TOCAIA DOS JAGUNÇOS

Foi no último arranco da investida. A força na ocasião fortalecida pela 4ª Brigada, tendo à frente o coronel Carlos Teles, cujo estado-maior quase todo baqueara, abalara transpondo a última ladeira, quando as seções extremas daquele flanco, rudemente batidas, convergiram em acelerado para a direita, na respulsa a adversários que não viam, na planura desnuda e chata, que as vistas, entretanto, num lance devassavam. Arremeteram, ao acaso, na direção de um umbuzeiro, frondente ainda. Era a única árvore que ali aparecia. Os tiros rápidos, porém sucessivos, como feitos por um homem único, bateram-nas então de frente. Vararam-nas; desfalcaram-nas, derrubando, um a um, inflexivelmente, os que as formavam. Destes, muitos, por fim, estacaram atônitos pelo inconceptível de um fuzilamento em plaino escampo e limpo, onde não havia a ondulação mais ligeira acobertando o adversário inexorável. Outros, porém, teimaram, correndo para a árvore solitária. E a alguns passos dela, viram, afinal, à borda de uma cova circular, ressurgir à flor do chão um rosto bronzeado e duro. E pulando do fojo, sem largar a arma, o jagunço, escorregando célere ao viés da encosta, desapareceu embaixo no afogado das grotas. Na trincheira soterrada trezentos e tantos cartuchos vazios diziam que o caçador feroz estivera largo tempo de tocaia naquela espera ardilosamente escolhida. Outras, idênticas, salpintando o solo, apareciam, salteadamente em roda. E, em todas, os mesmos restos de munições revelavam a estadia recente de um atirador. Eram como fogaças perigosas alastrando-se por toda a banda. O chão explodia sob os pés da tropa. Os sertanejos, desalojados desses esconderijos, acolhiam-se, recuando, noutros; e as novas trincheiras arrebentavam logo em descargas vivas, até serem por sua vez abandonadas — concentrando-se pouco a pouco, aqueles, no arraial, cujas primeiras casas foram, ao cabo, atingidas às dez horas da manhã.

Arrumadas a leste, derramam-se aquelas em lombada extensa, expandida mais ou menos segundo a meridiana e tendo a vertente ocidental suavemente descaída até à praça das igrejas, adiante. A força chegou àquela situação dominante cobrindo-a de uma linha descontínua e torcida, que se alongava para a esquerda até ao Vaza-Barris. Em parte os soldados abrigaram-se então nos casebres conquistados. A maioria, porém, impelida por oficiais, que na conjuntura se revelaram dignos de mais gloriosos feitos, avançou ainda fulminada, num círculo de descargas, até aos fundos da igreja velha. A 6ª Brigada e o 5º de Polícia, rompendo pelo álveo seco do rio, completaram esta acometida, que foi o derradeiro ímpeto da tropa.

Dali à frente ela não deu mais um passo. Conquistara um subúrbio diminuto da cidade bárbara e sentia-se impotente para ultimar a ação. As baixas avultaram. A retaguarda, coalhada de feridos e mortos, dava a impressão emocionante de uma derrota. Por entre eles passaram, contudo, ainda, impelidos a pulso, os dous Krupps. Postos logo depois em batalha, sobranceiros às igrejas, iniciaram um canhoneiro firme — enquanto no alto da Favela, coroado de fumo, estrugiam dentro de uma cerração de tormenta as baterias do coronel Olímpio da Silveira. Mas batido pelas granadas que dali tombavam, mergulhantes, batidos pelas fuzilarias, que lhe tomavam toda a orla do nascente, o arraial recrudesceu na réplica. As balas irradiando de lá, inúmeras, varavam os tabiques das casas, em que se acolhiam os assaltantes, e matavam-nos lá dentro. A igreja nova, à margem do rio, fulminava a 6ª Brigada. O 5º de Polícia, rudemente combatido, caiu por fim numa grota estreita e coleante que o livrou de um fuzilamento em massa.

O Sol culminou nesta situação gravíssima e dúbia. A batalha iniciada a dous quilômetros continuava mais renhida na orla do casario.

Neste transe os chefes da 3ª e 4ª Brigadas, que se tinham avantajado até ao cemitério junto à igreja velha, reclamaram a presença do general Artur Oscar. Este apareceu depois de fazer, a pé, mal encoberto pelas casinhas esparsas da vertente, uma travessia que foi um lance de bravura. Ao chegar encontrou, já gravemente feridos, dentro do próprio pouso em que se haviam acolhido, o coronel Carlos Teles, o comandante do 5º de linha e o capitão Antonio Sales. A conferência — rápida — realizou-se dentro do casebre exíguo. Em torno estalava a desordem: vibrações de tiros, tropear de carreiras doudas, notas estrídulas de cornetas, vozes precípites de comando, brados de cólera, gritos de dor, imprecações e gemidos. O tumulto.

Desorganizados os batalhões, cada um lutava pela vida. Nos grupos combatentes reunidos ao acaso, feitos de praças de todos os corpos, adensando-se por trás de frágeis paredes de taipa ou no cunhal das esquinas, batendo-se a todo o transe, fizera-se uma seleção natural de valentes. Extintas todas as esperanças, o instinto animal da conservação, como sói sempre acontecer nesses epílogos sombrios dos combates, vestia a clâmide do heroísmo, desdobrando brutalmente a forma primitiva da coragem. Alheias ao destino dos outros companheiros, reduzindo a batalha à área estreita em que jogavam a vida, as frações combatentes atulhando os tijupares em cujas paredes, como os jagunços, rasgavam seteiras, negaceando nas esquinas, correndo desencontradamente pelos claros das vielas, com o adversário a dous passos, enleados quase em luta braço a braço, agiam, à toa, por conta própria. Famintos e agoniados de sede, ao penetrarem as pequenas vivendas, dentro das quais no primeiro minuto nada distinguiam, na penumbra dos cômodos estreitos e sem janelas, olvidavam o morador. Percorriam-no, tateantes, em busca de uma moringa d’água ou um cabaz de farinha. E baqueavam, não raro, por um disparo a queima-roupa. Soldados possantes que vinham resfolegando de uma luta de quatro horas, caíram, alguns mortos por mulheres frágeis. Algumas valiam homens. Velhas megeras de tez baça, faces murchas, olhares afuzilando faúlhas, cabelos corredios e soltos, arremetiam com os invasores num delírio de fúrias. E quando se dobravam, sob o pulso daqueles, juguladas e quase estranguladas pelas mãos potentes, arrastadas pelos cabelos, atiradas ao chão e calcadas pelo tacão dos coturnos — não fraqueavam, morriam num estertor de feras, cuspindo-lhes em cima um esconjuro doloroso e trágico...