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Diremos ainda uma palavra sobre o conceito fundamental, que geralmente
hoje todos têm da essência da Igreja a saber: a Igreja é uma
comunhão, é uma sociedade animada por um princípio vital único e
misterioso, a graça do Espírito Santo. Deste fato derivam
diversos princípios muito simples e maravilhosos como, por exemplo, o
da igualdade entre todos os que formam a Igreja, pois como diz
Cristo: "Vós sois todos irmãos: Omnes autem vos fratres estis"
(Mt 23, 8) ; como o princípio da distinção do resto da
humanidade não cristã chamada mundo, embora a Igreja esteja imersa
no mundo e nele misturada (Jo 8,23; 15,19;
17,14-16); também aquele princípio de que hoje muitos se
esquecem da originalidade moral e formal própria da vida cristã, em
confronto com a vida profana e pagã (Rom 12,2) ; o princípio,
enfim, da santidade, exigência que a própria consciência descobre,
e que deriva da presença do Espírito Santo em cada alma que
participa vitalmente da comunhão eclesial (1 Cor 3,16).
Mas para nos ater unicamente ao seu caráter social, repetimos com o
Concílio recente, que a Igreja é um povo, o Povo de Deus. Esta
definição deve integrar-se com a do Corpo místico de Cristo, da
sociedade que vive em virtude de um mesmo princípio unificador e
animador, mas que constitui um organismo, no qual existem carismas,
funções e responsabilidades diferentes (1 Cor 12,4). Por
isso, a comunhão no plano do episcopado se apresenta como
colegialidade, como certamente ouvistes falar, por ocasião do
Sínodo extraordinário que terminou há pouco.
Mas se a Igreja é esta comunhão espiritual e visível, que o
progresso religioso do nosso tempo parece ter obtido, como conquista
doutrinal e social, deveremos tirar deste fato uma conclusão. No
entanto, esta conclusão parece estar, teórica e mais ainda
praticamente, comprometida. Referimo-nos à relação de coesão de
solidariedade, de concórdia, de harmonia, em. suma, de caridade,
que deve existir entre os membros e também entre os diversos grupos da
Igreja. Esta relação se tornou mais evidente e portanto mais
exigente, mais estreita. mais familiar e mais amistosa. Deveria
então ser mais fiel e mais fácil. Mas que acontece realmente?
O vínculo constitucional, estabelecido pelo Evangelho, antes mesmo
que fosse firmado pelo direito, entre poder e obediência, é também
vítima da contestação sociológica, que hoje está em moda.
Procura-se alterá-lo e até minimizá-lo. Não se o pode negar,
porque é clara sua origem divina, mas modificá-lo, corrigi-lo e
aperfeiçoá-lo, sim.
Ora quem tem responsabilidade na Igreja, quem nela exercita uma forma
qualquer de autoridade, diretiva, magisterial, pedagógica,
administrativa e apostólica, já declarou que está disposto a por em
prática este aperfeiçoamento, como deseja o Concílio e, de fato
já está sendo executado leal e abertamente. Mas em tudo se recomenda
moderação. "Est modus in rebus, há um jeito de fazer as
coisas".
Há neste ponto conceitos falsos de que nos devemos precaver. Por
exemplo, diz-se que a autoridade é serviço. Nada de mais justo.
É o Senhor que o afirma na última ceia com estas palavras: "Aquele
que governa seja como aquele que serve" (Lc 22,26). Esta
idéia é muitas vezes repetida por Manzoni, quando traça o perfil do
bispo ideal, na pessoa de Frederico Borromeu: "Não deve existir
superioridade de um homem sobre outro, senão no serviço".
São Gregório Magno deixou de si, como chefe da Igreja e pastor
dos pastores, a definição que até agora conservamos no protocolo
pontifício: "Servo dos servos de Deus". Mas esta fórmula exata
e cheia de lições, não anula o poder do papa. Isto acontece com
todas as fórmulas análogas, que se relacionam com a legítima
autoridade. A autoridade na Igreja é para serviço dos irmãos, mas
não está a serviço dos outros. Em outras palavras, o objetivo da
autoridade é o bem dos demais. Isto não quer dizer que os demais
são a fonte da autoridade. No exercício da autoridade, a Igreja é
democrática no fim ou finalidade, usando o termo freqüente, em sua
razão de ser, mas não na sua origem, porque não vai haurir seu
poder na assim chamada "base", mas em Cristo, em Deus, perante o
qual ela é responsável, e não perante a mais ninguém.
