VI. UM SANTO VEM A LIMA

Passaram-se tempos. Na tarde de 23 de Agosto de 1601 vigília da festa de S. Bartolomeu - Mariana, a criada índia, voltava pela rua de S. Domingos, trauteando uma animada canção. De manhã, bem cedo, deixara ela a casa de seu amo Gaspar, com dois enormes cestos de flores. Os cestos voltavam vazios, e na bolsa tilintavam as moedas de prata. Fora um dia dos melhores no mercado. Cada uma das flores alcançara excelente preço.

- Aposto que não há ninguém como a senhorita Rosa, quando se trata de cultivar flores, - pensava ela. - Sua mãe vai ficar bem satisfeita com o resultado de hoje.

Quando, porém, Mariana abriu a porta de trás e percorreu a vasta habitação não viu sinal nem de Maria Oliva nem das crianças. Não havia em casa ninguém a quem pudesse contar as boas novas.

"Agora me lembro", resmungou, "a família toda foi à igreja dos franciscanos. Aquele novo pregador, padre Francisco Solano, prega lá hoje. Já começam a chamar o bom homem de "São Francisco", por causa das coisas extraordinárias que tem feito".

Mariana tirou o largo chapéu de palha e dirigiu-se para a cozinha. Dai a poucos minutos ela teria de começar o jantar. O dia já ia declinando -aquele raro dia de sol, pois em Lima no mês de Agosto poucos dias de sol havia. Nisto a cidade não se parecia nada com Arequipa e Cuzco, outras cidades peruanas lá em cima, sobre os Andes. Em Agosto, geralmente, a costa é úmida e nevoenta, enquanto nas montanhas o sol brilha esplêndido dia após dia.

"Faço fogo num instante e isso há de ajudar a livrar da friagem da noitinha". - disse Mariana para si. - "Quanto a este dinheiro, é melhor colocá-lo num lugar seguro. E' a maior quantia que deram até hoje as flores da senhorita Rosa".

Um canto melodioso interrompeu Mariana no seu cuidado de recontar e guardar as moedas de prata. Alguém estava cantando lá no fundo do jardim, e intercalando as notas suaves da canção percebia-se o trilo argentino de um rouxinol. Mariana largou o dinheiro e precipitou-se para a porta na ponta dos pés. Ouviam-se distintamente as palavras do cântico:

Tu cantas a teu Criador,
Eu canto ao meu Amor.
Para ambos nós é deleite
Louvar do Céu o Senhor!

"Então a senhorita Rosa estava aqui o tempo todo" pensou Mariana. -"Eu devia ter adivinhado. Ela passa todo o tempo livre naquele nicho que construiu".

Não levou muito tempo e o fogo brilhou na grande lareira. Mariana deu uma corrida ao poço perto da porta dos fundos, encheu de água a chaleira e pô-la ao fogo para ferver. Rosa ainda estava cantado, acompanhada pelo rouxinol, quando ela, finalmente, se meteu pelo caminho areento, em direção ao fundo do jardim. O céu estava escurecendo, e uma leve brisa soprava através dos galhos das árvores altas. Mariana teve u m arrepio.

- D. Rosa! Está na hora de aprontar a janta!

Não houve resposta. A pobre mulher deu um suspiro e pôs-se a procurar o caminho na escuridão cada vez mais densa. O jardim da família Flores, cheio de arbustos e flores, era um lugar muito agradável de dia, mas à noite o caso era diferente. As grandes folhas pendentes das bananeiras pareciam torcidas e ameaçadoras. As oliveiras e figueiras apareciam sombrias e estranhas. Muitas vezes Maria de Oliva se queixara de que o jardim não era lugar seguro à noite.

Rosa, entretanto, não se amedrontava pela escuridão. Três anos antes, quando ela tinha apenas onze anos, construíra com suas próprias mãos um pequeno oratório num sítio distante o mais possível da casa. Era, na verdade, uma espécie de cabana feita de ramos e galhos curvados; no interior pusera um altarzinho com um crucifixo e velas. O oratoriozinho, dissera ela á família, era um bom lugar para se trabalhar e rezar.

"A maior parte das meninas de quinze anos - pensava Mariana - andam ansiosas por se divertirem. D. Rosa é o contrário. Seu maior cuidado são ainda as almas, como salvá-las do inferno, como tornar-se mais agradável a Deus - aí está o que lhe enche os pensamentos".

