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No dia 29 de dezembro entraram os expedicionários em Monte Santo.
O povoado de Frei Apolônio de Todi ia, a partir daquela data,
celebrizar-se como base das operações de todas as arremetidas contra
Canudos. Era o que mais se avantajava por aqueles sertões em fora na
direção do objetivo da campanha, permitindo, além disto, mais
rápidas comunicações com o litoral, por intermédio da estação de
Queimadas.
A tais requisitos aliavam-se outros.
Vimos-lhe em páginas anteriores a gênese tocante.
Não dissemos, porém, que, criando-o, o estóico Anchieta do
Norte aquilatara bem as condições privilegiadas do local.
De fato, a vila — erecta no sopé da serrania de onde promana a
única fonte perene da redondeza — contrasta, insulada, com a
esterilidade ambiente. Decorre isto de sua situação topográfica.
A sublevação de rochas primitivas que se alteiam aos lados, para o
norte e para leste, levanta-se como anteparo aos ventos regulares,
que até lá progridem, e torna-se condensador admirável dos escassos
vapores que ainda os impregnam, graças ao resfriamento decorrente de
uma ascensão repentina pelos flancos das serranias. Depõem-se,
então, aqueles, em chuvas quase regulares, originando regime
climatológico mais suportável, a dous passos dos sertões estéreis
para onde rolam, mais secos, os ventos, depois da travessia.
De sorte que enquanto em roda se desenrolam plainos desolados, num
raio de alguns quilômetros partindo de Monte Santo se estende região
incomparavelmente mais vivaz. Recortam-na pequenos cursos d’água
resistentes às secas. Pelas baixadas, para onde descaem os morros,
notam-se rudimentos de florestas, transmudando-se as caatingas em
cerradões virentes; e o rio de Cariacá com seus tributários
minúsculos, embora efêmero como os demais das cercanias, não se
esgota de todo nas maiores secas: fraciona-se, retalhado em cacimbas
reduzidas a imperceptíveis filetes deslizando entre pedras, mas
permitindo ainda que resistam ao flagelo os habitantes convizinhos.
É natural que seja Monte Santo, desde muito, uma paragem
remansada, predileta aos que se aventuram naquele sertão bravio.
Não surgia pela primeira vez na história. Muito antes dos que agora
o procuravam, outros expedicionários, porventura mais destemerosos
e, com certeza, mais interessantes, por ali haviam passado,
norteados por outros desígnios. Mas quer para os bandeirantes do
século XVII, quer para os soldados destes tempos, o lugar
predestinado constituiu-se escala transitória e breve mal relembrando
em acontecimentos de maior monta. Não deixa, contudo, de ser
expressiva a sua função histórica, entre devassadores de sertões,
distintos por opostos intuitos e desunidos por três séculos, porém
tendo — como veremos — a afinidade dos mesmos rancores e das mesmas
arrancadas violentas.
Ali estacionara o pai de Robério Dias, Belchior Moréia, na sua
rota atrevida “do rio Real para as serras de Jacobina pelo rio
Itapicuru acima, buscando os sertões de Maçacará”. E em torno
desta entrada, continuaram outras, orientadas pelos roteiros confusos
nos quais, todavia, o antigo nome da serra — Piquaraçá — se lê
sempre, demarcando uma paragem benfazeja naqueles terrenos agros.
Por isto centralizou, de algum modo, a primeira agitação feita em
torno das lendárias “Minas de Prata”, desde as pesquisas inúteis
do Muribeca, que até lá chegara e não passara avante, “com pouco
efeito e pouca diligência”, até ao tenaz Pedro Barbosa Leal,
acompanhando as trilhas de Moréia e estacionando por muitos dias na
montanha, onde marcas indecifráveis denotavam a passagem de
antecessores igualmente audazes.
Passaram-se, porém, os tempos. Ficou perdida no sertão a
serraria misteriosa onde muitos imaginavam, talvez a sede do eldorado
apetecido, até que Apolônio de Todi a transformasse em templo
majestoso e rude, como vimos.
