17 DE FEVEREIRO DE 1969. AUDIÊNCIA AOS PREGADORES DA QUARESMA E AOS VIGÁRIOS DE ROMA.

Antes de mais nada devemos lembrar algumas idéias dinâmicas, hoje percorrendo toda a Igreja, e que especialmente entre os eclesiásticos suscitam muita perturbação.

A primeira delas refere-se à figura do padre, a qual é considerada, quase sempre, exteriormente na sua posição sociológica, no quadro da sociedade contemporânea, a qual, como todos sabem, se acha toda em movimento, toda em transformação.

O padre que permaneceu no seu lugar, viu-se abandonado por sua tradicional comunidade. A seu redor fez-se um vácuo, em muitos lugares. Noutros mudou a clientela pastoral. Difícil é aproximar-se dela, difícil entendê-la, difícil despertar-lhe o interesse pelas coisas religiosas, difícil reuni-la em comunidade harmoniosa, fiel e orante.

Então o padre se interrogou, sobre o que está fazendo num mundo tão diferente daquele que assistiu um dia. Quem o escuta ainda? Como pode fazer-se escutar? O padre sentiu-se como um fenômeno social estranho, anacrônico, impotente, inútil, até ridículo.

Eis então a idéia nova e dinâmica: é preciso fazer algo, é preciso tudo arriscar, para novamente aproximar-se do povo, para compreendê-lo, para evangeliza-lo. A idéia é ótima, e vemos que brotou dá caridade do coração desolado do padre, que se sentiu excluído do mundo histórico, social e humano em que se devia encontrar como personagem central, mestre e pastor. Nele, porém, tornou-se forasteiro, solitário, supérfluo e objeto de zombaria. Fizeram-se intoleráveis a inconvivência e o sofrimento desta sorte. O sacerdote procurou inspiração e energia na profundidade e na essência de sua vocação. É preciso mexer-se, disse, e retomar a "missão". Talvez o tenha dito com prejuízo da celebração do culto divino e da administração normal dos sacramentos.

Idéia ótima, dizemos, e sinal de altíssima consciência sacerdotal. O sacerdote não é para si, mas para os outros. O sacerdote deve correr atrás dos homens, pára torna-los fiéis e não apenas ficar esperando que os homens venham a ele. Se a sua igreja se esvaziou, ele deve sair "pelas praças e ruas da cidade" em busca dos pobres e depois até "pelos caminhos e veredas" e forçar os convidados assim reunidos a entrarem (Lc 14,21-23). Esta urgência apostólica impele os corações de muitos sacerdotes cujas igrejas se tornaram desertas. E se isso assim ocorre, como não admira-los? Como não lhes dar nosso apoio?

Mas prestemos atenção justamente pelo caráter experimental e positivo do apostolado. Primeiro, nem sempre as coisas se passam desta forma. Ainda existem comunidades compostas de numerosíssimos fiéis e desejosas de observância regular: por que deixa-las? Por que mudar para elas o método do ministério, quando este é ainda autêntico, válido e magnificamente fecundo? Não causaríamos um mal-estar à fidelidade de tantos bons cristãos, para tentar aventuras de incerto sucesso? Segundo, quando basta abrir uma nova igreja, e acolher com amorosa solicitude as pessoas que para aí espontaneamente acorrem, ávidas da palavra divina e da graça sacramental, por que imaginar formas novas e estranhas de apostolado, de duvidosa eficácia e talvez de precária duração? Não convém antes aperfeiçoar as tradicionais e fazê-las reflorescer, como nos ensina o Concílio, com realismo pastoral, com nova beleza e nova eficácia, antes de experimentar outras, muitas vezes, arbitrárias e de não seguro resultado, ou restrito a grupos particulares, e separados da comunhão do povo fiel? Não esqueceremos a palavra de Jesus, recomendando-nos deixar as noventa e nove ovelhas no aprisco, a fim de ir em busca da única que se tresmalhou (Lc 15,4). Isto especialmente se a proporção, como hoje, acontece em determinadas situações, fosse inversa, ou seja, uma só ovelha no aprisco, e noventa e nove tresmalhadas. Mas sempre nos servirá de guia o critério da unidade e da totalidade de nosso rebanho, o critério do amor pastoral e da responsabilidade, para com as almas e seu inestimável valor.

