30 DE JUNHO DE 1968. MENSAGEM AOS PADRES DO MUNDO TODO, NO FIM DA MISSA CELEBRADA NA PRAÇA DE SÃO PEDRO COMO CONCLUSÃO DO ANO DA FÉ.

A vós, padres da santa Igreja católica, a vós caros filhos entre todos os demais, cuja ordenação fez que sejamos irmãos e colaboradores no ministério da salvação, como o sois de vossos respectivos pastores, a vós queremos dirigir diretamente uma palavra hoje, no momento em que encerramos o Ano da Fé, comemorando o décimo nono aniversário do martírio dos dois apóstolos Pedro e Paulo. Uma palavra breve e simples, mas especialmente para vós.

Há tempo que a tínhamos no coração, para vo-la dizer. Como vosso irmão, desde sempre, isto é, desde o dia em que tivemos como partilha o precioso destino de sermos ordenados sacerdotes, e de sentir a nova e profunda solidariedade que nos ligava a todos os nossos colegas: sendo todos escolhidos para personificar o Cristo no dom de nós mesmos à vontade do Pai, à santificação, à direção e serviço dos fiéis, ao empreendimento da salvação do mundo. Nunca nos faltou, com respeito a vós, padres, a união de reverência, de simpatia e de fraternidade. Depois, quando a Igreja nos chamou ao exercício das funções pastorais, primeiro como bispo, depois como papa, o pensamento do clero se tornou em nós uma preocupação interior profunda, cheia de estima, de solicitude e de caridade. Lamentamos muito não vos ter falado suficientemente, não vos ter testemunhado mais freqüentemente e por gestos mais significativos, o sentimento que o Espírito do Senhor incutia e incute sempre em nosso coração, em consideração a vós. Sentimento que sobe do coração e arrasta consigo todos os demais pensamentos e sentimentos, que nosso ministério faz brotar de nossa consciência: sois vós, padres, que, sobre todas as coisas e com as coisas na ordem da caridade, ocupais com vossos bispos, nossos irmãos, o primeiro lugar.

Esta é a razão por que vos falamos hoje. Não é uma encíclica que vos dirigimos, não é uma instrução, não é um ato portador de disposições canônicas, é uma simples efusão do coração: "Nós vos falamos com toda a liberdade... Nosso coração está inteiramente aberto" (2 Cor 6,11). Esta comemoração centenária dos apóstolos que, pela mensagem evangélica e pelo seu sangue, colocaram as bases da Igreja romana, nos obriga a vos abrir nossa alma por um instante.

Com grande admiração, com imensa afeição. Conhecemos vossa fidelidade ao Cristo e à Igreja. Conhecemos vosso empenho, vosso zelo. Conhecemos vossa dedicação ao ministério, vossa solicitude no apostolado. Estamos ciente também do respeito e da gratidão que suscitam entre tantos fiéis o vosso desinteresse evangélico, a vossa caridade apostólica. Os tesouros de vossa vida espiritual, de vossos contatos com Deus, e de vosso sacrifício junto com o Cristo, vosso entusiasmo pela meditação e contemplação, no seio mesmo da ação, tudo isso nos é bem conhecido. Somos tentados a repetir a propósito de cada um de vós as palavras do Senhor no Apocalipse: Conheço tuas ações, teu trabalho e tua paciência (Apoc 2,2). Quanta emoção, quanta alegria nos oferece este espetáculo! Que gratidão! Nós vos agradecemos e vos abençoamos em nome do Cristo pelo que sois, e pelo que fazeis na Igreja do Cristo. Sois nela os melhores obreiros com vosso bispo, e dela sois as colunas, os mestres, os amigos, os dispensadores diretos dos mistérios de Deus (1 Cor 4,1; 2 Cor 6,4).

Queríamos manifestar-vos esta efusão de nosso coração, a fim de que cada um de vós se saiba e sinta estimado e amado, e para que cada um de vós goze da comunhão conosco, no grande desígnio e no assíduo esforço do apostolado.

