|
Devemos fazer uma observação sobre a supremacia e exclusividade que
hoje se procura atribuir à consciência na orientação do
comportamento humano. Ouve-se dizer muitas vezes como aforisma
indiscutível que toda a moralidade do homem deve consistir em seguir a
própria consciência. Afirma-se este princípio tanto para
emancipá-lo das exigências de uma norma extrínseca, como da
obediência a uma autoridade que tenta impor certas leis à atividade
livre e espontânea do homem. Este deveria ser a lei de si mesmo, sem
o liame de outras intervenções em seus atos. Não dizemos nada de
novo quando respondemos aos que limitam com esse critério o âmbito da
própria vida moral, quer ter por guia a própria consciência não só
é bom, mas até necessário. Quem age contra a própria consciência
está fora do caminho reto (Rom 14,23). Mas é preciso antes
de tudo que se considere que a consciência não é por si árbitro do
valor moral das ações que ela sugere. A consciência é intérprete
de uma norma interior e superior que não é criada por ela. É
iluminada pela intuição de certos princípios normativos inatos na
razão humana. Não é a fonte do bem e do mal. É a advertência a
percepção de uma voz que por isso mesmo se chama voz da consciência.
É a indicação da conformidade das ações com a exigência
intrínseca que o homem tem de tender à verdade e à perfeição. É,
em outras palavras, a intimação subjetiva e imediata de uma lei, que
devemos chamar natural, embora hoje muita gente não queira mais ouvir
falar de lei natural.
Porventura não é em relação com essa lei compreendida rio seu
significado autêntico que nasce no homem o sentido da
responsabilidade, e com isto a sensação de boa consciência e de
merecimento ou também de remorso e de culpa? Consciência e
responsabilidade são dois termos que se relacionam entre si.
Em segundo lugar, devemos observar que a consciência para ser norma
válida do agir humano deve ser reta, isto é, deve ser verdadeira e
segura de si. Não deve ser incerta nem culpavelmente errônea, o
que, infelizmente, pode acontecer com muita facilidade, por causa da
fraqueza da razão humana, quando abandonada a si mesma, quando não
instruída.
A consciência, com efeito, deve ser educada. A pedagogia da
consciência é necessária para o homem todo, pois este é um ser em
desenvolvimento interior, que vive num ambiente exterior muito complexo
e exigente. A consciência não é a única voz que pode guiar a
atividade humana. É apenas uma voz que a esclarece e fortifica,
quando a voz da lei, portanto, da legítima autoridade, se une à
sua. Em outras palavras, a voz da consciência não é sempre
infalível nem objetivamente suprema. E isto é verdade especialmente
no campo da ação sobrenatural, no qual a razão não é capaz por si
mesma de conhecer o caminho do bem, e por isso deve recorrer à fé
para ditar ao homem a norma da justiça que Deus exige de nós por meio
da revelação. "O justo vive da fé", diz são Paulo (Gal
3,11).
Quando se anda durante a noite, isto é quando se caminha no mistério
da vida cristã, não bastam os olhos para se caminhar bem, é preciso
levar uma lanterna, é necessário luz. Essa "luz do Cristo" não
deforma, não mortifica, não contradiz a luz de nossa consciência
mas a torna mais clara e mais capaz de seguir a Cristo pelo caminho
reto de nossa peregrinação em direção à visão eterna.
Procuremos agir sempre com uma consciência reta e forte, esclarecida
pela sabedoria do Cristo.
A publicação nesta semana da encíclica Humanae Vitae sobre a
regulação dos nascimentos, deu motivo a que vos falássemos sobre o
assunto, como um dever.
