|
Diletos filhos e filhas,
Falemos ainda do Concílio. Aliás, dele deveremos falar ainda por
muito tempo, pois nossa época se acha marcada por este acontecimento.
Não vos aborreça abordar tão freqüentemente este fato, que por si
enforma a vida da Igreja. Quando mais não fosse, pela nova
linguagem que ele valorizou no ensinamento da doutrina cristã. Novas
locuções, embora anteriores ao Concílio, e encontradiças na
literatura tradicional, se tornaram de uso corrente e assumiram
significados característicos, importantes não só para o pensamento
teológico, como também para a corriqueira conversação entre nós
crentes.
Eis uma destas locuções: consagração do mundo.
Para avaliarmos esta expressão, deveríamos analisar o significado de
três termos: consagração, mundo e leigos. Termos densos de
conteúdo e nem sempre usados em sentido unívoco. Aqui nos baste
recordar que por consagração não entendemos a separação de uma
coisa, daquilo que é profano, para reservá-la exclusiva ou
particularmente à divindade, mas em sentido mais lato, o
restabelecimento de uma relação a Deus, de algo segundo sua ordem
própria, segundo a exigência da natureza da coisa mesma, no plano
intencionado por Deus.
Por mundo entendemos o conjunto dos valores naturais, positivos,
existentes na ordem temporal, ou, como diz neste sentido o
Concílio: "Toda a família humana com a totalidade das coisas entre
as quais vive".
E que expressamos com a palavra "leigos"? Muito se discutiu para
precisar o significado eclesial desta palavra, para chegar à sua
definição descritiva: leigo é um fiel, pertencente ao Povo de
Deus, distinto da hierarquia, que é separada das atividades
temporais (At 6,4) e preside a comunidade dispensando-lhe os
"mistérios de Deus" (1 Cor 4,1; 2 Cor 6,4) e que, por
sua vez, tem uma relação determinada e temporal com o mundo profano.
Da simples consideração desses termos, parece originar-se uma
dificuldade: como se pode hoje pensar em "consagração do mundo"
quando a Igreja reconheceu a autonomia da ordem temporal? Ou seja,
que o mundo tem sua consistência própria, fins, leis, e meios
próprios?
Já ninguém ignora a nova posição assumida pela Igreja, diante das
realidades terrestres. Estas possuem uma natureza, gozando no quadro
da criação de uma ordem com razão de fim, embora subordinado ao do
quadro da redenção. De per si, o mundo é profano, separado da
concepção unitária da cristandade medieval. É soberano em seu campo
próprio, campo que abrange todo o mundo humano. Como se pode pensar
em consagrá-lo? Com isto não se está retornando a uma concepção
sacral, clerical do mundo?
Eis a resposta, eis a novidade conceptual e sumamente importante no
campo prático: a Igreja aceita reconhecer o mundo como tal, livre,
autônomo, soberano e, em certo sentido, auto-suficiente. Não
pretende fazê-lo instrumento para seus fins religiosos, e muito menos
para adquirir poder na ordem temporal. A Igreja admite também para
seus fiéis do laicato católico, quando agindo no terreno da realidade
temporal, certa emancipação, atribui-lhes liberdade de ação e uma
responsabilidade própria, confia neles.
Pio XII chegou a falar numa legítima laicidade do Estado. O
Concílio recomendará aos pastores que reconheçam e promovam a
"dignidade e a responsabilidade dos leigos", mas acrescentará
justamente ao falar dos leigos e aos leigos, que "a vocação cristã
é por sua natureza uma vocação para o apostolado". Ao mesmo tempo
que lhes concede, ou melhor, recomenda agirem no mundo profano,
observando perfeitamente os deveres a isso inerentes, encarrega-os de
levarem para dentro dele três coisas (empiricamente falando): a
ordem correspondente aos valores naturais próprios do mundo profano
(valores culturais, profissionais, técnicos, políticos etc.); a
honestidade, a coragem, a competência e a dedicação; a arte de
desenvolver devidamente e realizar estes mesmos valores. O leigo
católico deveria ser, mesmo sob este aspecto, um perfeito cidadão do
mundo, um elemento positivo e construtor, um homem merecedor de estima
e confiança, uma pessoa amante da sociedade e do seu país.
Esperamos que dele sempre se possa pensar dessa forma. Esperamos que
ele não ceda ao conformismo de muitos movimentos perturbadores que hoje
agitam de várias formas o mundo moderno. A primeira Carta de são
Pedro apóstolo, e algumas páginas das epístolas paulinas, por
exemplo, Rom 13, mereceriam meditadas seriamente, por muitos que
se professam ativos, em virtude de seu laicato católico.
Outro influxo que a Igreja e não apenas o laicato pode exercer sobre
o mundo profano, deixando-o da mesma forma e ao mesmo tempo
honrando-o com uma "consagração", como no-la ensina o
Concílio, é a animação dos princípios cristãos. Estes, se no
seu significado vertical, relativo ao termo supremo e último da
humanidade, são religiosos e sobrenaturais, na sua eficiência, hoje
chamada horizontal ou terrena, são sumamente humanos. São a
interpretação, a inexaurível vitalidade, a sublimação da vida
humana como tal. O Concílio a este respeito fala de
"interpenetração da cidade terrestre e celeste... que pode ajudar
muito a tornar mais humana a família dos homens e sua história".
Recorda aos leigos que "devem participar ativamente em toda a vida da
Igreja, e estão obrigados não somente a impregnar o mundo de
espírito cristão, mas também são chamados a serem testemunhas de
Cristo em tudo no meio da comunidade humana".
Neste sentido a Igreja e especialmente os leigos católicos, conferem
ao mundo um novo grau de consagração, não lhe levando sinais
especificamente sagrados e religiosos, que em certas formas e
circunstâncias lhe convêm, mas coordenando-o "no exercício do
apostolado na fé, na esperança e na caridade" ao reino de Deus.
"Qui sic ministrat, Christo ministrat, quem desta maneira serve,
serve a Cristo", diz santo Agostinho. É a santidade que se irradia
sobre o mundo e no mundo. Que seja esta igualmente a vocação de
nosso tempo, de todos nós, filhos caríssimos, com a nossa bênção
apostólica.
|
|