23 DE AGOSTO DE 1968. DISCURSO PRONUNCIADO EM BOGOTÁ.

É às categorias mais numerosas e mais representativas que compõem esta assembléia, que dirigimos algumas palavras para responder à objeção possível de ser suscitada no espírito de todos: Será que basta só a caridade? Será o amor capaz e suficiente para soerguer o mundo, para triunfar das dificuldades inúmeras e multiformes que se opõem ao desenvolvimento de transformação e regeneração da sociedade, tal qual se nos é apresentada hoje pela história, pela etnografia, a economia, a política e a organização do poder público? Em face ao mito atual da eficiência do temporal, estamos realmente seguros de que a caridade não é uma ilusão ou uma alienação?

Devemos responder sim e não. Sim, a caridade é necessária e suficiente como princípio de propulsão do grande fenômeno de renovação do mundo defeituoso em que vivemos. Não, a caridade não basta, se não passa de pura teoria, verbal e sentimental, se não leva após si outros valores, em primeiro lugar a justiça que é o mínimo de caridade e outros coeficientes, que tornem prática, eficaz e concreta a ação inspirada e mantida pela caridade, no domínio tão diversamente especifico das realidades humanas e temporais.

Sabemos bem que no momento em que o papa visita pela primeira vez este continente, essas realidades passam por uma crise profunda aqui na América Latina, verdadeiramente histórica, revestindo muitos e até excessivos aspectos inquietantes e aflitivos.

Pode o papa ignorar tal inquietude? Não seria falha uma das metas de sua viagem, se voltasse a Roma sem ter tocado seriamente no ponto central do problema que suscita esta angústia?

Muitos, especialmente entre os jovens, insistem sobre a necessidade de mudar sem tardança as estruturas sociais, que segundo eles se opõem à instauração de condições realmente justas para os indivíduos e para as comunidades. Alguns concluem até que o problema capital da América Latina não pode ser resolvido senão pela violência.

Com a mesma lealdade que nos obriga a reconhecer que tais teorias e tais práticas encontram muitas vezes sua motivação última em nobres impulsos de justiça e de solidariedade, devemos dizer e reafirmar, entretanto, que a violência não é evangélica nem cristã e que as mudanças bruscas e violentas de estruturas seriam ilusórias, ineficazes mesmo, e não conforme à dignidade do povo. Esta dignidade exige, com efeito, que transformações necessárias se realizem a partir de dentro, graça a uma tomada de consciência, a uma preparação adequada, e à participação efetiva de todos, participação esta que as condições atuais de vida, muitas vezes desumana, e a ignorância, impedem de efetivar. Por conseguinte, a nosso critério, o fecho de abóboda neste problema fundamental da América Latina se acha num esforço duplo, simultâneo, conjugado e reciprocamente benéfico: de uma parte, certo, proceder à reforma das estruturas sociais, mas a uma reforma gradativa, possível de ser assimilada por todos, de outra parte, que aliás irá de par, impõe a necessidade de empreender uma ação vasta e paciente, tendente a favorecer a "maneira de ser homens" para a grande maioria dos que vivem na América Latina. Ajudar a cada um a tomar consciência plena de sua própria dignidade, a desenvolver sua personalidade na comunidade de que é membro, a ser pessoa consciente de seus direitos e deveres, a tornar-se livremente elemento válido para o progresso econômico, cívico e moral da sociedade, eis a grande tarefa prioritária que se impõe e sem a qual toda mudança brutal das estruturas sociais seria um subterfúgio inútil, efêmero e perigoso.

Essa tarefa, bem o sabeis, se traduz concretamente em toda atividade, suscetível de favorecer a promoção integral do homem, e sua integração efetiva na comunidade: alfabetização, educação de base, educação permanente, formação profissional, formação da consciência cívica e política, organização metódica dos serviços materiais, indispensáveis ao desenvolvimento normal da vida individual e coletiva na época moderna.

Podemos esperar que estes graves problemas sejam meditados e apreciados em seu justo valor, à luz do mistério de caridade que estamos celebrando? Caros filhos da América Latina, podemos esperar que sereis capazes de haurir deste mistério a força necessária e eficaz, para que cada um de vós apresente sua justa e urgente contribuição para solucionar estes problemas? O papa espera isso. O papa confia em vós.

De nossa parte, queremos repetir diante de vós que representais todas as classes sociais da América Latina, a nossa resolução que é de perseguir, com novo impulso e com todos os meios possíveis, o esforço para atingir os objetivos que acabamos de enumerar e que tínhamos já proclamado ao mundo na encíclica Populorum Progressio.