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Queríamos, ainda que por um instante, lançar um olhar para dentro
de vossas almas. Supomos que todos sois bons e fiéis cristãos e que
desejais ver o rosto da Igreja autêntica, isto é, o rosto jovem e
ardente, belo como o da esposa, a esposa do Cristo, sem mancha, sem
rugas, sem defeitos, mas santo e imaculado (Ef 5,27), como diz
São Paulo e como nos deixou qual esperança o Concílio. Ora,
parece-nos, ao contrário, perceber em vossos espíritos uma dolorosa
surpresa: Onde está a Igreja que nós amamos e desejamos? Será
que a de ontem não era melhor do que a de hoje? E que será da
Igreja de amanhã? Um sentimento de confusão parece difundir-se
mesmo entre os melhores filhos da Igreja e por vezes até entre os mais
qualificados e que têm mais autoridade.
Fala-se muito de autenticidade. Mas como encontrá-la, quando
tantos elementos característicos e mesmo essenciais, são postos em
questão? Fala-se muito de unidade, mas onde os apóstolos zelosos e
entusiastas, quando as vocações diminuem e entre os leigos a coesão
e espírito de conquista enfraquecem? Fala-se muito de caridade, mas
em certos meios, até eclesiásticos, respira-se um ar de crítica e
de azedume, que não pode ser aquele que soprou no dia do
Pentecostes. Que dizer da maré hostil à religião e à Igreja que
se desencadeia contra nós? Um sentimento de incerteza tal qual
arrepios de febre, invade o corpo da Igreja. Pode-se até perguntar
se isto não chegará a paralisar um dia o carisma de segurança e de
vigor que a caracterizam?
Um tema como este, caros filhos, merece um desenvolvimento bem
amplo, pois implica um diagnóstico espiritual, moral e psicológico
do povo católico, nesta hora de grandes tempestades para o mundo
inteiro. Como já o fizemos outras vezes, e como é nosso costume
neste breve entretenimento semanal, vamos tocar de leve neste assunto,
unicamente para que saibais que o papa também pensa nele e que vós
também não deveis deixá-lo passar despercebido. Antes de tudo
dizemos que é preciso não se deixar impressionar demasiadamente nem
muito menos amedrontar. Mesmo no caso em que os fenômenos que nos
preocupam atinjam dimensões de gravidade, é preciso ter sempre
presente que muitas vezes são provocados por minorias numericamente
pequenas ou provêm de fontes freqüentemente nada autorizadas. É que
os meios modernos de difusão publicitária invadem a opinião pública
com estrepitosa facilidade, e atribuem a fatos insignificantes
conseqüências desmesuradas. Resta ainda uma imensa multidão de
pessoas sadias, bondosas e fiéis em que podemos confiar. A estas
pessoas dirigimo-nos agora com nossa confiança, e convidamo-las
nesta exortação a permanecerem firmes e se tornarem mais conscientes e
operosas. O povo cristão deve imunizar-se por si mesmo, e
afirmar-se no silêncio, mas decididamente. A difusão da palavra
verdadeira e sã - da sagrada pregação, do ensino fundado nos
princípios cristãos, da imprensa de cunho católico ou daquela que
difunde o magistério da Igreja - pode constituir um oportuno
antídoto contra as vertigens das numerosas vozes ruidosas que invadem
as correntes da opinião pública.
A opinião pública tende a difundir-se com um método que podemos
chamar novo, o método do inquérito sociológico, que está na moda.
Apresenta-se com um rigor que parece inteiramente positivo e
científico, e por cima com a autoridade do número. Assim seu
resultado procura tornar-se decisivo, não só na observação de um
fato coletivo, mas também na indicação de uma norma que se deve
conformar com o mesmo resultado. O fato transforma-se em lei. Pouco
importa que se trate de um fato negativo. O inquérito tende a
justificá-lo como se fosse uma norma. Não considera que seu objeto
é geralmente parcial e como que isolado do contexto social e moral em
que está incluído. Muitas vezes se relaciona apenas com o aspecto
subjetivo, portanto com o aspecto do interesse privado ou psicológico
do fato observado, e não com o do interesse geral e com o de uma lei a
cumprir. Neste caso o inquérito pode gerar uma incerteza moral, que
do ponto de vista social é muito perigosa. Pode ser útil como
análise de uma determinada situação. Mas para nós que somos
seguidores do reino de Deus, deverá submeter seus resultados a
critérios diversos e superiores os da exigência doutrinal da fé e da
pastoral que devem guiar os cristãos pelas sendas do Evangelho.
Isto nos leva a refletir sobre se as inquietudes de que sofre a Igreja
em nossos dias, não são devidas principalmente à contestação
tácita ou aberta de sua autoridade, a saber, ao fato de por em
questão a confiança, a unidade, a harmonia, a união na verdade e
na caridade, tal qual a concebeu o Cristo e a instituiu, e qual a
tradição desenvolveu e nos transmitiu.
Por isso desejáramos que vossa visita piedosa e confiante ao túmulo
do Apóstolo, sobre o qual o Senhor fundou sua Igreja, seja
recompensada pela visão, é certo, ideal e celestial da Igreja, que
é una e santa, católica e apostólica, mas também pela visão
terrestre da Igreja real, naturalmente humana e imperfeita sempre,
que, porém, envida esforços admiráveis especialmente hoje, ao
mesmo tempo sofrendo e alegrando-se, para assimilar o pensamento do
Cristo, seja irradiando sua palavra e sua luz, seja encarnando os
dons, as necessidades, os sofrimentos do mundo presente. Pedro não
muda, este fato poderá trazer reconforto as vossas almas, que
experimentam neste momento uma secreta necessidade disso: o reconforto
da segurança. Pedro está vivendo sempre, vivendo deste Cristo que
passa do acontecimento de Belém para o acontecimento do último dia,
que passa pelos séculos em nossa história, sempre o mesmo e sempre
maior, como a árvore viva, fazendo medrar em cada estação novos
rebentos, de pequena semente.
Um mestre da antigüidade (aquele que nos deu a fórmula doutrinal da
tradição autêntica da Igreja, fórmula que o I Concílio do
Vaticano incorporou) disse o seguinte: "Na Igreja católica
devemos estar atentos em conservar o que tem sempre sido objeto de fé
de todos e por toda a parte"'. É são Vicente de Lérins, padre
da Igreja, monge muito erudito do século V, que nos oferece também
a fórmula do desenvolvimento doutrinal do cristianismo, quando nos
diz: "A doutrina da religião cristã se consolida com os anos,
desenvolve-se com o tempo, e se aperfeiçoa com a idade... hoc
idem floreat et maturescat... proficiat et perficiatur". Esta
fórmula não admite mudanças substanciais, mas explica a evolução
vital da doutrina e da disciplina da Igreja. É esta a mesma que
Newmann assumirá e por ela será conduzido à Igreja romana.
Podemos também nós meditá-la para compreender certas novidades na
Igreja de hoje, que embora importantes excluem qualquer adulteração
de sua pura ortodoxia, testemunhando sua perpétua e florescente
vitalidade.
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