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25. Quem pondera à luz da razão e da fé os fundamentos e os fins
da vida social que Nós acabamos de traçar em breves linhas e os
contempla na sua pureza e altura moral pelos seus benéficos frutos em
todos os campos, não pode deixar de se persuadir dos princípios
poderosos de ordem e pacificação que as energias, canalizadas para
grandes ideais e resolvidas a enfrentar os obstáculos, poderiam dar,
ou, digamos melhor, restituir a um mundo internamente abalado, quando
viessem a destruir as barreiras intelectuais e jurídicas, criadas
pelos preconceitos, erros, indiferença e por um longo processo de
secularização do pensamento, do sentimento e da ação que terminou
por separar e subtrair a cidade terrena à luz e à força da cidade de
Deus.
26. Hoje mais do que nunca, ressoa a hora de reparar, de sacudir a
consciência do mundo do grave letargo em que o fizeram cair os tóxicos
das falsas idéias, amplamente difundidas; tanto mais que, nesta hora
de esfacelamento material e moral, o conhecimento da fragilidade e
inconsistência de qualquer ordenação puramente humana está a
desenganar ainda mesmo aqueles que, em dias aparentemente de
felicidade, não sentiam, em si e na sociedade, a falta de contacto
com o eterno e não consideravam esta falta como um defeito essencial
das suas construções.
27. Isto que aparecia claro ao cristão que, profundamente crente,
sofria pela ignorância dos outros, patenteia-nos com maior clareza o
fragor da espantosa catástrofe do presente conflito, a revestir a
terrível solenidade dum juízo universal, mesmo aos ouvidos dos
tíbios, dos indiferentes e dos inconsiderados: uma verdade antiga que
se manifesta tragicamente em formas sempre novas e vai retroando de
século em século,, de povo em povo, pela boca do Profeta:
"Omnes qui te derelinquunt, coafundenrecedentes a Te in terra
scribentur: quoniam de reliquerunt venam aquarum viventium, Dominum"
(Jer 17, 13).
28. O preceito da hora presente não são lamentos, mas ação;
não lamentos sobre o que foi ou o que é, mas reconstrução do que
surgirá e deve surgir para bem da sociedade. Pertence aos membros
melhores e mais escolhidos da cristandade, penetrados por um entusiasmo
de cruzados, reunirem-se em espirito de verdade, de justiça e de
amor, ao grito de "Deus o quer", prontos a servir, a
sacrificar-se, como os antigos cruzados. Se então se tratava da
libertação da terra santificada pela vida do Verbo de Deus
Encarnado, hoje trata-se, se assim podemos falar, de uma nova
travessia, superando o mar dos erros do dia e do tempo, para libertar
a terra santa espiritual, destinada a ser a base e o fundamento das
normas e leis imutáveis para as construções sociais de interna e
sólida consistência.
29. Para fim tão alto, Nós, desde o presépio do Príncipe da
Paz, confiados em que a sua graça se difundirá em todos os
corações, dirigimo-Nos a vós, amados filhos, que reconheceis e
adorais em Cristo o vosso Salvador, a todos aqueles que estão unidos
conosco, ao menos, pelo vínculo espiritual da fé em Deus, a todos
finalmente quantos anelam por se libertar das dúvidas e dos erros,
ansiosos de luz e de guia; exortamo-vos com encarecida insistência
paterna não só a compreender intimamente a seriedade angustiosa da
hora presente, mas também a meditar as suas possíveis auroras
benéficas e sobrenaturais, e a unir-vos e trabalhar juntos pela
renovação da sociedade em espirito e em verdade.
30. Objeto essencial desta cruzada, necessária e santa, é que a
estrela da paz, a estrela de Belém, desponte de novo sobre toda a
humanidade, com o seu brilho rutilante, com a sua consolação
pacificadora, como promessa e auspicio de um futuro melhor, mais
fecundo e mais feliz. E' bem verdade que o caminho desde a noite até
manhã luminosa é comprido; mas são decisivos os primeiros passos
pela senda que leva insculpidas sobre as suas cinco primeiras pedras
miliárias as máximas seguintes:
