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Percebia-se-lhes, contudo, hora por hora, a exaustão.
Durante o dia o povoado, silencioso, marasmava na estagnação do
bloqueio. Nem um ataque, às vezes. A 28 de setembro não
replicaram às duas salvas e vinte e um tiros, de bala, com que foi
criminosamente saudada, pela manhã e à tarde, a data belíssima que
resume um dos episódios mais viris da nossa História. Era o fim.
Faziam-se já no acampamento preparativos para a volta; soavam
livremente as cornetas; andava-se à vontade por toda a banda;
entravam impunemente os comboios diários e correios, levando, os
últimos, para os lares distantes as esperanças e as saudades dos
triunfadores; grupos descuidados seguiam perlustrando pelas cercanias;
improvisavam-se banquetes; e à tarde, formadas à frente dos
quartéis de vários comandos, tocavam, nas retretas, as fanfarras
dos corpos.
Percorria-se, ao cabo, quase todo o arraial.
A 29 o general-em-chefe e o comandante da 2a coluna realizaram,
com os estados-maiores respectivos, esse passeio atraentíssimo.
Seguiram, a princípio, pelo alto das colinas à direita do
acampamento e, depois de uma inflexão à esquerda descendo por dentro
da sanga flexuosa onde repontavam grandes placas de filades dando-lhes
a feição de longa passagem coberta, avançavam até toparem as
primeiras casas e, simultaneamente, esparsos, jazentes a esmo sobre
montes de esteios, traves e ripas carbonizadas, os primeiros
cadáveres insepultos do inimigo. Tinha-se neste momento a impressão
de uma entrada em velha necrópole que surgisse, desvendando-se de
repente, à flor da terra. As ruínas agravavam a desordem das
pequenas vivendas, construídas ao acaso, defrontando- se em bitesgas
de um metro de largo, empachadas pelos tetos de argila abatidos. De
sorte que a marcha se fazia adstrita a desvios tortuosos e longos. E a
cada passo, passando junto aos casebres que ainda permaneciam de pé,
oscilantes e arrombados, livres ainda das chamas, despontava ante o
visitante atônito um traço pungente da vida angustiosa que se
atravessara ali dentro.
Dizia-o, mais expressiva, a nudez dos cadáveres. Estavam em todas
as posições; estendidos, de supino, face para os céus; desnudos
os peitos, onde se viam os bentinhos prediletos; inflexos no último
crispar da agonia; mal vistos, às vezes, caídos sob madeiramentos,
ou de bruços sobre as trincheiras improvisadas, na atitude de combate
em que os colhera a morte.
Em todos, nos corpos emagrecidos e nas vestes em pedaços, liam-se
as provações sofridas. Alguns ardiam, lentamente, sem chamas,
revelados por tênues fios de fumaça, que se alteavam em diversos
pontos. Outros, incinerados, se desenhavam, salteadamente,
nítidos, esbatida a brancura das cinzas no chão poento e pardo, à
maneira de toscas e grandes caricaturas feitas a giz...
Seguia-se. A marcha gradativamente se tornava mais penosa, através
de entulhos sucessivos de um esterquilínio pavoroso. A soldadesca
varejando as casas pusera fora, às portas, entupindo os becos em
monturos, toda a ciscalhagem de trastes em pedaços, de envolta com a
farragem de molambos inclassificáveis: pequenos baús de cedro;
bancos e jiraus grosseiros; redes em fiapos; berços de cipó e
balaios de taquara; jacás sem fundo; roupas de algodão, de cor
indefinível; vasilhames amassados, de ferro; caqueiradas de pratos,
e xícaras, e garrafas; oratórios de todos os feitios; bruacas de
couro cru; alpercatas imprestáveis; candeeiros amolgados, de
azeite; canos estrondados, de trabucos; lascas de ferrões ou
fueiros; caxerenguengues rombos...
