SALOMÃO DA ROCHA

Apenas a artilharia, na extrema retaguarda, seguia vagarosa e unida, solene quase, na marcha habitual de uma revista, em que parava de quando em quando para varrer a disparos as macegas traiçoeiras; e prosseguindo depois, lentamente, rodando, inabordável, terrível...

A dissolução da tropa parara no aço daqueles canhões, cuja guarnição diminuta se destacava maravilhosamente impávida, galvanizada pela força moral de um valente.

De sorte que no fim de algum tempo em torno dela se adensaram, mais numerosos, os perseguidores. O resto da expedição podia escapar-se a salvo. Aquela bateria libertava-a. De encontro aos quatro Krupps de Salomão da Rocha, como se encontro a uma represa, embatia, e parava, adunava-se, avolumando, e recuava, e partia- se a onda rugidora dos jagunços.

Naquela corrimaça sinistra, em que a ferocidade e a cobardia revoluteavam confundidas sob o mesmo aspecto revoltante, abriu-se de improviso um episódio épico.

Contidos a princípio em distância, os sertanejos constringiam a pouco e pouco o círculo do ataque, em roda das duas divisões, que os afrontavam, seguindo a passo tardo, ou, de súbito, alinhando-se em batalha e arrebentando em descargas, fulminando-os...

As granadas explodindo entre os restolhos secos do matagal incendiavam-nos; ouviam-se lá dentro, de envolta com o crepitar de queimadas sem labaredas; extintas nos brilhos da manhã claríssima, brados de cólera e de dor; e tontos de fumo, saltando dos esconderijos em chamas, rompentes à ourela da caatinga junto à estrada, os sertanejos em chusma, gritando, correndo, disparando os trabucos e as pistolas — assombrados ante aquela resistência inexplicável, vacilantes no assaltar a zargunchadas e a faca o pequeno grupo de valentes indomáveis. Estes, entretanto, mal podiam prosseguir. Reduziam-se. Um a um tombavam os soldados da guarnição estóica. Feridos ou espantados, os muares da tração empacavam; torciam de rumo; impossibilitavam a marcha. A bateria afinal parou. Os canhões, emperrados, imobilizaram-se numa volta do caminho... O coronel Tamarindo, que volvera à retaguarda, agitando-se destemeroso e infatigável entre os fugitivos, penitenciando-se heroicamente na hora da catástrofe, da tibieza anterior, ao deparar com aquele quadro estupendo, procurou debalde socorrer os únicos soldados que tinham ido a Canudos. Neste pressuposto ordenou toques repetidos de “meia volta, alto!”. As notas das cornetas, convulsivas, emitidas pelos corneteiros sem fôlego, vibraram inutilmente. Ou melhor — aceleraram a fuga. Naquela desordem só havia uma determinação possível: “debandar!”

Debalde alguns oficiais, indignados, engatilhavam revólveres ao peito dos foragidos. Não havia contê-los. Passavam; corriam; corriam doudamente; corriam dos oficiais; corriam dos jagunços; e ao verem aqueles, que eram de preferência alvejados pelos últimos, caírem malferidos, não se comoviam. O capitão Vilarim batera-se valentemente quase só e ao baquear, morto, não encontrou entre os que comandava um braço que o sustivesse. Os próprios feridos e enfermos estropiados lá se iam, cambateando, arrastando-se penosamente, imprecando os companheiros mais ágeis...

As notas das cornetas vibravam em cima desse tumulto, imperceptíveis, inúteis...

Por fim cessaram. Não tinham a quem chamar. A infantaria desaparecera...

Pela beira da estrada, viam-se apenas peças esparsas de equipamentos, mochilas e espingardas, cinturões e sabres, jogados a esmo por ali fora, como cousas imprestáveis.

Inteiramente só, sem uma única ordenança, o coronel Tamarindo lançou-se desesperadamente, o cavalo a galope, pela estrada — agora deserta — como se procurasse conter ainda, pessoalmente, a vanguarda. E a artilharia ficou afinal inteiramente em abandono, antes de chegar ao Angico.

Os jagunços lançaram-se então sobre ela.

Era o desfecho. O capitão Salomão tinha apenas em torno meia dúzia de combatentes leais. Convergiram-lhe em cima os golpes; e ele tombou, retalhado a foiçadas, junto dos canhões que não abandonara. Consumara-se a catástrofe...

Logo adiante, na ocasião em que transpunha a galope o córrego do Angico, o coronel Tamarindo foi precipitado do cavalo por uma bala. O engenheiro militar Alfredo do Nascimento alcançou-o ainda com vida. Caído sobre a ribanceira, o velho comandante murmurou ao companheiro que o procurara a sua última ordem: — Procure o Cunha Matos...

Esta ordem dificilmente podia ser cumprida.