II. CAUSAS PRÓXIMAS DA LUTA

Determinou-a incidente desvalioso.

Antônio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhe as caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos representantes da autoridade daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando o rompimento anelado. O principal representante da justiça do Juazeiro tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a época em que sendo juiz do Bom Conselho fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada pelos adeptos daquele.

Aproveitou, por isto, a situação, que surgia a talho para a desafronta. Sabia que o adversário revidaria à provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato aquele retrucou com a ameaça de uma investida sobre a bela povoação do S. Francisco: as madeiras seriam de lá arrebatadas, à força.

O caso passou em dias de outubro de 1896.

Historiemos, adstritos a documentos oficiais:

“Era esta a situação quando recebi do Dr. Arlindo Leoni, Juiz de Direito de Juazeiro, um telegrama urgente comunicando-me correrem boatos mais ou menos fundados de que aquela florescente cidade seria por aqueles dias assaltada por gente de Antônio Conselheiro, pelo que solicitava providências para garantir a população e evitar o êxodo que da parte desta já se ia iniciando. Respondi-lhe que o governo não podia mover força por simples boatos e recomendei, entretanto, que mandasse vigiar as estradas em distância e verificado o movimento dos bandidos, avisasse por telegrama, pois o governo ficava prevenido para evitar incontinenti, em trem expresso, a força necessária para rechaçá-los e garantir a cidade.

Desfalcada a força policial aquartelada nesta Capital, em virtude das diligências a que anteriormente me referi, requisitei do Sr. General comandante do distrito 100 praças de linha, a fim de seguirem para Juazeiro, apenas me chegasse aviso do Juiz de Direito daquela comarca. Poucos dias depois recebi daquele magistrado um telegrama em que me afirmava estarem os sequazes de Antônio Conselheiro distantes do Juazeiro pouco mais ou menos dous dias de viagem. Dei conhecimento do fato ao Sr. General que, satisfazendo a minha requisição, fez seguir em trem expresso e sob o comando do Tenente Pires Ferreira, a força preparada, a qual devia ali proceder de acordo com o Juiz de Direito.

“Esse distinto oficial, chegando ao Juazeiro, combinou com aquela autoridade seguir ao encontro dos bandidos, a fim de evitar que eles invadissem a cidade.”

Não se podem imaginar móveis mais insignificantes para sucessos tão graves. O trecho acima extratado, entretanto, diz de modo claro que, desdenhando os antecedentes da questão, o governo da Bahia não lhe deu a importância merecida.

Antônio Conselheiro há vinte e dous anos, desde 1874, era famoso em todo o interior do Norte e mesmo nas cidades do litoral até onde chegavam, entretecidos de exageros e quase lendários, os episódios mais interessantes de sua vida romanesca; dia a dia ampliara o domínio sobre as gentes sertanejas; vinha de uma peregrinação incomparável, de um quarto de século, por todos os recantos do sertão, onde deixara como enormes marcos, demarcando-lhe a passagem, as torres de dezenas de igrejas que construíra; fundara o arraial de Bom Jesus, quase uma cidade; de Xorroxó à vila do Conde, de Itapicuru a Jeremioabo, não havia uma só vila, ou lugarejo obscuro, em que não contasse adeptos fervorosos, e não lhe devesse a reconstrução de um cemitério, a posse de um templo ou a dádiva providencial de um açude; insurgira-se desde muito, atrevidamente, contra a nova ordem política e pisara, impune, sobre as cinzas dos editais das câmaras de cidades que invadira; destroçara completamente, em 1893, forte diligência policial, em Massete, e fizera voltar outra, de 80 praças de linha, que seguira até Serrinha; em 1894, fora, no Congresso Estadual da Bahia, assunto de calorosa discussão na qual impugnando a proposta de um deputado, chamando a atenção dos poderes públicos para a “parte dos sertões perturbada pelo indivíduo Antônio Conselheiro”, outros eleitos do povo, e entre eles um sacerdote, apresentaram-no como benemérito do qual os conselheiros se modelavam pela ortodoxia cristã mais rígida; fizera voltar, abortícia, em 1895, a missão apostólica planeada pelo arcebispado baiano, e no Relatório alarmante a propósito escrito por Frei João Evangelista, afirmara o missionário a existência, em Canudos — excluídas as mulheres, as crianças, os velhos e os enfermos — de mil homens, mil homens robustos e destemerosos “armados até aos dentes”; por fim, sabia-se que ele imperava sobre extensa zona dificultando o acesso à cidadela em que se entocara, porque a dedicação dos seus sequazes era incondicional, e fora do círculo dos fiéis que o rodeavam havia, em toda a parte, a cumplicidade obrigatória dos que o temiam... E achou-se suficiente para debelar uma situação de tal porte uma força de cem soldados. Relata o general Frederico Solon, comandante do 3º distrito militar:

