|
A viagem foi curta e feliz, o mar bonançoso e calmo; jamais viagem
alguma foi tão fácil, e tão isenta de perigos. Num momento de
êxtase, Xavier soltou um grito de dor que atraiu a atenção de toda
a equipagem. Tinham-no deixado em oração; correram para junto
dele, ouviram-lhe distintamente pronunciai:
"Senhor, Jesus!... Matam aquela pobre gente!"
E o seu olhar, fixo sobre um ponto do mar, permanecia imóvel
- Que é isso, Padre Francisco? o que vedes? a quem matam?
perguntou-lhe um dos seus amigos.
O Santo continua em êxtase, nada ouve, nada responde, o seu olhar
conserva-se fixo no mesmo ponto, parecia que um raio celeste se
soltara.
Os seus amigos depois de o terem contemplado com admiração por alguns
instantes, deixaram-no de novo e retiraram-se penetrados do maior
respeito e veneração.
Quando o santo Padre saiu da sua contemplação e voltou a terra,
dirigiram-lhe novas perguntas sobre o grito aflitivo e as palavras
estranhas que lhe tinham escapado. A sua humildade confunde-se, não
responde e faz desviar a conversação com a graça e encanto tão
conhecido nele. Porém logo que chegaram a uma das ilhas de Moro,
viram oito cadáveres de portugueses vertendo ainda sangue!... os
naturais da ilha acabavam de os assassinar e tinham abandonado os seus
corpos na praia! Deram-lhes sepultura coxas a convicção de que era
aquela "a pobre gente" que o santo Padre vira matar.
Cumprido aquele dever, Xavier, acompanhado dos seus amigos,
dirigiu-se com todo o ânimo para a primeira aldeia. À vista dos
europeus, os naturais fogem, persuadidos de que vinham pedir-lhes
contas do sangue português que acabavam de derramar.
O santo apóstolo encontra um meio de os reter: com sua meiga voz
canta a doutrina cristã. A voz de Xavier era sã, harmoniosa,
simpática como uma voz angélica. Os insulanos detém-se,
escutam-no e voltam para aquele que encanta os seus ouvidos e faz
vibrar nos seus corações uma corda até ali desconhecida.
Dirigindo os olhos admirados para o celestial semblante de Xavier,
encontram o seu olhar atrativo , e magnético, ao qual bem poucos
índios resistiam, e vieram para ele atraídos irresistivelmente.
Avançando para os selvagens, o amável Santo estende-lhes os
braços; acolhe-os, transmite-lhes o desejo que experimentava há
muito tempo de vir trazer-lhes a felicidade da vida presente e a da
vida futura... E é atendido, é acolhido, é amado!
"Estas ilhas, disse ele, não se chamarão daqui em diante ilhas de
Moro; mas sim da divina Esperança!"
E não se enganava; teve um resultado prodigioso em todo o país,
chamado então a Morica Sofreu grandes privações entre aqueles
selvagens; foi até mesmo perseguido pelo ódio de alguns, mas a
docilidade da maior parte, a felicidade de haver vencido aqueles
povos, de quem pessoa alguma se atrevia a aproximar, e de ter
estabelecido naquele país tão temido, o império da Cruz, o reino
de Jesus Cristo, eram para o coração apostólico do nosso Santo
mananciais de consolações que mal podia exprimir: Assim escrevia a
seus irmãos
|
"...Todos os perigos a que a gente se expõe aqui, todas as
privações e incomodidades que se experimentam pela glória de Nosso
Senhor Jesus Cristo, são outros tantos tesouros donde dimanam
imensas consolações.
As lágrimas que aqui se derramam são tão deliciosas, que não me
recordo de haver experimentado alegrias interiores que lhes sejam
comparáveis! Nunca suportei com tamanha facilidade os trabalhos que
me impus; jamais me lancei aos perigos com tanta intrepidez!
E contudo, eu estava cercado, desde o primeiro dia, de inimigos de
natureza feroz, em ilhas desprovidas de todos os meios habituais da
vida, e que não oferecem recursos nem no estado de saúde, nem no
estado de doença. O verdadeiro nome daquelas ilhas deve ser daqui
para o futuro o da divina Esperança.
