de vazantes e enchentes
dos grandes rios. Estas alteiam-se sempre de um modo assombrador. O
Amazonas referto salta fora do leito, levanta em poucos dias o nível
das águas, de dezessete metros; expande-se em alagados vastos, em
furos, em paranamirins, entrecruzados em rede complicadíssima de
mediterrâneo cindido de correntes fortes, dentre as quais emergem,
ilhados, os igapós verdejantes.
A enchente é uma parada na vida. Preso nas malhas dos igarapés, o
homem aguarda, então, com estoicismo raro ante a fatalidade
incoercível, o termo daquele inverno paradoxal, de temperaturas
altas. A vazante é o verão. É a revivescência da atividade
rudimentar dos que ali se agitam, do único modo compatível com a
natureza que se demasia em manifestações díspares tornando
impossível a continuidade de quaisquer esforços. Tal regime acarreta
o parasitismo franco. O homem bebe o leite da vida sugando os vasos
túmidos das sifônias...
Mas neste clima singular e típico destacam-se outras anomalias, que
ainda mais o agravam. Não bastam as intermitências de cheias e
estiagens, sobrevindo rítmicas como a sístole e a diástole da maior
artéria na Terra. Outros fatos tornam ao forasteiro inúteis todas
as tentativas de aclimação real.
Muitas vezes, em plena enchente, em abril ou maio, no correr de um
dia calmoso e claro, dentro da atmosfera ardente do Amazonas
difundem-se rajadas frigidíssimas do Sul.
É como uma bafagem enregelada do pólo...
O termômetro desce, então, logo, numa queda única e forte, de
improviso. Estabelece-se por alguns dias uma situação inaturável.
Os regatões espertos que esporeados pela ganância se avantajam até
ali, e os próprios silvícolas enrijados pela adaptação,
acolhem-se aos tijupás, tiritantes, abeirando-se das fogueiras.
Cessam os trabalhos. Abre-se um novo hiato nas atividades.
Despovoam-se aquelas grandes solidões alagadas; morrem os peixes nos
rios, enregelados; morrem as aves nas matas silenciosas, ou emigram;
esvaziam-se os ninhos; as próprias feras desaparecem, encafurnadas
nas tocas mais profundas; — e aquela natureza maravilhosa do equador,
toda remodelada pela reação esplêndida dos sóis, patenteia um
simulacro crudelíssimo de desolamento polar e lúgubre. É o tempo da
friagem. Terminemos, porém, esses debuxos rápidos.
Os sertões do Norte, vimo-lo anteriormente, refletem, por sua
vez, novos regimes, novas exigências biológicas. Ali a mesma
intercadência de quadras ramansadas e dolorosas se espelha mais
duramente talvez, sob outras formas.
Ora, se considerarmos que estes vários aspectos climáticos não
exprimem casos excepcionais, mas aparecem todos, desde as tormentas do
Mato Grosso aos ciclos das secas do Norte, com a feição periódica
imanente às leis naturais invioláveis, conviremos em que há no nosso
meio físico variabilidade completa. Daí os erros em que incidem os
que generalizam, estudando a nossa fisiologia própria, a ação
exclusiva de um clima tropical. Esta exercita-se, sem dúvida,
originando patologia sui generis, em quase toda a faixa marítima do
Norte e em grande parte dos estados que lhe correspondem, até ao
Mato Grosso. O calor úmido das paragens amazonenses, por exemplo,
deprime e exaure. Modela organizações tolhiças em que toda a
atividade cede ao permanente desequilíbrio entre as energias impulsivas
das funções periféricas fortemente excitadas e a apatia das funções
centrais: inteligências marasmáticas, adormidas sob o explodir das
paixões; inervações periclitantes, em que pese à acuidade dos
sentidos, e mal reparadas ou refeitas pelo sangue empobrecido nas
hematoses incompletas...
Daí todas as idiossincrasias de uma fisiologia excepcional: o pulmão
que se reduz, pela deficiência da função, e é substituído, na
eliminação obrigatória do carbono, pelo fígado, sobre o qual desce
pesadamente a sobrecarga da vida: organizações combalidas pela
alternativa persistente de exaltações impulsivas e apatias
enervadoras, sem a vibratilidade, sem o tônus muscular enérgico dos
temperamentos robustos e sangüíneos. A seleção natural, em tal
meio, opera-se à custa de compromissos graves com as funções
centrais, do cérebro, numa progressão inversa prejudicialíssima
entre o desenvolvimento intelectual e o físico, firmando
inexoravelmente a vitória das expansões instintivas e visando o ideal
de uma adaptação que tem, como conseqüências únicas, a máxima
energia orgânica, a mínima fortaleza moral. A aclimação traduz
uma evolução regressiva. O tipo deperece num esvaecimento
contínuo, que se lhe transmite à descendência até à extinção
total. Como o inglês nas Barbadas, na Tasmânia ou na
Austrália, o português no Amazonas, se foge ao cruzamento, no fim
de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e morais de
uma maneira profunda, desde a tez, que se acobreia pelos sóis e pela
eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita
despido das qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem
bronco, domina-o; aliado ao meio vence-o, esmaga-o, anula-o na
concorrência formidável ao impaludismo, ao hepatismo, às pirexias
esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços maleitosos.
Isto não acontece em grande parte do Brasil central e em todos os
lugares do Sul.
Mesmo na maior parte dos sertões setentrionais o calor seco,
altamente corrigido pelos fortes movimentos aéreos provindos dos
quadrantes de leste, origina disposições mais animadoras e tem ação
estimulante mais benéfica.
E volvendo ao Sul, no território que no norte de Minas para o
sudoeste progride ao Rio Grande, deparam-se condições
incomparavelmente superiores:
Uma temperatura anual média oscilando de 17º a 20º, num jogo
mais harmônico de estações; um regime mais fixo das chuvas que,
preponderantes no verão, se distribuem no outono e na primavera de
modo favorável às culturas. Atingindo o inverno, a impressão de um
clima europeu é precisa: sopra o SO frigidíssimo sacudindo
chuvisqueiros finos e esgarçando garoas; a neve rendilha as
vidraças; gelam os banhados, e as geadas branqueiam pelos
campos...
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