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Nos tópicos imediatamente precedentes interrompemos nossa exposição
sobre a humildade e, mais precisamente, a exposição sobre a
relação existente entre a humildade e a contemplação, para mostrar
que a Escritura reconhece a realidade significada pelo nome de
contemplação e os efeitos que dela decorrem. Vimos também que as
Escrituras insistem continuamente em que os homens façam uso da
mesma, e nos dizem que, através da contemplação, os homens podem
verdadeiramente ouvir ao Criador.
Ouvindo a sua palavra, ademais, os homens preparam-se para acolher
ao próprio Cristo, que as Escrituras afirmam ser a Palavra de Deus
que se fêz homem:
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"Nós vimos com os nossos olhos",
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diz o Apóstolo João,
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"nossas mãos apalparam
a Palavra da Vida,
e isto vo-lo anunciamos".
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A conclusão é clara: aquele que tiver sabido inclinar o seu ouvido
para acolher a palavra de Deus saberá também acolher esta mesma
Palavra quando ela se manifestar como homem. "Eu sou o bom
pastor", diz Jesus de si mesmo, "conheço as minhas ovelhas e elas
me conhecem, elas ouvem a minha voz e eu chamo cada uma pelo seu
próprio nome. Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu
Pai o amará e ele viremos e nele estabeleceremos morada" (Jo.
10/14). A conclusão novamente é do Apóstolo João:
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"E nós vos anunciamos
a vida eterna",
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termina João,
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"que estava com o Pai
e apareceu em nós,
para que estejais em comunhão conosco,
pois a nossa comunhão é com o Pai
e com seu Filho Jesus Cristo".
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Antes, porém, de interrompermos a nossa exposição para tratarmos
da Sagrada Escritura dissemos que a contemplação, sendo uma
realidade muito rica, pode ser apreendida sob diversos aspectos.
Pode-se mostrar, porém, que seja qual for o aspecto apreendido,
sob este mesmo aspecto, a humildade será a própria contemplação em
embrião.
Um dos aspectos sob o qual a contemplação pode ser apreendida é o de
uma operação para a qual culmina um processo de uma progressiva tomada
de consciência e de queda na realidade. Tomada a contemplação sob
este aspecto, a humildade é o primeiro passo necessário da longa
caminhada que conduz à contemplação e que já contém, em sua
essência, aquilo mesmo que estará presente mais plenamente nesta
última.
Vimos também que o fim para o qual tendem todas as formas de
espiritualidade é a consecução da contemplação; consideradas todas
estas coisas, fica claro por que, sendo a espiritualidade vitorina um
modo de ascese que se utiliza do estudo e da escola como parte
integrante da vida espiritual, no Opúsculo sobre o modo de Aprender
Hugo de São Vitor coloca já de partida que o primeiro requisito de
que devem estar imbuídos os alunos da escola de São Vitor é a
humildade ou então nenhum aprendizado será possível. Na realidade,
qualquer corrente de espiritualidade terá que afirmar que a humildade
é o seu ponto de partida, empregue ela ou não o estudo e a pedagogia
como parte integrante de seu modo de ascese; o que o Opúsculo sobre o
Modo de Aprender faz é apenas enquadrar este requisito dentro do
quadro mais específico de uma escola.
Tudo isto decorre, como vimos, do fato de que a humildade é a
própria contemplação em embrião. Aqueles que são humildes já
possuem, em sua essência, aquela realidade que a contemplação é;
só lhes falta ser alimentados e crescer à luz da graça, e este é o
objetivo da vida espiritual.
Vimos também que, conforme Hugo de S. Vitor, o aprendizado e a
virtude são duas vertentes simultâneas deste crescimento da humildade
em direção à contemplação. Embora esta afirmação tenha, nos
escritos dos vitorinos, um colorido característico inconfundível,
ela é uma verdade de valor objetivo presente nos mais diversos autores
da tradição cristã e da filosofia grega. Assim, conforme
encontramos comentado no início do capítulo 5 da Educação segundo
a Filosofia Perene, no livro VII da Política Aristóteles
afirma que os fatos confirmam que a felicidade, que o filósofo afirma
consistir na contemplação, encontra-se
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"entre aqueles que cultivam até à excelência
as virtudes e a inteligência
e se moderam na aquisição
dos bens exteriores".
