|
Despertou-os o adversário, que imaginavam ir surpreender.
Na madrugada de 21 desenhou-se no extremo da várzea o agrupamento
dos jagunços...
Um coro longínquo esbatia-se na mudez da terra ainda adormida,
reboando longamente nos ermos desolados. A multidão guerreira
avançara para Uauá, derivando à toada vagarosa dos kyries,
rezando. Parecia uma procissão de penitência dessas a que há muito
se afeiçoaram os matutos crendeiros para abrandarem os céus quando os
estios longos geram os flagícios das secas.
O caso é original e verídico. Evitando as vantagens de uma
arrancadura noturna, os sertanejos chegavam com o dia e anunciavam-se
de longe. Despertavam os adversários para a luta.
Mas não tinham, ao primeiro lance de vistas, aparências
guerreiras. Guiavam-nos símbolos de paz: a bandeira do Divino e,
ladeando-a, nos braços fortes de um crente possante, grande cruz de
madeira, alta como um cruzeiro. Os combatentes armados de velhas
espingardas, de chuços de vaqueiros, de foices e varapaus,
perdiam-se no grosso dos fiéis que alteavam, inermes, vultos e
imagens dos santos prediletos, e palmas ressequidas retiradas dos
altares. Alguns, como nas romarias piedosas, tinham à cabeça as
pedras dos caminhos, e desfiavam rosários de coco. Equiparavam aos
flagelos naturais, que ali descem periódicos, a vinda dos soldados.
Seguiam para a batalha rezando, cantando — como se procurassem
decisiva prova às suas almas religiosas.
Eram muitos. Três mil disseram depois informantes exagerados,
triplicando talvez o número. Mas avançavam sem ordem. Um pelotão
escasso de infantaria que os aguardasse, distribuído pelas caatingas
envolventes, dispersá- los-ia em alguns minutos.
O arraial na frente, porém, não revelava lutadores a postos.
Dormia.
A multidão aproximou-se, tudo o indica, até beirar a linha de
sentinelas avançadas. E despertou-as. Os vedetas estremunhando,
surpresos, dispararam, à toa, as carabinas e refluíram
precipitadamente para a praça que ficava à retaguarda, deixando em
poder dos agressores um companheiro, espostejado a faca. Foi,
então, o alarma: soldados correndo estonteadamente pelo largo e pelas
ruas; saindo, seminus, pelas portas; saltando pelas janelas;
vestindo-se e armando-se às carreiras e às encontroadas... Não
formaram. Mas se distendeu às pressas, dirigida por um sargento,
incorreta linha de atiradores. Porque os jagunços lá chegaram logo,
de envolta com os fugitivos. E o recontro empenhou-se brutalmente,
braço a braço, adversários enleados entre disparos de garruchas e
revólveres, pancadas de cacetes e coronhas, embates de facões e
sabres — adiante, sobre a frágil linha de defesa. Esta cedeu logo.
E a turba fanatizada, entre vivas ao “Bom Jesus” e ao
“Conselheiro”, e silvos estridentes de apitos de taquara,
desdobrada, ondulante, a bandeira do Divino, erguidos para os ares
os santos e as armas, seguindo empós o curiboca audaz que levava meio
inclinada em aríete a grande cruz de madeira — atravessou o largo
arrebatadamente... Este movimento foi instantâneo e foi, afinal,
a única manobra percebida pelos que testemunhavam a ação. Dali por
diante não a descrevem os próprios protagonistas. Foi uma desordem
de feita turbulenta. Na maioria, as praças, protegidas pelas
casas, e abrindo-lhes as paredes em seteiras, volveram à defensiva
franca.
Foi a salvação. Os matutos conjuntos à roda dos símbolos
sacrossantos, no largo, começaram a ser fuzilados em massa.
