RETRATO DE CONSELHEIRO

“Vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta e empunhava um bordão. Os cabelos crescidos sem nenhum trato, a caírem sobre os ombros; as longas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos raramente levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e ar penitente” impressionaram grandemente os recém-vindos.

Reanima-os, contudo, recepção quase cordial. De encontro ao que previam, o Conselheiro parece aprazer-se da visita. Quebra a habitual reserva e o obstinado mutismo. Informa-os do andamento dos trabalhos; convida-os a visitá-los; e presta-se de boa feição a servir-lhes de guia pelos repartimentos do edifício. E lá seguem todos, vagarosos, guiados pelo velho solitário que orçava nesse tempo dos sessenta anos, e cujo corpo franzino, arcado sobre o bordão, avançava em andar remorado, sacudido de instante a instante, por súbitos acessos de tosse.. Não se podiam exigir melhores preliminares à missão.

Aquele agasalho era meia vitória. Mas coube ao missionário anulá-la, desajeitadamente. Ao atingirem o coro, como se achassem um tanto afastados do grosso dos fiéis, que os seguiam à distância, pareceu-lhe que a oportunidade era de molde para interpelação decisiva.

Era uma precipitação sobre inútil, contraproducente. O insucesso sobreveio, inevitável. ...“aproveitei a ocasião de estarmos quase a sós e disse-lhe que o fim a que eu ia era todo de paz e que assim muito estranhava só enxergar ali homens armados e não podia deixar de condenar que se reunissem em lugar tão pobre tantas famílias entregues à ociosidade, num abandono e misérias tais que diariamente se davam de 8 a 9 óbitos. Por isto, de ordem, e em nome do Sr. Arcebispo ia abrir uma santa missão e aconselhar o povo a dispersar- se e a voltar aos lares e ao trabalho no interesse de cada um e para o bem geral.”

Esta intransigência, este mal sopitado assomo partindo a finura diplomática nas arestas rígidas do dogma, não teria, certo, o beneplácito de S. Gregório — o Grande — a quem não escandalizam os ritos bárbaros dos saxônios; e foi um desafio imprudente.

“Enquanto isto dizia, a capela e o coro enchiam-se de gente e ainda não acabara eu de falar e já eles a uma voz clamavam:

“Nós queremos acompanhar o nosso Conselheiro!”

Era a desordem iminente. Sobresteve-a, porém, a placidez admirável, a mansuetude — por que não dizer cristã? — de Antônio Conselheiro. Que o próprio missionário fale:

“Este os fez calar e voltando-se para mim disse:

É para minha guarda que tenho comigo estes homens armados porque V. Revma. há de saber que a polícia atacou-me e quis matar-me no lugar chamado Massete, onde houve mortes de um e outro lado. No tempo da monarquia deixei-me prender porque reconhecia o governo, hoje não porque não reconheço a República.” Esta explicação, de forma respeitosa e clara, não satisfez o capuchinho, que tinha a coragem de um crente mas não o tato finíssimo de um apóstolo. Contraveio, parafraseando a Prima Petri:

“— Senhor, se é católico, deve considerar que a Igreja condena as revoltas e, aceitando todas as formas de governo, ensina que os poderes constituídos regem os povos em nome de Deus.”

Era quase, sem variantes, a própria frase de S. Paulo, em pleno reinado de Nero...

E continuou:

“É assim em toda parte: a França, que é uma das principais nações da Europa, foi monarquia por muitos séculos mas há mais de 20 anos é República; e todo o povo, sem exceção dos monarquistas de lá, obedece às autoridades e às leis do governo.”

Frei Monte-Marciano, nesse remoer nulíssimas considerações políticas, insciente da significação real da desordem sertaneja, diz por si mesmo as causas do insucesso. Desdobrou, afinal, inteira, a estatura anômala de propagandista, faltando apenas ter sob as dobras do hábito a escopeta do cura de Santa Cruz: “Nós mesmos aqui no Brasil, a principiar do Bispo até o último católico, reconhecemos o governo atual; somente vós não vos quereis sujeitar?

É mau pensar esse, é uma doutrina errada a vossa!

A frase final vibrou como uma apóstrofe. De dentro da multidão partiu, pronta, a réplica arrogante: “— V. Revma. é que tem uma falsa doutrina e não o nosso Conselheiro!”

Desta vez ainda o tumulto, prestes a explodir, retraiu-se a um gesto lento do Conselheiro que, voltando-se para o missionário, disse:

“— Eu não desarmo a minha gente, mas também não estorvo a santa missão.”

Esta iniciava-se agora sob maus auspícios. Apesar disto correu em paz até ao quarto dia, e concorridíssima: cerca de cinco mil assistentes, entre os quais todos os homens válidos se destacavam:

“...carregando bacamartes, garruchas, espingardas, pistolas e facões; de cartucheira à cinta e gorro à cabeça, na atitude de quem vai à guerra.”

Assistia-as também o Conselheiro, ao lado do altar, atento e impassível como um fiscal severo, “deixando escapar alguma vez gestos de desaprovação que os maiorais da grei confirmavam com incisivos protestos.” Estes, contudo, ao que parece, não tinham gravidade alguma. Apenas um ou outro exaltado, violando velho privilégio, se permitia sulcar de apartes a oratória sagrada.

Assim que praticando o pregador sobre o jejum, como meio de mortificar a matéria e refrear as paixões, pela sobriedade, sem entretanto exigir demoradas angústias, porque “podia-se jejuar muitas vezes comendo carne ao jantar e tomando pela manhã uma chávena de café”, tolheu-lhe o sermão irreverente e irônica contradita: “— Ora! Isto não é jejum, é comer a fartar!”

No quarto dia da missão, porém, reincidindo o capuchinho no descabido tema político, pioraram as cousas. Começou intensa propaganda contra a “pregação do padre maçom protestante e republicano”, “emissário do governo e que de inteligência com este ia abrir caminho à tropa que viria de surpresa prender o Conselheiro e exterminar todos eles”.

Não se temeu aquele da rebelião emergente. Afrontou-se com ela, acirrando-a temerariamente. Escolheu como assunto da prédica subseqüente o homicídio e, sem se furtar aos perigos da arrojada tese, falando em corda na casa do enforcado, espraiou-se em alusões imprudentes que temos por escusado registrar. A reação foi imediata. Chefiava-a João Abade, cujo apito, vibrando estridulamente na praça, congregou todos os fiéis. O caso passou em 20 de maio, sétimo da missão. Reunidos, arrancaram dali em algazarra estrepitante de vivas ao Bom Jesus e ao Divino Espírito Santo, na direção da casa em que se acolhiam os visitantes, fazendo-lhes sentir que deles não careciam para a salvação eterna.

Estava extinta a missão. Excetuando “55 casamentos de amancebados, 102 batizados e mais de 400 confissões”, o resultado fora nulo, ou antes negativo.