2 DE FEVEREIRO DE 1970. CARTA DE PAULO VI AO CARDEAL VILLOT SECRETÁRIO DE ESTADO.

Senhor Cardeal,

As declarações tornadas públicas nestes últimos dias na Holanda, a respeito do celibato eclesiástico, nos causaram profundo pesar e suscitaram muitas questões no nosso espírito, por causa dos motivos que determinaram tão grave atitude, contrária à sacrossanta lei vigente na Igreja Latina, das repercussões que têm em todo o Povo de Deus especialmente no clero, e nos jovens que se preparam para o sacerdócio, das conseqüências perturbadoras na vida de toda a Igreja, e das ressonâncias que provoca em todos os cristãos, e mesmo nos outros membros da família humana.

Diante destas interrogativas, sentimos a necessidade de abrir nossa alma a Vossa Eminência, Sr. Cardeal, que tão de perto compartilha conosco as solicitudes do nosso múnus apostólico.

Antes de tudo perguntamos com humilde e absoluta sinceridade interior, se porventura não teria havido de nossa parte alguma responsabilidade no que se refere a tão infelizes resoluções, tanto em contraste com a nossa atitude e como pensamos, com a atitude de toda a Igreja.

O Sr. é testemunha dos sentimentos de estima, de afeto, de confiança, que sempre nutrimos por esta porção tão benemérita do Corpo místico de Cristo, como é a Holanda. E Vossa Eminência bem conhece, Sr. Cardeal, a ação sempre diferente e amiga, que desenvolvemos tanto nos encontros pessoais, como na correspondência epistolar, e também os que deram os órgãos desta Sé Apostólica, a fim de prevenir as declarações em questão.

Tais declarações ocasionam muitas incertezas e perturbações. Por conseguinte é para nós um dever, grave e impelente, definir com toda a clareza a nossa atitude ou, por outras palavras, daquele a quem um misterioso desígnio da divina Providência confiou nesta hora difícil a "sollicitudo omnium ecclesiarum, o cuidado sobre todas as igrejas" (2 Cor 11,28).

Os motivos aduzidos para justificar tão radical mudança, nesta lei secular da Igreja Latina, que produziu tantos frutos de graça, de santidade e de apostolado missionário, são bem conhecidos. Mas estes motivos - devemos declará-los sem equívoco - não nos parecem convincentes. Parecem realmente não levar na devida consideração um fato fundamental e essencial, que não deve ser esquecido de modo algum, e que é de ordem sobrenatural. Isto é, parecem representar uma transigência no genuíno conceito do sacerdócio.

A única perspectiva que deve ser tida em conta é efetivamente a da missão evangélica, de que, com fé e na esperança do reino, somos arautos e testemunhas. O bispo e o presbítero têm a missão de anunciar o Evangelho da graça e da verdade (Jo 1,14), de levar a mensagem da salvação ao mundo, de o tornar consciente do seu pecado, e ao mesmo tempo da sua salvação, de o convidar a ter esperança, de o arrancar do poder sempre renascente dos ídolos, e de o converter a Cristo Salvador. Os valores evangélicos não podem ser compreendidos e vividos senão na fé, na oração, na penitência, na caridade, mas não sem lutas e mortificações, nem sem suscitar por vezes, como sucedeu com Cristo e com os apóstolos, a irrisão e o desprezo do mundo, a incompreensão e até a perseguição. O dom total que se oferece a Cristo, chega até à loucura da cruz.