Baquearam em grande número; e tornou-se-lhes a luta desigual a
despeito da vantagem numérica. Batidos pelas armas de repetição,
opunham um disparo de clavinote a cem tiros de Comblain. Enquanto o
soldado os alvejava em descargas nutridas, os jagunços revolviam os
aiós, tirando sucessivamente a pólvora, a bucha e as balas no
demorado processo de carga de seu armamento grosseiro; enfiando depois
pelo cano largo do trabuco a vareta; cevando-o devagar, socando lá
dentro aqueles ingredientes como se enchessem uma mina; escorvando-o
depois; aperrando-o afinal, e ao cabo disparando-o; realizando o
heroísmo de uma imobilidade de dous minutos na estonteante ebriez do
tiroteio....
Renunciaram, por isto, transcorrido algum tempo, à operação
inexeqüível. Caíram sobre os contrários, de facão desembainhando
e ferrão em riste, vibrando as foices reluzentes.
Mas foi-lhes ainda nefasta esta arremetida douda. Rareavam-se-lhes
as fileiras sem vantagem contra adversários abrigados, ou aparecendo
de golpe nas janelas, que se abriam em explosões de descargas. Numa
delas, um alferes, serodiamente espertado, bateu-se longo tempo,
quase desnudo, abocando, sobre o peitoril, a carabina ao peito dos
assaltantes, sem errar um tiro; até cair, morto, sobre o leito em
que dormira e não tivera tempo de deixar. O conflito continuou,
deste modo, ferozmente, cerca de quatro horas, sem episódios dignos
de nota e sem vislumbrar um único movimento tático; batendo-se cada
um por conta própria, consoante as circunstâncias. No quintal da
casa em que se aboletara, o comandante se ateve à missão única
compatível com a desordem: distribuía, jogando-os por sobre a
cerca, cartuchos, sofregamente retirados, às mancheias, dos
cunhetes abertos a machado. Reunidos sempre em volta da bandeira do
Divino, estraçoada de balas e vermelha como um pendão de guerra, os
jagunços enfiavam pelas ruas. Contorneavam o arraial. Volviam ao
largo, vozeando imprecações vivas, em ronda desnorteada e célere.
E foram, lentamente, nesses giros revoltados, abandonando a ação e
dispersando-se pelas cercanias. Reconheciam a inutilidade dos
esforços feitos, ou imaginavam atrair os antagonistas para o plaino
desafogado da várzea.
Como quer que fosse, abandonaram, a pouco e pouco, o campo. Em
breve ao longe, desapareceu, listrando uma ponta das caatingas, a
bandeira sagrada que reconduziam a Canudos.
Os soldados não os encalçaram. Estavam exaustos.
Uauá patenteava quadro lastimoso. Lavravam incêndios em vários
pontos. Sobre os soalhos e balcões ensangüentados, à soleira das
portas, pelas ruas e na praça, onde dardejava o sol, contorciam-se
os feridos e estendiam-se os mortos.
Entre estes, dezenas de sertanejos — cento e cinqüenta — diz a
parte oficial do combate, número desconforme ante as dez mortes — um
alferes, um sargento, seis praças e os dous guias — e 16 feridos
da expedição. Apesar disto, o comandante, com setenta homens
válidos, renunciou prosseguir na empresa. Assombrara-o o assalto.
Vira de perto o arrojo dos matutos. Apavorara-o a própria
vitória, se tal nome cabe ao sucedido, pois as suas conseqüências o
desanimavam. O médico da força enlouquecera... Desvairara-o o
aspecto da peleja. Quedava-se, inútil, ante os feridos, alguns
graves.
A retirada impunha-se, por tudo isto, urgente, antes da noite, ou
de um outro recontro, idéia que fazia tremer aqueles triunfadores.
Resolveram-na logo. Mal inumados na capela de Uauá os companheiros
mortos, largaram dali sob um sol ardentíssimo.
Foi como uma fuga.
A travessia para Juazeiro fez-se a marchas forçadas, em quatro
dias. E quando lá chegou o bando dos expedicionários, fardas em
trapos, feridos, estropiados, combalidos, davam a imagem da
derrota. Parecia que lhes vinham em cima, nos rastros, os
jagunços. A população alarmou-se, reatando o êxodo. Ficaram de
fogos acesos na estação da via férrea todas as locomotivas.
Arregimentaram-se todos os habitantes válidos, dispostos ao
combate. E as linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o
prelúdio da guerra sertaneja...
|
|