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Caríssimos irmãos,
Este encontro anual no início da Quaresma "in capite ieiunii",
como diz a tradição ascética e litúrgica da Igreja,
proporciona-nos imediatamente um clima de confiança recíproca, assim
espero, embora neste colóquio espiritual e familiar seja eu vosso
bispo o único interlocutor, a quem sois convidados individualmente a
responder no silêncio de vossas almas. E sou-o de fato com a
simplicidade e o afeto próprio do coração sacerdotal.
Falei de coração sacerdotal. Julgo que também o vosso, algumas
vezes, fica inquieto e perturbado ante o aparecimento de questões e
problemas que neste período pós-conciliar também se verificou no
lago, ordinariamente tranqüilo, de nossa psicologia pessoal.
Que aconteceu? A investigação das causas e o exame do fenômeno
deste estado de alma, que não é habitual num sacerdote, exatamente
em virtude daquilo que ele é, e daquilo que ele faz, deu origem,
como sabeis, a muitos estudos, a muitas publicações, a muitas
discussões e entre vós certamente também a muitas reflexões.
O período crítico que estamos atravessando fez com que nossa casa
fosse investida pela vaga agressiva do seu influxo, que, sob certos
aspectos, é providencial, embora seja perigosa e negativa sob outros.
Obrigou-nos a refletir novamente sobre o nosso sacerdócio, em todos
os seus elementos: bíblicos, teológicos, canônicos, ascéticos e
operativos. Dado que esta reflexão se encontrou perante o turbilhão
provocador das mudanças vida moderna, tanto no campo intelectual,
como, principalmente, no campo prático, operativo e social, nasceu
também em nós a pergunta se a vida sacerdotal tradicional não deve
ser estudada dentro de um novo contexto histórico e espiritual.
Enquanto o mundo se transforma, podemos nós, porventura, permanecer
imóveis, como se estivéssemos canonicamente mumificados em nossa
mentalidade cristalizada, e nos nossos hábitos tradicionais, cujo
significado e valor, em alguns casos, nem a sociedade que nos
circunda, nem nós próprios compreendemos?
Além desta tremenda solicitação exterior, houve o Concílio com a
sua autoridade e sabedoria, que tornou mais forte a nossa esperança em
certa renovação, falando-nos de atualização, a qual foi
interpretada por algumas pessoas, para justificar e até fazer a
apologia de um critério extremamente delicado, o do relativismo
histórico, da adaptação dos tempos, aos famosos "sinais dos
tempos", como se eles fossem evidentes e todos pudessem
interpreta-los livremente; o do conformismo em relação ao mundo, a
este mundo em que nos encontramos e no qual o Concílio exortou a
Igreja a imergir-se, para cumprir a sua missão, em vez de se
afastar dele programaticamente.
O assalto deste desejo de novidade, muitas vezes também provocou em
nós eclesiásticos uma sensação de vertigem (Is 19,14),
certa falta de confiança na tradição, certa desestima por nós
mesmos, febre de mudanças, necessidade caprichosa de "espontaneidade
criativa" etc.
Nesta vasta e complexa tentativa de transformar a vida eclesiástica,
até se inseriram intenções subjetivamente retas e generosas.
Indicamos duas apenas para vos demonstrar que seguimos este fenômeno
com dedicada atenção.
A primeira, muito dolorosa, consiste na vontade de sair do estado de
frustração, como hoje se diz, ou, por outras palavras, a vontade
de eliminar o sentido de inutilidade que alguns. experimentam, em
conseqüência da própria inserção paralisadora na disciplina da
organização eclesiástica. Para que serve - perguntam-se - ser
sacerdote? E esta pergunta torna-se amarga e angustiante na
comunidade, onde estes sacerdotes trabalhavam, que se transformou
profundamente no número e nos costumes, e na qual o ministério do
sacerdote, arraigado ao seu lugar e aos seus hábitos, parece ter-se
tornado supérfluo ou ineficaz. A objeção da inutilidade da própria
vida, especialmente nos nossos dias, em que nos sentimos atraídos
pela eficiência utilitária, causa grande tormento e merece remédio
adequado ou pelo menos compreensão amorosa.
A outra intenção, também ela certamente inspirada pelo desejo do
bem, é a daqueles que gostariam de se libertar de toda e qualquer
distinção clerical ou religiosa de ordem sociológica, de hábito,
de profissão ou de estado, para se assimilarem aos outros homens e aos
seus costumes, numa palavra, para se laicizarem, a fim de poderem
penetrar mais facilmente, como dizem, na sociedade. Trata-se de uma
intenção missionária, se quiserdes, mas bastante perigosa e
prejudicial, se acabar por perder aquela específica virtude de
reação contra o ambiente, exigida pela nossa definição de "sal da
terra"; e levar o sacerdote a cair num estado de inutilidade, muito
pior do que a indicada anteriormente. É o Senhor quem diz: " ...
se o sal se corromper, com que se há de salgar? Não serve para mais
nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens" (Mt
5,13).
