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Expusemos os princípios fundamentais da doutrina de Hugo de São
Vítor; agora só nos resta completar este estudo por alguns detalhes
que nos serão oferecidos por um percurso rápido de alguns de seus
outros escritos.
Hugo exercitou desde a sua primeira juventude a arte da composição
escrita. Segundo testemunha o autor da vida de Reinardo, seu tio,
Hugo já escrevia no mosteiro de Halberstadt. Mas estes primeiros
ensaios não eram mais do que esboços que não chegaram até nós.
Foi em São Vítor que ele compôs as obras que hoje possuímos,
numerosas e variadas, atestando um espírito elevado, um coração
amante, um trato costumeiro com a meditação, uma erudição
extensa, uma piedade plena de doçura e de sensibilidade, e uma
cultura literária imperfeita, sem dúvida, mas notável para a sua
época.
Podemos considerar as obras de Hugo como resumo de suas lições.
Ele era, de fato, sobretudo professor como o foram os homens
notáveis de sua época. Ora ensinava gramática, ora filosofia,
mais frequentemente teologia; ora fazia aos cônegos de São Vítor a
conferência da noite, ora nos sínodos diocesanos ele era encarregado
pelo seu bispo de endereçar a palavra ao clero de Paris. Daí vieram
as suas obras de filosofia, de gramática, de teologia, seus tratados
ascéticos, suas piedosas explicações das Sagradas Escrituras:
diz ele no prefácio de seus Comentários sobre o Eclesiastes,
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"o que eu vos ensinei diariamente de viva voz
sobre este livro de Salomão".
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Uma parte de suas obras é composta pelos comentários. O gênero dos
comentários era freqüente no século XII. Antes de escrever,
ordinariamente ensinava-se, e o ensino era quase sempre a explicação
ou o desenvolvimento de um texto. Este método produziu ditosos
resultados, e freqüentemente contribuía ao progresso da ciência. O
comentador cultivava muitas vezes uma terra arada e a fecundava pelo seu
trabalho; ao mesmo tempo desenvolvia as forças de seu espírito,
aumentava seus conhecimentos e preparava-se assim para outras
produções mais úteis e mais sérias. Entre o grande número de
textos que podiam ser comentados, mereciam lugar de especial destaque
os das Sagradas Escrituras. É particularmente nela que os
professores mais ilustres amavam exercer a sutilidade de seus
espíritos.
Como comentador, os trabalhos de Hugo continham em gérmem todos os
seus demais escritos. Às vezes foram apenas pequenas notas ou notas
explicativas, sem ligação e sem encadeamento, sobre versículos
isolados. Às vezes era o esclarecimento de uma passagem obscura, a
solução de uma objeção, mais frequentemente uma piedosa reflexão;
outras vezes eram verdadeiras homílias; em outras ocasiões ele
procedia, segundo o método escolástico, por questões e respostas,
por divisões e subdivisões.
Além dos comentários, Hugo nos deixou outro grande número de obras
telógicas que atestam o estudo profundo que ele realizou dos dogmas do
cristianismo. Os teólogos se dividiam então em duas classes. Os
primeiros se limitavam em estabelecer a doutrina católica pelas
Sagradas Escrituras e pela Tradição, constatavam a fé da Igreja
e tratavam como temerário qualquer um que procurasse levar suas vistas
mais adiante. Este método foi denominado de método positivo. Já
outros, possuídos pela necessidade que experimenta toda inteligência
elevada de investigar a verdade, de iluminar-se com suas luzes, e se
dar conta de sua fé, partiam do ponto onde estacionavam os demais.
Os dogmas não eram para eles senão os princípios sobre os quais uma
nova ciência, obra do exercício da atividade intelectual, seria
erguida. Somente estes merecem o nome de teólogos. Seu método foi
geralmente denominado escolástico. Infelizmente, encontraram-se
entre estes alguns espíritos mais ardentes do que sólidos, mais
curiosos que profundos, devorados por uma atividade inquieta, não
procurando na teologia mais do que satisfazê-la e excitar os aplausos
pela sutileza e pela novidade de seus raciocínios. No lugar de
estudar pacientemente o dogma cristão,de deduzir suas
conseqüências, de penetrar nas suas misteriorsas profundidades e
descobrir-lhes a harmonia, seu trabalho mais parecia consistir em
desnaturá-los. Tais diletantes imprudentes fariam perder a
teologia, provocando o clamor não só contra eles, como também
contra a verdadeira escolástica. Tanto naquela época como hoje,
homens mais zelosos que esclarecidos condenariam a ciência em vez de
reprimir o abuso. Mas a escolástica triunfa finalmente pelo gênio de
Santo Alberto Magno, São Tomás e São Boaventura. A ciência
teológica foi finalmente constituída.
