|
A vós, padres da santa Igreja católica, a vós caros filhos entre
todos os demais, cuja ordenação fez que sejamos irmãos e
colaboradores no ministério da salvação, como o sois de vossos
respectivos pastores, a vós queremos dirigir diretamente uma palavra
hoje, no momento em que encerramos o Ano da Fé, comemorando o
décimo nono aniversário do martírio dos dois apóstolos Pedro e
Paulo. Uma palavra breve e simples, mas especialmente para vós.
Há tempo que a tínhamos no coração, para vo-la dizer. Como
vosso irmão, desde sempre, isto é, desde o dia em que tivemos como
partilha o precioso destino de sermos ordenados sacerdotes, e de sentir
a nova e profunda solidariedade que nos ligava a todos os nossos
colegas: sendo todos escolhidos para personificar o Cristo no dom de
nós mesmos à vontade do Pai, à santificação, à direção e
serviço dos fiéis, ao empreendimento da salvação do mundo. Nunca
nos faltou, com respeito a vós, padres, a união de reverência, de
simpatia e de fraternidade. Depois, quando a Igreja nos chamou ao
exercício das funções pastorais, primeiro como bispo, depois como
papa, o pensamento do clero se tornou em nós uma preocupação
interior profunda, cheia de estima, de solicitude e de caridade.
Lamentamos muito não vos ter falado suficientemente, não vos ter
testemunhado mais freqüentemente e por gestos mais significativos, o
sentimento que o Espírito do Senhor incutia e incute sempre em nosso
coração, em consideração a vós. Sentimento que sobe do coração
e arrasta consigo todos os demais pensamentos e sentimentos, que nosso
ministério faz brotar de nossa consciência: sois vós, padres,
que, sobre todas as coisas e com as coisas na ordem da caridade,
ocupais com vossos bispos, nossos irmãos, o primeiro lugar.
Esta é a razão por que vos falamos hoje. Não é uma encíclica que
vos dirigimos, não é uma instrução, não é um ato portador de
disposições canônicas, é uma simples efusão do coração: "Nós
vos falamos com toda a liberdade... Nosso coração está
inteiramente aberto" (2 Cor 6,11). Esta comemoração
centenária dos apóstolos que, pela mensagem evangélica e pelo seu
sangue, colocaram as bases da Igreja romana, nos obriga a vos abrir
nossa alma por um instante.
Com grande admiração, com imensa afeição. Conhecemos vossa
fidelidade ao Cristo e à Igreja. Conhecemos vosso empenho, vosso
zelo. Conhecemos vossa dedicação ao ministério, vossa solicitude
no apostolado. Estamos ciente também do respeito e da gratidão que
suscitam entre tantos fiéis o vosso desinteresse evangélico, a vossa
caridade apostólica. Os tesouros de vossa vida espiritual, de vossos
contatos com Deus, e de vosso sacrifício junto com o Cristo, vosso
entusiasmo pela meditação e contemplação, no seio mesmo da ação,
tudo isso nos é bem conhecido. Somos tentados a repetir a propósito
de cada um de vós as palavras do Senhor no Apocalipse: Conheço
tuas ações, teu trabalho e tua paciência (Apoc 2,2). Quanta
emoção, quanta alegria nos oferece este espetáculo! Que
gratidão! Nós vos agradecemos e vos abençoamos em nome do Cristo
pelo que sois, e pelo que fazeis na Igreja do Cristo. Sois nela os
melhores obreiros com vosso bispo, e dela sois as colunas, os
mestres, os amigos, os dispensadores diretos dos mistérios de Deus
(1 Cor 4,1; 2 Cor 6,4).
Queríamos manifestar-vos esta efusão de nosso coração, a fim de
que cada um de vós se saiba e sinta estimado e amado, e para que cada
um de vós goze da comunhão conosco, no grande desígnio e no assíduo
esforço do apostolado.