Lede, caríssimos irmãos, no esquema sobre o sacerdócio ministerial
discutido no recente Sínodo dos bispos, a parte introdutória, onde
em síntese breve, mas densa e vigorosa, se descreve a condição
problemática do sacerdote em nossos dias. Vereis assim a
benevolência e afeto com que a Igreja considera a presente situação
do clero. O realismo e o amor caracterizam este estudo grave, mas ao
mesmo tempo respeitoso e otimista.
Agora, porém, prestemos atenção a um fato importante. Nesta
difícil situação interna e externa, relativa ao nosso sacerdócio,
há um problema que sobressai entre os outros, e em sentido resume
todos eles. É o problema que em nossos dias se tornou habitual na
complexa discussão que nos diz respeito, o problema da chamada
identidade do sacerdote: quem é o sacerdote, o padre? Na religião
cristã existe realmente o sacerdote? Se existe um ministro do
Evangelho, que figura deve assumir?
Todas as tentações da primitiva contestação protestante se tornaram
vivas e insinuantes. E talvez até tenham recrudescido - é um
mistério, mas não imaginação - as tentações mais profundas de
origem preternatural, as da dúvida, não como método de
investigação, mas como resposta desconsolada por não ter encontrado
a verdade, as da incerteza, que chegam até à cegueira, admitida
como atitude dramática e aristocrática de um espírito que já não
possui a luz interior. Estas tentações entram até na cela da
consciência íntima do sacerdote, para confundir nele a feliz certeza
interior de seu estatuto eclesial: Tu es sacerdos in aeternum, tu és
sacerdote para sempre, substituindo-a por esta pergunta: quem sou
eu?
Não lhe bastava a resposta que a Igreja sempre deu e que nos foi
transmitida durante os anos de seminário, acesa como uma lâmpada
inextinguível no âmago de nossa alma, assimilada e tornada congênita
à nossa mentalidade pessoal? Esta interrogação, à primeira
vista, parece supérflua e perigosa, é verdade. O fato, porém,
de ela ter sido lançada, como uma flecha, no coração de muitos
sacerdotes, de numerosos jovens que estão prestes a serem ordenados,
e também de alguns irmãos no sacerdócio que já atingiram a plenitude
da maturidade, não pode ser negado.
A tendência de alguns sacerdotes, que se encontraram nesta dolorosa
situação de duvidarem de si próprios e da autoridade da Igreja,
tendência de per si hipoteticamente legítima, mas que se transforma
imediatamente em tentação e desvio, dada a impossibilidade de se
encontrar uma resposta satisfatória, foi a tendência de procurar a
definição da identidade do sacerdote no registro profano, ou fora da
nossa casa, especialmente no registro da sociologia, da psicologia,
no confronto com denominações cristãs que se afastaram da raiz
católica, ou, por fim, no do humanismo que apresenta este axioma: o
sacerdote é primeiro que tudo um homem completo como todos os outros.
Detemo-nos nesta análise apenas para acompanhar espiritualmente os
sacerdotes que nos abandonaram: como podemos deixar de os amar? E
também para vos recordar; caríssimos irmãos, a quem diremos com
Jesus: "Vós estivestes sempre junto de mim em minhas provações"
(Lc 22, 28), que a Igreja nestes últimos tempos, dedicou
numerosos ensinamentos, precisamente seus sacerdotes, e muitos outros
foram confirmados e divulgados por inúmeros livros, tanto no campo
bíblico, como no teológico, no histórico, no espiritual e também
no pastoral. A leitura de bons escritos, sobre o sacerdócio
católico, constituirá um conforto providencial, não só para vossa
cultura, mas também para a paz e o fervor do vosso espírito.
Citemos, por exemplo, de J. Coppens e de outros autorizados
colaboradores, Sacerdoce et Célibat, Louvain, 1971.
Sobre este ponto, limitamo-nos a uma afirmação fundamental:
devemos procurar a definição do sacerdote no pensamento de Cristo.
Só a fé pode dizer-nos quem somos e quem devemos ser. O resto, ou
seja, tudo aquilo que nos pode dizer a história, a experiência, o
contexto social, ou as necessidades dos tempos, vê-lo-emos depois
com a assistência responsável e sapiente da Igreja, como derivação
lógica, no momento do confronto, do comentário e da aplicação da
fé. Seja, portanto, o Senhor a falar-nos. É este o tema do
nosso presente colóquio que todos vós, individualmente, depois
podereis desenvolver no cenáculo interior do encontro divino.
