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Adstrita às influências que mutuam, em graus variáveis, três
elementos étnicos, a gênese das raças mestiças do Brasil é um
problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores
espíritos. Está apenas delineado.
Entretanto no domínio das investigações antropológicas brasileiras
se encontram nomes altamente encarecedores do nosso movimento
intelectual. Os estudos sobre a pré-história indígena patenteiam
modelos de observação sutil e conceito crítico brilhante, mercê dos
quais parece definitivamente firmado, contravindo ao pensar dos
caprichosos construtores da ponte Alêutica, o autoctonismo das raças
americanas. Neste belo esforço, rematado pela profunda elaboração
paleontológica de Wilhelm Lund, destacam-se o nome de Morton, a
intuição genial de Frederico Hartt, a inteiriça organização
científica de Meyer, a rara lucidez de Trajano de Moura, e muitos
outros cujos trabalhos reforçam os de Nott e Gliddon no definir, de
uma maneira geral mas completa, a América como um centro de criação
desligado do grande viveiro da Ásia Central. Erige-se autônomo
entre as raças o homo americanus.
A face primordial da questão ficou assim aclarada. Quer resultem do
“homem da Lagoa Santa” cruzado com o pré-colombiano dos
“sambaquis”; ou se derivem, altamente modificados por ulteriores
cruzamentos e pelo meio, de alguma raça invasora do Norte, de que se
supõem oriundos dos tupis tão numerosos na época do descobrimento —
os nossos silvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos,
podem ser considerados tipos evanescentes de velhas raças autóctones
da nossa terra.
Esclarecida deste modo a preliminar da origem do elemento indígena,
as investigações convergiram para a definição da sua psicologia
especial; e enfeixaram-se, ainda, em algumas conclusões seguras.
Não precisamos revivê-las. Sobre faltar-nos competência, nos
desviaríamos muito de um objetivo prefixado. Os dous outros elementos
formadores, alienígenas, não originaram idênticas tentativas. O
negro banto, ou cafre, com as suas várias modalidades, foi até
neste ponto o nosso eterno desprotegido. Somente nos últimos tempos
um investigador tenaz, Nina Rodrigues, subordinou a uma análise
cuidadosa a sua religiosidade original e interessante. Qualquer,
porém, que tenha sido o ramo africano para aqui transplantado trouxe,
certo, os atributos preponderantes do homo afer, filho das paragens
adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que em quaisquer
outras, se faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força.
Quanto ao fator aristocrático de nossa gens, o português, que nos
liga à vibrátil estrutura intelectual do celta, está, por sua vez,
malgrado o complicado caldeamento de onde emerge, de todo
caracterizado. Conhecemos, deste modo, os três elementos
essenciais, e, imperfeitamente embora, o meio físico diferenciador
— e ainda, sob todas as suas formas, as condições históricas
adversas ou favoráveis que sobre eles reagiram. No considerar,
porém, todas as alternativas e todas as fases intermédias desse
entrelaçamento de tipos antropológicos de graus díspares nos
atributos físicos e psíquicos, sob os influxos de um meio variável,
capaz de diversos climas, tendo discordantes aspectos e opostas
condições de vida, pode afirmar-se que pouco nos temos avantajado.
Escrevemos todas as variáveis de uma fórmula intricada, traduzindo
sério problema; mas não desvendamos todas as incógnitas.
É que, evidentemente, não basta, para o nosso caso, que postos uns
diante de outros o negro banto, o indo- guarani e o branco,
apliquemos ao conjunto a lei antropológica de Broca. Esta é
abstrata e irredutível. Não nos diz quais os reagentes que podem
atenuar o influxo da raça mais numerosa ou mais forte, e causas que o
extingam ou atenuem quando ao contrário da combinação binária, que
pressupõe, despontam três fatores diversos, adstritos às
vicissitudes da história e dos climas.
É uma regra que nos orienta apenas no indagarmos a verdade.
Modifica-se, como todas as leis, à pressão dos dados objetivos.
Mas ainda quando por extravagante indisciplina mental alguém tentasse
aplicá-la, de todo despeada da intervenção daqueles, não
simplificaria o problema.
É fácil demonstrar.
Abstraiamos de inúmeras causas perturbadoras, e consideremos os três
elementos constituintes de nossa raça em si mesmos, intactas as
capacidades que lhes são próprias.
