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Consideremos, em primeiro lugar, o texto das bem aventuranças, uma
das mais belas passagens do Evangelho:
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"Vendo Jesus as multidões,
subiu ao monte e sentou-se.
Rodearam-no os discípulos,
e ele pôs-se a ensiná-los, dizendo:
Bem aventurados os pobres de espírito,
porque deles é o Reino dos Céus.
Bem aventurados os mansos,
porque possuirão a terra.
Bem aventurados os que choram,
porque serão consolados.
Bem aventurados os que tem
fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Bem aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Bem aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.
Bem aventurados os pacíficos,
porque serão chamados filhos de Deus".
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Estas sete bem aventuranças não são elogios dispostos ao acaso. Ao
contrário, a tradição cristã tem visto nelas uma descrição de
todo o itinerário da vida espiritual. Diz, neste sentido, São
Gregório de Nissa:
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"Aquilo que foi ensinado ao patriarca Jacó
por meio da visão de uma escada que,
subindo da terra, alcançava as alturas do céu,
e em cujo topo via-se a Deus,
é-nos agora ensinado pela doutrina das bem aventuranças.
Sob as aparências de uma escada
foi ensinado ao santo patriarca
que não pode subir até Deus
senão aquele que tenha as vistas sempre voltadas
para algo mais alto,
e não se contente em permanecer
nas que já alcançou.
A altura das bem aventuranças
umas para com as outras
faz com que aqueles que já receberam
algumas delas possam se aproximar de Deus,
que é verdadeiramente feliz,
constituído e estabelecido
acima de toda bem aventurança".
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De Beatitudinibus
PG 44, 1247-9
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Neste sentido, as duas últimas bem aventuranças descrevem a vida
contemplativa; a sexta se refere ao início da contemplação, a
sétima à sua plena posse. As três primeiras bem aventuranças
descrevem as disposições iniciais daqueles que hão de chegar à vida
contemplativa.
O Reino dos Céus é daqueles que são pobres de espírito, diz a
primeira bem aventurança. Acrescentando à palavra pobre a expressão
`de espírito', Jesus quer dizer com isto que não está se
referindo àquela pobreza constituída pela falta de posses materiais.
Os bens materiais e o dinheiro são bens corporais, não são riquezas
do espírito; o espírito é rico pela virtude, pelo conhecimento e
pela graça, coisas que, no mais das vezes, a maioria dos homens
julga já possuí-los suficientemente e por isso não se preocupa em
buscá-las.
Com as riquezas materiais costuma acontecer o contrário. A maioria
dos homens, ainda que possua grandes fortunas, geralmente se julga
ainda carente de bens materiais e procura avidamente obtê-las em maior
abundância. Por mais pobres, porém, que sejam na alma, agem como
se se julgassem suficientemente ricos de espírito.
Os pobres de espírito, portanto, aos quais a primeira bem
aventurança promete o Reino dos Céus, são aqueles que se
reconhecem como tais. Não podem ser aqueles que são apenas de fato
pobres de espírito, pois a indigência dos bens da alma é algo que,
depois da queda do primeiro homem, se abateu sobre toda a humanidade:
dizia Santo Antão aos primeiros monges do deserto,
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"que vos interrogueis acerca da natureza espiritual,
na qual não há mais nem homem nem mulher,
mas somente uma essência imortal
que tem um começo e jamais terá fim.
Será uma obrigação para vós conhecê-la,
e como decaíu totalmente a este ponto
de tamanha humilhação e imensa confusão,
num trânsito que não poupou a nenhum de vós,
obrigando ao próprio Deus,
por causa desta praga irremediável
e que aumentava prodigiosamente,
a visitar em sua clemência as suas criaturas".
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São, pois, pobres de espírito todos aqueles que, à diferença da
maioria dos homens, conseguem reconhecer-se a si mesmos nestas
palavras. São pessoas que conhecem verdadeiramente a sua indigência
espiritual e que, ademais, não podem ser facilmente convencidos do
contrário pelas ilusões de que o mundo está repleto. Este
conhecimento os impele à busca das riquezas do espírito de que sabem
que carecem e, conseqüentemente, causa-lhes o desejo de aprender,
com uma força que pode, pelas circunstâncias, ser impedida mas não
apagada. Neste sentido, a primeira bem aventurança, o ponto onde se
inicia a vida espiritual e o primeiro princípio da vida contemplativa
descrita pelas últimas bem aventuranças, é um dos aspectos pelos
quais anteriormente dissemos que se manifesta a humildade, e assim tem
sido interpretada pela tradição cristã:
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"Bem aventurados os pobres de espírito,
porque deles é o Reino dos Céus",
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escreve Hugo de São Vítor nas Allegoriae Utriusque Testamenti.
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"Quem são os pobres de espírito?",
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continua ele.
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"Há os que são ricos de espírito
e há os que são pobres de espírito.
Os ricos de espírito são os soberbos;
os pobres de espírito são os humildes".
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Santo Agostinho também interpreta a primeira bem aventurança como se
referindo à humildade no De Sermone in Monte, PL 34,
1234, e Santo Tomás de Aquino faz o mesmo na Summa Theologiae
IIa IIae Q.19 a.12. Ora, sendo a primeira bem aventurança
o princípio de todas as outras e, com elas, o princípio de toda a
vida espiritual, deve-se concluir daqui que, segundo a doutrina das
bem aventuranças, a humildade também é o princípio das virtudes e
de toda a vida espiritual.
