FATORES HISTÓRICOS DA RELIGIÃO MESTIÇA

Não seria difícil caracterizá-las como uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização.

Este último é um caso notável de atavismo, na História.

Considerando as agitações religiosas do sertão e os evangelizadores e messias singulares, que, intermitentemente, o atravessam, ascetas mortificados de flagícios, encalçados sempre pelos sequazes numerosos, que fanatizam, que arrastam, que dominam, que endoudecem — espontaneamente recordamos a fase mais crítica da alma portuguesa, a partir do século XVI, quando, depois de haver por momentos centralizado a História, o mais interessante dos povos caiu, de súbito, em decomposição rápida, mal disfarçada pela corte oriental de D. Manuel. O povoamento do Brasil fez-se, intenso, com D. João III, precisamente no fastígio de completo desequilíbrio moral, quando “todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular”. Uma grande herança de abusões extravagantes, extinta da orla marítima pelo influxo modificador de outras crenças e de outras raças, no sertão ficou intacta. Trouxeram-na as gentes impressionáveis, que afluíram para a nossa terra, depois de desfeito no Oriente o sonho miraculoso da Índia. Vinham cheias daquele misticismo feroz, em que o fervor religioso reverberava à candência forte das fogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na Península. Eram parcelas do mesmo povo que em Lisboa, sob a obsessão dolorosa dos milagres e assaltado de súbitas alucinações, via, sobre o paço dos reis, ataúdes agoureiros, línguas de flamas misteriosas, catervas de mouros de albornozes brancos, passando processionalmente; combates de paladinos nas alturas... E da mesma gente que após Alcácer-Quibir, em plena “caquexia nacional”, segundo o dizer vigoroso de Oliveira Martins, procurava, ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior das esperanças messiânicas.

De feito, considerando as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos que as provocam, irresistivelmente nos assaltam, empolgantes, as figuras dos profetas peninsulares de outrora — o rei de Penamacor, o rei da Ericeira, errantes pelas faldas das serras, devotadas ao martírio, arrebatando na mesma idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio, as multidões crendeiras.

Esta justaposição histórica calca-se sobre três séculos. Mas é exata, completa, sem dobras. Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda na mesma atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doudos, o Miguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo político do sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador, nos sertões do Norte.

Mas não antecipemos.