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FRANCISCO XAVIER embarcou ao primeiro de janeiro de
1546, com João de Eiro, em um navio português que fazia vela
para Banda, mas que devia deixá-los em Ambóino. Todos os
passageiros eram índios, os marinheiros eram-no também, e uns e
outros, maometanos ou pagãos, pertenciam a diversas raças, cujas
línguas diferiam por tal modo que não se entendiam senão com os da
sua própria tribo.
Em poucos dias o Padre Xavier viu-se tão estimado, tão procurado
de todos, que julgou oportuno o momento de dar a Deus todas aquelas
almas,, cujo único senhor havia sido até ali o inferno, e sem se
inquietar com a diversidade das línguas, começou a falar das verdades
cristãs aos que o cercavam. Viu-se então operado um maravilhoso
prodígio, desconhecido desde a origem da Igreja Cristã!...
Xavier é compreendido de todos ao mesmo tempo, como se falasse a
língua materna de cada um; todos se vêem surpreendidos do mesmo
assombro, todos experimentam a mesma admiração, o mesmo respeito
pelo apóstolo que desde logo lhes havia inspirado tão agradáveis e
benéficos sentimentos.
Nenhum de entre eles pensava em recuar diante duma religião que opera
tais maravilhas; todos solicitam a graça do batismo, todos se mostram
ávidos pela santa palavra de Xavier, todos se fazem cristãos pelo
ministério, mil vezes abençoado, do apóstolo tão querido de
todos.
Depois de seis semanas de navegação, o capitão, não descobrindo
as costas de Ambóino, julgou ter-se enganado na direção; o
piloto, partilhando aquele receio, disse-lhe um dia:
- Capitão, eu creio que nós temos seguido uma falsa derrota; pelos
nossos cálculos de ontem, deveríamos ter hoje Ambóino à
vista...
- Estai tranqüilos, disse o Padre Xavier; nós estamos no golfo,
e descobrireis Ambóino amanhã antes do nascer do sol.
E efetivamente ria manhã seguinte, desde a aurora, descobriam-se as
costas de Ambóino. Como o navio não devia ancorar senão em
Banda, Xavier e João de Eiro, passaram para uma canoa com alguns
outros passageiros, e a embarcação continuou a , sua viagem.
Quando a canoa ia a atracar, foi descoberta e perseguida pelos piratas
costeiros; o navio, já muito longe, não a podia socorrer, ia ser
presa, as fustas [47] aproximavam-se, era necessário e urgente
tornar a ganhar o alto mar à força de remos, não obstante o perigo
que corria uma tão frágil embarcação, cuja carga devia acelerar a
sua perda... Mas aquele frágil esquife levava o grande apóstolo e
não podia perder-se.
- "Vamos, agora podeis ganhar o porto, disse Xavier aos remeiros;
os corsários perderam-nos já de vista e retiraram-se. O perigo
está passado e nós abordaremos sem novidade".
De facto, abordaram, pouco depois, impelidos pelo melhor vento, a
16 de Fevereiro de 1546.
Logo que chegou, o primeiro pensamento, a primeira ocupação do
nosso Santo foi o de baptizar todas as crianças, porque aquelas
povoações eram cristãs desde a conquista, mas somente de nome:
"... Eu percorri todos os bairros, escrevia ele, e baptizei todas
as crianças que pareciam esperar por esta graça para irem gozar da
felicidade eterna, porque morriam quase todas depois de a terem
recebido.
Durante aquele tempo chegaram oito navios espanhóis comandados por
D. Fernando de Sousa, que vinham do México; arribaram aqui e
tiveram de demorar-se por três meses. É difícil fazer-se uma
idéia cabal dos trabalhos que eles me deram. A mim mesmo me custa a
acreditar.
Eu pregava, apaziguava as inimizades dos soldados, confessava,
consolava e tratava dos doentes, assistia aos moribundos,
fortificava-os contra os assaltos do demônio que não deixa de
perturbar as almas naquele terrível momento; penosa obrigação a
cumprir para com aqueles que têm vivido em um completo, esquecimento
de Deus e dos seus mandamentos!...".
As tripulações dos navios espanhóis vinham infestadas duma moléstia
contagiosa de que o humilde Xavier pouco fala, por isso que só ele
foi capaz de desempenhar todos os cuidados que reclamava aquela dolorosa
situação. Ia dum a outro navio, ou em terra às palhoças, acudir
aos atacados.
Viam-se aqueles pobres doentes disseminados pelas praias ao longo da
costa, para diminuir a acumulação nos navios por que os insulares
recusavam recebê-los no interior e perto deles.
