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Existe uma dificuldade especial para se entender este último aspecto
da questão da humildade que acabamos de mencionar porque a maioria dos
homens age mais pela inércia do costume e modelando-se pelos hábitos
que vê como aceitos pelo comum das pessoas do meio em que vive do que
pela docilidade a uma verdade apreendida objetivamente pela
inteligência. Neste sentido, na sociedade do final do século 20,
o respeito incondicional pelo ser humano não é favorecido pelo que
podemos observar ao nosso redor.
As constituições dos estados modernos repetem constantemente, mais
do que nunca na história, a necessidade de se combater toda a espécie
de discriminação e atentado à dignidade humana. As declarações de
direitos humanos são incessantemente reafirmadas nos principais textos
legislativos e nas convenções dos organismos que reúnem os
responsáveis pelos destinos das nações. A julgar por estes fatos,
pareceria nunca ter existido outra época em que houvesse tamanha
disposição para se promover uma atitude de respeito para com o ser
humano. No entanto, os meios de comunicação nos mostram
continuamente exemplos de entes que, embora afirmem se amarem entre
si, como deveriam ser os namorados, os esposos, os pais e os filhos,
desrespeitam-se e se agridem entre si de forma incessante. Tais
atitudes, em vez de causarem horror aos que as assistem, e uma extrema
desonra para os que as divulgam, tendem a ser consideradas como eventos
normais e às vezes até como um produto de alguma forma superior de
sinceridade, quando, na realidade, objetivamente examinadas,
deveriam ser tidas como atitudes inconcebíveis não só entre seres que
se amam como até mesmo para com um estranho. Na vida real, ademais,
não apenas vemos estes exemplos se reproduzirem com freqüência
crescente fora de nossas famílias, como inclusive, e o mais
comumente, dentro delas próprias. Além do desrespeito verbal ou
físico, vemos também uma grande quantidade adicional de desprezo que
os homens têm uns pelos outros e de que não possuem a coragem de
demonstrá-lo diretamente àqueles aos quais o dirigem, mas apenas a
terceiros. As pessoas que agem assim, obviamente, quer elas o
entendam ou não, julgam que não podem elas mesmas serem desprezíveis
no mesmo sentido em que estão desprezando os demais. Se quisermos ser
humildes, porém, devemos parar definitivamente de agir desta forma,
não propriamente porque tenhamos aprendido a dominar nossos impulsos,
mas porque decidimos conscientemente descer do pedestal fantástico em
que tivemos que nos colocar para que nos arrogássemos a liberdade de
nos entregarmos com toda a naturalidade a tais procedimentos. Devemos
nos decidir a nunca mais agredir ou desrespeitar, não só de fato,
como também em nosso coração e em nossos pensamentos, qualquer
pessoa que seja, em qualquer circunstância que possa vir a ocorrer,
especialmente naquelas em que estamos com a razão, e propor-nos a
isto não como quem se propõe a uma conquista a ser alcançada
gradualmente, mas como quem toma uma resolução imediatamente
definitiva. Não nos podemos permitir o luxo de pretender alcançar a
realização deste propósito apenas próximos ao fim de nossas vidas,
pois este não é, ao contrário do que pode parecer, o ápice da vida
espiritual, mas apenas um dos mais elementares de seus primeiros
princípios. Que sempre que qualquer pessoa nos procure, pois, seja
quem for, seja ouvida com reverência e atenção; se não puder ser
ouvida, que o seja por motivos técnicos, não por desprezo ou por
desconsideração de importância. Seja quem for que a nós se
dirija, procedamos assim por estarmos possuídos de uma nítida
consciência de estarmos sendo interpelados por alguém que possui uma
dignidade essencialmente idêntica à nossa. Ademais, se estamos
efetivamente conscientes de nossa situação de indigência de graça,
virtude e conhecimento, destituídos da hipótese absurda de uma
compreensão divina do que há de essencial na ordenação do
Universo, temos que dar atenção a quem quer que nos interpele, não
apenas pelo respeito à sua dignidade humana, mas também porque não
podemos prever de antemão que boas surpresas esta nos poderá trazer,
sabendo de antemão que a verdade quase sempre costuma se apresentar
pelos caminhos que os orgulhosos menos esperam. No tempo de Jesus,
esperava-se pelo Messias como ao Rei dos reis, que de fato o foi;
quem poderia supor, porém, que alguém com tais títulos e cuja vinda
estava sendo efetivamente preparada pelo próprio Deus há quase dois
mil anos, conseguiria sequer alugar uma vaga de quarto em uma aldeia
minúscula como Belém, e tivesse que nascer entre os animais de um
estábulo? Quem poderá avaliar quantas vezes Deus efetivamente já
se nos apresentou deste modo em nossa vida e nós nada percebemos?
Não é impossível que houvesse soldados aos pés da cruz de Cristo
que, no mesmo instante em que o bom ladrão rogava e obtinha de Cristo
um lugar para si no Paraíso, reclamassem da injustiça de terem sido
transferidos pela autoridade romana para servirem num território tão
desprezível como a Palestina, um lugar onde jamais poderia acontecer
nada de importante, muito menos algo que pudesse mudar o curso da
história. Por mais paradoxal que possa parecer este exemplo, este é
o pão de cada dia do homem orgulhoso, e ele morre na maioria das vezes
sem ter tido a oportunidade de ter percebido o que realmente foi a sua
vida.
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