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As rezas, em geral, prolongavam-se. Percorridas todas as escalas
das ladainhas, todas as contas dos rosários, rimados todos os
benditos, restava ainda a cerimônia final do culto, remate obrigado
daquelas. Era o “beija” das imagens.
Instituíra-o o Conselheiro completando no ritual fetichista a
transmutação do cristianismo incompreendido. Antônio Beatinho, o
altareiro, tomava de um crucifixo; contemplava-o com o olhar diluído
de um faquir em êxtase; aconchegava-o do peito, prostrando-se
profundamente; imprimia-lhe ósculo prolongado; e entregava-o, com
gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe copiava, sem
variantes, a mímica reverente. Depois erguia uma virgem santa,
reeditando os mesmos atos; depois o Bom Jesus. E lá vinham,
sucessivamente, todos os santos, e registros, e verônicas, e
cruzes, vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando, um
a um, por todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos.
Ouviam-se os beijos chirriantes, inúmeros e, num crescendo,
extinguindo-lhes a assonância surda, o vozear indistinto das
prédicas balbuciadas a meia voz, dos mea-culpas ansiosamente socados
nos peitos arfantes e das primeiras exclamações abafadas, reprimidas
ainda, para que se não perturbasse a solenidade.
O misticismo de cada um, porém, ia-se a pouco e pouco confundindo
na nevrose coletiva. De espaço a espaço a agitação crescia, como
se o tumulto invadisse a assembléia adstrito às fórmulas de programa
preestabelecido, à medida que passavam as sagradas relíquias. Por
fim as últimas saíam, entregues pelo Beato, quando as primeiras
alcançavam as derradeiras filas de crentes. E cumulava-se a ebriez e
o estonteamento daquelas almas simples. Desbordavam as emoções
isoladas, confundindo-se repentinamente, avolumando-se, presas no
contágio irreprimível da mesma febre; e, como se as forças
sobrenaturais, que o animismo ingênuo emprestava às imagens,
penetrassem afinal as consciências, desequilibrando-as em violentos
abalos, salteava a multidão um desvairamento irreprimível.
Estrugiam exclamações entre piedosas e coléricas; desatavam-se
movimentos impulsivos, de iluminados; estalavam gritos lancinantes de
desmaios. Apertando ao peito as imagens babujadas de saliva, mulheres
alucinadas tombavam escabujando nas contorções violentas da histeria,
crianças assustadiças desandavam em choros; e, invadido pela mesma
aura de loucura, o grupo varonil dos lutadores, dentre o estrépito,
e os tinidos, e o estardalhaço das armas entrebatidas, vibrava no
mesmo ictus assombroso, em que explodia, desapoderadamente, o
misticismo bárbaro...
Mas de repente o tumulto cessava.
Todos se quedavam ofegantes, olhares presos no extremo da latada junto
à porta do Santuário, aberta e enquadrando a figura singular de
Antônio Conselheiro.
Este abeirava-se de uma mesa pequena. E pregava...
Por que não pregar contra a República?
Pregava contra a República; é certo.
O antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação
mística; uma variante forçada ao delírio religioso.
Mas não traduzia o mais pálido intuito político: o jagunço é tão
inapto para apreender a forma republicana como a
monárquico-constitucional.
Ambas lhe são abstrações inacessíveis. É espontaneamente
adversário de ambas. Está na fase evolutiva em que só é
conceptível o império de um chefe sacerdotal ou guerreiro.
Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em
nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurrecta e em armas em
nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada
por um doudo. Não a conhecemos. Não podíamos conhecê-la. Os
aventureiros do século XVII, porém, nela topariam relações
antigas, da mesma sorte que os iluminados da Idade Média se
sentiriam à vontade, neste século, entre os demonopatas de
Verzegnis ou entre os Stundistas da Rússia. Porque essas psicoses
epidêmicas despontam em todos os tempos e em todos os lugares como
anacronismos palmares, contrastes inevitáveis na evolução desigual
dos povos, patentes sobretudo quando um largo movimento civilizador
lhes impele vigorosamente as camadas superiores.
