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O lento avançar do assédio estacou, então, novamente.
Imobilizava-o pela última vez o vencido. Ademais a situação não
requeria maiores esforços. A vitória viria por si mesma. Bastava
que se conservassem as posições. Fechadas todas as saídas e
francamente batidas as cacimbas marginais do rio, o perdimento do
arraial era inevitável, em dous dias no máximo — mesmo admitida a
presunção de poderem, os assediados, por tanto tempo e naqueles dias
ardentes, suportar a sede que os flagelava.
Mas a resistência duraria uma semana ainda. Porque aquele círculo
maciço de batalhões começou a ser partido, intermitentemente, pelos
sertanejos, à noite.
Na de 26 houvera quatro ataques violentos; na de 27, dezoito;
nas dos dias subseqüentes, um único, porque já não intermitiram,
prolongando-se, contínuos, das seis da tarde às cinco do
amanhecer.
Não visavam rasgar um caminho à fuga. Empenhando-se todos ao sul
atendiam à conquista momentânea das cacimbas, ou gânglios rebalsados
do Vaza-Barris. Enquanto o grosso dos companheiros se batia
atraindo para o âmago do arraial a maior parte dos sitiantes, alguns
valentes sem armas, carregando as borrachas vazias, aventuravam-se
até à borda do rio. Avançavam cautelosamente. Abeiravam-se das
poças esparsas e raras, que salpintavam o leito; e, enchendo as
vasilhas de couro, volviam, correndo, arcados sob as cargas
preciosas. Ora, esta empresa, a princípio apenas difícil, foi-se
tornando, a pouco e pouco, insuperável. Descoberto o motivo único
daqueles ataques, os sitiantes das posições ribeirinhas convergiam os
fogos sobre as cacimbas, facilmente percebidas — breves placas
líquidas rebrilhando ao luar ou joeirando, na treva, o brilho das
estrelas...
De sorte que atingindo-lhes as bordas os sertanejos tinham, em torno
e na frente, o chão varrido à bala. Avançavam e caíam, às
vezes, sucessivamente, todos.
Alguns antes que chegassem a ipueiras esgotadas, reduzidas a
repugnantes lameiros; outros quando, de bruços, sugavam o líquido
salobro e impuro; e outros quando, no termo da tarefa, volviam
arcando sob os bogós repletos. Substituíam-nos outros, rompendo
desesperadamente contra os tiroteios, afrontando-se com a morte.
Ou, o que em geral sucedia, deixavam que se atreguasse a repulsa
enérgica e mortífera e se descuidassem os soldados vigilantes. Mas
estes, conhecendo-lhes os ardis, sabiam que tornariam outra vez em
breve. Aguardavam-nos, pontarias imóveis, ouvidos armados ao menor
ruído, olhos frechando, fitos, as sombras, como caçadores numa
espera. E divisavam-nos, de fato, transcorridos minutos,
indistintos, vultos diluídos no escuro, na barranca fronteira; e
viam- nos, descendo lento e lento por ela abaixo, de bruços, rentes
com o chão, vagarosamente, num rastejar serpejante de grandes
sáurios silenciosos; e viam-nos depois, embaixo, arrastando-se
pelo esteiro areento do rio... Seguravam as pontarias.
Deixavam-nos aproximar-se, e deixavam-nos atingir os estagnados que
eram o chamariz único daquela ceva monstruosa.
Então lampejava o fulgor das descargas subitâneas!
Fulminavam-nos. Percebiam-se, adiante quinze metros, gritos
dilacerantes de cólera e de dor; dous ou três corpos escabujando à
beira das cacimbas; correndo outros, espavoridos; outros, feridos,
em cambaleios; e outros desafiando o fuzilamento, pulando, sem
resguardos agora, das barrancas — e velozes, terríveis,
desafiadores — passando sobre os companheiros moribundos, arremetendo
com a barreira infernal que os devorava.
Um único às vezes escapava, às carreiras. Transpunha a barranca
de um salto, e perdia-se nos escombros do casario, levando aos
companheiros alguns litros de água que custavam hecatombes. E era um
líquido suspeito, contaminado de detritos orgânicos, de sabor
detestável em que se pressentia o tóxico das ptomaínas e fosfatos dos
cadáveres decompostos jazentes desde muito insepultos por toda aquela
orla do Vaza-Barris. Estes episódios culminaram o heroísmo dos
matutos. Comoviam, por fim, aos próprios adversários.
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