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Estes estigmas atávicos tiveram entre nós, favoráveis, as
reações do meio, determinando psicologia especial. O homem dos
sertões — pelo que esboçamos — mais do que qualquer outro está em
função imediata da terra. É uma variável dependente no jogar dos
elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar, resulta,
mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição
inferior de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas
a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa.
Ali, porém, as tendências pessoais como que se acolchetam às
vicissitudes externas e deste entrelaçamento resulta, copiando o
contraste que observamos entre a exaltação impulsiva e a apatia
enervadora da atividade, a indiferença fatalista pelo futuro e a
exaltação religiosa. Os ensinamentos dos missionários não poderiam
exercitar-se estremes das tendências gerais da sua época. Por
isto, como um palimpsesto, a consciência imperfeita dos matutos
revela nas quadras agitadas, rompendo dentre os ideais belíssimos do
catolicismo incompreendido, todos os estigmas de estádio inferior. É
que, mesmo em períodos normais, a sua religião é indefinida e
vária. Da mesma forma que os negros hauçás, adaptando à liturgia
todo o ritual iorubano, realizam o fato anômalo, mas vulgar mesmo na
capital da Bahia, de seguirem para as solenidades da Igreja por ordem
dos fetiches, os sertanejos, herdeiros infelizes de vícios
seculares, saem das missas consagradas para os ágapes selvagens dos
candomblés africanos ou poracês do tupi. Não espanta que
patenteiem, na religiosidade indefinida, antinomias surpreendentes.
Quem vê a família sertaneja, ao cair da noite, ante o oratório
tosco ou registo paupérrimo, à meia-luz das candeias de azeite,
orando pelas almas dos mortos queridos, ou procurando alentos à vida
tormentosa, encanta-se. O culto dos mortos é impressionador. Nos
lugares remotos, longe dos povoados, inumam-nos à beira das
estradas, para que não fiquem de todo em abandono, para que os
rodeiem sempre as preces dos viandantes, para que nos ângulos da cruz
deponham estes, sempre, uma flor, um ramo, uma recordação fugaz
mas renovada sempre. E o vaqueiro que segue arrebatadamente estaca,
prestes, o cavalo, ante o humilde monumento — uma cruz sobre pedras
arrumadas — e, a cabeça descoberta, passa vagaroso, rezando pela
salvação de quem ele nunca viu talvez, talvez de um inimigo.
A terra é o exílio insuportável, o morto um bem-aventurado
sempre.
O falecimento de uma criança é um dia de festa. Ressoam as violas
na cabana dos pobres pais, jubilosos entre as lágrimas; referve o
samba turbulento; vibram nos ares, fortes, as coplas dos desafios,
enquanto, a uma banda, entre duas velas de carnaúba, coroado de
flores, o anjinho exposto espelha, no último sorriso paralisado, a
felicidade suprema da volta para os céus, para a felicidade eterna —
que é a preocupação dominadora daquelas almas ingênuas e
primitivas.
No entanto há traços repulsivos no quadro desta religiosidade de
aspectos tão interessantes, aberrações brutais, que a derrancam ou
maculam.
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