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Este livro, secamente atirado à publicidade, sem amparos de qualquer
natureza, para que os protestos contra as falsidades que acaso
encerrasse se exercitassem perfeitamente desafogados, conquistou —
franca e espontânea — expressa pelo seus melhores órgãos, a grande
simpatia nobilitadora da minha terra, que não solicitei e que me
desvanece. Os únicos deslizes apontados pela crítica são, pela
própria desvalia, bastante eloqüentes no delatarem a segurança das
idéias e proposições aventadas.
É o que demonstra esta resenha rápida:
...desabrigadas de todo ante a acidez corrosiva dos aguaceiros
tempestuosos... Viu-se nesta frase uma
inexatidão e um dos imaginosos traços do meu apedrejado nefelibatismo
científico. Ora, escasseando-me o tempo para citar autores,
limito-me a apontar a página 168 da Geologia de Contejean sobre a
erosão das rochas: “des actions physiques et chimiques produites par
les eaux pluviales plus ou moins chargées d’acide carbonique —
principalement sur les roches les plus attaquables aux acides, comme
les calcaires, etc.”
Para o caso especial do Brasil, encontra-se ainda à página 151
do livro de Emmanuel Liais, sobre a nossa conformação geológica,
a caracterização do fenômeno que “se montre en très grande
échelle, sans doute à cause de la fréquence et de l’acidité des
pluies d’orage.”
No entanto o crítico leciona: “Nem as chuvas causam erosões por
conterem algumas moléculas a mais de nitro ou de amoníaco, senão
pela rijeza da camada horizontal superior em relação às camadas moles
inferiores, etc.” Extraordinária geologia, esta...
as favelas têm, nas folhas, de estômatos expandidos em
vilosidades...
Apresso-me em corrigir evidentíssimo engano, tratando-se de noção
tão simples.
Leia-se: nas folhas, de células expandidas em vilosidades.
É que a morfologia da Terra viola as leis gerais do clima.
Outro dizer malsinado. Impugna-o respeitável cientista:
“Penso que se a natureza combate os desertos, apenas o facies
geográfico modifica as condições extrínsecas do meio. E se
violência importa modificação, violar é desobedecer ao
preestabelecido. Assim, não há violação contra as leis gerais dos
climas, eis o que não padece dúvida.”
Inexplicável contradita, esta, que investe com todas as conclusões
da meteorologia moderna! Basta saber-se que sendo as leis gerais de
um clima as que se derivam das relações astronômicas — as próprias
ondulações dos isotermos, indisciplinadamente recurvos, mas que
seguiriam os paralelos se respeitassem aquelas leis, são um atestado
da violação.
Nem precisávamos exemplificar o predomínio permanente das causas
particulares ou secundárias na constituição climática de qualquer
país. De Santos, cujo clima equatorial é uma anomalia em latitude
superior à do trópico, à Groenlândia coberta de gelos fronteira
às paragens benignas da Noruega, encontraríamos esplêndidos
exemplos.
Ainda recentemente no belo livro sobre a psicologia dos ingleses,
Boutmy assinala o fato de ter a Inglaterra, no paralelo de 52º,
temperatura igual a 32º de latitude, dos Estados Unidos.
Quem quer que acompanhe num mapa o isotermo de 0º, partirá da
frigidíssima Islândia, avançará para o sul, numa curva
caprichosa, para a Inglaterra, que não tocará; torcerá depois
para o extremo norte da Noruega; e volverá de novo ao sul e se
aproximará, nos meses frios, de Paris e de Viena — que assim se
ligam, malgrado latitudes muito mais baixas, à enregelada terra
polar.
E o viajante que perlonga a nossa costa, do Rio à Bahia,
demandando o Equador, não vai também por uma linha quase
inalterável, traduzindo geometricamente um regime constante,
espelhado na uniforme opulência das matas que ajardinam o litoral
vastíssimo?
Mas se parar em qualquer ponto e avançar para o ocidente, por um
paralelo, pela linha definidora, astronomicamente, da uniformidade
climática, deparará transcorridas poucas dezenas de léguas habitats
inteiramente outros.
Não estão, nestes exemplos, que multiplicaríamos se quiséssemos,
palmares violações das leis gerais dos climas?
