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Qual a situação atual da Igreja?
O recente Concílio do Vaticano criou certo estado de alerta e de
tensão espiritual sob alguns aspectos. O desenvolvimento doutrinal,
que o mesmo Concílio propôs para a própria Igreja; o empenho ao
qual a convidou no campo pastoral; a revisão canônica e litúrgica,
que lhe impôs como um preceito; a abertura ecumênica para que a
convidou; o confronto apostólico, com o qual a aproximou da realidade
humana do mundo moderno; a onda de transformações culturais e
sociais, que também a ela atingiu - tudo isso obrigou a Igreja a uma
reflexão intensa que continua a impor-se-lhe como um dever.
Dentro e fora de si mesma, a Igreja deu mostras, não de um plácido
fervor que o Concílio permitia que se esperasse, mas sim de certa
inquietude em alguns setores que embora restritos são, contudo,
bastante significativos.
A difícil interpretação dos "sinais dos tempos" faz despertar em
muitos o desejo de estudar de preferência as realidades contingentes,
seguindo-se daí não apenas observações judiciosas, mas, da parte
de alguns, a mania de novidades, e da parte de outros, o medo das
reformas. A um pluralismo por vezes indiscriminado de idéias e de
formas, que parece unitário, próprio da Igreja católica, vem
juntar-se um exagerado intento de pesquisas teológicas e uma
necessidade mais ativa de relações orgânicas comunitárias. A um
decrescente fervor de vida religiosa individual, vem substituir-se em
muitos m» interesse progressivo pela religiosidade coletiva.
Paralelamente à cedência gradual à secularização, que tenta tirar
o caráter sagrado a tudo, começa a firmar-se maior sentido social de
responsabilidade cristã.
Como se vê, por tudo isso, a inquietude, a que nos referíamos,
apresenta fenômenos contrastantes - negativos e positivos. Assim
dá-nos tranqüilidade uma consciência mais clara da própria
vocação cristã no Povo de Deus. Conforta-nos a válida e
concorde operosidade pastoral do episcopado, desejoso de assumir, com
uma aplicação mais ampla do critério de subsidiaridade, as
responsabilidades diretas do próprio ministério, mantendo ao mesmo
tempo, em estreita e solidária união, os vínculos da
colegialidade. Edifica-nos a resolução das famílias religiosas de
se renovarem interior e exteriormente, para prosseguirem corajosamente
com intensidade de oração, com austeridade de disciplina ascética e
dedicação eficaz ao bem do próximo e à causa do reino de Deus, o
seu programa de perfeição cristã. Infunde-nos confiança e
esperança a multiforme atividade de um laicato católico, não menos
nutrido por uma espiritualidade íntima e fraterna, do que
desassombrado no rasgar de novos caminhos ao apostolado moderno.
Incute-nos certa paz o pensar numa multidão de almas singulares e
silenciosas, piedosas, ativas, pacientes e entregues à imitação de
Cristo, bem como naquelas comunidades, que vivem a graça de serem
"igreja", na concórdia e na alegria, a graça de serem membros do
Corpo místico, vivificado sempre por nova animação do Espírito
Santo. Eis o que é a Igreja. Bendigamos ao Senhor.
Isto não quer dizer, no entanto, que a barca simbólica - a Igreja
-não se ressinta do ímpeto da granule borrasca, própria de nosso
tempo, que às vezes faz aflorar aos nossos lábios o grito implorante
dos discípulos assustados: "Senhor, salva-nos que estamos
perdidos" (Mt 8,25). Recorda-nos as palavras amarguradas de
nosso grande predecessor São Gregório: "Eis que diante de nós as
ondas se encapelam, e a nosso lado as vagas se enfurecem, e por
detrás a tempestade ruge em fúria. No meio desta procela, ora eu me
esforço esboforido em dominar a barra do leme, de maneira a fazer
frente à luta, ora inclinando o barco tento desviá-lo do assalto das
ondas. Não posso mais..."
Sim, veneráveis irmãos, não se pode negar que existem na Igreja
hoje grandes males, grandes perigos e ingentes necessidades, que para
nós é o mesmo que dizer grandes deveres.
O primeiro dever é a vigilância. É um dever perene, bem o
sabemos, imposto repetidas vezes pelo Evangelho. Faz parte da
pedagogia bíblica e da psicologia cristã e é exigido por aquele
sentido escatológico, que nos devia dar um característico sentido
cristão do tempo, tanto presente como futuro.
Mas a vigilância tornou-se um dever específico de nosso tempo, no
qual tudo se define e se precisa de antemão. Não se pode caminhar ao
acaso, seguindo passivamente os costumes de outrora ou a opinião do
ambiente. Temos de ser observadores atentos, críticos sagazes.
Hoje tudo se transforma, tudo se torna problema, e por toda a parte
existe o perigo da ilusão, mesmo para os bons. O Senhor
adverte-nos: "Cristo está aqui, ou ei-lo ali: não acrediteis"
(Mt. 24, 23). As múltiplas reuniões, que continuamente
mantêm a Igreja vigilante em todos os setores, e as palavras
responsáveis do magistério eclesiástico assim como que nos vários
campos que lhe são próprios, proferem as pessoas probas e
competentes, ajudam-nos a desempenhar este primeiro dever.
Quais as principais observações que nos sugere a vigilância sobre as
condições da Igreja?
