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Mas no Sul a força viva restante no temperamento dos que vinham de
romper o mar imoto não se delia num clima enervante; tinha nova
componente na própria força da terra; não se dispersava em
adaptações difíceis. — Alterava-se, melhorando. O homem
sentia-se forte. Deslocado apenas o teatro dos grandes cometimentos,
podia volver para o sertão impérvio a mesma audácia que o precipitara
nos périplos africanos. Além disto — frisemos este ponto
escandalizando embora os nossos minúsculos historiógrafos — a
disposição orográfica libertava-o da preocupação de defender o
litoral, onde aproava a cobiça do estrangeiro. A Serra do Mar tem
um notável perfil em nossa história. A prumo sobre o Atlântico
desdobra-se como a cortina de baluarte desmedido. De encontro às
suas escarpas embatia, flagílima, a ânsia guerreira dos Cavendish e
dos Fenton. No alto, volvendo o olhar em cheio para os chapadões,
o forasteiro sentia-se em segurança. Estava sobre ameias
intransponíveis que o punham do mesmo passo a cavaleiro do invasor e da
metrópole. Transposta a montanha — arqueada como a precinta de pedra
de um continente — era um isolador étnico e um isolador histórico.
Anulava o apego irreprimível ao litoral, que se exercia ao norte;
reduzia-o a estreita faixa de mangues e restingas, ante a qual se
amorteciam todas as cobiças, e alteava, sobranceira às frotas,
intangível no recesso das matas, a atração misteriosa das
minas...
Ainda mais — o seu relevo especial torna-a um condensador de primeira
ordem, no precipitar a evaporação oceânica.
Os rios que se derivam pelas suas vertentes nascem de algum modo no
mar. Rolam as águas num sentido oposto à costa. Entranham-se no
interior, correndo em cheio para os sertões. Dão ao forasteiro a
sugestão irresistível das entradas.
A terra atrai o homem; chama-o para o seio fecundo; encanta-o pelo
aspecto farmosíssimo; arrebata-o, afinal, irresistivelmente, na
correnteza dos rios.
Daí o traçado eloqüentíssimo do Tietê, diretriz preponderante
nesse domínio do solo. Enquanto no S. Francisco, no Parnaíba,
no Amazonas, e em todos os cursos d’água da borda oriental, o
acesso para o interior seguia ao arrepio das correntes, ou embatia nas
cachoeiras que tombam dos socalcos dos planaltos, ele levava os
sertanistas, sem uma remada, para o Rio Grande e daí ao Paraná e
ao Paranaíba. Era a penetração em Minas, em Goiás, em Santa
Catarina, no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso, no Brasil
inteiro. Segundo estas linhas de menor resistência, que definem os
lineamentos mais claros da expansão colonial, não se opunham, como
ao norte, renteando o passo às bandeiras, a esterilidade da terra, a
barreira intangível dos descampados brutos. Assim é fácil mostrar
como esta distinção de ordem física esclarece as anomalias e
contrastes entre os sucessos nos dous pontos do país, sobretudo no
período agudo da crise colonial, no século XVII. Enquanto o
domínio holandês, centralizando-se em Pernambuco, reagia por toda
a costa oriental, da Bahia ao Maranhão, e se travavam recontros
memoráveis em que, solidárias, enterreiravam o inimigo comum as
nossas três raças formadoras, o sulista, absolutamente alheio
àquela agitação, revelava, na rebeldia aos decretos da metrópole,
completo divórcio com aqueles lutadores. Era quase um inimigo tão
perigoso quanto o batavo. Um povo estranho de mestiços
levantadiços, expandindo outras tendências, norteando por outros
destinos, pisando, resoluto, em demanda de outros rumos, bulas e
alvarás entibiadores. Volvia-se em luta aberta com a corte
portuguesa, numa reação tenaz contra os jesuítas. Estes,
olvidando o holandês e dirigindo-se com Ruiz de Montoya a Madri e
Díaz Taño a Roma, apontavam-no como inimigo mais sério.
De feito, enquanto em Pernambuco as tropas de van Schkoppe
preparavam o governo de Nassau, em São Paulo se arquitetava o drama
sombrio de Guaíra. E quando a restauração em Portugal veio
alentar em toda a linha a repulsa ao invasor, congregando de novo os
combatentes exaustos, os sulistas frisaram ainda mais esta separação
de destinos, aproveitando-se do mesmo fato para estadearem a autonomia
franca, no reinado de um minuto de Amador Bueno.
Não temos contraste maior na nossa história. Está nele a sua
feição verdadeiramente nacional. Fora disto mal a vislumbramos nas
cortes espetaculosas dos governadores, na Bahia, onde imperava a
Companhia de Jesus com o privilégio da conquista das almas,
eufemismo casuístico disfarçando o monopólio do braço indígena.
Na plenitude do século XVII o contraste se acentua.
Os homens do Sul irradiam pelo país inteiro. Abordam as raias
extremas do equador. Até aos últimos quartéis do século
XVIII, o povoamento segue as trilhas embaralhadas das bandeiras.
Seguiam sucessivas, incansáveis, com a fatalidade de uma lei,
porque traduziam, com efeito, uma queda de potenciais, as grandes
caravanas guerreiras, vagas humanas desencadeadas em todos os
quadrantes, invadindo a própria terra, batendo-a em todos os
pontos, descobrindo-a depois do descobrimento, desvendando-lhe o
seio rutilante da minas.
Fora do litoral, em que se refletia a decadência da metrópole e
todos os vícios de uma nacionalidade em decomposição insanável,
aqueles sertanistas, avantajando-se às terras extremas de Pernambuco
ao Amazonas, semelhavam uma outra raça, no arrojo temerário e
resistência aos reveses.
Quando as correrias do bárbaro ameaçavam a Bahia, ou Pernambuco,
ou a Paraíba, e os quilombos se escalonavam pelas matas, nos
últimos refúgios do africano revoltoso — o sulista, di-lo a
grosseira odisséia de Palmares, surgia como o debelador clássico
desses perigos, o empreiteiro predileto das grandes hecatombes. É que
o filho do Norte não tinha um meio físico que o blindasse de igual
soma de energias. Se tal acontecesse as bandeiras irromperiam também
do oriente e do norte e, esmagado num movimento convergente, o
elemento indígena desapareceria sem traços remanescentes. Mas o
colono nortista, nas entradas para o este ou para o sul, batia logo de
encontro à natureza adversa. Refluía prestes ao litoral sem o
atrevimento dos dominadores, dos que se sentem à vontade sobre uma
terra amiga, sem as ousadias oriundas da própria atração das
paragens opulentas e acessíveis. As explorações ali iniciadas, na
segunda metade do século XVI, por Sebastião Tourinho, no Rio
Doce, Bastião Álvares, no S. Francisco, e Gabriel Soares,
pelo norte da Bahia até às cabeceiras do Paraguaçu, embora
tivessem depois os estímulos enérgicos das Minas de Prata de
Belchior Dias, são um pálido arremedo das arremetidas do
Anhangüera ou de um Pascoal de Araújo.
Apertados entre os canaviais da costa e o sertão, entre o mar e o
deserto, num bloqueio engravecido pela ação do clima perderam todo o
aprumo e este espírito de revolta, eloqüentíssimo, que ruge em
todas as páginas da história do Sul.
Tal contraste não se baseia, por certo, em causas étnicas
primordiais.
Delineada, deste modo, a influência mesológica em nosso movimento
histórico, deduz-se a que exerceu sobre a nossa formação étnica.
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