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O general Artur Oscar avaliou, então, com segurança, o estado
das cousas. Pediu um corpo auxiliar de cinco mil homens e curou de
dispositivos para garantir a força que triunfara de maneira singular,
a pique de uma derrota. Estava, depois de mais um triunfo, na
conjuntura torturante de não poder arriscar nem um passo à frente,
nem um passo atrás. Oficialmente, as ordens do dia decretavam o
começo do sítio. Mas, de fato, como sempre sucedera desde 27 de
junho, a expedição é que estava sitiada. Tolhia-a o arraial a
oeste. Ao sul os altos da Favela fechavam- se-lhes atravancados de
feridos e doentes. Para o norte e o nascente, se desenrolava o
deserto impenetrável. A área da sua ação aparentemente aumentara.
Dous acampamentos distintos pareciam denotar mais larga
movimentação, liberta da constrição de trincheiras envolventes.
Esta ilusão, porém, extingiu-se no próprio dia do assalto. Os
cerros, varridos a cargas de baionetas poucas horas antes,
figuravam-se de novo guarnecidos. As comunicações com a Favela
tornaram-se logo dificílimas. Tombavam, novamente baleados, os
feridos que para lá se arrastavam; e um médico, o Dr. Tolentino,
que na tarde do combate dali descera, caíra, gravemente ferido, na
ribanceira do rio. A travessia no campo conquistado fez-se problema
sério aos conquistadores. Por outro lado, os que haviam invadido o
breve trecho do arraial copiavam, linha a linha, a reclusão que antes
observavam nos jagunços. Como estes, apinhavam-se nos casebres
ardentes como fornos, ao reverberar dos meios-dias mormacentos e
jaziam horas esquecidas, olhos enfiados pelas rachas das paredes,
caindo escandalosamente na mesma guerrilha de tocaias, sondando com as
vistas o casario e disparando as espingardas todas a um tempo — cem,
duzentos, trezentos tiros! — contra um vulto, um trapo qualquer,
percebido de relance, indistinto e fugitivo, ao longe, no torvelino
dos becos. Distribuída a última ração — um litro de farinha para
sete praças e um boi para um batalhão — restos do comboio salvador,
era-lhes impossível preparar convenientemente a refeição escassa.
Um fio de fumo branqueando no teto de barro da choupana era um chamariz
de balas! À noite um fósforo aceso punha fogo a rastilhos de
descargas.
Os jagunços sabiam que podiam fulminar dentro dos casebres — frágeis
anteparos de argila — os moradores intrusos. O coronel Antonino
Nery fora ferido, justamente quando, depois de atravessar com a sua
brigada a zona perigosa e aberta do combate, se acolhera a um deles.
Casamataram-nos, então. Espessaram-lhe as paredes com muros
interiores, de pedras, ou revestiram-na de tábuas. E assim mais
garantidos, atravessando grande parte do dia, de bruços, sobre os
jiraus, olhares rasantes pelos esvãos do colmo, dedos enclavinhados
nos fechos da espingarda — os vitoriosos cheios de sustos tocaiavam os
vencidos...
Sobre o quartel-general, centralizado pela barraca do
comandante-em-chefe, na vertente oposta, os projetis passavam
inofensivos, repelidos pelo ângulo morto da colina. E aquele teve
durante todo o correr da noite, que lhe fechara a jornada trabalhosa,
passando-lhe em sibilos ásperos sobre a tenda, os respingos nos
tiroteios que se renhiam do outro lado com as linhas avançadas. Os
comandantes destas, tenentes-coronéis Tupi Caldas e Dantas
Barreto, destemerosos ambos, sentiam-se todavia na iminência de um
desastre, compreendendo “que um passo à retaguarda em qualquer ponto
da linha central lhes seria a perdição total”. Porque esta
preocupação de uma catástrofe próxima, iniludível, ninguém a
ocultava. Deduzia-se irresistivelmente na seqüência de anteriores
sucessos. Impunha-se. Durante muitos dias dominou todos os
espíritos.
“Um inimigo habituado à luta regular que soubesse tirar partido de
nossas desvantagens táticas, não teria certamente deixado passar esse
momento em que a vingança e a desforra teriam a conseqüência da mais
requintada selvageria.”
Mas o jagunço não era afeito à luta regular. Fora até demasia de
frase caracterizá-lo inimigo, termo extemporâneo, esquisito
eufemismo suplantando o “bandido famigerado” da literatura marcial das
ordens do dia. O sertanejo defendia o lar invadido, nada mais.
Enquanto os que lho ameaçavam permaneciam distantes, rodeava-os de
ciladas que lhes tolhessem o passo. Mas quando eles, ao cabo, lhe
bateram às portas e arrombaram-lhas a couces de armas,
aventou-se-lhe, como único expediente, a resistência a pé firme,
afrontando-os face a face, adstrito à preocupação digna da defesa e
ao nobre compromisso da desforra. Canudos só seria conquistado casa
por casa. Toda a expedição iria despender três meses para a
travessia de cem metros, que a separavam do abside da igreja nova. E
no último dia de sua resistência inconcebível, como bem poucas
idênticas na História, os seus últimos defensores, três ou quatro
anônimos, três ou quatro magros titãs famintos e andrajosos, iriam
queimar os últimos cartuchos em cima de seis mil homens!
Aquela pertinácia formidável começou no dia 18 e não fraqueou
mais. Terminara o ataque mas a batalha continuou, interminável,
monótona, aterradora, com a mesma intercadência espelhada na
Favela: difundida em tiros que sulcavam o espaço de minuto em
minuto, ou tiroteios alastrando-se furiosamente por todas as linhas,
em arrancos súbitos, repentinos combates de quartos de hora, prestes
travados, prestes desfeitos, antes que terminassem as notas
emocionantes dos alarmas. Esses assaltos subitâneos, intermeados de
longas horas de repouso relativo, traduziam sempre uma inversão de
papéis. Os assaltantes eram, por via de regra, os assaltados. O
inimigo encantoado é quem lhe marcava o momento angustioso das
refregas, e estas surgiam sempre de chofre. Noite velha, às vezes,
quebrando um armistício de minutos, que os soldados da vanguarda
aproveitavam para descanso ilusório, cabeceando abraçados às
carabinas, um foguetão ascendia rechiando asperamente, feito um
rasgão no firmamento escuro. E à luz fugaz viam-se as cimalhas das
igrejas debruadas de uma orla negra e fervilhante. O combate feria-se
na treva, aos fulgores intermitentes das fuzilarias.
Outras vezes, contra o que era de esperar, era ao romper do dia, em
plena manhã esplendorosa e ardente, que os jagunços acometiam
desassobradamente, às claras.
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