|
Nossas reflexões sobre o Concílio ao qual consagramos cada semana
estes nossos colóquios familiares, nos movem a vos falar de um
problema difícil, ou para melhor nos exprimir, impopular: o da
obediência na Igreja.
É uma questão muito comprometida: em primeiro lugar, pelo vento de
liberdade que sopra sobre toda mentalidade moderna, oposta às
limitações e pressões impostas por uma autoridade superior à
espontaneidade e autonomia da pessoa humana assim como a grupos; em
segundo lugar, pela apologia da liberdade sob seus diferentes
aspectos: liberdade pessoal, como exigência da dignidade humana;
liberdade dos filhos de Deus proclamada no Evangelho; liberdade de
conversão; liberdade da Igreja e liberdade na Igreja; liberdade
religiosa no esquema das leis cívicas; liberdade de pesquisa
científica; de associação; de informação etc.
Esta apologia, nós a encontramos espalhada nos documentos
conciliares. Como desde então podemos ainda falar de obediência,
depois de tantas afirmações tão conformes ao espírito humano, à
maturidade da psicologia contemporânea, ao desenvolvimento da
sociedade civil e à intolerância das novas gerações ante a
disciplina?
A palavra "obediência" nem é mais tolerada em nossas
conversações, em assuntos, portanto, que pela força das coisas,
permanece sua realidade: na pedagogia, na legislação, nas
relações hierárquicas, nas leis militares etc. As palavras:
personalidade, consciência, autonomia, responsabilidade,
conformidade ao bem comum ... superam as demais e, todos o sabem,
não se trata de uma transformação apenas de terminologia, que se
apresenta sobre este ponto, na sociedade, mas de mudança profunda de
idéias e sabemos como isto se traduz em fatos e nos acontecimentos,
grandes ou pequenos.
A obediência comporta dois elementos exteriores em cada indivíduo e
em cada grupo: ouvir outra voz diferente da própria, e agir em
conformidade com esta voz que possui tom de ordem, ou testemunha uma
autoridade que pressiona o ouvinte a um modo de pensar e de vida, do
qual ele não é autor e cujo "porquê" não compreende. A
importância excessiva concedida aos critérios subjetivos já não
permite compreender a que título outro critério extrínseco - a
autoridade pode intervir na expressão espontânea e natural de um ser
ou de um grupo humano. Os filósofos de ontem servem ainda de mestres
aos de hoje, que não recuam diante das conseqüências extremas da
contestação, da rebelião ou mesmo da anarquia e do niilismo. Disto
houve aplicações violentas nestes últimos tempos.
Como se as negações mais ou menos radicais desta antiga virtude
cívica e cristã não bastassem para desacreditar a obediência junto
aos jovens, multiplicam-se ainda as afirmações exageradas e
intoleráveis: as da opressão totalitária, imposta pelos sistemas
aperfeiçoados de força e de legalismo policial; as da pressão
publicitária, exercida pelos formidáveis meios de comunicação de
"massa", como se diz atualmente, e aceita por milhões de ouvintes
dóceis, que dão crédito aos que lêem, aos que ouvem e aos que
vêem. Assim é que o homem moderno deve obedecer? Será que este
desencadeamento de vozes, idéias, exemplos, maneiras,
concertações simultâneas não é uma servidão, uma obediência
inconsciente e agradável, por assim dizer, que diminui e avilta a
autonomia da personalidade?
E se do domínio profano passamos ao religioso e mais precisamente ao
de nossa vida católica, será que esta também não é dominada por um
dogmatismo que sufoca a liberdade de pensar e de consciência? Quantas
coisas haveria para dizer sobre este assunto, em particular
considerando as recentes repercussões suscitadas por determinados atos
do magistério da Igreja! Qual sua competência? dizem. Qual sua
autoridade? Qual sua estabilidade?
Não falaremos deste vasto problema, que para não se deformar deveria
ser tratado de maneira ponderada e adequada, o que nos parece
impossível no momento.
