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O Conselheiro continuou sem tropeços na missão pervertedora,
avultando na imaginação popular. Apareciam as primeiras lendas.
Não as arquivaremos todas.
Fundou o arraial do Bom Jesus; e contam as gentes assombradas que em
certa ocasião, quando se construía a belíssima igreja que lá
está, esforçando-se debalde dez operários por erguerem pesado
baldrame, o predestinado trepou sobre o madeiro e ordenou, em
seguida, que dous homens apenas o levantem; e o que não haviam
conseguido tantos, realizaram os dous, rapidamente, sem esforço
algum...
Outra vez — ouvi o estranho caso a pessoas que se não haviam deixado
fanatizar! — chegou a Monte Santo e determinou que se fizesse uma
procissão pela montanha acima, até a última capela, no alto.
Iniciou-se à tarde a cerimônia. A multidão derivou, lenta, pela
encosta clivosa, entoando benditos, estacionando nos passos,
contrita. Ele seguia na frente — grave e sinistro — descoberto,
agitada pela ventania forte a cabeleira longa, arrimando-se ao bordão
inseparável. Desceu a noite. Acenderam-se as tochas dos
penitentes, e a procissão, estendida na linha de cumeadas, traçou
uma estrada luminosa no dorso da montanha...
Ao chegar à Santa Cruz, no alto, Antônio Conselheiro,
ofegante, senta-se no primeiro degrau da tosca escada de pedra, e
queda-se estático, contemplando os céus, o olhar imerso nas
estrelas...
A primeira onda de fiéis enche logo o âmbito restrito da capela,
enquanto outros permanecem fora ajoelhados sobre a rocha aspérrima.
O contemplativo, então, levanta-se. Mal sofreia o cansaço.
Entre alas respeitosas, penetra, por sua vez, na capela, pendida
para o chão a cabeça, humílimo e abatido, arfando.
Ao abeirar-se do altar-mor, porém, ergue o rosto pálido,
emoldurado pelos cabelos em desalinho. E a multidão estremece toda,
assombrada... Duas lágrimas sangrentas rolam, vagarosamente, no
rosto imaculado da Virgem Santíssima...
Estas e outras lendas são ainda correntes no sertão. É natural.
Espécie de grande homem pelo avesso, Antônio Conselheiro reunia no
misticismo doentio todos os erros e superstições que formam o
coeficiente de redução da nossa nacionalidade. Arrastava o povo
sertanejo não porque o dominasse, mas porque o dominavam as
aberrações daquele. Favorecia-o o meio e ele realizava, às
vezes, como vimos, o absurdo de ser útil. Obedecia à finalidade
irresistível de velhos impulsos ancestrais; e jugulado por ela
espelhava em todos os atos a placabilidade de um evangelista
incomparável.
De feito, amortecia-lhe a nevrose inexplicável placidez.
Certo dia o vigário de uma freguesia sertaneja vê chegar à sua porta
um homem extremamente magro e sucumbido: longos cabelos despenteados
pelos ombros, longas barbas descendo pelo peito; uma velha figura de
peregrino a que não faltavam o crucifixo tradicional, suspenso a um
lado entre as camândulas da cintura, e o manto poento e gasto, e a
borracha d’água, e o bordão comprido...
Dá-lhe o pároco com que se alimente, aceita um pedaço de pão
apenas; oferece-lhe um leito, prefere uma tábua sobre que se deita
sem cobertas, vestido, sem mesmo desatacar as sandálias.
No outro dia o singularíssimo hóspede, que poucas palavras até
então pronunciara, pede ao padre lhe conceda pregar por ocasião da
festa que ia realizar-se na igreja.
— Irmão, não tendes ordens; a Igreja não permite que pregueis.
— Deixai-me, então, fazer a via sacra.
— Também não posso, vou eu fazê-la, contraveio mais uma vez o
sacerdote.
O peregrino, então, encarou-o fito por algum tempo, e sem dizer
palavra tirou de sob a túnica um lenço. Sacudiu o pó das
alpercatas. E partiu.
Era o clássico protesto inofensivo e tranqüilo dos apóstolos...
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