A primeira observação diz respeito ao clero, ao nosso querido
clero. O que é que verificamos? Verificamos, com enorme
consolação, que nosso clero, em sua maioria, é ótimo pelas suas
virtudes morais e espirituais, pela dedicação com que se entrega ao
próprio magistério, pela fidelidade convicta à Igreja, na qual se
encontra inserido por espírito de serviço. Queremos, precisamente
por ocasião do natal, endereçar um pensamento especial, enriquecido
dos melhores votos e bênçãos, a todos os sacerdotes da Igreja
católica, uma palavra com que lhes asseguremos nossa estima e nossa
confiança, e ainda de exortação á fidelidade e à perseverança.
É efetivamente sobre o clero bom, piedoso, fiel laborioso,
desinteressado e inteligente, que assentam a solidez, a vitalidade e a
fecundidade da Igreja, como facilmente vemos.
Mas, a par disto vemos também outros dois fenômenos, aos quais a
fácil publicidade hodierna juntamente com a curiosidade da opinião
pública, dão um realce maior do que a outros fenômenos, muito mais
amplos e reconfortantes. Um desses fenômenos, bastante difundido,
é o da incerteza do sacerdote, quanto ao próprio estado. Uma
incerteza que acomete a fé na própria natureza do sacerdócio, sua
formação humana e eclesiástica, sua função religiosa e
apostólica, sua posição hierárquica e sociológica, seus hábitos
internos e externos e sua missão no mundo atual. É de suma
importância dar um alto testemunho à grande maioria e a seu dever.
Incutir de novo a segurança em cada sacerdote, acerca de sua
vocação, de sua eleição, de sua investidura sacramental, de suas
relações com o bispo, com os irmãos no sacerdócio, com os fiéis e
com aqueles "que estão fora" (Mc 4,11). Incutir-lhe a
consciência de sua indispensável atualidade. Propor-lhe a forma de
vida evangélica e moderna que o ajude a identificar-se com o mistério
que lhe é próprio, e a irradiar seus carismas, de palavra, de
graça e de exemplo pela comunidade e por cada uma das almas.
Impõe-se conferir-lhe o sentido de sua dignidade pessoal, se bem
que despida de fausto, asse- gurar-lhe o pão. e garantir-lhe o
suficiente para o seu dia-a-dia, voluntariamente pobre e traba-
lhoso. Não deve ser demasiado difícil, pensamos nós, uma vez que
as disposições vigentes já provêm a isso, assim como as novas
estruturas em vias de aplicação, sugeridas pelo II Concílio do
Vaticano. Igualmente nossos dicastérios romanos têm procurado
proporcionar oportunos subsídios para o estilo de vida dos
seminários, e para os organismos presbiteriais nas dioceses. Em
várias nações as conferências episcopais estudam o modo de tornar
mais satisfatória e mais eficiente a atividade dos sacerdotes. Mas
esta renovação espiritual e canônica exigirá muito estudo e muita
aplicação. Já noutras ocasiões, aludimos à intenção que temos
de dedicar um interesse particular a tão complexo problema. Se Deus
quiser, fá-lo-emos com amor e solicitude, confiando na
colaboração do episcopado e na correspondência de nossos bons
sacerdotes.
Outro fenômeno é a defecção de uma parte mínima, demasiado
sensível, porém, de alguns sacerdotes e religiosos, dos sagrados
compromissos, aos quais diante de Cristo, diante da Igreja e perante
a própria consciência, eles, solene, livre e amorosamente se tinham
ligado. Esta é a nossa coroa de espinhos. Compreendemos quanto este
fenômeno é complicado e dramático em cada caso particular.
Compreendemos também, que não é permitido julgar o íntimo destes
co- rações infelizes, ainda que no foro externo semelhantes
deserções sejam deploráveis ao máximo, e causem tanta amargura pelo
escândalo que dão ao Povo de Deus. Também este fenômeno está
sendo objeto de estudo e de meditação. Se nos referimos a ele, é
tão somente para obter o su- frágio da oarção comum, por esses
irmãos infiéis e para não deixar que lhes falte, onde for
possível, o auxílio da caridade.
Mas consideramos oportuno confirmar, também nesta ocasião, nosso
dever apostólico e nosso propósito pastoral, de conservar em sua
intacta beleza a lei do celibato eclesiástico, na Igreja Latina.
Exprimimos a vivíssima esperança de que nossos sacerdotes tanto os
jovens como os de idade mais avançada, com a graça do Senhor,
saberão sempre compreender, defender e ilustrar o incomparável valor
espiritual, moral e apostólico do mesmo celibato.
Nosso discurso, nesta altaura, é levado a ocupar-se de outro
problema, que interessa o mundo inteiro e não menos a Igreja: o dos
jovens. Limitar-nos-emos por agora simplesmente a enunciá-lo,
considerando-o, porém, como um dos temas mais importantes e mais
urgentes. Também este problema é objeto de estudo, estudo que parte
inicialmente da simpatia imensa da Igreja pela juventude, da
confiança nos grandes recursos pedagógicos da vida cristã. da
admirável tradição educativa e organizativa da Igreja, quanto à
mesma juventude. Do esforço já posto em prática e tendente a
atingi-la, valendo-se dos métodos que lhe reconhecem nova e
legítima liberdade, e lhe conferem maior sentido de responsabilidade.
Finalmente de uma implorada efusão de entusiasmo, de sublimação,
que o espírito de Cristo desejará conceder às novas gerações, no
sentido de um ideal de vida mais nobre e autêntica. Família,
escola. sociedade. deverão receber da Igreja um novo contributo,
para tornar eficaz e amada a "arte das artes", qual é a de formar
homens verdadeiros. Também este ponto é problema que nos diz
respeito.
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