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Quem atravessa as planícies elevadas da Tunísia, entre Beja e
Bizerta, à ourela do Saara, encontra ainda, no desembocar dos
vales, atravessando normalmente o curso caprichoso e em torcicolos dos
uedes, restos de antigas construções romanas. Velhos muradais
derruídos, embrechados de silhares e blocos rolados, cobertos em
parte pelos detritos de enxurros de vinte séculos, aqueles legados dos
grandes colonizadores delatam a um tempo a sua atividade inteligente e o
desleixo bárbaro dos árabes que os substituíram.
Os romanos, depois da tarefa da destruição de Cartago, tinham
posto ombros à empresa incomparavelmente mais séria de vencer a
natureza antagonista. E ali deixaram belíssimo traço de sua
expansão histórica. Perceberam com segurança o vício original da
região, estéril menos pela escassez das chuvas do que pela sua
péssima distribuição adstrita aos relevos topográficos.
Corrigiram-no. O regime torrencial que ali aparece, intensíssimo
em certas quadras, determinando alturas pluviométricas maiores que as
de outros países férteis e exuberantes, era, como nos sertões do
nosso país, além de inútil, nefasto. Caía sobre a terra
desabrigada, desarraigando a vegetação mal presa a um solo
endurecido; turbilhonava por algumas semanas nos regatos
transbordantes, alagando as planícies; e desaparecia logo, derivando
em escarpamentos, pelo norte e pelo levante, no Mediterrâneo,
deixando o solo, depois de uma revivescência transitória, mais
desnudo e estéril. O deserto ao sul, parecia avançar, dominando a
paragem toda, vingando-lhe os últimos acidentes que não tolhiam a
propulsão do simum.
Os romanos fizeram-no recuar. Encadearam as torrentes; represaram
as correntezas fortes, e aquele regime brutal, tenazmente combatido e
bloqueado, cedeu, submetido inteiramente, numa rede de barragens.
Excluído o alvitre de irrigações sistemáticas dificílimas,
conseguiram que as águas permanecessem mais longo tempo sobre a terra.
As ravinas recortando-se em gânglios estagnados dividiram-se em
açudes abarreirados pelas muralhas que trancavam os vales, e os
uedes, parando, intumesciam-se entre os morros, conservando largo
tempo as grandes massas líquidas, até então perdidas, ou
levando-as, no transbordarem, em canais laterais aos lugares
próximos mais baixos, onde se abriam em sangradouros e levadas,
irradiantes por toda a parte, e embebendo o solo. De sorte que este
sistema de represas, além de outras vantagens, criara um esboço de
irrigação geral. Ademais, todas aquelas superfícies líquidas,
esparsas em grande número e não resumidas a um Quixadá único —
monumental e inútil — expostas à evaporação, acabaram reagindo
sobre o clima, melhorando-o. Por fim a Tunísia, onde haviam
aproado os filhos prediletos dos fenícios, mas que até então se
reduzira a um litoral povoado de traficantes ou númidas erradios, com
suas tendas de tetos curvos branqueando nos areais como quilhas
encalhadas — se fez, transfigurada, a terra clássica da agricultura
antiga. Foi o celeiro da Itália; a fornecedora, quase exclusiva,
de trigo, dos romanos. Os franceses, hoje, copiam-lhe em grande
parte os processos, sem necessitarem alevantar muramentos monumentais e
dispendiosos. Represam por estacadas, entre muros de pedras secas e
terras, à maneira de palancas, os uedes mais bem dispostos, e talham
pelo alto das suas bordas, em toda a largura das serranias que os
ladeiam, condutos derivando para os terrenos circunjacentes, em redes
irrigadoras.
Deste modo as águas selvagens estavam, remansam-se, sem adquirir a
força acumulada das inundações violentas, disseminando-se,
afinal, estas, amortecidas, em milhares de válvulas, pelas
derivações cruzadas. E a histórica paragem, liberta da apatia do
muslim inerte, transmuda-se volvendo de novo à fisionomia antiga. A
França salva os restos da opulenta herança da civilização romana,
depois desse declínio de séculos. Ora, quando se traçar, sem
grande precisão embora, a carta hipsométrica dos sertões do Norte,
ver-se-á que eles se apropriam a uma tentativa idêntica, de
resultados igualmente seguros.
A idéia não é nova. Sugeriu-a há muito, em memoráveis sessões
do Instituto Politécnico do Rio, em 1877, o belo espírito do
conselheiro Beaurepaire Rohan, talvez sugestionado pelo mesmo
símile, que acima apontamos. Das discussões então travadas, onde
se enterreiraram os melhores cientistas do tempo — da sólida
experiência de Capanema à mentalidade rara de André Rebouças —
foi a única cousa prática, factível, verdadeiramente útil que
ficou.
Idearam-se, naquela ocasião, luxuosas cisternas de alvenarias;
miríades de poços artesianos, perfurando as chapadas; depósitos
colossais, ou armazéns desmedidos para as reservas acumuladas;
açudes vastos, feitos cáspios artificiais; e por fim, como para
caracterizar bem o desbarate completo da engenharia, ante a enormidade
do problema, estupendos alambiques para a destilação das águas do
Atlântico!...
O alvitre mais modesto, porém, efeito imediato de um ensinamento
histórico, sugerido pelo mais elementar dos exemplos, suplanta-os.
Porque é, além de prático, evidentemente o mais lógico.
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