Uma contradição apontada pelo mesmo crítico, diz ele:
“...vejo à pág. 70 os dizeres categóricos: Não temos
unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca. E à pág.
616 lá está a proposição de que em Canudos se atacava a
rocha viva da nossa raça.” Neste salto mortal de 616 — 70 =
546 páginas é natural que se encontrem cousas disparatadas. Mas
quem segue as considerações que alinhei acerca da nossa gênese, se
compreende que de fato não temos unidade de raça, admite também que
nos vários caldeamentos operados eu encontrei no tipo sertanejo uma
subcategoria étnica já formada (pág. 108) liberta pelas
condições históricas (pág. 112) das exigências de uma
civilização de empréstimo que lhe perturbariam a constituição
definitiva.
Quer isto dizer que neste composto indefinível — o brasileiro —
encontrei alguma cousa que é estável, um ponto de resistência
recordando a molécula integrante das cristalizações iniciadas. E
era natural que, admitida a arrojada e animadora conjectura de que
estamos destinados à integridade nacional, eu visse naqueles rijos
caboclos o núcleo da força da nossa constituição futura, a rocha
viva da nossa raça.
Rocha viva... A locução sugere-me um símile eloqüente.
De fato, a nossa formação como a do granito surge de três elementos
principais. Entretanto quem ascende por um cerro granítico encontra
os mais diversos elementos: aqui a argila pura, do feldspato
decomposto, variamente colorida; além a mica fracionada, rebrilhando
escassamente sobre o chão; adiante a arena friável, do quartzo
triturado; mais longe o bloco moutonné, de aparência errática; e
por toda a banda a mistura desses mesmos elementos com a adição de
outros, adventícios, formando o incaracterístico solo arável,
altamente complexo. Ao fundo, porém, removida a camada
superficial, está o núcleo compacto e rijo da pedra. Os elementos
esparsos, em cima, nas mais diversas misturas, porque o solo exposto
guarda até os materiais estranhos trazidos pelos ventos, ali estão,
embaixo, fixos numa dosagem segura, e resistentes, e íntegros.
Assim, à medida que aprofunda, o observador se aproxima da matriz de
todo definida, do local. Ora o nosso caso é idêntico — desde que
sigamos das cidades do litoral para os vilarejos do sertão. A
princípio uma dispersão estonteadora de atributos, que vão de todas
as nuances da cor a todos os aspectos do caráter. Não há
distinguir-se o brasileiro no intricado misto de brancos, negros e
mulatos de todos os sangues e de todos os matizes. Estamos à
superfície da nossa gens, ou melhor, seguindo à letra a comparação
de há pouco, calcamos o húmus indefinido da nossa raça. Mas
entranhando-nos na terra vemos os primeiros grupos fixos — o caipira,
no Sul, e o tabaréu, ao Norte — onde já se tornam raros o
branco, o negro e o índio puros. A mestiçagem generalizada produz,
entretanto, ainda todas as variedades das dosagens díspares do
cruzamento. Mas à medida que prosseguimos estas últimas se atenuam.
Vai-se notando maior uniformidade de caracteres físicos e morais.
Por fim, a rocha viva — o sertanejo.
Mas não fujo ainda a nova objeção, porque
“se tivemos inopinadamente ressurgida e armada em nossa frente uma
sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doudo, se
tivemos aquilo (continua o crítico) não se compreende como na guerra
de Canudos se atacasse a “rocha viva da nossa raça.”
Ao falar em sociedade morta, referi-me a uma situação excepcional
da gente sertaneja corrompida por um núcleo de agitados.
