12. Doutrina de Hugo de São Vítor.

Aristóteles não reina sozinho na Idade Média; Platão teve os seus discípulos; e depois de Boécio, que parece ter querido reconciliar as duas escolas rivais, a cadeia de filósofos platônicos não foi nunca mais inteiramente quebrada. Hugo de São Vítor foi um dos anéis desta cadeia; ele professa a doutrina de Platão, não porém aquela que este filósofo ensinou, mas aquela que Santo Agostinho corrigiu, purificou e completou pelo dogma cristão.

Cultivava-se, porém, pouco, à sua época, a filosofia por ela mesma. A ciência sagrada era quase que a única matérica sobre a qual se exercia a atividade intelectual. Felizmente, porém, a teologia não é inimiga da filosofia: são duas irmãs que se dão as mãos, e as dão ao homem para conduzí-lo ao mesmo fim.

A simples exposição da doutrina de Hugo de São Vítor será um testemunho novo em favor desta verdade que tantos homens esclarecidos se esforçam hoje em dia em estabelecer. Nosso ponto de partida para tanto será a própria noção de ciência:

"A ciência",

diz Hugo,

"é o resultado natural do exercício das faculdades da alma. Ela se divide em dois ramos principais, a teologia propriamente dita e a filosofia que abarca todas as artes"(1).

Estas duas partes da ciência se distinguem uma da outra pelo seu objeto:

"Deus",

diz ele,

"fez duas obras que abraçam a universalidade dos seres: a criação e a restauração. A criação é a produção do mundo e de todos os seus elementos. A restauração é a encarnação do Verbo e todos seus Sacramentos, aqueles que o precederam depois do início do mundo, e aqueles que o seguiram até a consumação dos tempos. Todos os santos que houve antes de sua vinda são como soldados que o precedem, e aqueles que vieram e que ainda virão depois dele são como soldados que o seguem. A ciência da criação, isto é a filosofia; a ciência da restauração, isto é a teologia"(2).

Se a filosofia e a teologia têm por objeto uma o conhecimento científico do mundo natural, e outra o conhecimento científico do mundo sobrenatural, elas são distintas, porque estes dois mundos são distintos; elas são unidas, porque estes dois mundos são a revelação do mesmo Verbo de Deus.

"A filosofia",

diz Hugo,

"é o amor, o estudo e a amizade com a sabedoria, desta sabedoria que não tem necessidade de nada, desta sabedoria que é um espírito vivo, desta sabedoria que é a única e a primeira razão de todas as coisas. Este amor da sabedoria é uma iluminação de um espírito inteligente por parte daquela pura sabedoria que o atrai e o chama; é, ao que parece, um estudo da sabedoria divina e uma amizade entre esta mente pura e Deus"(3) .

A filosofia é o "amor da sabedoria que de nada necessita". Por estas palavras Hugo quer dar a entender a sabedoria divina. Ela é chamada de um espírito vivo porque nada pode obscurecer o que está impresso na razão divina; ela não está sujeita a nenhum esquecimento.

A filosofia, portanto, diz Hugo, é o conhecimento e o amor da razão ou da sabedoria de Deus manifestada pela criação. Esta sabedoria não é distinta de Deus: é sua inteligência, é seu Verbo, é o seu Filho eternamente unigênito no seio de seu Pai.

Em seu Comentário ao Evangelho de São João, Hugo explica esta passagem:"Todas as coisas foram feitas pelo Verbo, e nada do que foi feito foi feito sem ele; a vida estava nele" (Jo. 1, 3-4). Depois de reportar as duas versões deste texto, Hugo adota a de Santo Agostinho e diz:

"Todas as coisas foram feitas por ele, e nada foi feito sem ele; e tudo o que foi feito era nele vida. Assim como o artífice concebe em seu espírito um tipo que permanece e que não muda ao mudar a obra que exteriormente o manifesta, assim Deus, criador de todas as coisas, compreende, desde toda a eternidade, em sua sabedoria, todas as coisas que viria a fazer, e esta sabedoria é imutável. É isto que faz dizer ao evangelista que o que foi feito era nele vida, isto é, que Deus de quem provém todas as coisas, as previu desde toda a eternidade, e o que ele dispôs em toda a eternidade, sem mudança em si mesmo, o realizou no tempo.

Assim, todas as coisas receberam a vida e a existência da sabedoria de Deus.

