4. Necessidade da interpretação literal ou histórica.

O sentido alegórico e moral, a inteligência mística, somente pode ser apreendido a partir daquilo que o sentido literal propõe em primeiro lugar. Causa-nos, portanto, não pouca admiração e perplexidade como possa haver algumas pessoas que se gabam de serem doutos na alegoria ignorando, entretanto, a primeira significação da letra. Nós, dizem eles, ensinamos as Escrituras, não, porém, a letra; não cuidamos da letra, porque nos ocupamos apenas da alegoria.

Mas, pergunto, como é possível ensinar a Escritura, se não se lê a letra? De fato, se tirarmos a letra, o que será da Escritura?

Dizem eles que a letra significa uma coisa segundo a história, e outra segundo a alegoria. A palavra leão, por exemplo, segundo o sentido literal significa o animal, mas segundo o sentido alegórico significa o Cristo, porque o leão dorme de olhos abertos.

Esta afirmação, porém, tal como está apresentada, não pode ser sustentada. Deve-se mudar a frase proposta, ou modificar a causa apontada. De fato, não é a palavra leão que dorme de olhos abertos, mas o animal que a palavra significa. Entenda-se que quando se diz que o leão significa o Cristo, não é o nome do animal que significa o Cristo, mas o próprio animal. É o animal que dorme de olhos abertos que, segundo uma determinada semelhança, representa o Cristo, porque nos dias em que estava sepultado, enquanto sua humanidade dormia o sono da morte, o Cristo mantinha os olhos abertos por causa da sua divindade que velava. Não se pode pretender, portanto, ter compreendido as Sagradas Escrituras se se ignorar o sentido literal. Ignorar a letra é ignorar aquilo que a letra significa; ora, a coisa que a letra significa é, por sua vez, um sinal de algo que deverá ser entendido espiritualmente. Como, porém, este entendimento espiritual poderá ser apreendido pelos que lêem, se o seu sinal não lhes tiver sido significado?

Aquele, portanto, que busca o entendimento das Sagradas Escrituras deve em primeiro lugar aplicar-se à compreensão daquelas coisas que as palavras sagradas propõem de modo imediato; só depois que as tiver bem conhecido é que deve passar às demais significações, meditando e reunindo, através das semelhanças, aquilo que diz respeito à edificação da fé e à formação dos bons costumes. Deve-se, pois, compreender primeiro o que a letra significa para depois vir a se entender aquilo que é significado pela coisa significada pela letra.

Quisemos advertir bem o leitor a este respeito para que não aconteça que venha a desprezar os primeiros rudimentos deste ensinamento. Não pense que deva ser desprezado o conhecimento daquilo que as Sagradas Escrituras nos propõem através da primeira significação da letra, porque são estas coisas que o Espírito Santo mostra aos sentidos carnais a nós, que não podemos apreender as coisas invisíveis senão através das visíveis, como simulacros de entendimentos mais elevados, levantando nossa alma à compreensão do que é espiritual através destas semelhanças que nos são propostas.

Se, como alguns dizem, fosse possível passar da letra diretamente àquilo que deve ser entendido espiritualmente, em vão teriam sido interpostas nas Sagradas Escrituras as figuras e as semelhanças das coisas pelas quais a alma é ensinada acerca do que pertence ao espírito. Não se deve, portanto, na palavra de Deus desprezar a humildade, porque é pela humildade que somos iluminados para a divindade. Este sentido exterior da palavra de Deus pode parecer lodo para ser talvez pisado pelos pés, mas é este lodo que nossos pés pisam que foi usado pelo Cristo ao curar o cego de nascença para iluminar-lhe a vista (Jo. 9).

Leiamos, pois, as Sagradas Escrituras, e aprendamos diligentemente em primeiro lugar aquilo que ela narra materialmente. Se imprimirmos cuidadosamente em nossa alma a forma destas coisas segundo a seqüência da narrativa, depois, através da meditação, colheremos como de um favo a doçura da inteligência espiritual (6).