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Mas o bloqueio, incompleto e com extenso claro ao norte, não
reduzira o inimigo aos últimos recursos. Os caminhos para a Várzea
da Ema e o Uauá estavam francos, subdividindo-se multívios pelas
chapadas em fora, para a extensa faixa do S. Francisco,
atravessando rincões de todo desconhecidos, até atingirem os
insignificantes lugarejos marginais àquele rio, entre Xorroxó e
Santo Antônio da Glória. Por ali chegavam pequenos fornecimentos
e poderiam entrar, à vontade, novos reforços de lutadores. Porque
se dirigiam precisamente nos rumos mais favoráveis, atravessando vasto
trato de um território que é o núcleo onde se ligam e se confundem os
fundos dos sertões de seis estados, da Bahia ao Piauí.
Desse modo formavam aos sertanejos a melhor saída, levando-os à
matriz em que se haviam gerado todos os elementos da revolta. Em
último caso, eram um escape à salvação. A população,
trilhando-os, mal seria perseguida nas primeiras léguas, na pior
alternativa. Abrigá-la-ia — impérvio e indefinido — o deserto.
Não o fez, porém, embora sentisse acrescida, em torno, a força
dos adversários, coincidindo-lhe com o próprio deperecimento.
Haviam desaparecido os principais guerrilheiros: Pajéu, nos
últimos combates de julho; o sinistro João Abade, em agosto; o
ardiloso Macambira, recentemente; José Venâncio e outros.
Restavam como figuras principais Pedrão, o terrível defensor de
Cocorobó, e Joaquim Norberto, guindado ao comando pela carência
de outros melhores. Por outro lado, escasseavam os mantimentos e
acentuava-se cada vez mais o desequilíbrio entre o número de
combatentes válidos, continuamente diminuído e o de mulheres,
crianças, velhos, aleijados e enfermos, continuamente crescente.
Esta maioria imprestável tolhia o movimento dos primeiros e reduzia os
recursos. Podia fugir, escoar-se a pouco e pouco, em bandos
diminutos, pelas veredas que restavam deixando aqueles desafogados e
forrando-se ao último sacrifício. Não o quis. De moto próprio
todos os seres frágeis e abatidos, certos da própria desvalia, se
devotaram a quase completo jejum, em prol dos que os defendiam. Não
os deixaram.
A vida no arraial tornou-se então atroz. Revelaram-na depois a
miséria, o abatimento completo e a espantosa magreza de seiscentas
prisioneiras. Dias de angústias indescritíveis foram suportados
diante das derradeiras portas abertas para a liberdade e para a vida.
E permaneceriam para todo o sempre inexplicáveis, se, mais tarde,
os mesmos que os atravessaram não revelassem a origem daquele
estoicismo admirável. É simples. Falecera a 22 de setembro
Antônio Conselheiro.
Ao ver tombarem as igrejas, arrombado o santuário, santos feitos em
estilhas, altares caídos, relíquias sacudidas no encaliçamento das
paredes e — alucinadora visão! — o Bom Jesus repentinamente a
apear-se do altar-mor, baqueando sinistramente em terra,
despedaçado por uma granada, o seu organismo combalido dobrou-se
ferido de emoções violentas. Começou a morrer. Requintou na
abstinência costumeira, levando-a a absoluto jejum. E
imobilizou-se certo dia de bruços, a fronte colada à terra, dentro
do templo em ruínas. Ali o encontrou numa manhã Antônio
Beatinho.
Estava rígido e frio, tendo aconchegado do peito um crucifixo de
prata.
Ora, este acontecimento — capital na história da campanha — e de
que parecia dever decorrer o seu termo imediato, contra o que era de
esperar aviventou a insurreição. É que, gizada talvez pelo
espírito astucioso de algum cabecilha, que prefigurara as
conseqüências desastrosas do fato, ou, o que se pode também
acreditar, nascida espontaneamente da hipnose coletiva, logo que a
beataria impressionada notou a falta do apóstolo, embora este nos
últimos tempos aparecesse raras vezes — se divulgou extraordinária
notícia.
Relataram-na depois, ingenuamente, os vencidos:
Antônio Conselheiro seguira em viagem para o céu. Ao ver mortos os
seus principais ajudantes e maior o número de soldados, resolvera
dirigir-se diretamente à Providência. O fantástico embaixador
estava àquela hora junto de Deus. Deixara tudo prevenido. Assim é
que os soldados, ainda quando caíssem nas maiores aperturas, não
podiam sair do lugar em que se achavam. Nem mesmo para se irem
embora, como das outras vezes. Estavam chumbados às trincheiras.
Fazia-se mister que ali permanecessem para a expiação suprema, no
próprio local dos seus crimes. Porque o profeta volveria em breve,
entre milhões de arcanjos descendo — gládios flamívomos coruscando
na altura — numa revoada olímpica, caindo sobre os sitiantes,
fulminando-os e começando o dia do Juízo...
Desoprimiram-se todas as almas; dispuseram-se os crentes para os
maiores tratos daquela penitência, que os salvava; e nenhum deles
notou que logo depois, sob pretextos vários, alguns incrédulos, e
entre eles Vila-Nova, abandonavam a povoação, tomando por
ignoradas trilhas.
Saíam ainda em tempo. Eram os últimos que escapavam porque no dia
24 a situação mudou.
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