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Chegamos, o quanto Deus se dignou conceder-nos, ao conhecimento das
coisas invisíveis partindo das visíveis. Retorne agora a nossa mente
a si mesma e examine que utilidade possa tirar deste conhecimento.
De que nos servirá conhecer em Deus a elevação de sua majestade,
se com isto não recolhermos para nós utilidade alguma?
Que poderemos, porém, trazer conosco ao retornarmos da intimidade da
contemplação divina? O que traremos, ao retornarmos da região da
luz, senão luz? Se viemos da região da luz, é conveniente e
conveniente e necessário que tragamos conosco luz para dissolver nossas
trevas. E quem poderá saber onde estivemos, se não retornarmos
iluminados? Que se torne manifesto, portanto, que lá estivemos;
que se torne manifesto o que lá contemplamos.
Se lá vimos a potência, tragamos a luz do temor divino. Se lá
vimos a sabedoria, tragamos a luz da verdade. Se lá vimos a
benignidade, tragamos a luz do amor. Que a potência incentive os
tíbios ao amor; que a sabedoria ilumine os cegos pelas trevas da
ignorância; que a benignidade inflame os gélidos pelo calor da
caridade.
Olhai, vos peço, o que seja a luz, senão o dia; e o que sejam as
trevas, senão a noite. Assim como os olhos do corpo têm os seus
dias e suas noites, assim também os olhos do coração têm os seus
dias e as suas noites.
Três são os dias da luz invisível, pelos quais se distingue o curso
interior da vida espiritual. O primeiro dia é o temor, o segundo a
verdade, o terceiro é a caridade.
O primeiro dia tem o seu Sol, e este é a potência; o segundo dia
tem o seu Sol, é a sabedoria; o Sol do terceiro dia é a
benignidade. A potência pertence ao Pai, a sabedoria ao Filho, a
benignidade ao Espírito Santo.
Os dias que temos externamente diferem dos que temos internamente.
Nossos dias exteriores, mesmo que não o queiramos, haverão de
passar. Os interiores, porém, se assim o quisermos, poderão
permanecer para sempre. Está escrito sobre o temor de Deus que
"permanece pelos séculos dos séculos" (Salmo 18). Quanto à
verdade, também, não pode haver dúvida sobre sua eterna
permanência, pois, iniciando-se ainda nesta vida, alcançará em
nós sua perfeição e plenitude quando Aquele que é a verdade se
fizer manifesto após o término desta vida. Da caridade está escrito
que "nunca passará" (I Cor. 13).
Bons dias são estes que nunca haverão de passar. Maus são os dias
que não somente não permanecem para sempre, como nem sequer podemos
retê-los ainda que por pouco tempo. Foi destes dias que disse o
Profeta:
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"O homem é como o feno,
e seus dias declinaram como a sombra".
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Estes são os dias merecidos pela culpa; aqueles os dias concedidos
pela graça. Daqueles dias disse o profeta:
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"Nos meus dias O invocarei".
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Este foi o mesmo que disse em outro lugar:
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"Levantava-me no meio da noite
para que a ti me confessasse".
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O profeta o chama de seus dias, porque aos outros não tem amor. Foi
assim que também disse Jeremias:
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"Senhor, tu sabes que não desejei
o dia do homem".
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Estes são os dias de que Jó foi rico, do qual foi escrito que
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"morreu velho e cheio de dias".
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De fato, não poderia ser cheio dos outros dias, porque estes já
tinham passado e já não mais eram.
Os maus conheceram somente os dias que existem externamente; quanto
aos bons, que mereceram ver os interiores, estes não apenas não amam
aos externos, como também os maldizem:
disse o bem aventurado Jó,
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"o dia em que nasci,
e a noite em que foi dito:
um homem foi concebido.
Converta-se em trevas este dia,
não o tenha em conta Deus,
lá no alto, e não o ilumine de luz".
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Devemos, pois mais amar aqueles dias que são interiores, onde à luz
não se seguem as trevas, onde os olhos interiores do coração puro
são iluminados pelos esplendores do Sol eterno.
Foi também a estes dias que se referiu o salmista ao contar:
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"Anunciai dia após dia
a sua salvação".
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O que é a sua salvação, senão o Jesus? Pois assim se traduz o
nome de Jesus, ele significa o Salvador. Ele é dito o Salvador,
porque por ele o homem é regenerado, para a salvação. Dele falou
João, dizendo:
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"A Lei foi dada por Moisés,
a graça e a verdade foram feitas
por Jesus Cristo".
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Ademais, Paulo Apóstolo chama Cristo Jesus de
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"virtude de Deus
e sabedoria de Deus".
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Se, pois, Jesus Cristo é a sabedoria de Deus, e por Jesus
Cristo veio a verdade, conclui-se que a verdade provém da sabedoria
divina. O dia, pois, da sabedoria é a verdade.
A própria sabedoria fala deste seu dia aos judeus, dizendo:
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"Vosso pai Abraão exultou
por ver o meu dia,
viu-o e rejubilou".
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A verdade de Deus é a redenção do gênero humano, a qual foi
primeiramente prometida. Ao manifestar-se posteriormente, o que mais
fez senão mostrar-se veraz? Esta verdade foi cumprida, pois, de
modo conveniente pela sabedoria, de quem provém toda verdade. Não
foi enviado para cumprir a verdade outro senão aquele em quem reside
toda a plenitude da verdade. Com justa razão Abraão exulta pelo dia
da verdade, pois deseja que se cumpra a verdade, tendo visto este dia
em espírito ao ter conhecido a vinda na carne do Filho de Deus para a
redenção do gênero humano.
Que se diga, pois:
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"Anunciai dia após dia
a sua salvação".
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O dia segundo, do dia primeiro ao dia terceiro; o dia da verdade, do
dia do temor ao dia da caridade.
O primeiro dia era o dia do temor; vem depois o outro dia, o dia da
verdade. E dissemos que vem, não que o sucede, porque o anterior
não cessa. Eis, então, já dois dias; o mesmo ocorre com o dia
terceiro, com o dia da caridade, pois vindo este, aos anteriores não
expulsa.
Bem aventurados sejam estes dias, que podem fazer a riqueza dos
homens; onde chegando os futuros, os presentes não passam; onde
aumentando o número, multiplica-se o resplendor.
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