|
Deus, durante a ausência de Domingos, abençoara e multiplicara a sua pequena
família. Em lugar de seis discípulos que deixara em Toulouse, na casa de Pedro Celiani,
encontrou quinze ou dezesseis. Depois das primeiras expansões reuniram-se todos em Notre-
Dame de Prouille para aí deliberarem conforme as ordens do Papa sobre a escolha de uma
regra. Até então, isto é, até a primavera do ano de 1216, a sua comunidade apenas tivera uma
regra provisória e indeterminada, ocupando-se Domingos mais em trabalhar do que em
escrever, à imitação de Jesus Cristo, que preparara os seus apóstolos para a sua missão pela
palavra e pelo exemplo, e não por meio de regulamentos escritos. Era porém chegada a hora
de criar a legislação da família dominicana; porque é necessário que as leis auxiliem os
costumes, afim de perpetuar a sua tradição. Domingos que já era fundador, ia ser legislador.
Depois de extrair de si uma geração de homens semelhantes a ele, ia tratar de prover à sua
própria fecundidade, e arrola-os contra o futuro, com a força misteriosa que dá a
estabilidade. Se a reprodução de uma raça pela carne e pelo sangue é uma obra prima de
virtudes e de habilidade, se a fundação de impérios é o ultimo esforço do gênio do homem,
que não deve ser o estabelecimento de uma sociedade puramente espiritual, que não aspira a
vida nos afetos naturais, nem põe a sua defesa em uma espada ou em um escudo? Os antigos
legisladores, assustados dos com a importância da sua missão, colocaram as nações, com
uma falsidade puramente aparente, sobre o pedestal da Divindade. Nascido na era de Jesus
Cristo, quando a plenitude da realidade tomara o lugar das ruínas e das ficções, Domingos
não precisara enganar para ser verdadeiro. Antes de ousar traçar uma lei com as suas mãos
mortais, fora lançar-se aos pés do representante de Deus e implorar da mais elevada
paternidade visível aquela benção que é o gérmen das longas posteridades. Voltando em
seguida para a solidão, sob a proteção daquela que foi Mãe sem deixar de ser virgem,
rogava a Deus com ardor que lhe comunicasse uma porção desse espírito que cavara tão
sólidos e inabaláveis alicerces à Igreja Católica.
Dois homens vindos ao mundo com intervalo de um século, Santo Agostinho e S.
Bento, foram no Ocidente os dois patriarcas da vida religiosa; mas nem um nem outro se
haviam proposto o mesmo fim que Domingos. Santo Agostinho, logo depois de convertido,
retirara-se para uma casa de Sagaste, sua terra natal, para aí se entregar com alguns amigos
ao estudo e à contemplação das coisas divinas. Elevado mais tarde ao sacerdócio, criara em
Hipona outro mosteiro que, como o primeiro, não era mais do que uma reminiscência desses
célebres institutos cenobíticos do Oriente, de que Santo Antônio e S. Basílio foram os
arquitetos. Quando sucedeu ao velho Valério na Sé de Hipona alterou as suas idéas sem em
nada alterar o ardente amor que o levava a conservar-se cativo nos laços da fraternidade
universal. Abriu a sua casa ao clero de Hipona, e dos seus cooperadores formou uma só
comunidade, a exemplo de Santo Atanásio e de Santo Eusébio de Verceil, estes já imitadores
dos apóstolos. Fôra este mosteiro episcopal que servira de modelo e de ponto de partida,
.aos cônegos regrantes, assim como o de Sagaste aos religiosos conhecidos pelo nome
Eremitas de Santo Agostinho. Enquanto a S. Bento, a sua obra. era ainda mais
manifestamente estranha ao fim que se propunha S. Domingos, por quanto ele não fizera mais
que ressuscitar a pura vida claustral dividida entre os cantos no coro e os trabalhos manuais.
