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"Corria o ano quarenta e dois do reinado de Augusto e o vigésimo
oitavo desde a conquista do Egito e a morte de Antônio e
Cleópatra, com que se extinguiu a dinastia egípcia dos Ptolomeus,
quando Nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo nasceu em Belém de
Judá, conforme às profecias a seu respeito, sendo Cirino
governador da Síria"(1).
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Com estas palavras Eusébio de Cesaréia, bispo que viveu na virada
do terceiro para o quarto século e o primeiro historiador da Igreja,
descreve o nascimento de Jesus Cristo Nosso Senhor. Trinta e
poucos anos após seu nascimento, depois de três anos de vida
pública, Jesus dava preceito aos seus apóstolos para que se
dirigissem a todos os povos e os "ensinassem a observar todas as coisas
que ele lhes havia mandado"(Mt. 28,19).
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"Assim, indubitavelmente por uma força e assistência do alto",
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continua Eusébio de Cesaréia,
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"a doutrina da salvação, como raio de Sol, iluminou de repente
toda a terra habitada, até que, conforme as divinas escrituras, a
voz de seus evangelistas inspirados e de seus apóstolos ecoou por toda
a terra, e suas palavras até os confins do mundo" (2).
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"Por todas as aldeias se constituíam em massa comunidades formadas
por multidões inumeráveis. Aqueles que por um antigo erro tinham
suas almas presas à idolatria, pelo poder do Cristo e graças aos
ensinamentos de seus discípulos e aos milagres que os acompanhavam se
afastavam dos ídolos e confessavam que não havia mais do que um só
Deus, o Criador de todas as coisas"(3).
continua Eusébio,
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"brilhou sobre todos os homens a presença de nosso salvador Jesus
Cristo e um povo, novo no conceito de todos, apareceu
repentinamente, conforme às inefáveis predições de antigamente, um
povo não pequeno, nem débil, o povo a quem todos honram com o nome
de Cristo"(4).
"A fama da assombrosa ressurreição de nosso salvador e de sua
ascensão aos céus havia alcançado já a grande maioria. Havia-se
estabelecido entre os governadores das nações o antigo costume de
informar ao que ocupava o cargo imperial de todas as novidades ocorridas
em suas regiões. Pilatos deu parte ao Imperador Tibério de tudo o
que corria de boca em boca por toda a Palestina referente à
ressurreição de nosso salvador Jesus de entre os mortos; inteirou-o
também de seus outros milagres e de que o povo já acreditava ser ele
Deus, porque depois de sua morte havia ressuscitado de entre os
mortos"(5).
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Diz-se que Tibério levou o assunto ao Senado, manifestando aos
senadores que lhe agradava esta doutrina. O Senado, porém,
"recusou-se a tomar conhecimento do assunto"(6), "aparentemente
porque não o havia aprovado previamente, pois uma antiga lei
prescrevia que entre os romanos ninguém fosse divinizado se não fosse
mediante voto e por decreto do Senado"(7)."Tibério, porém,
persistiu em sua declaração e ameaçou de morte aos acusadores dos
cristãos. A Providência havia disposto colocar isto no ânimo do
Imperador para que a doutrina do Evangelho tivesse um começo livre de
obstáculos e se propagasse por toda a terra"(8). Desta maneira,
por um período de aproximadamente três decênios após a morte e
ressurreição de Cristo, sua doutrina, segundo o testemunho de
Eusébio de Cesaréia, viu-se livre de obstáculos para propagar-se
entre os homens.
Foi com o Imperador Nero, no ano 64 DC, que se iniciaram as
perseguições aos cristãos que iriam durar, com interrupções, até
o fim do governo do Imperador Diocleciano. No ano 313 DC, por
ocasião de um edito do novo Imperador Constantino, elas se
encerraram definitivamente. O sangue dos mártires foi a sementeira de
novos cristãos; os romanos se admiravam da alegria com que os fiéis
enfrentavam a morte por amor a Cristo, espetáculo muito diferente
daquele oferecido pelos demais condenados. Não raro sucediam
verdadeiros milagres diante do público que assistia à execução dos
condenados, como o das feras que, a exemplo do que havia acontecido no
Antigo Testamento com o profeta Daniel, se recusavam a devorar
alguns dos cristãos aos quais eram jogadas, não obstante a fome em
que tinham sido mantidas, ou das fogueiras que, a exemplo do outrora
ocorrido com três jovens colegas do mesmo profeta, se recusavam a
queimar os corpos de alguns dentre os outros fiéis que eram atirados
às chamas. Eusébio de Cesaréia diz que nessa época o povo
cristão era "a todo momento objeto do favor divino"(9), com o que
se havia tornado "o povo mais numeroso de todos os povos"(10).