Não se trata de uma visão míope e irônica. Ao lado de tantos padres, que encontram no ministério a serenidade e a alegria, e cuja voz não se faz ouvir tão estrepitosamente como outras, sabemos que existe mais de uma situação dolorosa. Há entre alguns membros do clero uma inquietude, incerteza sobre sua condição eclesiástica. Eles se consideram marginalizados da evolução atual.

É verdade, os padres não estão ao abrigo das repercussões da crise de transformação, que sacode o mundo hoje. Como todos os seus irmãos na fé, eles não ignoram também as horas de obscuridade, na sua marcha para Deus. Ademais, sofrem, de maneira às vezes parcial ou injusta, pelo modo como certos fatos são interpretados a respeito da vida sacerdotal, e injustamente generalizados. Pedimos, portanto, aos padres que se recordem de que a situação de cada cristão, em particular a do sacerdote, será sempre uma situação paradoxal e incompreensível aos olhos de quem não tem a fé.

Será então no aprofundamento de sua própria fé que a situação atual deverá convidar o padre a uma tomada de consciência, cada vez mais clara, daquilo que ele representa, dos poderes de que está revestido, da missão de que está encarregado. Caros irmãos e filhos, pedimos ao Senhor que nos faça capaz e digno, para vos oferecer alguma luz, um pouco de reconforto.

A todos os padres dizemos: não duvideis nunca da natureza de vosso ministério sacerdotal. Não é um ofício ou serviço qualquer, a se exercer pela comunidade eclesial. É um serviço que participa de modo particular, por meio do sacramento da ordem e com caráter indelével, do poder do sacerdócio do Cristo.

Podemos, portanto, colocar em evidência algumas dimensões próprias ao sacerdócio católico. Primeiramente a dimensão do sagrado. O padre é um homem de Deus, é o ministro do Senhor: pode executar atos que ultrapassam a eficacidade natural, porque age in persona Christi, na pessoa do Cristo. Passa através dele uma força misteriosa e superior, da qual ele se torna instrumento eficaz, humilde e glorioso, em certos momentos. É o veículo do Espírito Santo. Uma relação única, uma delegação, uma confiança divina passam entre ele e o mundo divino.

Este dom, porém, o padre não o recebe para si, mas para os outros. A dimensão sagrada é inteiramente ordenada para a dimensão apostólica, a saber, para a missão e ministério sacerdotal.

Sabemo-lo bem, o padre é um homem que não vive para si, mas para os outros. É o homem da comunidade. Em nossos dias este aspecto da vida sacerdotal é o mais bem compreendido. Há quem encontre nisso uma resposta às questões agressivas sobre a sobrevivência do padre no mundo moderno, que chegam até a questinonar se o sacerdócio ainda tem razão de existir. O serviço que presta à sociedade, à sociedade eclesial em particular, justifica amplamente a existência do sacerdote. O mundo tem necessidade disso. Também a Igreja.

Dizendo isso, toda a série de necessidades humanas desfilam diante de nosso espírito. Qual a categoria de pessoas que não tem necessidade da pregação cristã, da fé e da graça? Que homem não tem necessidade de encontrar alguém que se dedique a ele com desinteresse e amor? Até onde não se estendem os limites da caridade pastoral? Não é lá onde o desejo desta caridade i se manifesta menos, que sua necessidade é maior? Sim: as missões, a juventude, a escola, os doentes, e em nossos dias com urgência mais solícita, o mundo operário constituem um chamado contínuo no coração do padre. Duvidaremos ainda em encontrar um lugar, uma tarefa, uma missão na vida moderna? Antes seria mister dizer: como fazer para responder a todos os que têm necessidade de nós? Como corresponder por nosso sacrifício pessoal, ao aumento dos deveres pastorais e apostólicos?

