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As palavras que nos vêm aos lábios são as mesmas que Jesus dirigiu
a seus discípulos, que não eram mais que onze, logo após a saída
do traidor: "Que vosso coração não se perturbe. Tende fé em
Deus e crede também em mim" (Jo 14,1). Sim, é o que
desejamos para vós, e ao que exortamos: Tende fé em Deus e no
Cristo. É o tema do ano que finda neste mês, precisamente
denominado Ano da Fé em recordação e em homenagem ao centenário do
martírio dos santos apóstolos Pedro e Paulo.
Pronunciando estas palavras solenes e abençoadas, não vos escondemos
o contraste que elas opõem às idéias explosivas que circulam hoje no
mundo sobre o santo nome de Deus. Idéias tais, quais vagas
perigosas, sufocam a fé simples de muitos do nosso tempo. Destas
certamente já ouvistes falar, talvez até haveis de experimentar o
sentimento que elas procuram penetrar à força em vossas almas e se
introduzirem furtivamente em vossos corações, exercendo sobre vós
uma sedução lógica e convincente. São numerosas, graves e
complexas. Tomam nomes novos e estranhos, como secularização,
desmitização, dessacralização, contestação global, finalmente,
ateísmo ou antiteísmo, isto é, ausência ou negação de Deus, um
e outro apresentando-se com cem facetas diferentes, segundo as escolas
filosóficas que inspiram esta negação, ou movimentos sociais e
políticos que se arvoram em apóstolos e defensores de tais idéias,
quando não se trata de uma completa ausência de qualquer sentimento ou
prática religiosa.
Que turbilhão tenebroso envolve a fé em Deus em nossos dias!
Chegou a tal ponto que podemos resumir tudo numa única questão:
pode-se ainda crer em Deus hoje? Sim, ainda é possível hoje crer
em Deus e em Jesus Cristo. Podemos mesmo ir além desta
afirmação. Hoje melhor que ontem é possível a fé em Deus, se é
verdade que a inteligência humana é mais desenvolvida, mais preparada
para refletir e mais apta a procurar as razões últimas e profundas das
coisas.
Com efeito, tudo está nisso: saber pensar bem. Quando falamos
assim, não se pode esquecer que nesta ocorrência tomamos a palavra
fé em seu sentido primitivo de conhecimento natural de Deus, a
saber, deste conhecimento que podemos ter da divindade pelas próprias
forças de nossa inteligência, visto que se a empregamos para designar
o conhecimento sobrenatural de Deus, resultante da Revelação, as
forças naturais de nossa inteligência, apesar de necessárias e
úteis já não bastam. Devem ser mantidas por uma ajuda particular de
Deus mesmo, que chamamos de graça. A fé é então um dom que Deus
nos concede. É esta virtude teologal que, não obstante o mistério
que envolve a Deus, nos dá a certeza e a satisfação resultantes de
tantas verdades que a ele se referem. No momento, atemo-nos ao
primeiro sentido, que chamamos de conhecimento racional de certas
verdades religiosas, e antes de tudo a existência de Deus, hoje tão
discutida e contestada.
Afirmamos que esta verdade é fundamental e as múltiplas objeções
lançadas contra ela não a podem abalar. Mas atenção: afirmar que
Deus existe é uma coisa, outra coisa é dizer o que ele é. Podemos
conhecer a existência de Deus, com certeza, mas sempre será com
bastante imperfeição que conheceremos sua natureza, vale dizer, o
que ele é em si. Para chegar à certeza desta inefável e soberana
existência, basta, dizíamos, saber pensar. O ensinamento
categórico do I Concílio do Vaticano nos dá garantia disso.
Resumindo a doutrina secular da Igreja, e, podemos acrescentar, a
filosofia humana, afirma com efeito, "que se pode conhecer a Deus
com toda a segurança, o princípio e o fim de todas as coisas, pela
luz natural da razão ou por meio das coisas criadas". Por que então
tantos homens, até os mais cultos, dizem o contrário? Porque não
usam sua inteligência conforme as leis autênticas do pensamento na
pesquisa da verdade.