Encontra-se ali uma raça de selvagens chamada Javares, que julga e
crê adquirir a imortalidade matando os cristãos que encontram. A
falta de sangue estrangeiro derramam ode suas mulheres e filhos; mas
procuram, sobretudo, o sangue cristão.
Uma daquelas ilhas é constantemente agitada por tremores de terra;
umas vezes é envolvida por nuvens de cinza e de fumo lançada pelos
vulcões, outras vezes é alumiada por chamas vomitadas por esses
abismos aterradores.
Os insulanos estão convencidos de que a sua ilha é uma imensa
fornalha que consome o próprio rochedo sobre o qual a povoação esta
estabelecida. Isto parece verosímil, porque nas frequentes
explosões daqueles vulcões, se vêem enormes massas de rochedos
lançados pelos ares a uma altura prodigiosa, e nas ocasiões dos
temporais, as suas cavernas expelem para as planuras tamanha quantidade
de cinza incandescente, que os lavradores dos campos ficam desfigurados
...
...Em dia de São Miguel, durante a minha missa, houve ali um
tremor de terra tão violento que julguei ver o altar de todo voltado.
Veio-me então ao-pensamento que se travava um combate entre este
valoroso arcanjo e os demônios daquelas ilhas que ele expulsava dos
seus terríveis esconderijos...".
|
|
Os insulanos que assistiam ao santo sacrifício, fugiram
precipitadamente, temendo serem vítimas se se conservassem ali até ao
fim; o seu santo apóstolo ficou só no altar, e concluiu a missa.
Em três meses o heróico Xavier, que os Moroenses olhavam como um
ser sobrenatural, fizera para Deus a difícil conquista daquele grupo
de ilhas, apesar dos meios empregados por alguns rebeldes para lhe
obstar e destruir os resultados da sua empresa. Tentaram até
tirar-lhe a vida; mas a Providência o salvou sempre das traições
que lhe armava o inferno.
Perseguido um dia por alguns selvagens, o Santo vê-se detido por um
largo rio; descobre próximo de si uma, longa vara, lança-a
através do rio, aventura-se sobre aquela fraca ponte, confiado na
proteção divina, e salva-se.
Chegara o momento de deixar os Moroenses. Recomendou-lhes as suas
instruções, e voltou a Ternate onde foi recebido com demonstrações
da mais notável alegria.
Desde a manhã seguinte o seu confessionário via-se tão concorrido e
com tanto empenho, como o havia sido antes da sua partida; não lhe
deixavam nem um só instante de descanso.
Feliz pelas disposições dos seus queridos Ternatenses, o santo
apóstolo, que não aspirava senão pelo descanso da eternidade,
prestou-se gostosamente aos desejos de cada um, e voltou aos seus
trabalhos habituais.
Todos os habitantes de Ternate, sem exceção, se chegaram aos
sacramentos com a mais fervorosa devoção. Depois de lhes ter
concedido três meses, separou-se deles o grande Xavier para voltar a
Malaca e dali para o cabo Comorim a fim de tornar a ver os seus
estremecidos Paravás, seus primeiros filhos da Índia. Desejava
também fazer uma viagem a Goa para os interesses da Companhia de
Jesus nas Índias, porque ela começava a progredir de modo que dava
as mais belas esperanças.
Esta segunda ausência de Ternate dilacerou o coração de Xavier;
assim se exprime escrevendo a seus Irmãos da Companhia
|
"...Com o fim de me subtrair aos choros e aos lamentos dos meus
presados neófitos, quis aproveitar-me do silêncio e da obscuridade
da noite para o embarque. Não o pude, porém, conseguir porque o
meu projecto foi descoberto, comunicado em segredo, e no próprio
momento me vi cercado por todos os filhos que eu havia criado para,
Jesus Cristo!