Obrigado todavia a escolher por antecessor um destes dois grandes homens,
Domingos preferiu Santo Agostinho. As razões são fáceis de compreender. Posto que o
ilustre bispo nunca tivesse idéia de instituir uma ordem apostólica, ele próprio fôra um
apóstolo e um doutor; consumira os seus dias em anunciar a palavra de Deus e defender a
sua integridade contra os hereges do seu tempo. Sob que mais apropriada proteção se
poderia colocar a nova ordem dos Pregadores? Nem era esta para Domingos uma protecção
inteiramente nova; durante longos anos se habituara a ela quando estivera no cabido regular
de Osma, e as tradições de sua vida passada aliavam-se por meio desta escolha com as
conveniências presentes da sua vocação. É também preciso notar que a regra de Santo
Agostinho tinha sobre todas as outras a vantagem inestimável de ser apenas uma simples
exposição dos deveres religiosos. Não obedecia a nenhuma forma de governo, não tinha
práticas nenhumas determinadas senão a comunidade de bens, a oração, a frugalidade, a
vigilância dos religiosos sobre os seus sentidos, a mútua correção dos seus defeitos, a
obediência ao superior do mosteiro e acima de tudo a caridade, cuja fama e unção enchem
essas admiráveis e curtas páginas. Submetendo-se a essas regras, Domingos, propriamente
falando, não aceitava mais do que o jugo dos conselhos evangélicos; sentia-se a sua alma à
vontade dentro desse plano hospitaleiro traçado por mãos que parecia antes terem querido
criar uma cidade do que um claustro. Só faltava então levantar nessa comum cidade, ao
abrigo das suas antigas muralhas, o edifício próprio dos Frades Pregadores.
Mas desde logo se apresentou uma questão. Deveria uma ordem destinada ao
apostolado adotar a tradição dos costumes monásticos ou aproximar-se mais da existência
mais livre do sacerdócio secular, abandonando assim a maior parte dos usos claustrais? Não
se incluía, é claro, nesta dúvida, os três votos de pobreza, castidade e obediência, sem os
quais não se compreende nenhuma sociedade espiritual; do mesmo modo que não se
compreende um povo sem a pobreza dos impostos, a castidade do matrimonio e a obediência
às mesmas leis, sob um mesmo chefe. Mas porventura conviria ao fim do apostolado
conservar certos usos como. a recitação em público do ofício divino, a abstinência perpétua
da carne, os longos jejuns, o silêncio, o capítulo chamado da culpa, as penitências por faltas
à regra e o trabalho manual? Seria toda esta rigorosa disciplina, tão própria para formar o
coração solitário do monge e santificar o ócio dos seus dias, compatível com a heróica
liberdade de um apóstolo que caminha à sua vontade, lançando para a direita e para a
esquerda a boa semente da verdade?: Domingos assim o julgou. Pensou que substituindo o
trabalho manual pelo estudo da ciência divina, moderando certas práticas,. servindo-se de
dispensas a favor dos religiosos mais rigorosamente entregues ao ensino e à pregação, seria
possível conciliar a ação apostólica com a regra monástica. Talvez nem mesmo lhe
ocorresse a idéia de as separar. Porquanto um apóstolo não é somente um homem de. saber
que ensina por meio da palavra;. é também um homem que com todo o seu ser prega o
cristianismo e cuja mesma presença é como uma visão de Jesus Cristo. Logo, nada mais apto
para imprimir nele os sagrados estigmas desta semelhança do que as autoridades do claustro.
E não era o próprio Domingos como que um mixto íntimo do monge e do apóstolo? Não era
estudar, orar, pregar, jejuar, dormir no chão, andar descalço, passar dos atos penitentes aos
actos do proselitismo a sua vida de todos os dias? E quem melhor do que ele conheceria
todas as afinidades que havia entre o deserto e o apostolado?
Foram pois aceitas em Prouille as tradições monásticas, apenas com certas
modificações, sendo a primeira e mais geral, a seguinte:
|
"que cada prelado tivesse,
no seu convento,
o poder de dispensar os irmãos
das obrigações gerais,
quando assim o julgasse útil,
sobretudo no que impedisse o estudo,
a pregação e o bem das almas,
tendo a nossa ordem sido,
desde a sua origem,
destinada à pregação
e à salvação das almas
e devendo todos os nossos esforços
tender sem cessar
ao proveito espiritual do próximo."
|
|
|
Constituições da Ordem
dos Frades Pregadores, Prólogo, n. 3
|
Ficou , portanto, estabelecido que o Ofício Divino se havia de recitar na igreja, breve e
sucintamente para não diminuir a devoção dos religiosos nem impedir o estudo; que em
viagem ficariam isentos dos jejuns regulares, exceto no advento, em certas vigílias e nas
sextas feiras de todas as semanas; que poderiam comer carne fora dos conventos da Ordem;
que o silêncio não seria absoluto; que seria permitida mesmo no interior dos conventos a
comunicação com estranhos à exceção das mulheres; que se enviaria um certo número de
estudantes para as Universidades de maior fama; que lhes seria permitido aceitar dignidades
científicas; que poderiam dirigir escolas, constituições estas que, sem destruírem no Frade
Pregador o homem monástico, o elevavam à categoria de homem apostólico.
