INDUSTRIALIZAÇÃO

25. Necessária ao rendimento econômico e ao progresso humano, a introdução da indústria é ao mesmo tempo, sinal e fator de desenvolvimento. Por meio de uma aplicação tenaz da inteligência e do trabalho, o homem consegue arrancar, pouco a pouco, os segredos à natureza e usar melhor das suas riquezas. Ao mesmo tempo que disciplina os hábitos, desenvolve em si o gosto da investigação e da invenção, o acolhimento do risco prudente, a audácia nas empresas, a iniciativa generosa e o sentido da responsabilidade.

26. Infelizmente, sobre estas novas condições da sociedade, construiu-se um sistema que considerava o lucro como motor essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como direito absoluto, sem limite nem obrigações sociais correspondentes. Este liberalismo sem freio conduziu à ditadura denunciada com razão por Pio XI, como geradora do "imperialismo internacional do dinheiro".[26] Nunca será demasiado reprovar tais abusos, lembrando mais uma vez, solenemente, que a economia está ao serviço do homem.[27] Mas, se é verdade que um certo capitalismo foi a fonte de tantos sofrimentos, injustiças e lutas fratricidas com efeitos ainda duráveis, é contudo sem motivo que se atribuem à industrialização males que são devidos ao nefasto sistema que a acompanhava. Pelo contrário, é necessário reconhecer com toda a justiça o contributo insubstituível da organização do trabalho e do progresso industrial na obra do desenvolvimento.

27. De igual modo, se por vezes reina uma mística exagerada do trabalho, não resta dúvida de que este é querido e abençoado por Deus. Criado à sua imagem "o homem deve cooperar com o Criador no aperfeiçoamento da criação e imprimir, por sua vez, na terra, o cunho espiritual que ele próprio recebeu".[28] Deus, que dotou o homem de inteligência, de imaginação e de sensibilidade, deu-lhe assim o meio para completar, de certo modo, a sua obra: ou seja artista ou artífice, empreendedor, operário ou camponês, todo o trabalhador é um criador. Debruçado sobre uma matéria que lhe resiste, o trabalhador imprime-lhe o seu cunho, enquanto para si adquire tenacidade, engenho e espírito de invenção. Mais ainda, vivido em comum, na esperança, no sofrimento, na aspiração e na alegria partilhada, o trabalho une as vontades, aproxima os espíritos e solda os corações: realizando-o, os homens descobrem que são irmãos.[29]

28. Ambivalente, sem dúvida, pois promete dinheiro, gozo e poder, convidando uns ao egoísmo e outros à revolta, o trabalho também desenvolve a consciência profissional, o sentido do dever e a caridade para com o próximo. Mais científico e melhor organizado, corre o perigo de desumanizar o seu executor, tornando-o escravo, pois o trabalho só é humano na medida em que permanecer inteligente e livre. João XXIII lembrou a urgência de restituir ao trabalhador a sua dignidade, fazendo-o participar realmente na obra comum: "deve-se tender a que a empresa se transforme numa comunidade de pessoas, nas relações, funções e situações de todo o seu pessoal".[30] O trabalho dos homens e, com maior razão o dos cristãos, tem ainda a missão de colaborar na criação do mundo sobrenatural,[31] inacabado até chegarmos todos a construir esse Homem perfeito de que fala são Paulo, "que realiza a plenitude de Cristo".[32]

29. Urge começar: são muitos os homens que sofrem, e aumenta a distância que separa o progresso de uns da estagnaçâo e, até mesmo, do retrocesso de outros. No entanto, é preciso que a obra a realizar progrida harmoniosamente, sob pena de destruir equilíbrios indispensáveis. Uma reforma agrária improvisada pode falhar o seu objetivo. Uma industrialização precipitada pode desmoronar estruturas ainda necessárias, criar misérias sociais que seriam um retrocesso humano.

30. Certamente há situações, cuja injustiça brada aos céus. Quando populações inteiras, desprovidas do necessário, vivem numa dependência que lhes corta toda a iniciativa e responsabilidade, e também toda a possibilidade de formação cultural e de acesso à carreira social e política, é grande a tentação de repelir pela violência tais injúrias à dignidade humana.

