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Alguns pensam que o Concílio já está superado. Não retendo dele
senão o impulso reformador, sem se ocuparem do que decidiram estas
solenes assembléias da Igreja, estas pessoas querem ir além. O que
têm em vista não são mais as reformas, mas transtornos e
agitações. Elas julgam poder permitir-se estas desordens, que
consideram tanto mais geniais quanto menos fiéis e menos em harmonia
com a tradição, atingindo, portanto, a vida da Igreja, e que
consideram tanto mais inspiradas, quanto mais em desacordo com a
autoridade e com a disciplina da Igreja, e tanto mais admissíveis,
quanto mais se adaptarem à mentalidade e à maneira de viver do mundo
atual.
Este espírito de crítica corrosiva tornou-se moda em certos
domínios da vida católica. Assim, certos jornais e revistas parecem
não ter outra finalidade senão a de darem informações capciosas
sobre os acontecimentos referentes à Igreja ou sobre pessoas que dela
fazem parte. Freqüentemente apresentam estas informações de maneira
unilateral, chegando por vezes a deformá-las e torná-las
dramáticas a fim de atrairem atenção e aguçar a curiosidade.
Acostumam assim os leitores a perderem o senso de um juízo sereno e
objetivo, para acomodá-los a uma atitude de suspeita, de
desconfiança sistemática, a um desdém preconcebido para com
pessoas, instituições e atividades da Igreja. Fazendo isso,
incitam seus leitores e adeptos a deporem o respeito e a solidariedade,
que todo bom católico e até todo leitor honesto devia ter para com a
comunidade cristã e para com a autoridade eclesiástica. Não é a
preocupação de dar informação exata e completa, nem o desejo de
exercer a correção fraterna, onde esta é justificada, mas o gosto
pelo sensacional, o atrativo da denúncia e da contestação, é que
guiam certos jornalistas. Semeiam a inquietude e a rebeldia nas almas
de tantos bons católicos e até de certos padres, sem falar de tantos
jovens ardorosos.
Assim aparece uma estranha mentalidade, que um eminente professor
protestante, numa conversação particular, qualificava de mentalidade
de medo. Medo estranho para certos católicos que receiam estar
atrasados no movimento das idéias. Medo que os leva a se alinharem
sem mais com o espírito do mundo e a adotar com simpatia as idéias
atuais, muitas vezes as mais opostas à tradição da Igreja. E
muitas coisas que, na minha opinião, dizia o professor, não estão
conformes ao espírito de Evangelho.
Que dizer diante de acontecimentos recentes, como a ocupação de
catedrais, a aprovação de filmes inadmissíveis, os protestos
coletivos e deliberados contra nossa recente encíclica, a propaganda
em favor da violência política para fins sociais, o conformismo e as
manifestações anárquicas de constestações globais e os atos de
intercomunhão contrários a uma justa linha ecumênica? Onde a
lógica e a dignidade próprias aos verdadeiros cristãos? Onde o
sentido da responsabilidade para com a profissão de fé católica,
nossa e dos demais? Onde o amor à Igreja?
O amor à Igreja! Queremos supor que ainda não esteja morto para
muitas pessoas que se dizem católicas e se apóiam no Cristo. Se
verdadeiramente o amam e querem de fato viver seu Evangelho, a
convergência na caridade devia estar sempre em ação e colocar-se em
evidência, afirmando-se com uma alegria que muitas vezes nos
falta. A convergência da caridade se dá na Igreja que, animada
pelo Espírito Santo, resulta da intercomunhão de todos os que vivem
a caridade. Desejamos tanto maior amor à Igreja, quanto maior é
nosso sentimento ao verificar que muitos destes católicos inquietos
são provenientes de alta vocação ao apostolado, isto é, a serviço
da Igreja e da sua expansão, e de ver como gastos por este elemento
corrosivo, este espírito de crítica negativa e constante, de que
falamos, eles se esvaziaram e se empobreceram a tal ponto de se
tornarem em certos casos incômodos e prejudiciais à Igreja de Deus.
Então é que nos acodem aos lábios as palavras de Jesus: "Inimici
hominis, domestici eius. Os inimigos do homem serão as pessoas de
sua própria casa" (Mt. 10,36).
Mas, no momento, é a vós que nos dirigimos, filhos fiéis, e
alegramo-nos ao ver em vós, os que, de coração humilde e leal,
querem bem à Igreja, e fazem eco em pensamentos e em atos a nosso
convite para amar a Igreja. Sim, chegou o momento de amar a Igreja
com coração firme e novo.