Francisco Xavier exerceu prodígios de caridade para com todos,
parecendo multiplicar-se de dia e de noite para distribuir os seus
cuidados às almas e aos corpos. Levou a sua abnegação a ponto de
enterrar por suas mãos os mortos.
Não se pode compreender, finalmente, como ele podia satisfazer a
todos aqueles trabalhos. Contudo, ainda achava tempo para percorrer
as casas dos habitantes, a fim de lhes pedir medicamentos e socorros,
que algumas vezes lhe recusavam.
D. João de Araújo em cuja companhia havia feito a viagem de
Malaca a Ambóino, auxiliava-o muito no socorro dos pobres
espanhóis; porém, como a doença se prolongava muito, a caridade de
João de Araújo mostrou esfriar-se em prover às necessidades dos
doentes que cresciam sucessivamente.
Um dia o caritativo apóstolo mandou-lhe pedir vinho para fortificar
um pobre soldado cuja excessiva debilidade carecia daquela bebida;
João de Araújo, fazendo aquela esmola, respondeu que era a última
vez que lhe dava do seu vinho:
- Quando já o não tiver para mim, onde quererá o Padre Francisco
que eu o compre?
Aquela resposta, contada ao Padre Xavier, indignou-o a ponto de
não poder conter o sentimento que nele produziu
- Como! exclamou, Araújo quer guardar o seu vinho para si e
recusa-o aos membros de Jesus Cristo! Pois daqui a pouco tempo ele
morrerá e todos os seus haveres serão distribuídos pelos pobres!
Aproximava-se o mês de Maio que traz o inverno àquelas regiões, e
conquanto a doença não estivesse de todo extinta, a esquadra
espanhola devia largar daquele porto e fazer-se à vela para Goa.
Francisco Xavier escreveu muitas cartas aos seus amigos de Malaca,
onde ela devia tocar; e aos Padres de Goa, onde devia invernar,
pedindo-lhes todo o seu interesse, toda a sua caridade para com os
pobres doentes dos quais se separava com grande pesar, depois de lhes
ter procurado os necessários socorros até ao último momento da
partida.
Xavier recolheu frutos abundantes na ilha de Ambóino. Muitas
famílias das costas, querendo abrigar-se da pilhagem contínua dos
piratas, haviam-se refugiado para o interior das florestas e das
cavernas; ele procurou-as, visitou-as, instruiu-as com uma
solicitude digna do seu zelo e da sua caridade.
Converteu todos os pagãos e muçulmanos; fez erigir uma igreja em
cada aldeia e designou aquele que devia presidir às reuniões que ali
deviam promover, até que chegassem os missionários; numa palavra,
fez prodígios em Ambóino como em toda a parte.
A Providência seguia com tanto amor do seu divino olhar, os
trabalhos do ilustre apóstolo, que ia levar o nome de Jesus Cristo
às extremidades do mundo, que quis dar-lhe um testemunho da sua terna
solicitude, de que ele foi o único objecto.
Até ali todos os milagres operados pelo nosso Santo tiveram, por fim
a conversão dos pagãos, dos infiéis ou dos grandes pecadores.
Alguns escapavam à sua solicitude; seu coração tão sensível à
voz da dor, não resistia aos seus lamentos e à sua fé. Mas Deus
queria fazer para Xavier especialmente um prodígio que parecesse não
ter por fim senão provar--lhe o seu amor.
Depois de ter evangelizado a ilha de Ambóino, quis o Padre Xavier
visitar as pequenas ilhas circunvizinhas, enquanto não se lhe
oferecesse ocasião oportuna de passar às outras terras mais
afastadas.
Acompanhado de João Ragoso e Fausto Rodrigues, deixando João de
Eiro na direção dos cristãos de Ambóino, dirigiram-se numa
ligeira embarcação para Baranura. Bem depressa se declarou uma
tempestade tal que os próprios marinheiros ficam aterrados; já se
julgavam perdidos. Francisco Xavier toma o seu crucifixo,
inclina-se sobre a borda do barco para o mergulhar naquele mar em
fúria... e o crucifixo escapa-lhe da mão! O Santo apóstolo
mostra-se em extremo consternado por aquela perda, chora aquele
tesouro, que havia operado. tantos prodígios, tesouro que o
consolara tantas vezes nas amarguras do seu laborioso e penoso
apostolado.
Ragoso e Rodrigues tomam viva parte naquela dor do seu Santo amigo,
pesarosos ainda mais por não terem meio algum de substituírem, ao
menos materialmente, o precioso objecto que as vagas lhe arrebataram.
Na manhã seguinte aportaram à ilha de Baranura, depois da mais
perigosa travessia, com o mar constantemente mau e a tempestade
permanente.
