12 DE NOVEMBRO DE 1969. AUDIÊNCIA GERAL.

Diremos ainda uma palavra sobre o conceito fundamental, que geralmente hoje todos têm da essência da Igreja a saber: a Igreja é uma comunhão, é uma sociedade animada por um princípio vital único e misterioso, a graça do Espírito Santo. Deste fato derivam diversos princípios muito simples e maravilhosos como, por exemplo, o da igualdade entre todos os que formam a Igreja, pois como diz Cristo: "Vós sois todos irmãos: Omnes autem vos fratres estis" (Mt 23, 8) ; como o princípio da distinção do resto da humanidade não cristã chamada mundo, embora a Igreja esteja imersa no mundo e nele misturada (Jo 8,23; 15,19; 17,14-16); também aquele princípio de que hoje muitos se esquecem da originalidade moral e formal própria da vida cristã, em confronto com a vida profana e pagã (Rom 12,2) ; o princípio, enfim, da santidade, exigência que a própria consciência descobre, e que deriva da presença do Espírito Santo em cada alma que participa vitalmente da comunhão eclesial (1 Cor 3,16).

Mas para nos ater unicamente ao seu caráter social, repetimos com o Concílio recente, que a Igreja é um povo, o Povo de Deus. Esta definição deve integrar-se com a do Corpo místico de Cristo, da sociedade que vive em virtude de um mesmo princípio unificador e animador, mas que constitui um organismo, no qual existem carismas, funções e responsabilidades diferentes (1 Cor 12,4). Por isso, a comunhão no plano do episcopado se apresenta como colegialidade, como certamente ouvistes falar, por ocasião do Sínodo extraordinário que terminou há pouco.

Mas se a Igreja é esta comunhão espiritual e visível, que o progresso religioso do nosso tempo parece ter obtido, como conquista doutrinal e social, deveremos tirar deste fato uma conclusão. No entanto, esta conclusão parece estar, teórica e mais ainda praticamente, comprometida. Referimo-nos à relação de coesão de solidariedade, de concórdia, de harmonia, em. suma, de caridade, que deve existir entre os membros e também entre os diversos grupos da Igreja. Esta relação se tornou mais evidente e portanto mais exigente, mais estreita. mais familiar e mais amistosa. Deveria então ser mais fiel e mais fácil. Mas que acontece realmente?

O vínculo constitucional, estabelecido pelo Evangelho, antes mesmo que fosse firmado pelo direito, entre poder e obediência, é também vítima da contestação sociológica, que hoje está em moda. Procura-se alterá-lo e até minimizá-lo. Não se o pode negar, porque é clara sua origem divina, mas modificá-lo, corrigi-lo e aperfeiçoá-lo, sim.

Ora quem tem responsabilidade na Igreja, quem nela exercita uma forma qualquer de autoridade, diretiva, magisterial, pedagógica, administrativa e apostólica, já declarou que está disposto a por em prática este aperfeiçoamento, como deseja o Concílio e, de fato já está sendo executado leal e abertamente. Mas em tudo se recomenda moderação. "Est modus in rebus, há um jeito de fazer as coisas".

Há neste ponto conceitos falsos de que nos devemos precaver. Por exemplo, diz-se que a autoridade é serviço. Nada de mais justo. É o Senhor que o afirma na última ceia com estas palavras: "Aquele que governa seja como aquele que serve" (Lc 22,26). Esta idéia é muitas vezes repetida por Manzoni, quando traça o perfil do bispo ideal, na pessoa de Frederico Borromeu: "Não deve existir superioridade de um homem sobre outro, senão no serviço".

São Gregório Magno deixou de si, como chefe da Igreja e pastor dos pastores, a definição que até agora conservamos no protocolo pontifício: "Servo dos servos de Deus". Mas esta fórmula exata e cheia de lições, não anula o poder do papa. Isto acontece com todas as fórmulas análogas, que se relacionam com a legítima autoridade. A autoridade na Igreja é para serviço dos irmãos, mas não está a serviço dos outros. Em outras palavras, o objetivo da autoridade é o bem dos demais. Isto não quer dizer que os demais são a fonte da autoridade. No exercício da autoridade, a Igreja é democrática no fim ou finalidade, usando o termo freqüente, em sua razão de ser, mas não na sua origem, porque não vai haurir seu poder na assim chamada "base", mas em Cristo, em Deus, perante o qual ela é responsável, e não perante a mais ninguém.