É, portanto, justo dizer que em Deus elas eram vida porque de lá receberam a vida.

Ou também lá estava a vida, porque tudo o que foi feito, foi feito segundo a sabedoria de Deus que é a vida de todas as coisas. Ela foi o exemplar de Deus, à semelhança de cujo exemplar todo este mundo sensível foi feito"(4) .

Pode-se reconhecer neste comentário mais ao discípulo de Santo Agostinho que ao de Platão. Santo Agostinho desenvolveu a mesma doutrina ao comentar a mesma passagem, e ele o fez em circunstâncias que mostram de quanta importância isto era aos seus olhos. Não o fez, de fato, em algum sábio comentário, em algum tratado dogmático ou na presença de homens de elite exercitados nas meditações das ciências; foi, ao contrário, em um discurso popular, em uma instrução familiar e no meio de simples fiéis. Não se sabe o que mais admirar aí, a versatilidade do gênio do santo doutor, que se esforça por tornar sensível estas verdades tão sublimes, fazendo-as penetrar nas inteligências simples e às vezes até incultas, ou se a avidez de seus ouvintes, que não o largam enquanto não o entendem, e que, em seu entusiamo, o interrompem por meio de freqüentes aplausos.

Nós desejamos comparar esta passagem com aquela de Hugo; isto nos fará conhecer como o discípulo soube se apropriar das lições do mestre:

"Todas as coisas foram feitas pelo Verbo, e sem ele nada do que existe foi feito. Mas como tudo o que existe foi feito por ele?

O que foi feito era vida nele. Entretanto, se tudo o que foi feito era vida nele, nós não afirmamos que tudo é vida.

Seria desonesto entender assim, e não podemos fazê-lo, com receio de que a sordíssima seita dos maniqueus se nos apresente e nos diga que uma pedra tem vida,

que uma muralha é animada, que uma pequena corda, que a lã e os vestidos têm uma alma. É isto, com efeito, que eles ensinam em seu delírio. A terra foi feita, e ela não é vida. Mas há na própria sabedoria uma idéia espiritual pela qual a terra foi feita, e esta idéia é vida.

Vou explicar isto do modo como me é possível.

Um artesão faz uma arca. Ele possui esta arca primeiro em sua arte, ele concebe em seu espírito a idéia de uma arca, porque se ele não tivesse esta idéia, como a poderia executar? Mas esta idéia que está em seu espírito não é a arca que é vista pelos olhos. A arca, que em sua obra será visível, existe invisivelmente em sua obra. A arca material não é vida, embora seja real, mas a arca que há na arte é vida, porque a alma do artesão, onde estão todas as coisas antes que elas se manifestem, é vida.

Assim também, irmãos caríssimos, a sabedoria de Deus continha todas as coisas em sua arte antes que tivessem sido feitas. É por isto que tudo o que foi feito por esta mesma arte em si mesmo não é vida; mas tudo o que foi feito é vida no Verbo de Deus. Externamente, são corpos; na arte, são vida.

Compreendei, se podeis como",

conclui Santo Agostinho,

"que vos disse uma grande verdade"(5) .

Hugo está persuadido, assim como seu mestre, da importância desta doutrina. Ele a reproduz sob todas as formas em muitas de suas obras.

No De Sacramentis ele diz:

"Toda criatura possui uma causa e uma imagem na razão de Deus e em sua providência eterna; e é por esta causa e sobre o modelo desta imagem que ela foi criada em sua substância"(6) .

Na meditação desta magnífica doutrina seu coração se inflama e seu espírito se exalta; ele não sabe como exprimir os sentimentos de admiração e de amor que se apresentam diante de sua alma:

"O verbo de bondade e a vida de sabedoria que fez o mundo",

diz Hugo,

"se manifesta na contemplação da criação. O Verbo em si mesmo era invisível, mas se fez visível, e foi visto pelas suas obras"(7) .

"Pudesse eu compreender a beleza das criaturas com tanta sutileza e narrá-la com tanta dignidade quanto é o ardor com que a amo! É para mim doce e agradável, e um inefável deleite tratar com frequência desta matéria. Nela simultaneamente a razão apreende o sentido, a alma dilata-se pela suavidade, o coração inflama-se pela emulação e, cheios de admiração, exclamamos com o salmista:

Como são belas as vossas obras, ó Senhor: o homem insensato ignora estas coisas, ele não as compreende"(8).

