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Então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de
uma estepe nua.
Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a
perspectiva das planuras francas. Ao passo que a caatinga o afoga;
abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama
espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com
o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e desdobra- se-lhe
na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores
sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados,
apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo,
lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante...
Embora esta não tenha as espécies reduzidas dos desertos — mimosas
tolhiças ou eufórbias ásperas sobre o tapete das gramíneas murchas
— e se afigure farta de vegetais distintos, as suas árvores, vistas
em conjunto, semelham uma só família de poucos gêneros, quase
reduzida a uma espécie invariável, divergindo apenas no tamanho,
tendo todas a mesma conformação, a mesma aparência de vegetais
morrendo, quase sem troncos, em esgalhos logo ao irromper do chão.
É que por um efeito explicável de adaptação às condições
estreitas do meio ingrato, evolvendo penosamente em círculos
estreitos, aquelas mesmo que tanto se diversificam nas matas ali se
talham por um molde único. Transmudam-se, e em lenta metamorfose
vão tendendo para limitadíssimo número de tipos caracterizados pelos
atributos dos que possuem maior capacidade de resistência.
Esta impõe-se, tenaz e inflexível.
A luta pela vida, que nas florestas se traduz como uma tendência
irreprimível para a luz, desatando-se os arbustos em cipós,
elásticos, distensos, fugindo ao afogado das sombras e alteando-se
presos mais aos raios do Sol do que aos troncos seculares — ali, de
todo oposta, é mais obscura, é mais original, é mais comovedora.
O Sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou combater. E
evitando-o pressente-se de algum modo, como o indicaremos adiante, a
inumação da flora moribunda, enterrando-se os caules pelo solo.
Mas como este, por seu turno, é áspero e duro, exsicado pelas
drenagens dos pendores ou esterilizado pela sucção dos estratos
completando as insolações, entre dous meios desfavoráveis —
espaços candentes e terrenos agros — as plantas mais robustas trazem
no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha
surda.
As leguminosas, altaneiras noutros lugares, ali se tornam anãs. Ao
mesmo tempo ampliam o âmbito das frondes, alargando a superfície de
contacto com o ar, para a absorção dos escassos elementos nele
difundidos. Atrofiam as raízes mestras batendo contra o subsolo
impenetrável e substituem-nas pela expansão irradiante das radículas
secundárias, ganglionando-as em tubérculos túmidos de seiva.
Amiúdam as folhas. Fitam-nas rijamente, duras como cisalhas, à
ponta dos galhos para diminuírem o campo de insolação. Revestem de
um indumento protetor os frutos, rígidos, às vezes, como
estróbilos. Dão-lhes na deiscência perfeita com que as vagens se
abrem, estalando como se houvessem molas de aço, admiráveis
aparelhos para propagação das sementes, espalhando-as profusamente
pelo chão. E têm, todas, sem excetuar uma única, no perfume
suavíssimo das flores, anteparos intácteis que nas noites frias
sobre elas se alevantam e se arqueiam obstando a que sofram de chofre as
quedas de temperatura, tendas invisíveis e encantadoras,
resguardando-as...
Assim disposta, a árvore aparelha-se para reagir contra o regime
bruto.
Ajusta-se sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam-se os
ares urentes; empedra-se o chão, gretando, recrestado; ruge o
nordeste nos ermos; e, como um cilício dilacerador, a caatinga
estende sobre a terra as ramagens de espinhos... Mas, reduzidas
todas as funções, a planta, estivando em vida latente, alimenta-se
das reservas que armazena nas quadras remansadas e rompe os estios,
pronta a transfigurar-se entre os deslumbramentos da primavera.
Algumas, em terrenos mais favoráveis, iludem ainda melhor as
intempéries, em disposição singularíssima. Vêem-se,
numerosos, aglomerados em caapões ou salpintando, isolados, as
macegas, arbúsculos de pouco mais de um metro de alto, de largas
folhas espessas e luzidas, exuberando floração ridente em meio da
desolação geral. São os cajueiros anões, os típicos anacardium
humile das chapadas áridas, os cajuís dos indígenas. Estes
vegetais estranhos, quando ablaqueados em roda, mostram raízes que se
entranham a surpreendente profundura. Não há desenraizá-los. O
eixo descendente aumenta-lhes maior à medida que se escava. Por fim
se nota que ele vai repartindo-se em divisões dicotômicas. Progride
pela terra dentro até a um caule único e vigoroso, embaixo. Não
são raízes, são galhos. E os pequeninos arbúsculos, esparsos,
ou repontando em tufos, abrangendo às vezes largas áreas, uma
árvore única e enorme, inteiramente soterrada.
