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O revés de Uauá requeria reação segura.
Esta, porém, preparou-se sob extemporânea disparidade de vistas
entre o chefe da força federal na Bahia e o governador do Estado.
Ao otimismo deste, resumindo a agitação sertaneja a desordem vulgar
acessível às diligências policiais, contrapunha-se aquele,
considerando-a mais séria, capaz de determinar verdadeiras
operações de guerra.
De tal modo, a segunda expedição organizou-se sem um plano firme,
sem responsabilidades definidas, através de explicações recíprocas
entre as duas autoridades independentes e iguais. Compôs-se a
princípio de 100 praças e 8 oficiais de linha, e 100 praças e
3 oficiais da força estadual.
Assim constituída, seguiu, a 25 de novembro, para Queimadas,
sob o comando de um major do 9º Batalhão de Infantaria, Febrônio
de Brito.
Simultaneamente o comandante do Distrito apelava para o governo
federal requisitando, para a aparelhar melhor, 4 metralhadoras
Nordenfelt, 2 canhões Krupp, de campanha, e mais 250
soldados: 100 do 26º Batalhão, de Aracaju, e 150 do
33º, de Alagoas.
Todo este aparato era justificável. Sucediam-se informações
alarmantes, dando, dia a dia, realce à gravidade das cousas. À
parte os exageros que houvessem, delas se colhiam a grandeza do número
de rebeldes e os sérios empecilhos inerentes à região selvagem em que
se acoutavam.
Estas novas, porém, baralhavam-nas sem-número de versões
contraditórias agravadas pelos interesses inconfessáveis de uma falsa
política sobre a qual nos dispensamos de discorrer.
Nem os apontaremos, embora largo tempo se perdesse, inútil, nesse
agitar estéril de minudências desvaliosas — enquanto as linhas
telegráficas vibravam da orla dos sertões para o Brasil inteiro, e
permanecia, expectante, em Queimadas, o chefe da nova expedição,
à frente de 243 praças de pré.
Baldo de recursos e a braços com toda espécie de dificuldades;
oscilando no desencontro das informações; ora em desalentos,
afigurando-se-lhe insuperável a empresa; ora cheio de inesperadas
esperanças no alcançar o fim que se propunha, dali abalou somente em
dezembro, para Monte Santo, ao tempo que lhe era mandado da Bahia
novo reforço, de 100 praças.
Esta avançada já ia adscrita a um plano de campanha.
O comandante do Distrito compreendera a situação. Planeara atacar
a revolta por dous pontos, fazendo avançar para um objetivo único
não uma, mas duas colunas, sob a direção geral do coronel do 9º
de Infantaria Pedro Nunes Tamarindo. Era um plano compatível com
as circunstâncias da luta: estabelecer antes de tudo um cerco a
distância; bater os insurrectos parceladamente e apertá-los, ao
cabo, em movimentos envolventes de forças pouco numerosas e
adestradas.
Realmente, libertas, estas, da morosidade própria às grandes
massas, ajustar-se-iam melhor às escabrosidades do terreno, e do
mesmo passo enfraqueceriam todas as causas de insucesso. Por outro
lado, por mais original que seja o método combatente dos matutos —
guerrilheiros impalpáveis dentro da tática estonteadora da fuga! —
rola todo neste círculo único. Não se desenvolve num plano qualquer
permitindo dar aos grupos dispersos o centro unificador de um objetivo
prefixado. Atacá-los, atraindo-os para diferentes pontos, é
vencê-los. Foi o que perceberam, desde muito, os nossos patrícios
de há cem anos. Práticos nas vicissitudes das lutas sertanejas
tinham organização militar correlativa — visando a formação
sistemática de “tropas irregulares”, que, sem o embaraço das
unidades táticas inalteráveis, e sem formaturas, agissem
folgadamente no trançado das matas e sobre as asperezas do solo,
auxiliando, reforçando e esclarecendo a ação das tropas regulares.
Daí as façanhas que crivam a nossa história nos XVII e
XVIII séculos; o sem conto de revoltas debeladas ou quilombos
dissolvidos por aqueles minúsculos exércitos de capitães-do-mato,
através de batalhas ferocíssimas e sem nome. Imitando o próprio
sistema do africano e do índio, os sertanistas dominavam-nos graças
à mesma norma que se traduz por uma fórmula paradoxal: — dividir
para fortalecer.
Devíamos, num transe igual, adotá-la. Era sem dúvida um recuo
inevitável à guerra primitiva. Mas quando não o impusesse o
jagunço solerte e bravo, impunha-o a natureza excepcional, que o
defendia. Vejamos.
Os doutores na arte de matar que hoje, na Europa, invadem
escandalosamente a ciência, perturbando-lhe o remanso com um retinir
de esporas insolentes — e formulam leis para a guerra pondo em
equação as batalhas, têm definido bem o papel das florestas como
agente tático precioso, de ofensiva ou defensiva. E ririam os
sábios feldmarechais — guerreiros de cujas mãos caiu o franquisque
heróico trocado pelo lápis calculista — se ouvissem a alguém que às
caatingas pobres cabe função mais definida e grave que às grandes
matas virgens.