A. Dignidade e direitos da pessoa humana.
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31. Quem deseja que a estrela da paz desponte e se estabeleça sobre
a sociedade, concorra pela sua parte em restituir à pessoa humana a
dignidade que Deus lhe concedeu desde o princípio; oponha-se à
excessiva aglomeração dos homens, ao modo de multidões sem alma; à
sua inconsistência econômica, social e política, intelectual e
moral; à sua falta de princípios sólidos e de profundas
convicções; à sua superabundância de excitantes dos sentidos e
instintos e à sua volubilidade; favoreça com todos os meios
lícitos, em todos os campos da vida, aquelas formas sociais em que se
encontra possibilidade e garantia para uma plena responsabilidade
pessoal, tanto na ordem terrestre como na eterna; defenda o respeito e
atuação prática dos seguintes direitos fundamentais da pessoa: o
direito a manter e desenvolver a vida corporal, intelectual e
moral e particularmente o direito a uma formaçao e educação
religiosa; o direito ao culto de Deus, particular e público,
incluindo a ação da caridade religiosa; o direito, máxime, ao
matrimonio e à consecução do seu fim; o direito à sociedade
conjugal e doméstica; o direito ao trabalho como meio indispensável
para manter a vida familiar; o direito à livre escolha de estado,
mesmo sacerdotal e religioso; o direito ao uso dos bens materiais,
consciente dos seus deveres e das limitações sociais.
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B. Defesa da unidade social e particularmente da família.
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32. Quem deseja que a estrela da paz desponte e se estabeleça sobre
a sociedade, rejeite qualquer forma de materialismo, que não vê no
povo mais que um rebanho de indivíduos, os quais, desunidos e sem
consistência interna, vêm a ser considerados como matéria de
domínio e de arbitrariedade; Procure compreender a sociedade como uma
unidade interna, crescida e amadurecida da Providência, unidade que
tenda, no sob o governo espaço que lhe foi assinalado, em
conformidade com as suas qualidades particulares, mediante a
colaboração das diferentes classes e produções, aos fins eternos e
sempre novos da cultora e da religião; defenda a indissolubilidade do
matrimônio; dê à família, célula insubstituível do povo,
espaço, luz e ar, para que ela possa atender à missão de perpetuar
nova vida e de educar os filhos num espírito que corresponda às
próprias e verdadeiras convicções religiosas; conserve e fortifique
ou reconstitua, segundo as suas forças, a própria unidade
econômica, espiritual, moral e jurídica; trabalhe por que das
vantagens materiais e espirituais da família participem também os
criados; pense em procurar a cada família um lar, onde uma vida
familiar, sã material e moralmente, consiga patentear-se em todo o
seu vigor e valor; procure que os locais de trabalho e as habitações
não estejam tão separados que tornem o chefe da família e educador
dos filhos quase que um estranho à própria casa; trate, sobretudo,
de que entre as escolas oficiais e a família renasça aquele vínculo
de confiança e de ajuda mútua, que em tempos idos sazonou frutos tão
benéficos e que hoje em dia deu lugar à desconfiança nas terras onde
a escola, sob o influxo do materialismo, envenena e destrói o que os
pais tinham instilado na alma dos filhos.
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C. Dignidade e prerrogativas do trabalho.
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33. Quem deseja que a estrela da paz desponte e se estabeleça sobre
a sociedade, dê ao trabalho o posto que Deus, desde o princípio,
lhe marcou. Gomo meio indispensável para o domínio do mundo, que
Deus quis para a sua glória, todo trabalho possui uma dignidade
inalienável e, ao mesmo tempo, em correlação íntima com o
aperfeiçoamento da pessoa; nobre dignidade e prerrogativa do
trabalho, que em nenhum modo conseguiu aviltar nem fadiga nem peso,
que devem suportar como efeitos do pecado original em obediência e
submissão à vontade de Deus. Quem conhece as grandes Encíclicas
dos Nossos Predecessores e as Nossas Mensagens precedentes, não
ignora que a Igreja não hesita em deduzir as conseqüências
práticas, que derivam da nobreza moral do trabalho, e apoiá-las com
toda a força da sua autoridade. Estas exigências compreendem, além
dum salário justo, suficiente para as necessidades do operário e da
família, a conservação e o aperfeiçoamento de uma ordem social,
que torne possível, a todas as classes do povo, uma propriedade
particular segura, se bem que modesta, favoreça uma formação
superior para os filhos das classes operárias, particularmente dotados
de inteligência e de boa vontade; promova o cultivo e a atividade
prática do espírito social na vizinhança, nas povoações, na
província, no povo e nas nações, que, mitigando os contrastes de
interesses e de classes, impeça nos operários a impressão de
afastamento com a certeza confortante duma solidariedade genuinamente
humana e cristãmente fraterna.
