QUADRO LANCINANTE

Certa vez essa insensibilidade lastimável calou profundamente. Foi numa visita a um dos hospitais. O quadro do amplo salão era impressionador...

Imaginem-se dous extensos renques de leitos alvadios, e sobre eles — em todas as atitudes, rígidos debaixo dos lençóis escorridos como mortalhas; de bruços, ou acaroados com os travesseiros, em mudos paroxismos de dores; sentados, ou acurvados, ou estorcendo-se, em gemidos — quatrocentos baleados! Cabeças envoltas em tiras sanguinolentas; braços partidos, em tipóias; pernas encanadas, em talas rigidamente estendidas; pés disformes pela inchação, atravessados de espinhos; peitos broqueados a bala ou sarjados a faca; todos os traumatismos e todas as misérias...

A comitiva que encalçava o ministro — autoridades estaduais e militares, jornalistas, homens de toda a condição — ali entrou silenciosamente, tolhida de assombros.

Começou a lúgubre visita. O marechal aproximava-se de um ou outro leito, lendo maquinalmente a papeleta pendida à cabeceira; e seguia.

Mas teve que estacar um momento. Surgira-lhe em frente, emergindo dos cobertores, a face abatida de um velho, um cabo-de-esquadra, veterano de trinta e cinco anos de fileira. Uma vida batida a couce de armas desde os pântanos do Paraguai às caatingas de Canudos... E no rosto macilento do infeliz resplandecia um belo riso jovial e forte. Reconhecera o ministro do qual fora ordenança nos bons tempos de moço, em que o acompanhara na batalha, nos acantonamentos, nas longas marchas fatigantes. E dizia-o, agitado, voz sacudida e rouca, numa alegria dolorosíssima, num delírio de frases rudes e sinceras — olhos refulgentes de alacridade e de febre, e forçando por erguer-se, abordoando o tronco esmirrado aos braços finos e trêmulos; entreaberta a camisa de algodão deixando ver, na clavícula, a nódoa de uma cicatriz antiga...

Era empolgante a cena. Resfolegaram surdamente, opressos, todos os peitos. Empanaram-se todas as visitas, de lágrimas... e o marechal Bittencourt prosseguiu, tranqüilamente, continuando a leitura maquinal das papeletas. É que tudo aquilo — fortes emoções ou quadros lancinantes — estava fora do programa. Não o distraía. Era realmente o homem feito para aquela emergência. O governo não depararia quem melhor lhe transmitisse a ação, intacta, rompendo retilineamente no tumulto da crise.

Nesse abnegar-se a si próprio, abdicando todas as regalias da própria posição, fez-se, na lídima significação do termo, o Quartel-Mestre-General de uma campanha em que era chefe supremo um seu inferior hierárquico. É que um bom senso sólido, blindado da frieza que o libertava de quaisquer perturbações, fizera que ele apanhasse, de um lance, as exigências reais da luta. Destas — compreendeu-o logo — a menos valiosa era, de certo, a acumulação de um maior número de combatentes no conflito. Estes, penetrando a região conflagrada, agravariam antes o estado dos companheiros que pretendessem auxiliar, se lá fossem compartir as mesmas provações, reduzindo-lhes os recursos escassos no concorrerem à mesma penúria. O que era preciso combater a todo o transe e vencer não era o jagunço, era o deserto. Fazia-se imprescindível dar à campanha o que ela ainda não tivera: uma linha e uma base de operações. Terminava-se por onde devia começar-se. E foi essa a empresa impulsionada com sucesso pelo ministro. Atraído durante toda a estadia na Bahia por sem-número de questões de pormenores — equipamento dos batalhões que chegavam e acomodações para as turmas incessantes de feridos — o seu espírito superpunha-lhes sempre aquele objetivo capital, condição preponderante, e talvez única, do sério problema a resolver. Venceu-o, por fim, num destruir tenaz de numerosas dificuldades.

Nos últimos dias de agosto organizara-se, afinal, definitivamente, um corpo regular de comboios, atravessando continuamente os caminhos e ligando de modo efetivo, com breves intervalos de dias, o exército em operações a Monte Santo.

Este resultado pressagiava o desenlace próximo da contenda. Porque desde o começo, revelam-no as expedições antecedentes, as causas do insucesso em grande parte repousavam no insulamento em que cegamente se encravavam os expedicionários, perdendo-se na região estéril, isolando-se adiante do inimigo em espetaculosas diligências policiais, onde não havia rastrear-se os mínimos preceitos da estratégia.

O marechal Bittencourt fez, pelo menos, isto: transmudou um conflito enorme em campanha regular. A que até então se fizera traduzira-se num prodigalizar inútil da bravura, mas o heroísmo e abnegação mais rara não a impulsionaram. Cristalizara num assédio platônico e dúbio, recortado de fuzilarias inúteis, em que se jogava nobremente e estupidamente a vida. E este prolongar-se-ia, indeterminado, até que o arraial sinistro absorvesse, um a um, os que o acometiam. Em tal caso a simples substituição dos que ali tombavam — oito a dez por dia — por outros, tornava-se um círculo vicioso crudelíssimo. Além disto, numerosos assaltantes eram uma agravante. Circulariam todo o povoado, trancar-lhe-iam todas as saídas, mas teriam, passados poucos dias, latentes em roda, as linhas de outro cerco intangível e formidável — o deserto recrestado, das caatingas, pondo-os nas aperturas crescentes e inelutáveis da fome.

Previu-o marechal Bittencourt.