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Dos breves apontamentos indicados, resulta que os caracteres
geológicos e topográficos, a par dos demais agentes físicos, mutuam
naqueles lugares as influências características de modo a não se
poder afirmar qual o preponderante.
Se, por um lado, as condições genéticas reagem fortemente sobre os
últimos, estes, por sua vez, contribuíram para o agravamento
daquelas; — e todas persistem nas influências recíprocas. Deste
perene conflito feito num círculo vicioso indefinido, ressalta a
significação mesológica do local. Não há abrangê-la em todas as
modalidades. Escasseiam-nos as observações mais comuns, mercê da
proverbial indiferença com que nos volvemos às cousas desta terra,
com uma inércia cômoda de mendigos fartos.
Nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão
sertanejo, em prazo suficiente para o definir.
Martius por lá passou, com a mira essencial de observar o aerólito,
que tombara à margem do Bendegó e era já, desde 1810,
conhecido nas academias européias, graças a F. Mornay e
Wollaston. Rompendo, porém, a região selvagem, desertus
australis, como a batizou, mal atentou para a terra recamada de uma
flora extravagante, silva horrida no seu latim alarmado. Os que o
antecederam e sucederam, palmilharam, ferretoados da canícula, as
mesmas trilhas rápidas, de quem foge. De sorte que sempre evitado,
aquele sertão, até hoje desconhecido, ainda o será por muito
tempo.
O que se segue são vagas conjecturas. Atravessamo-lo no prelúdio
de um estio ardente e, vendo-o apenas nessa quadra, vimo-lo sob o
pior aspecto. O que escrevemos tem o traço defeituoso dessa
impressão isolada, desfavorecida, ademais, por um meio contraposto
à serenidade do pensamento, tolhido pelas emoções da guerra. Além
disto os dados de um termômetro único e de um aneróide suspeito,
misérrimo arsenal científico com que ali lidamos, nem mesmo vagos
lineamentos darão de climas que divergem segundo as menores
disposições topográficas, criando aspectos díspares entre lugares
limítrofes. O de Monte Santo, por exemplo, que é, ao primeiro
comparar, muito superior ao de Queimadas, diverge do dos lugares que
lhe demoram ao norte, sem a continuidade que era lícito prever de sua
situação intermédia. A proximidade das massas montanhosas torna-o
estável, lembrando um regime marítimo em pleno continente: escala
térmica oscilando em amplitudes insignificantes; firmamento onde a
transparência dos ares é completa e a limpidez inalterável; e ventos
reinantes, o SE no inverno e o NE no estio — alternando-se com
rigorismo raro. Mas está insulado. Para qualquer das bandas,
deixa-o o viajante num dia de viagem. Se vai para o norte,
salteiam-se transições fortíssimas: a temperatura aumenta;
carrega-se o azul dos céus; embaciam-se os ares: e as ventanias
rolam desorientadamente de todos os quadrantes — ante a tiragem intensa
dos terrenos desabrigados, que dali por diante se estiram. Ao mesmo
tempo espelha-se o regime excessivo: o termômetro oscila em graus
disparatados passando, já em outubro, dos dias em 35º à sombra
para as madrugadas frias.
No ascender do verão acentua-se o desequilíbrio. — Crescem a um
tempo as máximas e as mínimas, até que no fastígio das secas
transcorram as horas num intermitir inaturável dos dias queimosos e
noites enregeladas. A terra desnuda tendo contrapostas, em permanente
conflito, as capacidades emissiva e absorvente dos materiais que a
formam, do mesmo passo armazena os ardores das soalheiras e deles se
esgota, de improviso. Insola-se e enregela-se, em 24 horas.
Fere-a o sol e ela absorve-lhe os raios, e multiplica-os, e
reflete-os, e refrata-os, num reverberar ofuscante: pelo topo dos
cerros, pelo esbarrancado das encostas, incendeiam-se as acendalhas
da sílica fraturada; rebrilhantes, numa trama vibrátil de
centelhas; a atmosfera junto ao chão vibra num ondular vivíssimo de
bocas de fornalha em que se pressente visível, no expandir das colunas
aquecidas, a efer- vescência dos ares; e o dia, incomparável no
fulgor, fulmina a natureza silenciosa, em cujo seio se abate,
imóvel, na quietude de um longo espasmo, a galhada sem folhas da
flora sucumbida.
Desce a noite, sem crespúsculo, de chofre — um salto da treva por
cima de uma franja vermelha do poente — e todo este calor se perde no
espaço numa irradiação intensíssima, caindo a temperatura de
súbito, numa queda única, assombrosa...
Ocorrem, todavia, variantes cruéis. Propelidas pelo nordeste,
espessas nuvens, tufando em cumulus, pairam ao entardecer sobre as
areias incendidas. Desaparece o Sol e a coluna mercurial permanece
imóvel, ou, de preferência, sobe. A noite sobrevém em fogo; a
terra irradia como um Sol escuro, porque se sente uma dolorosa
impressão de faúlhas invisíveis; mas toda a ardência reflui sobre
ela, recambiada pelas nuvens. O barômetro cai, como nas
proximidades das tormentas; e mal se respira no bochorno inaturável em
que toda a adustão golfada pela soalheira se concentra numa hora única
da noite.
Por um contraste explicável, este fato jamais sucede nos paroxismos
estivais das secas, em que prevalece a intercadência de dias
esbraseados e noites frigidíssimas, agravando todas as angústias dos
martirizados sertanejos. Copiando o mesmo singular desequilíbrio das
forças que trabalham a terra, os ventos ali chegam, em geral,
turbilhonando revoltos, em rebojos largos. E, nos meses em que se
acentua, o nordeste grava em tudo sinais que lhe recordam o rumo.
Estas agitações dos ares desaparecem, entretanto, por longos
meses, reinando calmarias pesadas — ares imóveis sob a placidez
luminosa dos dias causticantes. Imperceptíveis exercem-se, então,
as correntes ascensionais dos vapores aquecidos sugando à terra a
umidade exígua; e quando se prolongam esboçando o prelúdio
entristecedor da seca, a secura da atmosfera atinge a graus
anormalíssimos.
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