“A 4 de novembro do ano findo (1896) em obediência à ordem já referida, prontamente satisfiz a requisição, pessoalmente feita pelo Dr. Governador do Estado, de uma força de cem praças da guarnição para ir bater os fanáticos do arraial de Canudos, asseverando-me que, para tal fim, era aquele número mais que suficiente. Confiado no inteiro conhecimento, que ele devia ter, de tudo quanto se passava no interior de seu Estado, não hesitei; fazendo-lhe apresentar, sem demora, o bravo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, do 9º Batalhão de Infantaria, a fim de receber as suas ordens e instruções o qual, para cumpri-las, seguiu, a 7 do dito mês para Juazeiro, ponto terminal da estrada de ferro, na margem direita do Rio S. Francisco, comandando 3 oficiais e 104 praças de pré daquele Corpo, conduzindo apenas uma pequena ambulância, fazendo eu seguir logo depois um médico com mais alguns recursos para o exercício de sua profissão. O mais correu pelo Estado.”

Aquele punhado de soldados foi recebido com surpresa em Juazeiro, onde chegou a 7 de novembro, pela manhã. Não obstou a fuga de grande parte da população, subtraindo-se ao assalto iminente. Aumentou-a. Conhecendo a situação, os habitantes viram, de pronto, que um contingente tão diminuto tinha o valor negativo de exercer maior atração sobre a horda invasora.

Previram a derrota inevitável. E enquanto os partidários encobertos do Conselheiro, que os havia em toda a roda, se rejubilavam, prefigurando-a, alguns homens sinceros pediram ao comandante expedicionário para não seguir avante.

As dificuldades encontradas na aquisição de elementos essenciais à marcha ali retiveram a força até ao dia 12 em que partiu, ao anoitecer, quando, certo, já chegara a Canudos a nova da investida. Partiu sem os recursos indispensáveis a uma travessia de 200 quilômetros, em terreno agro e despovoado, orientada por dous guias contratados em Juazeiro.

De sorte que logo em princípio o comandante reconheceu inexeqüível dar à marcha uma norma capaz de poupar as forças das praças. No sertão, mesmo antes do pleno estio, é impossível o caminhar de homens equipados, ajoujados de mochilas e cantis, depois das dez horas da manhã. Pelos tabuleiros o dia desdobra-se abrasador, sem sombras; a terra nua reverbera os ardores da canícula, multiplicando-os; e sob o influxo exaustivo de uma temperatura altíssima aceleram-se de modo pasmoso as funções vitais, determinando assaltos súbitos de cansaço. Por outro lado raro é possível o itinerário disposto de maneira a aproveitarem-se as horas da madrugada ou da noite. É forçoso avançar a despeito das soalheiras fortes até às cacimbas dos pousos dos vaqueiros. Além disto, aqueles lugares estão, como vimos, entre os mais desconhecidos da nossa terra. Pousos se têm afrontado com o aspérrimo vale do Vaza-Barris que, das vertentes orientais da Itiúba até Jeremoabo, se prolonga inóspito, desfreqüentado, tendo, de léguas, esparsas, insignificantes vivendas. É o trecho da Bahia mais assolado pelas secas.

Por um contraste explicável ante as disposições orográficas, rodeiam-no, contudo, paragens exuberantes: ao norte o belo sertão de Curaçá e as várzeas feracíssimas estendidas para leste até Santo Antônio da Glória, perlongando a margem direita do S. Francisco; a oeste as terras fecundas centralizadas em Vila Nova da Rainha. Emolduram, porém, o deserto. O Vaza-Barris, quase sempre seco, atravessa-o feito um urde tortuoso e longo. Piores que os gerais, onde ficam vários, às vezes, os mais atilados pombeiros, sem rumos, desnorteados pela uniformidade dos planos indefinidos, as paisagens sucedem-se, uniformes e mais melancólicos mostrando os mais selvagens modelos, engravescidos por uma flora aterradora.