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Cultivar até à excelência a virtude e a inteligência são, pois,
para Aristóteles, os requisitos ou o caminho para se alcançar a
contemplação. Expressões equivalentes podem ser encontradas nas
obras de Santo Tomás de Aquino e nas de muitos outros autores.
Vimos também que, assim como Hugo de São Vitor diz no Opúsculo
sobre o Modo de Aprender que a humildade é o princípio do
aprendizado, no Opúsculo sobre os Frutos da Carne e do Espírito
ele afirma que ela é também o princípio de todas as virtudes. A
humildade, pois, é o princípio tanto do aprendizado como das
virtudes, as duas vertentes simultâneas de seu crescimento em
direção à contemplação.
Destas afirmações decorre que, se a contemplação é uma tomada de
consciência em grau elevadíssimo, um cair na realidade levado à sua
totalidade, uma operação da inteligência para a qual convergem todas
as demais operações da alma e na qual todas as suas faculdades se
integram à apreensão da inteligência, as virtudes deverão, assim
como a humildade, possuir também estas mesmas características de um
modo parcial. Elas deverão possuir, de um modo imperfeito, aquilo
que a contemplação possui de um modo perfeito.
Não é difícil mostrar que efetivamente é isto o que ocorre.
Examinando-se debaixo do aspecto da consciência, que na
contemplação é total ou pelo menos tende para a totalidade,
verifica-se que as virtudes estão relacionadas com um aspecto parcial
da consciência à qual denominamos de consciência moral. As virtudes
não são a consciência moral, mas têm uma relação intrínseca para
com ela; não se pode conceber o desenvolvimento da virtude sem um
progressivo desenvolvimento da consciência moral. A consciência
moral, por sua vez, é um aspecto parcial daquela mais ampla
consciência que é a verdade prometida por Jesus que trará a
liberdade aos homens, verdade que é objeto da contemplação.
É muito freqüente, porém, no modo usual de falar dos homens,
esquecer ou mesmo ignorar que a consciência é muito mais do que a
consciência moral e chamar-se a consciência moral simplesmente de a
consciência. A maioria das pessoas faz isto a maior parte do tempo ou
mesmo todo o tempo, e isto não é nelas um êrro de apreciação,
mas, ainda que estas mesmas pessoas não o saibam, provém de uma
consideração objetiva da realidade. Segundo o modo mais comum de
falar, chama-se usualmente a consciência moral simplesmente de
consciência porque, devido a uma especial particularidade da
psicologia humana, a consciência moral é um aspecto da consciência
que possui uma importância tão grande para o homem que merece, com
razão, de poder ser chamada simplesmente de a consciência. Ela é,
normalmente, o aspecto mais sadio e menos adormecido no homem daquilo
que se deveria chamar simplesmente de consciência.
A psicologia humana trabalha de um modo que pode compreender este
aspecto da consciência a que chamamos de consciência moral mais
facilmente e mais rapidamente do que praticamente todos os demais.
Para o homem cair na real em relação a uma questão que envolva moral
não é, muitas vezes, necessária uma aula de filosofia nem o uso da
contemplação. Às vezes é suficiente uma repreensão sem qualquer
fundamentação metafísica; freqüentemente nem as palavras se fazem
necessárias, basta uma surra ou uma lágrima. Outras vezes nem mesmo
isto será necessário; um fenômeno chamado de remorso perseguirá o
indivíduo mesmo contra todas as suas idéias preconcebidas e contra
todo o seu entendimento, até que ele se veja obrigado a cair na real.
Fenômenos como estes, que denotam uma predisposição singularíssima
para se cair na realidade, só ocorrem com esta facilidade naquele
aspecto da consciência a que chamamos de consciência moral. Para
ocorrerem nos demais setores da consciência são necessárias a
oração e o estudo profundo, e muitas vezes serão possíveis apenas e
tão somente pela contemplação. Mas, por algum mistério da
natureza, no que diz respeito às questões morais, a maioria dos
homens tem uma propensão, uma inclinação particularíssima toda
especial para caírem na real.
Ocorre, porém, que a psicologia humana é uma só e um todo
interligado. Por este motivo uma forte e contínua tomada de
consciência no aspecto moral, principalmente se se dá de um modo
metódico e na totalidade da área abarcada pela matéria moral,
acabará por produzir um fortíssimo impulso para a elevação da
consciência no seu sentido mais amplo. É assim, por exemplo, que
vemos o testemunho do abade Teodoro, narrado nas Instituições de
João Cassiano:
diz Cassiano,
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"manifestavam a sua admiração
ao abade Teodoro
por tanta ciência e tantas luzes,
e o interrogavam sobre o sentido
de certas passagens da Escritura.