Decorrera já mais de vinte e quatro horas que o crucifixo caíra ao
mar. O Padre Xavier, acompanhado de Rodrigues, dirigia-se para o
bairro de Tálamo, seguindo pelo litoral, quando, depois de terem
caminhado uns quinhentos passos, próximamente, viram sair do mar e
vir para eles um caranguejo trazendo entre as suas garras, que trazia
levantadas, o crucifixo de Francisco Xavier! O caranguejo vai
direito ao Santo apóstolo e pára junto dele. Xavier ajoelha-se,
prostra a fronte em terra, toma o seu amado crucifixo que lhe será
dali em diante muito mais precioso, beija-o com todo o amor e
reconhecimento de que está cheio o seu coração, e o caranguejo,
voltando sobre os seus passos, desapareceu nas ondas [48].
Fausto Rodrigues, testemunha deste milagre, acrescenta, na sua
narração, que o Padre Xavier, depois de, ter beijado muitas vezes
o seu maravilhoso crucifixo, conservou-se por meia hora em oração,
com as mãos cruzadas sobre o peito, agradecendo à divina Bondade um
tão admirável prodígio.
Rodrigues agradecia também, pela sua parte, por lhe ter sido
permitido presenciar aquela sublime maravilha, de que ele deu
testemunho sob a fé de juramento, e que menciona a bula da
canonização.
O grande apóstolo teve, contudo, o desgosto de não ser escutado em
Baranura, e passou dali a Rosalau, onde também foi mal sucedido.
Só encontrou ali um coração acessível à verdade, e por isso só
fez um cristão, a quem deu, no batismo, o nome de Francisco e lhe
predisse que morreria na graça de Deus, invocando o santo nome de
Jesus; aquela predição foi cumprida quarenta anos mais tarde.
Francisco, servindo na armada de D. Sanches de Vasconcelos,
governador de Ambóino, foi mortalmente ferido, e até ao seu último
suspiro lhe ouviram repetir: "Jesus, assisti-me! Jesus, tende-
piedade de mim!"
De Rosalau, passou Xavier a Ulata. Toda aquela ilha estava nessa
ocasião envolvida em guerra; o inimigo interceptara os víveres, o
rei, cercado por todos os lados, achava-se a ponto de se render.
Faltava absolutamente a água e não havendo esperanças de chuva, era
necessário depor as armas ou deixar morrer de sede homens e cavalos.
Xavier, cheio de confiança, pede para ser conduzido à presença do
rei, oferecendo-se a procurar-lhe água que restituísse ao seu
exército a força e a vida prestes a extinguir-se.
O rei recebeu-o com a maior satisfação:
- "Eu venho, disse-lhe o nosso Santo, anunciar-lhes o Deus que
é o Senhor Supremo da natureza, que pode à sua vontade abrir as
fontes do céu e fazer cair a chuva sobre a terra. Permiti que eu
eleve aqui uma cruz, tende confiança no Deus que eu prego, e
prometei-me reconhecer o seu nome e submeter-vos à sua lei, se ele
vos conceder a chuva que eu vou pedir ara vós".
O rei teria prometido tudo naquele momento; deu a sua palavra e
permitiu a ereção da cruz.
Xavier fê-la levantar no ponto culminante da mais alta montanha, e,
em meio da multidão que aquele espetáculo havia atraído, implora em
alta voz as misericórdias celestes pelos merecimentos do Salvador
crucificado, e solicita um pouco de água para a salvação daquelas
almas por quem Jesus Cristo deu todo o seu sangue.
E eis que o céu se cobre de nuvens e uma chuva abundante cai durante
três dias sobre aquele povo atribulado!
Os inimigos levantam o cerco, cessa a chuva, a palavra abençoada do
ilustre apóstolo é compreendida e fortificada, e a ilha toda,
arrancada ao inferno, se submete à lei evangélica, outorgada pela
Igreja de Jesus Cristo.
Iguais resultados coroam as suas pregações em todas as ilhas
circunvizinhas, e o infatigável Xavier volta a Ambóino, donde
embarca para Ternate.
Partiu em um barco índio, chamado Carácora que ia de conserva a um
outro navio pertencente a João Gaivão, mercador português, e cujo
precioso carregamento fazia toda a sua fortuna. Logo que entraram no
golfo, de noventa léguas de extensão e perigoso em todo o tempo, os
dois navios foram separados pela tempestade; o que levava o "vaso de
eleição" salvou-se dos grandes perigos e aportou em Ternate, o de
Gaivão perdeu-se de vista.
Desde a sua chegada, Francisco Xavier fez ouvir a sua poderosa voz e
atraiu a si um grande número de indivíduos que crescia todos os dias.
