15 DE DEZEMBRO DE 1969. AUDIÊNCIA AO SACRO COLÉGIO.

Qual a situação atual da Igreja?

O recente Concílio do Vaticano criou certo estado de alerta e de tensão espiritual sob alguns aspectos. O desenvolvimento doutrinal, que o mesmo Concílio propôs para a própria Igreja; o empenho ao qual a convidou no campo pastoral; a revisão canônica e litúrgica, que lhe impôs como um preceito; a abertura ecumênica para que a convidou; o confronto apostólico, com o qual a aproximou da realidade humana do mundo moderno; a onda de transformações culturais e sociais, que também a ela atingiu - tudo isso obrigou a Igreja a uma reflexão intensa que continua a impor-se-lhe como um dever.

Dentro e fora de si mesma, a Igreja deu mostras, não de um plácido fervor que o Concílio permitia que se esperasse, mas sim de certa inquietude em alguns setores que embora restritos são, contudo, bastante significativos.

A difícil interpretação dos "sinais dos tempos" faz despertar em muitos o desejo de estudar de preferência as realidades contingentes, seguindo-se daí não apenas observações judiciosas, mas, da parte de alguns, a mania de novidades, e da parte de outros, o medo das reformas. A um pluralismo por vezes indiscriminado de idéias e de formas, que parece unitário, próprio da Igreja católica, vem juntar-se um exagerado intento de pesquisas teológicas e uma necessidade mais ativa de relações orgânicas comunitárias. A um decrescente fervor de vida religiosa individual, vem substituir-se em muitos m» interesse progressivo pela religiosidade coletiva. Paralelamente à cedência gradual à secularização, que tenta tirar o caráter sagrado a tudo, começa a firmar-se maior sentido social de responsabilidade cristã.

Como se vê, por tudo isso, a inquietude, a que nos referíamos, apresenta fenômenos contrastantes - negativos e positivos. Assim dá-nos tranqüilidade uma consciência mais clara da própria vocação cristã no Povo de Deus. Conforta-nos a válida e concorde operosidade pastoral do episcopado, desejoso de assumir, com uma aplicação mais ampla do critério de subsidiaridade, as responsabilidades diretas do próprio ministério, mantendo ao mesmo tempo, em estreita e solidária união, os vínculos da colegialidade. Edifica-nos a resolução das famílias religiosas de se renovarem interior e exteriormente, para prosseguirem corajosamente com intensidade de oração, com austeridade de disciplina ascética e dedicação eficaz ao bem do próximo e à causa do reino de Deus, o seu programa de perfeição cristã. Infunde-nos confiança e esperança a multiforme atividade de um laicato católico, não menos nutrido por uma espiritualidade íntima e fraterna, do que desassombrado no rasgar de novos caminhos ao apostolado moderno. Incute-nos certa paz o pensar numa multidão de almas singulares e silenciosas, piedosas, ativas, pacientes e entregues à imitação de Cristo, bem como naquelas comunidades, que vivem a graça de serem "igreja", na concórdia e na alegria, a graça de serem membros do Corpo místico, vivificado sempre por nova animação do Espírito Santo. Eis o que é a Igreja. Bendigamos ao Senhor.

Isto não quer dizer, no entanto, que a barca simbólica - a Igreja -não se ressinta do ímpeto da granule borrasca, própria de nosso tempo, que às vezes faz aflorar aos nossos lábios o grito implorante dos discípulos assustados: "Senhor, salva-nos que estamos perdidos" (Mt 8,25). Recorda-nos as palavras amarguradas de nosso grande predecessor São Gregório: "Eis que diante de nós as ondas se encapelam, e a nosso lado as vagas se enfurecem, e por detrás a tempestade ruge em fúria. No meio desta procela, ora eu me esforço esboforido em dominar a barra do leme, de maneira a fazer frente à luta, ora inclinando o barco tento desviá-lo do assalto das ondas. Não posso mais..."

Sim, veneráveis irmãos, não se pode negar que existem na Igreja hoje grandes males, grandes perigos e ingentes necessidades, que para nós é o mesmo que dizer grandes deveres.

O primeiro dever é a vigilância. É um dever perene, bem o sabemos, imposto repetidas vezes pelo Evangelho. Faz parte da pedagogia bíblica e da psicologia cristã e é exigido por aquele sentido escatológico, que nos devia dar um característico sentido cristão do tempo, tanto presente como futuro.

Mas a vigilância tornou-se um dever específico de nosso tempo, no qual tudo se define e se precisa de antemão. Não se pode caminhar ao acaso, seguindo passivamente os costumes de outrora ou a opinião do ambiente. Temos de ser observadores atentos, críticos sagazes. Hoje tudo se transforma, tudo se torna problema, e por toda a parte existe o perigo da ilusão, mesmo para os bons. O Senhor adverte-nos: "Cristo está aqui, ou ei-lo ali: não acrediteis" (Mt. 24, 23). As múltiplas reuniões, que continuamente mantêm a Igreja vigilante em todos os setores, e as palavras responsáveis do magistério eclesiástico assim como que nos vários campos que lhe são próprios, proferem as pessoas probas e competentes, ajudam-nos a desempenhar este primeiro dever.

Quais as principais observações que nos sugere a vigilância sobre as condições da Igreja?

