26 DE MARÇO DE 1969. AUDIÊNCIA GERAL.

Os documentos conciliares falam da pessoa humana e da personalidade cristã, da consciência individual, da liberdade etc. Em suma falam da essência do homem, da sua dignidade e de seus direitos. Contudo, a quem não olhar para o conjunto da doutrina conciliar, pode parecer que o grande tema da vida interior, da religião pessoal, da adoração, da meditação, e da contemplação, tenha sido deixado ao estudo e à prática da iniciativa eclesial tradicional e privada. Por isso, há quem se queixe de que o Concílio não tenha dado suficiente apoio à piedade pessoal. Há quem se lastime de que exista, em alguns ambientes e em alguns períodos, certa decadência da religiosidade interior, no santuário de cada alma.

Para essa decadência contribui também a difusão de certas formas de atividade pastoral, por si legítimas e até louváveis, mas que podem induzir, se forem isoladas do contexto religioso da fé e da graça, a uma prevalência do estudo da vida religiosa e moral nos seus aspectos estatísticos, sociológicos, culturais e também artísticos e folclóricos, isto é, exteriores e parciais.

Outrossim, as referidas formas de apostolado, no caso em que se arrefece a vigilância sobre a ortodoxia doutrinal, conspiram também para a difusão perigosa - não queremos empregar outro termo de certas correntes de pensamento secularizado, que consideram e admitem apenas um cristianismo denominado horizontal, filantrópico e humanista, que prescinde de seu conteúdo essencial, vertical e teológico, dogmático e substancialmente religioso.

Devemos, por conseguinte, fazer duas coisas: em primeiro lugar, estudar melhor os ensinamentos do Concílio, depois integrá-los à luz daquele patrimônio doutrinal que o Concílio não repudiou absolutamente, mas, pelo contrário, confirmou, tornando-o mais vasto e mais orgânico, recomendando que fosse conservado e atualizado.

Estes ensinamentos conciliares contêm, com efeito, algumas indicações da importância de certos elementos religiosos, que não podem assumir seu valor autêntico e operante, a não ser na interioridade pessoal do homem.

Vamos brevemente referir-nos a uma destas indicações: o estudo da Sagrada Escritura, e o culto do Espírito Santo.

Todos aqueles que reconhecem a honra e o desenvolvimento que foram dados à "Liturgia da Palavra", sabem muito bem quanto interesse a Sagrada Escritura deve despertar na vida pessoal do cristão. Neste ponto, o Concílio recorda uma célebre palavra de são Jerônimo: "A ignorância das Escrituras é de fato ignorância de Cristo". Toda a constituição dogmática Dei Verbum faz apologia da Sagrada Escritura, como regra suprema de fé (nº21) , e diz que "é necessário que os fiéis tenham largo acesso a ela" (nº22).

Ora, sabe-se que a compreensão e assimilação da palavra de Deus, expressa na Sagrada Escritura, exige uma atitude religiosa pessoal, no silêncio interior, na meditação, na aceitação do magistério da Igreja, na experiência secreta da sua luz e da sua força espiritual, pois sem ele a semente da palavra de Deus fica infecunda e cria, em quem a ouviu sem torná-la própria, uma responsabilidade e não uma salvação.

Teríamos muito que falar sobre o Espírito Santo anunciado e exaltado por todo o Concílio. Não podemos deixar de retificar certas opiniões, que alguns têm sobre sua ação carismática, como se cada um pudesse pretender ser favorecido por ela, para subtrair-se à obediência à autoridade hierárquica, como se fosse possível apelar para uma Igreja carismática, em oposição a uma Igreja institucional e jurídica, como se os carismas do Espírito Santo, quando autênticos (1 Tes 5,19-22; 1 Tim 1,18), não fossem dons concedidos para a utilidade da comunidade eclesial, para a edificação do Corpo místico de Cristo (1 Pdr 4,10) e não fossem outorgados de preferência a quem na Igreja, desempenha funções especiais de governo (1 Cor 12,28) e não fossem sujeitos à autoridade da hieraquia.

Mas, para quem viver da Igreja e com a Igreja, resta o grande mistério da sua vivificação, por virtude do Espírito Santo. Vivificação que o Concílio pôs em grande evidência, e que nos obriga a apreciá-lo onde ele está presente, e opera na oração, na meditação, na consideração da presença do Cristo entre nós (Ef 3,17), em julgar a caridade como grande e primeiro carisma (1 Cor 12,31) e em conservar ciosamente o estado de graça.

A graça é a comunhão de vida divina em nós. Por que hoje se fala dela tão pouco? Por que tantas pessoas parecem não fazer caso dela, mais solícitas em enganar a si mesmas sobre a liceidade de toda experiência proibida, e em apagar em si mesmas o senso do pecado, do que em defender na própria consciência o testemunho interior do Paráclito (Jo 15,26).

A esta espiritualidade nós vos convidamos, filhos caríssimos. Não se trata de uma espiritualidade puramente subjetiva, que exclui o conhecimento das necessidades alheias. Não se trata de uma inibição ante a vida cultural e exterior em todas as suas exigências. É a espiritualidade do amor, que é Deus na qual Cristo nos iniciou, e que o Espírito Santo dota, com seus sete dons de maturidade cristã.