E nestes acervos, nada, o mais simples objeto que não delatasse uma
existência miseranda e primitiva. Pululavam rosários de toda a
espécie, dos mais simples, de contas policrômicas de vidro, aos
mais caprichosos, feitos de ouricuris; e, igualmente inúmeras,
rocas e fusos, usança avoenga tenazmente conservada, como tantas
outras, pelas mulheres sertanejas. Sobre tudo aquilo, incontáveis,
esparsos pelo solo, apisoados, rasgados — registros, cartas santas,
benditos em caderninhos costurados, doutrinas cristãs velhíssimas,
imagens amarfanhadas de santos milagreiros, verônicas encardidas,
crucifixos partidos; e figas e cruzes, e bentinhos imundos... Em
alguns lugares — um claro limpo, cuidadosamente varrido, um aceiro
para que os incêndios não atingissem os entrincheiramentos.
Varava-se mais facilmente por ali, penetrando fundo no casario e
aproximando-se daqueles. Topava-se, então, adiante, uma
sentinela que recomendava em voz baixa prosseguir com cautela: o
jagunço estava perto, menos de três metros, da outra banda da
paliçada...
Os visitantes, — generais, coronéis, até ao último posto — na
ansiedade de quem contorna uma emboscada, avançavam agachados,
heroicamente cômicos, céleres, de cócaras, correndo. Transpunham
a linha perigosa. Quebravam dous ou três becos. Chegavam à outra
trincheira: soldados imóveis, expectantes, mudos, ou conversando em
cochichos. Reproduzia-se a mesma travessia com o coração e as
pernas aos saltos, a mesma corrida ansiosa, até outra trincheira
adiante: idênticos lutadores, cautos, silenciosos, estendidas ou
enfiadas as carabinas pelos parapeitos, que os resguardavam.
Transcorridos quinhentos metros, volvia-se à esquerda deixando à
retaguarda as Casas Vermelhas e tinha-se uma surpresa — uma rua,
uma verdadeira rua, a do Monte Alegre, a única que merecia tal
nome, alinhada, larga de uns três metros e alongando-se de norte a
sul até à praça, cortando todo o arraial. Nela se erigiram as
melhores vivendas, algumas casas de telhas e soalho, e entre estas a
de Antônio Vila-Nova, onde dias antes se tinham encontrado restos
de munições da coluna Moreira César.
Descia-se por ela em suave declive, divisando-se no extremo, na
praça, um lanço derruído da igreja. Mas a breve trecho
estacava-se de encontro a outro entrincheiramento, onde se adensava
maior número de combatentes. Era o último, naquele rumo. Dali por
diante um passo mais era o espingardeamento certo. Toda a parte do
arraial à direita e na frente estava ainda em poder dos habitantes.
Os adversários acotovelaram-se. Ouvia-se, transudando das paredes
da taipa, o surdo e indefinível arruído da população entocada:
vozes precípites, cautas, segredando sob o abafamento dos colmos;
arrastamentos de móveis; soar de passos; e uns como longínquos
clamores e gemidos; e às vezes — notas cruelmente dramáticas! —
gritos, e choros, e risos, de crianças...
Volvia-se dali para a esquerda, voltando ao ponto de partida,
através das casas tomadas nas vésperas, e o passeio tornava-se
amedrontador. Em todo este novo segmento da linha do sítio,
definindo-lhe o avançamento máximo depois dos combates da última
semana, não se tinham destruído os casebres. Derrubadas apenas as
paredes interiores e as empenas, as coberturas de barro sucediam-se
unidas ou pouco espaçadas, feito o teto de longuíssimo armazém
abarracado. A barreira de esteios e vigas, canastras e trastes de
toda a sorte, por detrás da qual se alinhavam os batalhões,
progredia por ela dentro, torcida e longa, desaparecendo de todo numa
distância de trinta metros, perdida na penumbra. Adivinhavam-se os
soldados, a um lado, guarnecendo-a. Pelos recantos escuros, à
retaguarda, lobrigavam-se os corpos dos jagunços mortos nos últimos
dias, que fora perigoso queimar entre acervos de farrapos e estilhas de
madeira, esparsos por toda a parte.
Impregnava o ambiente um bafio angulhento de caverna.
Era preciso valor para atravessar aquela espécie de túnel, em cuja
boca, ao longe, mal se divisava um reflexo pálido do dia. Porque,
a dous passos, ladeando-o, paralelamente, se estendia o
entrincheiramento invisível do inimigo, interpostas as paredes
fronteiras, enfrestadas. De sorte que o mínimo descuido, o mais
rápido olhar por cima daqueles parapeitos de ciscalhos, era duramente
pago. É que de parte a parte estavam as mesmas astúcias, avivadas
dos mesmos ódios. Naquele sombrio finalizar da luta os antagonistas
temiam-se por igual. Evitavam por igual o recontro franco.
