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6. O testemunho que o Senhor dá de si mesmo e que São Lucas
recolheu no seu Evangelho, "Eu devo anunciar a Boa Nova do Reino
de Deus",[12] tem, sem dúvida nenhuma, uma grande
importância, porque define, numa frase apenas, toda a missão de
Jesus: "Para isso é que fui enviado".[13] Estas palavras
assumem o seu significado pleno se se confrontam com os versículos
anteriores, nos quais Cristo tinha aplicado a si próprio as palavras
do profeta Isaías: "O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque me ungiu para evangelizar os pobres".[14]
Andar de cidade em cidade a proclamar, sobretudo aos mais pobres, e
muitas vezes os mais bem dispostos para o acolher, o alegre anúncio da
realização das promessas e da aliança feitas por Deus, tal é a
missão para a qual Jesus declara ter sido enviado pelo Pai. E todos
os aspectos do seu mistério, a começar da própria encarnação,
passando pelos milagres, pela doutrina, pela convocação dos
discípulos e pela escolha e envio dos doze, pela cruz, até a
ressurreição e à permanência da sua presença no meio dos seus,
fazem parte da sua atividade evangelizadora.
7. No decorrer do Sínodo, muitas vezes os Bispos lembraram esta
verdade: o próprio Jesus, "Evangelho de Deus",[15] foi o
primeiro e o maior dos evangelizadores. Ele foi isso mesmo até o
fim, até a perfeição, até o sacrifício da sua vida terrena.
Evangelizar: Qual o significado que teve para Cristo este
imperativo? Não é fácil certamente exprimir, numa síntese
completa, o sentido, o conteúdo e os modos da evangelização, tal
como Jesus a concebia e a pôs em prática. De resto, uma tal
síntese jamais será uma coisa perfeitamente acabada. Aqui,
bastar-nos-á recordar alguns dos aspetos essenciais.
8. Como evangelizador, Cristo anuncia em primeiro lugar um reino,
o reino de Deus, de tal maneira importante que, em comparação com
ele, tudo o mais passa a ser "o resto", que é "dado por
acréscimo". [16] Só o reino, por conseguinte, é absoluto, e
faz com que se torne relativo tudo o mais que não se identifica com
ele. O Senhor comprazer-se-ia em descrever, sob muitíssimas
formas diversas, a felicidade de fazer parte deste reino, felicidade
paradoxal, feita de coisas que o mundo aborrece; [17] as
exigências do reino e a sua carta magna; [18] os arautos do
reino; [19] os seus mistérios; [20] os seus filhos; [21]
e a vigilância e a fidelidade que se exigem daqueles que esperam o seu
advento definitivo.[22]
9. Como núcleo e centro da sua Boa Nova, Cristo anuncia a
salvação, esse grande dom de Deus que é libertação de tudo aquilo
que oprime o homem, e que é libertação sobretudo do pecado e do
maligno, na alegria de conhecer a Deus e de ser por ele conhecido, de
o ver e de se entregar a ele. Tudo isto começa durante a vida do
mesmo Cristo e é definitivamente alcançado pela sua morte e
ressurreição; mas deve ser prosseguido, pacientemente, no decorrer
da história, para vir a ser plenamente realizado no dia da última
vinda de Cristo, que ninguém, a não ser o Pai, sabe quando se
verificará. [23]
10. Este reino e esta salvação, palavras-chave da
evangelização de Jesus Cristo, todos os homens os podem receber
como graça e misericórdia; e no entanto, cada um dos homens deve
conquistá-los pela força, os violentos apoderam-se dele, diz o
Senhor, [24] pelo trabalho e pelo sofrimento, por uma vida em
conformidade com o Evangelho, pela renúncia e pela cruz, enfim pelo
espírito das bem-aventuranças. Mas, antes de mais nada, cada um
dos homens os conquistará mediante uma total transformação do seu
interior que o Evangelho designa com a palavra "metanoia", uma
conversão radical, uma modificação profunda dos modos de ver e do
coração.[25]
11. Cristo realiza esta proclamação do reino de Deus por meio da
pregação infatigável de uma palavra da qual se diria que não tem
nenhuma outra igual em parte alguma: "Eis uma doutrina nova,
ensinada com autoridade!"; [26] "Todos testemunhavam a seu
respeito, e admiravam-se das palavras cheias de graça que saíam de
sua boca" [27]; "Jamais alguém falou como este
homem".[28] As suas palavras desvendavam o segredo de Deus, o
seu desígnio e a sua promessa, e modificavam por isso mesmo o
coração dos homens e o seu destino.
