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Nós viemos aqui reunir-nos porque queremos aprender. Precisamente
por este motivo estamos nos deparando com algo que nos foi deixado por
escrito através de alguém que, apesar dos nove séculos de distância
que nos separam, quis nos deixar um ensinamento sobre este assunto
porque sabia de sua importância. Para entender, porém, o conteúdo
do Opúsculo sobre o Modo de Aprender e a importância da mensagem
que nele nos foi transmitida é preciso entender algo do contexto
histórico dentro do qual se encontra Hugo de S. Vitor.
Podemos iniciar um melhor entendimento deste contexto se abrirmos as
primeiras páginas da obra de A. Royo Marín intitulada de Teologia
da Perfeição Cristã. Aí encontraremos, logo em seu início,
uma extensa bibliografia contendo praticamente todos os principais
autores que houve ao longo da História da Igreja que trataram sobre
algum tema de espiritualidade cristã. Estes autores não estão
somente elencados em ordem cronológica, mas também agrupados por
escolas ou correntes de espiritualidade. Desta extensa bibliografia
pode-se extrair um quadro cronológico esquemático em que foram
situados alguns nomes e datas importantes como pontos de referência na
história da espiritualidade cristã.
Examinando este quadro, vemos que nos primeiros séculos da História
da Igreja não houve propriamente correntes ou escolas de
espiritualidade. Os autores estão divididos em dois grandes grupos
aos quais denominamos de Padres Latinos e Padres Gregos, grupos que
correspondem aos autores que viviam no Ocidente ou no Oriente do
antigo Império Romano, cujas línguas em que costumavam escrever
eram, respectivamente, o Latim e o Grego.
Dentre as obras mencionadas entre os primeiros padres Gregos e
Latinos podemos destacar, pela profundidade e pela extensão, a de
Santo Agostinho no Ocidente e a de São João Crisóstomo no
Oriente. Santo Agostinho e São João Crisóstomo tiveram, no
mundo latino e no mundo grego, papéis razoavelmente semelhantes.
Entre as obras mencionadas entre as dos primeiros Santos Padres
destacam-se também duas outras que desempenharam o papel de uma
síntese do pensamento cristão não no que diz respeito a toda a
Teologia, mas mais especificamente à vida espiritual. No Ocidente
João Cassiano, um cristão que passou muitos anos de sua vida entre
os monges da Palestina e dos desertos do Egito para depois dirigir-se
à Gália, hoje sul da França, e fundar um mosteiro em Marselha,
escreveu as Instituições dos Cenobitas e As 24 Conferências.
No Oriente, São João Clímaco, monge no mosteiro de Santa
Catarina aos pés do Monte Sinai, onde um milênio e meio antes
Moisés havia recebido as tábuas dos 10 mandamentos, após passar
muitos anos como eremita no alto deste mesmo monte, eleito abade e
trazido de volta ao mosteiro, escreveu A Escada do Paraíso.
Por volta do ano 550, com base na experiência acumulada da
tradição monástica iniciada com Santo Antão em torno do ano
300, e com especial referência a São Basílio e João
Cassiano, São Bento redigiu uma regra monástica tão perfeita que
aos poucos começaram a cessar em sua maior parte as iniciativas de se
redigirem novas regras para adotar-se mais simplesmente aquela já
escrita por São Bento. A Europa Ocidental tornou-se quase que
inteiramente beneditina e surgiu a primeira das escolas de
espiritualidade apontadas na obra de Royo Marin, a escola
beneditina, inspirada nos princípios da Regra de São Bento.
Somente no apogeu da Idade Média iriam surgir novas escolas de
espiritualidade revestidas de importância histórica. Uma das
primeiras a surgirem é precisamente a dos vitorinos, entre cujos
principais autores contam-se Hugo e Ricardo de São Vitor. Neste
sentido, Hugo e Ricardo de São Vitor não são apenas dois autores
importantes que trataram de temas ligados à espiritualidade cristã;
mais do que isto, eles representam um modo especial com que este tema
pode ser abordado.
Um século após o surgimento dos vitorinos, com o advento das ordens
franciscana e dominicana, esta última à qual pertenceu Santo Tomás
de Aquino, surgiram também aquelas a que R. Marin denomina de
escolas franciscana e dominicana de espiritualidade.
Durante a Renascença os Jesuítas e os Carmelitas vieram dar a sua
contribuição ao tema. Formando o que R. Marin chama de escolas,
não apenas trataram do assunto, mas o abordaram como que segundo uma
nova perspectiva. Entre os carmelitas dois dos principais autores que
trataram da vida espiritual em todos os tempos, São João da Cruz e
Santa Teresa de Ávila.
São Francisco de Sales, segundo Royo Marin, é, ele sozinho,
uma inteira escola de espiritualidade, tal a novidade da perspectiva
com que ele se debruçou sobre o assunto. Embora São Francisco de
Sales se baseasse, em seus escritos, em toda a tradição cristã,
pode-se perceber nele uma influência medular de Santa Teresa de
Ávila. Não obstante o muito que ele deve a São Francisco de
Assis e também a Santo Inácio de Loyola, na realidade a sua obra
é a de alguém que essencialmente parece ter querido tornar
verdadeiramente acessível às pessoas mais simples a tão profunda
riqueza espiritual contida nos escritos de Santa Teresa de Ávila.
Fê-lo porém de um modo tão impregnado com a sua própria
experiência e seu vasto conhecimento que acabou por tornar-se, ele
quase que sozinho, uma nova escola de espiritualidade.
Em meados do século 19 São João Bosco, ao ver-se obrigado
pelas circunstâncias e pela sua vocação a iniciar uma congregação
dedicada à educação da juventude, encantado pela simplicidade dos
escritos e das orientações deixadas por São Francisco de Sales,
quis que em seu instituto nascente a vida espiritual tivesse uma
orientação salesiana. Embora São Francisco de Sales já houvesse
morrido há cerca de dois séculos, S. João Bosco deu por este
motivo à família espiritual que iniciava o nome de Congregação de
São Francisco de Sales ou de Salesianos, como são até hoje mais
conhecidos.
Neste interim, no século dezoito, Santo Afonso de Liguori, às
voltas com a fundação de um instituto missionário que veio a
chamar-se de Congregação do Santíssimo Redentor, cujos membros
são também conhecidos como Redentoristas, não obstante sua dívida
profunda com Santo Tomás de Aquino, em matéria de espiritualidade
depende fundamentalmente das concepções básicas de Santa Teresa de
Ávila. A escola salesiana e a redentorista são, assim, na
realidade, em seus traços essenciais, derivações do legado de
Santa Teresa de Ávila.
Situado neste contexto, pode-se perceber que Hugo e Ricardo de
São Vitor, como já mencionamos, não são apenas teólogos
importantes, ainda que situados entre os mais importantes que houve na
Igreja, mas também representam um modo especial de se considerar a
vida espiritual. O pequeno comentário que Royo Marin tece a cada
escola de espiritualidade à medida em que ela no-las vai apresentando
é, em relação aos vitorinos, enquanto escola distinta, muito
preciso e correto:
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"Herdeira do espírito de Santo Agostinho",
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diz Royo Marín,
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"a escola de São Vitor representa
um termo médio entre a escola beneditina,
de orientação predominantemente afetiva,
e a dominicana,
que nascerá em seguida,
com tendência mais intelectualista".
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