43. A dificuldade da prática da humildade.

Dissemos que as pessoas humildes são aquelas que manifestam verdadeira reverência para com as coisas divinas ou, pelo menos, para com aquelas que reconhecem como sendo superiores a si mesmas, que são movidas por um desejo profundo de aprender e que respeitam incondicionalmente o seu próximo tratando-o, em qualquer circunstância, sempre como a um igual.

Haverá alguns para quem esta virtude assim descrita poderá parecer algo cuja prática implicaria dificuldades tão inacessíveis que a tornariam impossível para o comum dos mortais. No entanto, contrariamente aos que pensam desta forma, já tivemos a oportunidade de mencionar que esta humildade não é a consumação da santidade, mas apenas o primeiro, o mais elementar dos requisitos exigidos para se poder trilhar o caminho que conduz a ela.

Este aparente paradoxo, poderá, na maioria dos casos, ter sua origem na errônea identificação entre a humildade e a prática das suas manifestações que acabamos de descrever. A humildade, efetivamente, não é a prática destas que são as suas manifestações fundamentais. Ela não se pratica forçando-nos a nós mesmos a não desrespeitarmos o próximo quando somos tentados a fazê-lo, nem obrigando-nos a aprender quando temos preguiça de o fazer. Às vezes poderá acontecer inclusive que tenhamos o dever de fazer estas coisas, mas fazer isto será a prática da virtude da paciência ou do estudo, e não da humildade. A humildade, em vez disso, consiste na consciência de determinadas verdades que, uma vez alcançada, produz espontaneamente as manifestações que enumeramos. A humildade não se alcança, portanto, através do exercício destas condutas, mas pela consciência de determinadas verdades.

Se não somos de todo capazes, ou se nos é muito difícil a prática das manifestações da humildade, isto decorre do fato de termos construído em nossa mente uma visão do mundo ilusória e falsa, que nos engana e à qual nos apegamos, dentro da qual nós mesmos despontamos, como em uma decorrência lógica, como seres dotados de atributos ou direitos que somente seriam compatíveis com entidades superiores às de natureza humana. Para se praticar a humildade, pois, devemos identificar primeiro qual é a visão de mundo e de nós mesmos que construímos, renunciar a ela, descermos do pedestal em que nos colocamos e nos igualarmos em natureza com nossos semelhantes que nos circundam. Não se pratica a humildade, portanto, exercitando a paciência, mas renunciando e reformulando nossos pensamentos. Devemos estar sinceramente dispostos a identificar os pontos de vista que agiam como pressupostos de nossa conduta e, verificando a sua incoerência, termos o discernimento e a decisão de renunciar a eles.

Esta prática, em vez de traumática ou destrutiva para o homem, é, em vez disso, bem ao contrário, altamente benéfica para ele e inclusive parte integrante de seu desenvolvimento normal. A primeira imagem que o homem faz do mundo e de si mesmo não é baseada na apreensão da inteligência, mas nos dados provenientes das paixões sensíveis. Isto ocorre porque as paixões humanas provém da vida sensorial, a qual se desenvolve no homem antes do uso da inteligência, já que a inteligência, para desenvolver-se em seu uso, necessita ela própria dos dados provenientes da apreensão dos sentidos, sendo-lhes, portanto, neste sentido, algo de posterior. As paixões humanas, provindo, portanto, dos sentidos, tendem a formar-se antes que se forme uma mais plena vida da inteligência. Seguindo este raciocínio, seria de se esperar que esta primeira visão que o homem forma do mundo e de si mesmo fosse em seguida gradualmente substituída pela que passa a ser oferecida pela apreensão da inteligência, à medida em que esta vai se desenvolvendo. No entanto, a experiência mostra que só na minoria dos casos isto acontece presentemente com os homens. O trabalho da inteligência, na maioria dos homens, no lugar de trazer a si a obediência das paixões, em vez disso coloca-se ele próprio a serviço destas paixões e da visão do mundo e de si mesmo que foi construída a partir delas, em uma verdadeira inversão dos papéis de súdito e senhor. O homem efetivamente diz e faz coisas inteligentes, mas trata-se de uma inteligência inteiramente dominada e a serviço de entidades que lhe são inferiores. A disposição à humildade marca, neste sentido, no homem, a retomada consciente de seu desenvolvimento psicológico normal e a renúncia que ela implica pode ser, para muitos, o início de um processo de abertura intelectual sem precedentes, o princípio do aprendizado, da virtude e da santidade.

Para sermos humildes devemos, pois, através do trabalho da inteligência, identificar a visão fantástica e passional que temos de nós e do mundo. "Julgá-la", como foi pedido ao profeta Ezequiel, "e declarar-lhe as suas maldades" (Ez. 23, 36). Renunciarmos a ela de modo explícito e aceitarmos, em seu lugar, a verdadeira como sendo a real. Sem esta disposição nada mais será possível aprender, como o declara Jesus ao dizer que quem quiser seguí-lo,

"Renuncie primeiro a si mesmo".

Mt. 16, 24

O si mesmo a que Jesus de refere são as inumeráveis mentiras que nós mesmos nos contamos a nós mesmos sobre nós mesmos. De fato, a tais coisas como à verdade, à luz da inteligência, à sua condição de criatura, à sua relação para com o Criador, nenhum homem, por mais que o queira, pode renunciar mais do que poderia impedir que o Sol brilhasse sobre o horizonte.