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Maria estava indignada às palavras de Rosa. Ela, uma freira dominicana? Nunca! Entretanto a
jovem terciária recusava ouvir os protestos de sua mãe. Um dia, quando o mosteiro de Santa
Catarina fosse uma realidade, Maria de Oliva iria até lá e pediria o hábito dominicano, e lá haveria
de passar seus últimos anos no serviço do Senhor.
Passaram-se meses e Rosa continuava sua vida de eremita. As vezes, entretanto, confiava a
alguma de suas amigas que seu desejo maior era ser mártir.
"Se eu fosse homem, não quereria outra coisa senão ser missionário", confessou ela a Francisca
de Montoya, uma moça de sua idade. "Imagine quantos missionários têm ido diretamente para o
céu só porque morreram às mãos dos selvagens".
Francisca sentiu um arrepio. Embora pertencesse também à Ordem terceira de S. Domingos,
sempre achara difícil a prática de mortificações, ainda as menores. Evidentemente suas visitas à
Rosa afetavam-na bastante. Havia tanto mosquito no jardim de Gaspar Flores. Eles enchiam a
acanhada ermida e Francisca sempre saia de lá crivada de dolorosas picadas.
- Eu nunca serei bastante corajosa para desejar a morte de mártir, -suspirou. - Nem posso
suportar as picadas destes seus mosquitos.
Rosa sorriu.
- E não obstante você ainda vem ver-me, Francisca. Como explica isto, se tem tanto medo de
sofrer?
- Mas isto é diferente! Você não sabe como me sinto melhor depois de uma conversa com você.
Sou tão grata que você me permita vir, Rosa, ainda que realmente você não queria aborrecer-se
com visitas. Há uma coisa, porém, que me deixa maravilhada.
- O quê?
- Por que os mosquitos não picam sua mãe? Nem dona Maria de Usátegui? Ou a você?
- Porque nós prometemos nunca ofender estes pequeninos hóspedes.
- Hóspedes? E' assim que vocês chamam esses insetos abomináveis.
Rosa meneou a cabeça.
- Suponhamos que você também faça esta promessa, Francisca. Então eles não a incomodarão
mais.
A visitante olhou desolada para seu braço. Lá estavam já três marcas vermelhas.
- Se eu pudesse ter um pouco de paz quando venho ver você, eu prometeria qualquer coisa.
- Ora bem. Ofereça o sofrimento destas três picadas pelas pobres almas, em honra da Santíssima
Trindade. E então faça a promessa.
Francisca não pôde deixar de rir.
- Não matarei nunca mais nenhum de seus hóspedes, - disse ela com firmeza. - Espero que eles
entendam o que estou dizendo.
Rosa sorriu. Claro que as criaturinhas entendiam. Dai em diante Francisca de Montoya seria outra
pessoa que poderia visitar, sem tribulações, a ermida de adobe.
A 30 de Abril de 1615, Rosa completava vinte e nove anos. Algumas semanas mais tarde ficou
surpreendida ao encontrar seu jardinzinho rodeado por uma multidão excitada. Mulheres
choravam; homens, maridos e filhos, estavam pálidos de medo. Chegara a notícia de que uma
frota de piratas holandeses estava ancorada em frente ao porto de Calau. Este porto, a dez milhas
de Lima, era então quase indefeso, e provavelmente os recém-chegados iniciariam a qualquer
momento a invasão.
- Rosa, você deve rezar muito, - exclamou D. Gonçalo de Massa. - Os holandeses querem
apoderar-se de nosso ouro e prata, de nossos escravos e até de nossos filhos.
- Eles são calvinistas - acrescentou sua mulher, Dona Maria. - Pensam que é seu dever matar
todo católico que encontrem.
O doutor João del Castilho, um dos melhores médicos de Lima, concordou:
- Primeiro, eles incendiarão as igrejas. Têm um verdadeiro ódio ao Santíssimo Sacramento, Rosa.
Já cometeram terríveis ultrajes em outras cidades. Minha querida, você rezará como nunca, não
é?
Rosa saíra da ermida. O jardim estava repleto de gente, e o temor estampava-se em todas as
faces.
- De certo que rezarei, - disse ela sossegada. - Mas não há motivo para alarmar-se. Os
holandeses não tentarão desembarcar em Callao, nem tampouco incendiarão a cidade.