A dificuldade a superar é a nossa miopia espiritual, que limita nosso
olhar ao aspecto humano, histórico e visível da Igreja, sem ver o
mistério da presença do Cristo, que ela invoca e esconde aos olhos
profanos que não receberam a luz da fé nem compreenderam sua realidade
mística profunda. Este olhar confinado ao exterior, não vê senão
uma Igreja composta de homens imperfeitos e de instituições temporais
e estreitas, ao passo que desejava vê-la imediatamente toda
espiritual, perfeita e mesmo idealizada, conforme uma idéia
arbitrariamente preconcebida. A face concreta e terrestre da Igreja
opõe obstáculo ao amor fácil e superficial. Siga realidade
material, tal qual lios aparece tio quadro de experiência de cada um,
parece desmentir a beleza e a santidade que lhe foram conferidas por um
carisma divino. Mas é aí justamente que se prova o amor. Se nosso
dever é amar o próximo, seja qual for a aparência com que se nos
apresenta, e se este amor deve ser tanto maior quanto mais repugnante
se nos mostra esta aparência, então devemos recordar que a Igreja é
nosso próximo, e nosso próximo por excelência, pois ela é composta
de nossos "irmãos na fé" (Gal 6,10), e como tal lhe devemos
por prioridade amor efetivo.
Assim os defeitos e as enfermidades dos homens da Igreja deveriam
fortificar e encarecer o amor de quem queira ser membro vivo, são e
paciente da Igreja. Assim fazem os bons filhos e os santos.
Podemos até dizer mais: hoje a dificuldade em amar a Igreja em sua
realidade humana diminuiu. Atualmente a Igreja nos oferece uma face
mais digna de admiração do que de repreensão e de piedade. Hoje
em toda a Igreja há um esforço enorme com vistas à maior
autenticidade, de renovação, de vitalidade cristã e de santidade.
Esta santidade, diria, é talvez menos habitual e inerente ao meio,
contudo é mais pessoal e consciente, mais participada na comunidade e
ativa. Hoje a Igreja pós-conciliar é inteiramente voltada para sua
reforma interior Oração e dogma se esclarecem mutuamente e conferem
à vida espiritual um caráter de verdade e de plenitude em sua
conversação com Deus, uma profundidade interior, penetração nas
almas, expressão harmoniosa e unânime na celebração litúrgica dos
mistérios sacramentais Hoje todo bispo, toda diocese, toda
conferência episcopal, toda família religiosa, está se reformando e
contribuindo para que a vida católica se torne cada vez mais
autêntica. Hoje todo fiel é chamado à perfeição, cada leigo à
atividade apostólica, todo grupo à responsabilidade pela atividade
eclesial, toda consciência e toda comunidade à expansão missionária
e toda a Igreja à consciência de sua própria unidade e
catolicidade, enquanto a tomada de contatos ecumênicos, árdua, mas
leal e ardorosa, conduz os católicos à própria reforma e lhes
oferece uma capacidade nova para se empenharem num diálogo cordial com
os irmãos separados. Hoje a Igreja está toda voltada para as
fontes, para se sentir verdadeira e cheia de vida, plenamente aberta
ao mundo, procurando encontrar, numa simbiose com ele, sua função
própria ministerial de "luz" e de "sal" para a salvação de
todos. Hoje a tomada de consciência de sua peregrinação
escatológica torna-a pobre, livre e intrépida, e a reconduz à sua
missão primitiva de testemunha da ressurreição do Cristo, e de
fonte de esperança transcendente, que dá segurança e vigor a toda
honesta esperança terrestre.
Hoje enquanto se purifica de toda contaminação terrestre, a Igreja
anuncia e dá ao mundo uma energia moral incomparável, autêntica
solidariedade, a capacidade de conquistar toda a verdade e a riqueza da
criação, ao mesmo tempo que a alegria de viver na ordem e na
liberdade, na unidade e na paz.
Amar a Igreja, eis, amados filhos, o dever da hora presente.
Amá-la significa estimá-la e ser feliz em pertencer a ela.
Significa ser-lhe resolutamente fiel. Significa obedecer-lhe,
servi-la, ajudá-la com alegria até o sacrifício, na sua missão
difícil. Saber, harmonizar a dependência, que nos liga à
sociedade visível e mística, com o amor honesto e generoso de toda
outra realidade criada que nos cerca e nos possui: a vida, a
família, a sociedade, a verdade, a justiça, a liberdade, a
bondade.
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