5. Os vitorinos enquanto escola de espiritualidade.

Nós viemos aqui reunir-nos porque queremos aprender. Precisamente por este motivo estamos nos deparando com algo que nos foi deixado por escrito através de alguém que, apesar dos nove séculos de distância que nos separam, quis nos deixar um ensinamento sobre este assunto porque sabia de sua importância. Para entender, porém, o conteúdo do Opúsculo sobre o Modo de Aprender e a importância da mensagem que nele nos foi transmitida é preciso entender algo do contexto histórico dentro do qual se encontra Hugo de S. Vitor.

Podemos iniciar um melhor entendimento deste contexto se abrirmos as primeiras páginas da obra de A. Royo Marín intitulada de Teologia da Perfeição Cristã. Aí encontraremos, logo em seu início, uma extensa bibliografia contendo praticamente todos os principais autores que houve ao longo da História da Igreja que trataram sobre algum tema de espiritualidade cristã. Estes autores não estão somente elencados em ordem cronológica, mas também agrupados por escolas ou correntes de espiritualidade. Desta extensa bibliografia pode-se extrair um quadro cronológico esquemático em que foram situados alguns nomes e datas importantes como pontos de referência na história da espiritualidade cristã.

Examinando este quadro, vemos que nos primeiros séculos da História da Igreja não houve propriamente correntes ou escolas de espiritualidade. Os autores estão divididos em dois grandes grupos aos quais denominamos de Padres Latinos e Padres Gregos, grupos que correspondem aos autores que viviam no Ocidente ou no Oriente do antigo Império Romano, cujas línguas em que costumavam escrever eram, respectivamente, o Latim e o Grego.

Dentre as obras mencionadas entre os primeiros padres Gregos e Latinos podemos destacar, pela profundidade e pela extensão, a de Santo Agostinho no Ocidente e a de São João Crisóstomo no Oriente. Santo Agostinho e São João Crisóstomo tiveram, no mundo latino e no mundo grego, papéis razoavelmente semelhantes.

Entre as obras mencionadas entre as dos primeiros Santos Padres destacam-se também duas outras que desempenharam o papel de uma síntese do pensamento cristão não no que diz respeito a toda a Teologia, mas mais especificamente à vida espiritual. No Ocidente João Cassiano, um cristão que passou muitos anos de sua vida entre os monges da Palestina e dos desertos do Egito para depois dirigir-se à Gália, hoje sul da França, e fundar um mosteiro em Marselha, escreveu as Instituições dos Cenobitas e As 24 Conferências. No Oriente, São João Clímaco, monge no mosteiro de Santa Catarina aos pés do Monte Sinai, onde um milênio e meio antes Moisés havia recebido as tábuas dos 10 mandamentos, após passar muitos anos como eremita no alto deste mesmo monte, eleito abade e trazido de volta ao mosteiro, escreveu A Escada do Paraíso.

Por volta do ano 550, com base na experiência acumulada da tradição monástica iniciada com Santo Antão em torno do ano 300, e com especial referência a São Basílio e João Cassiano, São Bento redigiu uma regra monástica tão perfeita que aos poucos começaram a cessar em sua maior parte as iniciativas de se redigirem novas regras para adotar-se mais simplesmente aquela já escrita por São Bento. A Europa Ocidental tornou-se quase que inteiramente beneditina e surgiu a primeira das escolas de espiritualidade apontadas na obra de Royo Marin, a escola beneditina, inspirada nos princípios da Regra de São Bento.

Somente no apogeu da Idade Média iriam surgir novas escolas de espiritualidade revestidas de importância histórica. Uma das primeiras a surgirem é precisamente a dos vitorinos, entre cujos principais autores contam-se Hugo e Ricardo de São Vitor. Neste sentido, Hugo e Ricardo de São Vitor não são apenas dois autores importantes que trataram de temas ligados à espiritualidade cristã; mais do que isto, eles representam um modo especial com que este tema pode ser abordado.

Um século após o surgimento dos vitorinos, com o advento das ordens franciscana e dominicana, esta última à qual pertenceu Santo Tomás de Aquino, surgiram também aquelas a que R. Marin denomina de escolas franciscana e dominicana de espiritualidade.

Durante a Renascença os Jesuítas e os Carmelitas vieram dar a sua contribuição ao tema. Formando o que R. Marin chama de escolas, não apenas trataram do assunto, mas o abordaram como que segundo uma nova perspectiva. Entre os carmelitas dois dos principais autores que trataram da vida espiritual em todos os tempos, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila.

São Francisco de Sales, segundo Royo Marin, é, ele sozinho, uma inteira escola de espiritualidade, tal a novidade da perspectiva com que ele se debruçou sobre o assunto. Embora São Francisco de Sales se baseasse, em seus escritos, em toda a tradição cristã, pode-se perceber nele uma influência medular de Santa Teresa de Ávila. Não obstante o muito que ele deve a São Francisco de Assis e também a Santo Inácio de Loyola, na realidade a sua obra é a de alguém que essencialmente parece ter querido tornar verdadeiramente acessível às pessoas mais simples a tão profunda riqueza espiritual contida nos escritos de Santa Teresa de Ávila. Fê-lo porém de um modo tão impregnado com a sua própria experiência e seu vasto conhecimento que acabou por tornar-se, ele quase que sozinho, uma nova escola de espiritualidade.

Em meados do século 19 São João Bosco, ao ver-se obrigado pelas circunstâncias e pela sua vocação a iniciar uma congregação dedicada à educação da juventude, encantado pela simplicidade dos escritos e das orientações deixadas por São Francisco de Sales, quis que em seu instituto nascente a vida espiritual tivesse uma orientação salesiana. Embora São Francisco de Sales já houvesse morrido há cerca de dois séculos, S. João Bosco deu por este motivo à família espiritual que iniciava o nome de Congregação de São Francisco de Sales ou de Salesianos, como são até hoje mais conhecidos.

Neste interim, no século dezoito, Santo Afonso de Liguori, às voltas com a fundação de um instituto missionário que veio a chamar-se de Congregação do Santíssimo Redentor, cujos membros são também conhecidos como Redentoristas, não obstante sua dívida profunda com Santo Tomás de Aquino, em matéria de espiritualidade depende fundamentalmente das concepções básicas de Santa Teresa de Ávila. A escola salesiana e a redentorista são, assim, na realidade, em seus traços essenciais, derivações do legado de Santa Teresa de Ávila.

Situado neste contexto, pode-se perceber que Hugo e Ricardo de São Vitor, como já mencionamos, não são apenas teólogos importantes, ainda que situados entre os mais importantes que houve na Igreja, mas também representam um modo especial de se considerar a vida espiritual. O pequeno comentário que Royo Marin tece a cada escola de espiritualidade à medida em que ela no-las vai apresentando é, em relação aos vitorinos, enquanto escola distinta, muito preciso e correto:

"Herdeira do espírito de Santo Agostinho",

diz Royo Marín,

"a escola de São Vitor representa um termo médio entre a escola beneditina, de orientação predominantemente afetiva, e a dominicana, que nascerá em seguida, com tendência mais intelectualista".