Porque estas, malgrado a sua importância para a defesa do território
— orlando as fronteiras e quebrando o embate às invasões, impedindo
mobilizações rápidas e impossibilitando a translação das
artilharias — se tornam de algum modo neutras no curso das campanhas.
Podem favorecer, indiferentemente, aos dous beligerantes oferecendo a
ambos a mesma penumbra às emboscadas, dificultando-lhes por igual as
manobras ou todos os desdobramentos em que a estratégia desencadeia os
exércitos. São uma variável nas fórmulas do problema tenebroso da
guerra, capaz dos mais opostos valores.
Ao passo que as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em
revolta. Entram também de certo modo na luta. Armam-se para o
combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro,
mas abrem-se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e
cresceu.
E o jagunço faz-se o guerrilheiro-tugue, intangível...
As caatingas não o escondem apenas, amparam-no.
Ao avistá-las, no verão, uma coluna em marcha não se surpreende.
Segue pelos caminhos em torcicolos, aforradamente. E os soldados,
devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo.
Reagindo à canícula e com o desalinho natural às marchas,
prosseguem envoltos no vozear confuso das conversas travadas em toda a
linha, virguladas de tinidos de armas, cindidas de risos joviais mal
sofreados. É que nada pode assustá-los. Certo, se os adversários
imprudentes com eles se afrontarem, serão varridos em momentos.
Aqueles esgalhos far-se-ão em estilhas a um breve choque de espadas
e não é crível que os gravetos finos quebrem o arranco das manobras
prontas. E lá se vão, marchando, tranqüilamente heróicos...
De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro...
A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem.
Sucedem-se, pausadas, outras, passando sobre as tropas, em sibilos
longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem-se,
impacientes, em roda. Nada vêem.
Há a primeira surpresa. Um fluxo de espanto corre de uma a outra
ponta das fileiras.
E os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela
esquerda, pela direita, pela frente agora, irrompendo de toda a
banda...
Então estranha ansiedade invade os mais provados valentes, ante o
antagonista que vê e não é visto. Forma-se celeremente em
atiradores uma companhia, mal destacada da massa de batalhões
constritos na vereda estreita. Distende-se pela orla da caatinga.
Ouve-se uma voz de comando; e um turbilhão de balas rola
estrugidoramente dentro das galhadas...
Mas constantes, longamente intervalados sempre, zunem os projetis dos
atiradores invisíveis batendo em cheio nas fileiras.
A situação rapidamente engravesce, exigindo resoluções
enérgicas. Destacam-se outras unidades combatentes, escalonando-se
por toda a extensão do caminho, prontas à primeira voz; — e o
comandante resolve carregar contra o desconhecido. Carrega-se contra
os duendes. A força, de baionetas caladas, rompe, impetuosa, o
matagal numa expansão irradiante de cargas. Avança com rapidez. Os
adversários parecem recuar apenas. Nesse momento surge o antagonismo
formidável da caatinga.
As seções precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e
estacam ante uma barreira flexível, mas impenetrável, de juremas.
Enredam-se no cipoal que as agrilhoa, que lhes arrebata das mãos as
armas, e não vingam transpô-lo. Contornam-no. Volvem aos
lados. Vê-se um como rastilho de queimada: uma linha de baionetas
enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre os raios do
Sol joeirados pelas árvores sem folhas; e parte-se, faiscando,
adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques,
unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponíveis,
fervilhando espinhos...
Circuitam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se,
correm, à toa, num labirinto de galhos. Caem presos pelos laços
corredios dos quipás reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por
fortíssimos tentáculos. Debatem-se desesperadamente até deixarem
em pedaços as fardas, entre as garras felinas de acúleos recurvos das
macambiras...
Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva,
agitando-se furiosos e inúteis. Por fim a ordem dispersa do combate
faz-se a dispersão do tumulto. Atiram a esmo, sem pontarias, numa
indisciplina de fogo que vitima os próprios companheiros. Seguem
reforços. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescidas a
confusão e a desordem; — enquanto em torno, circulando-os,
rítmicos, fulminantes, seguros, terríveis bem apontados, caem
inflexivelmente os projetis do adversário.
De repente cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu.
As seções voltam desfalcadas para a coluna, depois de inúteis
pesquisas nas macegas. E voltam como se saíssem de recontro braço a
braço, com selvagens: vestes em tiras; armas estrondeadas ou
perdidas; golpeadas de gilvazes; claudicando, estropiados; mal
reprimindo o doer infernal das folhas urticantes; frechados de
espinhos... Reorganiza-se a tropa. Renova-se a marcha. A
coluna, estirada a dous de fundo, deriva pelas veredas em fora,
estampado no cinzento da paisagem o traço vigoroso das fardas azuis
listradas de vermelho e o coruscar intenso das baionetas ondulantes.
Alonga-se; afasta-se; desaparece.
Passam-se minutos. No lugar da refrega, então, surgem, dentre
moitas esparsas, cinco, dez, vinte homens no máximo. Deslizam,
rápidos, em silêncio, entre os arbúsculos secos...
