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Caríssimos filhos e irmãos em Cristo.
Este encontro anual parece-nos revestir-se de uma importância
extraordinária, porquanto se realiza uma só vez por ano, e por isso
se apresenta denso de todos os desejos, de todos os problemas e de
todas as esperanças, que gostariam de se manifestar aqui de algum
modo, para receberem uma palavra de apreço, de estímulo e de
orientação.
Cada um dos que estão aqui presentes pode notar que uma exigência
espontânea, relativa à hora atual da vida da Igreja, impõe a este
discurso certa mudança de perspectiva. Nossa palavra em vez de
dirigir sua atenção para os inúmeros temas, certamente ainda não
superados, da pregação quaresmal e da preparação pascal, como
pediria o costume em que esta circunstância vai buscar sua origem e sua
razão de ser, sente-se obrigado a dirigir-se às pessoas aqui
presentes, isto é, a vós mesmos ministros, mais do que aos
problemas do vosso ministério.
Nossa alocução torna-se deste modo um colóquio. Quer ter por
característica o tom de intimidade. Quer ser animada pelo afeto.
Por outras palavras, sentimo-nos cativado por esta presença, que é
do maior interesse para nós.
Os problemas relativos ao nosso clero têm prioridade neste momento,
sobre aqueles que se referem ao campo em que ele exerce suas funções
sacerdotais e pastorais. O mesmo aconteceu, se bem recordamos, no
ano passado, quando nesta ocasião falamos sobre a discutida posição
sociológica do sacerdote no mundo contemporâneo.
Também neste ano, irmãos caríssimos, não sabemos falar de outro
assunto, senão daquele que se refere diretamente a vós. E se
cedemos a este impulso interior, não o fazemos certamente para
facilitar o tema destas simples palavras, nem para aliviar o peso de
nosso ministério, mas sim para nos sentirmos mais responsáveis e para
dar-vos uma prova do lugar que ocupais em nosso espírito e em nossa
caridade.
Vamos escolher apenas um assunto entre os muitos que afloram à nossa
consideração: o espírito comunitário. Devemos fomentar o
espírito comunitário, nesta nossa comunidade que é a diocese de
Roma. Trata-se apenas de incrementar o espírito comunitário, pois
reconhecemos com satisfação que ele já existe. É preciso, porém,
que se desenvolva, que se intensifique e se torne urna característica
de nossa espiritualidade, que se exprima em nossa atividade pastoral e
que se transforme em confiança, colaboração e amizade.
Algumas relações comunitárias exteriores já estão em vias de
realização. Muitos sacerdotes já vivem em comum, já estão
inscritos nos registros da Igreja Romana, já foram inseridos
canonicamente no seu contexto orgânico, ministerial e hierárquico.
A comunidade eclesial existe. Mas estará esta comunidade em
condições de proporcionar uma perfeita comunhão de espírito, de
intentos e de obras? Não nos sentiremos às vezes solitários, no
meio da multidão, que deveria ser constituída por irmãos e formar
uma só família? Não preferiremos em certas ocasiões, ficar
isolados, conservar o nosso individualismo, distinguir-nos,
diversificar-nos, separar-nos e al gumas vezes dissociar-nos, ou
até mesmo opor-nos mutuamente, no interior de nossa organização
eclesiástica? Sentimo-nos realmente ministros solitários no mesmo
ministério do Cristo? Está sempre viva no meio de nós aquela
afeição fraterna que nos torna solícitos e alegres com o bem dos
nossos irmãos no apostolado, sentindo-nos humilde e santamente
orgulhosos da nossa vocação, nas fileiras do clero romano?
A revisão da vida sacerdotal, atualmente em curso, provocada pelo
Concílio, apresenta-nos estas perguntas, que se tornam cada vez
mais prementes pelo fato de confluirem para esta nossa comunidade
diocesana, membros muito heterogêneos que pela origem, pela
formação, pelo cargo, pela preparação espiritual e cultural, são
bastante diferentes uns dos outros. É preciso cerrar mais
estreitamente as fileiras dos sacerdotes, dos religiosos, dos
prelados, se realmente queremos ser "Igreja", isto é,
congregação, família; corpo de Cristo, multidão animada pela
mesma fé, pela mesma caridade, como a dos primeiros cristãos, que
eram "um só coração e uma só alma" (At 4,32).
Não há dúvida de que este é o pensamento de Cristo. O unum sint,
o "sejam um", está no centro de seus desejos (Jo 17,11). E
antes que este desejo messiânico e divino (Jo 11,51; Tim
2,4), abrace a humanidade inteira, dirige-se diretamente a seus
discípulos (Jo 13,34). Antes de solicitar a unidade
ecumênica da Igreja, o Senhor requer de nós a unidade fraterna e
comunitária na Igreja. Parece-nos que uma das mais claras
diretrizes do recente Concílio é exatamente a de pôr em evidência a
índole comunitária de toda a humanidade, índole esta que se
manifesta especialmente na intenção do plano divino sobrenatural. A
Igreja católica já realiza, por virtude do Espírito Santo, este
desígnio constitucional de seu fundador, mas temos o dever de ainda
aperfeiçoar a sua atuação.
