OUTRO OLHAR SOBRE CANUDOS

E sobre tudo aquilo uma monotonia acabrunhadora... A sucessão invariável das mesmas cenas no mesmo cenário pobre, despontando às mesmas horas com a mesma forma, davam aos lutadores exaustos a impressão indefinível de uma imobilidade no tempo.

À tarde ou durante o dia, nos raros momentos em que se atreguavam os assaltos, alguns se distraíam contemplando o arraial intangível. Lá se iam, então, cautelosamente, desenfiando-se pelo viés das encostas, alongando as distâncias, para atingirem com resguardos um ponto abrigado qualquer, de onde o distinguissem a salvo. Perturbavam-se-lhes, então, as vistas, no emaranhado dos casebres, esbatidos embaixo. E contavam: uma, duas, três, quatro mil, cinco mil casas! cinco mil casas ou mais! Seis mil casas, talvez! Quinze ou vinte mil almas — encafurnadas naquela tapera babilônica... E invisíveis. De longe em longe, um vulto, rápido, cortava uma viela estreita, correndo, ou apontava, por um segundo, indistinto e fugitivo, à entrada da grande praça vazia, desaparecendo logo. Nada mais. Em torno o debuxo misterioso de uma paisagem bíblica: a infinita tristura das colinas desnudas, ermas, sem árvores. Um rio sem águas, tornejando-as, feito uma estrada poenta e longa. Mais longe, avassalando os quadrantes, a corda ondulante das serras igualmente desertas, rebatidas, nitidamente, na imprimadura do horizonte claro, feito o quadro desmedido daquele cenário estranho.

Era uma evocação. Como se a terra se ataviasse em dados trechos para idênticos dramas, tinha-se, ali, o que quer que era recordando um recanto da Iduméia, na paragem lendária que perlonga as ribas meridionais do Asfaltite, esterilizada para todo o sempre pelo malsinar fatídico dos profetas e pelo reverberar adusto dos plainos do Iêmen... O arraial — “compacto” como as cidades do Evangelho — completava a ilusão.

Ao cair da noite de lá ascendia, ressoando longamente nos descampados em ondulações sonoras, que vagarosamente se alargavam pela quietude dos ermos e se extinguiam em ecos indistintos, refluindo nas montanhas longínquas, o toque da Ave-Maria...

Os canhões da Favela bramiam, despertos por aquelas vozes tranqüilas. Cruzavam-se sobre o campanário humilde as trajetórias das granadas. Estouravam-lhe por cima e em roda os shrapnels. Mas, lento e lento, intervaladas de meio minuto, as vozes suavíssimas se espalhavam, silentes, sobre a assonância do ataque. O sineiro impassível não claudicava um segundo no intervalo consagrado. Não perdia uma nota.

Cumprida, porém, a missão religiosa; apenas extintos os ecos da última badalada, o mesmo sino dobrava estridulamente sacudindo as vibrações do alarma. Corria um listrão de flamas pelas cimalhas das igrejas. Caía feito um rastilho no arraial. Alastrava-se pela praça, deflagrando para as faldas do morro; abrangia-as; e uma réplica violenta caía estrepitosamente sobre a tropa. Fazia calar o bombardeio. O silêncio descia amortecedoramente, sobre os dous campos. Os soldados escutavam, então, misteriosa e vaga, coada pelas paredes espessas do templo meio em ruínas, a cadência melancólica das rezas...