34. O progresso e o grau das reformas sociais improrrogáveis
depende das possibilidades econômicas de cada nação. Só com um
intercâmbio inteligente e generoso de forças entre fortes e fracos é
que será possível levar a cabo uma pacificação universal, de forma
que não persistam fofos de incêndio e de infecção, dos quais se
poderão originar novas desgraças. Sinais evidentes levam-nos a
pensar que no fermentar de todos os preconceitos e sentimentos de
ódio, inevitável mas triste conseqüência desta aguda psicose
bélica, não se tenha extinguido nos povos a consciência da sua
intima e reciproca dependência no bem e no mal, antes se tornasse mais
viva e ativa. Não é, porventura, verdade que os pensadores
profundos vêem cada vez mais claramente que é na renúncia ao egoísmo
e ao isolamento nacional que se encontra o caminho para a salvação
universal, prontos como estão para pedir aos seus povos uma parte
pesada de sacrifícios, necessários para a pacificação social de
outros povos? Oxalá esta Nossa Mensagem de Natal, dirigida a
todos os que estão animados de boa vontade e de coração generoso os
anime e aumente as fileiras da Cruzada social junto de todas as
nações! E queira Deus conceder à sua bandeira pacífica a vitória
de que é digna a sua nobre empresa!
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D. Reintegração da ordenação jurídica.
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35. Quem deseja que a estrela da e se detenha sobre funda
reintegração mento jurídico de paz desponte a vida social, coopere
numa profunda reintegração da ordenação jurídica. O sentimento
juridico de nossos dias tem sido frequentemente alterado e perturbado
pela proclamação e prática dum positivismo e utilitarismo
subordinados e vinculados ao serviço de determinados grupos, classes e
movimentos, cujos programas traçam e determinam o caminho à
legislação e à prática forense.
O saneamento desta situação torna-se possível, quando desperta a
consciência duma ordem jurídica, baseada no supremo domínio de Deus
e ao abrigo de todo arbítrio humano; consciência de uma ordem que
estenda a sua mão protetora e vindicativa mesmo sobre os invioláveis
direitos do homem e os proteja contra os ataques de todo poder humano.
Da ordem jurídica, querida por Deus, dimana o inalienável direito
do homem à segurança jurídica e, consequentemente, a uma esfera
concreta de direito, protegida contra todo ataque arbitrário.
As relações do homem com o homem, do indivíduo com a sociedade, a
autoridade e os deveres civis; as relações da sociedade e da
autoridade com os particulares, têm de colocar-se sobre uma clara
base jurídica e, se for necessário, debaixo da tutela da autoridade
judicial. Isto supõe:
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a) Um tribunal e um juiz que tomem as suas diretrizes de um direito
claramente formulado e circunscrito;
b) normas jurídicas claras que não se possam sofismar com apelações
abusivas para um suposto sentimento popular ou com meras razões de
utilidade;
c) o reconhecimento do princípio segundo o qual também o Estado,
com os seus funcionários e organizações que dele dependem, está
obrigado a reparar e revogar medidas que lesem a liberdade, a
propriedade, a honra, o adiantamento e saúde dos indivíduos.
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E. Concepção do Estado segundo o princípio cristão.
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36. Quem deseja que a estrela da paz nasça e se detenha sobre a
sociedade humana, colabore para que surja uma concepção e prática
estadual fundadas sobre uma disciplina racional, uma nobre humanidade e
um responsável espirito cristão;
ajude a que o Estado e seu poder sornem ao serviço da sociedade, ao
pleno respeito da pessoa humana e da sua atividade em ordem à
consecução do seu fim eterno; esforce-se e trabalhe por dissipar os
erros que tendem a extraviar o Estado e seu poder da senda moral, a
desatá-los do laço eminentemente ético que os une à vida individual
e social e a fazer-lhes rechaçar ou ignorar na prática a essencial
dependência que os une á vontade do Criador; promova o
reconhecimento e a difusão da verdade que ensina, ainda no campo
terreno, como o sentido profundo e a última legitimidade moral e
universal do "reinar" é "servir".
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