Dois fatores, a nosso ver, podem ajudar este aperfeiçoamento na
unidade e na caridade, isto é, este aperfeiçoamento comunitário da
vida sacerdotal.
O primeiro é a importância dada pelo decreto conciliar "Sobre o
ministério e a vida sacerdotal" à participação subordinada da ordem
presbiterial, na missão da ordem episcopal. É uma verdade
conhecida, mas que foi posta mais em evidência pelo Concílio, de
modo que "de ora em diante quem quiser saber o que é o padre, não
poderá deixar de considerar o sacerdócio episcopal; de que ele
participa, que ele compartilha e a cujo exercício deve oferecer a sua
colaboração". A comunhão na Igreja é hierárquica. Esta
característica constitui para ela um princípio de mais estreita e mais
vital coesão.
O segundo fator é a noção renovada e esclarecida da solidariedade
que une a ordem sacerdotal à ordem episcopal. A ordem sacerdotal foi
dado o nome de "presbitério", e com o nome lhe foram dadas também
uma estrutura e uma função: "Os presbíteros - diz o Concílio
solícitos colaboradores da ordem episcopal, seu auxílio e
instrumento, chamados para servir ao Povo de Deus, formam com seu
bispo um único presbitério, empenhados, porém, em diversos
ofícios". Sob a configuração associativa e jurídica, que a
classe eclesiástica assume deste modo, poder-se-á descobrir um
ardor espiritual mais claro e operante. Este não faz com que a
autoridade eclesiástica suba democraticamente da base ao vértice, nem
tende a impor-lhe as razões do número ou do pluralismo das
opiniões, paralisando-lhe o exercício carismático e responsável,
mas visa a tornar vitais, conscientes e concordantes a comunhão e a
cooperação entre o bispo e os seus sacerdotes, e a coesão dos
sacerdotes entre si.
Parece-nos que chegou o momento de dar ao espírito eclesial
comunitário uma consciência maior de si mesmo e eficiência mais
intensa, especialmente entre aqueles que estão distinguidos pelo
sacerdócio e ainda mais entre os sacerdotes do clero diocesano e os
religiosos que se dedicam ao ministério pastoral.
Em Roma foi designado nestes dias o grupo de sacerdotes que vão
constituir o conselho presbiteral. Atribuímos importância,
significado e eficácia a este novo organismo. Julgamos também que
este é o propósito de nosso venerado e zeloso cardeal vigário.
Esperamos que o mencionado grupo de sacerdotes não se separe dos
outros irmãos, nem muito menos se torne paladino de uma corrente que
divida o clero em tendências antagônicas, mas antes seja sinal e
órgão da concórdia e da colaboração, da solidariedade e da amizade
dos nossos sacerdotes entre si, e alimente aquele espírito
comunitário, aquela unidade e caridade a que nos referimos. Nós
próprios teremos a satisfação de secundar esta fusão de espíritos e
de obras, na medida em que formos conhecendo e aprovando os vossos
propósitos comuns, e atendendo às vossas necessidades. Desta
concórdia espiritual e operante deverão resultar programas de ação
pastoral combinada e solidária, a pastoral de conjunto, como se diz,
com maior economia e maior emprego de pessoas, de iniciativas e de
meios e com maior eficiência de resultados.
Ressaltam-nos à mente alguns temas desta atividade pastoral
simultânea e harmónica. Em primeiro lugar, o das vocações
eclesiásticas. Não nos conformamos com a idéia de que em nosso
campo pastoral não possam medrar almas juvenis e adultas, capazes de
ouvirem o chamamento ao serviço heróico do reino de Deus. Pensamos
que a escassez de vocações nas grandes cidades depende em grande parte
de ambiente familiar e social, que torna refratária a consciência das
novas gerações ao estímulo da voz do Cristo. Mas confiamos sempre
em que um sacerdote que não se dá a exageros religiosos, nem à
secularização, mas que vive com intensidade de sabedoria e de
sacrifício o seu sacerdócio, em contato com a comunidade,
principalmente com os jovens, tem a virtude, ou melhor, a graça de
acender nas outras almas a chama do amor total a Cristo, que arde
dentro de si.
Cremos que a apresentação da vida sacerdotal, com o sagrado celibato
que ela comporta, vivida na plenitude da imolação ao único amor de
Jesus Mestre e Senhor, de Jesus sumo Sacerdote e único Cordeiro
Redentor, e também a seu completo e exclusivo seguimento, no
serviço pastoral do Povo de Deus, exerce maior atração para o
estudo eclesiástico do que uma fórmula humanamente mais natural e
aparentemente mais fácil, na qual a consagração a Cristo e o
sacrifício de si próprio já não tem a perfeita e exaltadora
coincidência que nós conhecemos.
Tudo está em o compreender. Trata-se de um carisma condicionador.