A própria caatinga assume um aspecto novo. E uma melhor caracterização da flora sertaneja, segundo os vários cambiantes que apresenta acarretando denominações diversas, talvez a definisse mais acertadamente como a paragem clássica das caatanduvas, progredindo, extensa para o levante e para o sul até às cercanias de Monte Santo.

A pequena expedição penetrou-a logo ao segundo dia de viagem, quando, depois de repousar bivacando duas léguas além de Juazeiro, teve que calcar, seguidamente, quarenta quilômetros de estrada deserta, até uma ipueira minúscula, a lagoa do Boi, onde havia uns restos de água. Dali por diante caminhou no deserto com escalas por Caraibinhas, Mari, Mocambo, Rancharia e outros pousos solitários, ou fazendas. Alguns estavam abandonados. O estio prenunciava a seca.

Os raros moradores, ou por evitá-la, ou aterrados pelas novas alarmantes, haviam abalado para o norte tangendo por diante os rebanhos de cabras, únicos animais afeitos àquele clima e àquele solo.

A tropa chegou exausta a Uauá no dia 19, depois de uma travessia penosíssima.

Este arraial — duas ruas desembocando numa praça irregular — é o ponto mais animado daquele trecho do sertão. Como a maior parte dos vilarejos pomposamente gravados nos nossos mapas, é uma espécie de transição entre maloca e aldeia — agrupamento desgracioso de cerca de cem casas malfeitas e tijupares pobres, de aspecto deprimido e tristonho.

Alcançam-no quatro estradas que, a partir de Jeremoabo passando em Canudos, de Monte Santo, de Juazeiro e Patamoté conduzem para a sua feira, aos sábados, grande número de tabaréus, sem recursos para viagens longas a lugares mais prósperos. Ali chegam por ocasião das festas como se procurassem opulenta capital das terras grandes: entrajados das melhores vestes, ou encourados de novo; pasmos ante os mostradores de duas ou três casas de negócio, e contemplando no barracão da feira, no largo, os produtos de uma indústria pobre em que aparecem, como valiosos espécimes, courinhos curtidos e redes de caroá. Nos demais dias, aberta uma ou outra venda, deserta a praça, Uauá figura-se um local abandonado. E foi num destes que a população recolhida, aguardando a passagem das horas mais ardentes, despertou surpreendida por uma vibração de cometas.

Era a tropa.

Entrou pela rua em continuação à estrada e fez alto no largo. Foi um sucesso. Entre curiosos e tímidos os habitantes atentavam para os soldados — poentos, malfirmes na formatura, tendo aos ombros as espingardas cujas baionetas fulguravam — como se vissem exército brilhante.

Ensarilhadas as armas, a força acantonou.

Fez-se em torno um círculo de vigilância: postaram-se sentinelas à saída dos quatro caminhos e nomeou-se pessoal das rondas.

Feito praça de guerra, o vilarejo obscuro era, entretanto, uma escala transitória. A expedição, depois de breve descanso, devia abalar imediatamente para Canudos, ao alvorecer do dia subseqüente, 20. Não o fez. Ali, como em toda a parte, variavam, díspares, as informações, impedindo ajuizar-se sobre as cousas. De sorte que todo aquele dia foi despendido inutilmente, em indagações, sendo resolvido o acontecimento para o imediato, depois de demora prejudicialíssima. E ao cair da noite operou-se um incidente só explicado na manhã seguinte: a população, quase na totalidade, fugira. Deixara as vivendas, sem ser percebida, em pequenos grupos deslizando, furtivos, entre os claros das guardas avançadas. No repentino êxodo lá se foram os próprios doentes, famílias inteiras, ao acaso, pela noite dentro, dispartindo espavoridos, descampados em fora. Ora, este fato era um aviso. Uauá, como os demais lugares convizinhos, estava sob o domínio de Canudos. Habitavam-no dedicados adeptos de Antônio Conselheiro; de sorte que mal a força fizera alto no largo, haviam-se aqueles precipitado para o arraial ameaçado, onde chegaram no amanhecer de 20, levando o alarma... Aquela fuga de uma população em massa delatava que os emissários haviam tido tempo de voltar prevenindo os moradores do contra-ataque, resolvido pelos homens de Canudos. Ficaria, assim, o campo livre aos lutadores. Os expedicionários não ligaram, porém, grande importância ao caso. Aprestaram-se para continuar a marcha na manhã seguinte; e inscientes da gravidade das cousas repousaram tranqüilamente, acantonados.