Confesso a minha fraqueza, pois que me encheu o coração de
enternecimento e dor a vista aquele rebanho que com a minha ausência
ficava exposto a ser presa do inferno! Pedi-lhes que se reunissem
numa igreja que ali recitassem e cantassem o catecismo, do mesmo modo
que faziam em minha presença, e que o decorassem. Um Padre muito
apreciado e meu sincero amigo consolou-nos prometendo-nos
encarregar-se da direção daqueles exercícios de piedade como eu os
havia estabelecido...".
|
|
Que sensibilidade naquele coração de apóstolo, e que
enternecimento, doçura e encanto na maneira franca e sincera como
aquele grande e magnífico conquistador de almas exprime o bem que
produziu, e a promessa do Padre que o devia substituir: "ele
consolou-nos". A sua humildade não lhe permite supor que os seus
queridos neófitos sentissem tanto a falta da sua pessoa quando um outro
lhes prodigalizasse os mesmos cuidados; parecia ignorar o poder que
Deus lhe dera!
Levava o nosso Santo para o colégio de Goa trinta jovens índios
para ali serem educados e instruídos com o fim de entreterem e
conservarem a fé nas Molucas quando voltassem.
No momento em que o navio que conduzia o apóstolo venerado levantou
ferro, um grito de consternação se elevou da praia e retiniu até ao
fundo do coração tão sensível e amável de Xavier; novas lágrimas
se escaparam dos seus olhos, retirou-se, entregou-se à oração e
ofereceu a Deus a sua dor e os seus votos pelo estremecido rebanho dó
qual a divina vontade o separava.
Em Ambóino demorou-se Francisco Xavier alguns dias com o fim de
reavivar o fervor religioso dos seus neófitos. Quatro navios
portugueses se achavam então no porto; visitou as equipagens e fez
erigir uma capela à borda do mar
"Passei vinte dias entre os marinheiros e soldados, escrevia ele;
preguei três sermões, confessei muitos, acabei com as suas
desavenças e lhes disse ao despedir-me: A Pai :da convosco".
Um dia, enquanto ele pregava às equipagens, parou e disse-lhes,
depois de um instante de silêncio
"Orai por Diogo Gil; recomendai-o a Deus, por que ele está em
agonia em Ternate".
Soube-se pouco depois que Diogo morreu no mesmo dia.
Quando os navios portugueses estavam para se fazer à vela de volta a
Malaca, Xavier observou aquele que parecia o mais forte e que sabia
estar mais ricamente carregado, e dirigindo-se a Gonçalo
Fernandes, a quem o navio pertencia, disse-lhe:
- "Senhor Gonçalo, este navio passará por um grande perigo! Que
Deus vos livre dele!"
No estreito de Sabon, o navio choca contra um rochedo, despedaçando
o leme e ameaçando abrir infalivelmente o casco; todos se preparam
para se lançarem ao mar... Uma vaga, porém, levanta o navio,
desencalha-o e leva-o ao largo...
Xavier havia dito: "Que Deus vos livre!" Deus o havia ouvido, o
navio estava "salvo".
O nosso Santo visitou todas as povoações da ilha de Ambóino e fez
erigir uma cruz em cada uma; uma destas cruzes, colocada pelo próprio
Santo, adquiriu no futuro uma grande celebridade por ocasião dum
milagre que julgamos dever referir aqui com a maior simplicidade.
A estiagem aterrava o pais, e alguns habitantes falavam já em
recorrer aos seus antigos ídolos e fazer-lhes oferendas para obter a
chuva desejada, quando uma mulher exclamou entusiasticamente:
- "Voltar ao ídolo? Ah! o que diria o santo Padre? Não ternos
nós a cruz da margem do rio, e o santo Padre, quando a colocou,
não nos disse: Meus queridos filhos, vós vireis para ao pé desta
cruz pedir ao nosso Pai que está rio Céu, as coisas de que
carecerdes, e tudo quanto lhe pedirdes pelos merecimentos de Jesus
crucificado, ela vos concederá?"
"O santo Padre o disse e ele nunca nos enganou! Antes de
recorrerdes ao ídolo vinde à cruz comigo!"
A índia arrasta assim toda a povoação para junto da cruz, pede a
Deus que lhes conceda a chuva, pois que o santo Padre prometera que
se obteria tudo quanto se pedisse pela virtude da cruz; suplica-lhe
não permita que se volte ao ídolo, que não é mais do que um
demônio. Enquanto ela ora com aquela simplicidade de fé, cobre-se
o céu de espessas nuvens, a chuva cai brandamente e continua a cair
sem interrupção por todo o tempo necessário para reparar os
prejuízos que a seca produzira.
