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É uma paragem impressionadora.
As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência
máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O
regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito,
depois das insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores,
expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos
degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das
montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos,
e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se,
repontando duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça
— dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto
atormentado das paisagens.
Porque o que estas denunciam — no enterroado do chão, no desmantelo
dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos
ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo
de uma flora decídua embaralhada em esgalhos — é de algum modo o
martírio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variáveis,
distribuídos por todas as modalidades climáticas. De um lado a
extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação
noturna a perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas
às soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas
termométricas repentinas; e daí um jogar de dilatações e
contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor
resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os
ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.
As forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na
superfície, sem intervalos na ação demolidora, substituindo-se,
com intercadência invariável, nas duas estações únicas da
região. Dissociam-na nos verões queimosos, degradam-na nos
invernos torrenciais. Vão do desequilíbrio molecular, agindo
surdamente, à dinâmica portentosa das tormentas. Ligam-se e
completam-se. E consoante o preponderar de uma e outra, ou o
entrelaçamento de ambas, modificam-se os aspectos naturais. As
mesmas assomadas gnáissicas caprichosamente cindidas em planos quase
geométricos, à maneira de silhares, que surgem em numerosos pontos,
dando, às vezes, a ilusão de encontrar-se, de repente, naqueles
ermos vazios, majestosas ruinarias de castelos — adiante se cercam de
fraguedos, em desordem, mal seguros sobre as bases estreitas, em
ângulo de queda, incum- bentes e instáveis, feito loggans
oscilantes, ou grandes desmoronamentos de dólmens; e mais longe
desaparecem sob acervos de blocos, com a imagem perfeita desses “mares
de pedra” tão característicos dos lugares onde imperam os regimes
excessivos. Pelas abas dos cerros, que tumultuam em roda — restos de
velhíssimas chapadas corroídas — se derramam ora em alinhamentos
relembrando velhos caminhos de geleiras, ora esparsos a esmo, espessos
lastros de seixos e lajes fraturadas, delatando idênticas
violências. As arestas dos fragmentos, onde persistem ainda
cimentados ao quartzo os cristais de feldspato, são novos atestados
desses efeitos físicos e mecânicos que despedaçando as rochas, sem
que se decomponham os seus elementos formadores, se avantajaram ao
vagar dos agentes químicos em função dos fatos meteorológicos
normais.
Deste modo se tem a cada passo, em todos os pontos, um lineamento
incisivo de rudeza extrema. Atenuando-o em parte, deparam-se
várzeas deprimidas, sedes de antigos lagos, extintos agora em
ipueiras apauladas, que demarcam os pousos dos vaqueiros.
Recortam-nas, no entanto, abertos em caixão, os leitos as mais das
vezes secos de ribeirões que só se enchem nas breves estações das
chuvas. Obstruídos, na maioria, de espessos lastros de blocos entre
os quais, fora das enchentes súbitas, defluem tênues fios de águas
são uma reprodução completa dos uedes que marginam o Saara.
Despontam-lhes, em geral, normais às barrancas, estratos de um
talcoxisto azul- escuro em placas brunidas reverberando a luz em
fulgurar metálico — e sobre elas, cobrindo extensas áreas, camadas
menos resistentes de argila vermelha, cindidas de veios de quartzo,
interceptando-lhes, discordantes, os planos estratigráficos. Estas
últimas formações, silurianas talvez, cobrem de todo as demais à
medida que se caminha para NE e apropriam-se a contornos mais
corretos. Esclarecem a gênese dos tabuleiros rasos, que se desatam,
cobertos de uma vegetação resistente, de mangabeiras, até
Jeremoabo.
Para o norte, porém, inclinam-se mais fortemente as camadas.
Sucedem-se cômoros despidos, de pendores resvalantes, descaindo em
quebradas onde enxurram torrentes periódicas, solapando-os; e pelos
seus topos divisam-se, alinhadas em fileiras, destacadas em
lâminas, as mesmas infiltrações quartzosas, expostas pela
decomposição dos xistos em que se embebem.
À luz crua dos dias sertanejos aqueles cerros aspérrimos rebrilham,
estonteadoramente — ofuscantes, num irradiar ardentíssimo...
As erosões constantes quebram, porém, a continuidade desses
estratos que ademais, noutros pontos, desaparecem sob as formações
calcárias. Mas o conjunto pouco se transmuda. À feição ruiniforme
destas, casa-se bem à dos outros acidentes. E nos trechos em que
elas se estiram, planas, pelo solo, desabrigadas de todo ante a
acidez corrosiva dos aguaceiros tempestuosos, crivam-se,
escarificadas, de cavidades circulares e acanaladuras fundas,
diminutas mas inúmeras, tangenciando-se em quinas de rebordos
cortantes, em pontas e duríssimos estrepes que impossibilitam as
marchas.
Deste modo, por qualquer vereda, sucedem-se acidentes pouco elevados
mas abruptos, pelos quais tornejam os caminhos, quando não se
justapõem por muitas léguas aos leitos vazios dos ribeirões
esgotados. E por mais inexperto que seja o observador — ao deixar as
perspectivas majestosas, que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos
cenários emocionantes daquela natureza torturada, tem a impressão
persistente de calcar o fundo recém- sublevado de um mar extinto,
tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das
ondas e das voragens...
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