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De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção
repentino, aqueles centenares de dorsos luzidios. Há uma parada
instantânea. Entrebatem-se, enredam-se, traçam-se e alteiam-se
fisgando vivamente o espaço, e inclinam-se, e embaralham-se
milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada
estoura... A boiada arranca.
Nada explica, às vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que é o
desespero dos campeiros. Origina-o o incidente mais trivial — o
súbito vôo rasteiro de uma araquã ou a corrida de um mocó esquivo.
Uma rês se espanta e o contágio, uma descarga nervosa subitânea,
transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um solavanco único,
assombroso, atirando, de pancada, por diante, revoltos,
misturando-se embolados, em vertiginosos disparos, aqueles maciços
corpos tão normalmente tardos e morosos.
E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los.
Acamam-se as caatingas, árvores dobradas, partidas, estalando em
lascas e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de
chifres; estrepitam, britando e esfarelando as pedras, torrentes de
cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído
soturno e longo de trovão longínquo...
Destroem-se em minutos, feito montes de leivas, antigas roças
penosamente cultivadas; extinguem-se, em lameiros revolvidos, as
ipueiras rasas; abatem-se, apisoados, os pousos; ou esvaziam-se,
deixando-os os habitantes espavoridos, fugindo para os lados,
evitando o rumo retilíneo em que se despenha a “arribada”, —
milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe,
indescritível, de animal fantástico, precipitado na carreira douda.
E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou arremessando-se impetuoso na
esteira de destroços, que deixa após si aquela avalanche viva,
largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e cerros,
e galhadas — enristado o ferrão, rédeas soltas, soltos os
estribos, estirado sobre o lombilho, preso às crinas do cavalo — o
vaqueiro!
Já se lhe têm associado, em caminho, os companheiros, que
escutaram, de longe, o estouro da boiada. Renova- se a lida: novos
esforços, novos arremessos, novas façanhas, novos riscos e novos
perigos, a despender, a atravessar e a vencer, até que o boiadão,
não já pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos
senão pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente
abombado.
Reaviam-no à vereda da fazenda; e ressoam, de novo, pelos ermos,
entristecedoramente, as notas melancólicas do aboiado.
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