12. Mas ele realiza igualmente esta proclamação com sinais
inumeráveis que provocam a estupefação das multidões e, ao mesmo
tempo, as arrastam para junto dele, para o ver, para o escutar e para
se deixarem transformar por ele: enfermos curados, água transformada
em vinho, pão multiplicado e mortos que tornam à vida. Entre todos
os demais, há um sinal a que ele reconhece uma grande importância:
os pequeninos, os pobres são evangelizados, tornam-se seus
discípulos, reúnem-se "em seu nome" na grande comunidade daqueles
que acreditam nele. Efetivamente, aquele Jesus que declarava, "Eu
devo anunciar a Boa Nova do reino de Deus" [29], é o mesmo
Jesus do qual o evangelista São João dizia que ele tinha vindo e
devia morrer "para congregar na unidade todos os filhos de Deus
dispersos".[30] Assim aperfeiçoou ele a sua revelação,
completando-a e confirmando-a com toda a manifestação da sua
pessoa, com palavras e obras, com sinais e milagres, e sobretudo com
a sua morte e com a sua ressurreição e com o envio do Espírito de
verdade. [31]
13. Aqueles que acolhem com sinceridade a Boa Nova, por virtude
desse acolhimento e da fé compartilhada, reúnem-se portanto em nome
de Jesus para conjuntamente buscarem o reino, para o edificar e para o
viver. Eles constituem uma comunidade também ela evangelizadora. A
ordem dada aos doze, "Ide, pregai a Boa Nova", continua a ser
válida, se bem que de maneira diferente, também para todos os
cristãos. É precisamente por isso que São Pedro chama a estes
últimos "povo de sua particular propriedade a fim de que proclameis as
excelências daquele que vos chamou"; [32] aquelas mesmas
maravilhas que cada um pode alguma vez escutar na sua própria
língua.[33] A Boa Nova do reino que vem e que já começou, de
resto, é para todos os homens de todos os tempos. Aqueles que a
receberam, aqueles que ela congrega na comunidade da salvação, podem
e devem comunicá-la e difundi-la ulteriormente.
14. A Igreja sabe-o bem, ela tem consciência viva de que a
palavra do Salvador, "Eu devo anunciar a Boa Nova do reino de
Deus", [34] se lhe aplica com toda a verdade. Assim, ela
acrescenta de bom grado com São Paulo: "Anunciar o Evangelho não
é título de glória para mim; é, antes uma necessidade que se me
impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o evangelho".[35] Foi
com alegria e reconforto que nós ouvimos, no final da grande
assembléia de outubro de 1974, estas luminosas palavras: "Nós
queremos confirmar, uma vez mais ainda, que a tarefa de evangelizar
todos os homens constitui a missão essencial da Igreja";[36]
tarefa e missão, que as amplas e profundas mudanças da sociedade
atual tornam ainda mais urgentes. Evangelizar constitui, de fato, a
graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda
identidade. Ela existe para evangelizar, ou seja, para pregar e
ensinar, ser o canal do dom da graça, reconciliar os pecadores com
Deus e perpetuar o sacrifício de Cristo na santa missa, que é o
memorial da sua morte e gloriosa ressurreição.
15. Quem quer que releia no Novo Testamento as origens da Igreja
e queira acompanhar passo a passo a sua história e, enfim, a examine
em sua vida e ação, verá que ela se acha vinculada à
evangelização naquilo que ela tem de mais íntimo.