É preciso prestar atenção: a necessidade, ou melhor, o dever da missão eficaz, inserida na realidade da vida social, pode produzia outros inconvenientes, como o de menosprezar o ministério sacramental e litúrgico, como se fosse um freio e empecilho ao da evangelização direta do mundo moderno. Ou então aquele, hoje muito difundido, de pretender fazer do padre, um homem como qualquer outro, na vestimenta, na profissão profana, na freqüência aos espetáculos, na experiência mundana, no engajamento social e político, na formação de família própria, abdicando ao sagrado celibato. Fala-se de querer assim integrar o sacerdote na sociedade.

É assim que deve ser entendido o significado da magistral palavra de Jesus que deseja estejamos no mundo. mas não sejamos do mundo? Não chamou ele r escolheu discípulos, aqueles que deviam estender e continuar o anúncio do reino de Deus, distinguindo-os e até separando-os do modo comum de viver, e pedindo-lhes que deixassem tudo para segui-lo, a ele só? Todo o Evangelho fala desta qualificação, desta "especialização" dos discípulos, que depois deviam exercer o múnus de apóstolos. Jesus separou-os, não sem um radical sacrifício da parte deles, de suas ocupações corriqueiras, dos seus interesses legítimos e normais, de sua assimilação ao ambiente social, dos seus afetos sagrados. Quis que se dessem a ele, dedicados com doação integral, com um compromisso sem reticências, insistindo, é certo, na sua livre e espontânea resposta, mas desde logo anunciando-lhes uma total renúncia, imolação heróica. Ouçamos de novo o inventário de nossos desapegos, dos lábios mesmos de Jesus: Todo aquele que deixar sua casa, seus irmãos e irmãs, seu pai e sua mãe, sua mulher e filhos, seus campos, por amor de mim... (Mt 19,29). Os discípulos tinham consciência desta sua pessoal e paradoxal condição, pois dizia Pedro: Pois bem, deixamos tudo para te seguir... (Mt 19,27).

O discípulo, o apóstolo, o sacerdote, o autêntico ministro do Evangelho, pode socialmente ser um homem como os outros homens? Pobre como os demais, sim. Irmão dos outros, sim. Servo do próximo, sim. Vítima para os demais, sim. Mas ao mesmo tempo dotado de uma função altíssima e especialíssima: Vós sois o sal da terra... Vós sois a luz do mundo. É claro, se tivermos a noção da composição orgânica do corpo eclesial. A tal respeito não poderia são Paulo ser mais explícito: O corpo humano não se compõe só de um membro, mas de muitos. Se todos constituíssem apenas um só membro, onde estaria o corpo? Há, portanto, uma multiplicidade de membros, mas um só corpo (1 Cor 12,14-21).

A diversidade de funções é princípio constitucional na Igreja de Deus. A ela se refere em primeiro lugar o sacerdócio ministerial. Cuidemos em não perder esta missão específica, por um mal entendido propósito de assimilação, de "democratização", como se diz hoje na sociedade ambiental: "Se o sal perder a sua força, com que lhe restituiremos seu sabor? Para nada mais serve senão para ser jogado fora e pisado pelos homens" (Mt 5,13). São palavras do Senhor, que devem levar à reflexão para o discernimento necessário, na aplicação da fórmula que lembramos estar no mundo, mas não ser do mundo. A falta desse discernimento, do qual tanto nos falaram a educação eclesiástica, a tradição ascética e o direito canônico, pode justamente obter o efeito contrário àquele que seu incauto abandono nos tinha feito esperar: a eficácia, a renovação, a modernidade. De fato pode assim ser anulada a eficácia da presença e da ação sacerdotal no mundo. Justamente a eficácia que se pretendia alcançar, ao reagir imprudentemente à separação do sacerdote do resto da sociedade. Anulada na estima e confiança do povo, e pela exigência prática de dedicar a ocupações profanas e afeições humanas: tempo; coração, liberdade, superioridade de espírito (1 Cor 2,15) que apenas o ministério sacerdotal poderia reivindicar para si.

