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Foi poucas semanas depois, a 10 de Agosto, festa de S. Lourenço, que Rosa ingressou na
Ordem dominicana como terciária. Seu rosto tinha uma expressão radiante, quando ela
ajoelhou-se na capela do Rosário em S. Domingos e ouviu seu confessor, o padre Alonso
Velasquez, iniciar a cerimônia da recepção:
- "O' Senhor Jesus Cristo, que te dignaste revestir o aspecto mortal de nossa humanidade,
suplicamos-te que, em tua grande misericórdia, te seja agradável abençoar estas vestes indicadas
pelos santos Padres para serem usadas como sinal de inocência e humildade, a fim de que aquela
revestida destas vestes seja digna de revestir-se de Ti, Cristo Nosso Senhor".
Rosa contemplou o hábito que o padre Alonso abençoava. Era o hábito dominicano de lã branca,
estendido então sobre o altar - o mesmíssimo modelo usado por Santa Catarina de Sena e outras
santas almas. Daí a poucos minutos passaria ela a usar o alvo vestido ao invés das belas roupas
escolhidas por sua mãe.
O bom Deus abençoava uma pobre menina peruana com a vocação terciária dominicana. Dai a
pouco já não estaria ela sozinha na tarefa de salvar a sua alma e a alma dos outros. As orações
dos dominicanos -padres, freiras, irmãos leigos, outros terciários - em toda parte se juntariam às
suas de um modo especial.
Rosa fechou os olhos inundada de felicidade, enquanto o padre Alonso a aspergia com água
benta e continuava a oração:
- "Asperja-te também o Senhor com o hissopo, a ti que vais ser agora revestida com o nosso
hábito, para que sejas purificada, e assim limpa e mais branca do que a neve possas aparecer
externamente".
Maria de Oliva, ajoelhada a poucos passos, enxugou as lágrimas. Não era aquilo exatamente que
ela planejara para sua filhinha favorita - uma vida no mundo como membro leigo de uma Ordem
religiosa. Entretanto, que podia ela fazer? A menina recusava-se absolutamente a qualquer idéia
de casamento. O que lhe interessava era salvar almas.
"Talvez ela mude de idéia daqui a algum tempo", - disse a mãe para si, entre soluços. - Talvez
depois de alguns meses ela achará muito dura a vida de terciária.
Mas Rosa de Santa Maria, a nova filha de S. Domingos, sentia-se mais feliz do que nunca. Por
fim palmilhava a mesma senda escolhida por Santa Catarina de Sena cerca de duzentos e
cinqüenta anos antes.
Até D. Gonçalo estava satisfeito, à medida que os meses passaram, de que Rosa tivesse
escolhido o caminho certo. Embora outros homens e mulheres fossem chamados à vida religiosa,
sua vocação era para tornar-se uma santa no mundo. Jamais a instigaria ele a ser freira em
qualquer dos cinco conventos de Lima.
"Deus confiou a esta menina uma tarefa especial" pensou D. Gonçalo. -"Ela será um modelo para
todos que devem alcançar a perfeição sem o auxílio do claustro".
A 10 de Agosto de 1607, Rosa voltou à capela do Rosário na igreja de S. Domingos. Terminara
seu ano de prova como terciária. Quereria ela continuar aquela vida? perguntou o padre Alonso
Velasquez. Queria ela fazer uma promessa de viver de acordo com as regras da Ordem
-dominicana, até à morte?
A jovem, então com 21 anos, não teve a menor dúvida quanto à sua vocação, e, como Rosa de
Santa Maria, fez a necessária promessa. Tornara-se efetivamente membro da Ordem dominicana.
Tempos passaram-se. Quanto às aparências exteriores Rosa parecia ter mudado muito pouco:
continuava a viver sossegadamente em casa, cultivando suas flores e fazendo os finos lavores de
agulha para as ricas senhoras de Lima. Uma mudança, entretanto, surgira. Pouco a pouco,
recebendo devotamente a santa Eucaristia, suportando com paciência dificuldades e aflições, a
filha de Gaspar estava tornando-se lentamente mais semelhante a Cristo. As vezes, quando sua
mãe ralhava, que ela tomava pouco cuidado com a saúde, ela respondia gentilmente:
- A senhora e eu viveremos tanto tempo quanto Deus quiser, mamãe. Quando o trabalho que Ele
nos deu estiver terminado então poderemos preocupar-nos com nossa saúde.
- Quem então vai pensar sobre isto? - perguntou Maria rispidamente. -Será muito tarde!
Rosa alisou as pregas de seu lanoso hábito branco.
- Querida mamãe, a vida é, na verdade, muito simples, quando nos lembrarmos apenas que
somos servas - servas de Deus e de nossos semelhantes.
