ASPECTO DO ACAMPAMENTO

O acampamento mudara; perdera a aparência revolta dos primeiros dias. Era como um outro arraial despontando a ilharga de Canudos. Atravessando o leito vazio do Vaza-Barris, os recém-vindos enveredavam por uma sanga flexuosa; topavam, a meio caminho, à direita, entranhado em larga reentrância, vasto alpendre coberto de couro — o hospital de sangue; — e a breve trecho atingiam a tenda do comandante-geral. Nesse trajeto viam-se dentro de um novo povoado.

Havia-se reconstruído o bairro conquistado. De uma e outra banda do caminho, erectas ao viés das encostas, arruadas ou acumuladas pelos vales diminutos, pintalgando, numerosas e esparsas, o tom pardo dos abarracamentos, sucediam-se pequenas casas de aspecto original e festivo — feitas todas de folhagens, tetos e paredes verdes de ramas de juazeiros, de forma singularmente imprópria aos habitadores. Mas eram as únicas ajustáveis ao meio. A canícula abrasante, transmudando as barracas em fornos adurentes, inspirada aquela arquitetura bucólica e primitiva. Nada que denunciasse, ao primeiro lance de vistas, a estadia de um exército. Tinha-se a impressão de chegar em vilarejo suspeito dos sertões. E encontrando-se os primeiros povoadores — homens à paisana, mal compostos, arrastando espadas e sobraçando espingardas; na maior parte cobertos de chapéus de couro com presilhas; descalços ou calçando alpercatas; e, num ou noutro ponto, mulheres maltrapilhas cosendo tranqüilamente às portas ou passando arcadas sob achas de lenhas, completava-se a ilusão. O estranho entrava a desconfiar que um engano na rota o havia desnorteado para o meio dos jagunços — até atingir a tenda do general, mais longe. Galgado o cerro em cujo sopé esta se erigia, chegava-se, no topo, à comissão de engenharia, em casebre que não fora destruído; e metido o olhar pelos resquícios das paredes espessadas de rachões de pedra, via-se, de perto, dali cem metros, a praça das igrejas. Estava-se sobre a encosta que tinha à base as paliçadas e palancas do trecho mais perigoso do sítio, centralizado pelo 25o Batalhão — a linha negra — lado por onde entrara mais fundo nos flancos do arraial o assalto de 18 de julho. Volvendo à esquerda, sob o anteparo da linha descontínua de choupanas por ali dispersas, passava-se, dados mais alguns passos, pelo quartel-general da 1a coluna. Descia-se a vertente sul seguindo por um releixo coleante, tendo à meia encosta, noutro casebre exíguo, o da segunda. Chegava-se à Repartição do Quartel- Mestre-General e acampamento do Batalhão Paulista, embaixo, numa planura arenosa, que o Vaza-Barris alaga nas enchentes. Continuando a rota, depois de atravessar o leito daquele sob o abrigo do espaldão de pedra, abarreirando-o de uma margem à outra e guarnecido pelo 26o, alcançava-se a tranqueira extrema do cerco prolongada pelo 5o da Bahia distendido na acanaladura funda do Rio da Providência. Dali duzentos metros, atentando para a esquerda contemplava-se, alcandorada no alto, bojando na corcova da Fazenda Velha, à maneira de um baluarte pênsil — a trincheira Sete de Setembro.

Percorrendo desse modo a cercadura dos entrincheiramentos, os novos expedicionários tinham, nítida, a situação, traduzindo-se o exame feito num diluente do otimismo anterior. Aquele segmento do sítio era ainda escasso se o defrontavam com a amplitude do arraial. Este surpreendia-os. Afeitos às proporções exíguas das cidades sertanejas, tolhiças e minúsculas, assombrava-os aquela Babilônia de casebres, avassalando colinas. Canudos tinha, naquela ocasião, — foram uma a uma contadas depois — cinco mil e duzentas vivendas; e como estas, cobertas de tetos de argila vermelha, mesmo nos pontos em que se erigiam isoladas mal se destacavam, em relevo, no solo, acontecia que as vistas, acomodadas em princípio ao acervo de pardieiros compactos em torno da praça, se iludiam, avolumando-a desproporcionalmente. A perspectiva era empolgante. Agravava-a o tom misterioso do lugar. Repugnava admitir-se que houvesse ali embaixo tantas vidas. A observação mais afincada, quando transitório armistício a permitia, não lograva distinguir um vulto único, a sombra fugitiva de um homem; e não se ouvia o rumor mais fugaz. Lembrava uma necrópole antiga ou então, confundidos todos aqueles tetos e paredes no mesmo esboroamento — uma cata enterroada e enorme, roída de erosões, abrindo-se em voçorocas e pregueando- se em algares.

Que o observador, porém, não avultasse demais sobre o parapeito: as balas ressaltando a súbitas, de baixo, revelavam-lhe, de pronto, a população entocada. Bastava que um disparo qualquer, a qualquer hora, atroasse o alto do morro para que dali refluísse, inevitável, o revide imediato. Porque os jagunços, se não tinham mais a iniciativa dos ataques, replicavam com o vigor antigo. Exauriam-se sem perder o aprumo, timbrando no disfarçar quaisquer sintomas de enfraquecimento. Compreendia-se, no entanto, que este era completo. Objetivavam-no os próprios escombros em que se entaliscavam, ocultos. Além disso lá não estava apenas uma guarnição de valentes incorrigíveis. Havia mulheres e crianças sobre que rolavam durante três meses massas de ferro e de chamas, e elas punham muitas vezes no fragor das refregas a nota comovedora do pranto.