Hugo foi o predecessor destes grandes homens. Com a obra De
Sacramentis Fidei Christianae Hugo exerceu a maior influência sobre
todas as Summas de Teologia que a Idade Média veria surgir, entre
as quais as de Pedro Lombardo e de São Tomás de Aquino ocupam o
primeiro lugar, no dizer de M. Laforet. É Hugo que inspirou a
Pedro Lombardo, o qual se tornou por sua vez o mestre de todos os
teólogos. Em suas especulações, sempre sólidas e frequentemente
bastante profundas, ele se apoiou ordinariamente sobre os trabalhos de
Santo Agostinho. É este incomparável doutor que é seu guia, é na
sua escola que Hugo se formou. Hugo alimentou-se a tal ponto das
idéias do bispo de Hipona que, ao lermos seus principais escritos
dogmáticos, nos surpreenderemos de reencontrar, quase em cada
página, certos pensamentos visivelmente emprestados deste Padre,
embora o próprio Hugo nem sempre o percebesse.
Hugo de São Vítor continua um teólogo moderno de primeira ordem,
tão respeitável por sua virtude quanto por sua ciência, diz M.
Laforet. Seria para se desejar que seu tratado De Sacramentis, uma
mina muito rica para a ciência teológica, fosse menos esquecida pelos
homens que fazem um estudo especial de dogmática. O seu discurso é
claro, e não se encontram nele essa quantidade de divisões,
subdivisões, objeções e respostas que, sem dúvida, têm sua
utilidade quando usadas moderadamente, mas que muito freqüentemente
nos escritos dos escolásticos embaraçam o leitor em vez de
ajudá-los.
A natureza destes trabalhos nos faz melhor compreender as
características de seu tipo e do da escola que dirigiu. Quem se
reporta, de fato, ao décimo segundo século, encontra um ambiente
onde o espírito humano parece acordar de uma longa letargia, onde o
desejo da ciência e a paixão do estudo se inflamam em todos os
corações, onde o ensino conduz à glória quase em pé de igualdade
com as armas, onde numerosas escolas se elevam e se combatem. Neste
primeiro despertar é difícil alcançar a verdadeira ciência, e os
espíritos estão impacientes, de modo que a controvérsia se torna o
caminho mais fácil e mais curto para se chegar à celebridade. Que
glória quando se reduz ao silêncio um adversário ilustre! Os
escolásticos se batem as mãos e se juntam mais numerosos e mais
ardentes em torno da cátedra do vencedor. As escolas eram como
torneios onde se tinha menos em conta a força pessoal dos combatentes
que os seus comportamentos e sucessos na luta. O próprio Hugo nos
revela que chegou a hesitar em sacrificar a teologia pela dialética e o
trabalho de escritor ao das controvérsias públicas. Felizmente o
amor da verdadeira ciência triunfou.
Hugo não se intrometeu nas disputas de seus contemporâneos; suas
características, seus gestos, seus métodos mesmo e os princípios da
filosofia o afastam. Por um trabalho mais sério e mais paciente
acabou exercendo sobre seu século uma influência mais útil. Neste
ponto, foi o oposto de Pedro Abelardo. Este provocava os aplausos e
corria atrás da celebridade; aquele procurava a verdade. Um deles,
mais sutil e mais profundo, mais erudito que sábio, agitava as
escolas, mas a abundância de seu espírito e o encanto de sua palavra
não compensavam senão imperfeitamente a imperfeição de sua
ciência. O outro, no meio da solidão, determina com o olhar seguro
os limites e o objeto da ciência: ora se eleva até Deus, como que
assiste de alguma forma aos seus conselhos, e expõe com nitidez o
plano geral que Ele realiza em todas as suas obras; ora penetra no
interior do coração do homem e lhe revela seus mistérios e suas
grandezas. Ele é mais filósofo e teólogo que controversista.
Entretanto, mesmo assim ele entrou algumas vezes nas disputas. Mas
quando Hugo combate é menos atleta que soldado; não procura fazer
demonstrações de sua habilidade ou de sua força, mas sim defender a
verdade. Não há um erro do décimo segundo século que não tenha
sido pelo menos assinalado em seus escritos.
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