Espancado pelas canículas, fustigado dos sóis, roído dos
enxurros, torturado pelos ventos, o vegetal parece derrear-se aos
embates desses elementos antagônicos e abroquelar-se daquele modo,
invisível, no solo sobre que alevanta apenas os mais altos renovos da
fronde majestosa.
Outros, sem esta conformação, se aparelham de outra sorte.
As águas que fogem ao volver selvagem das torrentes, ou entre as
camadas inclinadas dos xistos, ficam retidas, longo tempo, nas
espatas das bromélias, aviventando-as. No pino dos verões, um pé
de macambira é para o matuto sequioso um copo d’água cristalina e
pura. Os caroás verdoengos, de flores triunfais e altas; os
gravatás e ananases bravos, traçados em touceiras impenetráveis,
copiam-lhe a mesma forma, adrede feita àquelas paragens estéreis.
As suas folhas ensiformes, lisas e lustrosas, como as da maioria dos
vegetais sertanejos, facilitam a condensação dos vapores escassos
trazidos pelos ventos, por maneira a debelar-se o perigo máximo à
vida vegetativa, resultante da larga evaporação pelas folhas,
esgotando e vencendo a absorção pelas radículas.
Sucedem-se outros, diversamente apercebidos, sob novos aprestos,
mas igualmente resistentes. As nopáleas e cactos, nativas em toda a
parte, entram na categoria das fontes vegetais, de Saint-Hilaire.
Tipos clássicos da flora desértica, mais resistentes que os demais,
quando decaem a seu lado, fulminadas, as árvores todas, persistem
inalteráveis ou mais vívidos talvez. Afeiçoaram-se aos regimes
bárbaros; repelem os climas benignos em que estiolam e definham. Ao
passo que o ambiente em fogo dos desertos parece estimular melhor a
circulação da seiva entre os seus cladódios túmidos.
As favelas, anônimas ainda na ciência — ignoradas dos sábios,
conhecidas demais pelos tabaréus — talvez um futuro gênero cauterium
das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em
vilosidades, notáveis aprestos de condensação, absorção e
defesa. Por um lado, a sua epiderme ao resfriar-se, à noite,
muito abaixo da temperatura do ar, provoca, a despeito da secura
deste, breves precipitações de orvalho; por outro, a mão que a
toca, toca uma chapa incandescente de ardência inaturável.
Ora quando, ao revés das anteriores, as espécies não se mostram
tão bem armadas para a reação vitoriosa, observam-se dispositivos
porventura mais interessantes; unem-se, intimamente abraçadas,
transmudando-se em plantas sociais. Não podendo revidar isoladas,
disciplinam-se, congregam-se, arregimentam-se. São deste número
todas as cesalpinas e as catingueiras, constituindo, nos trechos em
que aparecem, sessenta por cento das caatingas; os
alecrins-dos-tabuleiros, e os canudos-de-pito, heliotrópicos
arbustivos de caule oco, pintalgado de branco e flores em espigas,
destinados a emprestar o nome ao mais lendário dos vilarejos...
Não estão no quadro das plantas sociais brasileiras, de Humboldt,
e é possível que as primeiras vicejem, noutros climas, isoladas.
Ali se associam. E, estreitamente solidárias as suas raízes, no
subsolo, em apertada trama, retêm as águas, retêm as terras que se
desagregam, e formam, ao cabo, num longo esforço o solo arável em
que nascem, vencendo, pela capilaridade do inextricável tecido de
radículas enredadas em malhas numerosas, a sucção insaciável dos
estratos e das areias. E vivem. Vivem é o termo — porque há, no
fato, um traço superior à passividade da evolução vegetativa...
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