5. Um princípio básico da educação vitorina.

Uma das idéias fundamentais em torno da qual construiu-se a pedagogia vitorina está contida no opúsculo sobre o modo de aprender e de meditar.

Nele Hugo afirma que há três operações básicas da alma racional, as quais constituem entre si uma hierarquia, e que devem, portanto, ser desenvolvidas uma em sequência à outra.

A primeira ele a denomina de pensamento.A segunda, de meditação. A terceira, de contemplação.

O pensamento ocorre, diz Hugo, "quando a mente é tocada transitoriamente pela noção das coisas, ao se apresentar a própria coisa, pela sua imagem, subitamente à alma, seja entrando pelo sentido, seja surgindo da memória".

Entre os ensinamentos de Hugo de São Vítor entra aqui o papel que a leitura adquire na pedagogia. A importância da leitura reside em que ela pode ser utilizada para estimular a primeira operação da inteligência que é o pensamento. Mas ao mesmo tempo a limitação da leitura está em que ela não pode estimular as operações seguintes da inteligência, a meditação e a contemplação, a não ser indiretamente, na medida em que a leitura estimula o primeiro estágio do pensamento que é pressuposto dos demais. Isto significa que requer-se uma teoria da leitura em que o mestre saiba utilizar-se dela para produzir o pensamento, e ao mesmo tempo compreenda que há outros processos mentais mais elevados que devem também ser desenvolvidos mas que podem vir a ser impedidos por uma concepção errônea por parte do mestre que não conseguisse compreender que estes não dependem mais diretamente da leitura. A importância do assunto é tão grande que os seis primeiros livros do Didascalicon serão dedicados à teoria da leitura.

A segunda operação da inteligência, continua Hugo, é a meditação. A meditação baseia-se no pensamento, e é "um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento, esforçando-se para explicar algo obscuro, ou procurando penetrar no que ainda nos é oculto".

O exercício da meditação, assim entendido, exercita o engenho. Como a meditação, porém, se baseia por sua vez no pensamento e o pensamento é estimulado pela leitura, temos na realidade duas coisas que exercitam o engenho: a leitura e a meditação.

Segundo as palavras de Hugo, "na leitura, mediante regras e preceitos, somos instruídos a partir das coisas que estão escritas. A leitura também é uma investigação do sentido por uma alma disciplinada. A meditação toma, depois, por sua vez, seu princípio da leitura, embora não se realizando por nenhuma das regras ou dos preceitos da leitura. A meditação é uma cogitação frequente com conselho, que investiga prudentemente a causa e a origem, o modo e a utilidade de cada coisa".

Mas acima da meditação e baseando-se nela, existe ainda o que Hugo chama de contemplação. Ele explica o que é a contemplação e no que difere da meditação do seguinte modo:

"A contemplação é uma visão livre e perspicaz da alma de coisas que existem em si de modo amplamente disperso.

Entre a meditação e a contemplação o que parece ser relevante é que a meditação é sempre de coisas ocultas à nossa inteligência; a contemplação, porém, é de coisas que, segundo a sua natureza, ou segundo a nossa capacidade, são manifestas; e que a meditação sempre se ocupa em buscar alguma coisa única, enquanto que a contemplação se extende à compreensão de muitas, ou também de todas as coisas.

A meditação é, portanto, um certo vagar curioso da mente, um investigar sagaz do obscuro, um desatar o que é intrincado.

A contemplação é aquela vivacidade da inteligência, a qual, já possuindo todas as coisas, as abarca em uma visão plenamente manifesta, e isto de tal maneira que aquilo que a meditação busca, a contemplação possui".

Estas passagens do Opúsculo sobre o Modo de Aprender mostram um dos ponto básicos da pedagogia de Hugo, o de levar o discípulo do pensamento à contemplação. Em outras partes de sua obra ele abordará o modo como isto pode ser feito.

Mas antes que tratemos deste outro aspecto da questão, cumpre fazer a seguinte pergunta, importantíssima para os educadores de hoje. Um dos maiores pensadores educacionais brasileiros de nosso século, Anísio Teixeira, escreveu em um famoso livro intitulado Educação para a Democracia exatamente as seguintes palavras:

"A vida já não é governada pelos velhos índices de intelectualidade herdados da idade média.

