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Grande excitação produziu no lar dos Flores a notícia de que Rosa aos cinco anos aprendera a
ler e escrever. Ninguém, entretanto, parecia inclinado a crer que o Menino Jesus fora o professor.
- Algumas crianças têm imaginação demais, declarou Maria Oliva. -Receio que nossa Rosa seja
uma delas.
- Você quer dizer Isabel, não é? - disse sua mãe incisivamente. - Pois é este o seu nome
verdadeiro. Quanto a mim, sinto que algo de verdade pode haver no que ela diz. Afinal, quem
pode dizer o que Deus fará por uma criança que o ama?
Com o passar dos meses o incidente foi ficando quase esquecido. Se alguém o lembrava, diziam
que era menos uma questão de oração que de habilidade natural. Rosa era uma criança
inteligente. Ela pegara a leitura e a escrita simplesmente, por si mesma, do mesmo modo que
aprendera música. Não sabia ela tocar pequenas melodias na guitarra e na harpa? Não a tinham
ouvido cantar seus próprios versos, lá embaixo no fundo do jardim, quando ela julgava não haver
ninguém por perto? Era tudo tão simples. Realmente, não houvera milagre nenhum. A menina era
brilhante mesmo por natureza.
Rosa, no entanto, sabia a verdade. Por si ela nada era. - Deus é que era tudo. Nunca esqueceria
isto. Pedir-lhe-ia o auxílio toda a vida. Ele havia de ouví-la, como o fizera no caso de aprender a
ler e escrever, exatamente porque ela era tão fraca e desamparada.
O tempo continuou a passar imperturbável. Rosa completou seu sexto aniversário, o oitavo, o
nono, o décimo. Onze eram então os filhos da família Flores. A vasta casa, na rua de S.
Domingos, era um lugar onde não havia solidão. Gaspar Flores, que viera de Porto Rico para
Lima, havia alguns anos, estava achando difícil manter sua numerosa família. Tinha, naturalmente,
um emprego: por algum tempo fora encarregado de fazer armas de fogo e outras para os
destacamentos do exército real da Espanha, estacionados em Lima. Era uma posição vantajosa,
que lhe fora concedida por D. André Furtado de Mendoza, vice-rei do Peru. Mas que de
cuidados não davam onze crianças! Quanto custava alimentá-las e vesti-las!
Um dia em 1597, Gaspar chamou sua mulher. Tinham-Ihe oferecido uma oportunidade: ficar
encarregado de uma mina de prata em Quivi, pequena cidade nas montanhas não longe de Lima.
- Pode-se ganhar mais na mineração que em qualquer outra coisa, - disse ele a Maria. - Vou a
Quivi e ficarei lá alguns meses para ver como vão as coisas. Se eu não gostar do trabalho,
poderei sempre voltar ao antigo emprego.
- Você está certo?
Gaspar riu-se.
- Claro que estou certo. Todo mundo sabe que as espadas e espingardas que faço são as
melhores que se pode encontrar no Peru.
Maria pensou muito tempo sobre a novidade. Por fim informou Gaspar que ela o acompanharia a
Quivi.
- Será esplêndido viver nas montanhas, - disse. - Estamos todos precisando uma mudança da
vida na cidade.
O homem franziu os sobrolhos:
- Suponha que este negócio não dê bom resultado?
- Não acaba você de dizer que fabrica as melhores espingardas e espadas? Que o vice-rei está
satisfeito com o trabalho que você faz? Tolice, Gaspar. Vou tratar de arrumar as coisas.
E assim sucedeu que a família Flores disse adeus à enorme casa solarenga em Lima, e partiu para
Quivi. Rosa; então com onze anos, estava muito excitada com a mudança. Pela primeira vez na
vida estava ela junto às grandes montanhas que se elevavam no fundo de sua cidade natal.
Algumas milhas a oeste, o Pacífico rolava suas águas verdes, que vinham quebrar-se em branca
espuma na extensão infindável de areia. A medida que se adiantavam na viagem, pequenas aldeias
de índios surgiam à vista: casas feitas de barro marrom claro, cobertas de telhas vermelhas e
amarelas.
