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O primeiro e principal sacramento da sabedoria é a sabedoria criada,
isto é, a criatura racional. Sendo em parte visível e em parte
invisível, por isto mesmo é simultaneamente porta e caminho para a
contemplação: enquanto visível, é porta; enquanto invisível,
caminho.
É porta, porque oferece o primeiro auxílio à alma de quem ingressa
na contemplação.
É caminho, porque conduz a alma do que corre pela contemplação ao
seu termo.
É porta, porque mostra o invisível de modo visível.
É caminho, porque das coisas visíveis pelas invisíveis conduz à
visão do Criador das coisas tanto visíveis como invisíveis, e isto
o homem pode conhecer em si mesmo.
Ninguém será sábio que não veja ser a si mesmo. E todavia, se
começar a examinar o que ele próprio é, compreenderá que não é
nenhuma das coisas que nele são vistas ou podem ser vistas.
Entenderá pela própria razão que aquela coisa que em nós é capaz
de uso da razão, embora infusa e mista com a carne, distingue-se da
substância da carne e lhe é diversa. Por que duvidará o homem da
existência das coisas invisíveis, se vê ser invisível aquela mesma
coisa que é verdadeiramente o homem e de cuja existência nunca
duvidaria? A porta da contemplação se abre, pois, ao homem,
quando ele próprio, conduzido pela sua razão, principia a
conhecer-se. Resta em seguida correr por este caminho até o fim,
para que cada um pela consideração de si mesmo, chegue ao
conhecimento de seu Criador.
Aquilo, pois, que em nós não possui essência de carne não pode
também ter matéria da carne. Assim como em sua essência é diverso
da carne, assim também em sua origem sente-se alheio a ela.
Conhece também, e com certeza, ter tido um início, pois ao
compreender que é, não lembra ter sido sempre, a inteligência não
podendo desconhecer a si própria.
Se, portanto, não pode haver intelecto que não se intelija,
conclui-se que nem sempre existiu aquilo que sabemos nem sempre ter-se
inteligido, e por isto cremos ter tido princípio em algum momento.
Mas, conforme já foi dito, aquilo que possui uma essência
espiritual não pode ter origem corpórea: pode-se comprovar ser
corpóreo tudo o que provém da matéria já preexistente. Se,
portanto, houve um início para o invisível que há em nós, ele deve
ter sido feito não da matéria pré-existente, mas do nada.
Ora, o que é nada, não pode dar a si o ser. Qualquer coisa,
portanto, que tenha tido início, sem dúvida alguma recebeu o ser de
um outro.
Aquilo que porém não é a partir de si próprio, não pode dar o ser
a outros. Quem quer que seja, portanto, aquele que deu o ser às
coisas, não pode ter recebido o ser de outro.
Nossa natureza nos ensina, portanto, termos um Criador eterno, para
quem o subsistir é seu e próprio.
Se tivesse recebido o ser de outro, não poderia ser dito primeira
origem das coisas. Se tivesse havido um tempo em que não existia,
não teria tido início de si mesmo, nem poderia ser dito primeiro se
tivesse recebido o ser de outro. Se, pois, é o Criador, sempre
existiu.
Ademais, o que é por si próprio não pode não existir. Quem quer
que seja por si próprio, nele sua existência e aquilo que é são o
mesmo, porque nada pode ser dividido ou separado dele. Nada podendo
ser separado dele, aquele em que a existência e o que é são o mesmo
necessariamente existe sempre.
Se, portanto, naquele que é por si próprio sua existência e aquilo
que é são o mesmo, segue-se que aquele que não recebeu o ser de
outrém necessariamente sempre seja, não podendo ser-lhe tirado por
outrém aquilo que por outrém não lhe tinha sido dado.
É necessário, pois, que confessemos que aquele que cremos ser o
Criador não possa ter princípio nem fim. Não possui princípio
quem sempre foi; nem fim, quem nunca cessou. Nada, ademais, é
eterno além do Criador; nem o Criador poderá ser senão eterno.
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