Não se trata de uma visão míope e irônica. Ao lado de tantos
padres, que encontram no ministério a serenidade e a alegria, e cuja
voz não se faz ouvir tão estrepitosamente como outras, sabemos que
existe mais de uma situação dolorosa. Há entre alguns membros do
clero uma inquietude, incerteza sobre sua condição eclesiástica.
Eles se consideram marginalizados da evolução atual.
É verdade, os padres não estão ao abrigo das repercussões da crise
de transformação, que sacode o mundo hoje. Como todos os seus
irmãos na fé, eles não ignoram também as horas de obscuridade, na
sua marcha para Deus. Ademais, sofrem, de maneira às vezes parcial
ou injusta, pelo modo como certos fatos são interpretados a respeito
da vida sacerdotal, e injustamente generalizados. Pedimos,
portanto, aos padres que se recordem de que a situação de cada
cristão, em particular a do sacerdote, será sempre uma situação
paradoxal e incompreensível aos olhos de quem não tem a fé.
Será então no aprofundamento de sua própria fé que a situação
atual deverá convidar o padre a uma tomada de consciência, cada vez
mais clara, daquilo que ele representa, dos poderes de que está
revestido, da missão de que está encarregado. Caros irmãos e
filhos, pedimos ao Senhor que nos faça capaz e digno, para vos
oferecer alguma luz, um pouco de reconforto.
A todos os padres dizemos: não duvideis nunca da natureza de vosso
ministério sacerdotal. Não é um ofício ou serviço qualquer, a se
exercer pela comunidade eclesial. É um serviço que participa de modo
particular, por meio do sacramento da ordem e com caráter indelével,
do poder do sacerdócio do Cristo.
Podemos, portanto, colocar em evidência algumas dimensões próprias
ao sacerdócio católico. Primeiramente a dimensão do sagrado. O
padre é um homem de Deus, é o ministro do Senhor: pode executar
atos que ultrapassam a eficacidade natural, porque age in persona
Christi, na pessoa do Cristo. Passa através dele uma força
misteriosa e superior, da qual ele se torna instrumento eficaz,
humilde e glorioso, em certos momentos. É o veículo do Espírito
Santo. Uma relação única, uma delegação, uma confiança divina
passam entre ele e o mundo divino.
Este dom, porém, o padre não o recebe para si, mas para os
outros. A dimensão sagrada é inteiramente ordenada para a dimensão
apostólica, a saber, para a missão e ministério sacerdotal.
Sabemo-lo bem, o padre é um homem que não vive para si, mas para
os outros. É o homem da comunidade. Em nossos dias este aspecto da
vida sacerdotal é o mais bem compreendido. Há quem encontre nisso
uma resposta às questões agressivas sobre a sobrevivência do padre no
mundo moderno, que chegam até a questinonar se o sacerdócio ainda tem
razão de existir. O serviço que presta à sociedade, à sociedade
eclesial em particular, justifica amplamente a existência do
sacerdote. O mundo tem necessidade disso. Também a Igreja.
Dizendo isso, toda a série de necessidades humanas desfilam diante de
nosso espírito. Qual a categoria de pessoas que não tem necessidade
da pregação cristã, da fé e da graça? Que homem não tem
necessidade de encontrar alguém que se dedique a ele com desinteresse e
amor? Até onde não se estendem os limites da caridade pastoral?
Não é lá onde o desejo desta caridade i se manifesta menos, que sua
necessidade é maior? Sim: as missões, a juventude, a escola, os
doentes, e em nossos dias com urgência mais solícita, o mundo
operário constituem um chamado contínuo no coração do padre.
Duvidaremos ainda em encontrar um lugar, uma tarefa, uma missão na
vida moderna? Antes seria mister dizer: como fazer para responder a
todos os que têm necessidade de nós? Como corresponder por nosso
sacrifício pessoal, ao aumento dos deveres pastorais e apostólicos?
Talvez nunca como no presente a Igreja tomou consciência de ser um
'meio indispensável de salvação, nunca no passado o dinamismo de
sua "dispensatio" foi tão importante como na hora atual. Iríamos
nós sonhar um mundo sem igreja, e uma igreja sem ministros,
preparados, especializados e consagrados! O padre é em si o sinal do
amor do Cristo pela humanidade, o testemunho do empenhamento total,
por onde a Igreja procura realizar este amor, que vai até à cruz.