A Igreja nasce da ação evangelizadora de Jesus e dos doze. Ela é
o fruto normal, querido, o mais imediato e o mais visível dessa
evangelização: "Ide, pois, ensinai todas as gentes".[37]
Ora "aqueles que acolheram a sua Palavra, fizeram-se batizar. E
acrescentaram-se a eles, naquele dia, cerca de três mil
pessoas... E o Senhor acrescentava cada dia ao seu número os que
seriam salvos".[38]
Nascida da missão, pois, a Igreja é por sua vez enviada por
Jesus, a Igreja fica no mundo quando o Senhor da glória volta para
o Pai. Ela fica aí como um sinal, a um tempo opaco e luminoso, de
uma nova presença de Jesus, sacramento da sua partida e da sua
permanência, Ela prolonga-o e continua-o. Ora, é exatamente
toda a sua missão e a sua condição de evangelizado, antes de mais
nada, que ela é chamada a continuar.[39] A comunidade dos
cristãos, realmente, nunca é algo fechado sobre si mesmo. Nela, a
vida íntima, vida de oração, ouvir a Palavra e o ensino dos
apóstolos, caridade fraterna vivida e fração do pão, [40] não
adquire todo o seu sentido senão quando ela se torna testemunho, a
provocar a admiração e a conversão e se desenvolve na pregação e no
anúncio da Boa Nova. Assim, é a Igreja toda que recebe a missão
de evangelizar, e a atividade de cada um é importante para o todo.
Evangelizadora como é, a Igreja começa por se evangelizar a si
mesma. Comunidade de crentes, comunidade de esperança vivida e
comunicada, comunidade de amor fraterno, ela tem necessidade de ouvir
sem cessar aquilo que ela deve acreditar, as razões da sua esperança
e o mandamento novo do amor. Povo de Deus imerso no mundo, e não
raro tentado pelos ídolos, ela precisa de ouvir, incessantemente,
proclamar as grandes obras de Deus,[41] que a converteram para o
Senhor; precisa sempre ser convocada e reunida de novo por ele. Numa
palavra, é o mesmo que dizer que ela tem sempre necessidade de ser
evangelizada, se quiser conservar frescor, alento e força para
anunciar o Evangelho. O Concílio Ecumênico Vaticano II
recordou e depois o Sínodo de 1974 [42] retomou com vigor este
mesmo tema: a Igreja que se evangeliza por uma conversão e uma
renovação constantes, a fim de evangelizar o mundo com
credibilidade.
A Igreja é depositária da Boa Nova que há de ser anunciada. As
promessas da nova aliança em Jesus Cristo, os ensinamentos do
Senhor e dos apóstolos, a Palavra da vida, as fontes da graça e da
benignidade de Deus, o caminho da salvação, tudo isto lhe foi
confiado. É o conteúdo do Evangelho e, por conseguinte, da
evangelização, que ela guarda como um depósito vivo e precioso,
não para manter escondido, mas sim para o comunicar.
Enviada e evangelizadora, a Igreja envia também ela própria
evangelizadores. É ela que coloca em seus lábios a Palavra que
salva, que lhes explica a mensagem de que ela mesma é depositária,
que lhes confere o mandato que ela própria recebeu e que, enfim, os
envia a pregar. E a pregar, não as suas próprias pessoas ou as suas
idéias pessoais, [43] mas sim um Evangelho do qual nem eles nem
ela são senhores e proprietários absolutos, para dele disporem a seu
bel-prazer, mas de que são os ministros para o transmitir com a
máxima fidelidade.
16. Existe, portanto, uma ligação profunda entre Cristo, a
Igreja e a evangelização. Durante este "tempo da Igreja" é ela
que tem a tarefa de evangelizar. E essa tarefa não se realiza sem ela
e, menos ainda, contra ela.
Convém recordar aqui, de passagem, momentos em que acontece nós
ouvirmos, não sem mágoa, algumas pessoas, cremos bem
intencionadas, mas com certeza desorientadas no seu espírito, a
repetir que pretendem amar a Cristo mas sem a Igreja, ouvir a Cristo
mas não à Igreja, ser de Cristo mas fora da Igreja. O absurdo de
uma semelhante dicotomia aparece com nitidez nesta palavra do
Evangelho: "Quem vos rejeita é a mim que rejeita".[44] E
como se poderia querer amar Cristo sem amar a Igreja, uma vez que o
mais belo testemunho dado de Cristo é o que São Paulo exarou nestes
termos: "Ele amou a Igreja e entregou-se a si mesmo por ela"?
[45]
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