33. Dificuldades dos homens para entenderem o respeito devido ao semelhante.

Existe uma dificuldade especial para se entender este último aspecto da questão da humildade que acabamos de mencionar porque a maioria dos homens age mais pela inércia do costume e modelando-se pelos hábitos que vê como aceitos pelo comum das pessoas do meio em que vive do que pela docilidade a uma verdade apreendida objetivamente pela inteligência. Neste sentido, na sociedade do final do século 20, o respeito incondicional pelo ser humano não é favorecido pelo que podemos observar ao nosso redor.

As constituições dos estados modernos repetem constantemente, mais do que nunca na história, a necessidade de se combater toda a espécie de discriminação e atentado à dignidade humana. As declarações de direitos humanos são incessantemente reafirmadas nos principais textos legislativos e nas convenções dos organismos que reúnem os responsáveis pelos destinos das nações. A julgar por estes fatos, pareceria nunca ter existido outra época em que houvesse tamanha disposição para se promover uma atitude de respeito para com o ser humano. No entanto, os meios de comunicação nos mostram continuamente exemplos de entes que, embora afirmem se amarem entre si, como deveriam ser os namorados, os esposos, os pais e os filhos, desrespeitam-se e se agridem entre si de forma incessante. Tais atitudes, em vez de causarem horror aos que as assistem, e uma extrema desonra para os que as divulgam, tendem a ser consideradas como eventos normais e às vezes até como um produto de alguma forma superior de sinceridade, quando, na realidade, objetivamente examinadas, deveriam ser tidas como atitudes inconcebíveis não só entre seres que se amam como até mesmo para com um estranho. Na vida real, ademais, não apenas vemos estes exemplos se reproduzirem com freqüência crescente fora de nossas famílias, como inclusive, e o mais comumente, dentro delas próprias. Além do desrespeito verbal ou físico, vemos também uma grande quantidade adicional de desprezo que os homens têm uns pelos outros e de que não possuem a coragem de demonstrá-lo diretamente àqueles aos quais o dirigem, mas apenas a terceiros. As pessoas que agem assim, obviamente, quer elas o entendam ou não, julgam que não podem elas mesmas serem desprezíveis no mesmo sentido em que estão desprezando os demais. Se quisermos ser humildes, porém, devemos parar definitivamente de agir desta forma, não propriamente porque tenhamos aprendido a dominar nossos impulsos, mas porque decidimos conscientemente descer do pedestal fantástico em que tivemos que nos colocar para que nos arrogássemos a liberdade de nos entregarmos com toda a naturalidade a tais procedimentos. Devemos nos decidir a nunca mais agredir ou desrespeitar, não só de fato, como também em nosso coração e em nossos pensamentos, qualquer pessoa que seja, em qualquer circunstância que possa vir a ocorrer, especialmente naquelas em que estamos com a razão, e propor-nos a isto não como quem se propõe a uma conquista a ser alcançada gradualmente, mas como quem toma uma resolução imediatamente definitiva. Não nos podemos permitir o luxo de pretender alcançar a realização deste propósito apenas próximos ao fim de nossas vidas, pois este não é, ao contrário do que pode parecer, o ápice da vida espiritual, mas apenas um dos mais elementares de seus primeiros princípios. Que sempre que qualquer pessoa nos procure, pois, seja quem for, seja ouvida com reverência e atenção; se não puder ser ouvida, que o seja por motivos técnicos, não por desprezo ou por desconsideração de importância. Seja quem for que a nós se dirija, procedamos assim por estarmos possuídos de uma nítida consciência de estarmos sendo interpelados por alguém que possui uma dignidade essencialmente idêntica à nossa. Ademais, se estamos efetivamente conscientes de nossa situação de indigência de graça, virtude e conhecimento, destituídos da hipótese absurda de uma compreensão divina do que há de essencial na ordenação do Universo, temos que dar atenção a quem quer que nos interpele, não apenas pelo respeito à sua dignidade humana, mas também porque não podemos prever de antemão que boas surpresas esta nos poderá trazer, sabendo de antemão que a verdade quase sempre costuma se apresentar pelos caminhos que os orgulhosos menos esperam. No tempo de Jesus, esperava-se pelo Messias como ao Rei dos reis, que de fato o foi; quem poderia supor, porém, que alguém com tais títulos e cuja vinda estava sendo efetivamente preparada pelo próprio Deus há quase dois mil anos, conseguiria sequer alugar uma vaga de quarto em uma aldeia minúscula como Belém, e tivesse que nascer entre os animais de um estábulo? Quem poderá avaliar quantas vezes Deus efetivamente já se nos apresentou deste modo em nossa vida e nós nada percebemos? Não é impossível que houvesse soldados aos pés da cruz de Cristo que, no mesmo instante em que o bom ladrão rogava e obtinha de Cristo um lugar para si no Paraíso, reclamassem da injustiça de terem sido transferidos pela autoridade romana para servirem num território tão desprezível como a Palestina, um lugar onde jamais poderia acontecer nada de importante, muito menos algo que pudesse mudar o curso da história. Por mais paradoxal que possa parecer este exemplo, este é o pão de cada dia do homem orgulhoso, e ele morre na maioria das vezes sem ter tido a oportunidade de ter percebido o que realmente foi a sua vida.