Os perfectionistas exagerados rompem, então, ilógicos, dentre o
industrialismo triunfante da América do Norte, e a sombria
Stürmisch, inexplicavelmente inspirada pelo gênio de Klopstock,
comparte o berço da renascença alemã...
Entre nós o fenômeno foi porventura ainda mais explicável.
Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam
reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança
inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na
caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem,
no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma
civilização de empréstimos; respigando, em faina cega de copistas,
tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações,
tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com
as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste
entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais
estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não
no-los separa um mar, separam-no-los três séculos...
E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se
formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do
acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma
preocupação partidária. Tivemos um espanto comprometedor ante
aquelas aberrações monstruosas; e, com arrojo digno de melhores
causas, batemo-los a cargas de baionetas, reeditando por nossa vez o
passado, numa entrada inglória, reabrindo nas paragens infelizes as
trilhas apagadas das bandeiras...
Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da
própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério,
estrênuo paladino do extinto regime, capaz de derruir as
instituições nascentes. E Canudos era a Vendéia...
Entretanto quando nos últimos dias do arraial foi permitido ingresso
nos casebres estraçoados, salteou o ânimo dos triunfadores decepção
dolorosa. A vitória duramente alcançada dera-lhes direito à
devassa dos lares em ruínas. Nada se eximiu à curiosidade
insaciável.
Ora, no mais pobre dos saques que registra a História, onde foram
despojos opimos imagens mutiladas e rosários de coco, o que mais
acirrava a cobiça dos vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos
e, principalmente, os desgraciosos versos encontrados. Pobres
papéis, em que a ortografia bárbara corria parelha com os mais
ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia parecia fotografar o
pensamento torturado, eles resumiam a psicologia da luta. Valiam tudo
porque nada valiam. Registravam as prédicas de Antônio
Conselheiro; e, lendo-as, põe-se de manifesto quanto eram elas
afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz.
Porque o que nelas vibra em todas as linhas, é a mesma religiosidade
difusa e incongruente, bem pouca significação política permitindo
emprestar-se às tendências messiânicas expostas. O rebelado
arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o
reino de delícias prometido. Prenunciava-o a República — pecado
mortal de um povo — heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do
anticristo. Os rudes poetas, rimando-lhe os desvarios em quadras
incolores, sem a espontaneidade forte dos improvisos sertanejos,
deixam bem vivos documentos nos versos disparatados, que deletreamos
pensando, como Renan, que há, rude e eloqüente, a segunda
Bíblia do gênero humano, nesse gaguejar do povo.
Copiemos ao acaso alguns:
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“Sahiu D. Pedro segundo
Para o reyno de Lisboa
Acabosse a monarquia
O Brazil ficou atôa!"
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A República era a impiedade:
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“Garantidos pela lei
Aquelles malvados estão
Nós temos a lei de Deus
Elles tem a lei do cão!”
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“Bem desgraçados são elles
Pra fazerem a eleição
Abatendo a lei de Deus
Suspendendo a lei do cão!”
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“Casamento vão fazendo
Só para o povo iludir
Vão casar o povo todo
No casamento civil!”
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O governo demoníaco, porém, desaparecerá em breve:
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“D. Sebastião já chegou
E traz muito regimento
Acabando com o civil
E fazendo o casamento!”
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“O anticristo nasceu
Para o Brazil governar
Mas ahi está o Conselheiro
Para delles nos livrar!”
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“Visita nos vem fazer
Nosso rei D. Sebastião.
Coitado daquele pobre
Que estiver na lei do cão!”
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A lei do cão...
Este era o apotegma mais elevado da seita. Resumia-lhe o programa.
Dispensa todos os comentários. Eram, realmente, fragílimos
aqueles pobres rebelados...
Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.
Entretanto enviamo-lhes o legislador Comblain; e esse argumento
único, incisivo, supremo e moralizador — a bala.
Mas antes tentou-se empresa mais nobre e mais prática.
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