Foi uma compreensão cada vez mais profunda destas considerações, amadurecida providencialmente no decorrer da história, que conheceu tantos esforços e tantas lutas na afirmação do ideal cristão, e que levou a Igreja Latina afazer da renúncia ao direito de constituir uma família própria - já espontaneamente realizada por tantos servidores do Evangelho - uma condição para a admissão dos candidatos ao sacerdócio. Estas considerações ainda hoje são válidas, talvez até mais do que no passado. E nós que fomos chamados para seguir a Jesus, não seremos porventura capazes de aceitar uma lei comprovada por tão longa experiência, e de abandonar tudo, família e redes, para seguir a Cristo e difundir a boa-nova da salvação? (Mc 1,16). Quem melhor do que os pastores, que sabem consagrar-se irrevogavelmente e sem reservas ao serviço exclusivo do Evangelho, poderá transmitir aos homens de nosso tempo, com plenitude de graça e de força, esta mensagem libertadora? (At 6,8).

Por conseguinte, considerando tudo diante de Deus, diante de Cristo, da Igreja e do mundo, sentimo-nos no dever de reafirmar, claramente, o que já declaramos e muitas vezes repetimos: que o vínculo entre sacerdócio e celibato, estabelecido há séculos pela Igreja Latina, constitui para ela um bem sumamente precioso e insubstituível. Seria grave temeridade não estimar devidamente ou até deixar cair em desuso este vínculo consagrado pela tradição, sinal incomparável de uma doação total ao amor do Cristo (Mt 19, 29), que tão luminosamente manifesta a exigência missionária essencial a toda a vida sacerdotal, pio serviço de Cristo ressuscitado e sempre vivo, ao qual o sacerdote se consagrou, numa disponibilidade total para o reino de Deus.

Quanto aos sacerdotes, que infelizmente por motivos reconhecidos como válidos, viessem a encontrar-se na impossibilidade radical de perseverar neste estado - sabemos que se trata apenas de um pequeno número, porquanto a grande maioria quer permanecer fiel, com o auxílio da graça, aos sagrados compromissos assumidos diante de Deus e da Igreja -é com profunda mágoa que somos levados a atender à sua instante súplica de ficarem livres das suas promessas, e dispensados das suas obrigações, depois de um atento exame de cada caso em particular.

Mas a profunda compreensão, que em espirito de paterna caridade queremos ter pela pessoa, não nos impede de deplorar uma atitude tão pouco conforme com o que a Igreja legitimamente espera daqueles que se consagraram definitivamente ao seu exclusivo serviço.

A Igreja continuará, não obstante, amanhã como ontem, a confiar o divino ministério da palavra da fé e dos sacramentos da graça unicamente aos sacerdotes que permanecerem fiéis às suas obrigações.

A própria contestação multiforme, que hoje se manifesta, no que diz respeito a uma instituição tão santa, como é o sagrado celibato, torna ainda mais imperioso o nosso dever de sustentar e encorajar, de todos os modos, as inumeráveis fileiras de sacerdotes que permanecerem fiéis aos seus compromissos. Para eles vão, especialíssimo afeto, o nosso pensamento e a nossa bênção.

Por este motivo, com decisão tomada após maduro exame, nós afirmamos claramente o nosso dever de não admitir que o ministério sacerdotal seja exercido por aqueles que, depois de terem posto a mão no arado, voltaram atrás (Lc 9,62).

Não é esta, aliás, a tradição constante das veneráveis igrejas orientais, a que tanto se gosta de fazer referência a este propósito?

De resto, mal ousamos pensar nas incalculáveis conseqüências, que uma decisão diferente poderia acarretar para o Povo de Deus, no plano espiritual e pastoral.

Enquanto sentimos o dever de reafirmar dês te modo, com tanta clareza a lei do sagrado celibato, não ignoramos uma questão que nos tem sido proposta com insistência por alguns bispos. Neles reconhecemos o zelo e a fidelidade às veneráveis tradições do sacerdócio na Igreja Latina, e aos valores tão eminentes que ele exprime, e também o anseio pastoral em face de certas necessidades, muito particulares de seu. ministério apostólico. Numa situação de extrema carência de sacerdotes, perguntam-nos eles, não se poderia, porventura, considerar a eventualidade de ordenar para o sagrado ministério - apenas em regiões que se encontram em semelhantes circunstâncias - homens de certa idade, que tenham dado no próprio meio bom testemunho de uma vida familiar e profissional exemplar?