Conheceis o texto deste documento pontifical, ou ao menos seu
conteúdo essencial, que não é somente a promulgação de uma lei
negativa, isto é, a exclusão de toda ação que tenha por fim tornar
impossível a procriação (nº14), mas antes de tudo a exposição
positiva de uma moral conjugal em função de sua missão de amor e de
fecundidade "na missão integral do homem e de sua vocação não
somente natural e terrestre, mas também sobrenatural e eterna"
(nº7). É um esclarecimento sobre o capítulo fundamental da vida
pessoal, conjugal, familiar e social do homem, mas não trata de
maneira exaustiva de tudo o que concerne ao ser humano no domínio do
casamento, da família, da honestidade dos costumes, domínio imenso
sobre o qual o magistério da Igreja poderia tornar a falar numa
perspectiva mais vasta, mais orgânica e sintética.
Esta encíclica responde a perguntas, dúvidas e tendências, sobre
as quais, cada um sabe, se abriu uma discussão bastante vasta e viva
nestes últimos tempos, e que comprometeram seriamente nossa função
doutrinal e pastoral. Não vos falaremos no momento deste documento,
em parte por causa da delicadeza e da gravidade do assunto, que nos
parece ultrapassar a simplicidade familiar deste discurso
hebdomadário, e doutra parte porque a respeito desta encíclica não
faltam publicações e estão-se multiplicando para todos aqueles que
se interessam pelo problema. Simplesmente vos diremos algumas palavras
não tanto sobre a encíclica, mas sobre alguns sentimentos que nos
invadiram a alma durante o longo período de sua preparação.
O primeiro sentimento foi o de nossa grave responsabilidade. Foi este
que nos levou e nos sustentou no coração da questão durante os quatro
anos que consagramos ao estudo e à elaboração da encíclica. Não
vos ocultamos que este sentimento nos fez sofrer muito espiritualmente.
Nunca tínhamos sentido como nessa ocasião o peso de nosso cargo.
Estudamos, lemos, discutimos tanto quanto podíamos e rezamos
bastante. Certas circunstâncias relativas ao assunto vos são bem
conhecidas: tínhamos que responder à Igreja e à humanidade toda
inteira. Em função da fé em nossa liberdade e em nosso cargo
apostólico, devíamos levar em consideração uma tradição
doutrinal, não secular, mas recente, isto é, a de nossos três
predecessores imediatos. Estávamos obrigados a fazer nosso o
ensinamento do Concílio, que tínhamos promulgado nós mesmos.
Estávamos dispostos a aceitar, até onde o pudéssemos fazer, as
conclusões, ainda que de caráter consultativo, da comissão criada
pelo papa João, de venerável memória, e ampliada por nós, mas ao
mesmo tempo tínhamos que ser prudentes. Não ignorávamos as vivas
discussões, levantadas com tanta paixão quanto autoridade sobre tão
grave problema. Ouvimos a voz poderosa da opinião pública, da
imprensa e a voz, mais fraca, mas não menos penetrante para nosso
coração de pai e pastor, de tantas pessoas e em particular de tantas
mulheres respeitáveis, angustiadas por este problema difícil, que
sua própria experiência tornava ainda mais difícil. Lemos os
relatórios científicos sobre a desconcertante questão demográfica
no mundo, baseados muitas vezes em depoimentos de especialistas e em
programas de governo.
Recebemos de toda a parte publicações, algumas das quais inspiradas
no exame de certos aspectos científicos da questão, outros baseadas
na consideração realista das múltiplas e graves condições
sociológicas ou das mutações, hoje tão imperiosas, que se produzem
repentinamente em todos os setores da vida moderna.
Repetidas vezes tivemos a impressão de estarmos submergido, por assim
dizer, debaixo desta avalanche de documentos, e muitas vezes,
humanamente falando, sentimos a insuficiência de nossa pobre pessoa
ante o terrível dever apostólico de nos pronunciarmos sobre o
assunto. Bas- tantes vezes trememos ante o dilema de uma fácil
condescendência às opiniões correntes, ou de uma decisão
insuportável à sociedade atual, ou que fosse arbitrariamente muito
pesada para a vida conjugal.