Francisco Xavier deixou, finalmente, aquele bom povo que comparava
muitas vezes aos primeiros cristãos, e embarcou para Maloca, onde
chegou em julho de 1547. Encontrou ali os padres João da
Beira, Nunes Ribeira e Nicolau Nunes, aos quais ele ordenara que
fossem para as Molucas, e esperavam que algum navio se fizesse à vela
com aquele destino.
O Padre Francisco Maneias recebera igualmente ordem de partir com
eles, porém, persuadido de que a sua presença era necessária no
cabo Comorim e que o seu superior não podia avaliar bem as coisas de
tão longe, deixou de obedecer. Xavier, apreciando diversamente a
santa obediência e considerando-a como a primeira virtude necessária
em um bom religioso, não hesitou em expulsai da Companhia aquele
membro recalcitrante.
Dois dos missionários que vinham auxiliar o ilustre apóstolo haviam
chegado a Goa com mais sete Padres europeus, de entre os quais alguns
estavam na Costa da Pescaria. Os filhos de Santo Inácio
tinham-se já multiplicado a ponto de poderem destacar nove duma vez
para as Índias, mas Xavier pedia ainda e pedia sempre!
Esperando que algum navio se fizesse à vela para as Molucas, deu as
suas instruções aos três Padres que para ali mandava; instruiu-os
mesmo na missão de Maloca no modo de exercer o apostolado naqueles
países, onde tantos frutos respondiam aos seus incríveis trabalhos,
e foi para ele uma verdadeira alegria poder guardá-los junto de si por
aquele tempo todo, porque embarcaram só pelos fins de Agosto.
O apóstolo estremecido não teve menos que fazer durante a sua
permanência em Maloca; todos queriam confessar-se a ele, e escrevia
aos seus irmãos de Roma:
|
"Não podendo satisfazer a todos, fiz descontentes, mas eu lhes
perdoei de boa vontade os seus azedumes, porque aquele despeito provava
os desejos que tinham de se reconciliarem coxa Deus e tornarem-se
melhores para o futuro".
|
|
Que doce caridade! que tocante indulgência!
João de Eiro viera de Ambóino com o nosso Santo, e sem nada lhe
dizer, aceitou uma considerável soma que um rico português lhe deu
para acudir às necessidades do santo Padre; mas era difícil
ocultar-se uma coisa daquele gênero àquele a quem Deus esclarecia em
tudo.
Xavier, que queria viver da pobreza evangélica em todo o seu rigor,
achou tão culpável a ação de João de Eiro, que julgou dever
puni-lo severamente. Ordenou-lhe que passasse' para uma ilha
deserta, vizinha de Malaca, onde viveria e pão e água unicamente,
e que passaria ali os seus dias em ração; acrescentando:
- Um tal ato de avareza é uma injúria feita à pobreza evangélica;
ela deve ser expiada! Ide! não volteis sem que eu vos chame!
João de Eiro amava o santo Padre com tão terna afeição, que nem
pensou em resistir e desobedecer; não hesitou nem um instante;
deixou-o logo, fez a sua provisão de pão, foi desterrar-se na
solidão que lhe era designada, e ali viveu cumprindo a ordem que
recebera.
Um dia, durante a sua oração, aparece-lhe a divina Mãe com
semblante severo; ele quer aproximar-se... ela repele-o e lhe diz
que não deve pretender a honra de entrar na Companhia de Jesus, e
desaparece.
Eiro, chamado poucos dias depois por Francisco Xavier, não lhe
fala da sua visão; mas Xavier conta-lha com todos os pormenores.
Eiro, que desde muito tempo desejava entrar na Companhia, julgou que
podia negar o facto procurando persuadir-se que não passava dum
sonho, tanto nele como em Xavier, e negou, portanto,
resolutamente.
- Ide! disse-lhe o nosso Santo; eu sei a quem me deverei dirigir
acerca disto. Vás faltastes à lealdade e amais o dinheiro; não
podemos viver doravante juntos; separemo-nos, pois. Contudo, quero
que saibais, para vossa consolação, que Deus vos iluminará e vos
concederá a graça de vos receber um dia na Ordem de S. Francisco
[50].
|
|