23 DE ABRIL DE 1969. AUDIÊNCIA GERAL.

Diletos filhos e filhas,

Falemos ainda do Concílio. Aliás, dele deveremos falar ainda por muito tempo, pois nossa época se acha marcada por este acontecimento. Não vos aborreça abordar tão freqüentemente este fato, que por si enforma a vida da Igreja. Quando mais não fosse, pela nova linguagem que ele valorizou no ensinamento da doutrina cristã. Novas locuções, embora anteriores ao Concílio, e encontradiças na literatura tradicional, se tornaram de uso corrente e assumiram significados característicos, importantes não só para o pensamento teológico, como também para a corriqueira conversação entre nós crentes.

Eis uma destas locuções: consagração do mundo.

Para avaliarmos esta expressão, deveríamos analisar o significado de três termos: consagração, mundo e leigos. Termos densos de conteúdo e nem sempre usados em sentido unívoco. Aqui nos baste recordar que por consagração não entendemos a separação de uma coisa, daquilo que é profano, para reservá-la exclusiva ou particularmente à divindade, mas em sentido mais lato, o restabelecimento de uma relação a Deus, de algo segundo sua ordem própria, segundo a exigência da natureza da coisa mesma, no plano intencionado por Deus.

Por mundo entendemos o conjunto dos valores naturais, positivos, existentes na ordem temporal, ou, como diz neste sentido o Concílio: "Toda a família humana com a totalidade das coisas entre as quais vive".

E que expressamos com a palavra "leigos"? Muito se discutiu para precisar o significado eclesial desta palavra, para chegar à sua definição descritiva: leigo é um fiel, pertencente ao Povo de Deus, distinto da hierarquia, que é separada das atividades temporais (At 6,4) e preside a comunidade dispensando-lhe os "mistérios de Deus" (1 Cor 4,1; 2 Cor 6,4) e que, por sua vez, tem uma relação determinada e temporal com o mundo profano.

Da simples consideração desses termos, parece originar-se uma dificuldade: como se pode hoje pensar em "consagração do mundo" quando a Igreja reconheceu a autonomia da ordem temporal? Ou seja, que o mundo tem sua consistência própria, fins, leis, e meios próprios?

Já ninguém ignora a nova posição assumida pela Igreja, diante das realidades terrestres. Estas possuem uma natureza, gozando no quadro da criação de uma ordem com razão de fim, embora subordinado ao do quadro da redenção. De per si, o mundo é profano, separado da concepção unitária da cristandade medieval. É soberano em seu campo próprio, campo que abrange todo o mundo humano. Como se pode pensar em consagrá-lo? Com isto não se está retornando a uma concepção sacral, clerical do mundo?

Eis a resposta, eis a novidade conceptual e sumamente importante no campo prático: a Igreja aceita reconhecer o mundo como tal, livre, autônomo, soberano e, em certo sentido, auto-suficiente. Não pretende fazê-lo instrumento para seus fins religiosos, e muito menos para adquirir poder na ordem temporal. A Igreja admite também para seus fiéis do laicato católico, quando agindo no terreno da realidade temporal, certa emancipação, atribui-lhes liberdade de ação e uma responsabilidade própria, confia neles.

Pio XII chegou a falar numa legítima laicidade do Estado. O Concílio recomendará aos pastores que reconheçam e promovam a "dignidade e a responsabilidade dos leigos", mas acrescentará justamente ao falar dos leigos e aos leigos, que "a vocação cristã é por sua natureza uma vocação para o apostolado". Ao mesmo tempo que lhes concede, ou melhor, recomenda agirem no mundo profano, observando perfeitamente os deveres a isso inerentes, encarrega-os de levarem para dentro dele três coisas (empiricamente falando): a ordem correspondente aos valores naturais próprios do mundo profano (valores culturais, profissionais, técnicos, políticos etc.); a honestidade, a coragem, a competência e a dedicação; a arte de desenvolver devidamente e realizar estes mesmos valores. O leigo católico deveria ser, mesmo sob este aspecto, um perfeito cidadão do mundo, um elemento positivo e construtor, um homem merecedor de estima e confiança, uma pessoa amante da sociedade e do seu país.

Esperamos que dele sempre se possa pensar dessa forma. Esperamos que ele não ceda ao conformismo de muitos movimentos perturbadores que hoje agitam de várias formas o mundo moderno. A primeira Carta de são Pedro apóstolo, e algumas páginas das epístolas paulinas, por exemplo, Rom 13, mereceriam meditadas seriamente, por muitos que se professam ativos, em virtude de seu laicato católico.

Outro influxo que a Igreja e não apenas o laicato pode exercer sobre o mundo profano, deixando-o da mesma forma e ao mesmo tempo honrando-o com uma "consagração", como no-la ensina o Concílio, é a animação dos princípios cristãos. Estes, se no seu significado vertical, relativo ao termo supremo e último da humanidade, são religiosos e sobrenaturais, na sua eficiência, hoje chamada horizontal ou terrena, são sumamente humanos. São a interpretação, a inexaurível vitalidade, a sublimação da vida humana como tal. O Concílio a este respeito fala de "interpenetração da cidade terrestre e celeste... que pode ajudar muito a tornar mais humana a família dos homens e sua história". Recorda aos leigos que "devem participar ativamente em toda a vida da Igreja, e estão obrigados não somente a impregnar o mundo de espírito cristão, mas também são chamados a serem testemunhas de Cristo em tudo no meio da comunidade humana".

Neste sentido a Igreja e especialmente os leigos católicos, conferem ao mundo um novo grau de consagração, não lhe levando sinais especificamente sagrados e religiosos, que em certas formas e circunstâncias lhe convêm, mas coordenando-o "no exercício do apostolado na fé, na esperança e na caridade" ao reino de Deus.

"Qui sic ministrat, Christo ministrat, quem desta maneira serve, serve a Cristo", diz santo Agostinho. É a santidade que se irradia sobre o mundo e no mundo. Que seja esta igualmente a vocação de nosso tempo, de todos nós, filhos caríssimos, com a nossa bênção apostólica.