41. A humildade, considerada em si e nas Escrituras.

Discorremos até aqui sobre o que é a humildade examinando-a em si mesmo, procurando deduzir o que ela seja partindo de considerações de sua própria essência, à luz das indicações que nos foram deixadas como linhas mestras nos escritos de Hugo de S. Vitor. Dissemos que é uma disposição da mente proveniente da consciência de sermos uma criatura e não um deus. Se esta disposição é verdadeiramente habitual, algo que não surge apenas quando pensamos no assunto de modo abstrato, afastados da interferência de nossos sentimentos, de nossas ações ou mesmo de outras considerações teóricas que poderiam contradizê-la, de modo que não apenas saibamos ser criatura nestes momentos especiais, mas continuamos conscientes de sê-lo em todas as circunstâncias de nossa vida e de modo que nossas ações, sentimentos e demais pensamentos não só sejam coerentes com esta consciência mas também derivem dela, então podemos dizer que somos humildes.

Considerada em si mesmo, portanto, a humildade não é algo que se pratique mediante a obediência a determinadas regras de conduta. Ela não consiste em algum determinado modo de agir, mas é, em sua essência, apenas a posse habitual da clara consciência de sermos uma criatura e das conseqüências que isto implica. A humildade não é, em sua essência, uma regra de conduta ou um hábito de conduta, mas a consciência permanente de uma verdade.

A consciência desta verdade, porém, irá se manifestar de uma inumerável multiplicidade de maneiras conforme o meio ou as circunstâncias em que o indivíduo que a possui vier a se encontrar. As manifestações da humildade são, pois, impossíveis de serem enumeradas porque são tão infinitas quantas são as circunstâncias possíveis do agir e do viver dos homens. Ela se manifesta de modo diverso no cientista, em sua constante procura pela verdade científica; no juiz, ao dever sentenciar com autoridade sobre a aplicação da lei, ou em um advogado, ao aceitar a defesa de seu cliente; no professor, ao ter que posicionar-se sobre como e para onde estará conduzindo seus alunos; no médico, de cujo proceder depende a vida e a morte dos que lhe são confiados; no sacerdote, diretamente imerso no sagrado; na mãe de família, que tem diante de si a lhe exigir uma resposta, na pessoa de seus filhos, uma realidade muito mais complexa do que a que lhe seria apresentada por qualquer outro estranho e adulto. A humildade também se manifestará de modo diverso no cristão, diante do qual a graça e a Revelação descortinam realidades mais profundas do que as que podem ser apreendidas apenas pela luz natural da razão. Diante de todas estas circunstâncias podemos nos posicionar agindo como se fossemos dotados de atributos divinos ou com a clara consciência de sermos apenas uma criatura finita, inferior aos deuses, igual a nossos semelhantes, carentes de virtude e conhecimento, e também da graça.

Sejam quais forem, porém, as realidades específicas com que qualquer homem possa se defrontar, ele não poderá, todavia, esquivar-se de ter que responder com uma posição pessoal sobre como irá se colocar diante de Deus, ou pelo menos diante do cosmos que lhe revela a existência de uma ordem superior a sim próprio dentro da qual ele está inserido; diante do seu semelhante, por ser impossível que um homem passe uma vida sem ter convivido com outros homens; e diante de si mesmo. Daí as três manifestações mínimas e necessárias da humildade a que nos referimos anteriormente, o reconhecimento e a reverência para com o sagrado ou o superior a si próprio, o respeito para com o próximo reconhecido incondicionalmente como um igual, e a consciência da própria indigência da graça, virtude e conhecimento que conduz ao desejo profundo de aprender.

Queremos agora mostrar que esta doutrina sobre a natureza da humildade e do seu caráter de princípio da virtude e do aprendizado, deduzido por um exame da humildade considerada em si mesma, pode também ser deduzido ou encontrado nos ensinamentos contidos nas Sagradas Escrituras.