Pio XII

RADIOMENSAGEM DE NATAL DE 1946

O CAMINHO DA PAZ


A VOZ DA CONSCIÊNCIA

1. Houve jamais na história do gênero humano, na história da Igreja, um Natal e um Ano Novo, em que, de forma mais viva que no presente, arda nos corações e se manifeste a ânsia de ver desaparecer o contraste entre a pacífica mensagem de Belém e as agitações interiores e exteriores de um mundo que, com tanta freqüência, abandona o reto caminho da verdade e da justiça?

2. A Humanidade, apenas saída dos horrores de uma guerra cruel, cujas conseqüências ainda a enchem de aflição, contempla estupefata o abismo aberto entre as esperanças de ontem e as realizações de hoje, abismo que esforços, ainda os mais tenazes, dificilmente logram encerrar, porque o homem, que é capai de destruir, não é sempre por si só idôneo a restaurar.

3. Há já quase dois anos que se calou o ribombar do canhão. O jogo das armas nos campos de batalha deu a uma das partes beligerantes uma vitória fulgurante, e à outra, uma derrota sem precedentes. Poucas vezes na história do mundo havia a espada traçado uma linha divisória tão nítida entre vencedores e vencidos. - já passou a embriaguez jubilosa e exuberante da vitória. As inevitáveis dificuldades manifestaram-se com toda a sua crueza. - E como se manifestaram elas! Por cima de todos os desígnios e de todas as disposições humanas está a palavra do Senhor: "Ex fructibus eorum cognoscetis eos" (Mt 7, 20). Pelos seus frutos os conhecereis.

4. Uma coisa fica fora de dúvida: os frutos da vitória e suas repercussões não só têm sido até agora indizivelmente amargos para os vencidos, mas também se têm feito sentir como fonte de múltiplas ânsias e de perigosas divisões entre os vencedores. -Os reflexos destas divisões foram-se sucessivamente acentuando cada vez mais, até ao ponto de ninguém que ame verdadeiramente a Humanidade, e menos ainda a Igreja de Cristo, sempre solícita no cumprimento da sua missão, poder cerrar os olhos ante semelhante espetáculo.

5. A Igreja, enviada pelo divino Salvador a todos os povos para conduzi-los à salvação eterna, não pretende intervir e tomar partido nas controvérsias sobre matérias puramente terrenas. - Ela é Mãe, e não peçais a uma mãe que favoreça ou se oponha a um ou a outro de seus filhos. Todos devem encontrar e experimentar igualmente nela aquele amor perspicaz e generoso, aquela íntima e inalterável ternura que dá força aos filhos fiéis para marchar com passo mais firme pelo largo caminho da verdade e da luz e inspira aos extraviados e errantes a ânsia de acolher-se de novo à sua direção maternal.

6. Talvez nunca a Igreja de Cristo, nunca seus ministros e seus fiéis de toda a classe e condição tenham tido tanta necessidade, como agora entre as angústias dos tempos presentes, ante as quais parecem fenecer as dolorosas vicissitudes do passado, deste amor luminoso, sempre disposto ao sacrifício, que não conhece fronteiras na terra nem prejuízos humanos.

7. Somente, pois, o espírito de caridade e o sagrado dever do Nosso apostólico ministério Nos fazem abrir os lábios nesta' véspera de Natal; só eles Nos induzem a dirigir-Nos ao mundo inteiro e a confiar às ondas etéreas, para que a levem até aos confins da terra, a expressão de Nossas solicitudes e de Nossos temores, de Nossas preces e de Nossas mais ardentes esperanças, na certeza de que muitos corações nobres -e compreensivos, mesmo fora da comunhão católica, se farão eco deste Nosso grito de angústia e Nos prestarão a sua eficaz colaboração.

8. Não temos intenção de criticar, senão de estimular. Não de acusar, senão de socorrer. Movem Nosso coração, e quiséramos reavivá-los tia alma dos que Nos escutam, desígnios de paz e não de aflição (Jer 29, 11). - Não ignoramos que as Nossas palavras e as Nossas intenções correm perigo de ser mal interpretadas ou desfiguradas com mira na propaganda política. - Mas a possibilidade de tais comentários errôneos ou malévolos não poderia cerrar Nossos lábios. Ter-Nos-íamos por indignos de Nosso oficio e da cruz que o Senhor colocou sobre os Nossos débeis ombros, creríamos atraiçoar as almas, que esperam de Nós a luz da verdade e um guia seguro, se, para evitar sinistras interpretações, hesitássemos fazer, numa hora tão crítica, tudo o que pudéssemos para despertar as consciências adormecidas e chamá-las ao cumprimento dos deveres da santa milícia de Cristo.

9. Nenhum direito de veto, venha de onde vier, poderia prevalecer contra o preceito de Jesus Cristo: "Ide e ensinai". Com inquebrantável obediência ao divino Fundador da Igreja, Nos esmeramos e continuaremos a esmerar-Nos até onde cheguem Nossas forças, no cumprimento de Nossa missão de defensor da verdade, de tutor do Direito e de propugnador dos eternos princípios da humanidade e do amor. Bem pode ser que no exercício deste dever topemos com resistências e incompreensões. Mas conforta-Nos a recordação do que aconteceu ao próprio Redentor e aos que seguiram suas pisadas, e mais uma vez Nos lembra o humilde, mas confiante pensamento do Apóstolo S. Paulo: "Mui pouco se me dá o ser julgado em qualquer juízo humano, pois o que me julga é o Senhor" (1 Cor 4, 3-4).