A liberdade de culto concedida aos cristãos em 313 por Constantino
libertou a Igreja da perseguição imperial; isto, porém, não
significou o fim de seus problemas. Além do surgimento das heresias,
das quais o Arianismo foi apenas a primeira, um outro conjunto de
eventos veio a ocorrer cujas conseqüências para a vida da Igreja nem
sempre têm sido bem compreendidas.
Durante seu governo o Imperador Constantino teve a idéia de fundar
uma nova capital para o Império Romano em uma cidade que ele próprio
havia mandado construir na região oriental de seus domínios, em um
local estratégico que ele havia conhecido alguns anos antes por
ocasião de uma batalha. À nova capital foi dado o nome de
Constantinopla. Concebida para ser a capital do imenso Império
Romano, dentro em breve, porém, ela iria perder inteiramente o
domínio sobre toda a região ocidental do mesmo. De fato, cerca de
meio século após a fundação de Constantinopla começaram a surgir
sérios problemas nas fronteira do Império ao longo dos Rios Reno e
Danúbio.
O território situado para além do leste destes rios, isto é,
aquele que hoje é conhecido como a Europa Oriental, era povoado
nesta época pelas tribos a que os romanos denominavam de bárbaros.
As várias tribos ou nações que os romanos conheciam por este nome
ocupavam os territórios a leste dos rios Reno e Danúbio, nas
regiões atualmente denominadas de Alemanha, Polônia,
Tchecoslováquia, Hungria, Romênia e o oeste da Rússia. Apesar
do nome conotativo de ausência de civilização, por habitarem já há
alguns séculos junto à fronteira com o Império Romano, estes
bárbaros tinham adquirido muitos dos costumes da civilização.
Serviam com freqüência como soldados nos exércitos romanos de
fronteira, e costumavam atravessar estas fronteiras com certa
regularidade e pacificamente, embora não tenham faltado também
invasões violentas repelidas pelas tropas romanas. Havia inclusive
muitas famílias de bárbaros que tinham estabelecido residência
permanente em território romano.
Aconteceu porém que cerca de 40 anos depois da fundação e
transferência da capital do Império Romano para Constantinopla
surgiu, vinda das regiões centrais da Ásia, uma outra tribo de
bárbaros denominada de Hunos, que nada tinham em comum com os
bárbaros semi civilizados das fronteiras do Império Romano.
Em sua marcha para o Oeste, entre eles e o Império Romano, os
Hunos encontraram aos bárbaros que habitavam as margens orientais dos
rios Reno e Danúbio. O terror que os Hunos espalharam entre estes
foi tal que a tribo bárbara dos visigodos enviou uma mensagem ao
Imperador em Constantinopla pedindo permissão para que toda a nação
dos visigodos pudesse atravessar a fronteira do Império e se
estabelecer dentro do território romano. Valente era o nome do
Imperador nesta ocasião, um homem inexperiente e que ocupava o trono
mais por ser o irmão do recém falecido Imperador Valentiniano do que
pelo seu próprio valor. Com ou sem experiência, no entanto, era
este homem a quem os acontecimentos haviam conferido a responsabilidade
de tomar, em regime de urgência, uma das decisões mais cruciais,
senão mesmo a mais crucial da história do Império. Sua decisão
foi a de concordar com o pedido, e, desta maneira, uma nação
inteira de bárbaros atravessou o grande rio que assinalava a fronteira
e se estabeleceu pela primeira vez no interior do Império.
O modo, porém, como se fêz a transferência foi um desastre.
