O CANHONEIO

E no amanhecer de 1o de outubro começou o canhoneio.

Convergia sobre o núcleo reduzido dos últimos casebres, partindo de longo semicírculo de dous quilômetros, das baterias próximas ao acampamento até ao redente extremo, da outra banda, onde findava a estrada do Cambaio. Durou quarenta e oito minutos apenas, mas foi esmagador. As pontarias estavam feitas de véspera. Não havia errar o alvo imóvel.

Dava-se, além disto, a última lição à rebeldia impenitente. Era preciso que, francamente desbravado o chão para o assalto, não sobreviessem mais surpresas dolorosas e ele se executasse, de pronto, fulminante e implacável, com os entraves únicos de um passo de carga sobre ruínas. Fizeram-se as ruínas.

Via-se a transmutação do trecho torturado: tetos em desabamentos, prensando, certo, os que se lhes acolhiam por baixo; nos cômodos estreitos; tabiques esboroando, voando em estilhas e terrões; e aqui, e ali, em começo dispersos e logo depois ligando-se rapidamente, sarjando de flamas a poeira dos escombros, novos incêndios, de súbito deflagrando.

Por cima — toldada a manhã luminosa dos sertões — uma rede vibrante de parábolas...

Não havia perder-se uma granada única. Batiam nas cimalhas rotas das igrejas, explodindo em estilhas, ou saltando em ricochetes largos, para diante, sobre o santuário e a latada; arrebentavam nos ares; arrebentavam sobre a praça; arrebentavam sobre os colmos, esfarelando as coberturas de barro; entravam, arrebentando, pelos colmos dentro; basculhavam os becos enredados, revolvendo-lhes os ciscalhos; e revolviam, de ponta a ponta, inflexivelmente, batendo-o casa por casa, o último segmento de Canudos. Não havia anteparos ou pontos desenfiados que o resguardassem. O abrigo de um ângulo morto formado pelos muros da igreja nova, antepostos aos disparos da Sete de Setembro, era inteiramente destruído pelas trajetórias das baterias de leste e oeste. Os últimos jagunços tinham, intacta, fulminando-os, sem perda de uma esquírola de ferro, toda a virulência daquele bombardeio impiedoso.

Entretanto, não se notou um grito irreprimível de dor, um vulto qualquer, fugindo, ou a agitação mais breve. E quando se deu o último disparo, e cessou o fragor dos estampidos, a inexplicável quietude do casario fulminado fazia supor o arraial deserto, como se durante a noite a população houvesse, miraculosamente, fugido. Houve um breve silêncio. Vibrou um clarim no alto da Fazenda Velha. Principiou o assalto. Consoante as disposições anteriores, os batalhões abalaram, convergentes de três pontos, sobre a igreja nova. Seguiram, invisíveis, entre os casebres ou pelo talvegue do Vaza-Barris. Um único, pela direção que trilhava, se destacou à contemplação do resto dos combatentes, o 4o de Infantaria. Viram-no atravessar a marche-marche de armas suspensas, o rio; transpô-lo; galgar a barranca; aparecer, alinhado e firme, à entrada da praça. Era a primeira vez que ali chegavam lutadores numa atitude corretamente militar.