Isso nos leva a precisar algo muito importante: que o poder na Igreja
não se pode revestir de formas historicamente variáveis, como são as
empregadas no governo civil da sociedade. Quem preside a um governo
desse tipo, tem apenas o ofício de legalizar o que a comunidade
elaborou e decretou. Na Igreja o poder conserva a liberdade e a
iniciativa, que o Senhor outorgou aos apóstolos e à hieraquia não
só para a garantia da ordem externa, mas também para o bem tanto de
cada fiel, como de toda a comunidade, para aquele bem que atribui
prioridade à dignidade, à liberdade, à responsabilidade e à
santificação de todos, e de cada um dos que compõem o corpo
eclesial.
Por conseguinte, quando hoje se diz que é contestada na Igreja,
não a autoridade como tal, mas a maneira de exercê-la, está
certo, com a condição, porém, de que a procura deste ideal não
autorize a libertação do modo real e legítimo, com que a autoridade
cumpre seu mandato, o que seria simplesmente desobediência.
O mesmo se deve dizer em relação ao diálogo, que hoje é objeto de
muitas discussões, não só entre a Igreja e quem a circunda por
fora, mas também entre os que estão por dentro da Igreja, e nela
ocupam posições e funções diferentes. O diálogo é excelente, se
nele se procura o respeito e a promoção da pessoa ou do grupo, da
parte daqueles que na Igreja devem tomar decisão ou formar
consciências e costumes, conforme aos desejos e ao espírito do
Cristo. Educar para a compreensão e o amor do preceito, é
progresso pedagógico que exige grande paciência e sagacidade. Mas
nem por isso o diálogo pode paralizar o exercício normal da
responsabilidade de guiar e dirigir, nem pode substituir normalmente o
juízo do pastor e do mestre, pelo livre exame de cada fiel, nem
exigir certa distribuição da autoridade, que a prive de seu vigor e
responsabilidade.
Compreendemos que a matéria é delicada e complexa e de grande
atualidade. Por isso não vamos acrescentar mais nada aqui. Os
ensinamentos do último Concílio são claros e abundantes. Muitos
são os mestres que a eles se referem.
Faremos bem dedicando a este problema capital uma reflexão leal e
atenta. De nossa parte queremos, neste momento, insistir sobre a
visão da Igreja, que afinal é a visão de nossa vida no pensamento
de Deus, concretizado em nossa história, sobre a visão da Igreja
como comunhão, como comunhão hierárquica, como "ciência da
harmonia, consonantia disciplinae", para usar uma expressão de um
antigo doutor da Igreja.
Na formação da nova mentalidade eclesial, mesmo que a chamemos
pós-conciliar, devemos desenvolver o sentido da comunhão, na qual,
como membros da Igreja, estamos inseridos. Por mais viva que deva
ser a consciência de. nossa liberdade e de nossa personalidade, não
devemos esquecer que não estamos sós nem somos autônomos.
Lembremo-nos, pelo contrário, de que tanto mais nos devemos
considerar como unidades independentes, autodetermináveis e
responsáveis, quanto mais percebemos que fomos colocados numa ordem
comunitária e hierárquica. Estas duas consciências se desenvolvem
juntas, exercendo uma sobre a outra um estímulo recíproco. Ser
católicos significa ser únicos e universais. É nessa plenitude
adquirida de nossa personalidade, que adere a um plano que a reconhece
objetivamente e transcende, isto é, a obediência à vontade de
Deus, mesmo quando esta se manifesta especialmente neste caso, por
meio de um irmão autorizado a fazer-se intérprete dela, é aí que
vivemos o mistério da comunhão hierárquica, ou, em outras
palavras, que vivemos a Igreja, e refletimos em nós o mistério do
Cristo, cuja aparição humana foi toda dominada por uma adesão
consciente e heróica à vontade do Pai; "Factus oboediens usque ad
mortem, fez-se obediente até à morte" (Flp 2,5-8; Jo
6,38; 8,29 etc.).
Por vezes, em nossos dias, há quem espere do progresso da
consciência que a Igreja está adquirindo de si mesma, uma
dissolução de suas relações e vinculos jurídicos; que a constituem
como corpo visível e orgânico de Cristo, na realidade histórica do
mundo. Há também quem considere tal processo doutrinal como uma
passagem de poderes dos graus superiores aos graus inferiores do Povo
de Deus. Nós, porém, consideramos a Igreja como uma
solidariedade profunda e orgânica, como aquela sociedade, aquela
comunhão, "koinonia" como diz são João, que nos faz participar
da própria vida de Deus (2 Pdr 1,4) e que irmana todos em
Cristo (1 Jo 1,6-7).
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