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Ora, esta identidade avulta, mais frisante, quando se comparam com
as do passado as concepções absurdas do esmaniado apóstolo
sertanejo. Como os montanistas, ele surgia no epílogo na
Terra... O mesmo milenarismo extravagante, o mesmo pavor do
anticristo despontando na derrocada universal da vida. O fim do mundo
próximo... Que os fiéis abandonassem todos os haveres, tudo
quanto os maculasse com um leve traço da vaidade. Todas as fortunas
estavam a pique da catástrofe iminente e fora temeridade inútil
conservá-las. Que abdicassem as venturas mais fugazes e fizessem da
vida um purgatório duro; e não a manchassem nunca com o sacrilégio
de um sorriso. O Juízo Final aproximava-se, inflexível.
Prenunciavam-se anos sucessivos de desgraças:
“...Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão;
então o certão virará praia e a praia virará certão.
Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só
rebanho.
Em 1898 haverá muitos chapéos e poucas cabeças.
Em 1899 ficarão as aguas em sangue e o planeta hade apparecer no
nascente com o raio do sol que o ramo se confrontará na terra e a terra
em algum lugar se confrontará no céu...
Hade chover uma grande chuva de estrellas e ahi será o fim do mundo.
Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: eu
tenho um rebanho que anda fóra deste aprisco e é preciso que se reunam
porque há um só pastor e um só rebanho!”
Como os antigos, o predestinado atingia a terra pela vontade divina.
Fora o próprio Cristo que pressagiara a sua vinda quando
“na hora nona, descançando no monte das Oliveiras um dos seus
apostolos perguntou: Senhor! para o fim desta edade que signaes vós
deixaes? Elle respondeu: muitos signaes na Lua, no Sol e nas
Estrellas. Hade apparecer um Anjo mandado por meu pae terno,
pregando sermão pelas portas, fazendo povoações nos desertos,
fazendo egrejas e capellinhas e dando seus conselhos...”
E no meio desse extravagar adoudado, rompendo dentre o messianismo
religioso, o messianismo da raça levando-o à insurreição contra a
forma republicana:
“Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o
Brazil com o Brazil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prussia com
a Prussia, das ondas do mar D. Sebastião sahirá com todo o seu
exercito.
Desde o principio do mundo que encantou com todo seu exercito e o
restituio em guerra.
E quando encantou-se afincou a espada na pedra, ella foi até os
corpos e elle disse:
Adeus mundo!
Até mil e tantos a dois mil não chegarás!
Neste dia quando sahir com o seu exercito tira a todos no fio da espada
deste papel da Republica. O fim desta guerra se acabará na Santa
Casa de Roma e o sangue hade ir até a junta grossa...” Um
heresiarca do século II em plena idade moderna
O profetismo tinha, como se vê, na sua boca, o mesmo tom com que
despontou na Frígia, avançando para o Ocidente. Anunciava,
idêntico, o juízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o
esmagamento do mundo profano, o reino de mil anos e suas delícias.
Não haverá, com efeito, nisto, um traço superior do judaísmo?
Não há encobri-lo. Ademais este voltar-se à idade de ouro dos
apóstolos e sibilistas, revivendo vetustas ilusões, não é uma
novidade. É o permanente refluxo do cristianismo para o seu berço
judaico. Montano reproduz- se em toda a história, mais ou menos
alterado consoante o caráter dos povos, mas delatando, na mesma
rebeldia contra a hierarquia eclesiástica, na mesma exploração do
sobrenatural, e no mesmo ansiar pelos céus, a feição primitivamente
sonhadora da velha religião, antes que a deformassem os sofistas
canonizados dos concílios. A exemplo de seus comparsas do passado,
Antônio Conselheiro era um pietista ansiando pelo reino de Deus,
prometido, delongado sempre e ao cabo de todo esquecido pela Igreja
ortodoxa do século II. Abeirara-se apenas do catolicismo mal
compreendido.
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