REMÉDIO DOS GRANDES MALES DE NOSSA ÉPOCA: A FRATERNIDADE

29. A humanidade, portanto, não poderá sair da crise e da desolação presente, e caminhar para um futuro harmônico, se não frear e dominar as forças da divisão e da discórdia, graças a um sincero espírito de fraternidade que estreite num mesmo amor todas as classes, todas as estirpes e todas as nações.

30. Se hoje, na vigília do Natal, Nós lançamos tal convite ao mundo inteiro, é porque vemos este espírito de fraternidade em risco de extinguir-se e de morrer; vemos as paixões egoísticas adiantarem-se à sã razão; os duros procedimentos de desmando e de violência, à compreensão leal e à reciprocidade de vistas; o desprezivo cuidado que daí derivam, à assídua gestão do bem público. - A Igreja, cujo maternal coração abraça com igual solicitude todos os povos, observa com angústia essa evolução nos conflitos nacionais e internacionais.

31. Quando a fé em Deus, Pai de todos os homens, começa a esvair-se, também o espírito de união fraternal perde sua base moral e sua força de coesão; e quando o senso de comunidade desejada por Deus e que inclui recíprocos direitos e deveres, regulados por determinadas normas, começa a desfalecer, o seu lugar passa a ser ocupado por uma mórbida hipersensibilidade por tudo quanto divide, uma instintiva inclinação à exagerada afirmação dos direitos próprios, verdadeiros ou supostos, uma negligencia, às vezes inconcebível mas não menos perniciosa por isso, de outras necessidades vitais. - Inicia-se então a luta de todos contra todos, luta que não admite senão o direito do mais forte. O nosso tempo tem nos oferecido dolorosos exemplos de guerras fratricidas, saídas com lógica implacável do esmorecimento do espírito de fraternidade.

32. Finalmente, a terra que ouviu o canto dos Anjos, anunciando a paz aos homens, que viu resplender a estrela do Salvador, a terra onde o Redentor divino morreu crucificado para a nossa salvação, aquela terra santa, com as suas recordações e seus santuários sumamente caros a todo coração cristão, agora dividida, tornou-se teatro de sangui nolentos conflitos. E não é hoje, porventura, a própria Europa, centro de toda a grande família católica uma advertência e uma prova da situação a que o desaparecimento do espírito fraternal pôde reduzir uma parte do mundo, outrora tão bela e florescente? Ela nos apresenta, não cicatrizadas ainda, as feridas que lhe infligiu a última guerra, e começa já a relampejar a luz sinistra de novos dissídios.

33. Ah! se todas as pessoas honestas se unissem estreitamente, como estaria próxima a vitória da fraternidade humana, e com ela a cura do mundo! Representam elas hoje uma parte considerável da opinião pública e dão provas de um senso verdadeiramente humano e até de sabedoria política. - Mas outras, ao contrário, não menos numerosas, e cujo sim ou não tem notável. peso para acelerar ou retardar a pacificação da Europa, primeiro passo para a pacificação universal, seguem rumo oposto. Temem estas, pois, que uma Europa restaurada, revigorada, novamente consciente de sua missão, cristãmente inspirada, queira expelir de seu organismo os germes deletérios do ateísmo e da revolta, viver vida própria e livre de malsãos influxos estranhos?

34. E' claro, realmente, que uma Europa, abalada pelos calafrios febris das dificuldades econômicas e das turbulências sociais, se deixaria mais facilmente seduzir pela ilusão de um impraticável Estado ideal, que uma Europa sã e clarividente não admitiria.

35. Os propugnadores de tão falazes propósitos esforçam-se no entanto, por angariar prosélitos entre os exaltados e os ingênuos, por impelir também seus povos para o abismo da ruína, em que outros já mergulharam, menos por sua livre escolha que sob a sistemática opressão das liberdades civis e religiosas.

36. E já não temos Nós visto, neste mesmo solo sagrado da Cidade em que a vontade divina estabeleceu a Cátedra de Pedro, os mensageiros de uma concepção do mundo e da sociedade humana assentes sobre a incredulidade e a violência tornarem-se semeadores de cizânia na boa terra de Roma e esforçarem-se por persuadir os seus filhos de que eles idealizaram e realizaram uma nova cultura mais digna do homem que a antiga e eternamente jovem civilização cristã?

37. Tendo chegado as coisas a tal ponto, é verdadeiramente chegado o tempo, em que cada qual, que tem como cara e sagrada a herança humana e espiritual de seus pais, desterre o sono de suas pálpebras e se arme de fé e coragem para preservar a Urbe, mãe da civilização, de cair numa condição religiosa, moral, social, que tornaria, com Nosso vivo sentimento, bem difíceis as solenes celebrações do próximo Ano Santo, desejado pelos católicos do mundo inteiro.

38. De resto, se nas atuais circunstâncias as Nossas claras palavras ultrapassam fronteiras, elas não visam senão as doutrinas negadoras da fé em Deus e em Cristo, e não, de certo, os povos que são vítimas. Por estes, nutre sempre a Igreja imutável amor, e com tanto maior ternura, quanto mais eles sofrem. Nos dias de provações, mais do que nas horas serenas, devem os homens de todas as nações sentir-se irmãos, com aquela fraternidade da qual ninguém tem mais exaltado nem melhor exaltará o profundo sentido, a elevada missão e a capacidade de reconciliação, com tanto calor como "o primogênito entre muitos irmãos" (Rom 8, 29), que de Belém ao GóIgota pregou, com o seu exemplo mais do que com as suas palavras, a grande e universal fraternidade.

39. Sobre o Natal de hoje adensa-se escura nuvem. Enquanto nos povos se torna cada vez mais ansioso o anelo de paz, em grau não menor se patenteia nos seus dirigentes a impossibilidade de satisfaze-los pelos meios humanos. - Os esforços honestos de uns para a consecução de uma paz equânime e o sistemático propósito de outros por impedir-lhe o advento, sugere-Nos a imagem de um perigoso jogo de azar, do qual dependerá a fortuna ou a ruína. Nas assembléias humanas insinua-se solertemente o espírito do mal, "o anjo do abismo" (Apoc 9, 11), inimigo da verdade fomentador de ódios, negador e destruidor de todo sentimento fraternal. Crendo próxima a sua hora, tudo empreende para apressá-la.