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O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em
escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e
desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras
marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para
as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo
tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos
socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o
consideravelmente para o interior.
De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa
notáveis mudanças de relevos: a princípio o traço contínuo e
dominante das montanhas, precintando-o, com destaque saliente, sobre
a linha projetante das praias, depois, no segmento de orla marítima
entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral
revolto, feito da envergadura desarticulada das serras, riçado de
cumeadas e corroído de angras, e escancelando-se em baías, e
repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à
maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares
e a terra; em seguida, transposto o 15º paralelo, a atenuação de
todos os acidentes — serranias que se arredondam e suavizam as linhas
dos taludes, fracionadas em morros de encostas indistintas no horizonte
que se amplia; até que em plena faixa costeira da Bahia, o olhar,
livre dos anteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se
dilata em cheio para o ocidente, mergulhando no âmago da terra
amplíssima lentamente emergindo num ondear longínquo de chapadas...
Este facies geográfico resume a morfogenia do grande maciço
continental.
Demonstra-o análise mais íntima feita por um corte meridiano
qualquer, acompanhando a bacia do S. Francisco.
Vê-se, de fato, que três formações geognósticas díspares, de
idades mal determinadas, aí se substituem, ou se entrelaçam, em
estratificações discordantes, formando o predomínio exclusivo de
umas, ou a combinação de todas, os traços variáveis da fisionomia
da terra. Surgem primeiro as possantes massas gnaissegraníticas, que
a partir do extremo sul se encurvam em desmedido anfiteatro, alteando
as paisagens admiráveis que tanto encantam e iludem as vistas
inexpertas dos forasteiros. A princípio abeiradas do mar progridem em
sucessivas cadeias, sem rebentos laterais, até às raias do litoral
paulista, feito dilatado muro de arrimo sustentando as formações
sedimentares do interior. A terra sobranceia o oceano, dominante, do
fastígio das escarpas; e quem a alcança, como quem vinga a rampa de
um majestoso palco, justifica os exageros descritivos — do gongorismo
de Rocha Pita às extravagâncias geniais de Buckle — que fazem
deste país região privilegiada, onde a natureza armou a sua mais
portentosa oficina. É que, de feito, sob o tríplice aspecto
astronômico, topográfico e geológico — nenhuma se afigura tão
afeiçoada à Vida.
Transmontadas as serras, sob a linha fulgurante do trópico,
vêem-se estirados para o ocidente e norte, extensos chapadões cuja
urdidura de camadas horizontais de grés argiloso, intercaladas de
emersões calcárias, ou diques de rochas eruptivas básicas, do mesmo
passo lhes explica a exuberância sem par e as áreas complanadas e
vastas. A terra atrai irresistivelmente o homem, arrebatando-o na
própria correnteza dos rios que, do Iguaçu ao Tietê, traçando
originalíssima rede hidrográfica, correm da costa para os sertões,
como se nascessem nos mares e canalizassem as suas energias eternas para
os recessos das matas opulentas. Rasgam facilmente aqueles estratos em
traçados uniformes, sem talvegues deprimidos, e dão ao conjunto dos
terrenos até além do Paraná a feição de largos plainos ondulados,
desmedidos.
Entretanto, para leste a natureza é diversa.
Estereografa-se, duramente, nas placas rígidas dos afloramentos
gnáissicos; e o talude dos planaltos dobra-se no socalco da
Mantiqueira, onde se encaixa o Paraíba, ou desfaz-se em rebentos
que, após apontarem as alturas de píncaros centralizados pelo
Itatiaia, levam até ao âmago de Minas as paisagens alpestres do
litoral. Mas ao penetrar-se este estado nota-se, malgrado o
tumultuar das serranias, lenta descensão geral para o norte. Como
nos altos chapadões de São Paulo e do Paraná, todas as caudais
revelam este pendor insensível com derivarem em leitos contorcidos e
vencendo, contrafeitas, o antagonismo permanente das montanhas: o
Rio Grande rompe, rasgando-a com a força viva da corrente, a
Serra da Canastra, e, norteados pela meridiana, abrem-se adiante
os fundos vales de erosão do Rio das Velhas e do S. Francisco.
