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O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo
exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência,
entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário.
Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura
corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo,
reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem
firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação
de membros desarticulados. Agrava- o a postura normalmente abatida,
num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade
deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao
primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal
para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos
estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a
passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança
celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o
traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha
estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o
isqueiro, ou travar ligeiramente conversa com um amigo, cai logo —
cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição
de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos
dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma
simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo:
na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na
cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à
imobilidade e à quietude. Entretanto, toda esta aparência de
cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-lo desaparecer de improviso.
Naquela organização combalida operam-se, em segundos,
transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente
exigindo-lhe o desencadear das energias ador- mecidas. O homem
transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas
linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta,
sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte;
e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea,
todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura
vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto
dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento
surpreendente de força e agilidade extraordinárias. Este contraste
impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos
os pormenores da vida sertaneja — caracterizado sempre pela
intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias
longas. É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante;
sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para
a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do
sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como
poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente, a passo,
pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso
quase transforma o campeão que cavalga na rede amolecedora em que
atravessa dous terços da existência.
Mas se uma rês alevantada envereda, esquiva, adiante, pela caatinga
garranchenta, ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha,
ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas
nas ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufando-se
velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas. Vimo-lo neste
steeple chase bárbaro.
Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem
quebradas, acervos de pedras, coivaras, moitas de espinhos ou
barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar o garrote
desgarrado, porque por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu
cavalo...
Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças à pressão
dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro
bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas
macegas altas; saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados;
rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, a
toda brida, no largo dos tabuleiros...
A sua compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda a
plenitude. Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao
cavalo pequenino e frágil, sustendo-o nas rédeas improvisadas de
caroá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira —
estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente,
torso colado no arção, — escanchado no rastro do novilho esquivo:
aqui curvando-se agilíssimo, sob um ramalho, que lhe roça quase
pela sela; além desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado
às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no
último momento e galgando, logo depois, num pulo, o selim; — e
galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à
destra sem a perder nunca, sem a deixar no inextricável dos cipoais,
a longa aguilhada de ponta de ferro encastoado em couro, que por si só
constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia...
Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês dominada,
ei-lo, de novo caído sobre o lombilho retovado, outra vez
desgracioso e inerte, oscilando à feição da andadura lenta, com a
aparência triste de um inválido esmorecido.
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