Sob o ponto de vista administrativo havia cada convento de ser governado por um
prior conventual; cada província, composta de um certo número de conventos, por um prior
provincial; a ordem inteira, por um só chefe a quem depois se deu o nome de superior geral.
A autoridade, vindo de cima e derivando do próprio trono do Soberano Pontífice,
fortaleceria todos os graus dessa hierarquia, ao passo que a eleição, subindo do mais baixo
ao mais elevado, manteria entre a obediência e o poder o espírito da fraternidade. Desse
modo irradiava um duplo sinal na fronte de cada depositário do poder, isto é, a escolha de
seus irmãos e a confirmação do poder superior. Ao convento pertenceria a eleição do seu
prior; à província, representada pelos priores e por um delegado de cada convento, a do
provincial; à ordem inteira, representada pelos provinciais e por dois delegados de cada
província, a do Superior Geral e, por uma progressão contrária, o superior geral confirmaria
o superior da província, e este o superior do convento. Todos estes cargos seriam
temporários, menos o supremo, para que à providência permanente se juntasse a emulação da
variedade. Capítulos gerais, reunidos a curtos intervalos, serviriam para contrabalançar o
poder do superior geral e capítulos provinciais o do superior provincial; o superior
conventual teria um conselho para o auxiliar nos deveres mais importantes do seu cargo. A
experiência bem tem demonstrado a sabedoria desta forma de governo. Com ela tem a ordem
dos Pregadores cumprido livremente seus destinos, resguardada ao mesmo tempo do.
desregramento e da violência; nela se alia um respeito sincero pela autoridade, a um não sei
que de franco e natural que, logo à primeira vista, revela o cristão liberto do temor pelo
amor. A maior parte das ordens religiosas sofreram reformas que as dividiram em diversos
ramos: a dos Pregadores atravessou, sempre uma, as vicissitudes de seis séculos de
existência. Estendem-se os seus ramos vigorosos por todo o universo sem que um só se tenha
separado do tronco que os criou. Restava apenas decidir a questão de como a ordem havia
de prover à sua subsistência. Confiara Domingos esse cuidado à bondade de Deus desde o
primeiro dia do seu apostolado. Vivera de esmolas diárias e aplicava ao mosteiro de
Prouille todas as liberalidades que excedessem os limites das suas necessidades atuais. Só
mais tarde, depois de ver crescer a sua família espiritual é que aceitara de Foulques a sexta
parte dos dízimos da diocese de Toulouse e a terra de Cassanel, do Conde de Montfort. Mas
todos os seus pensamentos e todo o seu coração eram a favor da pobreza! Viu demasiado
bem as chagas que a opulência fizera à Igreja, para desejar para a sua ordem outra riqueza
que não fosse a da virtude. Contudo a reunião de Prouille adiou para mais tarde a
determinação do estatuto sobre a mendicidade. Temia por certo Domingos que de Roma
surgisse algum obstáculo a idéia tão arrojada, e preferiu guardar a sua realização para um
tempo menos critico.
Tais foram as regras fundamentais consagradas pelos patriarcas do Instituto
Dominicano. Comparando-as com as dos cônegos regrantes de Prémontré vêem-se, apesar da
diversidade do seu fim, umas certas semelhanças que provam ter Domingos estudado
cuidadosamente a obra de S. Norberto. É provável que enquanto estivera no cabido de Osma
tivesse para isso ocasião e que a reforma de Prémontré servisse de modelo à reforma desse
cabido.
Entretanto Foulques, que estava sempre pronto para favorecer os projetos de
Dorningos, deu-lhe de uma vez só três igrejas: uma em Toulouse, sob a invocação de S.