E hoje quem segue pelo caminho de Queimadas, trilhando um solo
abrolhando cactos e pedras, ao divisá-la, das cercanias de
Quirinquinquá, duas léguas aquém, — estaca: volve em cheio para
o levante a vista deslumbrada, e acredita que o ondular dos ares
referventes e a fascinação da luz lhe alteiam defronte, entre o
firmamento claro e as chapadas amplas, uma miragem estonteadora e
grande.
A serra feita dessa massa de quartzito, tão própria às arquiteturas
monumentais da Terra, alteia-se, ao longe, acrescida a altitude
pelas várzeas deprimidas em torno. Lança retilínea a linha de
cumeadas. A vertente oriental cai, a pique, lembrando uma muralha,
sobre o vilarejo. Este ali se encosta, sobre socalco breve,
humílimo, assoberbado pela majestade da montanha.
Entretanto é por esta acima até ao vértice que se prolonga, saindo
da praça, a mais bela de suas ruas — a via- sacra dos sertões,
macadamizada de quartzito alvíssimo, por onde têm passado multidões
sem conto em um século de romarias. A religiosidade ingênua dos
matutos ali talhou, em milhares de degraus, coleante, em caracol
pelas ladeiras sucessivas, aquela vereda branca de sílica, longa de
mais de dous quilômetros, como se construísse uma escada para os
céus...
Esta ilusão é empolgante ao longe.
Vêem-se as capelinhas alvas, que a pontilham a espaços, subindo a
princípio em rampa fortíssima, derivando depois, tornejantes, à
feição dos pendores; alteando-se sempre, erectas sobre
despenhadeiros, perdendo-se nas alturas, cada vez menores, diluídas
a pouco e pouco no azul puríssimo dos ares, até a última, no
alto... E quem segue pelo caminho de Queimadas, atravessando um
esboço de deserto, onde agoniza uma flora de gravetos — arbustos que
nos esgalhos revoltos retratam contorções de espasmos, cardos
agarrados a pedras ao modo de tentáculos constritores, bromélias
desabotoando em floração sanguinolenta — avança rápido, ansiando
pela paragem que o arrebata.
Chega; e não sofreia doloroso desapontamento.
A estrada vai até à praça, retangular, em declive, de chão
estriado de enxurros. No centro o indefectível barracão da feira
tem, ao lado, pequena igreja, e de outro o único ornamento da vila
— um tamarineiro, secular talvez. Em torno casas baixas e velhas;
e, sobressaído, um sobrado único que seria mais tarde o
quartel-general das tropas.
Monte Santo, afinal, resume-se naquele largo. Ali desembocam
pequenas ruas, descendo umas em ladeiras para larga sanga apaulada;
abrindo outras para a várzea; outras embatendo, sem saídas, contra
a serra. Esta por sua vez, de perto, perde parte do encanto.
Parece diminuir de altitude. Sem mais o perfil regular que assume à
distância, tem, revestindo-lhe as encostas, uma flora de vivacidade
inexplicável, arraigada na pedra, brotando pelas frinchas dos
estratos e vivendo apenas das reações maravilhosas da luz. As
capelinhas, tão brancas de longe, por sua vez aparecem exíguas e
descuradas. E a estrada ciclópica de muros laterais, de alvenaria,
a desabarem em certos trechos, cheia de degraus fendidos, tortuosa,
lembra uma enorme escadaria em ruínas. O povoado triste e de todo
decadente reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça
que morre, desconhecida à História, entre paredes de taipa. Nada
recorda o encanto clássico das aldeias. As casas baixas, unidas umas
contra as outras, feitas à feição dos acidentes do solo, têm todas
a mesma forma — tetos deprimidos sobre quatro muros de barro — gizadas
todas por este estilo brutalmente chato a que tanto se afeiçoavam os
primitivos colonizadores. Algumas devem ter cem anos. As mais
novas, copiando-lhes, linha a linha, os contornos desgraciosos, por
sua vez nascem velhas.
Deste modo, Monte Santo surge desgracioso dentro de uma natureza que
lhe cria em roda — como um parênteses naquele sertão aspérrimo —
situação aprazível e ridente.
A campanha incipiente ia agravar o seu aspecto. Menos que arraial
obscuro, transformá-lo-ia em grandíssimo quartel acaçapado,
envolto de casernas.
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