- Servas! Quem está querendo ser serva? Rosa, este modo de falar é desagradável. Se for assim,
um negro ou um índio vale tanto como um homem branco. E uma pessoa rica e educada não é
melhor do que um ignorante mendigo! E dizer que você fala deste modo, depois de tudo que fiz
por você!...
Rosa respirou.
- Mamãe, por favor, não se zangue! Eu estou só tentando ajudar um pouco. Afinal, se nós
realmente acreditamos que Deus é nosso Pai e Seu Filho, nosso Irmão...
- Chega de sermão, senhorita! Desde que você é terceira, ficou piedosa de mais para mim. Só
quero que se lembre disto: Não me fale mais em ser serva. Seu pai pode ser pobre, mas pertence
a uma boa família. E eu também!
O fracasso desta e outras conversações provaram a Rosa o que ela sempre soubera, isto é, que o
consolo para um coração solitário pode ser encontrado na oração. Na oração, a fraca natureza
humana eleva-se em busca de Deus e com seu auxílio torna-se forte. Aflições de toda espécie,
quando a Ele oferecidas em união com os sofrimentos que seu Filho padeceu na terra,
transformam-se em merecimentos de incalculável valor. Este era um dos motivos de haver na
terra tanta tristeza: sem dores, bem poucas almas jamais pensariam em voltar-se para Deus.
"Todo mundo quer ser feliz", - pensava Rosa muitas vezes. - "Para isto fomos criados. Como é
difícil, porém, lembrar-nos que só o maior dos bens - o próprio Deus - pode satisfazer-nos".
No Domingo de Ramos do ano de 1610, Rosa, então com vinte e quatro anos de idade,
dirigiu-se à igreja de S. Domingos para assistir à S. Missa. A cerimônia era longa, com a bênção
dos ramos e a procissão no interior do templo, antes do Santo Sacrifício. Enquanto dois irmãos
leigos terminavam a distribuição das palmas bentas ao povo, o coro rompeu num hino triunfante e
todos se apressaram para tomar parte na procissão.
Rosa hesitou. Por um motivo ou outro ela fora esquecida na distribuição dos ramos viridentes.
Somente ela, de toda gente na igreja, não recebera a palma benta.
"Por quê?" - pensou ela. - Dar-se-á o caso de não ser eu digna de seguir com os outros?"
Afastou, entretanto, essa idéia de desapontamento. Teria sido apenas um descuido. O Irmão
estivera muito atarefado para notá-la. Não haveria também motivo por que ela não se reunisse à
procissão. Embora não tivesse uma palma para levar, podia lembrar-se do primeiro domingo de
ramos, quando Nosso Senhor entrara em Jerusalém entre aclamações de seus jubilantes
seguidores.
Quando o coro terminou o cântico e a longa fila de povo voltou aos lugares, Rosa lançou um
rápido olhar à capela do Rosário. Como amava aquela imagem de Nossa Senhora com o
Menino! Aqui, quatro anos antes, recebera da Mãe Bem-aventurada a aprovação à sua vocação
para a Ordem Terceira dominicana. Naquela tarde domingueira, em que ela se vira forçada a
permanecer de joelhos, uma voz falara em seu coração, e a voz lhe dissera que o trabalho de sua
salvação não devia ser feito num mosteiro. Pelo contrário, havia de ficar no mundo - havia de ser
uma santa no ambiente cotidiano.
"Querida Mãe, obrigada mais uma vez por deixar-me ser uma terciária dominicana", - murmurou
ela. - "E não estou triste porque o Irmão esqueceu-se de dar-me uma palma benta. A palma que
eu na verdade desejo é uma que jamais murchará, aquela que dais aos bem-aventurados no céu".
Enquanto Rosa suspirava esta pequena oração, viu maravilhada que a Mãe bendita sorria e
virava-se .amorosamente para a Criança em seus braços. Ninguém mais na igreja apinhada viu o
milagre, nem ouviu as palavras que o Menino então proferiu - palavras que ecoaram no coração
da jovem como a mais doce música:
"Rosa de meu coração, sê minha esposa!".
Rosa, entretanto, viu e ouviu e seu coração encheu-se de pura alegria. Deus a abençoara
novamente com outro dom maravilhoso! Na igreja que ela tanto amava Ele lhe dizia que ela
estava realmente contada entre as eleitas!
"E' demais para mim!" - murmurou. - "Não sou digna de tanto amor!".
