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Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro.
A História não iria até ali.
Afeiçoara-se a ver a fisionomia temerosa dos povos na ruinaria
majestosa das cidades vastas, na imponência soberana dos coliseus
ciclópicos, nas gloriosas chacinas das batalhas clássicas e na
selvatiqueza épica das grandes invasões. Nada tinha que ver naquele
matadouro.
O sertão é o homízio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à
beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do
crime. Tira o chapéu, e passa.
E lá não chegaria, certo, a correção dos poderes constituídos.
O atentado era público. Conhecia-o, em Monte Santo, o principal
representante do governo, e silenciara. Coonestara-o com a
indiferença culposa. Desse modo a consciência da impunidade, do
mesmo passo fortalecida pelo anonimato da culpa e pela cumplicidade
tática dos únicos que podiam reprimi-la, amalgamou-se a todos os
rancores acumulados, e arrojou, armada até aos dentes, em cima da
mísera sociedade sertaneja, a multidão criminosa e paga para matar.
Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de
montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não
existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava.
Realizava-se um recuo prodigioso no tempo; um resvalar estonteador
por alguns séculos abaixo. Descidas as vertentes, em que se entalava
aquela furna enorme, podia representar-se lá dentro, obscuramente,
um drama sanguinolento da Idade das cavernas. O cenário era
sugestivo. Os atores, de um e de outro lado, negros, caboclos,
brancos e amarelos, traziam, intacta, nas faces, a caracterização
indelével e multiforme das raças — e só podiam unificar-se sobre a
base comum dos instintos inferiores e maus.
A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização,
ressurgiu, inteiriça. Desforrava-se afinal. Encontrou nas mãos,
ao invés do machado de diorito e do arpão de osso, a espada e a
carabina. Mas a faca relembrava-lhe melhor o antigo punhal de sílex
lascado. Vibrou-a. Nada tinha a temer. Nem mesmo o juízo remoto
do futuro.
Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e
revolta; sem altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente
violenta, porque é um grito de protesto; sombria, porque reflete uma
nódoa — esta página sem brilhos...
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