SEGUNDO COMBATE

Ao amanhecer, porém, nada lho revelou; e, formadas cedo, as colunas dispuseram-se ao último arranco sobre o arraial, depois de um quarto de hora a marche-marche sobre o terreno, que ali é desafogado e chão. Mas antes de abalarem sobreveio ligeiro contratempo. Um shrapnel emperrara na alma de um dos canhões resistindo a todos os esforços para a extração. Adotou-se, então, o melhor dos alvitres: disparar o Krupp na direção provável de Canudos.

Seria uma aldrabada batendo às portas do arraial, anunciando estrepitosamente o visitante importuno e perigoso.

De fato, o tiro partiu... E a tropa foi salteada por toda a banda! Reeditou-se o episódio de Uauá. Abandonando as espingardas imperfeitas pelos varapaus, pelos fueiros dos carros, pelas foices, pelas forquilhas, pelas aguilhadas longas e pelos facões de folha larga, os sertanejos enterreiraram-na, surgindo em grita, todos a um tempo, como se aquele disparo lhes fosse um sinal prefixo para o assalto.

Felizmente os expedicionários, em ordem de marcha, tinham prontas as armas para a réplica, que se realizou logo em descargas rolantes e nutridas.

Mas os jagunços não recuaram. O arremesso da investida jogara-os dentro dos intervalos dos pelotões. E pela primeira vez os soldados viam, de perto, as faces trigueiras daqueles antagonistas, até então esquivos, afeitos às correrias velozes nas montanhas...

A primeira vítima foi um cabo do 9º. Morreu matando.

Ficou trespassado na sua baioneta o jagunço que o abatera atravessando-o com o ferrão de vaqueiro. A onda assaltante passou sobre os dous cadáveres.

Tomara-lhe a frente um mamaluco possante, — rosto de bronze afeiado pela pátina das sardas — de envergadura de gladiador sobressaindo no tumulto. Este campeador terrível ficou desconhecido à história. Perdeu- se-lhe o nome. Mas não a imprecação altiva que arrojou sobre a vozeria e sobre os estampidos, ao saltar sobre o canhão da direita, que abarcou nos braços musculosos, como se estrangulasse um monstro: “Viram, canalhas, o que é ter coragem?!”

A guarnição da peça recuara espavorida, enquanto ela rodava, arrastada a braço, apresada. Era o desastre iminente.

Avaliou-o o comandante expedicionário, que tudo indica ter sido o melhor soldado da própria expedição que dirigiu. Animou valentemente os companheiros atônitos e, dando-lhes o exemplo, precipitou-se contra o grupo. E a luta travou-se braço a braço, brutalmente, sem armas, a punhadas, quase surda: um torvelinho de corpos enleados, de onde se difundiam estertores de estrangulados, ronquidos de peitos ofegantes, baques de quedas violentas... O canhão retomado volveu à posição primitiva. As cousas, porém, não melhoraram. Apenas repelidos os jagunços, num retroceder repentino que não era uma fuga, mas uma negaça perigosa, fervilharam no matagal rarefeito, em roda: vultos céleres, fugazes, indistintos, aparecendo e desaparecendo nos claros das galhadas. Novamente esparsos e intangíveis, punham, ressoantes, sobre os contrários, os projetis grosseiros — pontas de chifre, seixos rolados, e pontas de pregos — de sua velha ferramenta da morte, desde muito desusada. Renovavam o duelo a distância, antepondo as espingardas de pederneira e os trabucos de cano largo às Mannlichers fulminantes. Volviam ao sistema habitual de guerra, o que era delongar indefinidamente a ação, dando-lhe um caráter mais sério que o do ataque violento anterior; fazendo-a derivar cruelmente monótona, sem peripécias, na iteração fatigante dos mesmos incidentes, até ao esgotamento completo do adversário que, relativamente incólume, cairia afinal exausto de os bater, vencido pelo cansaço de minúsculas vitórias, num esfalfamento trágico de algozes enfastiados de matar; punhos amolecidos e frouxos pelo multiplicado dos golpes; forças perdidas em arremessos doudos contra o vácuo.

A situação desenhou-se insanável.

Restava aos invasores um recurso em desespero de causa: — o avançar aforradamente, deslocando o campo do combate, e cair sobre o arraial, assaltantes e assaltados, tendo às ilhargas os guerrilheiros atrevidos, e talvez na frente, antes da entrada daquele, outros reforços tolhendo-lhes o passo. Mas nesse pelejar em marcha de três quilômetros, as munições, prodigamente gastas na façanha prejudicial do Cambaio, talvez se extinguissem em caminho e não podia alvitrar-se o meio extremo de se ultimar a empresa a choques de armas brancas, ante a sobrecarga muscular dos soldados famintos e combalidos a que se aditavam cerca de setenta feridos agitando-se, inúteis, na desordem.

Estava, além disto, excluída a hipótese eficaz de um bombardeio preliminar: restavam apenas vinte tiros de artilharia.

A retirada impôs-se urgente e inevitável. Reunida em plena refrega a oficialidade, o comandante definiu-lhe a situação e determinou que optasse por uma das pontas do dilema: o prosseguimento da luta até o sacrifício completo ou o seu abandono imediato. Foi aceita a última sob a condição expressa de não se deixar uma única arma, um único ferido e não ficar um único cadáver insepulto.

Este recuo, entretanto, era de todo contraposto aos resultados diretos do combate. Como na véspera, as perdas sofridas de um e outro lado estavam fora de qualquer paralelo. A tropa perdera apenas quatro homens excluídos trinta e tantos feridos, ao passo que os contrários, desconhecido o número dos últimos, foram dizimados. Um dos médicos contou rapidamente mais de trezentos cadáveres. Tingira-se a água impura da lagoa do Cipó e o sol batendo de chapa na sua superfície, destacava-a, sinistramente no pardo escuro da terra requeimada, como uma nódoa amplíssima, de sangue...