Em vão Dom Gonçalo descreveu os abomináveis feitos dos piratas no Panamá e outras colônias
espanholas. Rosa insistia em que, durante a noite, a esquadra inimiga levantaria ferros e se
afastaria de Callao. A multidão, porém, não podia crer em suas palavras, e por fim ela acedeu em
rezar pela salvação de Lima, pedindo a proteção especial de Santa Maria Madalena, cuja festa
ocorria no dia seguinte.
Toda a noite a cidade se preparou para o esperado ataque. Correios chegavam de Callao com as
últimas noticias. Ofícios especiais foram determinados às igrejas. O povo acorria ansioso aos
confessionários. O acontecimento lembrava as mesmas cenas de onze anos atrás, quando, a um
sermão do Padre Francisco, se tinham convertido inumeráveis pecadores. O medo e a ansiedade
enchiam todos os corações, espanhóis, negros, índios. Ninguém se lembrava de dormir aquela
noite. Ao invés de ir para a cama dirigiam-se, como rebanhos, às igrejas, ou seguiam as várias
procissões do Santíssimo Sacramento, que desfilavam pelas ruas sombrias.
Com permissão do Padre Alonso Velasquez, Rosa deixou sua ermida tranqüila, e apressou-se
para São Domingos em companhia de algumas amigas. Seu coração oscilava entre dois desejos.
Se aos holandeses fosse permitido saquear a cidade, ela poderia ter oportunidade de morrer
mártir. Já que isto lhe era negado, milhares de vidas seriam salvas.
A custo conseguiu um lugar na capela de S. Jerônimo na igreja dominicana, e aí ajoelhou-se,
sorrindo ao pensamento de alcançar a. coroa do martírio e ir diretamente para o céu. Se os
holandeses viessem, ela, certamente, não faria o menor esforço para esconder-se. Empunhando o
rosário, daria a vida em defesa do Santíssimo Sacramento.
Quando surgiu a cinzenta madrugada, a cena era bem diferente daquela da noite anterior. O povo
cantava nas ruas, fora-se a ansiedade e o temor de algumas horas antes. A última mensagem de
Callao anunciava que durante a noite os navios holandeses tinham levantado a âncora, e estavam
fora de vista.
- E' um milagre! - disse a seu esposo dona Maria de Usátegui. - Estou certa que nossa Rosa é
responsável. Dom Gonçalo, não acha também que ela possa ter oferecido sua vida a fim de
poupar Lima à destruição?
Dom Gonçalo concordou.
- Não me surpreenderia, - disse ele. - Ela tem mais coragem e caridade que qualquer outra moça
que eu conheço.
Outros havia que partilhavam a mesma opinião. Naquele momento, como acompanhamento ao
repicar festivo dos sinos, vibrava pelo ar um só grito:
"As orações de Rosa Flores nos salvaram da desgraça!".
Em companhia de sua mãe e das amigas, Rosa seguiu vagarosamente para casa. Sentia-se
cansada e um tanto confusa. Por que havia o povo de pensar que suas preces fossem tão
poderosas. Não compreendiam que sua salvação era devida apenas à misericórdia de Deus? Ela,
Rosa Flores, era menos que pó, e indigna de qualquer honra.
"Alegro-me, porém, que tenhais salvado a cidade, Senhor!" - pensou ela. - "E não estou muito
triste porque não me concedestes o martírio. Afinal de contas, dais a cada um urna espécie de
martírio neste mundo. E' bastante uma sorte comum, sem espadas, sem balas, sem fogo - nada
mais que nossas pequenas aflições e contrariedades. Se as suportarmos alegremente, podemos
agradar-vos como os santos mártires".
Foi poucos dias depois que o padre Alonso Velasquez veio ao eremitério de sua jovem amiga.
Trazia algumas notícias muito especiais. Rosa estava para deixar a casa de seus pais " e ir morar
com Dom Gonçalo e sua esposa. Dona Maria fora vê-lo recentemente e assegurara-lhe que a
saúde de Rosa estava declinando, que a vida de eremita era excessivamente dura para ela.
- Você tem sorte que Dona Maria e Dom Gonçalo pensem tanto em você, - disse o padre
Alonso. - São gente muito rica e seu único desejo é ver você forte e bem. Terá um esplêndido lar
em casa deles.
Rosa não pôde ocultar sua perturbação.
