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15. Primeiro que tudo, queremos recordar uma verdade, que muito
bem conheceis e é absolutamente necessária no combate a qualquer
veneno de racionalismo. Verdade, que muitos mártires selaram com o
próprio sangue, e célebres Padres e Doutores da Igreja professaram
e ensinaram constantemente. É a seguinte: a Eucaristia é um
Mistério altíssimo, é, propriamente, o Mistério da fé, como
se exprime a Sagrada Liturgia: "Nele só, estão concentradas,
com singular riqueza e variedade de milagres, todas as realidades
sobrenaturais", como muito bem diz o nosso predecessor Leão XIII
de feliz memória.[4]
16. Sobretudo deste Mistério é necessário que nos aproximemos
com humilde respeito, não dominados por pensamentos humanos que devem
emudecer, mas atendonos firmemente à Revelação divina.
17. São João Crisóstomo, que, como sabeis, tratou com tanta
elevação de linguagem e tão iluminada piedade o Mistério
Eucarístico, exprimiu-se nos seguintes termos precisos, ao ensinar
aos seus féis esta verdade: "Inclinemo-nos sempre diante de Deus
sem o contradizermos, embora o que Ele diz possa parecer contrário à
nossa razão e à nossa inteligência; sobre a nossa razão e a nossa
inteligência, prevaleça a sua palavra. Assim nos comportemos
também diante do Mistério (Eucarístico), não considerando só o
que nos pode vir dos nossos sentidos, mas conservando-nos fiéis às
suas palavras. Uma palavra sua não pode enganar".[5]
18. Idênticas afirmações encontramos freqüentemente nos
Doutores Escolásticos. Estar presente neste Sacramento o
verdadeiro Corpo e o verdadeiro Sangue de Cristo, "não é coisa
que se possa descobrir com os sentidos, diz Santo Tomás, mas só
com a fé, baseada na autoridade de Deus. Por isso, comentando a
passagem de São Lucas, 22,19: "Isto é o meu corpo que será
entregue por vós", diz São Cirilo: "Não ponhas em dúvida se
é ou não verdade, mas aceita com fé as palavras do Salvador; sendo
Ele a Verdade, não mente".[6]
19. Repetindo a expressão do mesmo Doutor Angélico, assim canta
o povo cristão: "Enganam-se em ti a vista, o tato e o gosto. Com
segurança só no ouvido cremos: creio tudo o que disse o Filho de
Deus. Nada é mais verdadeiro do que esta palavra de verdade".
20. Mais ainda: é São Boaventura quem afirma: "Estar Cristo
no Sacramento como num sinal, nenhuma dificuldade tem; estar no
Sacramento verdadeiramente, como no céu, tem a maior das
dificuldades: é pois sumamente meritório acreditá-lo".[7]
21. O mesmo dá a entender o Evangelho ao contar que muitos
discípulos de Cristo, ao ouvirem falar de comer carne e beber
sangue, voltaram as costas e abandonaram o Senhor, dizendo: Duras
são estas palavras! Quem pode escutá-las? Perguntando então
Jesus se também os Doze se queriam retirar, Pedro afirmou, com
decisão e firmeza, a fé sua e a dos Apóstolos, com esta resposta
admirável: "Senhor, a quem iremos? Tens palavras de vida
eterna!" [8]
22. Ao magistério da Igreja confiou o Redentor divino a palavra
de Deus tanto escrita como transmitida oralmente, para que a guardasse
e interpretasse. É esse magistério que devemos seguir, como estrela
orientadora, na investigação desse Mistério, convencidos de que
"embora não esteja ao alcance da razão e embora se não explique com
palavras, continua sempre a ser verdade aquilo que há muito se
proclama com a fé católica genuína e é objeto de crença em toda a
Igreja". [9]
23. Ainda não é tudo. Salva a integridade da fé, é
necessário salvar também a maneira exata de falar, não aconteça
que, usando nós palavras ao acaso, entrem no nosso espírito, o que
Deus não permita, idéias falsas como expressão da crença nos mais
altos mistérios. Vem a propósito a advertência de Santo Agostinho
sobre o modo diverso como falam os filósofos e os cristãos: "Os
filósofos, escreve o Santo, falam livremente, sem medo de ferir os
ouvidos das pessoas religiosas em coisas muito difíceis de entender.
Nós, porém, devemos falar segundo uma regra determinada, para
evitar que a liberdade de linguagem venha a causar maneiras de pensar
ímpias, mesmo quanto ao sentido das palavras".[10]
24. Donde se conclui que se deve observar religiosamente a regra de
falar, que a Igreja, durante longos séculos de trabalho, assistida
pelo Espírito Santo, estabeleceu e foi confirmando com a autoridade
dos Concílios, regra que, muitas vezes, se veio a tornar sinal e
bandeira da ortodoxia da fé. Ninguém presuma mudá-la, a seu
arbítrio ou a pretexto de nova ciência. Quem há de tolerar que
fórmulas dogmáticas, usadas pelos Concílios Ecumênicos a
propósito dos mistérios da Santíssima Trindade e da Encarnação,
sejam acusadas de inadaptação à mentalidade dos nossos
contemporâneos, e outras lhes sejam temerariamente substituídas? Do
mesmo modo, não se pode tolerar quem pretenda expungir, a seu
talante, as fórmulas usadas pelo Concílio Tridentino ao propor a
fé no Mistério Eucarístico. Essas fórmulas, como as outras que
a Igreja usa para enunciar os dogmas de fé, exprimem conceitos que
não estão ligados a uma forma de cultura, a determinada fase do
progresso científico, a uma ou outra escola teológica, mas
apresentam aquilo que o espírito humano, na sua experiência universal
e necessária, atinge da realidade, exprimindo-o em termos
apropriados e sempre os mesmos, recebidos da linguagem ou vulgar ou
erudita. São, portanto, fórmulas inteligíveis em todos os tempos
e lugares.
25. Pode haver vantagem em explicar essas fórmulas com maior
clareza e em palavras mais acessíveis, nunca, porém, em sentido
diverso daquele em que foram usadas. Progrida a inteligência da fé,
contanto que se mantenha a verdade imutável da fé. O Concílio
Vaticano I ensina que nos dogmas "se deve conservar perpetuamente
aquele sentido que, duma vez para sempre, declarou a Santa Madre
Igreja, e que nunca é lícito afastarmo-nos desse sentido,
pretextando e invocando maior penetração".[11]
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