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Se as Sagradas Escrituras ocupam um lugar de especial destaque na
pedagogia dos vitorinos isto não se deve a uma afinidade de caráter
pessoal de Hugo de S. Vitor para com elas mas a que, segundo o
mesmo Hugo, uma análise destes livros revela que eles ocupam um lugar
ímpar entre todas as obras que já aparecerem na história humana. As
Sagradas Escrituras não são apenas diferentes, sob muitos
aspectos, de todas os demais livros que já se escreveram; elas são
também, nestes mesmos aspectos, um caso único em toda a história da
literatura.
O caráter ímpar das Sagradas Escrituras já se evidencia pela
finalidade com que foram escritas. Segundo o prólogo do De
Sacramentis Fidei Christianae,
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"quem se aproxima das lições
das Sagradas Escrituras
com o desejo de aprender,
deve considerar em primeiro lugar
qual é o assunto de que tratam,
pois assim poderá alcançar mais facilmente
a verdade e a profundidade de suas sentenças.
A matéria de todas as Sagradas Escrituras
é a obra da restauração humana" (26).
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Nunca, diz Hugo de S. Vitor, foi escrita qualquer outra obra que
tratasse ou tivesse como objetivo abordar semelhante tema; a matéria
de todos os demais livros, diz Hugo em outro lugar,
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"consiste nas obras da criação,
enquanto que a matéria das Sagradas Escrituras
consiste na obra da restauração" (27).
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E, justamente porque é assim, o estudo das Sagradas Escrituras
produz frutos que nenhuma outra obra é capaz de produzir; são frutos
objetivos e claramente perceptíveis pelos que se dedicam a seu estudo,
e que lhes advém ainda que não se lhes tivesse avisado de antemão que
viriam:
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"Quem quer que se entregue
ao estudo da sabedoria divina",
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diz Hugo,
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"conhecerá o fruto de suas lições
mais pela própria experiência
do que pelos testemunhos alheios" (28).
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Os frutos do estudo das Sagradas Escrituras, repetirá Hugo em
muitas de suas obras, são principalmente dois, um na inteligência e
outra na vontade. O primeiro é o conhecimento da verdade e a
aquisição da ciência, e o segundo é o amor do bem e a
ornamentação da alma pelas virtudes.
Esta afirmação, que à primeira consideração poderia parecer
apenas uma manifestação espontânea dos sentimentos piedosos de um
homem religioso, examinada dentro do conjunto da obra de Hugo de S.
Vitor revela ser, na realidade, uma conclusão necessária
proveniente de uma compreensão mais profunda da natureza humana e da
mensagem evangélica. Pois, segundo teremos oportunidade de examinar
mais adiante, Hugo repete constantemente em suas obras que o homem
havia sido criado inicialmente num estado de elevação espiritual do
qual veio a decair pelo pecado; e, em sua queda, foi vulnerado
principalmente em dois pontos: na inteligência, pela ignorância do
bem, e na vontade, pelo desejo do mal. Se, portanto, o assunto de
que tratam as Sagradas Escrituras é a obra da restauração humana,
e elas próprias fazem parte desta obra, os frutos de seu estudo não
poderiam ser outros senão curar estas duas feridas principais em que o
homem foi vulnerado em sua queda.
Esta compreensão da natureza da indigência espiritual do homem após
a queda é tal que perpassa toda a pedagogia e a espiritualidade
vitorina; no acertado dizer de um conhecido autor contemporâneo,
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"por volta do século XIII começam a delinear-se
distintas escolas de espiritualidade
em torno às grandes ordens religiosas.
A escola de São Vitor representa um termo médio
entre a escola beneditina, de orientação predominantemente afetiva,
e a dominicana, que nascerá em seguida,
com tendência mais intelectualista" (29).
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Conhecimento e virtude, amor e sabedoria, ou outras expressões
similares, será um binômio constantemente empregado por Hugo de S.
Vitor ao descrever a ascensão do homem até Deus:
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"Deus habita no coração do homem de dois modos",
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diz Hugo de S.Vitor,
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"pelo conhecimento e pelo amor,
embora ambas estas coisas sejam uma só casa,
pois todo aquele que conhecer a Deus acabará por amá-lo,
e ninguém poderá amá-lo sem conhecê-lo.
Para isto foram feitas as Sagradas Escrituras,
para isto foi feito o próprio mundo,
para isto o Verbo se fêz carne,
Deus se humilhando para sublimar o homem.
A arca de Noé é uma figura deste edifício espiritual,
no qual deves aprender a sabedoria e a virtude
que adornarão a tua alma" (30).
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Assim, quando o homem que se dedica ao estudo das Sagradas
Escrituras percebe por experiência própria que seus frutos são
sabedoria e virtude, este dado experimental possui suas raízes no
quadro mais vasto da história da salvação e da situação presente do
homem dentro da ordem do Universo.
Não é apenas isto, porém. Pois, conforme vimos, a finalidade de
toda espiritualidade é conduzir o homem à contemplação; e, embora
tenhamos dado uma primeira explicação do que seja a contemplação
segundo o Opúsculo sobre o Modo de Aprender de Hugo de S.
Vitor, não é menos verdade que a contemplação tal como se encontra
descrita na tradição cristã se produz do encontro das virtudes
teologais de uma fé firme, constante e pura com uma caridade intensa.
Ora, a fé, segundo Tomás de Aquino, reside na inteligência, e
é um modo de conhecimento, pois, dizem as Sagradas Escrituras, que
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"pela fé conhecemos que o Universo
recebeu a sua ordem de uma palavra de Deus,
de modo que as coisas visíveis
não provieram das sensíveis";
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e a caridade, uma virtude infundida por Deus na vontade pela qual
cumprimos o maior mandamento do Cristianismo, é aquele amor perpétuo
que nos foi prescrito pelo Evangelho de S. Marcos:
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"Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração,
com toda a tua alma,
com todo o teu entendimento,
e com todas as tuas forças".
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A contemplação, pois, fim da pedagogia vitorina, resulta do
encontro de uma virtude que reside na inteligência com outra virtude
que reside na vontade; o estudo das Sagradas Escrituras, segundo
Hugo de S. Vitor, se faz parte tão importante de uma pedagogia que
conduz à vida contemplativa, deve, portanto, produzir os seus
efeitos tanto em uma quanto em outra faculdade. É o que diz Hugo no
prólogo das Allegoriae Utriusque Testamenti:
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"Nas Sagradas Escrituras a alma do estudante
encontra primeiro uma ocupação honesta,
depois a sutilidade da meditação
e a assiduidade da oração;
finalmente, encontrará ali também
a suprema claridade da contemplação" (31).
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E, logo em seguida, acrescenta:
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"Aquele que, portanto, recusar apascentar-se
no alimento da Sagrada Escritura,
já principiou a perder a vida de sua alma" (32).
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Referências
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(26) Hugo de S.Vitor: De Sacramentis Fidei Christianae;
Prologus, C.1-2; PL 176, 183.
(27) Idem: Praenotatiunculae de Scripturis et Scriptoribus
Sacris, C. II; PL 175, 11.
(28) Idem: Allegoriae Utriusque Testamenti; Prologus; PL
175, 633-4.
(29) A.Royo Marin O.P.: Teologia de la Perfección
Cristiana; Madrid, BAC, 1968; V Ed., pg.5.
(30) Hugo S.Vitor: De Arca Noe Morali, L. I, C. 2;
PL 176, 621-2.
(31) Idem: Allegoriae Utriusque Testamenti, Prol.; PL
175, 633-4.
(32) Ibidem, loc cit..
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