Cerca de duzentos e cinqüenta mil soldados visigodos atravessaram o
Rio Danúbio, acompanhados por suas famílias, um contingente
possivelmente maior do que um milhão de pessoas. Valente havia-lhes
exigido que depusessem as armas, mas a cobiça dos generais romanos
aceitou-lhes os subornos e os visigodos entraram armados no território
do Império. Valente havia providenciado fornecimento de víveres
para o acampamento dos visigodos, mas os mesmos generais que aceitaram
suborno para não verem que os visigodos entravam armados desviaram o
alimento enviado pelo Imperador e, em troca de preços aviltantes,
ofereciam-lhes comida pouca e muitas vezes estragada. Os visigodos,
descontentes com a hospitalidade romana, não tardaram a entrar em
guerra e passaram a saquear as províncias do Império vizinhas ao
território em que haviam se estabelecido. Tomado de pânico, o
Imperador Valente resolveu conduzir pessoalmente um exército contra
aqueles que havia pouco tinha hospedado. Não seguiu, porém, os
conselhos dos generais mais experientes de seu falecido irmão;
querendo, em vez disso, colher uma vitória rápida, além de perder
a guerra, morreu dentro de uma cabana inteiramente cercada de visigodos
à qual estes haviam ateado fogo.
A partir daí, pressionadas pelos Hunos, as demais tribos bárbaras
começaram a invadir o Império Romano sem mais fazer uso da
delicadeza visigoda de pedir permissão. Quanto ao Império, já
decadente, percebeu que mal tinha força militar para conter a
devastação apenas da Itália. No século seguinte, não bastassem
as invasões dos bárbaros, também os Hunos invadiram e devastaram o
Império Romano.
Com exceção dos Hunos, que depois de semearem o terror, acabaram
voltando espontaneamente para as regiões da Ásia de onde tinham
vindo, o Imperador de Constantinopla não tinha mais poder militar
suficiente para expulsar os bárbaros para fora do Império. Estes se
apoderaram de toda a parte ocidental do Império, inclusive a
Itália. O Imperador, em vez de expulsá-los, foi obrigado a
aceitar o fato consumado e, para não ter que aceitá-lo também de
direito, recorreu ao expediente de elevar os chefes bárbaros à
dignidade de "auxiliares perpétuos do Imperador" para as províncias
do ocidente Desta maneira, embora o Império Romano continuasse
oficialmente com a mesma extensão que possuía no início do
Cristianismo, na realidade o Imperador de Constantinopla agora
reinava apenas no Oriente, enquanto que o Ocidente dividiu-se em um
grande número de reinos bárbaros.
Anos se passaram. Por volta do ano 800 DC, Carlos Magno, rei
da tribo dos francos que haviam se instalado na Gália, hoje
França, em cerca de 50 expedições militares conseguiu transformar
o reino dos francos em um grande Império que abarcava praticamente
todos os territórios correspondentes à região ocidental do antigo
Império Romano. Vendo que a divisão do Império Romano estava
consumada de fato, na noite de Natal do ano 800 o Papa Leão
III coroou Carlos Magno "Imperador dos Romanos". Com isto
passavam a existir agora dois Impérios "Romanos". Um deles, com
sede em Constantinopla, passou a ser conhecido como Império
Bizantino. O outro, no Ocidente, passou a ser chamado de Império
Carolíngeo. Graças à nova ordem que havia se estabelecido, o
tempo em que viveu Carlos Magno foi uma época de reconstrução do
que havia sido devastado no Ocidente pelas invasões bárbaras. Foram
construídas novas estradas, cidades, postos militares, igrejas,
mosteiros e escolas.
Mas, ao contrário do Império Bizantino, que ainda iria atravessar
muitos séculos, o Império Carolíngeo não durou muito. Mal havia
morrido Carlos Magno, aquele imenso território se dividiu entre seus
três filhos. A sua região mais ocidental com o tempo se transformou
na França; a sua região mais oriental, por volta do ano 950
DC, se transformou no Sacro Império Romano Germânico, onde
viria a nascer Hugo de São Vítor.
Pior, porém, do que o Império Carolíngeo ter se dividido entre
os filhos de Carlos Magno foi o surgimento, logo após a morte
daquele soberano, de uma nova leva de bárbaros, muito mais selvagem
do que as anteriores, que passou a assolar a Europa de modo quase que
permanente. Com estes iniciou-se a famosa época das trevas da Idade
Média. Esta época das trevas não atravessou toda a Idade Média
e nem pode confundir-se com ela, como se Idade Média e Idade das
Trevas fossem a mesma coisa. Hugo de São Vitor nasceu em plena
Idade Média, mas por esta época este triste período já havia
passado.