No domingo imediato, detém-se no meio da sua instrução, parece
recolher-se, e depois diz aos seus ouvintes:
"Meus irmãos, orai por João Galeão que acaba de morrer no
golfo!"
Três dias depois, o corpo de Gaivão e os destroços do seu navio,
eram arrojados pelas vagas às praias de Ternate. O nosso humilde
apóstolo, convencido de que ele se livrara de igual sorte por um
milagre da bondade divina, escrevia aos Padres da Companhia de
Jesus, em Roma:
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"...O nosso navio, impelido pela tempestade, foi lançado para
cima dum banco de areia que sulcou com a quilha e com o leme na
extensão duma légua. Se em vez daquele banco nós tivéssemos
encontrado um rochedo à tona da água, teria sido infalível a nossa
perda; bastou aquela idéia para produzir um mortal terror em toda a
equipagem.
Que de lágrimas vi eu correr! que de gritos e lamentos eu ouvi!
Porque parecia que a morte viria dum a outro momento. Porém Deus,
na sua misericórdia quis unicamente experimentar-nos, e revelar-nos
a extensão do seu poder e ao mesmo tempo a insuficiência dos nossos
meios e a fraqueza da nossa inteligência.
Quando nós tivermos compreendido a vaidade das esperanças fundadas no
homem, teremos uma absoluta confiança naquele que só por si pode
dissipar os perigos que corremos no seu serviço. Compreenderemos
então que a natureza inteira está nas suas mãos, e que os terrores
que nos inspira algumas vezes estão muito abaixo das alegrias
celestiais de que inunda, no próprio momento, aqueles que afrontam os
perigos c a morte pela glória do seu santo nome!
A morte não tem horror para a alma que goza em paz aquelas divinas
consolações!
Não sei como isto aconteceu, mas quando o perigo passou, conquanto
eu esteja ainda muito impressionado, e me faltem expressões para o
descrever, ficou-me uma lembrança deliciosa da bondade divina que de
contínuo me leva a empreender com coragem e a suportar pacientemente os
trabalhos mais penosos e de maior perigo. Esta lembrança tem a minha
alma num profundo respeito e nutri em mim a esperança de que Deus, na
sua infinita misericórdia, não cessará de me dar forças e coragem
para trabalhar em seu serviço no futuro com constância e
felicidade...".
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Nas suas frequentes viagens por mar, conservava o nosso Santo um
sossego de espírito e sangue frio que excitava a confiança e a
admiração da equipagem e dos passageiros. No momento em que se
desenvolvia uma tempestade, ele fazia um apelo às consciências,
exortava a todos a se prepararem para a morte e ouvia as confissões de
cada um, depois entregava-se à oração e ali permanecia durante todo
o tempo que durava a tormenta, ou pelo menos até que não fosse
reclamado o seu ministério; então despertava no mesmo instante da sua
contemplação, mas voltava a ela logo que tivesse cumprido o seu
dever.
A ilha de Ternate era ainda mais cheia de vícios do que Malaca; mas
a voz e a palavra do nosso grande apóstolo, sempre abençoada, sempre
fecunda, produziu ali resultados maravilhosos de conversão e de
penitência.
Poucos dias depois de haver anunciado a morte de Galvão aos seus
ouvintes, Francisco Xavier, celebrando a missa, voltava-se para
dizer o "Orate fratres", quando, subitamente, esclarecido por um
poder oculto acrescentou, em linguagem vulgar: "Orai também por
João de Araújo que acaba de morrer em Ambóino".
Dez dias depois, um navio procedente de Ambóino trazia a notícia
daquela morte; acrescentava-se que, não tendo Araújo herdeiro
algum, os seus bens tinham sido distribuídos pelos pobres, conforme a
lei.
Aquelas duas predições, tão prontamente verificadas pelos próprios
factos, contribuíram poderosamente para os brilhantes sucessos das
pregações de Xavier. Ele não saía do confessionário senão para
pregar, catequizar ou administrar os sacramentos. Perguntava-se como
era que ele podia satisfazer a todos aqueles trabalhos e chegava-se à
convicção de que seria impossível suportá-los a não ser por efeito
dum permanente milagre.
Neaquila, rainha de Ternate, destronada pelos portugueses, sentira
redobrar o seu ódio pelos cristãos, por causa da injustiça de que
havia sido vítima. Porém aquela princesa ouve a palavra do apóstolo
do Oriente, e os seus sentimentos de ódio afrouxam-se, a sua
irritação acalma-se, sua alma abre-se para a luz do Evangelho.
Xavier baptiza, dá-lhe o nome de Isabel e, descobrindo-lhe
disposições piedosas, dirige-a com o maior cuidado e leva-a, em
pouco tempo, a uma grande perfeição.
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