Em que sentido deve-se entender a reforma

22. Naturalmente, tocará ao Concílio sugerir as reformas na legislação da Igreja. E as Comissões pós-conciliares, especialmente a instituída para a revisão do Código do Direito Canônico, desde já designada por nós, procurarão formular em termos concretos as deliberações do Sínodo Ecumênico. A vós, Veneráveis Irmãos, pertencerá indicar-nos as medidas para purificar e rejuvenescer a face da santa Igreja. Mas novamente vos manifestamos o nosso propósito de favorecer tal reforma: quantas vezes nos séculos passados este intento aparece associado à história dos Concílios! Pois seja-o uma vez mais, e desta não já para extirpar na Igreja determinadas heresias e desordens gerais que, graças a Deus, agora não existem, mas para infundir novo vigor espiritual ao Corpo Místico de Cristo, como organização visível, purificando-o dos defeitos de muitos dos seus membros e estimulando-o a novas virtudes.

Para que isto aconteça, suposto o divino auxílio, seja-nos permitido apresentar-vos aqui algumas considerações prévias que podem facilitar a obra de renovação, infundir-lhe o necessário vigor, - não é sem algum sacrifício que ela se pode obter! -, e traçar algumas linhas, que parecem facilitar a sua realização.

23. Deveremos recordar primeiramente alguns critérios que nos mostram em que sentido esta reforma se há de promover. Não pode abarcar nem o conceito essencial nem as estruturas fundamentais da Igreja católica. A palavra reforma seria mal usada se a empregássemos nesta acepção. Não podemos acusar de infidelidade esta nossa amada e santa Igreja de Deus, pertencer à qual temos como a maior das graças. Ela dá ao nosso espírito o testemunho de "que somos filhos de Deus" (Rom 8,16). Não é orgulho, não é presunção, não é obstinação nem loucura, mas certeza luminosa, convicção alegre esta nossa: a de termos sido constituídos membros vivos e genuínos do Corpo de Cristo, de sermos autênticos herdeiros do seu Evangelho e verdadeiros continuadores dos Apóstolos, de possuirmos a herança intacta e viva da tradição original apostólica, no grande patrimônio doutrinal e moral característico da Igreja católica, qual ela existe hoje. Se isto forma o nosso orgulho, ou melhor o motivo pelo qual devemos "dar sempre graças à Deus" (Ef 5,20), constitui igualmente para nós responsabilidade: diante de Deus, a quem temos de dar contas de tão grande benefício; diante da Igreja, a quem devemos infundir, juntamente com a certeza, o desejo, o propósito de conservar o tesouro, o depósito de que fala São Paulo (1Tm 6,20), diante dos Irmãos ainda de nós separados e diante do mundo inteiro para que todos venham participar conosco no dom de Deus.

24. Se, neste particular, podemos falar de reforma, não devemos tomá-la como mudança, mas sim como confirmação no esforço para mantermos na Igreja a fisionomia que lhe imprimiu Cristo, mais ainda, no esforço para a reconduzir sempre à sua forma perfeita, correspondente por um lado ao desígnio primitivo do Fundador, e por outro reconhecida como conseqüente e legítima no progresso necessário. Como da semente se origina a árvore, assim daquele desígnio vem à Igreja a sua forma legítima, histórica e concreta. Não nos iluda o critério de reduzir o edifício da Igreja, que se tornou amplo e majestoso para a glória de Deus, como templo seu magnífico, de o reduzir às suas proporçôes iniciais e mínimas, como se estas fossem as únicas verdadeiras e justas. Nem nos fascine a ambição de renovar a estrutura da Igreja por via carismática, como se fosse nova e verdadeira a expressão eclesial nascida de idéias meramente particulares, embora fervorosas e atribuídas talvez à divina inspiração. Por este caminho se introduziriam sonhos arbitrários de renovações artificiosas no plano constitutivo da Igreja. Como ela é, devemo-la servir e amar, com sentido inteligente da história e buscando humildemente a vontade de Deus, que a assiste e guia, mesmo quando permite que a fraqueza humana lhe empane algum tanto a pureza das linhas e a elegância da ação. Esta pureza e esta elegância é que nós andamos procurando e queremos promover.