1 DE MAIO DE 1969. HOMILIA PRONUNCIADA NA FESTA DE SÃO JOSÉ OPERÁRIO.

Estamos na festa de são José, esposo virgem de Maria sempre virgem, padroeiro da Igreja universal, que veneramos hoje sob o aspecto humilde, modesto, pobre do trabalhador da Galiléia, esteio válido e infatigável da sagrada família, imagem luminosa e discreta da providência do Pai celeste.

O pensamento ante este apelo tão sugestivo e persuasivo, se orienta espontaneamente para a história evangélica, enquadrada no humilde cenário de Nazaré, onde o Filho de Deus vivia submisso, crescendo em sabedoria idade e grau (Lc 2,51-52). O pensamento se orienta também para a condição social, na qual Cristo quis ser cidadão na terra e nosso irmão, em aberto contraste com a mentalidade corrente, com nossas pretensões insatisfeitas, com a vontade humana de poder, de tal forma que os cidadãos maravilhados, como destaca o texto da missa, se perguntavam: "De onde lhe vem a sabedoria e os milagres? Por acaso não é ele o filho do carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria? Donde lhe vem tudo isso? E se escandalizavam dele" (Mt 13,54-56).

Filius fabri: o escândalo de então, presságio e prelúdio do escândalo da cruz (Gal 5,11) , tornou-se para a Igreja fonte inesgotável de admiração e de êxtase, de oração e contemplação, de exame de consciência e talvez também de censura. Entretanto a Igreja e com ela seus santos e suas instituições, os humildes e os que sofrem, fiéis herdeiros dos "pobre de Javé" do Antigo Testamento, permaneceu e é fiel a este Evangelho textual: ela o torna objeto de suas contínuas meditações, e do Evangelho da pobreza e humilhação do Cristo tira sua tradição, liturgia, obras de caridade, que desenvolvem, aprofundam, ampliam os elementos seminais de origem evangélica, sem alterá-los ou corrompê-los, sem modificá-los, conduzindo-os à perfeita realização e honrando-os com seu amoroso respeito, como a árvore é plena complementação da semente.

A pobreza de Nazaré, em sua nudez e em seus despojos, na fadiga, continuou a ser escola para os filhos autênticos da Igreja em todos os tempos. Inspirou a generosidade de seus pontífices e de seus bispos, de seus sacerdotes e, de seus filhos, fez nascer as grandes obras beneficentes ainda características e atuais, difundiu com essas consciências sua atividade missionária: Evangelizare pauperibus misit me, porque a Igreja é madada a evangelizar os pobres, isto é, anunciar a alegre mensagem aos pobres (Lc 4,18; Is 61,1).

Destas reflexões que acabamos de fazer, surge um primeiro ensinamento: o de recorrer continuamente ao Evangelho. É nosso dever e nossa força. Hoje em especial nos deve interessar o mistério da pobreza do Cristo. Disso falou o Concílio ao dizer que "é necessário que a Igreja, sempre sob o influxo do espírito de Cristo, siga o mesmo caminho que ele seguiu, isto é, o caminho da pobreza, da obediência, do serviço e do sacrifício de si mesmo". O espírito de pobreza e de amor são a "glória e sinal da Igreja de Cristo". Disso talamos também desde nossa primeira encíclica Ecclesiam Suam, insistindo no dever que temos de "propor à vida eclesiástica aqueles critérios orientadores que devem fundamentar nossa confiança, mais na ajuda de Deus e nos bens do espírito, do que nos meios temporais". Propondo como ideal a seguir na Encíclica Populorum Progressio, a "orientação para o espírito de pobreza". Disso falam também aqueles que desejam a renovação da Igreja.

Temos que aproveitar estas disposições, que tanto favorecem a pobreza da Igreja e a formação do cristão moderno no espírito da pobreza. No momento em que as riquezas econômicas do mundo crescem desmesuradamente, nós Igreja nos tornamos mais fielmente discípulos da pobreza de Cristo. Não para contestar ao mundo seu progresso, mas em razão de uma dupla finalidade: antes de tudo para recordar a nós mesmos que somente nas forças espirituais, na graça e na imitação de Cristo devemos por nossa confiança, segundo a advertência do Evangelho: "Guardai-vos de toda a avareza porque nem toda riqueza está nos bens materiais" (Lc 12,15). Em segundo lugar, para bem utilizarmos a riqueza que se deve empregar no pão para os pobres, na melhor distribuição dos bens temporais, no serviço do homem, o que significa, numa palavra, segundo a expressão de nosso predecessor João XXIII, "disposição permanente para dar uns aos outros o melhor de si mesmo".

Nosso pensamento entretanto se amplia e torna mais complexo. A pobreza, na história do mundo, esteve estreitamente ligada à condição do trabalho, particularmente do mais humilde desprezado, exposto ao arbítrio e ao abuso. É uma lei misteriosa, conseqüência do primeiro pecado, pelo qual entraram no mundo os sofrimentos físicos, a fadiga manual, o suor da fronte, a miséria espiritual e material. Cristo, embora filho de Deus, não quis furtar-se a tal lei: também nisto ele foi verdadeiramente o Filho de Deus. Na escola de são José, Cristo foi trabalhador, sofreu, suou, cansou-se durante os trinta anos de sua vida incógnita. Ao aceitar, porém, o trabalho, a condição de humilhação e de fadiga ficou transfigurada, e o trabalho, embora conservando o elemento bivalente de atividade sã e de penosa fadiga, pode, por isso, ser encaminhado novamente - se vivido à luz da nova economia da graça - à sua antiga função de colaboração prestada a Deus (Gên 1,28), fazendo-nos participar também nos sentimentos do Cristo e seguir seus exemplos.