Negaceavam, estadeando as mesmas ardilezas e a mesma proditória
quietude. Imóveis largo tempo, um em frente ao outro, abrigados na
mesma sombra, parecendo refletir a adinamia do mesmo esgotamento —
espiavam-se, solertes, traiçoeiros, tocaiando-se. E não podiam
encontrar melhor cenário para ostentarem, ambos, soldados e
jagunços, a forma mais repugnante do heroísmo do que aquele
esterquilínio de cadáveres e trapos, imerso na obscuridade de uma
furna.
Seguia-se por ali envolto de um silêncio lúgubre. Percebiam-se os
soldados esfrangalhados, imundos, sem bonés, sem fardas, cobertos
de chapéus de couro ou de palha, calçando alpercatas velhas,
vestidos com o mesmo uniforme do adversário. E acreditava-se que,
com alguma presença de espírito, o sertanejo pudesse insinuar-se
pelos rombos do tapume extenso, e aparecer entre eles, e achegar-se
com a espingarda ao parapeito, e ali se quedar forrando-se às
torturas do cerco, sem que o conhecessem — o que, ademais, era
facilitado pela mistura dos diversos batalhões. Nem o atraiçoaria
palmar ignorância dos deveres ou exigências da vida militar, porque
esta se extinguira por completo. Não havia revistas, formaturas,
nem toques, nem vozes de comando. Distribuídos os cartuchos, cada
um se encostava ao espaldão de cacaréus pronto ao que desse e viesse.
Distribuídas as rações diárias, fartas agora, cada um as
preparava quando se lhe antojava ensejo. Aqui, ali, à retaguarda da
linha ou dentro dos cubículos estreitos, sobre trempes de adobes ou
pedras, chiavam as chaleiras aquentando água para o café; ferviam
panelas; destacavam-se grandes quartos de boi, pendurados aos
caibros, avermelhando no escuro, sobre braseiros, assando. Em
torno, acocorados, carabinas sobraçadas, viam-se, em grupos, os
combatentes que aproveitavam ligeira trégua para almoçar ou jantar.
Dali corriam, não raro, em tumulto, jogando fora os canecos de
jacuba ou nacos de churrasco, precipitando-se para a estacada quando,
de súbito, estalava um tiro adiante e zuniam logo as balas
esfuziantes, varando os tetos, estilhaçando ripas e traves,
esbotenando paredes, emborcando caldeirões — espalhando soldados como
um pé-de-vento sobre palhas. No parapeito, adiante, replicavam de
pronto os que já lá estavam, atirando a esmo contra o tabique que
defrontavam e donde partira a agressão. Imitavam-nos os companheiros
laterais. Logo depois vibrava um abalo nervoso único, estendendo-se
daquele ponto aos dous extremos, com uma trepidação vibrátil de
descarga; e travava-se o combate, de improviso, furiosamente,
desordenadamente, entre adversários que se não viam...
Baqueavam algumas praças, mortas ou feridas. Conquistavam-se dous
ou três casebres mais — empurrando-se logo por diante toda a
cangalhada de móveis, encurvando-se a tranqueira num ângulo saliente
em talhante avançado. Volviam, prestes, os lutadores que mais se
tinham avantajado, às posições primitivas. E o silêncio descia de
novo, reinando outra vez o mesmo silêncio formidável: soldados mudos
e imóveis, acaroados com a borda da tapada sinistra, expectantes, na
tocaia; ou, ao fundo, em roda dos brasidos, reatando as merendas
ligeiras, que tinham, às vezes, uns trágicos convivas — os
moradores assassinados, estirados pelos recantos.... Deixava-se,
por fim, este segmento sinistro do bloqueio, que trancava quase todo o
quadrante do norte. Prosseguia-se, a céu aberto agora, em pleno
dia, atravessando quintalejos pobres de cercas caídas e canteiros
rasos, sem mais uma flor, e atravancados da mesma ciscalhagem
indefinível, em montes. Sobre estes, corpos de sacrificados ainda:
pernas surdindo inteiriçadas; braços repontando desnudos, num
retesamento de angústia; mãos espalmadas e rígidas, mãos
contorcidas em crispaduras de garras, apodrecendo, sinistras, em
gestos tremendos de ameaça ou apelos excruciantes...