Disse-lhes então o santo abade:
`O monge que deseja penetrar
no sentido das Escrituras
não deve se fatigar,
lendo os comentadores.
Deve antes dirigir toda a sua solicitude
em aplicar com amor o espírito e o coração
no cuidado de se purificar dos vícios carnais.
Logo que os suprimimos,
o véu das paixões é retirado
dos olhos de nosso coração
e podemos então contemplar
como que naturalmente
os mistérios das Escrituras.
Pois a graça do Espírito Santo não as inspirou
para que permanecessem obscuras e incompreensíveis a nós.
Somos nós que as tornamos obscuras por nossa culpa,
quando o véu dos nossos pecados
forma como que uma nuvem
diante do olhar do nosso coração.
Uma vez sanada a nossa vista,
a leitura das Escrituras é suficiente,
em abundância,
para que se contemple a verdadeira ciência,
sem a ajuda dos comentadores.
É o que acontece
com os olhos do nosso corpo.
Não é necessário ensinar-lhes a ver,
se não sofrerem de catarata ou de cegueira'".
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Quando as Escrituras nos preceituam, portanto, a observância de
determinadas leis morais, e não apenas as preceituam como também nos
chamam a atenção e nos repreeendem se não as observamos, e se
dirigem a nós com palavras mais insistentes se continuamos a nos julgar
no direito de escolher o não obedecê-las, não estão fazendo isto
por um desejo mórbido de despertar e nós a dor do remorso ou o
desconforto do sentimento de culpa. Ao contrário, elas conhecem a
nossa natureza e estão nos prestando um inestimável favor; querem
elas nos elevar para um plano de superior de existência, a plenitude
da filiação divina onde é possível a contemplação, e sabem elas
que se não cairmos na real primeiramente no que diz respeito à vida
das virtudes não cairemos nela por nenhum outro caminho.
Disto provém em grande parte a importância que a ascese cristã
atribui à prática regular da confissão. À parte o fato de que a
confissão seja um sacramento e, por este motivo, conferir
efetivamente a graça e o perdão dos pecados a quem a recebe
dignamente, um de seus principais efeitos, que se verificaria em boa
medida também na hipótese de que não se tratasse de um Sacramento,
consiste precisamente na queda na realidade experimentada de modo quase
imediato por todos aqueles que se aproximam regular e corretamente da
mesma. Neste sentido, a confissão não é uma terapia para
sentimentos de culpa, mas um processo de elevação da consciência.
A pessoa que se confessa deve declarar todos os pecados graves
cometidos, tenha ou não em relação a eles sentimentos de culpa que o
angustiem, e a gravidade destes pecados deve ser avaliada pelo
penitente não segundo a impressão subjetiva que eles lhe causam, mas
pelos critérios da moral cristã que são em si mesmos objetivos e
independentes da pessoa do penitente, embora levem em conta suas
circunstâncias pessoais. Ademais, a confissão só poderá ser
válida se o penitente puder sinceramente declarar-se arrependido de
todos os pecados cometidos de que se acusa; se os declarar a todos,
sem exagerá-los nem diminuí-los, objetivamente em número e
espécie, e de viva voz ao sacerdote que ouve a confissão; e se puder
fazer o propósito de não voltar a cometê-los. Assim, na medida em
que a confissão implica em um crescimento da tomada de consciência da
realidade, ela está estreitamente relacionada com o desenvolvimento da
virtude, da qual se torna um fortíssimo motor, e a qual supõe sempre
uma elevação da consciência moral. Na medida em que, como
Sacramento, a confissão confere a graça, ela está também
intimamente relacionada com a vida das virtudes, pois no homem uma
prática integral das mesmas é impossível sem o auxílio da graça.
Mesmo assim, porém, anteriormente ao benefício que a confissão
pode trazer ao homem sob o aspecto da elevação do grau de consciência
da realidade, benefício que a prática das virtudes também realiza e
com a qual a confissão está relacionada, anteriormente a tudo isto
está situada a virtude da humildade, que é, conforme vimos, a
primeira raíz de todas as demais virtudes. Sem ela não há
aprendizado possível, nem virtude possível, pela mesma razão pela
qual para uma gravidez seguir adiante é preciso primeiro haver a
fecundação.
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