Não podemos ocultar que esta eventualidade desperta em nós graves reservas. Entre outros inconvenientes, não seria uma ilusão muito perigosa julgar que tal mudança na disciplina tradicional poderia limitar-se a casos isolados de verdadeira e extrema necessidade? E não seria também uma tentação para muitos julgar que assim se resolveria mais facilmente o problema da escassez atual de vocações?

Em todo o caso, as conseqüências seriam de tal forma graves, e levantariam problemas tão insólitos para a vida da Igreja, que deveriam pelo menos ser prévia e atentamente examinados conosco, pelos nossos irmãos no episcopado, tendo em conta diante de Deus o bem da Igreja universal, que não pode dissociar-se do bem das igrejas locais.

Estes problemas, que se põem à nossa responsabilidade pastoral, são na verdade graves, Sr. Cardeal, e nós quisemos confiar-lhos.

Vossa Eminência é testemunha de quantos apelos chegam até nós de toda a parte: inúmeros irmãos e filhos suplicam-nos que não se mude nada em tão venerável tradição, e ao mesmo tempo desejam conosco, que os nossos veneráveis irmãos bispos da Holanda empreendam, com a Sé Apostólica, num contato fraternal e confiante, um novo exame que deverá amadurecer, à luz da oração e da caridade.

Mais do que nunca da nossa parte, desejamos tanto procurar, juntamente com os pastores da diocese da Holanda, os meios necessários para resolver, de maneira conveniente os problemas deles, sem deixar de considerar em comum o bem de toda a Igreja.

Portanto, Sr. Cardeal, primeiro que tudo julgamos indispensável assegurar os sacerdotes e todos os membros da comunidade católica holandesa do nosso constante afeto e também da nossa convicção de que é indispensável reconsiderar, à luz das reflexões acima expostas, e num espírito de verdadeira comunhão eclesial, os desejos expressos e a atitude assumida, numa questão de tão grave alcance para a Igreja universal.

No trabalho que para este fim terá de ser realizado pela Santa Sé, nós contamos especialmente com a sua valiosa colaboração, Sr. Cardeal.

O seu auxílio nos será precioso, até nos contatos que se deverão ter com os bispos do mundo inteiro, a fim de que todas as conferências episcopais se mantenham em perfeita comunhão conosco e com a Igreja universal, no absoluto respeito às suas santas leis. Queremos afirmar aos sacerdotes nossos colaboradores, que seguimos e continuaremos a seguir, com afeto paterno, os seus anseios de apostolado e os seus problemas, recordando-lhes também a beleza da graça que o Senhor lhes concedeu, os seus compromissos sagrados e as exigências missionárias do seu ministério. O nosso cordialíssimo pensamento, nesta circunstância, não podia deixar de se dirigir aos jovens que, com a generosidade de seu impulso apostólico, se preparam com todo o coração para servir a Cristo e a seus irmãos no sacerdócio. Eles são, de fato, a esperança da Igreja, para a evangelização do mundo de amanhã: isto é claro, desde que se empenhem irrevogavelmente e sem reservas na forma da vida que a Igreja lhes propõe.

Por último, Sr. Cardeal, será preciso pedir insistentemente generosas orações à multidão das almas fiéis, que embora se conservem em silêncio, nem por isso sofrem menos nesta hora de provação.

Que o Senhor conceda a todos, pastores e fiéis, a firmeza da fé, a força da esperança e o ardor da caridade: "A graça esteja com todos os que amam nosso Senhor Jesus Cristo, com amor inalterável" (Ef 6,24).

Com estes sentimentos, concedemos-lhe, Sr. Cardeal, nossa bênção apostólica.

Vaticano, 2 de fevereiro de 1970, dia da Apresentação de Jesus no Templo.