A idade das trevas se iniciou logo após o falecimento de Carlos
Magno. Diante da ferocidade dos novos bárbaros vindos das regiões
norte-nordeste da Europa, os soberanos dos reinos europeus,
politicamente divididos e militarmente muito mais fracos do que Carlos
Magno, não foram capazes de oferecer nem organizar resistência. Os
grandes proprietários de terras tiveram que se defender por conta
própria. Os camponeses e os pequenos proprietários de terras, vendo
que não podiam depender dos reis para a manutenção de sua segurança
constantemente ameaçada, tiveram que se associar aos grandes
proprietários, jurando-lhes fidelidade e tornando-se seus súditos.
As pessoas comuns do povo, portanto, acabaram dependendo em tudo e
por tudo dos senhores de terras que se tornaram verdadeiros reis em seus
próprios domínios. Embora nominalmente os grandes proprietários
estivessem sujeitos aos reis, de fato não os obedeciam; e as pessoas
do povo, embora também estivessem nominalmente sujeitas ao rei, de
fato obedeciam aos senhores de terras, que na época eram chamados de
feudos. Daí o nome dado a esta época e a esta organização de
feudalismo.
O sistema feudal foi um grande retrocesso para a civilização. Cada
feudo vivia praticamente isolado dos demais, e em cada um deles a
vontade do senhor feudal era soberana em todas as questões. As
comunicações se tornaram difíceis, mais ainda porque, além de tudo
isto, os muçulmanos haviam conquistado todo o norte da África e
dominado a navegação no mar Mediterrâneo, que se tornou perigosa e
difícil. As escolas escassearam quando não desapareceram por
completo. A insegurança devido às incursões dos bárbaros e as
guerras entre os feudos se tornou geral. As trevas cobriram a região
ocidental da Europa, onde outrora havia florescido o berço da
civilização romana.
Piores, porém, foram as conseqüências que este estado de coisas
teve para a vida da Igreja. Até aproximadamente pouco antes da
época de Carlos Magno os bispos da Igreja eram eleitos pelo próprio
clero local e ordenados pelos bispos da cidade mais importante da
região, chamado de bispo metropolita. Na época, porém, em que no
ocidente da Europa se instalou o reino dos francos, os soberanos,
percebendo que uma aliança com o episcopado era geralmente uma garantia
para a estabilidade de seus governos, começaram a sugerir qual fosse o
seu candidato favorito, sem, porém, intervirem nas eleições.
Gradualmente esta prática foi criando raízes e se degenerando,
graças ao clima propício que o sistema feudal oferecia para isto.
Tempos depois o bispo metropolita somente poderia ordenar o candidato
escolhido pelo clero se a escolha fosse aprovada pelo soberano. Depois
o soberano passou a escolher diretamente o candidato ao episcopado,
cabendo ao clero apenas o direito de confirmar a escolha feita. Em
pleno feudalismo o senhor feudal passou a considerar que as dioceses e
as abadias eram propriedades dos feudos e que, portanto, após a
ordenação do candidato pelo bispo, caberia ao senhor feudal celebrar
a cerimônia de tomada de posse da abadia ou da diocese. Quando já
passou a ser visto como se fosse coisa certa que as dioceses ou abadias
eram propriedade do senhor feudal, estes passaram a exigir dos bispos e
dos abades não apenas que se submetessem à cerimônia de investidura,
mas que também lhes prestassem juramento de fidelidade, obediência e
vassalagem. Mais adiante o senhor feudal passou a exigir não apenas o
direito de nomear e empossar bispos e abades, como também de
destituí-los quando julgasse que tivesse razões para tanto; o
destituído não deixava de ser bispo, o que nenhum senhor feudal
jamais chegou a imaginar que tivesse poder de fazer, mas perdia toda
jurisdição sobre sua diocese. Quando os bispos passaram a ser vistos
como vassalos do senhor feudal, estes começaram a exigir dos seus
novos súditos que se preocupassem não apenas com os problemas
religiosos de suas dioceses, mas também e principalmente com os
problemas relativos a bens temporais, cobrança de impostos, defesa
militar,etc., coisa que, verificou- se, os bispos geralmente eram
mais capazes e tinham mais autoridade para cumprir, no quadro social
daquela época tumultuada, do que os dignatários seculares. Em
alguns lugares esta prática degenerou a tal ponto que, quando a
principal preocupação de muitos bispos já era de ordem temporal, os
senhores feudais passaram a designar leigos para assumir os governos das
dioceses, os quais por sua vez nomeavam um eclesiástico para o
desempenho das funções religiosas; estes leigos titulares de dioceses
e abadias, não tendo feito voto de castidade por serem leigos, podiam
casar-se e, ao fazerem isto, passaram a considerar as dioceses e
abadias como bens hereditários de suas famílias. Em alguns lugares
este processo chegou a acontecer não apenas com dioceses e abadias,
mas até mesmo com as paróquias.