Vemos, de pronto, que, mesmo nesta hipótese favorável, deles não
resulta o produto único imanente às combinações binárias, numa
fusão imediata em que se justaponham ou se resumam os seus caracteres,
unificados e convergentes num tipo intermediário. Ao contrário a
combinação ternária inevitável determina, no caso mais simples,
três outras, binárias. Os elementos iniciais não se resumem, não
se unificam; desdobram-se; originam número igual de subformações
— substituindo-se pelos derivados, sem redução alguma, em uma
mestiçagem embaralhada onde se destacam como produtos mais
característicos o mulato, o mameluco ou curiboca, e o cafuz. As
sedes iniciais das indagações deslocam-se apenas mais perturbadas,
graças a reações que não exprimem uma redução, mas um
desdobramento. E o estudo destas subcategorias substitui o das raças
elementares agravando-o e dificultando-o, desde que se considere que
aquelas comportam, por sua vez, inúmeras mo- dalidades consoante as
dosagens variáveis do sangue.
O brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável
acima afirmado, só pode surgir de um entrelaçamento consideravelmente
complexo.
Teoricamente ele seria o pardo, para que convergem os cruzamentos
sucessivos do mulato, do curiboca e do cafuz.
Avaliando-se, porém, as condições históricas que têm atuado
diferente nos diferentes tratos do território; as disparidades
climáticas que nestes ocasionam reações diversas diversamente
suportadas pelas raças constituintes; a maior ou menor densidade com
que estas cruzaram nos vários pontos do país; e atendendo-se ainda
à intrusão — pelas armas na quadra colonial e pelas imigrações em
nossos dias — de outros povos, fato que por sua vez não foi e não é
uniforme, vê-se bem que a realidade daquela formação é altamente
duvidosa, senão absurda. Como quer que seja, estas rápidas
considerações explicam as disparidades de vistas que reinam entre os
nossos antropólogos. Forrando-se, em geral, à tarefa penosa de
subordinar as suas pesquisas a condições tão complexas, têm
atendido sobremaneira ao preponderar das capacidades étnicas. Ora, a
despeito da grave influência destas, e não a negamos, elas foram
entre nós levadas ao exagero, determinando a irrupção de uma
meia-ciência difundida num extravagar de fantasias, sobre ousadas,
estéreis. Há como que um excesso de subjetivismo no ânimo dos que
entre nós, nos últimos tempos, cogitam de cousas tão sérias, com
uma volubilidade algo escandalosa, atentas às proporções do
assunto. Começam excluindo em grande parte os materiais objetivos
oferecidos pelas circunstâncias mesológica e histórica. Jogam,
depois, e entrelaçam, e fundem as três raças consoante os caprichos
que os impelem no momento. E fazem repontar desta metaquímica
sonhadora alguns precipitados fictícios. Alguns firmando
preliminarmente, com autoridade discutível, a função secundária do
meio físico e decretando preparatoriamente a extinção quase completa
do silvícola e a influência decrescente do africano depois da
abolição do tráfico, prevêem a vitória final do branco, mais
numeroso e mais forte, como termo geral de uma série para o qual
tendem o mulato, forma cada vez mais diluída do negro, e o caboclo,
em que se apagam, mais depressa ainda, os traços característicos do
aborígine.
Outros dão maiores largas aos devaneios. Ampliam a influência do
último. E arquitetam fantasias que caem ao mais breve choque da
crítica; devaneios a que nem faltam a metrificação e as rimas,
porque invadem a ciência na vibração rítmica dos versos de
Gonçalves Dias.
Outros vão terra a terra demais. Exageram a influência do
africano, capaz, com efeito, de reagir em muitos pontos contra a
absorção da raça superior. Surge o mulato. Proclamam-no o mais
característico tipo da nossa subcategoria étnica.
O assunto assim vai derivando multiforme e dúbio.
Acreditamos que isto sucede porque o escopo essencial destas
investigações se tem reduzido à pesquisa de um tipo étnico único,
quando há, certo, muitos.
Não temos unidade de raça.
Não a teremos, talvez, nunca.
Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro
remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma.
Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa
evolução biológica reclama a garantia da evolução social.
Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos, ou desaparecemos.
A afirmativa é segura.
Não a sugere apenas essa heterogeneidade de elementos ancestrais.
Reforça-a outro elemento igualmente ponderável: um meio físico
amplíssimo e variável, completado pelo variar de situações
históricas, que dele em grande parte decorreram.
A este propósito não será desnecessário considerá-lo por alguns
momentos.
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