Estava tão escuro como úmido, quando, por fim, Mariana parou. Lá, escondido entre as bananeiras, descobriu ela o oratoriozinho de Rosa. Alarmado, o rouxinol soltou ainda uma nota. Mariana afastou para um lado a folhagem de um galho.

- Senhorita Rosa! Não sabe que pode apanhar um resfriado mortal, sentada aí nesse lugar úmido? Então não pode rezar em outro lugar qualquer?

Da sombra de sua ermidazinha veio o riso claro de Rosa. Era um riso musical, quente e melodioso, e no mesmo instante Mariana se arrependeu de ter falado tão asperamente.

- Estou muito bem, Mariana. O passarinho e eu...

- Bem que eu ouvi. Mas está na hora de jantar. Seria melhor guardar suas cantigas para amanhã.

Rosa abandonou o acanhado abrigo.

- Acho que está esfriando, Mariana. Não o tinha percebido, pois estive tão ocupada a tarde toda. Primeiro costurei um pouco. Depois, quando ficou escuro demais, o passarinho veio e...

Mariana deu uma olhadela no oratório. Uma cruz de madeira estava encostada na parede. Era da altura de Rosa. A boa criada sentiu calafrio, ao verificar que Rosa estivera fazendo outras coisas, além de costurar e cantar hinos. Uma parte da tarde ela passara carregando a pesada cruz pelo jardim, em lembrança da caminhada dolorosa de Nosso Senhor ao Calvário. Era um exercício que ela praticara alguns anos - um método especial de fazer a Via Sacra, quando se achava sozinha.

- Vamos embora, D. Rosa. Eu preciso de ajuda no jantar.

A menina acenou que sim e pegou um pano grande de linho. Era uma toalha de altar que Maria de Oliva lhe pedira para embainhar. O trabalho estava pronto desde cedo.

No caminho para casa, Rosa notou alguém andando na cozinha, perto da janela.

- Mamãe deve ter voltado já da igreja, - disse.

- Não havia de me admirar, D. Rosa. Ela foi há tanto tempo. Provavelmente o Padre Francisco pregou outro de seus lindos sermões.

- Ele deve ser maravilhoso!

- Daqui a pouco saberemos. Mas não corra dessa maneira! Pode tropeçar numa pedra!

Rosa aquiesceu. A escuridão, que enchia todo o jardim, pouco lhe importava. Conhecia palmo a palmo o lugar. Entretanto, diminuiu os passos. Não seria caridoso deixar Mariana descobrir sozinha o caminho naquelas trevas.

- Eu gostaria de ter ido à igreja esta tarde, Mariana. Todo mundo em Lima fala sobre a santidade do Padre Francisco. Ele é missionário há onze anos, e dizem que tem convertido milhares de índios.

- Então, por que não foi ouvi-lo?

- Eu tinha que embainhar esta toalha para mamãe.

- Ora, minha filha, isso podia esperar, e sua mãe só teria de ficar muito contente...

- Eu quis fazer um pequeno sacrifício.

- Sacrifício! Dona Rosa, se eu escuto outra vez esta palavra . . .

- Não fique zangada, Mariana. Eu gosto de fazer sacrifícios. E' a minha maneira de ser útil aos outros. As vezes penso que é para isto que nasci -para que possa rezar e sofrer pelos outros.

- Se fizer sacrifícios demais, não há de durar muito neste mundo.

Rosa esboçou um sorriso.

- Não me importa. Sei que ficarei quanto tempo Deus quiser. E agora, Mariana, vou contar-lhe um segredo.

- O quê?

- Amanhã é a festa de S. Bartolomeu...

- Isto não é segredo.

- Não, mas o que vou dizer é. Quando eu morrer, acho que vai ser na festa de S. Bartolomeu. Todos os anos, quando se aproxima o 24 de Agosto, eu fico tão animada. O' Mariana, deve ser esplêndido viver no Céu e ver Deus para sempre.

- Dona Rosa, não deve dizer tais coisas.

- E por que não? Muita gente fica esperando ansiosa o dia do aniversário, mas para mim acho mais grato prever e ansiar pelo dia da morte. E' com efeito um grande dia, Mariana. O dia em que começa a verdadeira vida.

