CAUSA DA DECADÊNCIA DE NOSSO TEMPO: A "INSINCERIDADE"

7. O estigma que marca a fronte do nosso tempo e é causa de desagregação e de decadência, é a tendência cada vez mais manifesta à "insinceridade". Ausência de verdade, que não é somente um expediente ocasional, um recurso para fugir a um impasse em momento de imprevistas dificuldades ou de obstáculos inesperados. Não! Ela se nos depara atualmente como que elevada a sistema, indicada como uma espécie de estratégia na qual a mentira, o falseamento da palavra e dos fatos, o engano, tornaram-se armas clássicas de ofensiva, que alguns manejam com mestria, orgulhosos de sua habilidade; tanto o olvido de todo senso moral é, aos seus olhos, parte integrante da moderna técnica na arte de formar a opinião pública, de dirigi-la e de submetê-la ao serviço de sua política, resolvidos que estão a triunfar a toda custa, na luta de interesses e de opiniões, de doutrinas e de supremacias.

8. Não temos o propósito de descrever aqui especificadamente as ruínas produzidas por este torneio de "insinceridade" na vida pública; temos, porém, o dever de abrir os olhos aos católicos de todo o mundo - e também a quantos têm comum conosco a fé em Cristo e num Deus transcendente - acerca dos perigos que este predomínio da falsidade faz correr a Igreja, a civilização cristã, todo o patrimônio religioso e também o simplesmente humano, que há dois milênios vem proporcionando aos povos a substância de sua vida espiritual e de sua real grandeza.

9. Como outrora Herodes, ansioso de fazer assassinar _ o Menino de Belém, dissimulou sob a máscara da devoção o seu propósito, procurando transformar os Magos, de coração reto, em espiões inconscientes, assim os seus modernos imitadores empregam todos os esforços para ocultar aos povos seus verdadeiros desígnios e torná-los ignaros instrumentos de seus fins. - Alas; uma vez conquistado o poder, apenas se sentem senhores absolutos das rédeas, deixam pouco a pouco cair a máscara e passam progressivamente da opressão da dignidade e da liberdade humanas à supressão de toda sã e independente atividade religiosa.

10. Ora, perguntamos Nós a todas as pessoas honestas: Como é possível à humanidade curar-se; como pode surgir, dos erros e agitações da torva hora presente, uma "nova ordem", digna deste nome, se os limites entre amigo e inimigo, entre o sim e o não, entre a fé e a incredulidade estão cancelados e deslocados?

11. A Igreja, repleta sempre de caridade e de bondade para com as pessoas dos transviados, fiel no entanto à palavra de seu Divino Fundador, que declarou: "Quem não está comigo, é contra mim" (Mt 12, 30). não pode fugir ao dever de denunciar o erro, de arrancar a máscara dos "fabricantes de mentiras" (Job 13, 4), que se apresentam, lobos vestidos de peles de cordeiros (Mt 7, 15), como precursores e iniciadores de uma nova época de felicidade, e de advertir os fiéis que se não deixem desviar do caminho reto nem iludir por falazes promessas.

12. A Nossa posição, em frente aos dois campos, é despida de qualquer preconceito, de qualquer preferência para com este ou aquele povo, por qualquer bloco de nações, como está alheia a qualquer consideração de ordem temporal. Estar com Cristo ou contra Cristo: eis a questão.

13. Vós compreendereis facilmente, portanto, quanto Nos é doloroso o ver uma propaganda hostil desnaturar os Nossos pensamentos é palavras, exacerbar os espíritos, impedir as pacíficas trocas de idéias e aprofundar o abismo que de Nós separa tantas almas, remidas pelo sangue e pelo amor do mesmo divino Sa!vador. Reconhece-se, no fundo de tudo isto, sempre a mesma duplicidade, desejada e friamente utilizada como a mais penetrante arma contra a justiça e a verdade, para impedir a reaproximação, a reconciliação e a paz.

14. A inevitável conseqüência deste estado de coisas é a cisão da humanidade em grupos poderosos e adversários, cuja suprema lei de vida e de ação é uma desconfiança fundamental e invencível, que é ao mesmo tempo um trágico paradoxo e a maldição do nosso tempo.

15. Cada qual das partes contrárias se julga obrigada a manter essa desconfiança como uma necessidade de elementar cautela. E eis que, por este mesmo fato, ergue-se uma gigantesca muralha a tornar vão todo esforço para proporcionar à desalentada família humana os benefícios de uma paz verdadeira.

16. E não pudemos, acaso, ainda no curso das últimas semanas, palpar com a mão os efeitos dessa reciproca desconfiança, ao ver uma tão importante Conferência das Grandes Potências atingir o término sem que conseguisse qualquer progresso essencial e definitivo no caminho da paz, que ansiosamente dela esperávamos?

17. Para sair destas estreitezas, a que o culto da "insinceridade" conduziu o mundo, só uma senda é possível: o retorno ao espírito e à prática de uma veracidade retilínea.

18. Ninguém, hoje - seja qual for o campo ou partido social ou político a que pertença - que pretenda fazer valer, na balança do destino dos povos, no presente ou no futuro, o peso de suas convicções e de seus atos, tem o direito de mascarar seu rosto, de querer aparecer como não é, de recorrer à estratégia da mentira, da constrição, da ameaça, para restringir os honestos cidadãos de todos os países no exercício de sua justa liberdade e de seus direitos civis.

19. Nós vos dizemos, portanto, diletos filhos e filhas: Amanhã celebraremos a Natividade d'Aquele de cuja boca saiu um dia o grito: "peritas liberabit vos" (Jo 8, 32): a verdade (que é a sua doutrina) vos fará livres! Mas talvez este grito jamais tenha ressoado tão forte como o será hoje, num mundo faminto de paz, que sente pesar sobre si o jugo da mentira.

20. E a Ele, que se encarnou para servir a todos de "caminho, verdade e vida", responda a suplicante oração de toda a Cristandade, para que a verdade reencontre o caminho dos corações dos dirigentes dos povos, dos quais um sim ou um não pode determinar a sorte do mundo; e com a verdade refulja sobre a terra, não uma enganadora miragem, mas a estrela luminosa da divina paz de Belém.