Isso nos leva a precisar algo muito importante: que o poder na Igreja não se pode revestir de formas historicamente variáveis, como são as empregadas no governo civil da sociedade. Quem preside a um governo desse tipo, tem apenas o ofício de legalizar o que a comunidade elaborou e decretou. Na Igreja o poder conserva a liberdade e a iniciativa, que o Senhor outorgou aos apóstolos e à hieraquia não só para a garantia da ordem externa, mas também para o bem tanto de cada fiel, como de toda a comunidade, para aquele bem que atribui prioridade à dignidade, à liberdade, à responsabilidade e à santificação de todos, e de cada um dos que compõem o corpo eclesial.

Por conseguinte, quando hoje se diz que é contestada na Igreja, não a autoridade como tal, mas a maneira de exercê-la, está certo, com a condição, porém, de que a procura deste ideal não autorize a libertação do modo real e legítimo, com que a autoridade cumpre seu mandato, o que seria simplesmente desobediência.

O mesmo se deve dizer em relação ao diálogo, que hoje é objeto de muitas discussões, não só entre a Igreja e quem a circunda por fora, mas também entre os que estão por dentro da Igreja, e nela ocupam posições e funções diferentes. O diálogo é excelente, se nele se procura o respeito e a promoção da pessoa ou do grupo, da parte daqueles que na Igreja devem tomar decisão ou formar consciências e costumes, conforme aos desejos e ao espírito do Cristo. Educar para a compreensão e o amor do preceito, é progresso pedagógico que exige grande paciência e sagacidade. Mas nem por isso o diálogo pode paralizar o exercício normal da responsabilidade de guiar e dirigir, nem pode substituir normalmente o juízo do pastor e do mestre, pelo livre exame de cada fiel, nem exigir certa distribuição da autoridade, que a prive de seu vigor e responsabilidade.

Compreendemos que a matéria é delicada e complexa e de grande atualidade. Por isso não vamos acrescentar mais nada aqui. Os ensinamentos do último Concílio são claros e abundantes. Muitos são os mestres que a eles se referem.

Faremos bem dedicando a este problema capital uma reflexão leal e atenta. De nossa parte queremos, neste momento, insistir sobre a visão da Igreja, que afinal é a visão de nossa vida no pensamento de Deus, concretizado em nossa história, sobre a visão da Igreja como comunhão, como comunhão hierárquica, como "ciência da harmonia, consonantia disciplinae", para usar uma expressão de um antigo doutor da Igreja.

Na formação da nova mentalidade eclesial, mesmo que a chamemos pós-conciliar, devemos desenvolver o sentido da comunhão, na qual, como membros da Igreja, estamos inseridos. Por mais viva que deva ser a consciência de. nossa liberdade e de nossa personalidade, não devemos esquecer que não estamos sós nem somos autônomos. Lembremo-nos, pelo contrário, de que tanto mais nos devemos considerar como unidades independentes, autodetermináveis e responsáveis, quanto mais percebemos que fomos colocados numa ordem comunitária e hierárquica. Estas duas consciências se desenvolvem juntas, exercendo uma sobre a outra um estímulo recíproco. Ser católicos significa ser únicos e universais. É nessa plenitude adquirida de nossa personalidade, que adere a um plano que a reconhece objetivamente e transcende, isto é, a obediência à vontade de Deus, mesmo quando esta se manifesta especialmente neste caso, por meio de um irmão autorizado a fazer-se intérprete dela, é aí que vivemos o mistério da comunhão hierárquica, ou, em outras palavras, que vivemos a Igreja, e refletimos em nós o mistério do Cristo, cuja aparição humana foi toda dominada por uma adesão consciente e heróica à vontade do Pai; "Factus oboediens usque ad mortem, fez-se obediente até à morte" (Flp 2,5-8; Jo 6,38; 8,29 etc.).

Por vezes, em nossos dias, há quem espere do progresso da consciência que a Igreja está adquirindo de si mesma, uma dissolução de suas relações e vinculos jurídicos; que a constituem como corpo visível e orgânico de Cristo, na realidade histórica do mundo. Há também quem considere tal processo doutrinal como uma passagem de poderes dos graus superiores aos graus inferiores do Povo de Deus. Nós, porém, consideramos a Igreja como uma solidariedade profunda e orgânica, como aquela sociedade, aquela comunhão, "koinonia" como diz são João, que nos faz participar da própria vida de Deus (2 Pdr 1,4) e que irmana todos em Cristo (1 Jo 1,6-7).