19. Segunda característica.

A segunda característica da escola vitorina é o papel de singular importância que o estudo das Sagradas Escrituras desempenha no desenvolvimento da vida espiritual, papel que, quase como que num desenvolvimento natural da característica precedente, os vitorinos não apenas nos deram o exemplo pela vivência como também a explicação pela doutrina. Percebe-se claramente nos escritos dos vitorinos que estamos diante de pessoas que não apenas amavam as Escrituras, como também que se alimentavam delas num sentido impressionantemente semelhante às exortações que, desde o início do século 20, os Sumos Pontífices da Igreja Católica têm feito a todos os fiéis para que se alimentassem da Sagrada Eucaristia. Não conhecemos nenhum outro exemplo tão luminoso, em toda a história da Igreja, daquele princípio que o Concílio Vaticano II enunciou em sua constituição Dei Verbum sobre as Sagradas Escrituras:

"A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras da mesma forma como o próprio corpo do Senhor, já que, principalmente na Sagrada Liturgia, sem cessar toma tanto da palavra de Deus como do corpo de Cristo o pão da vida e o distribui aos fiéis".

Const. Dei Verbum, 21

Os escritos dos vitorinos nos dão razões profundíssimas do motivo pelo qual isto é exatamente assim, um exemplo de como isto se torna realidade e nos mostram como isto, inserido dentro de um adequado contexto, conduz à vida de contemplação.

Sem a intenção de entrar neste que é inteiramente outro assunto, recolhemos algumas passagens, a título de ilustração, dos sermões de Hugo de São Vitor, em que ele se refere às Escrituras:

SERMO 4 :

"Devemos buscar nosso alimento",

diz Hugo de São Vitor,

"pelo estudo das Escrituras. Os maus não apetecem este alimento, conforme está escrito:

`Sua alma aborrecia todo alimento, e chegaram às portas da morte'.

Salmo 106, 18

Ele, porém, é dado aos bons, conforme está escrito:

`Enviou a sua palavra para curá-los, para livrá-los da ruína'.

Salmo 106, 20

SERMO 5 :

"Devemos preparar nosso alimento pelo mais frequente e diligente estudo e meditação das Sagradas Escrituras. Por meio deste alimento a alma se robustece, por ele engorda, por ele adquire força para a boa obra, e por ele é conduzido sem defeito à perfeição".

SERMO 11 :

"Nossa dieta são as Sagradas Escrituras, que é servida para nós de modos diversos, na medida em que nos é ensinada conforme a diversa capacidade dos ouvintes. Ora ela é servida aos ouvintes e aos leitores pela história, ora pela alegoria, ora pela moralidade, ora pela anagogia; ora pela autoridade do Velho Testamento, ora pela autoridade do Novo; ora envolvida no véu do mistério, ora em sua forma pura, límpida e aberta".

SERMO 21 :

"A boca é o símbolo da inteligência. Assim como recebemos o alimento pela boca, assim também é pela virtude da inteligência que recebemos o alimento da divina leitura. Os dentes significam a meditação, pois assim como pelos dentes trituramos o alimento que recebemos, assim também pelo ofício da meditação discutimos e dividimos mais sutilmente o pão recebido pelo estudo das Escrituras".

SERMO 85 :

"Vejamos agora, irmãos caríssimos, se somos verdadeiramente da linhagem de nosso bem aventurado Pai Santo Agostinho, isto é, se somos seus imitadores tal como o devemos ser. Vejamos se, contemplando o seu exemplo, amamos a palavra de Deus, estudando-a, meditando-a, escrevendo sobre ela, ensinando-a conforme a graça que nos foi concedida; se imitamos, enfim, seu exemplo, vivendo com todas as nossas forças sua honestíssima religião".

SERMO 95 :

"O Senhor disse, falando a Moisés sobre a mesa da proposição que este deveria fazer:

`Farás também uma mesa de pau de cetim, que tenha dois côvados de comprimento, um côvado de largura e um côvado e meio de altura. E cobri-la-ás de ouro puríssimo, e far-lhe-ás um lábio de ouro em roda... ... e porás sempre sobre a mesa os pães da proposição na minha presença'.

Êxodo 25, 23/24/30

O que é esta mesa, caríssimos, senão a Sagrada Escritura? Pois todas as vezes em que ela nos exorta a bem viver, tantas são as vezes em que ela nos oferece o pão da vida. Lemos que esta mesa é feita de pau de cetim, pois a verdade da Sagrada Escritura não se corrompe pelo envelhecimento. À semelhança da mesa da proposição, a Escritura também possui dois côvados de comprimento, pois nos ensina as duas partes da fé, aquela pela qual cremos no Criador e aquela pela qual cremos no Redentor. Possui um côvado e meio de altura quando nos ensina qual é a altura da esperança e o início da contemplação. Possui um côvado de largura quando nos ensina qual é a largura da caridade. Esta mesa espiritual é inteiramente coberta de ouro puríssimo, pois refulge em toda a sua extensão não apenas pelos milagres, como principalmente pela caridade da sabedoria celeste. O lábio de ouro em sua roda são os ensinamentos dos santos doutores, não apenas porque a circundaram em toda a sua extensão sem nada haverem deixado que não tivessem observado, como também porque se apoiaram em todos os seus ângulos para mostrarem aos maus a sua malícia e aos bons ensinarem o melhor. Os pães da proposição são as palavras da sabedoria celeste, corretamente chamados de pães da proposição, porque a doutrina da salvação deve ser proposta sempre a todos os fiéis e nunca deve faltar na Igreja a palavra de auxílio, que o Senhor quis que abundasse incessantemente até o fim dos tempos para todos aqueles que tem fome e sede de justiça e que se manifestasse ao mundo através dos pregadores da verdade que vivem em sua presença".

Deve-se acrescentar a estas citações a observação segundo a qual esta mesma coleção dos 100 Sermões de Hugo de São Vitor, organizada por ele mesmo, embora contenha inúmeras exortações à prática das virtudes, conforme seu autor no-lo indica no prólogo e o torna patente ao longo da sua obra, não foi escrita, entretanto, tendo como seu principal objetivo a exortação à virtude, mas sim o de propor aos seus ouvintes algo pelo qual pudesse exercitar-lhes o entendimento sobre o modo pelo qual o homem pode aproximar-se das Escrituras para utilizá-las em favor de seu crescimento espiritual.