Tudo isto significou a quase destruição da Igreja na época do
feudalismo. O direito canônico era ainda incipiente, e grande parte
da organização da Igreja, como por exemplo, a formação dos
sacerdotes, passava de geração em geração através do costume.
Para remediar a desorganização provocada pelo sistema feudal grande
parte da administração da Igreja deveria ser remontada por meio de
legislação explícita, mas isto não era fácil de se fazer, por
vários motivos.
Primeiro, havia o problema da Igreja ter caído sob o férreo
controle do braço secular. Depois, não havia apenas uma
desorganização de ordem administrativa. Juntamente com ela boa parte
do clero tinha perdido o verdadeiro sentido da missão do sacerdote e
nele campeavam abusos, vícios e maus exemplos dos quais as pessoas
não mais estavam dispostas a se corrigirem com facilidade. A
pregação e o ensino da mensagem evangélica, ademais, havia se
tornado para muitos padres e bispos uma questão secundária.
Finalmente, a própria Sé romana não era totalmente independente;
embora nesta época estivesse na região conhecida como Patrimônio de
São Pedro, uma região de terras da Itália central em torno da
cidade de Roma doadas ao Papa alguns séculos antes pelo pai de
Carlos Magno, durante a época feudal estes territórios eram
considerados como parte integrante do Sacro Império Romano
Germânico. Portanto, se a região do Patrimônio de São Pedro
era governada pelo Papa, o Papa era nela um vassalo do Imperador
Alemão. Apesar de vassalo, porém, o Papa nunca foi investido no
cargo pelo Imperador, nem teve que prestar-lhe juramento de
fidelidade, como acontecia com os bispos e abades em muitos feudos;
mas por volta do ano 900 os Imperadores do Sacro Império se
acharam no direito de nomearem eles próprios quem deveria ser eleito
para o Supremo Pontificado. A Santa Sé, assim, embora gozasse
de mais liberdade e estivesse mais cônscia de sua verdadeira missão do
que grande parte do clero, não era totalmente independente. E mesmo
que o fosse, no sistema feudal não havia estrutura para se fazer
obedecer; as estradas e os meios de comunicação eram muitíssimo
precários, cada feudo era um mundo à parte e não havia jornais,
revistas, correios ou quaisquer meios de se fazer chegar regularmente
mensagens ou decretos ao conhecimento do mundo todo.
Esta situação tão caótica começou a mudar graças principalmente
ao surgimento de uma organização religiosa baseada no mosteiro
beneditino de Cluny, e na atuação do Papa Gregório VII e seus
predecessores.
Em Cluny, no início dos anos 900, havia sido fundado por Santo
Odão aquele que viria a ser um dos mais famosos mosteiros da
história. Desde o seu início, ao contrário dos mosteiros que
haviam existido na Igreja até esta época, em vez de subordinar-se
à jurisdição do bispo local, esta casa de oração quiz colocar-se
sob a obediência direta e exclusiva do Sumo Pontífice. Devido à
vida exemplar que se levava em Cluny, aos poucos outros mosteiros
foram pedindo seu auxílio para se reformarem segundo o seu modelo. Ao
fazerem isto, porém, estes mosteiros acabavam se ligando à abadia de
Cluny e passaram aos poucos a constituírem uma rede de centenas de
mosteiros espalhados pela Europa, todos sujeitos ao abade de Cluny
e, através dele, sob a jurisdição direta do Sumo Pontífice.
Acrescenta-se a isto que durante os primeiros duzentos e cinqüenta
anos de vida do mosteiro de Cluny, isto é, aproximadamente do ano
900 até o ano 1150, foi ele governado por apenas seis abades,
homens de vida longa e santidade eminente. A partir do ano 1000 o
abade de Cluny era a segunda pessoa mais importante na Igreja depois
do Papa e a organização como um todo passou a desempenhar na época
um papel semelhante àquele que mais tarde os jesuítas desempenhariam
durante a contra reforma.