Queríamos somente, caríssimos filhos, que, assistindo a este
encontro e ouvindo estas modestas palavras, rendeis homenagem à
virtude cristã da obediência, deixar-vos uma noção reabilitada
desta virtude. Teríamos muito a dizer sobre seu primado relativo: a
obediência não está em estreito parentesco com a ordem particular e
universal, com o equilíbrio e harmonia da sociedade seja qual for? E
com o bem comum? Com a vitória sobre as falhas e faltas de senso
individuais? Com a obtenção de bons resultados coletivos e sociais?
Onde acabaria a lei, a autoridade, a comunidade, se não houvesse o
culto da obediência? No domínio da Igreja, em que se reduziria a
unidade da fé e da caridade, se uma convergência de vontades,
garantida pelo poder autorizado, obedecendo à vontade superior de
Deus, não propusesse nem exigisse uma harmonização de pensamentos e
de atos? Será que todo o plano de nossa salvação não depende da
prática da obediência, em toda a liberdade e com inteira
responsabilidade? Que é o pecado senão uma desobediência ao
mandamento de Deus, e que é nossa salvação senão uma adesão
humilde e alegre ao plano misericordioso, que o Cristo instaurou,
para quem lhe obedece como discípulo; como fiel e como testemunha?
Não poderíamos contemplar numa síntese de obediência nossa
profissão de fé cristã, nossa inserção na Igreja, nossa
integração santificante e beatificante na vontade de Deus?
O fiat que pronunciamos a cada instante em nossa prece: "Que seja
feita tua vontade", não é o ato mais habitual e o mais completo de
nossa obediência ao supremo e íntimo mandamento divino? Não seria
fácil estabelecer a feliz relação que existe entre a verdadeira
obediência e a liberdade, a consciência, a responsabilidade, a
personalidade, a maturidade, a força moral e toda prerrogativa da
dignidade humana, assim como nosso lugar e nossa função na comunidade
eclesial, se tivéssemos apenas a paciência de recapitular os títulos
legítimos, as exigências e os limites da obediência, tais quais
no-la descreve a Sagrada Escritura e a doutrina autêntica da
Igreja?
Como poderíamos ainda falar de paz sem nos referirmos ao princípio
que produz, dentro e fora de nós, esta ordem, que precisamente gera
a paz, a saber, a obediência. Oboedientia et pax, fórmula do
venerável cardeal Barônio, depois de João XXIII autor da
encíclica Pacem in terris (Prov 21,28).
Sim teríamos tantas coisas a dizer sobre o tema! Escreveu-se muito
sobre este assunto nestes últimos anos.
Mas hoje só vos diremos uma coisa: o mistério da obediência no
Cristo Senhor nosso; mistério irradiando do Evangelho todo,
mistério que define o Cristo como nosso Salvador (Mt 11,25;
26,39; Jo 5,37; Rom 5,19; Flp 2,8); mistério de
que participamos, de maneira tal que "deste aspecto fundamental da
obediência não somente ao Cristo, mas do Cristo, que nos é
comunicada, emana o sentido cristão da obediência".
Podíamos prosseguir e descobrir com satisfação a equivalência neste
nível da obediência e do amor. Haveria tanto para dizer do novo
estilo que a obediência, permanecendo essencialmente idêntica,
reveste na Igreja após o Concílio. Falamos a respeito em nossa
primeira encíclica Ecclesiam Suam. Vamos selar toda esta doutrina,
esta nova pedagogia, esta nova prática da obediência, com uma
evocação da exortação que o apóstolo Pedro, sobre cujo túmulo
falamos, dirigia aos primeiros cristãos: "Comportai-vos como
filhos obedientes por causa da revelação de Jesus Cristo" (l Pdr
1,13-14; Hebr 13,17).
Isto para vossa dignidade de cristãos, para vossa fidelidade e
ventura.
|
|