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O mesmo não acontece ao Norte. Ao contrário do estancieiro, o
fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios
que nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os
opulentos sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamente, as
rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes
servos submissos.
Graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos
produtos, ali ficam, anônimos — nascendo, vivendo e morrendo na
mesma quadra de terra — perdidos nos arrastadores e mocambos; e
cuidando, a vida inteira, fielmente, dos rebanhos que lhes não
pertencem.
O verdadeiro dono, ausente, conhece-lhes a fidelidade sem par.
Não os fiscaliza. Sabe-lhes, quando muito, os nomes.
Envoltos, então, no traje característico, os sertanejos encourados
erguem a choupana de pau-a-pique à borda das cacimbas, rapidamente,
como se armassem tendas; e entregam-se, abnegados, à servidão que
não avaliam. A primeira cousa que fazem, é aprender o a b c e,
afinal, toda a exigência da arte em que são eméritos: conhecer os
ferros das suas fazendas e os das circunvizinhas. Chamam-se assim os
sinais de todos os feitios, ou letras, ou desenhos caprichosos como
siglas, impressas, por tatuagem a fogo nas ancas do animal,
completados pelos cortes, em pequenos ângulos, nas orelhas. Ferrado
o boi, está garantido. Pode romper tranqueiras e tresmalhar-se.
Leva, indelével, a indicação que o reporá na solta primitiva.
Porque o vaqueiro, não se contentando com ter de cor os ferros de sua
fazenda, aprende os das demais. Chega, às vezes, por
extraordinário esforço de memória a conhecer, uma por uma, não só
as reses de que cuida, como as dos vizinhos, incluindo-lhes a
genealogia e hábitos característicos, e os nomes, e as idades,
etc. Deste modo, quando surge no seu logrador um animal alheio, cuja
marca conhece, o restitui de pronto. No caso contrário, conserva o
intruso, tratando-o como aos demais. Mas não o leva à feira
anual, nem o aplica em trabalho algum; deixa-o morrer de velho.
Não lhe pertence. Se é uma vaca e dá cria, ferra a esta com o
mesmo sinal desconhecido, que reproduz com perfeição admirável; e
assim pratica com toda a descendência daquela. De quatro em quatro
bezerros, porém, separa um para si. É a sua paga. Estabelece com
o patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro. E cumpre
estritamente, sem juízes e sem testemunhas, o estranho contrato, que
ninguém escreveu ou sugeriu.
Sucede muitas vezes ser decifrada, afinal, uma marca somente depois
de muitos anos e o criador feliz receber, ao invés de peça única que
lhe fugira e da qual se deslembrara, numa ponta de gado, todos os
produtos dela. Parece fantasia este fato, vulgar, entretanto, nos
sertões.
Indicamo-lo como traço encantador da probidade dos matutos. Os
grandes proprietários da terra e dos rebanhos a conhecem. Têm,
todos, com o vaqueiro o mesmo trato de parceria resumido na cláusula
única de lhe darem em troca dos cuidados que ele despende, um quarto
dos produtos da fazenda. E sabem que nunca se violará a percentagem.
O ajuste de contas faz-se no fim do inverno e realiza-se,
ordinariamente, sem que esteja presente a parte mais interessada. É
formalidade dispensável. O vaqueiro separa escrupulosamente a grande
maioria de novas cabeças pertencentes ao patrão (nas quais imprime o
sinal da fazenda) das poucas, um quarto, que lhe couberam por sorte.
Grava nestas o seu sinal particular; e conserva-as ou vende-as.
Escreve ao patrão, dando-lhe conta minuciosa de todo o movimento
do sítio, alongando-se aos mínimos pormenores; e continua na faina
ininterrupta.
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