31. Não obstante, sabe-se que a insurreição revolucionária - salvo casos de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país - gera novas injustiças, introduz novos desequilíbrios, provoca novas ruínas. Nunca se pode combater um mal real à custa de uma desgraça maior.

32. Desejaríamos ser bem compreendidos: a situação atual deve ser enfrentada corajosamente, assim como devem ser combatidas e vencidas as injustiças que ela comporta. O desenvolvimento exige transformações audaciosas, profundamente inovadoras. Devem empreender-se, sem demora, reformas urgentes. Contribuir para elas com a sua parte, compete a cada pessoa, sobretudo àquelas que, por educação, situação e poder, têm grandes possibilidades de influxo. Dando exemplo, tirem dos seus próprios bens, como fizeram alguns dos nossos irmãos no episcopado.[33] Responderão, assim, à expectativa dos homens e serão fiéis ao Espírito de Deus, porque foi "o fermento evangélico que suscitou e suscita no coraçâo do homem uma exigência incoercível de dignidade.[34]

33. Só a iniciativa individual e o simples jogo da concorrência não bastam para assegurar o êxito do desenvolvimento. Não é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos. São necessários programas para "encorajar, estimular, coordenar, suprir e integrar"[35] a ação dos indivíduos e dos organismos intermediários. Pertence aos poderes públicos escolher e, mesmo impor, os objetivos a atingir, os fins a alcançar e os meios para os conseguir e é a eles que compete estimular todas as forças conjugadas nesta ação comum. Tenham porém cuidado de associar a esta obra as iniciativas privadas e os organismos intermediários. Assim, evitarão o perigo de uma coletivização integral ou de uma planificação arbitrária que, privando os homens da liberdade, poriam de parte o exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana.

34. Porque, qualquer programa feito para aumentar a produção não tem, afinal, razão de ser senão colocado ao serviço da pessoa. Deve reduzir desigualdades, combater discriminações, libertar o homem da servidão, torná-lo capaz de, por si próprio, ser o agente responsável do seu bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento espiritual. Dizer desenvolvimento, é com efeito preocupar-se tanto com o progresso social como com o crescimento econômico. Não basta aumentar a riqueza comum, para que ela seja repartida eqüitativamente. Não basta promover a técnica, para que a terra possa ser habitada de maneira mais humana. Nos erros dos predecessores reconheçam, os povos que se encontram em fase de desenvolvimento, um aviso dos perigos que hão de evitar neste domínio. A tecnocracia de amanhã pode gerar ainda piores males que o liberalismo de ontem. Economia e técnica não têm sentido, senão em função do homem, ao qual devem servir. E o homem só é verdadeiramente homem, na medida em que, senhor das suas ações e juiz do valor destas, é autor do seu progresso, em conformidade com a natureza que lhe deu o Criador, cujas possibilidades e exigências ele aceita livremente.

35. Pode mesmo afirmar-se que o crescimento econômico depende, em primeiro lugar do progresso social que ela pode suscitar, e que a educação de base é o primeiro objetivo dum plano de desenvolvimento. A fome de instrução não é menos deprimente que a fome de alimentos: um analfabeto é um espírito subalimentado. Saber ler e escrever, adquirir uma formação profissional, é ganhar confiança em si mesmo e descobrir que pode avançar junto com os outros. Como dizíamos na nossa mensagem ao Congresso da UNESCO, em Teerã no ano de 1965, a alfabetização é para o homem "fator primordial de integração social e de enriquecimento da pessoa e, para a sociedade, instrumento privilegiado de progresso econômico e desenvolvimento".[36] Por isso nos alegramos do trabalho realizado neste domínio pelas iniciativas privadas, pelos poderes públicos e organizações internacionais: são os primeiros obreiros do desenvolvimento, porque tornam o homem apto a empreendê-lo.

