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Tivestes conhecimento ou pelo menos um eco da profissão de nosso
Credo, com que encerramos formal e solenemente o "Ano da Fé".
Mas tal encerramento pode antes ser chamado um princípio, já não de
um outro ano dedicado ao mesmo tema, porém, das conseqüências que
ele desejara produzir. Estas são sem número e sem fim. Uma
profissão de fé não pode ser mais do que um resumo, um "símbolo"
como se diz na linguagem teológica tradicional, uma "regula fidei,
uma regra de fé", que contém as principais verdades da fé em termos
de autoridade, mas quanto possível condenados e abreviados. Desde a
antiguidade cristã, era uma síntese dos dogmas fundamentais do
ensinamento doutrinal, que os candidatos ao batismo deviam aprender e
recitar de cor.
Esta profissão resumida das verdades da fé, exige em seguida um
estudo, um desenvolvimento, um aprofundamento. É este o dever de
todos os crentes. Aqueles que sabem passar das fórmulas do catecismo
à exposição mais orgânica e completa das verdades da fé, das
palavras áridas ao desenvolvimento doutrinal e melhor ainda das
expressões verbais à alguma inteligência real das próprias
verdades, experimentam ao mesmo tempo alegria e admiração: alegria
pela riqueza e beleza das verdades religiosas, e admiração por sua
profundidade e amplidão, que nossa inteligência pode entrever, mas
não medir. Esta é a maior experiência que nosso pensamento pode
fazer. É essa também a tarefa dos mestres, dos teólogos, dos
pregadores, aos quais este momento histórico da Igreja oferece uma
estupenda missão, a de penetrar, purificar, exprimir os enunciados
da fé em termos novos, belos, originais, vividos, compreensíveis,
os sempre idênticos e imutáveis tesouros da revelação, "na mesma
doutrina, no mesmo sentido, no mesmo pensamento", como disse o
Vaticano I.
Pode-se, portanto, dizer que um trabalho recomeça, isto é,
sucede à afirmação da fé, que o ano que acaba de se encerrar nos
deu a feliz ocasião de proclamar. Devemos aplicar-nos todos a um
estudo sério da nossa religião. Esperamos que em todos os países
haverá uma nova floração original de literatura religiosa.
Há, porém, outra conseqüência que decorre de uma profissão de
fé, e é a coerência da vida com a própria fé. Jamais teremos
dado suficiente importância a esta coerência entre a fé e a vida.
Não basta conhecer a palavra de Deus, é preciso vivê-la.
Conhecer e não aplicar a fé à vida, seria grave ilogismo, e
acarretaria séria responsabilidade. A fé ao mesmo tempo é um
princípio de vida sobrenatural e um princípio de. vida moral. A
vida cristã nasce da fé. Beneficia-se da incipiente comunhão, que
ela estabelece entre Deus e nós. Faz circular seu misterioso e
infinito pensamento no nosso, dispõe-nos àquela comunhão vital que
une nossa existência, apenas criada, com o ser incriado e infinito
que é Deus. Mas ao mesmo tempo introduz em nossa mente e em nossa
ação, um engajamento, um critério espiritual e moral, uru elemento
que qualifica nossa conduta: faz-nos cristãos. Deve-se sempre
recordar a repetida fórmula do apóstolo: "Justus ex fide vivit",
que podemos traduzir assim: "O cristão vive da fé" (Rom
1,17; Gal 3,11; Hebr 10,38).
Agora nos interessa este aspecto da vida religiosa. Como tornar nossa
vida conforme à fé? Como podemos imaginar o tipo moderno do crente?
Qual a vocação do fiel hoje, quando quer tomar a sério as
conseqüências do seu próprio credo? Temos em mente o que o
Concílio proclamou "que todos os fiéis de qualquer estado ou forma
de vida, são chamados à plenitude da vida cristã, e à perfeição
da caridade", e acrescenta: "Mesmo na sociedade terrena esta
santidade concorre para promover um padrão de vida mais humano".
Esta declaração do Concílio, a respeito da vocação de todos e de
cada um à santidade, corresponde "aos vários gêneros de vida e aos
vários ofícios" e é de capital importância. "Cada qual,
prossegue, segundo os próprios dons e ofícios, deve resolutamente
avançar pelo caminho da fé viva, a qual desperta a esperança e opera
por meio da caridade". Para isso deveria desaparecer o cristão, que
não observa os deveres de sua elevação a filho de Deus, irmão de
Cristo, membro da Igreja. A mediocridade, a infidelidade, a
inconstância, a incoerência, a hipocrisia, deveriam desaparecer da
figura, da tipologia do crente moderno. Uma geração penetrada de
santidade, deveria caracterizar o nosso tempo. Não só nos poremos
à procura do santo singular e excepcional, mas deveremos promover e
criar uma santidade do povo, assim como nos primeiros albores do
cristianismo o queria são Pedro, quando escreve as célebres
palavras: "Vós sois uma estirpe eleita, um sacerdócio régio, uma
nação santa, um povo redimido... vós que em certo tempo não
éreis seu povo, mas agora sois o Povo de Deus" (1 Pdr
2,9-10).
Reflitamos bem. Será possível atingir semelhante alvo? Não se
trata de um sonho? Como poderia o homem comum do nosso tempo conformar
a própria vida a um ideal autêntico de santidade, na medida em que se
possa acomodá-lo às exigências honestas e legítimas da vida
moderna? Hoje ainda mais quando tudo é posto em "contestação",
quando já não se quer derivar da tradição as normas para a
orientação das novas gerações, quando a transformação dos
costumes é tão premente e manifesta, quando a vida social absorve e
domina a personalidade individual, quando tudo é secularizado e
dessacralizado, quando já ninguém sabe qual seja a ordem constituída
ou a constituir, quando tudo se tornou problema e quando não se aceita
que qualquer autoridade normal sugira soluções razoáveis, e na linha
da experiência histórica comprovada?
Não se deve fechar os olhos à realidade ideológica e social que nos
cerca. Antes faremos bem encarando-a de frente com corajosa
serenidade. Não poderemos tirar muitas conclusões favoráveis a
nossos princípios, diante do humanismo privado da luz de Deus. Mas
agora urge responder à pergunta que fizemos, e que convém repetirmos
no íntimo de nossa consciência: Pode o homem hoje ser
verdadeiramente cristão? Pode o cristão ser santo (no sentido
bíblico do termo)? Pode nossa fé ser realmente um princípio de
vida concreta e moderna? Pode ainda um povo, uma sociedade, uma
comunidade pelo menos, exprimir-se em formas autenticamente cristãs?
Eis, caros filhos, uma boa ocasião para pormos imediatamente em
ação nossa fé. Respondamos que sim. Nada nos deve atemorizar nem
deter. É de santa Teresa as palavras: "Nada te espanta".
Repitamos a nós mesmos as palavras de são Paulo aos romanos: "Se
confessares com os lábios o Senhor Jesus, e se creres no coração
que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo" (Rom
10,11). Eis a bússola. No mar sem fé e agitado do mundo
presente, guardemos esta suprema rota: Jesus Cristo. Ele luz do
mundo e de nossa vida, infunde em nossos corações duas certezas
imediatas fundamentais, uma sobre Deus, outra sobre o homem. Uma e
outra a promover com total dedicação de amor. Assim nada temeremos:
"Quem nos separará do amor do Cristo? A tribulação, a fome, a
angústia, a nudez, o perigo, a perseguição, a espada?... Em
tudo isso somos mais que vencedores, por obra daquele que nos amou"
(Rom 8, 35-37).
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