Sabemos que é grave afirmar isso, no entanto é assim. Podia-se
abrir um debate sem fim sobre a necessidade e a arte de bem pensar,
segundo as exigências e os critérios autênticos da sabedoria humana e
conforme à lógica requerida tanto pela consciência como pela
linguagem honesta e correta do senso comum. Ora, é precisamente esta
perspectiva do pensamento religioso que parece natural e inscrita, seja
na inteligência sadia do homem, seja no relacionamento da verdade que
estabelece com as coisas conhecidas, que é contestada hoje, como uma
pretensão ingênua e de outra época, ao passo que ela é e será
sempre o caminho magistral, que conduz o espírito humano
necessariamente do mundo sensível e científico, ao limiar do mundo
divino.
Deixemos todavia de lado, apesar de sua importância, os sistemas
filosóficos que tratam deste grave problema. A simplicidade deste
contato convosco nos autoriza a fazê-lo. Limitar-nos-emos a
indicar um dos obstáculos maiores que freia hoje em dia a marcha do
pensamento em direção à sua meta, que é Deus, o qual dá sentido
e valor a todo o saber humano. Queremos falar da mentalidade
técnica, enraizada na mentalidade científica, que está de parabéns
pelo seu brilhante sucesso no domínio maravilhoso dos instrumentos
numerosos e de grandes efeitos, colocados em mãos dos homens, os
quais, orgulhosos de suas invenções e ao mesmo tempo libertados de
suas tarefas cansativas, se encontram projetados no reino da
ciência-ficção, em que tudo parece explicável e possível, sem o
recurso ao pensamento ou à prece a um Deus transcendente e
misterioso. O domínio das coisas e das forças sobrenaturais, o
primado da ação prática e útil, a organização inteiramente nova
da vida, beneficiando múltiplas aplicações da técnica, suprimem no
homem a lembrança de Deus e extinguem nele a necessidade da fé e da
religião.
Mas se este fato, corno reconheceu o Concílio, "pode tornar mais
difícil o acesso a Deus", contudo, não o impede. Ao
contrário, deveria facilitá-lo, estimulando a descoberta das
profundezas existenciais da natureza e favorecendo a experiência do
gênio humano, que não inventou estas insondáveis profundidades, mas
as descobre e utiliza. Trata-se de abrir bem os olhos, isto é, de
usar da inteligência, porque ela é capaz, para que consiga divisar
além da tela sensível e buscar tanto as coisas essenciais como as
causas essenciais das coisas.
Aí então a transparência do reino de Deus se revela e longe de
desprestigiar o reino da natureza, a ciência que o explora e a
técnica que o subjuga, essa transparência lança uma luz nova sobre
os admiráveis valores de uma beleza toda nova e libertadora, capaz de
emancipar o mundo tecnológico deste sentimento de organização
opressiva, desta angústia inevitável que resulta dos limites do cerco
materialista, traduzido nestes últimos dias em manifestações
violentas e irracionais, com que denunciando a insuficiência
fundamental de nossa civilização, inapta para satisfazer as
exigências inalienáveis do espírito humano. Deus é tão
necessário quanto o sol.
Se, para os homens de hoje, é difícil conscientizar-se disso, é
porque devemos precisamente purificar a idéia banal e falsa que fazemos
da divindade e fazer um esforço contínuo para recobrar ao nome de
Deus a riqueza infinita de sua insondável transcendência, de sua
ternura inefável, penetrada de respeito e amor, de sua imanente
onipresença. Sim, devemos crer em Deus.
Mas este esforço não supera nossas forças, já que a mentalidade
moderna nos debilitou de tal maneira a ponto de nos acostumar ao brado
blasfematório: Deus morreu? Certo, é difícil. Contudo, o
Mestre vem e acrescenta: "Crede também em mim". O Cristo nos
dá, portanto, habilidade para a fé, tanto natural como
sobrenatural. Santo Agostinho nos lembra: "A fim de que o homem
pudesse caminhar com plena segurança para a verdade, a própria
verdade, Deus, Filho de Deus, tornando-se humano, sem deixar de
ser Deus estabeleceu e fundou a fé, para que a rota do homem em
direção a Deus fosse livre ao homem pelo Homem-Deus. Assim entre
Deus e os homens, o intermediário é o homem Jesus Cristo".
Ouvi sua voz, caros filhos, "crede em Deus e crede também em
mim". É a voz da verdade e da salvação.
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