36. Mas o homem só é homem quando integrado no seu meio social, onde a família desempenha papel de primeira ordem. Este foi por vezes excessivo, em certas épocas e regiões, quando exercido à custa de liberdades fundamentais da pessoa. Os antigos quadros sociais dos países em via de desenvolvimento, muitas vezes demasiado rígidos e mal organizados, são ainda necessários por algum tempo, embora devam ir diminuindo o que têm de influência exagerada. Porém, a família natural, monogâmica e estável, tal como o desígnio de Deus a concebeu[37] e o cristianismo a santificou, deve continuar a ser esse "lugar de encontro de várias gerações que reciprocamente se ajudam a alcançar uma sabedoria mais plena e a conciliar os direitos pessoais com as outras exigências da vida social".[38]

37. É bem verdade que um crescimento demográfico acelerado vem, com demasiada freqüência, trazer novas dificuldades ao problema do desenvolvimento: o volume da população aumenta muito mais rapidamente que os recursos disponíveis, e cria-se uma situação que parece não ter saída. Surge, por isso, a grande tentação de refrear o crescimento demográfico por meios radicais. É certo que os poderes públicos, nos limites da sua competência, podem intervir, promovendo uma informaçâo apropriada, e tomando medidas aptas, contanto que sejam conformes às exigências da lei moral e respeitem a justa liberdade dos cônjuges. Sem direito inalienável ao matrimônio e à procriação, não existe dignidade humana. Em última análise, é aos pais que compete determinar, com pleno conhecimento de causa, o número de filhos, assumindo a responsabilidade perante Deus, perante eles próprios, perante os filhos que já nasceram e perante a comunidade a que pertencem, de acordo com as exigências da sua consciência, formada segundo a lei de Deus autenticamente interpretada e sustentada pela confiança nele.[39]

38. Na obra do desenvolvimento, o homem, que na família encontra o seu modo de vida primordial, é muitas vezes ajudado por organizações profissionais. Se a razâo de ser destas organizações é promover os interesses dos seus membros, torna-se grande a sua responsabilidade perante a tarefa educativa que elas podem e devem realizar. Através das informações dadas e da formação que propõem, têm o poder de transmitir a todos o sentido do bem comum e das obrigações que ele impõe a cada homem.

39. Toda a ação social implica uma doutrina, mas o cristão não pode admitir a que implique uma filosofia materialista e atéia que não respeite a orientação religiosa da vida para o seu último fim, nem a liberdade e a dignidade humana. Mas, garantidos estes valores, é admissível e, até certo ponto útil, um pluralismo de organizações profissionais e sindicais, contanto que ele proteja a liberdade e provoque a emulação. E com toda a nossa alma que prestamos homenagem a quem quer que, por este meio, trabalha servindo desinteressadamente os seus irmãos.

40. Além de organizações profissionais, funcionam também instituições culturais, cujo papel não é de menos valor para o bom êxito do desenvolvimento. "O futuro do mundo está ameaçado, afirma gravemente o Concílio, se na nossa época não surgirem homens dotados de sabedoria". E acrescenta: "numerosos países, pobres em bens materiais, mas ricos em sabedoria, podem trazer aos outros inapreciável contribuição".[40] Rico ou pobre, cada país possui uma civilização recebida dos antepassados: instituições exigidas para a vida terrestre e manifestações superiores - artísticas, intelectuais e religiosas - da vida do espírito. Quando estas últimas possuem verdadeiros valores humanos, grande erro é sacrificá-los àquelas. Um povo que nisso consentisse perderia o melhor de si mesmo, sacrificaria, julgando encontrar vida, a razão da sua própria vida. O ensinamento de Cristo vale também para os povos: "De que serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se vem a perder a sua alma?"[41]

41. Nunca será demais defender os países pobres desta tentação que lhes vem dos povos ricos que apresentam, muitas vezes, não só o exemplo do seu êxito numa civilização técnica e cultural, mas também o modelo de uma atividade, aplicada sobretudo à conquista da prosperidade material. Esta não impede, par si mesma, a atividade do espírito. Pelo contrário, "o espírito, mais liberto da escravidão das coisas, pode facilmente elevar-se ao culto e contemplação do Criador".[42] No entanto, "a civilização atual, não pelo que tem de essencial, mas pelo fato de estar muito ligada com as realidades terrestres, torna muitas vezes mais difícil o acesso a Deus".[43] Naquilo que lhes é proposto, os povos em via de desenvolvimento devem saber escolher: criticar e eliminar os falsos bens que levariam a uma diminuição do ideal humano, e aceitar os valores verdadeiros e benéficos, para os desenvolver, juntamente com os seus, segundo a própria índole.