Deparavam-se novos viventes: gozos magríssimos, famélicos
lebréus, pelados, esvurmando lepra, farejando e respigando aqueles
monturos, numa ânsia de chacais, devorando talvez os próprios
donos. Fugiam rápidos. Alguns cães de fila, porém, grandes
molossos ossudos e ferozes, afastavam-se devagar, em rosnaduras
ameaçadoras, adivinhando no visitante o inimigo, o intruso irritante
e mau.
Ia-se descendo sempre, até à sanga escavada, embaixo, correndo,
em direção perpendicular à que se levava, para o Vaza-Barris, ao
longe, para onde canalizava, nas quadras chuvosas, as águas das
vertentes interopostas. Ali terminava, batendo contra o topo da
colina, onde estava a comissão de engenharia, a parte do arraial
expugnada a 18 de julho. Podia atingir-se diretamente o acampamento
seguindo em frente, transpondo o valo, subindo e atravessando, a meia
encosta, a bateria de Krupps emparcada ao fundo do quartel-general da
1a coluna; ou, num desvio longo, volvendo à direita, acompanhando
o valo, perlongando a linha primitiva do assédio, descendo para o
sul. A travessia era sem riscos. As casas — num desordenado
arruamento às bordas daquele sulco de erosão, acompanhando-lhe o
declive, caindo-lhe pelos ressaltos, envesgando-lhe pelas curvas
vivas — tinham, na maioria, sido desmanchadas, salvante poucas, as
melhores, onde se improvisavam salas de ordem das brigadas, quartéis
e ranchos da oficialidade. Uma delas era digna de nota. Fora uma
tenda de ferreiro. Mostravam-no ainda alguns gastos marrões,
tenazes partidas e derruída forja fixa, de adobes. E aquela ferraria
pobre do sertão tinha uma bigorna luxuosa, do mais fino aço, que se
fundira em Essen: um dos canhões tomados à expedição Moreira
César. Continuando a marcha topava-se a “linha negra”, nome que
primitivos sucessos justificavam, mas agora inexplicável para quem
vinha das sombrias trincheiras deixadas ao norte.
Seguia-se acompanhando-a pelo fundo de um fosso, até se abrir a
meio caminho, à direita, um claro amplo — a praça das igrejas,
deserta, achanada, varrida, fazendo avultar maior, mais dominador,
mais brutal, mais sinistro, com os seus paredões incumbentes,
fendidos de alto a baixo, com a sua fachada estupenda esboroando em
monólitos, com as suas torres ruídas, e o adro entupido de blocos
encaliçados, e a neve, lá dentro, vazia, escura, misteriosa — o
templo monstruoso dos jagunços.
Dados mais alguns passos fronteava-se a igreja velha, inteiramente
queimada, reduzida às quatro paredes exteriores.
Tinha-se nesse momento, à esquerda, o mais miserando dos campos
santos, centenares de cruzes — dous paus roliços amarrados com cipós
— fincados sobre sepulturas rasas.
Transpunha-se depois o Vaza-Barris; enfiava-se pelo sulco
profundo do Rio da Providência, percorrendo, em torcicolos, as
fileiras dizimadas do 5o de Polícia, reduzido ao terço do primitivo
quadro — e chegava-se, no tombador da Favela, a uma clareira em
declive. No alto o baluarte Sete de Setembro sobressaía em
balcão, dominante. Percorria-se rapidamente aquele intervalo
perigoso, alcançando-o.
Contemplava-se o arraial embaixo. Modificara-se-lhe, afinal, o
aspecto — sombreado de largas manchas escurentas, de incêndios;
erriçado de madeiramentos varando pelos rombos dos tetos; tumultuando
em montões de argila — num esmagamento completo, arruinado,
queimado, devastado...
Apenas estreita fímbria da face norte da praça e o núcleo de
casebres junto à latada e à retaguarda da igreja se figuravam
intactos. Mas eram em número diminuto, quatrocentos talvez,
comprimidos em área reduzida. E os que neles se abrigavam certo não
suportariam por uma hora um assalto de seis mil homens.
Valia a pena tentá-lo.
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