"O mundo é, de fato, um livro escrito pelo próprio dedo de Deus. Cada criatura é como um sinal, não por convenção humana, mas estabelecido pela vontade divina. O homem ignorante vê um livro aberto, percebe certos sinais, mas não conhece nem as letras nem o pensamento que elas manifestam. Assim também o insensato, o homem animal que não percebe as coisas de Deus, vê a forma exterior das criaturas visíveis, mas não compreende os pensamentos que eles manifestam. Assim como em uma única e mesma obra um homem admira a cor e a forma das letras, enquanto outro louva os pensamentos que elas expressam. É bom, portanto, contemplar assiduamente e admirar as obras de Deus, mas para aquele que souber converter a beleza das coisas corporais em uso espiritual"(9) .

A criação é, portanto, a manifestação do pensamento e da sabedoria de Deus, assim como a palavra é a manifestação do pensamento e da sabedoria do homem. O mundo é um imenso livro; o homem, portanto, deve ser neste livro, deve escutar este discurso, não somente por dedução, como quando nos elevamos do efeito até a causa, mas por contemplação, como quando nos elevamos do sinal à coisa significada, da palavra ao pensamento.

Esta era a ordem primitiva. Mas a inteligência do homem, enfraquecida pelo pecado, se detém até hoje no elemento sensível e grosseiro, no sinal exterior e material. A criação ela mesma se tornou tenebrosa, é um véu que cessou de ser transparente para a inteligência. Ela vive mais de sensações do que de verdades; a parte animal domina e mantém em cativeiro a parte inteligente. Foi por isso que Deus quis fazer, pela Encarnação, uma nova manifestação de seu Verbo, que foi ao mesmo tempo uma reparação e uma continuação da criação.

No Comentário de Hugo à Hierarquia Divina pode-se ler o seguinte:

"Dois sinais foram propostos ao homem nos quais pudesse ver as coisas invisíveis: um da natureza, e outro da graça. O sinal da natureza é o mundo sensível; e o sinal da graça é a humanidade do Verbo"(10) .

"Os anjos, cujos sentidos eram interiores, contemplavam as coisas interiores e por estas as exteriores. Os animais brutos, cujos sentidos eram exteriores, alcançavam as coisas visíveis exteriores, mas não mediante elas as invisíveis que eram interiores. Assim, havia uma criatura cujos sentidos eram totalmente interiores, e outra criatura cujos sentidos eram totalmente exteriores. Entre ambas foi posto o homem, possuindo sentidos interiores e exteriores, interiores para as coisas invisíveis e exteriores para as visíveis, para que contemplasse entrando e contemplasse saindo: contemplasse interiormente a sabedoria, exteriormente as obras da sabedoria e, contemplando a ambas, em ambas encontrasse alimento. Os sentidos do homem foram feitos para que o homem pudesse se dirigir a ambos e em ambos encontrasse alimento. Iria pelo conhecimento, alimentar-se-ia pelo amor"(11).

Estes dois sentidos de que Hugo nos fala são evidentemente o sentido e a apreensão da verdade. O sentido corresponde ao mundo físico, e a idéia ao mundo espiritual, que não é outro senão o próprio Verbo de Deus de quem o mundo físico não é mais do que a manifestação. O sentido alcança o sinal; a idéia, a coisa significada. Assim, a sensação liga o corpo, de quem o mundo físico não é mais do que uma extensão, à alma; da mesma maneira, a idéia liga a alma a Deus.

Hugo desenvolve estes pensamentos nesta linguagem alegórica que lhe era tão familiar:

"Moisés",

diz ele,

"sobe a montanha, e Deus desce sobre a montanha. Se Moisés não tivesse subido, e Deus não tivesse descido, ambos não se teriam encontrado. Grandes sinais há em todas estas coisas. O espírito sobe, e Deus desce; ele sobe pela contemplação, e Deus desce pela revelação. Esta também foi a escada de Jacó; apoiava-se sobre a terra e sua extremidade tocava o céu. A terra é o corpo; o céu é Deus. Os espíritos se elevam pela contemplação das coisas inferiores às coisas superiores, do corpo ao espírito, por meio da contemplação e da revelação. Deus, porém, se apóia sobre a extremidade da escada para que as coisas superiores se inclinem em direção às inferiores"(12).