Cem anos após a fundação de Cluny, nos anos 1100, um
movimento similarmente preocupado com a reforma da Igreja começou a
ocorrer dentro da Santa Sé, cuja alma foi o monge Hildebrando,
secretário de uma série de pontífices eminentes até que ele
próprio, eleito Papa, adotou o nome de Gregório VII. Embora
não pertencesse à organização de Cluny, Hildebrando havia passado
certo tempo em Cluny. Em 1048 o Papa Leão IX, passando por
Cluny onde Hildebrando estava hospedado, tomou este homem como seu
secretário particular, uma decisão que se mostrou providencial para a
Igreja da época pois Hildebrando veio a ser o inspirador das
decisões mais importantes do pontificado de Leão IX e dos quatro
Papas que vieram depois dele.
Com Leão IX o clero de Roma passou a reunir-se regularmente em
sínodos, aos quais eram convidados os bispos das vizinhanças e os
superiores dos mosteiros sujeitos à abadia de Cluny. A idéia
mostrou-se acertada e prosperou. Não obstante a imensa precariedade
das comunicações, os Papas começaram a viajar por toda a Europa
celebrando sínodos semelhantes aos de Roma com bispos e abades
locais, punindo abusos e depondo prelados indignos. Mais tarde, nos
lugares em que os Papas não podiam voltar, providenciou-se para que
estas assembléias continuassem regularmente sob a supervisão de uma
rede de legados pontifícios que acabaram se tornando, muito tempo
depois, os atuais núncios apostólicos. Muitos dos primeiros legados
pontifícios, porém, eram apenas monges cluniacenses.
Desta maneira, aos poucos a Igreja ia tentando remediar os abusos que
nela tinham se introduzido durante o feudalismo. O terceiro Papa
depois de Leão IX, Nicolau II, obteve um significativo avanço
ao conseguir promulgar uma lei segundo a qual dali para a frente nenhum
Pontífice poderia mais ser nomeado pelos Imperadores alemães, mas
apenas eleito pelos cardeais.
Esta lei foi um grande avanço, mas foi apenas dois pontificados mais
adiante que o monge Hildebrando, agora já Papa Gregório VII,
pôde promulgar uma lei que se dirigia diretamente à raiz dos males que
tinham se alastrado na Igreja durante os últimos séculos. Dali para
a frente, por determinação pontifícia, ficava proibido, sob pena
de excomunhão, que um leigo investisse um clérigo em cargos
eclesiásticos.
À primeira vista poderia parecer que, se a Santa Sé realmente tinha
intenção sincera de remediar os males da Igreja, já devesse ter
pensado e promulgado uma lei tão importante como esta muito tempo
antes. Há que se considerar, porém, que não teria bastado a sua
simples promulgação. O problema não estava na promulgação, mas
em ter os meios para faze-la ser obedecida. Gregório VII pôde
enviar legados, dotados de plenos poderes, para as diversas partes da
Europa supervisionar a execução de seus decretos contra as
investiduras leigas e punir os desobedientes, coisa que, já alguns
pontificados antes não teria sido possível de se fazer. Mesmo
assim, a resistência dos senhores feudais e do Imperador foi
gigantesca. A impressão geral que se tinha era de que o Papa
Gregório desta vez havia exagerado temerariamente. Os detentores do
poder civil se consideraram roubados em um direito que, para as
perspectivas da época, consideravam legítimo. Obedecer a lei
significava, para o poder temporal, além de uma afronta a direitos
considerados legítimos, perder uma copiosa fonte de rendas e uma
valiosíssima colaboração do clero em assuntos temporais. Os
senhores feudais eclesiásticos no Sacro Império eram os principais
pilares da autoridade imperial, a qual, devido ao sistema feudal, já
não era forte. Obedecer aos decretos de Gregório VII, do modo
como haviam sido promulgados, significava para o Imperador perder
repentinamente seu principal ponto de apoio político. Teria o Papa
Gregório percebido todas estas conseqüências de seu decreto?
Estava claro para todos que sim; era algo por demais evidente para
poder não ser percebido. Era algo tão evidente que o Imperador
passou a acusá-lo de segundas intenções, de ter feito um decreto
que não passava, na realidade, de um simples pretexto para
desestabilizar o Império Germânico.