A primeira observação diz respeito ao clero, ao nosso querido clero. O que é que verificamos? Verificamos, com enorme consolação, que nosso clero, em sua maioria, é ótimo pelas suas virtudes morais e espirituais, pela dedicação com que se entrega ao próprio magistério, pela fidelidade convicta à Igreja, na qual se encontra inserido por espírito de serviço. Queremos, precisamente por ocasião do natal, endereçar um pensamento especial, enriquecido dos melhores votos e bênçãos, a todos os sacerdotes da Igreja católica, uma palavra com que lhes asseguremos nossa estima e nossa confiança, e ainda de exortação á fidelidade e à perseverança. É efetivamente sobre o clero bom, piedoso, fiel laborioso, desinteressado e inteligente, que assentam a solidez, a vitalidade e a fecundidade da Igreja, como facilmente vemos.

Mas, a par disto vemos também outros dois fenômenos, aos quais a fácil publicidade hodierna juntamente com a curiosidade da opinião pública, dão um realce maior do que a outros fenômenos, muito mais amplos e reconfortantes. Um desses fenômenos, bastante difundido, é o da incerteza do sacerdote, quanto ao próprio estado. Uma incerteza que acomete a fé na própria natureza do sacerdócio, sua formação humana e eclesiástica, sua função religiosa e apostólica, sua posição hierárquica e sociológica, seus hábitos internos e externos e sua missão no mundo atual. É de suma importância dar um alto testemunho à grande maioria e a seu dever. Incutir de novo a segurança em cada sacerdote, acerca de sua vocação, de sua eleição, de sua investidura sacramental, de suas relações com o bispo, com os irmãos no sacerdócio, com os fiéis e com aqueles "que estão fora" (Mc 4,11). Incutir-lhe a consciência de sua indispensável atualidade. Propor-lhe a forma de vida evangélica e moderna que o ajude a identificar-se com o mistério que lhe é próprio, e a irradiar seus carismas, de palavra, de graça e de exemplo pela comunidade e por cada uma das almas.

Impõe-se conferir-lhe o sentido de sua dignidade pessoal, se bem que despida de fausto, asse- gurar-lhe o pão. e garantir-lhe o suficiente para o seu dia-a-dia, voluntariamente pobre e traba- lhoso. Não deve ser demasiado difícil, pensamos nós, uma vez que as disposições vigentes já provêm a isso, assim como as novas estruturas em vias de aplicação, sugeridas pelo II Concílio do Vaticano. Igualmente nossos dicastérios romanos têm procurado proporcionar oportunos subsídios para o estilo de vida dos seminários, e para os organismos presbiteriais nas dioceses. Em várias nações as conferências episcopais estudam o modo de tornar mais satisfatória e mais eficiente a atividade dos sacerdotes. Mas esta renovação espiritual e canônica exigirá muito estudo e muita aplicação. Já noutras ocasiões, aludimos à intenção que temos de dedicar um interesse particular a tão complexo problema. Se Deus quiser, fá-lo-emos com amor e solicitude, confiando na colaboração do episcopado e na correspondência de nossos bons sacerdotes.

Outro fenômeno é a defecção de uma parte mínima, demasiado sensível, porém, de alguns sacerdotes e religiosos, dos sagrados compromissos, aos quais diante de Cristo, diante da Igreja e perante a própria consciência, eles, solene, livre e amorosamente se tinham ligado. Esta é a nossa coroa de espinhos. Compreendemos quanto este fenômeno é complicado e dramático em cada caso particular. Compreendemos também, que não é permitido julgar o íntimo destes co- rações infelizes, ainda que no foro externo semelhantes deserções sejam deploráveis ao máximo, e causem tanta amargura pelo escândalo que dão ao Povo de Deus. Também este fenômeno está sendo objeto de estudo e de meditação. Se nos referimos a ele, é tão somente para obter o su- frágio da oarção comum, por esses irmãos infiéis e para não deixar que lhes falte, onde for possível, o auxílio da caridade.

Mas consideramos oportuno confirmar, também nesta ocasião, nosso dever apostólico e nosso propósito pastoral, de conservar em sua intacta beleza a lei do celibato eclesiástico, na Igreja Latina. Exprimimos a vivíssima esperança de que nossos sacerdotes tanto os jovens como os de idade mais avançada, com a graça do Senhor, saberão sempre compreender, defender e ilustrar o incomparável valor espiritual, moral e apostólico do mesmo celibato.

Nosso discurso, nesta altaura, é levado a ocupar-se de outro problema, que interessa o mundo inteiro e não menos a Igreja: o dos jovens. Limitar-nos-emos por agora simplesmente a enunciá-lo, considerando-o, porém, como um dos temas mais importantes e mais urgentes. Também este problema é objeto de estudo, estudo que parte inicialmente da simpatia imensa da Igreja pela juventude, da confiança nos grandes recursos pedagógicos da vida cristã. da admirável tradição educativa e organizativa da Igreja, quanto à mesma juventude. Do esforço já posto em prática e tendente a atingi-la, valendo-se dos métodos que lhe reconhecem nova e legítima liberdade, e lhe conferem maior sentido de responsabilidade. Finalmente de uma implorada efusão de entusiasmo, de sublimação, que o espírito de Cristo desejará conceder às novas gerações, no sentido de um ideal de vida mais nobre e autêntica. Família, escola. sociedade. deverão receber da Igreja um novo contributo, para tornar eficaz e amada a "arte das artes", qual é a de formar homens verdadeiros. Também este ponto é problema que nos diz respeito.