Agrupam-se na estrada. Consideram por momentos a tropa,
indistinta, ao longe; e sopesando as espingardas ainda aquecidas,
tomam precípites pelas veredas dos pousos ignorados.
A força vai prosseguindo mais cautelosa agora.
Subjugam o ânimo dos combatentes, caminhando em silêncio, o
império angustioso do inimigo impalpável e a expectativa torturante
dos assaltos imprevistos. O comandante rodeia-os de melhores
resguardos: ladeiam-nos companhias dispersas, pelos flancos:
duzentos metros na frente, além da vanguarda, norteia-os um
esquadrão de praças escolhidas.
No descair da encosta agreste, porém, escancela-se um sulco de
quebrada que é preciso transpor. Felizmente as barrancas,
esterilizadas dos enxurros, estão limpas: escassos restolhos de
gramíneas; cactos esguios avultando raros, entre blocos em montes;
ramalhos mortos de umbuzeiros alvejando na estonadura da seca...
Desce por ali a guarda da frente. Seguem-se-lhe os primeiros
batalhões. Escoam-se, vagarosas, as brigadas pela ladeira
agreste. Embaixo, coleando nas voltas do vale estreito já está toda
a vanguarda, armas fulgurantes, feridas pelo sol, feito uma torrente
escura transudando raios...
E um estremecimento, choque convulsivo e irreprimível, fá-la
estacar de súbito.
Passa, ressoando, uma bala.
Desta vez os tiros partem, lentos, de um só ponto, do alto,
parecendo feitos por um atirador único. A disciplina contém as
fileiras; debela o pânico emergente; e como anteriormente, uma
seção se destaca e vai, encosta acima, rastreando a direção dos
estampidos. O torvelino dos ecos numerosos, porém, torna aquela
variável; e os tiros não revelados, porque o fumo não se condensa
naqueles ares ardentes, continuam lentos, assustadores, seguros.
Afinal cessam. Soldados esparsos pelos pendores, pesquisaram-nos
inutilmente.
Volvem exaustos. Vibram os clarins. A tropa renova a marcha com
algumas praças de menos. E quando as últimas armas desaparecem, ao
longe, na última ondulação do solo, desenterra-se de montões de
blocos — feito uma cariátide sinistra em ruínas ciclópicas — um
rosto bronzeado e duro; depois um torso de atleta, encourado e rude;
e transpondo velozmente as ladeiras vivas desaparece, em momentos, o
trágico caçador de brigadas... Estas seguem desinfluídas de
todo. Daí por diante velhos lutadores têm pavores de criança. Há
estremecimentos em cada volta do caminho, a cada estalido seco nas
macegas. O exército sente na própria força a própria fraqueza.
Sem plasticidade segue numa exaustão contínua pelos ermos,
atormentado no golpear das ciladas, lentamente sangrado pelo inimigo,
que o assombra e que foge.
A luta é desigual. A força militar decai a um plano inferior.
Batem-na o homem e a terra. E quando o sertão estua nos bochornos
dos estios longos não é difícil prever a quem cabe a vitória.
Enquanto o minotauro, impotente e possante, inerme com a sua
envergadura de aço e grifos de baionetas, sente a garganta
exsicar-se-lhe de sede e, aos primeiros sintomas da fome, reflui à
retaguarda, fugindo ante o deserto ameaçador e estéril, aquela flora
agressiva abre ao sertanejo um seio carinhoso e amigo.
Então — nas quadras indecisas entre a seca e o verde, quando se
topam os últimos fios de água no lodo das ipueiras e as últimas
folhas amareladas nas ramas das baraúnas, e o forasteiro se assusta e
foge ante o flagelo iminente, aquele segue feliz nas travessias
longas, pelos desvios das veredas, firme na rota como quem conhece a
palmo todos os recantos do imenso lar sem teto. Nem lhe importa que a
jornada se alongue, e as habitações rareiem, e se extingam as
cacimbas, e escasseiem, nas baixadas, os abrigos transitórios, onde
sesteiam os vaqueiros fatigados.
Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas árvores são para ele
velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram
irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as
mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados.
O umbu desaltera-o e dá-lhe a sombra escassa das derradeiras
folhas; o araticum, o ouricuri virente, a mari elegante, a quixaba
de frutos pequeninos, alimentam-no a fartar; as palmatórias,
despidas em combustão rápida dos espinhos numerosos, os mandacarus
talhados a facão, ou as folhas dos juás — sustentam-lhe o cavalo;
os últimos lhe dão ainda a cobertura para o rancho provisório; os
caroás fibrosos fazem-se cordas flexíveis e resistentes... E se
é preciso avançar a despeito da noite, e o olhar afogado no escuro
apenas lobriga a fosforescência azulada das cunanãs dependurando-se
pelos galhos como grinaldas fantásticas, basta-lhe partir e acender
um ramo verde de candombá e agitar pelas veredas, espantando as
suçuaranas deslumbradas, um archote fulgurante... A natureza toda
protege o sertanejo. Talha-o como Anteu, indomável. É um titã
bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos.
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