Assim, o que aconteceu em seguida foi justamente aquilo que seria de
se esperar. O Imperador desprezou abertamente os decretos de
Gregório VII. Mais ainda, acusou-o publicamente de pretender
usurpar a coroa imperial, de defender a heresia, de praticar
adultério, de cultivar a magia e de ser um feroz sangüinário. E
não quiz ficar, além disso, apenas nestas acusações.
Preparou-se para depor o Papa pela força armada, um Papa que,
afinal, do ponto de vista da política da época, não passava de um
vassalo do Império.
As notícias do que se passava na corte chegaram ao conhecimento da
Santa Sé, e o Soberano Pontífice não se arrependeu do que havia
feito. Ao contrário, foi a sua coragem e a firme certeza de que
estava fazendo o que era correto que acabaram por salvar a Igreja.
Sabendo do modo como o Imperador havia acolhido os seus decretos,
Gregório VII teve não só a audácia de excomungá-lo, como
também, coisa inédita na história e totalmente impensável no
contexto daquele tempo, decretou a deposição do Imperador e a
desobrigação de todos os súditos do juramento de fidelidade que lhe
deviam. Mais assombroso ainda nesta decisão de Gregório, além de
ser totalmente sem precedentes, é que o Papa nesta época não
possuía poder militar algum para poder impor a execução de um decreto
como este.
Mas já havia cinco pontificados que o prestígio e a fama de santidade
dos Pontífices se haviam espalhado pela Europa. Para surpresa do
Imperador, assim que o decreto do Sumo Pontífice ficou conhecido,
não houve mais um súdito que estivesse disposto a obedecê-lo. O
Imperador se viu obrigado a viajar em pleno inverno até à Itália,
não mais à testa de seus exércitos, mas na condição de um simples
peregrino, pedir ao Papa a absolvição da excomunhão e a revogação
de sua deposição.
A atitude corajosa de Gregório VII produziu seus frutos com o
decorrer do tempo. Depois de seu pontificado, no ano de 1122,
foi realizada em Worms uma concordata em que o Imperador aceitava que
daí para diante todas as eleições de bispos e abades fossem feitas
livremente pela própria Igreja. No ano seguinte era convocado o
Primeiro Concílio Ecumênico de Latrão para tratar do problema da
reforma da Igreja. Durante os séculos dos anos 1100 e 1200
foram celebrados quatro concílios ecumênicos em Latrão e outros dois
em Lião com a mesma finalidade. Desta maneira, em apenas dois
séculos celebraram-se seis concílios ecumênicos na Igreja; antes
disso haviam-se passado trezentos anos sem que houvesse sido possível
celebrar sequer um.
Foi assim que, durante os séculos dos anos 1100 e 1200, a
Igreja foi se recuperando gradualmente do desastre que lhe havia sido
imposto pelo feudalismo. Um processo semelhante, porém, ocorria na
mesma época também com o poder civil.
Em pleno feudalismo não havia lei nos feudos: a lei era a vontade do
senhor feudal. Não havia juízes de direito: o juiz era o senhor
feudal. Os impostos eram aqueles que cada senhor feudal julgava que
devessem ser cobrados. Não havia polícia para prender criminosos,
nem exércitos para defender a nação; havia apenas os súditos
armados de cada senhor feudal. Como se não bastasse o problema das
incursões dos bárbaros, cada feudo vivia constantemente em guerra com
outros feudos. Entretanto, se a nação inteira estivesse em perigo,
seria muito difícil agrupar um bom exército para defendê-la. Os
transportes, as comunicações e a segurança eram muito precários e
cada feudo vivia semi isolado, sem comércio e comunicações
relevantes com o mundo exterior.
