V. SOBRE O ALTO DO MÁRIO.

Os soldados, transposto o rio, acumularam-se junto à artilharia. Eram uma multidão alvorotada sem coisa alguma recordando a força militar, que se decompusera, restando, como elementos irredutíveis, homens atônitos e inúteis, e tendo agora, como preocupação exclusiva, evitarem o adversário que tão ansiosamente haviam procurado. O cerro em que se reuniam estava próximo demais daquele, e passível, talvez, de algum assalto, à noite. Era forçoso abandoná-lo. Sem ordem, arrastando os canhões, deslocaram-se logo para o alto do Mário, quatrocentos metros na frente. Ali improvisaram um quadrado incorreto, de fileiras desunidas e bambas, envolvendo a oficialidade, os feridos, as ambulâncias, o trem da artilharia e os cargueiros. Centralizava-o uma palhoça em ruínas — a Fazenda Velha; e dentro dela o comandante-em-chefe, moribundo.

A expedição era agora aquilo; um bolo de homens, animais, fardas e espingardas, entupindo uma dobra de montanha...

Tinha descido a noite — uma destas noites ardentíssimas mas vulgares no sertão, em que cada estrela, fixa, sem cintilações, irradia como um foco de calor e os horizontes, sem nuvens, iluminam-se, de minuto em minuto, como se refletissem relâmpagos de tempestades longínquas...

Não se via o arraial. Alguns braseiros sem chamas, de madeiras ardendo sob o barro das paredes e tetos; ou luzes esparsas de lanternas mortiças bruxuleando nas sombras, deslizando vagarosamente, como em pesquisas lúgubres, indicavam-no embaixo, e traindo também a vigília do inimigo. Tinham, porém, cessado os tiros e nem uma voz dali subia. Apenas na difusão luminosa das estrelas desenhavam-se, dúbios, os perfis imponentes das igrejas. Nada mais. A casaria compacta, as colinas circundantes, as montanhas remotas, desapareciam na noite. O acampamento em desordem contrastava a placidez ambiente. Constritos entre os companheiros, cento e tantos feridos e estropiados por ali se agitavam ou se arrastavam, torturados de dores e da sede, quase pisados pelos cavalos que espavoridos nitriam, titubeando no atravancamento das carretas e fardos dos comboios. Não havia curá- los no escuro onde fora temeridade incrível o rápido fulgurar de um fósforo. Além disto não bastava para tantos o número reduzido de médicos, um dos quais — morto, extraviado ou preso — desaparecera à tarde para nunca mais tornar.

Faltava, ademais, um comando firme. O novo chefe não suportava as responsabilidades, que o oprimiam. Maldizia talvez, mentalmente, o destino extravagante que o tornara herdeiro forçado de uma catástrofe. Não deliberava. A um oficial que ansiosamente o interpelara sobre aquele transe, respondera com humorismo triste, rimando um dito popular do Norte:

“É tempo de murici
Cada um cuide de si...”

Foi a sua única ordem do dia. Sentado na caixa de um tambor, chupando longo cachimbo, com o estoicismo doente do próprio desalento, o coronel Tamarindo, respondendo de tal jeito, ou por monossílabos, a todas as consultas, abdicara a missão de remodelar a turba esmorecida e ao milagre de subdividi-la em novas unidades de combate.

Ali estavam, certo, homens de valor e uma oficialidade pronta ao sacrifício. O velho comandante, porém, tivera a intuição de que um ajuntamento em tais conjunturas não significa a soma das energias isoladas e avaliara todos os elementos que, nas coletividades presas de emoções violentas, reduzem sempre as qualidades pessoais mais brilhantes. Quedava impassível, alheio à ansiedade geral, passando de modo tácito o comando a toda a gente. Assim, oficiais incansáveis davam por conta própria as providências mais urgentes; retificando o pretenso quadrado, em que se misturavam, a esmo, praças de todos os corpos; organizando ambulâncias e dispondo padiolas; reanimando os ânimos abatidos. Pelo espírito de muitos passara mesmo o intento animador de um revide, um novo assalto, logo ao despontar da manhã, descendo a força toda, em arremetida violenta, sobre os fanáticos, depois que os abalasse um bombardeio maior do que o realizado. E concertavam-se em planos visando corrigir o revés com um lance de ousadia. Porque a vitória devia ser alcançada a despeito dos maiores sacrifícios. Pensavam: nos quatro lados daquele quadrado malfeito inscreviam-se os destinos da República. Era preciso vencer. Repugnava-os, revoltava-os, humilhava-os angustiosamente aquela situação, ridícula e grave, ali, no meio de canhões modernos, sopesando armas primorosas, sentados sobre cunhetes repletos de cartuchos — e encurralados por uma turba de matutos turbulentos...

A maioria, porém, considerava friamente as cousas. Não se iludia. Um rápido confronto entre a tropa que chegara horas antes, entusiasta e confiante na vitória, e a que ali estava, vencida, patenteava-lhe uma solução única — a retirada.