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Nos intervalos travam-se os desafios.
Enterreiram-se, adversários, dous cantores rudes. As rimas saltam
e casam-se em quadras muita vez belíssimas.
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Nas horas de Deus, amém,
Não é zombaria, não!
Desafio o mundo inteiro
Pra cantar nesta função!
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O adversário retruca logo, levantando-lhe o último verso da
quadra:
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Pra cantar nesta função,
Amigo, meu camarada,
Aceita teu desafio
O fama deste sertão!
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É o começo da luta que só termina quando um dos bardos se engasga
numa rima difícil e titubeia, repinicando nervosamente o machete, sob
uma avalanche de risos saudando-lhe a derrota. E a noite vai
deslizando rápida no folguedo que se generaliza, até que as barras
venham quebrando e cantem as sericóias nas ipueiras, dando o sinal de
debandar ao agrupamento folgazão.
Terminada a festa volvem os vaqueiros à tarefa rude ou à rede
preguiçosa.
Alguns, de ano em ano, arrancam dos pousos tranqüilos para remotas
paragens. Transpõem o S. Francisco; mergulham nos gerais enormes
do ocidente, vastos planaltos indefinidos em que se confundem as bacias
daquele e do Tocantins em alagados de onde partem os rios
indiferentemente para o levante e para o poente, e penetram em
Goiás, ou, avantajando-se mais para o norte, as serras do
Piauí.
Vão à compra de gados. Aqueles lugares longínquos, pobres e
obscuros vilarejos que o Porto Nacional extrema, animam-se,
então, passageiramente, com a romaria dos baianos. São os
autocratas das feiras. Dentro da armadura de couro, galhardos,
brandindo a guiada, sobre os cavalos ariscos, entram naqueles
vilarejos com um desgarre atrevido de triunfadores felizes. E ao
tornarem — quando não se perdem para todo o sempre sem tino na
travessia perigosa dos descampados uniformes — reatam a mesma vida
monótona e primitiva...
De repente, uma variante trágica.
Aproxima-se a seca.
O sertanejo adivinha-se e prefixa-a graças ao ritmo singular com que
se desencadeia o flagelo. Entretanto não foge logo, abandonando a
terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradia do
Ceará.
Buckle, em página notável, assinala a anomalia de se não afeiçoar
nunca, o homem, às calamidades naturais que o rodeiam. Nenhum povo
tem mais pavor aos terremotos que o peruano; e no Peru as crianças ao
nascerem têm o berço embalado pelas vibrações da terra.
Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não o apavora.
É um complemento à sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários
tremendos. Enfrenta-a, estóico. Apesar das dolorosas tradições
que conhece através de um sem-número de terríveis episódios,
alimenta a todo o transe esperanças de uma resistência impossível.
Com os escassos recursos das próprias observações e das dos seus
maiores, em que ensinamentos práticos se misturam a extravagantes
crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e
suplantar. Aparelha- se com singular serenidade para a luta. Dous
ou três meses antes do solstício de verão, especa e fortalece os
muros dos açudes, ou limpa as cacimbas. Faz os roçados e arregoa as
estreitas faixas de solo arável à orla dos ribeirões. Está
preparado para as plantações ligeiras à vinda das primeiras chuvas.
Procura em seguida desvendar o futuro. Volve o olhar para as
alturas, atenta longamente nos quadrantes; e perquire os traços mais
fugitivos das paisagens...
Os sintomas do flagelo despontam-lhe, então, encadeados em série,
sucedendo-se inflexíveis, como sinais comemorativos de uma moléstia
cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as “chuvas do
caju” em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares
ardentes, sem deixarem traços; e pintam as caatingas, aqui, ali,
por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores marcescentes,
cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma
combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e abaixa-se
vagarosamente o nível das cacimbas... Do mesmo passo nota que os
dias, estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida
que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera
absorve-lhe, com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a
armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se lhe endurece
aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao
descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera,
entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes,
transvoando a outros climas...
É o prelúdio da sua desgraça.
Vê-o, acentuar-se, num crescendo, até dezembro.
Precautela-se: revista, apreensivo, as malhadas. Percorre os
logradouros longos. Procura entre as chapadas que se esterilizam
várzeas mais benignas para onde tange os rebanhos. E espera,
resignado, o dia 13 daquele mês. Porque em tal data, usança
avoenga lhe faculta sondar o futuro, interrogando a Providência. É
a experiência tradicional de Santa Luzia. No dia 12 ao anoitecer
expõe ao relento, em linha, seis pedrinhas de sal, que representam,
em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses
vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa-as: se
estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se deliu,
transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a
segunda, em fevereiro; se a maioria ou todas, é inevitável o
inverno benfazejo.
Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso
tem base positiva, e é aceitável desde que se considere que dela se
colhe a maior ou menor dosagem de vapor d’água nos ares, e,
dedutivamente, maiores ou menores probabilidades de depressões
barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas. Entretanto,
embora tradicional, esta prova deixa vacilante o sertanejo. Nem
sempre desanima, ante os seus piores vaticínios. Aguarda,
paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos
elementos. Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e no
dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o
último. Aquele dia é para ele o índice dos meses subseqüentes.
Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas
climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o
inverno; se, ao contrário, o Sol atravessa abrasadoramente o
firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças.
A seca é inevitável.
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