Perguntemos, pois, com humildade ao nosso Mestre Jesus: quem somos
nós? Não devemos porventura ter consciência do modo como ele pensa
em nós e nos quer? Qual é perante ele a nossa identidade?
A primeira resposta é imediata: nós somos chamados. O nosso
Evangelho começa com a nossa vocação, parece-nos lícito entrever
na história dos apóstolos a nossa história de sacerdotes. No que
diz respeito aos primeiros discípulos que Jesus escolheu como seus, a
história evangélica é claríssima e belíssima. A intenção do
Senhor é evidente e se for considerada no quadro messiânico, e
depois no quadro da economia do cristianismo, torna-se muito
interessante. É Jesus que toma a iniciativa. como ele próprio
observará: "Não fostes vós que me escolhestes, fui eu que vos
escolhi" (Jo 15,16; 15,19; 6,70). As cenas simples
e encantadoras que nos apresentam o chamamento de cada um dos
discípulos, revelam-nos a realização precisa de escolhas bem
determinadas (Lc 6,13), sobre as quais nos será grato meditar.
A quem chama ele? Não parece que considere a posição social dos
seus eleitos (1 Cor 1,27), nem sequer que. se queira
aproveitar de quem se apresenta com entusiasmo superficial (Mt
8,19-22).
Este desígnio evangélico diz-nos respeito pessoalmente. Repito:
nós somos chamados. O famoso problema da vocação diz respeito à
personalidade c ao destino de cada um de nós. As vicissitudes e a
educação do nosso chamamento, constituem o que há de mais
interessante na história pessoal de nossa vida. Seria insensato
querer reduzi-la a um conjunto de circunstâncias banais e exteriores.
Devemos, pelo contrário, notar a atenção cada vez mais cuidadosa e
acurada com que a Igreja cultiva, seleciona e assiste as vocações
sacerdotais. Este é um coeficiente de certeza para confirmar nossa
identidade que hoje muitas vezes é vivi sseccionada, para ser
declarada inautêntica, enquanto é muito difícil em nossos dias que
uma vocação eclesiástica se funde em motivos interiores e
exteriores, honestamente impugnáveis (não teria valor para nós a
sentença de Pascal: "O que há de mais importante na vida é a
escolha de uma profissão: o acaso decide-a"). Para nós não foi
o acaso que decidiu.
Devemos pensar em alguns aspectos desta vocação, que veio bater à
nossa porta. Ela assinalou o momento mais importante para o uso da
nossa liberdade, que pensou, refletiu, quis e decidiu. Ela provocou
a grande escolha da nossa vida. Análoga ao sim de quem contrai
matrimônio, a nossa resposta contra a volubilidade do homem sem ideais
maiores do que ele comprometeu a existência: a forma, a medida, a
duração da nossa oferta. Constitui, portanto, a página mais bela
e mais ideal da nossa história humana. Ai de nós se a
desvalorizássemos! Qualificou imediatamente a nossa vida com seu
formidável sim, como a de um segregado do estilo comum com que os
outros conduzem a própria vida. É o que são Paulo diz:
"Segregatus ir Evangelium Dei, segregado para o Evangelho de
Deus". Um sim que num só momento nos separou de todas as nossas
coisas: "Deixaram tudo e o seguiram" (Lc 5,11). Um sim que
aparentemente nos inclui entre os idealistas, os sonhadores, os
loucos, os ridículos, mas graças a Deus também entre os fortes,
aqueles que sabem por que e para quem vivem: Scio cui credidi (2 Tim
1,12), aqueles que se propuseram servir os outros e dar a vida,
toda a sua vida por eles. Fomos chamados para isso. Fomos segregados
do mundo, mas não separados, daquele mundo para o qual devemos ser
ministros de salvação com Cristo e como Cristo.
Ainda haveria alguma coisa para observar sobre a vocação. Fomos
chamados, chamados por Cristo, chamados por Deus, fato este que
significa que somos amados por Deus. Pensamos nisso? "Conheço os
que escolhi" (Jo 13,18), disse o Senhor. Um desígnio
divino preestabelecido fixou-se sobre cada um de nós. Por isso,
pode-se dizer de nós o que o profeta Jeremias declarou a Israel, da
parte de. Deus: "Amo-te com um amor eterno e por isso te outorguei
os meus favores" (Jer 31,3). É uma identidade inscrita no
registro do céu, in libro vitae (Apoc 3,5). Portanto, fomos
chamados. Mas para quê?