Fernando, o irmão preferido de Rosa, estava também Interessado nos novos panoramas.
Agradavam-lhe os esquisitos animais que os índios utilizavam - as lhamas com seus longos
pescoços, as pequenas e sedosas vicunhas, as alpacas com seu pelo castanho. Esses estranhos
animais podiam ser vistos por toda parte, pastando nos declives verdejantes dos Andes, ou
levando carga para seus donos índios.
- Eu gostava de ter uma lhama - disse Fernando à irmã. - Eu podia ensinar-lhe uns truques e
Mariana cortar-lhe o pelo para tecer roupas bonitas e quentes. Com isso papai havia de poupar
um pouco de dinheiro.
Rosa concordou. Fernando sempre tinha boas idéias.
- Talvez eu também pudesse fazer alguma coisa para ajudar. Que poderia ser?...
O garoto franziu a testa. Não havia muita coisa que uma menina peruana pudesse fazer. As filhas
das melhores famílias ou se casavam ou entravam para um convento. Nunca se dispunham a um
modo de vida pelos próprios recursos.
- Por que preocupar-se com estas coisas? Mamãe diz que você, quando crescer, vai casar-se
com um homem rico -afirmou ele, com a ponderação de seus treze anos.
As lágrimas afluíram aos olhos escuros de Rosa.
- Eu não quero casar-me, Fernando. O que eu quero é ficar em casa e ser útil a todos.
O menino deu uma risada. Tinha orgulho daquela irmãzinha, mesmo quando ela dizia, às vezes,
coisas sem pé nem cabeça.
Quivi possuía uma igrejinha, e a família Flores foi visitá-la logo depois de sua chegada.
Encontraram o pároco, padre Francisco Gonzales, muito agitado. Acabava de receber o aviso de
que o Arcebispo de Lima viria para dar o sacramento da Crisma.
- Eu gostava de ter uma lhama ,- disse Fernando à irmã.
- Esplêndido - exclamou Maria de Oliva. - Tenho uma filhinha que ainda não foi crismada. Vamos
começar a prepará-la.
- Espero que ela saiba suas orações - disse Fernando. - Você sabe, Rosa? O Arcebispo vai
fazer-lhe uma porção de perguntas. Ele não pode fazer o Espírito Santo descer a sua alma, sem
que você saiba o catecismo.
- Fernando, não apoquente sua irmã - ralhou Maria de Oliva. - E' claro que Rosa saberá seu
catecismo. Eu mesma vou cuidar disso.
Assim Rosa passou a estudar diariamente seu catecismo. Era um livrinho escrito pelo próprio
Arcebispo, e impresso em 1584, o primeiro volume que saiu à luz do dia na América do Sul. O
exemplar de Rosa era escrito em espanhol, mas o bondoso Arcebispo compilara também um em
quichua e outro em aimará, dialetos comuns entre os indígenas.
Aqueles que conheciam o Arcebispo Turíbio estavam absolutamente certos de que ele era um
santo. Seu nome por extenso era Turíbio Afonso de Mogrovejo, e chegara a Lima em 1581 para
ser o segundo Arcebispo da cidade. Como o primeiro Arcebispo, o famoso dominicano Jerônimo
de Loaysa, Turibio era espanhol. A residência episcopal ficava perto da catedral, do outro lado
da Praça das Armas. Esta praça constituía o mais belo parque de Lima. Aí o povo passava
muitas horas apreciando as flores variegadas e gozando a sombra das graciosas palmeiras. Mas
sempre que viam o Arcebispo sair do palácio, todos acorriam para receber a bênção. Mendigos
e aleijados, principalmente, eram mais pressurosos, pois em tempos anteriores as orações do
bom homem tinham operado maravilhas em favor dos pobres e doentes.
