|
O homem está em busca de si mesmo. Quer tomar consciência de si.
Quer dar à existência uma expressão sua, que sempre denomina de
nova, e por vezes de livre, integral, poderosa, original, pessoal,
autêntica... Falou-se de super-homem e de vida heróica. Outros
o definiram de preferência sob o aspecto biológico e zoológico.
A antropologia está em discussão em todos os níveis. É agora o
tema principal da discussão científica, filosófica, social,
política e até religiosa. Que é o homem? Que tipo de homem
podemos considerar ideal? Volta a antiga pergunta de Sócrates:
"Eu te pergunto: que é um santo?"
Em simples conversa como esta apresentemos apenas a questão, não
decerto para tratar dela e resolvê-la, mas só para chamar nossa
atenção para esse tema central da problemática contemporânea. E
para por em evidência hoje uma dificuldade proveniente de nossa
qualidade de cristãos. Não nos referimos agora àquela dificuldade
já mencionada, do teocentrismo, isto é, da posição central que
Deus ocupa no conceito da vida cristã, em confronto à
auto-idolatria moderna, com o antropocentrismo. Não nos referimos
agora ao conceito humanístico e profano que coloca o homem no centro de
tudo.
Falamos antes na atividade penitencial que se acha no limiar da
participação ao "reino dos céus" (Mt 3,2) e que se chama
metánoia, conversão, a saber, mudança profunda e atuante dos
pensamentos, dos sentimentos, da conduta, a qual obriga a certa
abnegação de si mesmo, e que acompanha tanto o aprendizado como a
observância das normas cristãs. Esta atitude requer renúncias por
vezes muito pesadas, como os votos religiosos. Infunde no fiel com
seu grande, mas salutar sacrifício, o senso do pecado. Exige
vigilância quanto aos perigos e tentações que espreitam o curso da
vida a cada passo. Traça como caminho do homem a via estreita, como
sendo a única que conduz à salvação (Mt 7,13-14). Requer
uma imitação do Cristo nada fácil, e impele até à exaltação de
sua cruz, e a certa participação no seu sacrifício. A vida cristã
tem em grande conta a abnegação, a mortificação, a penitência.
O cristianismo não confia no humanismo naturalista. Sabe que o homem
é um ser ferido desde sua origem, que traz na complexa riqueza de suas
faculdades, desequilíbrios extremamente perigosos, necessitando de
austera e permanente disciplina. Para viver bem o cristianismo, são
necessárias constantes reparações, reformas periódicas repetidas
renovações. A vida cristã não é mole nem fácil, não é cômoda
e formalista, não é cegamente otimista, moralmente acomodante e
abúlica, é alegre, mas não gozadora.
É este o aspecto que se opõe mais à mentalidade moderna, que aspira
a uma vida plena, cômoda, espontânea, gozadora. Considera o
cristão como um ser inibido e escrupuloso, fora das experiências mais
fortes, que costumam ser as das paixões livres, estranho às
correntes impetuosas da moda, despida de preconceitos tanto no
pensamento como na conduta. Segundo esse difundido modo de pensar, o
cristianismo pode ser apreciável sob o aspecto humanístico, pela
interioridade de suas raízes operativas, ou pela simpatia para com o
sofrimento inerme e angustiado do homem, ou pelo espírito de
iniciativa, a que dá origem em favor da igualdade e da fraternidade
humana, mas não, por seus dogmas religiosos e muito menos por seu
caráter penitencial. O homem moderno é orientado para a vida sem
renúncia e sem dor, para a vida sadia, higiênica, gozadora e
feliz.
Filhos caríssimos, aceitemos esse contraste, especialmente na
irredutível oposição de seus princípios. Não podemos esquecer a
palavra do Mestre, quando comentava uma desgraça acontecida, a queda
da torre de Siloé, com a morte de dezoito pessoas: "Se não
fizerdes penitência, perecereis todos do mesmo modo" (Lc
13,4-5).
Em todo o Evangelho ressoa este estribilho da abnegação de si
mesmo, da contribuição, da correção de certas tendências
pessoais, desordenadas, da penitência e da expiação. Abre ao
cristianismo suas primeiras conquistas (At 2,38; 11,18;
17,30). Ressoa fortemente e por vezes de modo bem lúgubre, em
certas expressões do cristianismo medieval. Chega até nossos tempos
especialmente com certas observâncias do jejum quaresmal. O
Concílio lhe faz eco. Perde seus tons mais rigorosos e formais na
recente Constituição Poenitemini, mas para reafirmar-se em
indulgentes expressões consoante às condições da vida moderna, não
menos exigentes em seu espírito e em algumas formas hoje mais
práticas, mas sempre sensíveis e sinceras.
A necessidade de orientar resolutamente a própria vida para Deus e
para sua vontade, a necessidade do domínio de si e da purificação da
própria vida, a razão de ser de uma escolha fundamental que dê norma
e valor moral à própria conduta, a íntima e premente exigência de
reparar as próprias faltas, a secreta atração por aproximar-se da
cruz de Cristo, e completar na própria carne seus sofrimentos (Col
1,24), dão ainda hoje, onde quer que o Evangelho seja
compreendido e vivido, um lugar insubstituível à penitência na
imagem ideal do homem novo, do homem verdadeiro, do homem em busca de
perfeição.
Não deve ser impossível nem mesmo difícil ao homem moderno
compreender esta necessidade. O homem esportivo, por exemplo,
oferece a são Paulo um argumento que do campo físico passa ao
espiritual, e que, por conseguinte, pode refluir do campo espiritual
ao campo prático da vida corrente: "Todos os atletas se impõem
rigorosa abstinência" (1 Cor 9,24-27). As coisas fortes,
as coisas grandes, as coisas belas, as coisas perfeitas são difíceis
e exigem renúncia, esforço, engajamento, paciência, sacrifício.
A penitência cristã é para o homem novo e perfeito. Ela exerce um
papel importante. É funcional. Não é fim para si mesma. Não
diminui o homem. É uma arte para que restaure sua primeira fisionomia
original, aquela que reflete a imagem de Deus, como Deus havia
concebido o homem ao criá-lo (Gen 1,26-27). Seu fim é
imprimir na face humana, depois da aflição da penitência, o
esplendor pascal de Cristo ressuscitado. Este é o nosso humanismo.
Parece paradoxal. Mas nosso humanismo vence a grotesca deformação
da beleza humana procurada na "dolce vita". Cicatriza as feridas e
enxuga as lágrimas com que a dor regou a face do homem. Dá novamente
à nossa vida a segurança, que ela mais reclama e que mais lhe falta a
da perfeição da imortalidade.
"Quem tiver ouvido para ouvir, que ouça", diz o Senhor (Mc
4,23; Mt 19,12).
|
|