A partir dos anos 1100 e 1200, assim como a Igreja tentou e
conseguiu gradualmente se libertar do sistema feudal, o mesmo
procuraram fazer os reis que até então governavam quase que apenas
nominalmente. Os reis procuraram estabelecer tribunais especiais de
apelação contra as sentenças dos tribunais dos senhores feudais, com
o que os réus não satisfeitos com a justiça do senhor feudal passavam
a invocar e a defender a autoridade do rei como sendo superior à do
senhor feudal. Depois passou-se a decretar que certos tipos de causas
especiais somente poderiam ser julgadas nos tribunais do rei. Com isto
começou aos poucos a funcionar um sistema judiciário nacional. A
partir dos anos 1100 começou a haver um renascimento econômico e
cultural na Europa, com o que iam surgindo certo número de cidades
novas dentro dos feudos; em princípio tais cidades pertenciam aos
feudos em que estavam, mas à medida em que cresciam seus interesses
políticos e econômicos entravam em choque com os do senhor feudal a
quem pagavam impostos: os reis passaram a tirar partido desta
situação reconhecendo ou declarando a independência destas cidades
dos antigos senhores feudais, concedendo-lhes liberdades que os
senhores feudais não estavam dispostos a oferecer. À medida em que as
cidades com seu comércio foram crescendo, os reis passaram a
introduzir uma moeda única para circular em todo o país. A
descoberta da pólvora vinda do oriente favoreceu também os reis, pois
dificilmente um senhor feudal conseguiria fazer um cerco à residência
do rei, situada longe de seu feudo; muito mais provável seria o rei
poder cercar o feudo do vassalo com uma bateria de novos canhões contra
os quais os castelos de muralhas, até então inexpugnáveis não
tinham mais defesa.
Entre os anos 1100 e 1200 surgiram também pela primeira vez na
história as instituições que foram denominadas de Universidades.
Elas apareceram nesta época primeiramente em duas cidades da Europa,
em Paris na França e em Bolonha na Itália. Seu surgimento não
se deveu a nenhum decreto. Resultou, ao contrário, de um fenômeno
inteiramente espontâneo. Em Paris foi a fama de certas escolas,
como a do mosteiro de São Vitor organizada por Hugo no início dos
anos 1100, ou a escola da Catedral de Notre Dame, onde lecionou
Pedro Lombardo, discípulo de Hugo, juntamente com a fama de outros
professores célebres, que começou a atrair alunos de todas as partes
da Europa. Alunos e professores passaram a se organizarem sob a forma
de corporação, um tipo de associação daquela época comum entre os
artesãos, mas que passou a ser adotada também por alunos e
professores que quisessem se dedicar aos estudos. Estas novas
corporações de professores e estudantes foram o núcleo a partir do
qual se formaram as primeiras universidades. A Universidade de Paris
voltou-se principalmente para os estudos de Teologia; nos anos
1200 contou entre seus docentes nomes como São Boaventura e
Santo Tomás de Aquino. A Universidade de Bolonha voltou-se
principalmente aos estudos de Direito.
Os séculos dos anos 1100 e 1200, embora pertençam à Idade
Média, não podem ser considerados como pertencendo à Idade das
Trevas. Ao contrário, foi uma época de profundas reformas na
Igreja. Foi também uma época de renovação espiritual, que
assistiu, depois do surgimento da ordem Cluniacense, à fundação
dos Cistercienses, dos Cônegos de São Vitor aos quais pertenceu
Hugo de S. Vitor, ao aparecimento dos Frades Franciscanos e dos
Padres Dominicanos. Foi igualmente uma época de reconstrução
nacional, de desenvolvimento do comércio e das comunicações, e uma
época de prodigioso renascimento cultural, científico e teológico,
uma época que deu à civilização ocidental suas primeiras
universidades, uma das instituições fundamentais do mundo moderno.
Foi justamente no início dos anos 1100 que viveu Hugo de São
Vitor, um dos principais responsáveis pelo início do reflorescimento
da Teologia que se verificaria nos séculos XII e XIII. Sem o
reflorescimento havido nestes duzentos anos muita coisa que hoje é
patrimônio indelével da Igreja e da humanidade não teria existido;
não teria sido possível, em particular, a obra de Santo Tomás de
Aquino e a influência que ela veio a exercer posteriormente na
Igreja.
Referências
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(1) Eusébio de Cesaréia: História Eclesiástica, I, 5, 2.
(2) Ibidem, II, 3, 1. (3) Ibidem, II, 3, 1.
(4) Ibidem, I, 4, 2. (5) Ibidem, II, 2, 1-2.
(6) Ibidem, II, 2, 2. (7) Ibidem, II, 2, 2.
(8) Ibidem, II, 2, 6. (9) Ibidem, I, 4, 2.
(10) Ibidem, I, 4, 2.
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