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Surgiu de incidente mínimo: pretensos roubos cometidos pelos
Maciéis em propriedade de família numerosa, a dos Araújos.
Tudo indicava serem aqueles vítimas de acusação descabida. Eram
“homens vigorosos, simpáticos, bem apessoados, verdadeiros e
serviçais” gozando em toda redondeza de reputação invejável.
Araújo da Costa e um seu parente, Silvestre Rodrigues Veras,
não viam, porém, com bons olhos, a família pobre que lhes
balanceava a influência, sem a justificativa de vastos latifúndios e
boiadas grandes. Criadores opulentos, senhores de baraço e cutelo,
vezados a fazer justiça por si mesmos, concertaram em dar exemplar
castigo aos delinqüentes. E como estes eram bravos até a
temeridade, chamaram a postos a guarda pretoriana dos capangas.
Assim apercebidos, abalaram na expedição criminosa para
Quixeramobim.
Mas volveram logo depois, contra a expectativa geral, em derrota.
Os Maciéis, reunida toda a parentela, rapazes desempenados e
temeros, haviam-se afrontado com a malta assalariada, repelindo-a
vigorosamente, suplantando-a, espavorindo-a.
O fato passou em 1833.
Batidos, mal sofreando o desapontamento e a cólera, os potentados,
cuja imbecilidade triunfante passara por tão duro trato, apelaram para
recursos mais enérgicos. Não faltavam então, como não faltam
hoje, facínoras de fama que lhes alugassem a coragem. Conseguiram
dous, dos melhores: José Joaquim de Meneses, pernambucano
sanhudo, célebre pela rivalidade sanguinolenta com os Mourões
famosos; e um cangaceiro terrível, Vicente Lopes, de
Aracatiaçu. Reunida a matula turbulenta, a que se ligaram os filhos
e genros de Silvestre, seguiu, de pronto, para a empreitada
criminosa.
Ao acercarem-se, porém, da vivenda dos Maciéis, os sicários —
embora fossem em maior número — temeram-lhes a resistência.
Propuseram-lhes que se entregassem, garantindo-lhes, sob palavra,
a vida. Aqueles, certos de não poderem resistir por muito tempo,
aquiesceram. Renderam-se. A palavra de honra dos bandidos teve,
porém, o valor que poderia ter. Quando seguiam debaixo de escolta e
algemados, para a cadeia de Sobral, logo no primeiro dia da viagem
foram os presos trucidados. Morreram nesta ocasião, entre outros, o
chefe da família. Antônio Maciel, e um avô de Antônio
Conselheiro.
Mas um tio deste, Miguel Carlos, logrou escapar. Manietado e
além disto com as pernas amarradas por baixo da barriga do cavalo que
montava, a sua fuga é inexplicável. Afirma-a, contudo, a sisudez
de cronista sincero. Ora, os Araújos tinham deixado fugir o seu
pior adversário. Perseguiram-no. Bem armados, bem montados,
encalçaram-no, prestes, em monteria bárbara, como se fossem sobre
rastros de suçuarana bravia. O foragido, porém, emérito batedor
de matas, seguido na fuga por uma irmã, iludiu por algum tempo a
escolta perseguidora chefiada por Pedro Martins Veras; e no sítio
da “Passagem”, perto de Quixeramobim, ocultou-se, exausto, numa
choupana abandonada, coberta de ramos de oiticica.
Ali chegaram, em breve, rastreando-o, os perseguidores. Eram nove
horas da manhã. Houve então uma refrega desigual e tremenda. O
temerário sertanejo, embora estropiado e doente de um pé que luxara,
afrontou-se com a horda assaltante, estendendo logo em terra a um
certo Teotônio, desordeiro façanhudo, que se avantajara aos
demais. Este caiu transversalmente à soleira da porta, impedindo-a
que se fechasse. A irmã de Miguel Carlos, quando procurava
arrastá-lo dali, caiu atravessada por uma bala. Alvejara-a o
próprio Pedro Veras, que pagou logo a façanha, levando a
queima-roupa uma carga de chumbo. Morto o cabecilha, os agressores
recuaram por momentos, o suficiente para que o assaltado trancasse
rapidamente a porta.
Isto feito, o casebre fez-se um reduto. Pelas frinchas das paredes
estourava de minuto em minuto um tiro de espingarda. Os bandidos não
ousaram investi-lo; mas foram de cobardia feroz. Atearam fogo à
cobertura de folhas. O efeito foi pronto. Mal podendo respirar no
abrigo em chamas, Miguel Carlos resolve abandoná-lo. Derrama toda
a água de um pote na direção do fundo da choupana, apagando
momentaneamente as brasas e, saltando por sobre o cadáver da irmã,
arroja-se, de clavina sobraçada e parnaíba em punho, contra o
círculo assaltante. Rompe- o e afunda na caatinga...
