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Têm o mesmo caráter os juazeiros, que raro perdem as folhas de um
verde intenso, adrede modeladas às reações vigorosas da luz.
Sucedem-se meses e anos ardentes. Empobrece-se inteiramente o solo
aspérrimo. Mas, nessas quadras cruéis, em que as soalheiras se
agravam, às vezes, com os incêndios espontaneamente acesos pelas
ventanias atritando rijamente os galhos secos e estonados — sobre o
depauperamento geral da vida, em roda, eles agitam as ramagens
virentes, alheios às estações, floridos sempre, salpintando o
deserto com as flores cor de ouro, álacres, esbatidas no pardo dos
restolhos — à maneira de oásis verdejantes e festivos. A dureza dos
elementos cresce, entretanto, em certas quadras, ao ponto de os
desnudar: é que se enterroaram há muito os fundos das cacimbas, e os
leitos endurecidos das ipueiras mostram, feito enormes carimbos, em
moldes, os rastros velhos das boiadas; e o sertão de todo se
impropriou à vida.
Então, sobre a natureza morta, apenas se alteiam os cereus esguios e
silentes, aprumando os caules circulares repartidos em colunas
poliédricas e uniformes, na simetria impecável de enormes
candelabros. E avultando ao descer das tardes breves sobre aqueles
ermos, quando os abotoam grandes frutos vermelhos destacando-se,
nítidos, à meia luz dos crepúsculos, eles dão a ilusão
emocionante de círios enormes, fincados a esmo no solo, espalhados
pelas chapadas, e acesos...
Caracterizam a flora caprichosa na plenitude do estio.
Os mandacarus (cereus jaramacaru) atingindo notável altura, raro
aparecendo em grupos, assomando isolados acima da vegetação
caótica, são novidade atraente, a princípio. Atuam pelo
contraste. Aprumam-se tesos, triunfalmente, enquanto por toda a
banda a flora se deprime. O olhar perturbado pelo acomodar-se à
contemplação penosa dos acervos de ramalhos estorcidos, descansa e
retifica-se percorrendo os seus caules direitos e corretos. No fim de
algum tempo, porém, são uma obsessão acabrunhadora. Gravam em
tudo monotonia inaturável, sucedendo-se constantes, uniformes,
idênticos todos, todos do mesmo porte, igualmente afastados,
distribuídos com uma ordem singular pelo deserto.
Os xiquexiques (cactus peruvianus) são uma variante de proporções
inferiores, fracionando-se em ramos fervilhantes de espinhos,
recurvos e rasteiros, recamados de flores alvíssimas. Procuram os
lugares ásperos e ardentes. São os vegetais clássicos dos areais
queimosos. Aprazem-se no leito abrasante das lajes graníticas
feridas pelos sóis.
Têm como sócios inseparáveis neste habitat, que as próprias
orquídeas evitam, os cabeças-de-frade, deselegantes e monstruosos
melocactos de forma elipsoidal, acanalada, de gomos espinescentes,
convergindo-lhes no vértice superior formado por uma flor única,
intensamente rubra. Aparecem, de modo inexplicável, sobre a pedra
nua, dando, realmente, no tamanho, na conformação, no modo por
que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas e
sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica. É
que estreitíssima frincha lhes permitiu insinuar, através da rocha,
a raiz longa e capilar até à parte inferior onde acaso existam,
livres de evaporação, uns restos de umidade.
E a vasta família, revestindo todos os aspectos, decai, a pouco e
pouco, até aos quipás reptantes, espinhosos, humílimos,
trançados sobre a terra à maneira de espartos de um capacho
dilacerador; às ripsálides serpeantes, flexuosas, como víboras
verdes pelos ramos, de parceria com os frágeis cactos epífitas, de
um glauco empalecido, presos por adligantes aos estípites dos
ouricurizeiros, fugindo do solo bárbaro para o remanso da copa da
palmeira. Aqui, ali, outras modalidades: as
palmatórias-do-inferno, opúntias de palmas diminutas,
diabolicamente eriçadas de espinhos, — com o vivo carmim das
cochonilhas que alimentam; orladas de flores rutilantes, quebrando
alacremente a tristeza solene das paisagens...
E pouco mais especializa quem anda, pelos dias claros, por aqueles
ermos, entre árvores sem folhas e sem flores. Toda a flora, como em
uma derrubada, se mistura em baralhamento indescritível. É a
caatanduva, mato doente, da etimologia indígena, dolorosamente
caída sobre o seu terrível leito de espinhos! Vingando um cômoro
qualquer, postas em torno as vistas, perturba-as o mesmo cenário
desolador: a vegetação agonizante, doente e informe, exausta, num
espasmo doloroso...
É a silva aestu aphylla, a silva horrida, de Martius, abrindo no
seio iluminado da natureza tropical um vácuo de deserto.
Compreende-se, então, a verdade da frase paradoxal de Aug. de
Saint-Hilaire: “Há, ali, toda a melancolia dos invernos, com
um sol ardente e os ardores do verão!”
A luz crua dos dias longos flameja sobre a terra imóvel e não a
anima. Reverberam as infiltrações de quartzo pelos cerros
calcários, desordenadamente esparsos pelos ermos, num alvejar de
banquisas; e oscilando à ponta dos ramos secos das árvores
inteiriçadas, dependuram-se as tilândsias alvacentas, lembrando
flocos esgarçados, de neve, dando ao conjunto o aspecto de uma
paisagem glacial, de vegetação hibernante, nos gelos... A
tormenta
Mas no empardecer de uma tarde qualquer, de março, rápidas tardes
sem crepúsculos, prestes afogadas na noite, as estrelas pela primeira
vez cintilam vivamente.
Nuvens volumosas abarreiram ao longe os horizontes, recortando-os em
relevos imponentes de montanhas negras.
Sobem vagarosamente; incham, bolhando em lentos e desmesurados
rebojos, na altura; enquanto os ventos tumultuam nos plainos,
sacudindo e retorcendo as galhadas.
Embruscado em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos
precípites, sucessivos, sarjando fundamente a imprimadura negra da
tormenta. Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de
chuva tombam, grossas, espaçadamente, sobre o chão, aduando-se
logo em aguaceiro diluviano...
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