Romão, mártir; a outra em Pamiers, e a terceira situada entre Soreze e Puy-Laurens, e
conhecida pelo nome de Notre-Dame de Lescure. A cada uma destas igrejas estava destinado
um convento de Pregadores. Mas a última nunca a chegou a ter, e a de Pamiers teve-a só
muito tarde, em 1269. Era conveniente, como já dissermos, que a grande herética Toulouse
visse fundar dentro dos seus muros o primeiro convento Dominicano do sexo masculino.
Posto que os frades ali vivessem juntos na mesma casa desde o ano antecedente, essa casa
nada tinha de um mosteiro propriamente dito se não a vida que lá se levava, e tornava-se
necessário pôr em harmonia a vida e a casa. Levantou-se, pois, rapidamente ao lado da
igreja de S. Romão um modesto claustro. Um claustro consta de um pátio rodeado de uma
arcada. No meio do pátio, segundo as tradições antigas, devia haver um poço, símbolo dessa
água viva da Escritura, que
|
"brota para a vida eterna".
|
|
Sob as lajes da arcada, cavavam-se sepulturas; nas paredes gravavam-se inscrições
funerárias; nos arcos formados pelo princípio das abóbadas estavam. pintados fatos da vida
dos santos da ordem ou do mosteiro. Esta parte do convento era sagrada, os próprios
religiosos não passeavam nela senão em silêncio tendo presente na memória o pensamento
da morte e a lembrança dos seus antecessores. A sacristia, o refeitório, as grandes salas
comuns, ficavam de rocia dessa galeria silenciosa, que também comunicava com a igreja por
duas portas, uma que dava para o coro, a outra para as naves. Uma escada conduzia aos
andares superiores, construídos sobre as arcadas e no mesmo plano. Quatro janelas aos
quatro cantos dos corredores deixavam entrar abundante luz; quatro lâmpadas alumiavam
durante a noite. Ao longo destes corredores altos e espaçosos, cujo único luxo era o asseio,
via-se à direita e à esquerda uma enfiada simétrica de portas exatamente iguais. Nos espaços
que as separavam pendiam painéis antigos, mapas geográficos, plantas de cidades e de
castelos antigos, a lista dos mosteiros da ordem, mil singelas recordações do céu e da terra.
Ao toque de um sino abriam-se todas essas portas com uma sorte de suavidade e reverência.
Velhos já brancos e de olhar sereno, homens de uma maturidade precoce, adolescentes a
quem a penitência e os poucos anos davam um tom de beleza desconhecido do mundo, todas
as quadras da vida apareciam ao mesmo tempo sob o mesmo hábito. A cela dos cenobitas
era pobre, apenas suficientemente grande para ter dentro um catre de palha ou de crina, uma
mesa e duas cadeiras; um crucifixo e algumas estampas devotas constituíam o seu único
adorno. Deste túmulo habitado por ele durante os anos da sua vida mortal, passava o
religioso para o túmulo que precede a imortalidade. Mesmo ali não se separava dos seus
irmãos, tanto vivos como mortos. Colocavam-no, envolvido no seu hábito, sob as lajes do
coro; as suas cinzas confundiam-se com as cinzas dos seus antecessores, ao mesmo tempo
que os louvores do Senhor, entoados pelos seus contemporâneos e seus descendentes no
convento, faziam estremecer as suas cinzas no que elas ainda conservassem de sensibilidade.
O' santas e encantadoras casas! Têm-se edificado, na terra, palácios suntuosos; levantado
sublimes mausoléus; têm-se erigido a Deus moradas quase divinas; porém nem a arte nem o
coração do homem nunca foram superiores à criação de um mosteiro.
O de S. Romão ficou pronto para habitar no fim de agosto do ano de 1216. A sua
construção era modesta. As celas tinham seis pés de largo e um pouco menos de comprido;
os tabiques que os separavam não chegavam a altura de homem, para que os Religiosos, com
quanto pudessem à vontade entregar-se às suas ocupações, estivessem sempre em uma como
meia presença uns dos outros. Todos os móveis eram pobres. A Ordem apenas conservou
esse convento até 1232. Nessa época, os dominicanos de Toulouse mudaram-se para uma
casa e uma igreja de mais vastas dimensões, de onde foram expulsos pela Revolução
Francesa, servindo hoje essa magnifica habitação de quartel e armazéns!
|
|