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O tema de meditação que hoje detém a opinião pública na Igreja é
o seu caráter comunitário. Foi dito que ela é o Corpo místico de
Cristo, o Povo de Deus, uma comunhão viva com o Cristo, a
sociedade dos fiéis, graça ao Espírito Santo, alma da Igreja.
Esta meditação teológica é fundamental. Faremos bem em
aprofundá-la. Corresponde, excedendo-a e integrando-a, à
mentalidade moderna sedenta de sociologia, e no plano religioso nos
mostra mais uma vez a superioriedade e a validade da fé, até mesmo no
domínio social. No plano moral pedagógico e prático, esta
meditação sobre a solidariedade, que de verdadeiros cristãos não
faz senão "um coração e uma só alma" (At 4,32), cria
deveres mais urgentes, especialmente no exercício da caridade, rainha
das virtudes. Deveres que tendem a modificar profundamente nossa
maneira de pensar, sempre tentada pelo egoísmo interno, e nosso
comportamento simultaneamente eclesial e social.
"Viver juntos" na oração, em espírito comunitário, no diálogo
com nossos semelhantes, interessando-se com as necessidades dos
outros, e com o bem comum, esta coabitação espiritual, esta
"societas spiritus", esta comunidade de espírito (Flp 2,1),
como a chama são Paulo, é muito bela, mas não é fácil.
Encontram-se, mesmo nas correntes de idéias de nosso tempo, outras
concepções, igualmente importantes que estão em contradição com
aquela, e que só a sabedoria de nosso sistema cristão
(expressemo-nos assim) consegue harmonizar, como o culto da
liberdade, a reabilitação da personalidade e da dignidade humana, o
primado relativo da consciência, a preferência dada à experiência
religiosa quando está em jogo a observância da lei canônica, enfim
- e talvez o principal - a concepção revolucionária aplicada a
todas as formas de progresso, de reforma, de inovação, de
aggiornamento. A palavra "revolucionário" tem agora livre curso
mesmo na troca de idéias geradoras de ordem e de paz.
Duas formas mais acentuadas que as demais, deste espírito de
independência, às vezes mesmo de rebelião, que penetrou
profundamente até na vida da Igreja, parecem exigir de nós menção
especial, porque são mais radicalmente opostas a este espírito de
comunhão, que a Igreja, neste tempo de renovação, oferece à
nossa consciência, como o sopro vivificador e atual da palavra de
Deus. Trata-se da ruptura com a tradição e da negação de
obediência (de que não falaremos hoje).
A tradição! Esta palavra não diz mais nada aos inovadores de
hoje, nem mesmo aos melhores. Os jovens infelizmente - e até certo
ponto nós os compreendemos, exatamente porque são jovens - têm
aversão por tudo o que precede a atualidade, a vida de hoje e a
corrida para a novidade e o futuro. Mas não são apenas os jovens que
assim procedem. Também pessoas cordatas falam de ruptura com o
passado, com as gerações precedentes, com as formas convencionais e
com a herança dos velhos. Um modo de falar um tanto imprudente e
superficial entrou até na linguagem eclesiástica. Fala-se da era
constantiniana, com o intuito de desvalorizar toda a história secular
da Igreja até nossos dias. Fala-se da mentalidade pré-conciliar,
com o intuito de desvirtuar um patrimônio católico de pensamento e de
costumes, que teria ainda tantos valores dignos de apreço. Chega-se
até a expressões e comportamentos às vezes tão negativos, que geram
confusão e divisão na comunidade eclesiástica, e levam a crer que a
lei vigente e os costumes em uso foram superados. Poderíamos falar
ainda sobre tal assunto, mas cada um de vós pode continuar pensando
sobre ele.
Nesse campo se torna difícil distinguir o que se pode renunciar na
vasta herança da tradição, do que é precioso, embora não
necessário por si, para a consistência constitucional da Igreja, e
para sua autêntica vitalidade, do que é costume, mas de valor
discutível, e por fim, do que procede do passado e de fato é velho,
supérfluo, nocivo e por isso mesmo digno de ser abandonado, talvez
mesmo de ser corajosamente reformado. Este inventário da herança
antiga da Igreja exige competência e autoridade. Numa comunhão como
a Igreja, um indivíduo não o pode fazer privadamente para os
demais, nem depois de tê-lo feito, pode a bel-prazer escolher o que
deve ser conservado e que deve ser abolido. É a Igreja por meio de
seus órgãos autorizados, que está fazendo este inventário. Quem
desejar permanecer fiel a ela, não pode arrogar-se o direito de
antecipar ou contradizer o juízo que emitirá sobre o assunto, Na
Igreja nada deve ser arbitrário, temerário e tumultuado. A Igreja
é como um concerto musical. Nenhum instrumento por mais
aristocrático que seja, pode tocar numa orquestra como lhe agrada.
Quereríamos agora recomendar aos nossos filhos conscientes e
fervorosos que revejam a instintiva antipatia que tem pela tradição
eclesiástica. Esta é antes de tudo o veículo pelo qual passam a
doutrina e a sucessão apostólica. A presença do Cristo não é
hoje possível sem o reconhecimento do canal histórico e humano que nos
leva à fonte de sua aparição evangélica. A tradição é, além
disso, a riqueza, a honra, a fortaleza da nossa casa, a Igreja
católica. A tradição contém, certamente, no seu conjunto
histórico, alguns elementos antiquados e desaprováveis. Mas um
juízo justo sobre estes elementos discutíveis ou negativos, deverá
ser "histórico", isto é, baseado nas circunstâncias dos tempos e
nas experiências contemporâneas e sucessivas dos acontecimentos.
Não se pode esquecer que a Igreja, santa na sua instituição e
virtude santificadora por meio da palavra, da graça e do ministério,
é formada por homens fracos, que podem errar e pecar mesmo no setor da
vida eclesial.
Um conhecimento inteligente, uma crítica justa e apreciação
penetrante da tradição, não constituem um freio, mas um guia seguro
para aqueles que promovem a tão desejada renovação da Igreja.
Inspirar-lhes-ão aquela simpatia amorosa, quase dinástica, pelas
vicissitudes passadas da Igreja, e por tudo aquilo que através desse
canal, chegou ao nosso poder, o que poderá torná-los aptos para
adquirir arte e prestígio, para o diálogo apostólico com nossa
geração, destituída por contínuas revoluções de uma cultura
própria que tenha sido confirmada pelos séculos, e que se tenha
mantido impávida em meio às tempestades da história, como é aquela
que a tradição gratuitamente nos oferece. Lembremos ainda que a
comunhão eclesial de que nossa espiritualidade atual quer viver implica
solidariedade com os irmãos que nos precederam com o sinal da fé e
dormem o sono da paz. A eles devemos nossa vida. A eles devemos o
fato de sermos também nós peregrinos em busca do Cristo que deve
vir.
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