- Mas como posso deixar minha própria família, padre? - Meus pais já não são jovens. Eles
precisam de mim.
O sacerdote sorriu.
- Você sabe o que é obediência, Rosa? E' meu desejo que você acabe com essa vida de dureza.
Eu quero que vá para a casa dos Massas e tente recuperar a saúde.
Rosa permaneceu silenciosa. Como membro da família dominicana devia obediência a seus
superiores. Se o padre Alonso achava melhor para ela viver em outra parte, não competia a ela
escolher e sim fazer o que lhe era ordenado.
- Irei, - respondeu. - Mas não estou realmente doente, padre. Nosso Senhor deu-me ainda dois
anos mais para servi-lo.
- Você viverá mais do que isto, minha filha, se tomar cuidado consigo. De agora em diante vai
pensar mais em sua saúde.
Assim Rosa foi morar com Dom Gonçalo e Dona Maria. Desde o começo ela declarou aos dois
bondosos amigos que desejava apenas um simples quartinho e que era seu desejo ser útil,
cuidando das crianças.
Micaela e Beatriz, as filhas mais velhas do casal, esforçaram-se para que a hóspede se sentisse
como hóspede de honra, e que não era necessário ocupar-se em trabalho algum em seu novo lar.
Pouco conseguiram, entretanto. Havia muito que Rosa se, apaixonara pela humildade.
- Ela é na verdade uma santa - disse Micaela à sua irmã. - Não me surpreenderia vê-la
canonizada logo após a morte.
- Somos realmente felizes em tê-la aqui conosco, observou Beatriz. -Algum dia esta nossa casa
será famosa. Virá gente de todo o mundo só para ver o quartinho em que Rosa viveu.
Dona Maria concordou.
- Não se passa um dia sem que eu agradeça a Deus por permitir que ela entrasse em nossa
intimidade. Contudo, ela me preocupa um pouco...
- Porque ela diz que vai morrer daqui a dois anos? No dia de S. Bartolomeu?...
- Exatamente. Ela terá então trinta e um anos. E' muito cedo para que ela nos deixe.
D. Gonçalo animou a esposa:
- Com boa alimentação e bastante repouso, o caso será diferente, Maria. Olhe o seu pai. Tem
noventa e três anos. Se Rosa puxar a ele, ficará conosco ainda muito, muito tempo..
Assim escoaram-se o dias. Rosa tinha saudades de sua celazinha no umbroso jardim, mas andava
sempre ocupada. Durante anos tinha-se apurado em trabalhos de agulha, e no solar dos Massa
continuou essa atividade, fazendo roupas para as crianças pequenas e toalhas para os altares de
várias igrejas. De vez em quando entretinha a família e os servos, tocando harpa, citara, ou
guitarra. Sua voz bem timbrada, doce e clara, deixava todos enlevados.
O padre Alonso insistira em que ela não se cansasse com excessos de orações e sacrifícios
demasiados, de modo que Rosa levava agora uma vida mais aliviada. Nunca esqueceu, porém,
que se dedicara à salvação de almas. Nem uma hora se passava, que não oferecesse uma curta
oração pelos pecadores. Uma de suas favoritas era o inicio do Salmo 69: "Vinde, Senhor, em
meu auxílio, apressai-vos em socorrer-me". Numerosas eram também as jaculatórias que
proferia, pois tomavam pouco tempo para dizer e eram ricas de indulgências.
A maior, entretanto, era o Santo Sacrifício da Missa - a mais importante oração. Quando era uma
eremita no jardim de seu pai, recebera uma graça maravilhosa: tivera o privilégio de assistir em
espírito, através da janelinha de sua cela, a todas as missas celebras nas igrejas de Lima.
Transformada em membro da família de Dom Gonçalo, a preciosa graça continuava, e a jovem
terceira dominicana sempre aplicava o mérito daquelas missas ao bem do próximo.
Às vezes Dona Maria olhava sua hóspede um tanto assombrada. Era uma grande honra ter Rosa
morando em sua casa, mas, também, um pouco amedrontador. A moça fazia milagres tão
abertamente, conversava com os santos e os anjos, e as pessoas acorriam constantemente à
porta, pedindo orações e anunciando curas de várias espécies, e esses clientes não eram só
pobres e ignorantes. Havia entre eles, por exemplo, nada menos que o Prior do convento
dominicano de Santa Maria Madalena, o padre Bartolomeu Martinez. Este santo sacerdote
insistia em que fora curado de grave moléstia porque Rosa oferecera algumas preces por ele a S.