Talvez nunca como no presente a Igreja tomou consciência de ser um 'meio indispensável de salvação, nunca no passado o dinamismo de sua "dispensatio" foi tão importante como na hora atual. Iríamos nós sonhar um mundo sem igreja, e uma igreja sem ministros, preparados, especializados e consagrados! O padre é em si o sinal do amor do Cristo pela humanidade, o testemunho do empenhamento total, por onde a Igreja procura realizar este amor, que vai até à cruz.

Da consciência viva de sua vocação, de sua consagração como instrumento do Cristo, a serviço dos homens, nasce nos sacerdote a consciência de outra dimensão, a dimensão mística e ascética que qualifica sua pessoa. Se todo o cristão é templo do Espírito Santo, qual será a conversação interior da alma sacerdotal, com a Presença que habita nele, que o transfigura, atormenta e embriaga? Estas palavras do Apóstolo dirigem-se a nós, padres: ... este tesouro nós o levamos em vasos de barro, para que se veja bem que este extraordinário poder pertence a Deus e não vem de nós (2 Cor 4,7).

Filhos e irmãos padres, como se afirma e como se alimenta em nós esta consciência? De que maneira arde em nós a lâmpada da contemplação? Como nos deixamos atrair por este ponto central de nossa personalidade e desviar, por uma pausa de instantes, para uma conversação interior, as obrigações que nos solicitam do exterior? Será que conservamos o gosto pela oração pessoal, a meditação, o breviário? Como esperar que nossas atividades dêem seu rendimento máximo, se não sabemos haurir na fonte interior do colóquio com Deus as melhores energias que só ele pode outorgar? Onde encontrar a razão primeira, a força suficiente para o celibato eclesiástico, senão na exigência e plenitude da caridade infundida em nossos corações consagrados ao único amor e ao serviço total de Deus e de seu desígnio de salvação?

Mas as estruturas, dizem alguns, não são mais aptas, em nossos dias, para permitirem a realização efetiva desta dedicação fecunda e enaltecedora. Aí encontramos a quarta dimensão do sacerdócio: a dimensão eclesial. O padre não é um solitário. É membro de um corpo organizado, a Igreja universal, a diocese, e no caso típico -diríamos, supereminente - membro de sua paróquia. É toda a Igreja que deve adaptar-se às novas necessidades do mundo. Depois de terminado o Concílio, a Igreja está inteiramente empenhada nesta renovação espiritual e orgânica. Ajudemo-la pela nossa colaboração, por nossa adesão, por nossa paciência.

Irmãos e filhos caríssimos, tende confiança na Igreja. Alimentai um grande amor por eia. Pois ela é o objeto imediato do amor do Cristo: Dilexit ecclesiam (Ef 5,25). Amai-a em seus limites e defeitos. Não em razão de seus limites e defeitos, é claro - e talvez suas faltas, quem sabe -mas porque é somente amando-a que poderemos curá-la e fazer brilhar sua beleza de esposa do Cristo. A Igreja é que salvará o mundo, a Igreja que é a mesma hoje, ontem e amanhã, e que encontra sempre, guiada pelo Espírito e secundada por seus filhos, a força de se renovar, de se rejuvenecer, dando uma resposta nova às necessidades sempre atuais.

Pensamos nos inúmeros padres, lançados num esforço metódico de enriquecimento no estudo da palavra de Deus, na aplicação justa e fiel da reforma litúrgica, no crescimento do serviço pastoral junto aos humildes, e necessitados de justiça social, na educação do povo para a paz e liberdade, na aproximação ecumênica dos irmãos cristãos separados de nós, no humilde cumprimento cotidiano dos deveres, que lhes são determinados, e especialmente no amor difusivo ao Senhor Jesus, a Nossa Senhora, à Igreja e a todos os homens. Isso é para nós motivo de consolo e edificação.

Enquanto estes sentimentos se aninham em nosso coração, caros padres, estejais perto ou distantes, nesta celebração dos santos apóstolos e mártires Pedro e Paulo, nós vos saudamos e traçamos sobre vós todos a nossa bênção.

Da Basílica Vaticana, aos 30 de junho de 1968.