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Pode-se ainda ilustrar o assunto de que estamos tratando através de
uma passagem da encíclica Mediator Dei de Pio XII sobre a
Liturgia. Esta encíclica, juntamente com a Mistici Corpori
Christi sobre o mistério da Igreja, escrita também por Pio XII
quase à mesma época, são dois dos mais importantes documentos
pontifícios de todos os tempos, e que praticamente assinalaram com uma
década de antecedência o caminho que seria seguido pelo Concílio
Vaticano II.
Na Mediator Dei Pio XII nos fala da natureza e da profundidade do
sacrifício da Missa e exorta todos os fiéis a uma mais freqüente e
íntima participação da mesma:
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"Oxalá todos correspondam,
livre e espontaneamente,
a estes solícitos convites da Igreja",
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diz Pio XII.
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"Oxalá que os fiéis,
até diariamente, se lhes é possível,
participem do divino sacrifício,
não só espiritualmente,
mas também pela comunhão
do Augusto Sacramento,
recebendo o corpo de Jesus Cristo,
oferecido por todos ao eterno Pai.
Estimulai, pois,
veneráveis irmãos no episcopado,
nas almas confiadas aos vossos cuidados,
a fome apaixonada e insaciável de Jesus Cristo;
que por vossos ensinamentos,
adensem-se à roda dos altares
turmas de crianças e jovens
que vão consagrar ao divino Redentor
as suas pessoas, a sua inocência,
a sua entusiástica atividade;
aproximem-se numerosos os esposos,
para que, nutridos da sagrada mesa
e graças a ela,
possam educar seus filhos no sentido
e na caridade de Jesus Cristo;
em suma,
`Convidai e obrigai a entrar',
como diz o Evangelho,
todos os homens,
de qualquer classe que sejam,
porque este é o pão da vida,
de que todos têm precisão".
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Feitas estas exortações, o pontífice passa a dar aos bispos algumas
orientações sobre como favorecer a ascese cristã entre os fiéis,
pois sem o cultivo da vida espiritual, diz Pio XII, não lhes
será possível participarem do sacrifício eucarístico "sem que as
preces litúrgicas se reduzam a um vão ritualismo" (n. 170). A
ascese cristã, diz Pio XII, "aquela que dispõe o homem a tomar
parte mais frutuosa nas sagradas funções" do sacrifício
eucarístico, embora se possa realizar sob múltiplas formas,
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"Tendem todas,
embora de modo diverso,
à conversão e à orientação para Deus de nossa alma,
à expiação dos pecados
e à prossecução das virtudes,
habituando-nos à meditação das verdades e tornando-nos o espírito
mais pronto
para a contemplação dos mistérios
da natureza humana e divina de Cristo".
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Deste modo, Pio XII exorta aos bispos que, "no seu zelo
pastoral, recomendem e encorajem o povo que lhes é confiado" à
ascese cristã, "da qual brotarão sem dúvida frutos salutares".
Que neste exercício da vida espiritual "tome parte o maior número
possível não só do clero como também dos leigos" (n. 173).
Porém o que mais nos interessa, aquilo que é o próprio motivo pelo
qual estamos trazendo o texto desta encíclica para ilustrar como
exemplo o comentário destas notas, é a observação que Pio XII
faz logo em seguida a respeito da natureza do que se denomina ascese:
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"Relativamente aos vários modos
como se costumam praticar estes exercícios,
seja a todos bem sabido e claro
que na Igreja terrestre,
tal como na celeste,
há muitas moradas,
e que a ascética não pode ser
monopólio de ninguém".
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Na Igreja terrestre, diz Pio XII, tal como na celeste, há
muitas moradas, "e a ascética não pode ser monopólio de
ninguém". Pio XII volta a estabelecer um princípio da vida
espiritual já bem conhecido há muitos séculos na tradição cristã.
A ascética, aquela parte da vida espiritual que nos prepara para a
contemplação, não é um caminho único, e por isso não só não
pode ser monopólio de ninguém, como inclusive este fato deve ser
levado em conta, diz a Encíclica, pelos bispos que governam a
Igreja aos quais cabe o dever de favorecê-la e fomentá-la na vida
dos fiéis. Assim como houve diversas escolas de espiritualidade,
ainda muitas haverá, e tantas até poderia haver quantos cristãos
houvessem, e muitas das possíveis jamais chegarão a se realizarem
concretamente. Deve-se notar também que isto mesmo que a encíclica
diz da ascese ela não o diz, e não o diz não porque não se
lembrou, mas porque o mesmo já não se pode dizer, da realidade plena
da contemplação, pois ela é a mesma para a qual tendem todas estas
diversas formas de ascese.
Isto não significa, porém, que qualquer que seja a forma com que se
organize a vida espiritual esta seja correta. Ela deve, em primeiro
lugar, como o declara também a Encíclica, ordenar seus meios
coerentemente de modo a conduzir efetivamente ao seu objetivo:
continua Pio XII,
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"a eficácia com que tais exercícios
conduzam as almas
a amar sempre mais
e promover o culto divino;
levem os fiéis a participar nos sacramentos com maior fervor;
e a ter as coisas santas na devida veneração e respeito".
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Ademais, ainda que legítima, a escolha de uma determinada via de
ascese não é algo que pode ser decidido com base em uma questão de
gosto ou de capricho pessoal:
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"É absolutamente necessário
que a inspiração com que alguém é levado
a professar certos e determinados exercícios
provenha do Pai das luzes,
origem de tudo o que é bom,
de todo dom perfeito",
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conclui Pio XII.
De fato, foi assim que surgiram na Igreja todas as correntes de
espiritualidade mais conhecidas e muitas outras que foram sendo seguidas
por um número mais restrito de pessoas sem terem se formalizado
através de algum instituto ou em escritores de maior vulto. Nenhuma
delas jamais surgiu pelo simples capricho de se inventar um novo
caminho, mas foi o próprio Deus, o qual, dizem as Escrituras,
deseja que "todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da
verdade" (1 Tim 2,4), quer diante das dificuldades especiais em
que os homens se encontravam, sugeriu-lhes, pela própria luz da
graça do Espírito Santo, a necessidade ou a conveniência de se
abrir uma outra via.
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