O mesmo paralelo feito na mesma página com estados
idênticos de outros povos, delata-lhe o caráter excepcional. De
modo algum enunciei uma proposição geral e permanente, senão
transitória e especial, reduzida a um fragmento do espaço — Canudos
— e a um intervalo de tempo — o ano de 1897. Nada mais
límpido. Encontraríamos perfeito símile nessa misteriosa isomeria,
mercê da qual corpos identicamente constituídos, com os mesmos
átomos num arranjo semelhante, apresentam todavia propriedades
diversíssimas. Assim pensando — e que se não irritem demais as
sensitivas do nosso meio científico com mais esta arrancada feroz de
nefelibatismo — eu vejo, e todos podem ver, no jagunço um corpo
isômero do sertanejo. E compreendo que Antônio Conselheiro
repontasse como uma “integração de caracteres diferenciais, vagos e
indefinidos, mal percebidos quando dispersos pela multidão” — e não
como simples caso patológico, porque a sua figura de pequeno grande
homem se explica precisamente pela circunstância rara de sintetizar,
de uma maneira empolgante e sugestiva, todos os erros, todas as
crendices e superstições, que são o lastro do nosso temperamento.
A própria caatinga ali assume aspecto novo. E uma melhor
caracterização talvez a definisse mais acertadamente como a paragem
clássica das caatanduvas etc.
Isto também sugeriu reparos. Prestadios amadores estremecendo por
todas as corolas da botânica apisoadas pelo meu nefelibatismo
científico (eterno labéu!) puseram embargos ao dizer, doutrina
(sic) errônea do livro. E pontificaram: “caatinga (mato ruim)
é o resultado não do terreno mas da secura do ar, ao passo que as
caatanduvas são florestas cloróticas (mato doente) resultante da
porosidade e da secura do solo.” Adorável objeção. Começa
insurgindo-se contra o tupi; termina insurgindo-se contra o
português. Caatinga (mato ruim!)... Caatanduva (mato
doente!)...
Florestas cloróticas... Clorose de uma planta significando, em
vernáculo, o seu “estiolamento”, isto é, alteração mórbida
determinada pela falta da luz, são originalíssimas aquelas matas nas
regiões brasileiras onde vegetam em pleno fustigar dos sóis!
Quando à célebre doutrina, duas palavras. A discriminação dos
aspectos da nossa flora, é ainda um problema que aguarda solução
clara.
Observando que o aspecto principal da caatinga (mato branco) é o de
um cerrado rarefeito e tolhiço; e que o da caatanduva (mato mau,
áspero, doente) é o de uma mata enfezada e dura, tracei a frase
combatida porque a flórula indicada, diversa da que prepondera no
sertão, me despontou aos olhos realmente com a última aparência.
Notaram-se, em todas as páginas, termos que vários críticos
caracterizaram como invenções ou galicismos imperdoáveis. Mas foram
infelizes com os que apontaram. Cito-os e defendo-os.
Esbotenar — esboicelar, esborcinar. (Novo Dicionário da Língua
Portuguesa, de Cândido Figueiredo.) Ensofregar — tornar
sôfrego. (Dicionário Contemporâneo, de Aulete.)
Preposterar — inverter a ordem de qualquer cousa. (Idem).
Impacto — metido à força. (Idem).
Refrão — consideraram-no galicismo. Replico com a frase de um
mestre, Castilho: “Eis o eterno refrão com que nos quebram o
bichinho do ouvido.”
Inusitado — também se considerou francesismo. Em latim,
inusitatus.
Não notaram outros. Antes considerassem à pág. 296, linha
6ª, a deplorável tortura de um verbo intransitivo que sucessivas
revisões não libertaram; e outros que exigem mais séria mondadura.
...Mercenários inconscientes.
Estranhou-se a expressão. Mas devo
mantê-la; mantenho-a.
Não tive o intuito de defender os sertanejos porque este livro não é
um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque.
Ataque franco e, devo dizê-lo, involuntário. Nesse investir,
aparentemente desafiador, com os singularíssimos civilizados que nos
sertões, diante de semibárbaros, estadearam tão lastimáveis
selvatiquezas, obedeci ao rigor incoercível da verdade. Ninguém o
negará.
E se não temesse envaidar-me em paralelo que não mereço, gravaria
na primeira página a frase nobremente sincera de Tucídides, ao
escrever a história da guerra do Peloponeso — porque eu também,
embora sem a mesma visão aquilina, escrevi
“sem dar crédito às primeiras testemunhas que encontrei, nem às
minhas próprias impressões, mas narrando apenas os acontecimentos de
que fui espectador ou sobre os quais tive informações seguras.”
27-4-1903
EUCLIDES DA CUNHA
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