Embora a filha de Gaspar andasse muito excitada pela próxima visita do Arcebispo, o povo de
Quivi não mostrava nenhum interesse. Grande parte dos três mil habitantes de Quivi eram
indígenas que falavam o dialeto quichua. Estavam ainda muito longe de se tornarem cristãos; a
verdadeira fé, infelizmente, estava ainda ligada em sua lembrança aos bandos da soldadesca cruel
vinda do outro lado do Atlântico e que em 1532 invadira o país, conquistando-o para o rei da
Espanha.
Francisco Pizarro chefiara esses recém-chegados, e com ele viera a desgraça para os nativos.
Viram-se despojados de suas terras e forçados a trabalhar nas minas, percebendo salários
miseráveis. Padres franciscanos e dominicanos seguiram as. pisadas de Pizarro, trazendo o
grande dom da fé, mas os índios não compreendiam que o soldado espanhol representava uma
coisa e o padre, outra bem diferente. Para a maioria dos indígenas, um espanhol era algo a temer
e desconfiar, fosse qual fosse o nome que exibisse.
Foi uma surpresa para Rosa ver que era ela a única menina na igreja no dia da Crisma. Havia,
entretanto, dois garotinhos, e as três crianças ajoelharam-se no santuário aos pés do Arcebispo
de Lima. O sol inundava o pequeno templo, rebrilhando na mitra dourada do Arcebispo e
arrancando cintilações do magnífico anel que ele usava na mão direita. Que dia maravilhoso
aquele! E que pena que o povo de Quivi não o compreendesse. Pelo direito, pensava Rosa, a
igreja devia estar repleta.
O Arcebispo era de pequena estatura, delgado e contava cinqüenta e nove anos. Sentou-se numa
cadeira em frente aos três pequerruchos ajoelhados e explicou o ato que ia realizar-se: O Espírito
Santo, a terceira Pessoa da Santíssima Trindade, ia descer em suas almas. Aí permaneceria
enquanto aquelas almas não ofendessem seriamente a Deus. E ficaria para sempre, não ficaria?
- Para sempre, disseram os dois rapazinhos.
- Para sempre, eternamente, disse Rosa.
O Arcebispo sorriu, e o mesmo fez o padre Francisco Gonzales, que estava de pé ao lado deles,
muito atento, revestido do hábito da Ordem dos mercedários. Então o Arcebispo rezou em latim,
enquanto o padre Francisco foi a uma mesinha e trouxe um pratinho com óleo de oliva e bálsamo.
Rosa ajoelhou-se perto do pratinho de óleo. Este santo óleo fora bento na última quinta-feira
santa para ser usado na administração do sacramento da Confirmação. Era o crisma.
Fora da igreja rodavam as carroças nas ruas pedregosas. Vendedores ambulantes apregoavam
suas mercadorias e as crianças indígenas riam e brincavam. No interior, porém, a cena era bem
diferente. De pé, em frente do altar, o Arcebispo Turibio rezava em voz alta
"Enchei-os com o espírito de vosso temor, e assinalai-os com o sinal da cruz de Cristo, em vossa
misericórdia, para a vida eterna. Pelo mesmo Senhor nosso, Jesus Cristo, vosso Filho, que
convosco vive e reina em unidade com o mesmo Espírito Santo, Deus, por todos os séculos dos
séculos. Amém".
Mergulhou, então, a ponta do polegar direito no Crisma e traçou o sinal da Cruz na fronte de
cada um dos meninos: Rosa ergueu a cabeça quando se lhe aproximou o Arcebispo. O Espírito
Santo estava prestes a vir sobre ela. Havia de trazer-lhe força e coragem para ser uma boa e
verdadeira cristã.
"Rosa, assinalo-te com o sinal da Cruz, e confirmo-te com o crisma da salvação. Em nome do
Padre e do Filho e do Espírito Santo. Amém".
Terminara. A criança levantou os olhos para o rosto amável do Arcebispo. "A paz seja contigo",
murmurou ele, e deu-lhe um tapazinho, de leve, na face.
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