A tradição cristã, porém, tem reconhecido também um paralelo
entre as sete bem aventuranças e os sete dons do Espírito Santo
descritos em Isaías 11,2. Os dons do Espírito Santo,
enumerados em sua ordem, são:
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Temor do Senhor,
Piedade,
Ciência,
Fortaleza,
Conselho,
Entendimento,
Sabedoria.
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A cada um destes dons corresponde uma das bem aventuranças, de tal
modo que ao dom de temor corresponde a primeira bem aventurança e assim
sucessivamente, até os dons de entendimento e sabedoria que
correspondem, respectivamente, à sexta e sétima bem aventurança dos
puros de coração que verão a Deus e dos pacíficos que serão
chamados filhos de Deus. A doutrina cristã ensina que todos os
homens ao serem justificados pela graça recebem simultaneamente todos
os setes dons do Espírito Santo. Ocorre, porém, que o
desenvolvimento da vida espiritual é tal que o primeiro dom, o
espírito de temor do Senhor, manifesta-se em seu início de modo
mais acentuado e característico; à medida em que com o dom de temor
amadurecem todos os demais dons, passa-se a manifestar de modo
predominante o dom de piedade, e isto faz com que se eleve, juntamente
com o dom de piedade, a vivência de todos os demais dons a um plano
superior; assim continua ocorrendo, sucessivamente, até
manifestar-se a predominância do dom de sabedoria, com o qual todos
os demais dons alcançam também a sua maior plenitude. Com isto,
porém, o desenvolvimento da vida espiritual pode ser descrito tanto
segundo a seqüência das bem aventuranças como segundo a seqüência
dos sete dons do Espírito. Os últimos dons do Espírito Santo,
entendimento e sabedoria, descrevem, respectivamente, assim como as
duas últimas bem aventuranças, os princípios e a consumação da
vida contemplativa. O dom de temor do Senhor designa o seu primeiro
princípio.
Se, porém, a primeira bem aventurança, a dos pobres de espírito,
deve ser interpretada, como o faz Agostinho, Tomás de Aquino e de
modo categórico principalmente Hugo de São Vitor, como sendo a
humildade, a coerência obriga-nos a interpretar o dom de temor do
Senhor também do mesmo modo. Pobreza de espírito e temor do Senhor
terão que ser, ambos, iguais a humildade. Efetivamente, os pobres
de espírito são aqueles que, conscientes da própria indigência
espiritual, buscam avidamente as verdadeiras riquezas de espírito; os
que são movidos pelo espírito de temor do Senhor são aqueles que,
com o auxílio da graça do Espírito Santo, possuem aquela
reverência profunda pelo sagrado, pelas coisas mais elevadas e por
Deus. Ambas estas coisas, porém, segundo estivemos deduzindo por
outro caminho em todas estas notas, são duas manifestações de uma
mesma virtude à qual chamamos de humildade.
A Sagrada Escritura ainda nos afirma que
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"O temor do Senhor
é o princípio da sabedoria".
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Ao dizer isto ela nos declara que a reverência para com as coisas
divinas é o primeiro princípio que conduz à contemplação, que é o
principal efeito produzido pela vivência eminente do dom de sabedoria.
Esta afirmação não acrescenta propriamente algo novo ao já
explicado anteriormente sobre os dons do Espírito Santo, se não
houvesse, no livro da Sabedoria, uma outra afirmação em parte igual
e em parte diversa desta. Efetivamente, está escrito no livro da
Sabedoria que
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"O princípio da sabedoria
é um desejo sincero de instrução".
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Temos então as Sagradas Escrituras afirmando em dois lugares
distintos duas coisas diversas serem o princípio da sabedoria. Em
Provérbios elas nos dizem que este princípio é o temor do Senhor;
no livro da Sabedoria elas nos dizem que este princípio é o desejo
sincero de instrução. Se partirmos do pressuposto, o qual,
ademais, corresponde à realidade, segundo que as Sagradas
Escrituras nos oferecem um corpo coerente de doutrina, temos que
concluir daqui que as Escrituras nos ensinam que o temor do Senhor e o
desejo sincero de instrução são dois aspectos diversos de uma mesma
atitude. Segundo o que estivemos deduzindo por outra via nestas notas
sobre o Opúsculo sobre o Modo de Aprender, são elas,
efetivamente, duas das três manifestações fundamentais de uma mesma
virtude da humildade.
Pode-se, ainda, nas Sagradas Escrituras, encontrar-se uma
descrição do que é o homem humilde, do que seja a primeira bem
aventurança ou o que seja o dom do temor dom Senhor no Salmo 13
quando ele afirma:
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"O Senhor se inclinou do céu
sobre os filhos dos homens,
para ver se havia alguém
que tivesse entendimento
e que buscasse a Deus".
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Desta passagem pode-se perceber que a atitude fundamental que faz o
Senhor inclinar-se sobre os homens, a humildade, a pobreza de
espírito ou o temor do Senhor, é algo que os leva, conforme diz o
Salmo, a "ter entendimento" e a "buscar a Deus". Daqui pode-se
inferir como a humildade tanto é princípio não apenas da sabedoria,
ou da contemplação causada por ela, mas também do aprendizado,
designado indiretamente no salmo por "ter entendimento", como das
virtudes, designadas no salmo pela expressão "buscar a Deus", as
duas vertentes que conduzem, por sua vez, à contemplação.
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