Da consciência viva de sua vocação, de sua consagração como
instrumento do Cristo, a serviço dos homens, nasce nos sacerdote a
consciência de outra dimensão, a dimensão mística e ascética que
qualifica sua pessoa. Se todo o cristão é templo do Espírito
Santo, qual será a conversação interior da alma sacerdotal, com a
Presença que habita nele, que o transfigura, atormenta e embriaga?
Estas palavras do Apóstolo dirigem-se a nós, padres: ... este
tesouro nós o levamos em vasos de barro, para que se veja bem que este
extraordinário poder pertence a Deus e não vem de nós (2 Cor
4,7).
Filhos e irmãos padres, como se afirma e como se alimenta em nós
esta consciência? De que maneira arde em nós a lâmpada da
contemplação? Como nos deixamos atrair por este ponto central de
nossa personalidade e desviar, por uma pausa de instantes, para uma
conversação interior, as obrigações que nos solicitam do exterior?
Será que conservamos o gosto pela oração pessoal, a meditação, o
breviário? Como esperar que nossas atividades dêem seu rendimento
máximo, se não sabemos haurir na fonte interior do colóquio com
Deus as melhores energias que só ele pode outorgar? Onde encontrar a
razão primeira, a força suficiente para o celibato eclesiástico,
senão na exigência e plenitude da caridade infundida em nossos
corações consagrados ao único amor e ao serviço total de Deus e de
seu desígnio de salvação?
Mas as estruturas, dizem alguns, não são mais aptas, em nossos
dias, para permitirem a realização efetiva desta dedicação fecunda
e enaltecedora. Aí encontramos a quarta dimensão do sacerdócio: a
dimensão eclesial. O padre não é um solitário. É membro de um
corpo organizado, a Igreja universal, a diocese, e no caso típico
-diríamos, supereminente - membro de sua paróquia. É toda a
Igreja que deve adaptar-se às novas necessidades do mundo. Depois
de terminado o Concílio, a Igreja está inteiramente empenhada nesta
renovação espiritual e orgânica. Ajudemo-la pela nossa
colaboração, por nossa adesão, por nossa paciência.
Irmãos e filhos caríssimos, tende confiança na Igreja. Alimentai
um grande amor por eia. Pois ela é o objeto imediato do amor do
Cristo: Dilexit ecclesiam (Ef 5,25). Amai-a em seus limites
e defeitos. Não em razão de seus limites e defeitos, é claro - e
talvez suas faltas, quem sabe -mas porque é somente amando-a que
poderemos curá-la e fazer brilhar sua beleza de esposa do Cristo. A
Igreja é que salvará o mundo, a Igreja que é a mesma hoje, ontem
e amanhã, e que encontra sempre, guiada pelo Espírito e secundada
por seus filhos, a força de se renovar, de se rejuvenecer, dando uma
resposta nova às necessidades sempre atuais.
Pensamos nos inúmeros padres, lançados num esforço metódico de
enriquecimento no estudo da palavra de Deus, na aplicação justa e
fiel da reforma litúrgica, no crescimento do serviço pastoral junto
aos humildes, e necessitados de justiça social, na educação do povo
para a paz e liberdade, na aproximação ecumênica dos irmãos
cristãos separados de nós, no humilde cumprimento cotidiano dos
deveres, que lhes são determinados, e especialmente no amor difusivo
ao Senhor Jesus, a Nossa Senhora, à Igreja e a todos os homens.
Isso é para nós motivo de consolo e edificação.
Enquanto estes sentimentos se aninham em nosso coração, caros
padres, estejais perto ou distantes, nesta celebração dos santos
apóstolos e mártires Pedro e Paulo, nós vos saudamos e traçamos
sobre vós todos a nossa bênção.
Da Basílica Vaticana, aos 30 de junho de 1968.
|
|