Dias antes um shrapnel arrojado da Favela, e que passara beirando as cimalhas da igreja nova, arrebentara dentro do casario anexo à latada das orações. E dali ascendera imediatamente uma réplica cruel perturbando os artilheiros do coronel Olímpio: um longo e indefinível choro; assonância dolorosíssima de clamores angustiosos, fazendo que o canhoneio cessasse à voz austera e comovida daquele comandante...

Assim, duplamente bloqueados, entre milhares de soldados e milhares de mulheres — entre lamentações e bramidos, entre lágrimas e balas — os rebeldes se renderiam de um momento para outro. Era fatal. A segurança do pleito já dera mesmo ensanchas a grandes temeridades. Um sargento do 5o de Artilharia por duas vezes se aventurara, à noite, a atravessar todo o largo penetrando no templo em ruínas e atirando lá dentro duas bombas de dinamite, que não explodiram. Um alferes do 25o, dias depois, copiando-lhe o arrojo, lançara fogo aos restos da igreja velha, que ardera toda.

De sorte que os lutadores, vindo noviciar na pendência desigual, cientes destas cousas, recaíam na preocupação primitiva: que o inimigo in extremis tivesse ainda fôlego para lhes facultar, desdobrassem o destemor e a força. A musculatura de ferro das brigadas novas ansiava a medir-se com o espernear da insurreição. Os que ali estavam havia tantos meses tinham glórias demais. Fartos, impando de triunfos e agora, mercê dos comboios diários, com a subsistência garantida, julgavam inútil despender mais vidas para que se apressasse a rendição inevitável. Quedavam numa mornidão irritante.

O acampamento, afora os intervalos, que se tornavam maiores, dos assaltos, tinha a placabilidade de uma pequena povoação bem policiada. Nada que recordasse a campanha feroz. Na sede da comissão de engenharia o general Artur Oscar, com a atração irresistível de um temperamento franco e jovial, centralizava longas palestras. Discorria-se sobre assuntos vários de todo opostos à guerra: casos felizes d’antanho, anedotas hílares, ou então alentadas discussões sobre política geral. Enquanto observadores tenazes, num invejável apego à ciência, registravam, hora por hora, pressões e temperaturas; inscreviam, invariável, um zero na nebulosidade do céu; e consultavam muito graves o higrômetro. Na farmácia militar, estudantes em férias forçadas riam ruidosamente e recitavam versos; e pelas paredes ralas de todas as choupanas ridentes, de folhagens pintalgadas de flores murchas de juazeiros, transudavam vozes e risos dos que lá dentro não tinham temores, que lhes agourentassem as horas ligeiras e tranqüilas. As balas que passavam, raras, repelidas pelas cristas dos cerros em trajetórias altas, eram inofensivas. Ninguém as percebia mais. Eram, indicava-o a precisão rítmica com que estalavam ou esfusiavam nos ares, lançadas por atiradores certos, que em Canudos parecia estarem apostados a lembrar os sitiantes que o sertanejo velava. Mas não impressionavam, embora algumas, em trajectórias baixas, batessem no pano das barracas em vergastadas rijas; como não impressionavam mais os tiroteios fortes, que ainda surgiam, às vezes, inopinadamente, à noite.

A vida normalizara-se naquela anormalidade. Despontavam peripécias extravagantes. Os soldados da linha negra, na tranqueira avançada do cerco, travavam, às vezes, noite velha, longas conversas com os jagunços. O interlocutor da nossa banda subia à berma da trincheira e, voltando para a praça, fazia ao acaso um reclamo qualquer, enunciando um nome vulgar, o primeiro que lhe acudia ao intento, com voz amiga e lhana, como se apelidasse algum velho camarada; e invariavelmente, do âmago da casaria ou, de mais perto, de dentro dos entulhos das igrejas, lhe respondiam logo, com a mesma tonalidade mansa, dolorosamente irônica. Entabulava-se o colóquio original através das sombras, num reciprocar de informações sobre tudo, do nome de batismo, ao lugar do nascimento, à família e às condições da vida. Não raro a palestra singular derivava a cousas escabrosamente jocosas e pelas linhas próximas, no escuro, ia rolando um cascalhar de risos abafados. O diálogo delongava-se até apontar a primeira divergência de opiniões. Salteavam-no, então, de lado a lado, meia dúzia de convícios ríspidos, num calão enérgico. E logo depois um ponto final — a bala...

Os soldados do 5o de Polícia, malgrado ao ilusório abrigo dos espaldões de terra, que os acobertavam, matavam o tempo, em descantes mitigando saudades dos rincões do S. Francisco. Se a fuzilaria apertava, pulavam de arremesso aos planos de fogo; batiam-se como demônios, terrivelmente, freneticamente, disparando as carabinas; e tendo nas bocas, ressoantes, cadenciadas a estampidos, as rimas das trovas prediletas. Baqueavam, alguns, cantando; e aplacada a refrega volviam ao folguedo sertanejo, ao toar langoroso das tiranas, aos rasgados nos machetes, como se fosse aquilo uma rancharia grande de tropeiros felizes, sesteando.