Tempos depois um dos Araújos contratou casamento com a filha de rico
criador de Tapaiara; e no dia das núpcias, já perto da igreja,
tombou varado por uma bala, entre o alarma dos convivas e o desespero
da noiva desditosa.
Velava, inextinguivelmente, a vingança do sertanejo...
Este tinha, agora, uma sócia no rancor justificado e fundo, outra
irmã, Helena Maciel, a “Nêmesis da família”, conforme o dizer
do cronista referido. A sua vida transcorria em lances perigosos,
muitos dos quais desconhecidos senão fabulados pela imaginação
fecunda dos matutos. O certo, porém, é que, desfazendo a urdidura
de todas as tocaias, não raro lhe caiu sob a faca o espião incauto
que o rastreava, em Quixeramobim. Diz a narrativa a que acima nos
reportamos:
“Parece que Miguel Carlos tinha ali protetores que o garantiam. O
que é certo é que, não obstante a sorte que tivera aquele seu
apaniguado, costumava estar na vila.
Uma noite, estando à porta da loja de Manuel Procópio de
Freitas, viu entrar um indivíduo, que procurava comprar aguardente.
Dando-o como espião, falou em matá-lo ali mesmo, mas sendo detido
pelo dono da casa, tratou de acompanhar o suspeito, e o matou, a
faca, ao sair da vila, no riacho da Palha. Uma manhã,
finalmente, saiu da casa de Antônio Caetano de Oliveira, casado
com uma sua parenta, e foi banhar-se no rio, que corre por trás
dessa casa, situada quase no extremo da praça principal da vila,
junto à garganta que conduz à pequena praça Cotovelo. Nos fundos
da casa indicada era então a embocadura do riacho da Palha, que em
forma quase circular contornava aquela praça, e de inverno constituía
uma cinta lindíssima de águas represadas. Miguel Carlos estava já
despido, como muitos companheiros, quando surgiu um grupo de
inimigos, que o esperavam acocorados por entre o denso mata-pasto.
Estranhos e parentes de Miguel Carlos, tomando as roupas depostas na
areia, e vestindo-as ao mesmo tempo que corriam, puseram-se em
fuga. Em ceroulas somente, e com a sua faca em punho, ele correu
também na direção dos fundos de uma casa, que quase enfrenta com a
embocadura do riacho da Palha; casa na qual morava em 1845 Manuel
Francisco da Costa. Miguel Carlos chegou a abrir o portão do
quintal, de varas, da casa indicada; mas, quando quis fechá-lo,
foi prostrado por um tiro, partido do séquito, que o perseguia.
Outros dizem que isto se dera, quando ele passava pelo buraco da cerca
de uma vazante que havia por ali. Agonizava, caído, com a sua faca
na mão, quando Manuel de Araújo, chefe do bando, irmão do noivo
outrora assassinado, pegando-o por uma perna, lhe cravou uma faca.
Moribundo, Miguel Carlos lhe respondeu no mesmo instante com outra
facada na carótida, morrendo ambos instantaneamente, este por baixo
daquele! Helena Maciel, correndo em fúria ao lugar do conflito,
pisou a pés a cara do matador de seu irmão, dizendo-se satisfeita da
perda dele pelo fim que dera ao seu inimigo!
Pretendem que os sicários tinham passado a noite em casa de Inácio
Mendes Guerreiro, da família de Araújo, agente do correio da
Vila. Vinham a título de prender os Maciéis; mas, só no
propósito de matá-los. Helena não se abateu com esta desgraça.
Nêmesis da família, imolou um inimigo aos manes do seu irmão. Foi
ela, como ousou confessar muitos anos depois, quem mandou espancar
barbaramente a André Jacinto de Sousa Pimentel, moço de família
importante da Vila, aparentado com os Araújos, a quem atribuía os
avisos que estes recebiam em Boa Viagem, das vindas de Miguel
Carlos. Desse espancamento resultou uma lesão cardíaca, que fez
morrer em transes horrorosos o infeliz, em verdade culpado dessa
derradeira agressão dos Araújos. O fato de ter sido o crime
perpetrado por soldados do destacamento de linha, ao mando do alferes
Francisco Gregório Pinto, homem insolente, de baixa educação e
origem, com quem Pimentel andava inimizado, fez acreditar muito tempo
que fora esse oficial mal reputado o autor do crime.
Helena deixara-se ficar queda e silenciosa.
Inúmeras vítimas anônimas fez esta luta sertaneja, que dizimava os
sequazes das duas famílias, sendo o último dos Maciéis — Antônio
Maciel, irmão de Miguel Carlos, morto em Boa Viagem. Ficou
célebre muito tempo a valentia de Miguel Carlos e era por ele seus
parentes a estima e respeito dos coevos, testemunhas da energia dessa
família, dentre a qual surgiram tantos homens de esforço, para uma
luta com poderosos tais, como os da Boa Viagem e Tamboril.”
Não prossigamos.
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