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Acabamos de examinar um exemplo sobre a diversidade das atitudes que
diferentes formas de se ordenar a ascese cristã podem manifestar diante
de uma mesma situação. Deparando-se com a beleza da criação,
Santa Clara, São Bernardo e Hugo de São Vítor tomam
posições diversas que dependem, em última análise, do modo como
foi concebida a orientação de sua ascese em direção à
contemplação, pela qual o homem, através do exercício das virtudes
teologais, se une, tanto quanto lhe é possível neste mundo, a Deus
Criador e Redentor. Os exemplos poderiam multiplicar-se tanto nos
fatos como nas possibilidades, pois, conforme afirma Pio XII,
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"assim como na Igreja celeste
há muitas moradas,
assim também na Igreja terrestre
a ascética não é monopólio de ninguém".
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No entanto, mesmo diante desta sentença de Pio XII, a
consideração dos três exemplos que foram apresentados levará alguns
a se perguntarem se, examinados mais atentamente, não seria um
deles, ou algum outro, um caminho mais correto e por isto talvez mais
preferível do que os demais.
Supomos que a resposta a esta pergunta só poderia ser dada com
honestidade subdividindo-a em dois aspectos. Do ponto de vista
especulativo, quer nos parecer que a posição de Hugo de São Vitor
é mais correta, por se aproximar mais do conjunto dos ensinamentos do
Novo Testamento. De fato, o Novo Testamento, e nele,
principalmente Jesus e São Paulo, apontam de modo indiscutível que
a caridade, o amor sobrenatural por Deus acima de todas as coisas,
uma virtude cuja sede é a vontade, não só é a maior de todas as
virtudes como também é aquela sem a qual a posse de todas as outras,
inclusive a fé, seria inútil. No entanto, apesar de afirmações
tão claras neste sentido, o Novo Testamento fala e exorta com muito
mais freqüência à virtude da fé, cuja sede é a inteligência, do
que ao amor, como se quisesse, pelo número de referências,
contrabalançar a atenção que deve ser dada efetivamente a ambas estas
virtudes. Neste sentido, do ponto de vista especulativo, por se
aproximar mais da própria posição do texto sagrado, Hugo de São
Vítor parece situar-se mais corretamente.
Do ponto de vista prático, porém, a situação é inteiramente
diversa, como pode reconhecer-se através dos próprios textos de
Hugo de São Vitor, pois ele mesmo diz que possuímos a Deus pelo
amor, e que, portanto, do ponto de vista prático não importa o
caminho trilhado desde que, através dele, o homem efetivamente
alcance o amor de Deus. Diz, de fato, Hugo de São Vitor no
segundo livro dos Mistérios da Fé Cristã:
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"A Escritura nos manifesta
o quanto devemos amar
o nosso bem que é Deus.
Não preceituou apenas que o amássemos,
ou que amássemos apenas a Deus,
mas que o amássemos o quanto pudéssemos.
A tua possibilidade será a tua medida;
quanto mais o amares, mais o terás".
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Toda forma de ascese legítima conduz, efetivamente, a uma profunda
vivência do primeiro e maior de todos os mandamentos, caso contrário
não seria uma forma autêntica de espiritualidade, e o grau de
perfeição com que ela o faz não depende somente, e muitas vezes
depende apenas secundariamente, de sua maior ou menor correção
examinada do ponto de vista especulativo. Além da própria soberana
liberdade de que Deus se utiliza ao conceder-nos a sua graça, muitos
outros fatores, psicológicos, culturais, circunstanciais e inclusive
espirituais, não apenas do indivíduo como também do meio onde ele
vive, podem estar envolvidos em cada caso individual. De onde que
deve considerar-se bem aventurado o homem que tiver podido encontrar
aberta para si qualquer via concreta pela qual ele pode deparar-se com
uma possibilidade real de alcançar uma vivência profunda do mandamento
da caridade, pois virá a possuir a Deus apenas pelo amor que
efetivamente tiver vivido, independentemente do grau de perfeição
especulativa do caminho que o tiver conduzido até aí.
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