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Não havia obstar essa descensão. O governo anterior, do marechal
Floriano Peixoto, tivera, pelas circunstâncias especialíssimas que
o rodearam, função combatente e demolidora. Mas no abater a
indisciplina emergente de sucessivas sedições, agravara a
instabilidade social de fora de algum modo contraproducente, violando
flagrantemente um programa preestabelecido. Assim é que nascendo do
revide triunfante contra um golpe de estado violador das garantias
constitucionais, criara o processo da suspensão de garantias;
abraçado tenazmente à Constituição, afogava-a; fazendo da
Legalidade a maior síntese de seus desígnios, aquela palavra,
distendida à consagração de todos os crimes transmudara-se na
fórmula antinômica de uma terra sem leis. De sorte que o inflexível
marechal de ferro tivera, talvez involuntariamente, porque a sua
figura original é ainda um intricado enigma, desfeita a missão a que
se devotara. Apelando, nas aperturas das crises que o assoberbaram,
incondicionalmente, para todos os recursos, para todos os meios e para
todos os adeptos, surgissem de onde surgissem, agia inteiramente fora
da amplitude da opinião nacional, entre as paixões e interesses de um
partido que, salvante bem raras exceções, congregava todos os
medíocres ambiciosos que, por instinto natural de defesa, evitam as
imposições severas de um meio social mais culto. E ao debelar, nos
últimos dias de seu governo, a Revolta de Setembro, que enfeixara
todas as rebeldias contrariadas e todos os tumultos dos anos
anteriores, formara, latentes, prestes a explodir, os germens de
mais perigosos levantes.
Destruíra e criara revoltosos. Abatera a desordem com a desordem.
Ao deixar o poder não levara todos os que haviam acompanhado nos
transes dificílimos do governo. Ficaram muitos agitadores,
robustecidos numa intensa aprendizagem de tropelias, e estes viam-se
contrafeitos no plano secundário a que naturalmente volviam. Traziam
o movimento irreprimível de uma carreira fácil e vertiginosa demais
para estacar de súbito: dilataram-na pela nova situação adentro.
Viu-se, então, um caso vulgaríssimo de psicologia coletiva:
colhida de surpresa, a maioria do país inerte e absolutamente
neutral, constituiu-se veículo propício à transmissão de todos os
elementos condenáveis que cada cidadão, isoladamente, deplorava.
Segundo o processo instintivo, que lembra na esfera social a herança
de remotíssima predisposição biológica, tão bem expressa no
mimismo psichico de que nos fala Scipio Sighele, as maiorias
conscientes, mas tímidas, revestiam-se, em parte, da mesma
feição moral dos medíocres atrevidos que lhes tomavam a frente.
Surgiram, então, na tribuna, na imprensa e nas ruas — sobretudo
nas ruas — individualidades que nas situações normais tombariam à
pressão do próprio ridículo. Sem ideais, sem orientação
nobilitadora, peadas num estreito círculo de idéias, em que o
entusiasmo suspeito pela República se aliava a nativismo extemporâneo
e à cópia grosseira de um jacobinismo pouco lisonjeiro à história —
aqueles agitadores começaram a viver da exploração pecaminosa de um
cadáver. O túmulo do marechal Floriano Peixoto foi transmudado na
arca de aliança da rebeldia impenitente e o nome do grande homem
fez-se palavra de ordem da desordem. A retração criminosa da
maioria pensante do país permitia todos os excessos; e no meio da
indiferença geral todas as mediocridades irritadiças conseguiram
imprimir àquela quadra, felizmente transitória e breve, o traço
mais vivo que a caracteriza. Não lhes bastavam as cisões
remanescentes, nem os assustava uma situação econômica
desesperadora: anelavam avolumar aquelas e tornar a última
insolúvel. E como o exército se erigia, ilogicamente, desde o
movimento abolicionista até à proclamação da República, em
elemento ponderador das agitações nacio- nais, cortejavam-no,
captavam-no, atraíam-no afanosamente e imprudentemente.
Ora, de todo o exército, um coronel de infantaria, Antônio
Moreira César, era quem parecia haver herdado a tenacidade rara do
grande debelador de revoltas.
O fetichismo político exigia manipansos de farda.
Escolheram-no para novo ídolo.
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