Aproveitamos inúmeras consultações particulares de personalidades de
alto valor moral, científico e pastoral. Invocando a luz do
Espírito Santo, colocamos nossa consciência em livre e plena
disponibilidade à voz da verdade, procurando interpretar a lei
divina, que víamos derivar-se das exigências intrínsecas do amor
humano autêntico, das estruturas essenciais da instituição do
casamento, da dignidade pessoal dos esposos, de sua missão a serviço
da vida assim como a serviço da santidade do matrimônio cristão.
Refletimos sobre os dados estáveis da doutrina tradicional e atual da
Igreja e em particular sobre os ensinamentos do recente Concílio.
Pesamos as conseqüências de uma e outra decisão. Finalmente não
tivemos nenhuma dúvida sobre o dever que se impunha de pronunciar nossa
sentença nos termos expressos pela presente encíclica.
Outro sentimento que nos guiou sempre no trabalho foi o da caridade,
da sensibilidade pas- toral, ante os que são chamados a realizar
integralmente sua personalidade na vida conjugal e na família. De bom
grado acatamos a concepção personalista, que foi a do Concílio,
sobre a so- ciedade conjugal, dando assim ao amor que a gera e
alimenta, o lugar eminente que lhe convém na apreciação subjetiva do
matrimônio. Acolhemos em seguida todas as sugestões formuladas no
plano da liceidade para facilitar a observância da lei reafirmada.
Tivemos por bem acrescentar à exposição doutrinal algumas
indicações práticas de caráter pastoral. Rendemos homenagem aos
homens de ciência pelas diligências de seus estudos sobre o processo
biológico da natalidade e pela justa aplicação dos remédios
terapêuticos e da lei moral que lhes são inerentes. Reconhecemos a
liberdade dos esposos, isto é, sua responsabilidade, enquanto
ministros dos desígnios de Deus sobre a vida humana, interpretados
pelo magistério da Igreja, para seu bem pessoal e para o de seus
filhos. Lembramos também a finalidade superior que inspira a doutrina
e a prática da Igreja, a saber, a de servir os homens,
compreendê-los e ajudá-los em suas dificuldades, formá-los num
senso agudo de suas responsabilidades e numa corajosa concepção dos
grandes e comuns deveres da vida, e dos sacrifícios inerentes à
prática da virtude, e na edificação de um lar fecundo e feliz.
Foi enfim um sentimento de esperança que assistiu na redação
difícil desta encíclica. Esperança de que em função de sua
virtude própria e de sua verdade humana, por assim dizer, esta
encíclica seria bem acolhida, apesar da diversidade das opiniões
largamente espalhadas e das dificuldades, que o caminho traçado pode
apresentar àquele que deseja nele engajar-se lealmente e também
àquele que deve ensinar francamente o mesmo, com a ajuda de Deus,
bem entendido. Esperança de que os sábios saberiam descobrir no
documento o fio natural que o liga à concepção cristã da vida e que
nos autoriza a incorporar as palavras de são Paulo: "Nos autem
sensum Christi habemus, nós temos o pensamento do Cristo" (1 Cor
2,16). Esperança, enfim, de que os esposos cristãos saberiam
compreender a que ponto nossas palavras, por severas e árduas que
possam parecer, não querem senão interpretar a autenticidade de seu
amor, chamado a transfigurar-se na imitação do amor de Cristo pela
Igreja, sua esposa. Esperança de que estes esposos, como os
primeiros, saberiam desenvolver toda a iniciativa prática, que tenda
a ajudar as famílias em suas necessidades, a fazê-las desabrochar na
integridade de seu amor e a inspirar na família moderna sua
espiritualidade própria, fonte de perfeição para cada um de seus
membros e testemunho moral na sociedade.
Como vedes, caros filhos, é uma questão particular, que se refere
a um aspecto extremamente delicado e grave da existência humana. Do
mesmo modo que nos aplicamos a estudá-lo e fazer sua exposição com a
franqueza e a caridade que tal problema exigia de nosso magistério e de
nosso ministério, assim também pedimos a todos aqueles, seja quem
forem, que estejam diretamente interessados por esta questão, de
examiná-la com o respeito que merece, no vasto e luminoso quadro da
vida cristã.
|
|