Mas devemos duvidar que o Espírito o possa dar nos filhos mais
generosos de nossa geração? A fortaleza moral, o dom de si, o amor
a Cristo, sagrado e sobre-humano, mas verdadeiro, vivíssimo e
suavíssimo, desapegado de qualquer outro amor, mesmo legítimo (Mt
19,29), numa palavra, a cruz para salvação própria e alheia,
exerce um influxo mais eficaz no coração humano, do que aquele
convite ao sacerdócio facilitado pela combinação do amor natural com
o sobrenatural.
Sendo assim, mesmo considerando a necessidade preocupante de
vocações eclesiásticas, pensamos que o celibato, espiritualmente
transfigurado e transfigurante, é um incentivo maior para o seu
recrutamento qualitativo e quantitativo, do que uma transigência com a
lei canônica, que exige sua integridade e firmeza, e que constitui o
epílogo da fidelidade e do amor ao reino de Deus, da experiência
histórica e do combate ascético e místico da nossa Igreja Latina.
Vós sabeis tudo isto, filhos e irmãos nossos, e conosco o quereis.
Sede benditos.
Juntamente com o problema das vocações, devemos recomeçar a estudar
e resolver, com propósito comunitário, o problema do seminário.
Também este problema pode constituir hoje mais do que nunca, um
centro de convergência de nossa comunidade eclesial, mediante o
interesse, a confiança e ó apoio de todos e de cada um. Uma
tradição que não deve morrer fez de nosso seminário, para tantos
digníssimos eclesiásticos, que foram seus alunos e seus mestres, um
verdadeiro lar espiritual, mais do que uma escola de ciência e um
campo de treino pedagógico. Ele foi e é a casa de nossa
incomparável mãe a Igreja, a casa dos afetos que se conservam para
sempre, das recordações perenes, dos propósitos que sustentam a
vida. E assim deve continuar a ser sempre, para vossa coletiva e
cordial fidelidade. E vós, religiosos, também tereis merecimento e
proveito nisso.
Depois, quantos e quantos problemas esperam do espírito comunitário
um exame mais sistemático e orgânico, uma solução mais moderna e
mais ampla: a situação econômica do clero, a vida em comum dos
sacerdotes, a pregação renovada, a instrução religiosa da
juventude e dos adultos, a ação católica, as novas igrejas, a
assistência aos bairros pobres, a imprensa católica, a atuação
metódica da reforma litúrgica, o canto religioso, a arte sacra, os
exercícios espirituais etc. Chegou o momento de um despertar concorde
e generoso de todas as formas de apostolado, de todo o exercício do
ministério, de toda a solicitude pastoral. Todos devem trabalhar.
Todos devem colaborar. A orquestra tem muitos e variados
instrumentos. Cada músico toca o seu instrumento. Mas a música é
uma só. Deve haver uma harmonia, uma soma de esforços comuns.
Vede como o nosso vicariato, que muitos, infelizmente, só
consideram sob o aspecto burocrático e disciplinar, se pode tornar o
centro do fervor, da concórdia, do zelo e da caridade diocesana.
Não terminaríamos adequadamente esta exortação ao incremento do
espírito comunitário, se não recordássemos, como já sabeis, a
intrínseca relação - que ele supõe e promove - com a
espiritualidade pessoal. Cairíamos na exterioridade, no cálculo
puramente sociológico, no juridicismo, se o incremento do espírito
comunitário não fosse acompanhado por uma intensa, íntima e pontual
religiosidade interior.
O apostolado perderia suas raízes interiores, suas melhores e
originais expressões e as suas mais elevadas finalidades se o apóstolo
não fosse homem de oração e meditação. A comunidade dos fiéis,
educada para a participação litúrgica, careceria de verdadeira
coesão espiritual, e de verdadeiro fruto de comunhão com os divinos
mistérios celebrados, se o ministro e cada um dos fiéis não tirassem
do rito e nele não infundissem um fervor religioso próprio. A
Igreja deixaria de ser Igreja, se, à atuação da caridade
fraterna, não antepusesse e infundisse a caridade divina, que exige o
colóquio silencioso da alma, que escuta e contempla dentro de si e diz
a Cristo, que se tornou presente a ela e nela, as suas palavras
infantis e simples, balbuciando, chorando, suplicando, exultando ou
cantando. Palavras suas secretas, talvez só compreendidas por
Deus. Palavras pronunciadas inefavelmente por nós, só com o
Espírito e talvez pelo próprio Espírito Santo em nós, gemitibus
inenarrabilibus (Rom 8,26), com gemidos inenarráveis. A vida
interior não pode ser substituída. E especialmente em nós ministros
do Senhor, não pode nem deve faltar.
Permiti que terminemos com esta "liturgia da palavra". É são
Paulo que emprega a expressão, em sua Carta aos filipenses: Filhos
e irmãos, "se há alguma consolação em Cristo, se algum caridoso
estímulo, alguma comunhão de espírito, alguma ternura e
compaixão, completai a minha alegria, permanecendo unidos. Tende um
mesmo amor. Uma só alma e os mesmos pensamentos.
Nada façais por espírito de partido ou vanglória, mas com
humildade, considerando os outros superiores a vós mesmos, visando
não aos seus próprios interesses, mas aos dos outros. Tende em vós
a estima que se deve em Jesus Cristo" (Flp 2,1-5).
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