Ao mesmo tempo, transpostas as sublevações que vão de Barbacena a
Ouro Preto, as formações primitivas desaparecem, mesmo nas maiores
eminências, e jazem sotopostas a complexas séries de xistos
metamórficos, infiltrados de veeiros fartos, nas paragens lendárias
do ouro.
A mudança estrutural origina quadros naturais mais imponentes que os
da borda marítima. A região continua alpestre. O caráter das
rochas, exposto nas abas dos cerros de quartzito, ou nas grimpas em
que se empilham as placas de itacolomito avassalando as alturas, aviva
todos os acidentes, desde os maciços que vão de Ouro Branco a
Sabará, à zona diamantina expandindo-se para nordeste nas chapadas
que se desenrolam nivelando-se às cimas da Serra do Espinhaço; e
esta, apesar da sugestiva denominação de Eschwege, mal sobressai,
entre aquelas lombadas definidoras de uma situação dominante. Dali
descem, acachoantes, para o levante, tombando em catadupas ou
saltando travessões sucessivos, todos os rios que do Jequitinhonha ao
Doce procuram os terraços inferiores do planalto arrimados à Serra
dos Aimorés; e volvem águas remansadas para o poente os que se
destinam à bacia de captação do S. Francisco, em cujo vale,
depois de percorridas ao sul as interessantes formações calcárias do
Rio das Velhas, salpintadas de lagos, solapadas de sumidouros e
ribeirões subterrâneos, onde se abrem as cavernas do homem
pré-histórico de Lund, se acentuam outras transições na
contextura superficial do solo. De fato, as camadas anteriores, que
vimos superpostas às rochas graníticas, decaem, por sua vez,
sotopondo-se a outras, mais modernas, de espessos estratos de grés.
Novo horizonte geológico reponta com um traço original e
interessante. Mal estudado embora, caracteriza-o notável
significação orográfica, porque as cordilheiras dominantes do Sul
ali se extinguem, soterradas, numa inumação estupenda, pelos
possantes estratos mais recentes, que as circundam. A terra,
porém, permanece elevada, alongando-se em planuras amplas, ou
avultando em falsas montanhas, de denudação, descendo em aclives
fortes, mas tendo os dorsos alargados em plainos inscritos num
horizonte de nível, apenas apontoado a leste pelos vértices dos
albardões distantes, que perlongam a costa.
Verifica-se, assim, a tendência para um aplainamento geral.
Porque neste coincidir das terras altas do interior e a depressão das
formações arqueanas, a região montanhosa de Minas se vai
prendendo, sem ressaltos, à extensa zona dos tabuleiros do norte.
A Serra do Grão-Mogol, raiando as lindes da Bahia, é o
primeiro espécimen dessas esplêndidas chapadas imitando cordilheiras,
que tanto perturbam aos geógrafos descuidados; e as demais que a
convizinham, da do Cabral mais próxima, à da Mata da Corda
alongando-se para Goiás, modelam-se de maneira idêntica. Os
sulcos de erosão que as retalham são cortes geológicos expressivos.
Ostentam em plano vertical, sucedendo-se a partir da base, as mesmas
rochas que vimos se substituírem em alongado roteiro pela superfície:
embaixo os rebentos graníticos decaídos pelo fundo dos vales, em
cômoros esparsos; à meia encosta, inclinadas, as placas xistosas
mais recentes; no alto, sobrepujando-as, ou circuitando-lhes os
flancos em vales monoclínicos, os lençóis de grés, predominantes e
oferecendo aos agentes meteóricos plasticidade admirável aos mais
caprichosos modelos. Sem linhas de cumeadas, as maiores serranias
nada mais são que planuras altas, extensas rechãs terminando de
chofre em encostas abruptas, na molduragem golpeante do regime
torrencial sobre o terreno permeável e móvel. Caindo por ali há
séculos as fortes enxurradas, derivando a princípio em linhas
divagantes de drenagem, foram pouco a pouco reprofundando-as,
talhando-as em quebradas que se fizeram canyons, e se fizeram vales em
declive, até orlarem de escarpamentos e despenhadeiros aqueles plainos
soerguidos. E consoante a resistência dos materiais trabalhados
variaram nos aspectos: aqui apontam, rijamente, sobre as áreas de
nível, os últimos fragmentos das rochas enterradas,
desvendando-se, em fraguedos que mal relembram, na altura, o
antiqüíssimo “Himalaia brasileiro”, desbarrancado em
desintegração contínua, por todo o curso das idades; adiante, mais
caprichosos, se escalonam em alinhamentos incorretos de menires
colossais, ou em círculos enormes, recordando na disposição dos
grandes blocos superpostos, em rimas, muramentos desmantelados de
ciclópicos coliseus em ruínas; ou então, pelos visos das escarpas,
oblíquos e sobranceando as planuras que, interpostos, ladeiam,
lembram aduelas desconformes, restos da monstruosa abóbada da antiga
cordilheira, desabada...