A nossa identidade foi enriquecida com outra nota essencial: somos
discípulos. Somos os discípulos por antonomásia. O termo
discípulo está relacionado com outro que não pode faltar, o termo
mestre.
Quem é o nosso mestre? Aqui devemos recordar aquela frase do
Senhor: "Um só é o vosso mestre e vós sois todos irmãos. Um
só é o vosso doutor: Cristo" (Mt 23,8-10). Jesus
pretendeu que se lhe reconhecesse este título de mestre (Jo
13,13). Depois das multidões, ele instruiu o grupo dos seus
seguidores qualificados, os discípulos, reconhecendo neles uma
prerrogativa de suma importância: "A vós é dado conhecer os
mistérios do reino dos céus, mas a eles [aos outros] não lhes é
dado" (Mt 13,11). Os chamados, pelo fato de serem
discípulos, serão elevados à função de mestres, não de uma
doutrina própria, como é evidente, mas da doutrina que lhes foi
revelada por Cristo, analogamente, apesar da infinita distância, ao
que Jesus disse de si: "A minha doutrina não me pertence, é
daquele que me enviou" (Jo 7,6). Portanto, à medida que
somos discípulos, podemos também dizer que nossa identidade
sacerdotal comporta uma conotação de magistério: somos discípulos e
somos mestres. Ouvintes da palavra de Cristo e anunciadores da mesma
palavra.
Este perfil que estamos apresentando exigiria um longo e paciente
estudo, sobre a sua designação no Evangelho. Realizá-lo será
interessante e necessário para todos. quer para conhecermos o
pensamento do Senhor acerca de nós mesmos, quer para adquirirmos de
nós a correspondente convicção: a do discípulo que deve. exercer a
função de mestre.
Este primeiro atributo de discípulo, no qual detemos agora a nossa
atenção, é muito importante. Comporta, como sabeis, caríssimos
irmãos no sacerdócio, um duplo dever fundamental para a vida do
sacerdote que anda à procura de sua autenticidade: o primeiro é o
culto do ensinamento do Cristo, um culto que se ramifica em diversas
direções, todas orientadas para fins essenciais à nossa definição
sacerdotal. Digamos rapidamente: ouvir, ouvir a voz do Espírito de
Cristo, ou seja, as inspirações que têm caráter de verdadeira
proveniência sobrenatural (Apoc 2,6ss; Mt 10,19; Jo
14,26), portanto, ouvir a voz da Igreja quando ela fala no
exercício de seu magistério ordinário e extraordinário (Lc
10,16) ; ouvir o eco da voz do Senhor, em quem nos fala em nome
do Senhor, como faz o bispo e como faz também o mestre de espírito e
qualquer amigo bom e esclarecido; ouvir igualmente a voz do Povo de
Deus quando nos chama aos nossos deveres ou nos pede algumas vezes
certos serviços conformes ao nosso ministério. Isto, porém, com a
devida prudência necessária nestas ocasiões, porque neste campo é
fácil deixar-se levar pela exaltação, pelo desejo de propaganda ou
pela insinuação de interesses e de métodos profanos. É preciso
ouvir por meio do estudo das ciências sagradas. Multas vezes os
profissionais leigos são. mais informados, no campo que lhes é
próprios, das matérias da sua competência do que nós na doutrina
religiosa (Lc 16,8). Ouvir finalmente por meio da oração
mental, da meditação: bem sabeis que a oração é o alimento da
nossa vida pessoal e espiritual (Jo 8,31). Realmente,
repetimos com Jesus: "Felizes os que escutam a palavra de Deus e a
põe em prática" (Lc 11,28; 8,21).
Além disso, para ser verdadeiro discípulo é preciso imitar.
Haveria muito para dizer sobre esta conseqüência do fato de
pertencermos à escola do Cristo, principalmente neste tempo em que
somos assaltados pela secularização e, pela tentativa de fazer com
que o clero perca suas notas distintivas exteriores, e, infelizmente,
também as interiores. O chamado "respeito humano", que até fez
cair Pedro, poderia tentar-nos também a nós, a parecer aquilo que
não somos, levando-nos a esquecer a exortação de são Paulo:
"Não vos conformeis com este século" (Rom 12, 2), ao passo
que a imitação de Cristo deveria constituir o estudo prático para o
nosso comportamento. Agora não vamos acrescentar mais nada a este
assunto que é tão conhecido e tão aderente à exigência intrínseca
da identidade sacerdotal.