Hoje todos têm que produzir.

Técnicas científicas e industriais sobrepuseram-se aos encantamentos da vida do espírito.

Precisamos sentir o problema da educação conforme ele é, um processo pelo qual a população se distribui pelos diferentes ramos do trabalho diversificado da sociedade moderna" (4) .

Ora, Hugo de S. Vítor desenvolve uma pedagogia que desemboca em uma atividade chamada contemplação que se ocupa, conforme ele próprio diz, de coisas que já nos são manifestas. Mas se nos são já manifestas, por que se ocupar ainda nelas? Poderá uma educação assim ter ainda alguma justificativa na sociedade moderna?

Hugo provavelmente responderia a esta pergunta com três argumentos.

Em primeiro lugar, a contemplação se ocupa, é verdade, de coisas já manifestas, e o homem moderno, ocupado em seu utilitarismo imediato, geralmente não percebe as vantagens de se cultivar uma qualidade destas. Pelo fato de se ocupar com coisas manifestas, a contemplação, conforme disse Hugo, não se ocupa em buscar "alguma coisa única, mas se estende à compreensão simultânea de muitas ou também de todas as coisas". Ora, é evidente que esta é a atividade fundamental que está por trás de todas as grandes sínteses filosóficas da história, como as obras de Aristóteles, de Tomás de Aquino, e outras. É evidente que é também esta a atividade fundamental que está por trás das grandes sínteses científicas, como a física Newtoniana e a Teoria da Relatividade. É evidente que esta é a operação intelectual fundamental que deveria estar por trás também de outras atividades tão vivamente exigidas nos dias de hoje como a correta orientação política de uma nação e até mesmo o ordenamento plenamente consciente de um sistema educacional. Em suma, é a contemplação, e não a análise, a atividade básica das mais fundamentais conquistas do pensamento humano em todos os tempos. Foi também, evidentemente, a atividade fundamental que estava por trás do monumento do pensamento que foi em sua época o tratado De Sacramentis Fidei Christianae, uma obra de síntese e sistematização em teologia como até aquela época, conforme já mencionamos, ainda não havia aparecido igual.

Obras filosóficas e sínteses deste porte ainda surgem hoje em dia; mas a diferença é que hoje em dia elas aparecem apesar das escolas, enquanto que na época da escola de São Vítor e na época em que Aristóteles estudou com Platão elas surgiam por causa das escolas. O tipo de gênio que havia em Newton e em Einstein foi desenvolvido por eles próprios sem que, entretanto, o soubessem desenvolver em seus alunos. Na escola de Platão, o gênio do mestre soube reproduzir-se em Aristóteles, e na de São Vítor o gênio de Hugo soube reproduzir-se em Ricardo, e, menos diretamente, em diversos contemporâneos que reproduziram seu sistema de ensino.

Mas, ademais, em segundo lugar, não é necessário produzir obra alguma para que a contemplação seja alguma coisa de enorme importância para o homem. A contemplação sempre foi colocada em todas as épocas da história, com exceção, talvez, da idade moderna, como o mais significativo elemento de enobrecimento da mente humana, algo que não precisava de nenhuma justificativa além de si mesma para ser cultivada. Esta foi a posição de todos os principais filósofos gregos. No cristianismo, também, a experiência religiosa dos primeiros Santos Padres apontou esta capacidade como sendo elemento fundamental para a compreensão profunda das grandes verdades do cristianismo, apesar de, e isto é significativo, em nenhuma parte das Sagradas Escrituras esta capacidade ser descrita nos termos empregados por Hugo de São Vítor. Esta afirmação dos Santos Padres tem sua similar nos antigos filósofos gregos quando estes também colocaram que nenhum dos problemas existenciais básicos do ser humano pode ser convenientemente abordado sem ser por este meio.

Estes dois motivos talvez já bastassem, mas existe ainda um terceiro para Hugo de S. Vítor que talvez seja o mais importante. É que, ao contrário do que parece dar a entender o opúsculo sobre o modo de aprender, a contemplação não é ainda a meta final da pedagogia. Assim como a meditação se fundamenta no pensamento, e a contemplação se baseia na meditação, outras operações se baseiam, por sua vez, na contemplação. Estas, porém, são tratadas em outros trabalhos de Hugo.