Tal é, segundo Hugo, o plano de Deus na primeira manifestação de sua sabedoria através do mundo natural, o primeiro livro no qual ele escreveu seu nome, para que toda inteligência pudesse lê-lo e, em o lendo, o conhecesse, e em o conhecendo, o glorificasse.

Mas Hugo acrescenta:

"A sabedoria quis, depois disso, que fosse ainda escrita de uma outra maneira, de uma forma ainda externa, para que aparecesse mais manifestamente e fosse conhecida mais perfeitamente, e para que o olho do homem fosse iluminado para esta segunda escrita, já que havia se obscurecido para a primeira. Fez, então, uma segunda obra após a primeira, a qual era mais evidente do que a anterior, porque não somente demonstrava, mas também iluminava"(13) .

A criação e a encarnação são assim as duas grandes obras de Deus. Elas são, tanto uma quanto a outra, a manifestação de sua inteligência e de seu Verbo. Mas na primeira nós o conhecemos pelas suas obras; na segunda, o Verbo vem pessoalmente até nós. A primeira é um livro escrito pela sua mão, a segunda é antes uma palavra saída de sua boca.

O que é a arte? O que é o artista? Que são as suas obras, senão palavras reveladoras de uma idéia? O artista toma a matéria bruta, um mármore, uma pedra; ele a trabalha, lhe dá forma, lhe confere um semblante. Mas há um tipo interior em que ele fixa o olhar de sua inteligência e que guia sua mão e sua arte. A matéria a exprime, a revela, e, se soubermos ler esta escrita, se houver em nós algo de artista, ao contemplar sua obra, contemplamos sua idéia, participamos de sua alegria.

Mas este tipo em si mesmo é algo de real? Será uma pura imaginação, uma simples modificação de minha alma? Não, o sentimento do belo é de uma ordem mais elevada que as alegrias materiais. Se este tipo possui uma realidade objetiva, será a inteligência que a criou? Mas como o homem, que não pode produzir a matéria informe, criaria esta idéia que é mais excelente do que a matéria, pois é ela que lhe dá sua unidade e sua beleza? Resta somente reconhecer que o artista nada mais faz do que apenas contemplá-la. Ela não era porque ele a quis; ela era antes que ele a descobrisse; ela era eternamente a inteligência divina. Deus as possui como um bem próprio e natural; o homem as possui como um bem alheio que lhe é comunicado.

Nós não podemos senão indicar estes pensamentos que emergem naturalmente da doutrina de Hugo e que a completam. Será suficiente para nós mostrar como ele concebeu o plano geral de Deus em todas as suas obras, e diante deste plano a distinção e a união do mundo natural com o mundo sobrenatural. Eles de distinguem e se unem no seu objeto, que é a verdade; eles se distinguem, porque Deus realizou uma dupla manifestação dessa verdade na Criação e na Encarnação; eles se unem, porque não há senão uma só verdade eterna, uma só luz que ilumina todo homem que vem a este mundo, uma só sabedoria e um só Verbo de Deus. É a unidade, a identidade e a inalterável pureza da verdade que une todas as inteligências entre si, que as une a Deus, e que estabelece, no mundo intelectual, uma santa e viva harmonia.

É evidente que Hugo reconhece o valor da razão natural, e que a revelação divina, longe de a destruir, a aperfeiçoa. No capítulo 5 do De Sacramentis ele afirma:

"Importa considerar como a mente humana, que está tão longe de Deus, pode compreender tanto de Deus, ou diretamente pela sua própria razão, ou auxiliada pela revelação divina".

Estas duas revelações distintas fornecem os princípios distintos de duas ciências que se harmonizam entre si como elas, mas que não se confundem jamais. A inteligência humana, recebendo a verdade, adere a ela, e a ela aderindo, entra em possessão da vida natural ou sobrenatural, de acordo com que esta verdade, que lhe é comunicada, pertença a uma ou outra destas ordens. Mas sua atividade não se confina a este primeiro ato; o homem estuda esta verdade que possui, a contempla, a analisa, a aprofunda, a torna mais sua, se ilumina, se inflama e se vivifica pelos seus raios; ele se transforma, de alguma maneira, nela própria: como um puro cristal que se ilumina pelos raios de sol, espalhando ao seu redor luz e calor, e, sem perder a sua natureza, se torna como um outro sol. Este trabalho é o trabalho da ciência. Assim, a ciência é o resultado do exercíco de nossas faculdades; é essencialmente a obra do homem, como a inteligência e a fé são essencialmente a obra de Deus.