QUALIDADES PRÓPRIAS DOS GOVERNANTES NAS DEMOCRACIAS

19. O Estado democrático, seja monárquico ou republicano, deve como qualquer outra forma de governo, estar investido do poder de mandar, com uma autoridade verdadeira e efetiva. A mesma ordem suprema dos seres e dos fins - que mostra o homem como pessoa autônoma, quer dizer como sujeito de deveres e direitos invioláveis, raiz e termo de sua vida social - abraça também o Estado como sociedade necessária, revestida da autoridade, sem a qual não poderia existir nem viver. E se os homens, prevalecendo-se da liberdade pessoal, negassem toda dependência de uma autoridade superior dotada do direito de coação, abalariam com isso o fundamento da própria dignidade e liberdade, ou seja aquela ordem suprema dos seres e dos fins.

20. Estabelecidos sobre esta mesma base, a pessoa, o Estado e o poder público (com seus respectivos direitos) estão intimamente ligados e conexos, de tal modo que juntamente sobrevivem ou perecem.

21. E já que esta ordem suprema, sob a luz da sã razão e particularmente da fé cristã, não pode ter outra origem que um Deus pessoal, nosso Criador, resulta que a dignidade do homem é a dignidade da imagem de Deus, a dignidade do Estado é a dignidade da comunidade moral estabelecida por Deus, a dignidade da autoridade política é a dignidade de sua participação na autoridade de Deus.

22. Nenhuma forma de Estado poderá deixar de levar em conta esta conexão intima e indissolúvel; e a democracia menos que qualquer outra. Portanto, se quem tem nas mãos ti poder público não a vê, ou mais ou menos dela descuida, abala pela base a própria autoridade. Igualmente, se ele não tiver em suficiente conta esta relação, e não vir no seu cargo a missão de realizar a ordem estabelecida por Deus, nascerá o perigo de que ó egoísmo do domínio ou dos interesses prevaleça sobre as exigências essenciais da moral, política e social, e que as aparências mentirosas de uma democracia de pura forma sirvam não raro de máscara a_ quanto realmente existe de menos democrático.

23. Somente a compreensão clara dos fins designados por Deus a toda sociedade humana, compreensão unida ao sentimento profundo dos deveres sublimes da obra social, pode colocar aqueles a quem foi confiado o poder em condições de cumprir as próprias obrigações de ordem legislativa, judiciária ou executiva, com aquela consciência da própria responsabilidade, com aquela objetividade, com aquela imparcialidade, com aquela lealdade com aquela generosidade, com aquela incorruptibilidade, sem as quais um governo democrático dificilmente conseguiria conquistar o respeito, a confiança e a adesão da melhor parte do povo.

24. O sentimento profundo dos princípios de uma ordem política e social sã e conforme às normas do direito e da justiça, é de particular importância naqueles que, em qualquer forma de regime democrático, têm como representantes do povo, total ou parcialmente, o poder legislativo. E pois que o centro de gravidade de uma democracia normalmente constituída reside naquela representação popular donde as correntes políticas se irradiam para todos os campos da vida pública (tanto para o bem quanto para o mal), a questão da elevação moral, da idoneidade prática, de capacidade intelectual dos deputados ao parlamento, é para todos os povos de regime democrático uma questão de vida ou de morte, de prosperidade ou decadência, de saneamento ou perpétuo mal-estar.

25. Para desenvolver uma ação fecunda, para conciliar a estima e confiança, todo e qualquer corpo legislativo deve - como o atestam experiências inegáveis - recolher em seu seio uma plêiade de homens, espiritualmente eminentes e de caráter firme, .que se considerem como representantes de todo o povo, e não já como mandatários de uma turba a cujos interesses particulares não raro se sacrificam as verdadeiras necessidades e exigências do bem comum. Uma plêiade de homens, que não se limite a alguma profissão ou condição, mas que seja a imagem da multiplicidade da vida de todo o povo. Uma plêiade de homens de sólida convicção cristã, de juízo justo e seguro, de senso prático e equânime, coerente consigo mesmo em todas as circunstâncias; homens de doutrina clara e sã, de propósitos sólidos e retilíneos, homens sobretudo capazes. (em virtude da autoridade que emana de sua consciência pura, e largamente irradia em torno deles) de serem guias e chefes, especialmente nos tempos em que as necessidades prementes super-excitam a impressionabilidade do povo e o tornam fácil de ser transviado e perder-se; homens que, nos períodos de transição, geralmente trabalhados e dilacerados pelas paixões, pelas divergências das opiniões e pelas oposições de programas; se sintam duplamente no dever de fazer circular nas veias febricitantes do povo e do Estado o antídoto espiritual das visões claras, da bondade solícita, da justiça igualmente favorável a todos e a inclinação da vontade para a união e a concórdia nacional num espírito de sincera fraternidade.

26. Os povos cujo temperamento espiritual e moral está bastante são e fecundo, acham em si mesmos e podem dar ao mundo os pregoeiros e os instrumentos da democracia, que vivem naquelas disposições e sabem realmente traduzi-Ias em ato. Onde, porém, faltam tais homens, outros vêm ocupar-lhes o lugar para fazer da atividade política a arena de suas ambições, uma corrida aos ganhos próprios e de sua casta ou sua classe, ao passo que a caça aos interesses particulares faz perder de vista, e lança mesmo em perigo, o verdadeiro bem comum.