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Nosso desejo seria de confirmar e desenvolver em vós o amor pela
Igreja, pela santa Igreja, que é como sabeis o Corpo místico do
Cristo, a extensão na humanidade e no tempo, do mistério da
Encarnação. Sinal e instrumento da economia da salvação, é,
aliás, o termo e a plenitude da obra redentora do próprio Cristo.
Em, relação ao reino de Cristo ela é meio e fim. O Concílio
foi para nós um convite a aprofundar nosso conhecimento e a tomar
consciência da Igreja. Os filhos fiéis da Igreja se alegraram
muito por este acontecimento que lhes proporcionou um conhecimento mais
rico e mais profundo da família espiritual, à qual compreenderam que
era grande ventura pertencer. Entenderam também melhor que é nela
que se realiza sua união com o Cristo e com Deus, que é nela que a
revelação da verdade encontra sua expressão e autenticidade, que é
nela que a esperança é em parte realizada, parcialmente prometida,
mas desde já prenhe de alegria e de paz (Rom 15,13), que é
nele que a caridade estabelece um maravilhoso vínculo tanto entre Deus
e nós, como entre nós e os demais homens, os quais por aí se tornam
nossos irmãos. Compreenderam, enfim, como desta comunidade assim
criada, a caridade se eleva até à sua fonte divina com amor
novo, nosso, porque pessoal, mas também mais que nosso, porque
animado pelo Espírito Santo. Assim a Igreja se apresentou a seus
membros conscientes tal qual é: uma oportunidade, a beatitude, a
fórmula de vida autêntica em marcha no tempo para a eternidade.
Mas que se passou? Aconteceu que no momento em que a visão da
Igreja apareceu em nossos dias em sua autenticidade ideal, suas
imperfeições visíveis e humanas provocaram um sentimento de
mal-estar mais agudo. A Igreja é composta de homens imperfeitos,
limitados, pecadores. É uma instituição santa e sagrada, mas
construída de materiais humanos, imperfeitos e caducos. Insere-se
no caudal da história que se esvai, por conseguinte,
necessariamente, submissa nas manifestações contingentes às
mutações inevitáveis do tempo. Grande e sério desejo de
aggiornamento, de reforma, de autenticidade, de "rejuvenescimento da
Igreja" se manifesta então, mas ao mesmo tempo, se espalhou em
muitos ambientes grande inquietude, que depois do Concílio, na
própria Igreja turvou os espíritos, e fora dela provocou sensacão
na imprensa. Assim se afronta na Igreja, em termos novos e
agressivos, o importante problema de sua reforma.
Trata-se de uma das questões mais interessantes, mais graves, e
mais urgentes de nosso tempo e nós mesmos que não desejamos menos do
que qualquer outro uma reforma razoável da Igreja, pensamos que a
oportunidade que lhe é dada hoje de proceder à própria reforma, é
um "sinal dos tempos", uma graça do Senhor. Mas em tarefa
semelhante, deve-se por à altura de reconhecer a fragilidade dos
homens, mesmo cristãos, e de corrigir suas eventuais fraquezas e as
deformações do corpo que é a Igreja. Compreendido em seu sentido
próprio, podemos fazer nosso o programa de uma contínua reforma da
Igreja. Ecclesia semper reformanda.
O que acontece, porém, na opinião pública, com a imprensa,
muitas vezes tão superficial, tão mal-intencionada, tão ávida de
descobrir e de criar o sensacional, tão irresponsável quanto
afirmativa em seus intentos e insinuações sobre os deveres e falhas da
hierarquia? Acontece que lançando um olhar sobre a grande e
misteriosa realidade da Igreja, muitos se detêm nos aspectos
exteriores, fenomenológicos e contingentes que ela apresenta.
Descobrindo então nela com magistral gravidade, mas com apressada
facilidade os defeitos patentes, comprazem-se em provocar
escândalos, em acusar a autoridade da Igreja, de ser culpada de que
muitos tenham perdido a fé. Estes com razão desejavam que ela fosse
digna e perfeita, espiritual e sublime em todas as suas
manifestações, mas julgando-a inferior ao ideal que ela nem sempre
consegue personificar dignamente, tiram disto pretexto e até motivo de
orgulho, para professarem um cristianismo por eles mesmos construído,
praticamente sem compromissos de nenhum gênero, nem doutrinais,
cultuais ou comunitários. Ouando são muitos os que assumem esta
atitude de crítica livre, então se unem e se afirmam em forma de
grupos, que acabam por dar preferência, em suas orientações, a
outras ideologias, tanto religiosas como o modernismo antigo e novo,
como sociais, o marxismo, por exemplo, ideologias estas que não são
autêntica fé cristã.