Domingos.
Havia também o caso de Maria Eufêmia de Pareja e seu filho Roderico. Embora a mãe tivesse
sempre desejado que seu filho fosse padre jesuíta, Roderico mostrara pouca inclinação para a
vida religiosa. A medida que o tempo passava, Maria Eufêmia se convencia tristemente da
verdade: o que interessava ao rapaz eram os prazeres do mundo. Finalmente, ela foi ter com
Rosa. Indubitavelmente, se a santa jovem rezasse nessa intenção, Roderico receberia a graça da
vocação religiosa.
"E foi o que aconteceu - rememorava Dona Maria. - De uma hora para outra o rapaz
reformou-se, e decidiu ser padre, se bem que na Ordem Franciscana, e não na Companhia de
Jesus. Hoje, é o orgulho de sua mãe. Creio que nunca deixará de ser grata pelas orações de
Rosa".
Decorriam os meses e Dona Maria observava de perto sua querida hóspede. A jovem
apresentava boa aparência, mas havia nela qualquer coisa que preocupava a dona da casa.
Estava-se então no ano de 1617. Seria certo que Deus a chamaria em breve para o Céu?
"Não posso suportar a idéia de perdê-la", pensava a boa mulher. "Ela tornou-se como filha para
mim".
Rosa entristeceu-se ao pesar da sua mãe adotiva. Numa manhã de Abril aproximou-se dela
humildemente:
- Dona Maria, quando eu estiver para morrer, serei atormentada por uma sede horrível. Quer
dar-me água, então, quando eu a pedir?
A velha senhora tremeu num arrepio.
- Naturalmente, minha filha. Mas não falemos de morrer. Você está gozando muito mais saúde
aqui, ultimamente.
Rosa sorriu.
- Há mais uma coisa. Eu desejo que somente a senhora e minha mãe preparem meu corpo para a
sepultura.
Dona Maria fitou-a estarrecida e logo desatou em pranto. A festa de S. Bartolomeu estava tão
perto... Quatro meses apenas...
- Não diga tal coisa, - implorou. - A vida não será a mesma se você nos deixar, Rosa.
Os receios da boa senhora começaram, entretanto, a desvanecer-se com a chegada do verão.
Rosa estava a personificação da saúde. Até o padre Alonso concordou em que ela parecia muito
bem.
- Eu a devia ter mandado para cá há muito tempo, disse a Dona Maria. - A vida que ela levava
em casa era por demais penosa.
Dona Maria meneou a cabeça, confirmando.
- O sr. tem razão, padre Alonso. A criada dos Flores, Mariana, esteve aqui há dias. O que não
me contou ela dos sacrifícios e orações de Rosa! Ainda não compreendo como alguém possa
fazer tanto.
O sacerdote sorriu.
- Tem sido assim anos e anos, Dona Maria; desde que Rosa tinha onze anos e viu com seus
próprios olhos o paganismo que reina entre os índios andinos. Nessa ocasião ela ouviu o
arcebispo Turibio profetizar que Quivi seria destruída. Bem sei o que aquelas palavras
significaram para ela. E depois, vieram o terremoto e as enchentes de 1601 e ela jamais esqueceu
as centenas de pessoas que pereceram miseravelmente em Quivi como castigo pela zombaria ao
Arcebispo e à fé que ele tentou levar-lhes. Desde então toda a vida ela tem dedicado à salvação
das almas por meio de orações e sofrimentos.
Aconselhada pelo sacerdote dominicano a não se preocupar quanto à profecia de Rosa sobre a
morte próxima, Dona Maria e toda a família respiraram mais aliviados. E quando, em fins de
Julho, Rosa pediu permissão para visitar sua ermitagem no jardim, não acharam nada de
extraordinário nisto. Durante a noite de primeiro de Agosto, porém, toda a casa despertou
sobressaltada pelos gritos dolorosos que vinham de seu quarto. Dona Maria precipitou-se e foi
encontrar sua hóspede atacada de doença mortal. Mal podia respirar e todo o corpo estava
paralisado.