No pensamento de Jesus há ainda uma nota essencial para nossa
identidade: de discípulos ele promoveu-nos a apóstolos. Ouvi como
numa síntese do que acabamos de dizer o evangelista são Lucas:
Cristo "convocou os discípulos e escolheu doze entre eles aos quais
deu o nome de apóstolos" (Lc 6,13). Não nos parece
impróprio servatis servandis, aplicar este soberano título de
apóstolos aos sacerdotes, nem procurar poderes e funções próprias
do sacerdote de Cristo.
Cada um de nós pode dizer: sou apóstolo. Que significa esta
palavra? Significa enviado, mandado. Mandado por quem? Mandado a
quem? Foi o próprio Jesus quem respondeu a esta pergunta na tarde da
sua ressurreição: "Assim como o pai me enviou, também eu envio a
vós" (Jo 20,21).
Refleti. Temos motivos para ficar assombrados: de onde vem o meu
sacerdócio e para onde vai? O que é o meu sacerdócio senão um
canal de vida divina que serve por extensão da missão salvífica
divino-humana de Cristo, para comunicar os mistérios divinos à
humanidade? São Paulo diz que devemos ser considerados
"dispensadores dos mistérios de Deus" (1 Cor 4,1).
Somos ministros de Deus (2 Cor 6,4). Somos os amigos de
Cristo. A nossa missão instaura em nós uma relação pessoal com o
Cristo, relação única, diversa da que ele mantém com todos os
outros: "Chamei-vos amigos porque tudo quanto ouvi de meu Pai
vo-lo dei a conhecer. Não fostes vós que me escolhestes, fui eu
quem vos escolhi" (Jo 15,15-16). É uma amizade que tem
suas raízes no amor incriado da própria Trindade: "Como o Pai me
amou também eu vos amei, permanecei no meu amor" (Jo 15,9).
Somos os servidores dos nossos irmãos. Nunca daremos a este termo
relacionado com a nossa pessoa e principalmente com a nossa missão, a
suficiente plenitude que Jesus quis dar à sua (Mt 20,28) e
determinou fosse a nossa em., profunda humildade e caridade perfeita:
"Também vós deveis lavar os pés uns aos outros" (Jo 13,
14).
Mas, ao mesmo tempo, que dignidade e que poderes encerra este
serviço de embaixador! "Somos, por conseguinte, embaixadores de
Cristo, e é Deus que vos exorta por nosso intermédio" (2 Cor
5,20).
São os poderes sacramentais que nos tornam instrumentos da própria
ação de Deus nas almas. Já não é só a nossa atividade humana
que nos caracteriza, mas a investidura da virtude divina, que opera no
nosso ministério.
Compreendidos o sentido e o valor sacramental do nosso ministério, ou
seja, do nosso apostolado, pode ser aplicada uma coletânea de outras
definições à figura espiritual, eclesial e também social, do
sacerdote católico, de modo a identificá-lo como o único entre
todos, tanto dentro como fora da sociedade eclesiástica. Ele não é
apenas o presbítero que preside ao momento religioso da comunidade,
mas é realmente o ministo indispensável, exclusivo do culto oficial,
efetuado in persona Christi, em nome do Cristo, e ao mesmo tempo in
nomine populi, em nome do povo. É o homem da oração, o único
realizador do sacrifício eucarístico, o vivificador das almas
mortas, o tesoureiro da graça, o homem das bênçãos. Ele, o
sacerdote-apóstolo, é a testemunha da fé, o missionário do
Evangelho, o profeta da esperança, o centro de promoção e
referência da comunidade, o construtor da Igreja do Cristo, fundada
sobre Pedro. O seu título próprio, humilde e sublime, é o de
pastor do Povo de Deus, operário da caridade, tutor dos órfãos e
dos pequenos, advogado dos pobres, consolador dos que sofrem, pai das
almas, confidente, conselheiro, guia, amigo de todos, o homem
"para os outros", e se for necessário o herói voluntário e
silencioso.
Se olharmos atentamente para o rosto anônimo deste homem solitário,
que não possui um lar próprio, descobriremos nele o homem que já
não sabe amar como homem, porque deu todo o seu coracão sem reter
nada para si, ao Cristo que se deu a si mesmo por ele até ao
sacrifício da cruz (Gal 2,20) e ao próximo que ele se decidiu a
amar segundo a medida de Cristo (Jo 13,15). Este é, de
fato, o sentido da sua intensa e feliz imolação no celibato. Numa
palavra, ele é outro Cristo. Finalmente é esta a identidade do
sacerdote. Ouvimos repetir muitas vezes: o sacerdote é outro
Cristo. Então por que duvidar, por que temer?
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