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Aqueles que participam da vida da Igreja já terão ouvido comentar
alguma coisa a respeito das características que distinguem pelo menos
algumas das escolas de espiritualidade que foram mencionadas. É
conhecido o amor à pobreza que é característica dos franciscanos, a
dedicação à liturgia dos beneditinos, o empenho no estudo e na
pregação dos dominicanos, a importância da obediência entre os
jesuítas, a vida de oração como carisma especial dos carmelitas.
Vamos dar um exemplo, baseado em fatos históricos, que ilustra como
um mesmo evento pode ser abordado por diversas formas de ascese sob
ângulos aparentemente diversos e, no entanto, isto estar sendo feito
para se alcançar precisamente um mesmo objetivo. Vamos contrastar
como reagiriam, diante de uma mesma situação, um santo franciscano,
um beneditino e os vitorinos.
Quando jovem, São Francisco era uma pessoa alegre e cheia de vida,
apreciava a poesia e gostava muito de cantar. Após sua conversão ele
não perdeu estas qualidades, mas, ao contrário, julgando que por
meio delas poderia aproximar-se de Deus, censurou aqueles que o
repreendiam quando o viam cantando. São Francisco, até o fim de
sua vida, reproduziu em sua vida aquilo mesmo que já se lia há muito
tempo em vários salmos do Antigo Testamento, louvando habitualmente
a Deus pelas suas criaturas, e ensinando os seus companheiros a
fazerem o mesmo. Entre seus escritos deixou-nos um Cântico ao
Sol, uma das mais belas poesias de todos os tempos, na qual Deus é
louvado pelo Sol e por todas as suas obras, às quais São Francisco
chama de irmãos e de irmãs. Esta atitude, embora surja
espontaneamente em todo autêntico cristão, pois é uma expressão
daquela radiante felicidade que toma conta daqueles que vivem uma
esperança já muito próxima do Céu que lhes faz ver toda a obra da
criação e da graça sob o prisma de uma aprovação entusiástica, é
também uma característica bastante marcante da ascese franciscana,
tanto quanto também o é o espírito de pobreza. Sendo assim, é
muito natural saber que encontra-se nas atas de canonização de Santa
Clara, o depoimento de uma das primeiras irmãs franciscanas segundo o
qual, todas as vezes que algumas irmãs tinham que ausentar-se do
mosteiro, Santa Clara, como superiora, sempre lhes dirigia algumas
admoestações. Nelas, porém, Santa Clara não as exortava no
sentido de que tomassem cuidado com os ladrões e os salteadores, muito
comuns naquela época, nem para que não se esquecessem de procurarem
em tempo um abrigo quando já percebiam que se aproximava a noite.
Antes, muito ao contrário, suas recomendações eram inteiramente de
outra ordem. O que era verdadeiramente importante aos seus olhos, o
objeto de suas verdadeiras preocupações, diz-nos este testemunho,
era que as irmãs se afligissem pelo caminho com outros problemas e,
por causa disso, deixassem de reparar nas árvores lindas que pudessem
surgir durante o percurso:
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"Quando ela nos mandava realizar
algum serviço fora do mosteiro",
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diz este depoimento,
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"sempre nos advertia no sentido de que
quando víssemos árvores lindas,
cheias de flores e frondosas pelas sua folhagens,
nunca nos esquecêssemos de louvar a Deus".
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Certamente esta é a atitude de uma alma muito pura quando se vê
colocada diante do espetáculo da natureza. O que nem sempre é
evidente, porém, é que, mesmo sem sair de dentro da perspectiva
cristã, esta atitude não é a única logicamente possível.
Vejamos, por exemplo, como São Bernardo, um beneditino quase
contemporâneo de São Francisco, reagiu diante dos mesmos
espetáculos da natureza.
A regra de São Bento estabeleceu, para propiciar um ambiente de
oração nos mosteiros, uma prática habitual do silêncio. Algumas
das disposições contidas na regra a este respeito podem hoje a alguns
parecer algo fora de propósito, mas deve-se lembrar aos que assim
lhes possa parecer que estas disposições sobre o silêncio não são
leis colocadas como preceitos de validade absoluta, como algo que
devesse ser observado por toda a sociedade, sempre e em qualquer
circunstância, como os preceitos do decálogo de Moisés. O
silêncio tal como é prescrito pela regra beneditina não é algo que
poderia ter este alcance universal sequer na próprio época de São
Bento; ele foi concebido para ser observado apenas dentro do ambiente
dos mosteiros de São Bento, onde também foram criadas uma série de
outras disposições que não existiam, e não existem ainda hoje, no
mundo secular, as quais, em conjunto com a importância que foi
atribuída ao silêncio, acabam por tornar estes mosteiros locais onde
pode-se encontrar uma paz profunda e um ambiente propício à oração
que o mais das vezes é em vão que se os procuram fora deles. No
sexto capítulo de sua regra é assim que São Bento se refere ao
silêncio:
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"Façamos o que diz o profeta:
`Eu disse,
julgarei os meus caminhos
para que não peque pela língua.
Pus uma guarda à minha boca,
emudeci, humilhei-me
e calei as coisas boas'.
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Aqui mostra o profeta que,
se às vezes se devem calar mesmo
as boas conversas,
por causa do silêncio,
quanto mais não deverão ser suprimidas
as más palavras?
Por isso, ainda que se trate
de conversas boas,
santas e próprias a edificar,
raramente seja concedido
aos discípulos perfeitos
licença de falar,
por causa da gravidade do silêncio.
Se é preciso pedir alguma coisa ao superior,
que se peça com toda a humildade
e submissão da reverência.
Já quanto às brincadeiras,
palavras ociosas e que provocam riso,
condenamo-las em todos os lugares
a uma eterna clausura;
para tais palavras não permitimos
ao discípulo abrir a boca".
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Embora tanto São Francisco como São Bento, cada um ao seu modo,
procurassem através de determinadas disposições cultivar um mesmo
espírito de oração e de louvor a Deus, São Bento parte, aqui,
de uma posição diversa daquela de que partia São Francisco com suas
canções e sua alegria efusivamente manifestada. Como resultado
destas diversas disposições iniciais temos que São Bernardo, monge
beneditino, ao contrário de Santa Clara, tivesse o hábito de não
reparar na natureza para que isto não o distraísse de seu recolhimento
interior e do louvor de Deus. Em sua biografia encontramos escrito
que certa vez, obrigado a fazer uma viagem em que era necessário fazer
uma caminhada de um dia inteiro bordejando as margens do lago de
Lausanne onde hoje é a Suíça, sobrevindo a noite, ao comentarem
seus colegas de jornada a respeito daquele lago, um dos mais belos
espetáculos do planeta, ficaram estupefatos em perceber que Bernardo
não havia visto nem sabia de que lago se tratasse. Após seu primeiro
ano como monge São Bernardo também não soube dizer se o teto do
local onde se recolhia para dormir durante aqueles doze meses era de
pedra ou de madeira, e também julgava que havia apenas uma janela na
igreja onde entrava para celebrar o ofício divino diversas vezes por
dia todos os dias, quando na verdade havia muitas.
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