Imediatamente a aflita mulher mandou chamar o doutor João del Castillo e vários sacerdotes
conhecidos de Rosa. Dom Gonçalo tentou consolar a esposa, mas ela agarrou-se-lhe aos braços
desnorteada.
- Ela vai morrer, Gonçalo, e nada há que possamos fazer por ela!
O tesoureiro da cidade de Lima, cuja fortuna e alta posição davam-lhe importância e notoriedade
em todo o Peru, mal podia controlar sua própria aflição. Naqueles dois últimos anos, desde que
viera morar com eles, Rosa parecia tão bem disposta e feliz. Vinha, agora, de súbito, esta
calamidade, este espetáculo aflitivo, de uma mulher tão jovem, tão bela, a deixar este mundo tão
precocemente.
- Ela descansará melhor, agora que o padre João de Lorenzana a ungiu, -pensou ele. - Quem
sabe, se cuidarmos dela com toda a solicitude...
Rosa, porém, apenas sorriu levemente ao ver os inúmeros remédios que traziam no afã de
salvar-lhe a vida.
Um dia úmido de Agosto sucedeu ao outro, e ela continuava repetindo que o dia de S.
Bartolomeu seria o último para ela na terra. Os mortais sofrimentos que lhe afligiam o corpo não
podiam ser mitigados. Eram parte do pagamento ainda requerido para salvar do inferno certas
almas.
Foi na véspera da festa do Apóstolo que ela estendeu a mão enfraquecida.
- Posso ver meus pais, Dona Maria? Eu queria dizer-lhes adeus. E quero pedir perdão a todos
desta casa, por qualquer dificuldade que eu tenha causado.
A senhora acedeu pressurosamente. Maria de Oliva já lá estava, e os criados foram enviados
com uma cadeira confortável a fim de trazerem o velho Gaspar Flores então com noventa e cinco
anos.
Pelo dia em fora, toda sorte de visitantes desfilaram para dentro e para fora do quartinho de Rosa
- homens e mulheres de quem fora tão amiga, outros médicos chamados na esperança de que a
pudessem ajudar, sacerdotes das várias Ordens religiosas, todos impelidos pelo desejo de
contemplar aquela jovem cuja fama de santa enchera toda a cidade. Somente Dona Maria de
Usátegui, o rosto banhado em pranto, recusava-se a abandonar-lhe a cabeceira. Rosa começou a
pedir água, porém os médicos disseram que ela não podia beber.
- Mas eu prometi! Eu prometi! - exclamava Dona Maria, lembrando-se daquele dia de Abril em
que Rosa profetizara que havia de sofrer sede. -Não posso faltar à minha promessa!
- Chiu!, - murmurou Dom Gonçalo. - Água pode fazê-la sofrer mais!
Quando se aproximava a meia noite, Rosa lançou um olhar às pessoas ajoelhadas no quarto. O
palor mortal de seu rosto desaparecera e assumira um aspecto mais belo que nunca.
- Por favor, não fiquem tristes porque vou deixa-los, murmurou. - Este é realmente um dia de
felicidade!
- Rosa, minha querida, por que não me esforcei mais por compreender você? Perdoa-me, filha, a
minha cegueira...
De um canto do quarto veio o murmúrio das vozes de Dom Gonçalo, sua mulher e das crianças
que rezavam as orações pelos moribundos. Perto da porta aglomerava-se um grupo de negros,
em cujas faces tisnadas rebrilhavam as lágrimas. Rosa sorriu ainda uma vez a seus amigos; em
seguida baixou os olhos para o crucifixo que o padre Alonso lhe dera.
- Jesus, ficai comigo..., - disse baixinho.
Rapidamente, Maria de Oliva levantou-se e agarrou uma vela acesa. Por alguns instantes
permaneceu contemplando a frágil figura estirada no leito, e então falou, e sua voz era
surpreendentemente calma:
- Está... está tudo terminado.
Todos se precipitaram para frente, e como a sinal dado, ecoaram de longe os sons dos sinos
através da tranqüila escuridão. Meia-noite! A festa de S. Bartolomeu! E em cada convento de
Lima, padres e freiras iniciavam o novo dia, cantando as orações litúrgicas em honra do
Apóstolo.
Maria virou-se para seus companheiros. Havia um estranho olhar de contentamento em seu rosto
cansado.
- Minha filhinha foi para o Céu! - disse tranqüilamente.
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