3 DE JULHO DE 1968. AUDIÊNCIA GERAL.

Tivestes conhecimento ou pelo menos um eco da profissão de nosso Credo, com que encerramos formal e solenemente o "Ano da Fé". Mas tal encerramento pode antes ser chamado um princípio, já não de um outro ano dedicado ao mesmo tema, porém, das conseqüências que ele desejara produzir. Estas são sem número e sem fim. Uma profissão de fé não pode ser mais do que um resumo, um "símbolo" como se diz na linguagem teológica tradicional, uma "regula fidei, uma regra de fé", que contém as principais verdades da fé em termos de autoridade, mas quanto possível condenados e abreviados. Desde a antiguidade cristã, era uma síntese dos dogmas fundamentais do ensinamento doutrinal, que os candidatos ao batismo deviam aprender e recitar de cor.

Esta profissão resumida das verdades da fé, exige em seguida um estudo, um desenvolvimento, um aprofundamento. É este o dever de todos os crentes. Aqueles que sabem passar das fórmulas do catecismo à exposição mais orgânica e completa das verdades da fé, das palavras áridas ao desenvolvimento doutrinal e melhor ainda das expressões verbais à alguma inteligência real das próprias verdades, experimentam ao mesmo tempo alegria e admiração: alegria pela riqueza e beleza das verdades religiosas, e admiração por sua profundidade e amplidão, que nossa inteligência pode entrever, mas não medir. Esta é a maior experiência que nosso pensamento pode fazer. É essa também a tarefa dos mestres, dos teólogos, dos pregadores, aos quais este momento histórico da Igreja oferece uma estupenda missão, a de penetrar, purificar, exprimir os enunciados da fé em termos novos, belos, originais, vividos, compreensíveis, os sempre idênticos e imutáveis tesouros da revelação, "na mesma doutrina, no mesmo sentido, no mesmo pensamento", como disse o Vaticano I.

Pode-se, portanto, dizer que um trabalho recomeça, isto é, sucede à afirmação da fé, que o ano que acaba de se encerrar nos deu a feliz ocasião de proclamar. Devemos aplicar-nos todos a um estudo sério da nossa religião. Esperamos que em todos os países haverá uma nova floração original de literatura religiosa.

Há, porém, outra conseqüência que decorre de uma profissão de fé, e é a coerência da vida com a própria fé. Jamais teremos dado suficiente importância a esta coerência entre a fé e a vida. Não basta conhecer a palavra de Deus, é preciso vivê-la. Conhecer e não aplicar a fé à vida, seria grave ilogismo, e acarretaria séria responsabilidade. A fé ao mesmo tempo é um princípio de vida sobrenatural e um princípio de. vida moral. A vida cristã nasce da fé. Beneficia-se da incipiente comunhão, que ela estabelece entre Deus e nós. Faz circular seu misterioso e infinito pensamento no nosso, dispõe-nos àquela comunhão vital que une nossa existência, apenas criada, com o ser incriado e infinito que é Deus. Mas ao mesmo tempo introduz em nossa mente e em nossa ação, um engajamento, um critério espiritual e moral, uru elemento que qualifica nossa conduta: faz-nos cristãos. Deve-se sempre recordar a repetida fórmula do apóstolo: "Justus ex fide vivit", que podemos traduzir assim: "O cristão vive da fé" (Rom 1,17; Gal 3,11; Hebr 10,38).

Agora nos interessa este aspecto da vida religiosa. Como tornar nossa vida conforme à fé? Como podemos imaginar o tipo moderno do crente? Qual a vocação do fiel hoje, quando quer tomar a sério as conseqüências do seu próprio credo? Temos em mente o que o Concílio proclamou "que todos os fiéis de qualquer estado ou forma de vida, são chamados à plenitude da vida cristã, e à perfeição da caridade", e acrescenta: "Mesmo na sociedade terrena esta santidade concorre para promover um padrão de vida mais humano".

Esta declaração do Concílio, a respeito da vocação de todos e de cada um à santidade, corresponde "aos vários gêneros de vida e aos vários ofícios" e é de capital importância. "Cada qual, prossegue, segundo os próprios dons e ofícios, deve resolutamente avançar pelo caminho da fé viva, a qual desperta a esperança e opera por meio da caridade". Para isso deveria desaparecer o cristão, que não observa os deveres de sua elevação a filho de Deus, irmão de Cristo, membro da Igreja. A mediocridade, a infidelidade, a inconstância, a incoerência, a hipocrisia, deveriam desaparecer da figura, da tipologia do crente moderno. Uma geração penetrada de santidade, deveria caracterizar o nosso tempo. Não só nos poremos à procura do santo singular e excepcional, mas deveremos promover e criar uma santidade do povo, assim como nos primeiros albores do cristianismo o queria são Pedro, quando escreve as célebres palavras: "Vós sois uma estirpe eleita, um sacerdócio régio, uma nação santa, um povo redimido... vós que em certo tempo não éreis seu povo, mas agora sois o Povo de Deus" (1 Pdr 2,9-10).

Reflitamos bem. Será possível atingir semelhante alvo? Não se trata de um sonho? Como poderia o homem comum do nosso tempo conformar a própria vida a um ideal autêntico de santidade, na medida em que se possa acomodá-lo às exigências honestas e legítimas da vida moderna? Hoje ainda mais quando tudo é posto em "contestação", quando já não se quer derivar da tradição as normas para a orientação das novas gerações, quando a transformação dos costumes é tão premente e manifesta, quando a vida social absorve e domina a personalidade individual, quando tudo é secularizado e dessacralizado, quando já ninguém sabe qual seja a ordem constituída ou a constituir, quando tudo se tornou problema e quando não se aceita que qualquer autoridade normal sugira soluções razoáveis, e na linha da experiência histórica comprovada?

Não se deve fechar os olhos à realidade ideológica e social que nos cerca. Antes faremos bem encarando-a de frente com corajosa serenidade. Não poderemos tirar muitas conclusões favoráveis a nossos princípios, diante do humanismo privado da luz de Deus. Mas agora urge responder à pergunta que fizemos, e que convém repetirmos no íntimo de nossa consciência: Pode o homem hoje ser verdadeiramente cristão? Pode o cristão ser santo (no sentido bíblico do termo)? Pode nossa fé ser realmente um princípio de vida concreta e moderna? Pode ainda um povo, uma sociedade, uma comunidade pelo menos, exprimir-se em formas autenticamente cristãs?

Eis, caros filhos, uma boa ocasião para pormos imediatamente em ação nossa fé. Respondamos que sim. Nada nos deve atemorizar nem deter. É de santa Teresa as palavras: "Nada te espanta". Repitamos a nós mesmos as palavras de são Paulo aos romanos: "Se confessares com os lábios o Senhor Jesus, e se creres no coração que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo" (Rom 10,11). Eis a bússola. No mar sem fé e agitado do mundo presente, guardemos esta suprema rota: Jesus Cristo. Ele luz do mundo e de nossa vida, infunde em nossos corações duas certezas imediatas fundamentais, uma sobre Deus, outra sobre o homem. Uma e outra a promover com total dedicação de amor. Assim nada temeremos: "Quem nos separará do amor do Cristo? A tribulação, a fome, a angústia, a nudez, o perigo, a perseguição, a espada?... Em tudo isso somos mais que vencedores, por obra daquele que nos amou" (Rom 8, 35-37).