Mas desaparecem de todo em vários pontos.
Estiram-se então planuras vastas. Galgando-as pelos taludes, que
as soerguem dando-lhes a aparência exata de tabuleiros suspensos,
topam-se, a centenas de metros, extensas áreas ampliando-se,
boleadas, pelos quadrantes, numa prolongação indefinida, de mares.
É a paragem formosíssima dos campos gerais, expandida em chapadões
ondulantes — grandes tablados onde campeia a sociedade rude dos
vaqueiros...
Atravessemo-la.
Adiante, a partir de Monte Alto, estas conformações naturais se
bipartem: do rumo firme do norte a série do grés figura-se progredir
até ao platô atenoso do Açuruá, associando-se ao calcário que
aviva as paisagens na orla do grande rio, prendendo-as às linhas dos
cerros talhados em diáclase, tão bem expressos no perfil fantástico
do Bom Jesus da Lapa; enquanto para nordeste, graças a
degradações intensas (porque a Serra Geral segue por ali como
anteparo aos alísios, condensando-os em diluvianos aguaceiros) se
desvendam, ressurgindo, as formações antigas.
Desenterram-se as montanhas.
Reponta a região diamantina, na Bahia, revivendo inteiramente a de
Minas, como um desdobramento ou antes um prolongamento, porque é a
mesma formação mineira rasgando, afinal, os lençóis de grés, e
alteando-se com os mesmos contornos alpestres e perturbados, nos
alcantis que irradiam da Tromba ou avultam para o norte nos xistos
huronianos das cadeias paralelas de Sincorá.
Deste ponto em diante, porém, o eixo da Serra Geral se fragmenta,
indefinido. Desfaz-se. A cordilheira eriça- se de contrafortes e
talhados de onde saltam, acachoando, em despenhos, para o levante,
as nascentes do Paraguaçu, e um dédalo de serranias tortuosas,
pouco elevadas mas inúmeras, cruza-se embaralhadamente sobre o largo
dos gerais, cobrindo-os. Transmuda-se o caráter topográfico,
retratando o desapoderado embater dos elementos, que ali reagem há
milênios entre montanhas derruídas, e a queda, até então
gradativa, dos planaltos começa a derivar em desnivelamentos
consideráveis. Revela-os o S. Francisco, no vivo infletir com
que torce para o levante, indicando do mesmo passo a transformação
geral da região.
Esta é mais deprimida e mais revolta.
Cai para os terraços inferiores, entre um tumultuar de morros,
incoerentemente esparsos. Último rebento da serra principal, a da
Itiúba reúne-lhe alguns galhos indecisos, fundindo as expansões
setentrionais das da Furna, Cocais e Sincorá. Alteia-se um
momento, mas descai logo para todos os rumos: para o norte,
originando a corredeira de quatrocentos quilômetros a jusante do
Sobradinho; para o sul, em segmentos dispersos que vão até além do
Monte Santo; e para leste, passando sob as chapadas de Jeremoabo,
até se desvendar no salto prodigioso de Paulo Afonso.
E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que
se revezam, em contraste belíssimo, a amplitude dos gerais e o
fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca
surpreendido...
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