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É às categorias mais numerosas e mais representativas que compõem
esta assembléia, que dirigimos algumas palavras para responder à
objeção possível de ser suscitada no espírito de todos: Será que
basta só a caridade? Será o amor capaz e suficiente para soerguer o
mundo, para triunfar das dificuldades inúmeras e multiformes que se
opõem ao desenvolvimento de transformação e regeneração da
sociedade, tal qual se nos é apresentada hoje pela história, pela
etnografia, a economia, a política e a organização do poder
público? Em face ao mito atual da eficiência do temporal, estamos
realmente seguros de que a caridade não é uma ilusão ou uma
alienação?
Devemos responder sim e não. Sim, a caridade é necessária e
suficiente como princípio de propulsão do grande fenômeno de
renovação do mundo defeituoso em que vivemos. Não, a caridade não
basta, se não passa de pura teoria, verbal e sentimental, se não
leva após si outros valores, em primeiro lugar a justiça que é o
mínimo de caridade e outros coeficientes, que tornem prática, eficaz
e concreta a ação inspirada e mantida pela caridade, no domínio tão
diversamente especifico das realidades humanas e temporais.
Sabemos bem que no momento em que o papa visita pela primeira vez este
continente, essas realidades passam por uma crise profunda aqui na
América Latina, verdadeiramente histórica, revestindo muitos e
até excessivos aspectos inquietantes e aflitivos.
Pode o papa ignorar tal inquietude? Não seria falha uma das metas de
sua viagem, se voltasse a Roma sem ter tocado seriamente no ponto
central do problema que suscita esta angústia?
Muitos, especialmente entre os jovens, insistem sobre a necessidade
de mudar sem tardança as estruturas sociais, que segundo eles se
opõem à instauração de condições realmente justas para os
indivíduos e para as comunidades. Alguns concluem até que o problema
capital da América Latina não pode ser resolvido senão pela
violência.
Com a mesma lealdade que nos obriga a reconhecer que tais teorias e
tais práticas encontram muitas vezes sua motivação última em nobres
impulsos de justiça e de solidariedade, devemos dizer e reafirmar,
entretanto, que a violência não é evangélica nem cristã e que as
mudanças bruscas e violentas de estruturas seriam ilusórias,
ineficazes mesmo, e não conforme à dignidade do povo. Esta
dignidade exige, com efeito, que transformações necessárias se
realizem a partir de dentro, graça a uma tomada de consciência, a
uma preparação adequada, e à participação efetiva de todos,
participação esta que as condições atuais de vida, muitas vezes
desumana, e a ignorância, impedem de efetivar. Por conseguinte, a
nosso critério, o fecho de abóboda neste problema fundamental da
América Latina se acha num esforço duplo, simultâneo, conjugado e
reciprocamente benéfico: de uma parte, certo, proceder à reforma
das estruturas sociais, mas a uma reforma gradativa, possível de ser
assimilada por todos, de outra parte, que aliás irá de par, impõe
a necessidade de empreender uma ação vasta e paciente, tendente a
favorecer a "maneira de ser homens" para a grande maioria dos que
vivem na América Latina. Ajudar a cada um a tomar consciência
plena de sua própria dignidade, a desenvolver sua personalidade na
comunidade de que é membro, a ser pessoa consciente de seus direitos e
deveres, a tornar-se livremente elemento válido para o progresso
econômico, cívico e moral da sociedade, eis a grande tarefa
prioritária que se impõe e sem a qual toda mudança brutal das
estruturas sociais seria um subterfúgio inútil, efêmero e perigoso.
Essa tarefa, bem o sabeis, se traduz concretamente em toda
atividade, suscetível de favorecer a promoção integral do homem, e
sua integração efetiva na comunidade: alfabetização, educação de
base, educação permanente, formação profissional, formação da
consciência cívica e política, organização metódica dos serviços
materiais, indispensáveis ao desenvolvimento normal da vida individual
e coletiva na época moderna.
Podemos esperar que estes graves problemas sejam meditados e apreciados
em seu justo valor, à luz do mistério de caridade que estamos
celebrando? Caros filhos da América Latina, podemos esperar que
sereis capazes de haurir deste mistério a força necessária e eficaz,
para que cada um de vós apresente sua justa e urgente contribuição
para solucionar estes problemas? O papa espera isso. O papa confia
em vós.
De nossa parte, queremos repetir diante de vós que representais todas
as classes sociais da América Latina, a nossa resolução que é de
perseguir, com novo impulso e com todos os meios possíveis, o
esforço para atingir os objetivos que acabamos de enumerar e que
tínhamos já proclamado ao mundo na encíclica Populorum Progressio.
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