Nesse reformismo polêmico continuamente é empregada a palavra
"estruturas". Esta no presente fenômeno de contestação
iluminista, assume o singnificado de organismos canônicos, de
instituições jurídicas, de entidades eclesiásticas tradicionais,
de autoridades hierárquicas responsáveis, de sistemas arcaicos
determinantes, que formam o esqueleto do corpo eclesial, de doutrinas
dogmáticas estabelecidas, de magistério autorizado, de cúria romana
etc. As "estruturas" correspondem por assim dizer à "Igreja
Institucional" em confronto e oposição à Igreja livre e
espiritual. Em outras palavras, o termo em questão assume um
significado negativo, contra o qual o novo cristianismo que se diz
carismático, de livre interpretação bíblica, lança deletérias
insinuações e reivindica arbitrárias licenças, tanto de julgar como
de agir. Se a religião está definhando, se a Igreja está sendo
abandonada, a culpa dizem alguns é das estruturas, o obstáculo está
nas estruturas. As estruturas estão esclerosadas. As estruturas
não foram instituídas por Cristo. Libertemo-nos das estruturas e
assim teremos um cristianismo jovem e autêntico.
Que dizer de tudo isso? Que atitude tomar se amamos a Igreja?
Antes de tudo, façamos um ato de reflexão sobre este termo
"estruturas" que possui significado polivalente. Distinguamos as
estruturas convencionais da Igreja, às quais devemos permanecer
firmemente ligados, não apenas por sentimento de resignação, das
estruturas derivadas por meio da tradição histórica ou do
desenvolvimento explicativo, da raiz originária e essencial da
mensagem evangélica e apostólica. Nestas últimas podem existir
elementos que não são necessários à verdadeira figura e à
vitalidade permanente da Igreja. Nelas podem existir entidades ou
costumes abusivos ou que pelo menos já não são aptos para favorecer o
contato da Igreja com as situações históricas e sociais que se
modificaram. Neste ponto, a reforma é e em certos casos deve ser
inovadora. Mas a quem compete o juízo sobre as profundas
intervenções inovadoras que devem ser levadas a efeito? A quem
compete a autoridade e a quem compete a responsabilidade delas? E
será que os fáceis promotores da abolição dos usos, das formas, da
linguagem, herdados do passado com estruturas, terão sempre o senso
histórico e psicológico requerido para conter certas transformações
arbitrárias e psicológicas? Saberão preencher as lacunas que tais
estruturas deixariam nas legítimas tradições do povo com algo que
moral e religiosamente as substituam? Além disso será que carecem de
significado espiritual e de vitalidade cristã algumas instituições e
costumes eclesiais, que a febre de um modernismo abstrato deseja
destruir? Será que algumas destas estruturas não poderiam
modernizar-se e conservando pelo menos o valor de um testemunho
histórico, reflorescer com nova e benéfica atividade?
Não queremos advogar a causa do imobilismo e do juridicismo. Até
procuramos dar à Igreja uma nova fisionomia e novo espírito e às
suas instituições uma autenticidade mais rica de experiência.
A revisão das estruturas vigentes está em pleno, mas ao mesmo tempo
refletido desenvolvimento em toda a Igreja responsável. Queremos,
porém, alertar os fautores de repentinas simplificações cirúrgicas
e às vezes subversivas do patrimônio tradicional da vida eclesial,
recordando-lhes que a atualização da Igreja não depende sempre do
repúdio de suas estruturas tradicionais, principalmente se estas foram
comprovadas por experiências seculares, e ainda são capazes de
contínua revivescência, como, por exemplo, a paróquia. Convém
recordar-lhes também que a autêntica juventude da Igreja não
será obtida pela secularização e pela liberalização da vida
eclesial, isto é, libertando-a de suas estruturas exteriores,
embora estas precisem de inteligentes reformas. Será obtida sim pelo
esforço de vivificação na Igreja da corrente do Espírito
vivificador, da vida de oração e de graça, do exercício de
caridade e de obediência, da santidade. A voz do profeta que ouvimos
durante a quaresma, ressoa ainda em nossos ouvidos: "Rasgai vossos
corações e não vossas vestimentas" (Jl 2,13). Não a
esqueçamos nunca.
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