De novo afirmamos, irmãos veneráveis e caríssimos, é preciso prestar atenção. Este desejo de inserir o sacerdote no complexo social, em que se passa a sua vida e se exerce o seu ministério, é bom. Mas do propósito generoso de sair do invólucro de uma condição cristalizada e privilegiada, pode vir a traduzir-se nume sugestão errônea gravíssima, que poderá paralisar a vocação sacerdotal, naquilo que ela possui de mais íntimo, mais carísmático e fecundo. Pode demolir num só golpe o edifício da funcionalidade pastoral. Como também pode expor sacerdotes bons, especialmente jovens, ao influxo das correntes mais discutíveis e perigosas, de mentalidades estranhas em moda. Pode desta forma torná-los vulneráveis exteriormente, e expô-los à aceitação exagerada e incontrolada das idéias alheias. O gregarismo ideológico e prático se tornou contagioso. Num relato sério sobre os fatos de maio passado, no ambiente universitário francês, líamos: "On a signalé aussi l'imprégnation de Ia mentalité maoiste chez certains aumôniers d'étudiants. Foi denunciada também a infiltração de mentalidade maoísta entre alguns capelães de estudantes".

É mister estar atento. Outra idéia dinâmica, também louvável, em si, mas muitas vezes descontrolada na sua formulação e explosiva na problemática aplicação, é a das assim chamadas "estruturas". Não se sabe bem qual o significado atribuído a este termo na linguagem eclesiástica, especialmente quando se quer conservar o devido respeito à obra do Cristo, à Igreja tal como, é, em seu plano constitucional, em seu patrimônio doutrinal, em sua elaboração tradicional, instrumento e sacramento da salvação. Mas há uma fórmula que predomina: é preciso mudar as estruturas? Isto é possível? É lícito? É útil?

Parece-nos às vezes que o sonho irreal de uma igreja invisível, ou a louca esperança de poder eliminar as dificuldades e a materialidade da Igreja-instituição, para conservar um cristianismo puro, de vaga e livre concepção, ou a temerária utopia de fazer surgir uma igreja de invenção própria, não permitem refletir na superficialidade de semelhante ambição, especialmente se a mudança de estruturas tem como propósito começar por destruir e não por reformar as que existem e se lhe falta, a esta iniciativa, autoridade e experiência para tão grave operação.

Sob o véu transparente de um abstrato nominalismo, almejam-se novidades subversivas, sem levar em conta duas coisas que nos deveriam recomendar sabedoria e prudência: a primeira, que a modernização das estruturas, melhor dizendo, da legislação eclesiástica, já está em vias de realização. Para ser sadia, contudo, vital e promovida pela co-responsabilidade de quem sabe e pode, exige estudo e paciência, aos quais nós em primeiro lugar procuramos dar impulso, especialmente com a revisão do Código de Direito Canônico. A segunda, que as estruturas, objeto de contestação, de forma alguma são contrárias aos efeitos intencionados por sua mudança.

Quem conhece a Igreja por dentro, não a ignora. Embora lamentando certos defeitos inegáveis, vê como o amor e a obediência, a confiança e o zelo, podem muito bem reanimar o tronco, tal com o de velha oliveira, das antigas estruturas por uma nova vegetação de genuína vitalidade cristã.

Mas é assim: querem mudar as estruturas. E muitos quando o dizem, pensam no aborrecimento representado pela autoridade na Igreja. Querem suprimi-la, mas não o podem. Querem que ela derive da comunidade, e com isso se contraria uma característica constitucional da Igreja, que Cristo, intencionou apostólica. Querem-na serviço e está bem, contanto que tal serviço seja como se deve, c do poder pastoral. Querem ignorá-la, mas como continuará autêntico um cristianismo sem magistério, sem ministério, sem unidade e poder que derivem de Cristo? (Gal 1,8-9; 2 Cor 1,24; 2 Cor 10,5).

A autoridade na Igreja! Para quem experimenta seu grave peso e não lhe ambiciona a honra, é difícil fazer sua apologia! Baste-nos por hora termos feito esta modesta defesa.