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Dissemos que as pessoas humildes são aquelas que manifestam verdadeira
reverência para com as coisas divinas ou, pelo menos, para com
aquelas que reconhecem como sendo superiores a si mesmas, que são
movidas por um desejo profundo de aprender e que respeitam
incondicionalmente o seu próximo tratando-o, em qualquer
circunstância, sempre como a um igual.
Haverá alguns para quem esta virtude assim descrita poderá parecer
algo cuja prática implicaria dificuldades tão inacessíveis que a
tornariam impossível para o comum dos mortais. No entanto,
contrariamente aos que pensam desta forma, já tivemos a oportunidade
de mencionar que esta humildade não é a consumação da santidade,
mas apenas o primeiro, o mais elementar dos requisitos exigidos para se
poder trilhar o caminho que conduz a ela.
Este aparente paradoxo, poderá, na maioria dos casos, ter sua
origem na errônea identificação entre a humildade e a prática das
suas manifestações que acabamos de descrever. A humildade,
efetivamente, não é a prática destas que são as suas
manifestações fundamentais. Ela não se pratica forçando-nos a
nós mesmos a não desrespeitarmos o próximo quando somos tentados a
fazê-lo, nem obrigando-nos a aprender quando temos preguiça de o
fazer. Às vezes poderá acontecer inclusive que tenhamos o dever de
fazer estas coisas, mas fazer isto será a prática da virtude da
paciência ou do estudo, e não da humildade. A humildade, em vez
disso, consiste na consciência de determinadas verdades que, uma vez
alcançada, produz espontaneamente as manifestações que enumeramos.
A humildade não se alcança, portanto, através do exercício destas
condutas, mas pela consciência de determinadas verdades.
Se não somos de todo capazes, ou se nos é muito difícil a prática
das manifestações da humildade, isto decorre do fato de termos
construído em nossa mente uma visão do mundo ilusória e falsa, que
nos engana e à qual nos apegamos, dentro da qual nós mesmos
despontamos, como em uma decorrência lógica, como seres dotados de
atributos ou direitos que somente seriam compatíveis com entidades
superiores às de natureza humana. Para se praticar a humildade,
pois, devemos identificar primeiro qual é a visão de mundo e de nós
mesmos que construímos, renunciar a ela, descermos do pedestal em que
nos colocamos e nos igualarmos em natureza com nossos semelhantes que
nos circundam. Não se pratica a humildade, portanto, exercitando a
paciência, mas renunciando e reformulando nossos pensamentos.
Devemos estar sinceramente dispostos a identificar os pontos de vista
que agiam como pressupostos de nossa conduta e, verificando a sua
incoerência, termos o discernimento e a decisão de renunciar a eles.
Esta prática, em vez de traumática ou destrutiva para o homem, é,
em vez disso, bem ao contrário, altamente benéfica para ele e
inclusive parte integrante de seu desenvolvimento normal. A primeira
imagem que o homem faz do mundo e de si mesmo não é baseada na
apreensão da inteligência, mas nos dados provenientes das paixões
sensíveis. Isto ocorre porque as paixões humanas provém da vida
sensorial, a qual se desenvolve no homem antes do uso da
inteligência, já que a inteligência, para desenvolver-se em seu
uso, necessita ela própria dos dados provenientes da apreensão dos
sentidos, sendo-lhes, portanto, neste sentido, algo de posterior.
As paixões humanas, provindo, portanto, dos sentidos, tendem a
formar-se antes que se forme uma mais plena vida da inteligência.
Seguindo este raciocínio, seria de se esperar que esta primeira
visão que o homem forma do mundo e de si mesmo fosse em seguida
gradualmente substituída pela que passa a ser oferecida pela apreensão
da inteligência, à medida em que esta vai se desenvolvendo. No
entanto, a experiência mostra que só na minoria dos casos isto
acontece presentemente com os homens. O trabalho da inteligência, na
maioria dos homens, no lugar de trazer a si a obediência das
paixões, em vez disso coloca-se ele próprio a serviço destas
paixões e da visão do mundo e de si mesmo que foi construída a partir
delas, em uma verdadeira inversão dos papéis de súdito e senhor. O
homem efetivamente diz e faz coisas inteligentes, mas trata-se de uma
inteligência inteiramente dominada e a serviço de entidades que lhe
são inferiores. A disposição à humildade marca, neste sentido,
no homem, a retomada consciente de seu desenvolvimento psicológico
normal e a renúncia que ela implica pode ser, para muitos, o início
de um processo de abertura intelectual sem precedentes, o princípio do
aprendizado, da virtude e da santidade.
Para sermos humildes devemos, pois, através do trabalho da
inteligência, identificar a visão fantástica e passional que temos
de nós e do mundo. "Julgá-la", como foi pedido ao profeta
Ezequiel, "e declarar-lhe as suas maldades" (Ez. 23, 36).
Renunciarmos a ela de modo explícito e aceitarmos, em seu lugar, a
verdadeira como sendo a real. Sem esta disposição nada mais será
possível aprender, como o declara Jesus ao dizer que quem quiser
seguí-lo,
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"Renuncie primeiro a si mesmo".
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O si mesmo a que Jesus de refere são as inumeráveis mentiras que
nós mesmos nos contamos a nós mesmos sobre nós mesmos. De fato, a
tais coisas como à verdade, à luz da inteligência, à sua
condição de criatura, à sua relação para com o Criador, nenhum
homem, por mais que o queira, pode renunciar mais do que poderia
impedir que o Sol brilhasse sobre o horizonte.
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