ORDENAÇÃO JURÍDICA DA SOCIEDADE E DOS SEUS FINS

13. Para que a vida social, conforme Deus a quer, obtenha o seu objetivo, é essencial uma ordenação jurídica que lhe sirva de apoio externo, reparo e proteção. A função dela não é 'dominar, mas servir, tender a desenvolver e acrescentar a vitalidade da sociedade na rica multiplicidade dos seus fins, conduzindo ao aperfeiçoamento de cada uma em pacífico concurso todas as energias, defendendo-as com meios apropriados e honestos de tudo o que seja desvantajoso ao seu pleno desenvolvimento. A fim de garantir o equilíbrio, segurança e harmonia da sociedade, tal ordenação dispõe também do poder de coerção contra aqueles que só por esse processo podem ser mantidos na nobre disciplina da vida social. Mas, precisamente, no justo cumprimento deste direito não haverá jamais autoridade verdadeiramente digna de tal nome que não sinta a angustiosa responsabilidade perante o Eterno juiz ante cujo tribunal toda sentença falsa e, sobretudo, toda e qualquer perturbação das normas estabelecidas por Deus receberá a sua infalível sanção e condenação.

14. As últimas, profundas, lapidares e fundamentais normas da sociedade não podem ser profanadas por intervenções do engenho humano. Poderão ser negadas, ignoradas, desprezadas, transgredidas; mas abrogadas com eficácia jurídica, nunca. Não há dúvida de que as condições de vida mudam com o andar dos tempos; mas não se dá jamais hiato absoluto nem perfeita descontinuidade entre o direito de ontem e de hoje, entre o desaparecimento de antigos poderes e constituições e o surto de novas organizações. Em todo caso, ao dar-se esta ou aquela mudança ou transformação, o fim de toda e qualquer vida social permanece idêntico, sagrado, obrigatório, a saber, o desenvolvimento dos valores pessoais do homem como imagem de Deus, permanecendo também em todo momento da humana família a obrigação de realizar os seus fins imutáveis, seja qual for o legislador e a autoridade a quem obedece. Persiste, por conseguinte, sempre e do mesmo modo, pois não cessa, em virtude de qualquer oposição, o seu direito inalienável, que a amigos e inimigos cumpre reconhecer, de uma ordem e pragmática jurídica, que sintam e compreendam ser seu essencial dever servir ao bem comum.

15. A ordenação jurídica tem, além disso, como alto e árduo objetivo, assegurar as relações harmônicas, quer entre os indivíduos, quer entre as sociedades, quer ainda no seio destas. Conseguir-se-á isto se os legisladores se abstiverem de seguir aquelas perigosas teorias e práticas infaustas à comunidade e sua coesão, cuja origem e difusão se deve filiar numa série de postulados errôneos. Entre estes deve-se incluir o positivismo jurídico, que atribui uma enganosa majestade à publicação de leis puramente humanas e abre caminho a uma perniciosa separação entre as leis e a moralidade; da mesma forma, o conceito que reivindica para certas nações, raças ou classes o instinto jurídico, como último imperativo e norma sem apelação; finalmente, aquelas várias teorias que, embora diversas em si e procedendo de pontos de vista ideologicamente opostos, concordam umas com as outras em considerar o Estado, ou o organismo que o representa, entidade absoluta e suprema, isenta de fiscalização e de crítica, mesmo quando os seus postulados teóricos e práticos vão de encontro à aberta negação dos dados essenciais da consciência humana e cristã.

16. Quem, com olhar límpido e penetrante, considerar a conexão vital entre a genuína ordem social e a genuína ordenação jurídica e tiver presente que a unidade interna nos seus aspectos multiformes depende do predomínio de forças espirituais, do respeito da dignidade humana em si e nos outros, do amor à sociedade e aos fins que Deus lhe assinalou, não pode maravilhar-se dos tristes efeitos de concepções jurídicas que, afastando-se da estrada real da verdade, caminham sobre terreno escorregadio de postulados materialistas; mas sem demora descobrirá a improrrogável necessidade da volta a uma concepção espiritual e ética, séria e profunda, aquecida ao fogo de verdadeira humanidade e iluminada pelo esplendor da fé cristã, a qual faz encarar a ordenação jurídica como uma refração externa da ordem social desejada por Deus e luminoso fruto do espírito humano, o qual é também imagem do espírito divino.

17. Sobre esta concepção orgânica, única vital, e em .que a mais nobre humanidade se harmoniza com o mais genuíno espírito cristão, está insculpida a sentença da Escritura, ilustrada pelo grande Aquinate: "A paz é obra da justiça" (Summ. Theol., 2-2 q. 29 a. 3) e que se aplica tanto ao lado interno como ao externo da vida social. Ela não admite nem oposição nem alternativa: amor ou direito, mas síntese fecunda: amor e direito.

18. Em ambos, irradiações do mesmo espírito de Deus, está o programa e síntese da dignidade do espírito humano; um e outro, conforme os casos, se integram, cooperam, se animam, sustentam e dão as mãos no caminho da concórdia e da pacificação, sempre o direito aplana o caminho ao amor e o amor mitiga e sublima o direito. Ambos elevam a vida humana àquela atmosfera social onde mesmo entre os defeitos, impedimentos e asperezas desta terra se torna possível um convívio fraternal. Pelo contrário, se imperar o mau espírito de idéias materialistas; se a tendência ao poder e à prepotência concentrar nas suas rudes mãos as rédeas dos acontecimentos, vereis então aparecer cada dia mais os seus efeitos desagregadores; vereis desaparecer o amor e a justiça, triste prenúncio de ameaçadoras catástrofes sobre uma sociedade apóstata de Deus.