Com o ensinamento e seguindo as pegadas do Cristo trabalhador, a Igreja considera, portanto, o trabalho em sua utilidade verdadeira, nobre e dignificante: quer como atividade, desenvolvimento e pedagogia do homem, quer como conquista e domínio da terra, segundo o primitivo plano de Deus. Por isso, a Igreja honra o trabalho, no qual se vê refletida a glória do primeiro homem, criado à imagem de Deus e, sobretudo, a mansa e incógnita humildade do Cristo.

A Igreja honra o trabalho, seja ele manual, ou artesanal, ou artístico, ou técnico, ou científico. Encoraja-o e o elogia porque vê nele o instrumento da mútua colaboração humana, a expressão visível dos vínculos de fraternidade e de ajuda que unem o gênero humano, como num abraço imenso. A Igreja vê no trabalho uma grande escola de cai idade, além do tecido chie entrelaça o progresso humano. Por isso o anima e o elogia repetindo com o apóstolo Paulo a exortação séria, viril e austera: "Aquele que não quer trabalhar, não coma" (2 Tes 3,10).

Todos os homens devem ser aplicados ao trabalho. Dividem-se as funções, distinguem-se as competências, repartem-se as conquistas. Infelizmente o germe da discórdia, introduzido no mundo pelo pecado, continua a operar de modo nefasto, e especialmente neste campo, não raro com inequívoca perversidade. Destas divisões naturais, que, como dizíamos, deveriam ser fonte de equilíbrio, cie mútua complementação e de cooperação recíproca, derivam, pelo contrário e infelizmente, dolorosas desigualdades. Daí as várias classes que outrora viviam em concórdia, sob o signo da civilização atuante, puseram-se umas contra as outras, e eis que a classe trabalhadora foi menos afortunada, ou melhor, em certas situações, oprimida e humilhada. Daqui as lutas que deixaram um rastro de profunda perturbação em nosso tempo, caracterizado exatamente por semelhantes conflitos, que ainda agora, não obstante inegáveis melhorias se terem verificado, dividem freqüentemente os ânimos com real detrimento do bem comum.

Neste estado de coisas, a Igreja tomou sua posição conhecida. As encíclicas sociais dos pontífices da era moderna a partir da Rerum Novarum, estão aí a testemunhar como ela defendeu e continua a defender os trabalhadores, para que se realize melhor justiça social.

Tal defesa do trabalho, porém, em nome da dignidade da pessoa humana continua a precisar da nossa aplicação. Os motivos são conhecidos: existem ainda em nossos dias muitos povos que não atingiram o conveniente desenvolvimento. As classes trabalhadoras continuam excluídas em larga escala do bem-estar e da segurança social. Ressurgem com preocupante alarme desigualdades econômicas, que já tinham sido resolvidas. O homem é usado, às vezes, como instrumento segundo os cálculos impiedosos das leis econômicas. Necessária, portanto, seria de nossa parte uma ação infatigável, sem medo e sem demoras, realizada também ela in nomine Domini, em nome do Senhor, porque é ele que assim o quer. Como acentuamos em nossa encíclica Populorum Progressio o desenvolvimento é o nome novo da paz.

Deste conhecimento, ante o qual ninguém deve considerar-se isento de um sério exame de consciência, nascem os propósitos que a graça divina, que promana do sacrifício eucarístico, deve suscitar em nossos corações, como de um terreno bem preparado.

Devemos amar a pobreza, porque o Cristo também a amou, ele que "sendo rico se fez pobre por nosso amor, a fim de enriquecer-nos com a sua pobreza" (2 Cor 8,9). Devemos pô-la em prática tornando-nos pobres e disponíveis diante de Deus, porque ele "encheu de bens os famintos e aos ricos despediu de mãos vazias" (Lc 1,53), desapegando-nos dos bens terrenos, e dando o supérfluo àqueles que se encontram em necessidade (Lc 11,54). Devemos amar os pobres que são, em certo sentido, o sacramento do Cristo, porque com eles quis ele se identificar, isto é, nos famintos, nos que têm sede, nos peregrinos, nos que estão nus, nos doentes, nos encarcerados (Mt 25,31-46). Devemos ajudá-los, sofrer com eles também e segui-los, porque a pobreza é o caminho mais seguro para aposse do reino de Deus.

Ao lado destas resoluções pessoais, eis aquelas que devem brotar da consciência das nações, no sentido de responsabilidade, que a todos compromete para o bem comum, e para a paz do mundo. É dever inadiável favorecer os povos necessitados de maior desenvolvimento. Isto não com a violência, mas com a mansidão do Evangelho, com a força moral da justiça e com a pressão que promana do amor.

Seja este programa atualíssimo, o empenho da Igreja do tempo presente. Empenho nosso, de nós pessoas, de nós instituições, de nós povos a fim de que o Evangelho seja realmente anunciado a todas as almas, e não encontre obstáculos na obstinação ou na insensibilidade de nenhuma pessoa, sobretudo de quantos se orgulham do nome de cristão.