Sabia, contudo, que não se enganara sobre a visão. Ela, uma pobre menina do Peru, escolhida
desde a eternidade para pertencer a Deus, para ser uma de suas amigas bem amadas e para
sempre! Já lera a respeito de favores tais concedidos a outros, incluindo sua amada padroeira,
Santa Catarina de Sena. Agora, por um milagre da graça, a honra inigualável também lhe era
dada.
O resto do dia, Rosa não pôde pensar em outra coisa. Quando Fernando lhe observou que
parecia felicíssima, ela concordou com um aceno.
- E' bem verdade, estou felicíssima. E tenho outro favor a pedir.
O rapaz riu-se francamente.
- Aposto que você quer que eu a leve a algum lugar.
- Não. Desejo somente que você mande fazer um anel para mim.
- Um anel? Você quer uma jóia.
- Isto mesmo. Mas não da loja. Apenas um anel simples, desenhado por você. Fernando, você
fará isso para mim? E' de fato muito importante.
O rapaz perscrutou a fisionomia ansiosa da irmã, e compreendeu que algo fora do comum
acontecera. Durante anos e anos Rosa pensara constantemente nas outras pessoas rezando por
elas, ajudando-as quando estavam doentes, cuidando que o pobre tivesse todas as flores e frutos
que ela podia poupar do jardim. Chegara finalmente a vez em que ela desejava alguma coisa para
si.
- Naturalmente, eu arranjo um anel para você. Quer um de ouro ou de prata? E qual é a sua
pedra preferida?
Rosa hesitou. Ambos aqueles metais eram comuns no Peru, como também diamantes e
esmeraldas, que se encontravam em abundância nas minas dos Andes. Ela podia realmente
possuir um lindo anel e sem muita despesa.
- Eu gostaria de um anel de ouro, Fernando, mas sem pedra alguma. Só um aro simples.
- E que tal um lema gravado? Umas poucas palavras no lado externo, e isto pode ser feito
facilmente.
- Que palavras você sugere?
O moço pensou um momento:
- Que acha destas: "Rosa de meu Coração, sê minha esposa"?
O coração da moça transbordou. Ela nem podia conter sua grande emoção. Sem imaginá-lo, o
irmão fora divinamente inspirado a escolher -as mesmas palavras que ela ouvira na igreja, as
palavras que lhe dirigira naquela manhã o próprio Menino Jesus.
- Então, o que há? Não gosta da minha idéia?
- Admirável, Fernando! Não posso imaginar nada que mais me agrade.
- Ora, viva! Teremos um anel bem simples feito especialmente para você, com aquelas palavras
gravadas na face externa. Conheço também o joalheiro indicado para o trabalho - um velho
amigo meu que não tem tido muitas encomendas ultimamente.
Rosa sorriu agradecida.
- Ele pode fazer o anel já?
- Claro que pode. Em dois dias provavelmente. Vou vê-lo amanhã e levarei um esboço do que
queremos.
Quando ficou novamente só, Rosa dirigiu-se a seu oratoriozinho nos fundos do jardim. Era um
sitio sempre sossegado e aprazível. Só muito raramente passava alguém da família entre as
bananeiras, pois havia muitas aranhas e mosquitos, diziam. Além disso o sol a custo penetrava o
emaranhado da vegetação e galhadas, de modo que o lugar ficava escuro e sombrio.
Rosa, no entanto, nada receava de aranhas e mosquitos. Nunca esses insetos a tinham
incomodado, e pareciam antes pressurosos de demonstrar-lhe amizade. Sempre que ela recitava
o rosário ou suas outras orações os mosquitos zumbiam amigavelmente. Era quase como se eles
também rezassem: Quanto às aranhas, interrompiam suas vagueações e tecelagem para
continuá-las quando a amiguinha dava por terminada sua conversa com Deus.
Rosa, entretanto, nem cogitava desses insetos quando entrou em seu oratório. Pensava antes na
graça maravilhosa que lhe fora dada aquela manhã na igreja dos dominicanos. E havia,
naturalmente, o anel - o lindo anel de ouro que ela usaria sempre para lembrar-se que pertencia a
Nosso Senhor. Como poderia esquecer isto?
"E' domingo de Ramos, - pensou. - Se meu anel estiver pronto quarta-feira, talvez o padre
Alonso possa colocá-lo no sacrário na Quinta-feira Santa. Seria esplêndido".
Sim, seria esplêndido. Mas extraordinário também. Com certeza teria de haver um bocado de
explicações para que o confessor entendesse.
"Farei o que puder", - resolveu ela consigo. - "Nosso Senhor está escondido no Sacrário na
Quinta-feira Santa, e eu quero que meu anel esteja com ele nessa ocasião. No domingo de
Páscoa, quando ele volta cheio de glória, eu receberei o anel e usá-lo-ei até à morte".
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