A índia fez um grande sinal da cruz.

- Não deixe sua mãe ouvir essas esquisitices de morrer no dia de S. Bartolomeu. Não lhe agradaria nada, dona Rosa. Além disso, não é correto fazer a gente pensar que a senhora conhece o futuro. Isso compete a Deus.

Rosa acenou com a cabeça, concordando.

- Foi ele quem me disse - explicou simplesmente.

E era verdade. Muitas vezes, no âmago de sua alma, Rosa ouvia coisas espantosas. Uma vez era Nosso Senhor que lhe falava, outras era a Virgem Maria, ou então S. Catarina de Sena. E sempre davam-lhe a entender que os homens e mulheres devem fazer penitência por seus pecados. Pois uma alma com uma manchinha, embora insignificante, não pode entrar no Céu. Ou o pecador satisfaz por si mesmo, no purgatório ou neste mundo, ou alguém em lugar dele: e era isto que Rosa entendia com ser útil aos outros.

"Eu quero satisfazer pelos pecados dos outros", dizia ela; "Senhor, dizei-me o que quereis que eu faça".

Mariana e sua patroazinha atingiam já a porta dos fundos, quando um grito as fez estacar subitamente. Por cima do alto muro de tijolos que resguardava da rua o jardim dos Flores, viera o grito lamentoso de uma mulher oprimida pelo sofrimento. Rosa perscrutou ansiosa a escuridão.

- Deve ser alguém ferido, Mariana. O grito veio exatamente do portão.

- Mãe de Deus, filha, não vá ver o que é. Nada há que dizer, seja lá o que for.

- Mas não podemos ficar aqui sem fazer nada.

Rosa pôs-se a correr em direção ao portão, e logo outro grito atravessou a noite. Ouvindo o distúrbio, Maria de Oliva abriu a janela da cozinha.

- Que está acontecendo ai fora, Mariana? Por que não está aprontando o jantar?

A criada juntou as mãos nervosamente.

- Dona Rosa saiu à rua, senhora. Ela... ela pensa que há alguém ferido.

- Saiu à rua! A esta hora?

No mesmo instante o portão abriu-se rangendo nos gonzos e uns passinhos leves ecoaram na areia do caminho.

- Está tudo bem, mamãe. Esta pobre mulher deu uma queda e feriu-se no joelho.

Maria de Oliva inclinou-se para fora da janela, e ficou quase sem fala ao ver Rosa caminhando vagarosamente para casa e ajudando uma índia que se lhe apoiava ao ombro.

- Ela está meio morta de fome, e machucada, mamãe. E está com frio, também.

Maria de Oliva olhou desalentada para o jardim escurecido. A maior parte dos índios em Lima era uma gente suja. Muitos eram doentes, e Rosa não só tocava com suas mãos num deles, mas, pelo visto, ia conduzir a criatura para dentro de casa. A índia estava ferida - vá lá, mas então que fosse para o hospital de Sant'Ana, no outro lado da cidade. Jerônimo de Loaysa, o primeiro Arcebispo, tornara-o acessível a qualquer índio doente.

Maria estava quase dominada de impaciência e aborrecimento. Algo, entretanto, a retinha no íntimo, e pela primeira vez na vida, ela não encontrava palavra para desabafar. Uma hora antes estivera ouvindo o sermão de um frade franciscano. Fora um sermão sobre a caridade. O padre Francisco Solano, de volta de seus recentes trabalhos missionários no Paraguai e na Argentina, não poupara os ouvintes. Não tinha palavras dulçorosas para o egoísmo.

"Ou amais ou não amais o vosso próximo", dissera ele. "Ou nele vedes Nosso Senhor Jesus Cristo ou vosso próprio orgulho. E aquilo que vedes é que indica se ides para o Céu ou para o Inferno. O' meus irmãos! Não vos desvieis jamais de um homem porque é pobre, porque é ignorante, porque tem a pele de outra cor que a vossa! Lembrai-vos, é bem possível que vos estejais desviando de Deus".

Maria de Oliva saiu da janela e foi abrir a porta da cozinha.

- Traz a mulher para dentro - murmurou. - Ao menos podemos dar-lhe uma boa refeição.