Tríplice empenho da Igreja

2. Não ambicionamos, porém, dizer coisas novas nem completas, para isso está o Concílio Ecumênico; esta nossa despretenciosa conversação epistolar não deve perturbar a sua obra, mas sim honrá-la e dar-lhe novo ânimo. Nem quer esta nossa Encíclica revestir caráter solene e propriamente doutrinal, ou propor ensinamentos determinados, morais ou sociais; quer ser apenas mensagem fraterna e familiar. Só desejamos, com este escrito, cumprir o dever de vos abrir a nossa alma, com a intenção de dar maior coesão e maior alegria à comunhão de fé e de caridade, que reina felizmente entre nós. Pretendemos assim imprimir vigor renovado ao nosso ministério, contribuir melhor para a celebração frutuosa do Concílio Ecumênico e clarificar alguns critérios doutrinais e práticos, que podem guiar utilmente a atividade espiritual e apostólica da Hierarquia eclesiástica e de quantos lhe prestam obediência e colaboração, ou mesmo só atenção benévola.

3. Dir-vos-emos desde já, Veneráveis Irmãos, que três são os pensamentos que nos ocorrem ao considerarmos o altíssimo múnus, que a Providência, contra os nossos desejos e méritos, nos quis entregar: o de reger a Igreja de Cristo, na nossa função de Bispo de Roma, e portanto Sucessor do Apóstolo São Pedro, guarda-mor das chaves do Reino de Deus e Vigário de Cristo, que o constituiu primeiro pastor do seu rebanho universal.

O primeiro desses pensamentos é que vivemos a hora de a Igreja aprofundar a consciência de si mesma, meditar sobre o seu mistério, investigar para sua instrução e edificação a doutrina, que já lhe é conhecida e foi elaborada e difundida de modo especial neste último século, sobre a sua origem, natureza, missão e destino. Esta doutrina nunca será, porém, exaurientemente estudada e compreendida, pois contém a "dispensação do mistério escondido há séculos em Deus... para que se manifeste... pela Igreja" (Ef 3,9-10), isto é, contém a misteriosa reserva dos misteriosos desígnios divinos que, por meio da Igreja, são publicados. Essa doutrina constitui, apesar disso, o tema que hoje mais deseja examinar aquele que pretende ser discípulo dócil de Cristo e, mais ainda, quem, como nós e como vós, Veneráveis Irmãos, foi posto pelo Espírito Santo como Bispo para governar a Igreja de Deus (cf. At 20,28).

4. Desta nossa consciência esclarecida e ativa nasce o desejo espontâneo de comparar a imagem ideal da Igreja, qual Cristo a viu, quis e amou como sua Esposa santa e imaculada (Ef 5,27), de a comparar, dizemos, com o rosto que ela apresenta hoje. Este, pela graça divina, é fiel, sem dúvida, aos traços que o seu divino Fundador nela imprimiu e o Espírito Santo vivificou, ampliou, aperfeiçoou no decurso dos séculos, tornando a Igreja mais fel ao conceito inicial e, por outro lado, mais ajustada à índole da humanidade que ela ia evangelizando e incorporando a si. Nunca, porém, o rosto da Igreja mostrará toda a perfeição, beleza e santidade, todo o brilho exigido pelo conceito divino que a modela.

Daqui vem à Igreja a necessidade nobre e quase impaciente de se renovar, isto é, emendar os defeitos, que aquela reflexão, como exame interior feito diante do modelo, que nos deixou Cristo de si mesmo, descobre e repele. Qual é hoje para a Igreja o dever de corrigir os defeitos dos próprios membros e de os levar a tender a maior perfeição, e qual o método para chegar com segurança a esse renovamento? Eis o segundo pensamento que nos vem ao espírito e vos desejamos manifestar, não só para encontrarmos maior coragem nas reformas necessárias; mas também para a vossa adesão nos oferecer conselho e apoio. Trata-se com efeito de empresa delicada e custosa.

5. O nosso terceiro pensamento, que será também vosso, deriva dos dois primeiros: Quais as relações que a Igreja deve hoje estabelecer com o mundo que a circunda e em que vive e trabalha?

Uma parte deste mundo, como todos sabem, recebeu influxo profundo do cristianismo e absorveu-o intimamente, apesar de agora muitas vezes não reconhecer que lhe deve o que tem de melhor; a cristandade foi-se distanciando e separando, nestes últimos séculos, da origem da sua civilização. E outra parte, e a maior, deste mundo dilata-se pelos horizontes ilimitados das nações novas, como se costuma dizer. Uma parte e outra formam um mundo só, que oferece à Igreja não um, mas mil contatos possíveis: evidentes e fáceis, alguns; delicados e complexos, outros; hostis e refratários ao colóquio amigo, hoje muitíssimos, infelizmente.

É o chamado problema do diálogo entre a Igreja e o mundo moderno, problema cuja apresentação, na sua amplitude e complexidade, cabe ao Concílio, como também o esforço para o resolver da melhor maneira possível. A realidade, porém, e a urgência do problema, se por um lado nos afligem, são-nos por outro estímulo, quase diríamos vocação. Este ponto era desejo nosso aclará-lo de algum modo aos nossos olhos, e aos vossos, Veneráveis Irmãos. Não estais, sem dúvida, menos habituados que nós a senti-lo nas suas exigências apostólicas. Desejávamos propor este exame como preparação comum nossa, para as discussões e deliberações que no Sínodo Ecumênico, todos juntos, julgarmos oportunas em matéria tão grave e complexa.