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Escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante, este
livro, que a princípio se resumia à história da Campanha de
Canudos, perdeu toda a atualidade, remorada a sua publicação em
virtude de causas que temos por escusado apontar.
Demos-lhe, por isto, outra feição, tornando apenas variante de
assunto geral o tema, a princípio dominante, que o sugeriu.
Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros
historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-ra-ças
sertanejas do Brasil. E fazemo-lo porque a sua instabilidade de
complexos de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às
vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem,
as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante
as exigências crescentes da civilização e a concorrência material
intensiva das correntes migratórias que começam a invadir
profundamente a nossa terra. O jagunço destemeroso, o tabaréu
ingênuo e o caipira simplório serão em breve tipos relegados às
tradições evanescentes, ou extintas.
Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à
formação dos princípios imediatos de uma grande raça.
Faltou-lhes, porém, uma situação de parada ou equilíbrio, que
lhes não permite a velocidade adquirida pela marcha dos povos neste
século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo. A
civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável
“força motriz da História” que Gumplowicz, maior do que Hobbes,
lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças
fracas pelas raças fortes. A campanha de Canudos tem por isto a
significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa.
Nem enfraquece o asserto o termo-la realizado nós, filhos do mesmo
solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem tradições nacionais
uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico dos
princípios civilizadores elaborados na Europa, e armados pela
indústria alemã — tivemos na ação um papel singular de mercenários
inconscientes. Além disso, mal unidos àqueles extraordinários
patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles de todo nos separa
uma coordenada histórica — o tempo.
Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo.
E tanto quanto o permitir a firmeza do nosso espírito, façamos jus
ao admirável conceito de Taine sobre o narrador sincero que encara a
história como ela o merece:
...“Il s’irrite contre les demi-verités qui sont des
demi-faussetés, contre les auteurs qui n’altèrent ni une date, ni
une généalogie, mais dénaturent les sentiments et les moeurs, qui
gardent le dessin des événements et en changent la couleur, qui
copient les faits et défigurent l’âme; il veut sentir en barbare,
parmi les barbares, et parmi les anciens, en ancien.”
São Paulo — 1901
EUCLIDES DA CUNHA
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