|
Não a observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas
graças a higrômetros inesperados e bizarros.
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de
Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneiro frouxo de tiros
espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta,
anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale
único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos
intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a
aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma
árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação
franzina.
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão e protegido por
ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus — um
soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher
estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em
tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário
possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe
sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se,
dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por
isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram
jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na
batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe
afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso
repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente
abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os
luares claros, para as estrelas fulgurantes...
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os
traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador
cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela
árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos
analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão
da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível.
Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura
extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimens empalhados,
de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas
ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.
À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se
destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o
alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro.
Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme,
quedou, adiante, a meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou
quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto da
pedra... E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre
a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga
paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao
passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas
crinas ondulantes...
Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as
colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de
minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente
adusto; cada partícula de areia suspensa do solo gretado e duro
irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda
combustão da terra.
Fora disto — nas longas calmarias, fenômenos óticos bizarros.
Do topo da Favela, se a prumo dardejava o Sol e a atmosfera
estagnada imobilizava a natureza em torno, atentando-se para os
descampados, ao longe, não se distinguia o solo.
O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas
desigualmente aquecidas, parecendo varar através de um prisma
desmedido e intáctil, e não distinguia a base das montanhas, como
que suspensas. Então, ao norte da Canabrava, numa enorme expansão
dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador; estranho
palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de
mar, largo, irisado, sobre que caísse, e refrangesse, e
ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes...
|
|