III. CELEBES, MACASSAR E TERNATE - PARTE PARA AS ILHAS DE MORO

A ilha de Celebes, completamente infiel e muito considerável pela sua extensão e população, atraía o zelo apostólico do nosso Santo; para lá foi, evangelizando em primeiro lugar a cidade de Tolo, a mais importante, e bem depressa conseguiu baptizar mais de vinte e cinco mil habitantes. Ali, como em toda a parte, fez erigir igrejas e levantar cruzes, e deixando as suas instruções para a manutenção da fé, internou-se pela ilha.

Deve aqui ser consignada a época do seu apostolado em Macassar; os documentos têm a lacuna da data; sabe-se tão somente que ele pregou naquela capital com um tal resultado, que baptizou o rei e sua família.

A princesa Leonor, filha do rei de Macassar, levada pelas circunstâncias para a cidade de Malaca, narrara muitas vezes a Dona Joana de Melo, esposa do governador, os prodígios operados por Francisco Xavier na capital da ilha de Celebes, prodígios cuja memória conservava, conquanto não pudesse precisar a data.

Enquanto o apóstolo ampliava o reino de Jesus Cristo nas principais cidades daquela ilha, vieram comunicar-lhe que o rei de Tolo, que recusara renunciar aos seus deuses para viver mais comodamente no gozo das suas paixões, fazia destruir as igrejas e derribar as cruzes; acrescentava-seque ele obrigava os neófitos a calcar aos pés as cruzes abatidas, e que o terror dominava tudo.

A esta nova, exalta-se o zelo de Xavier. Reúne os seus amigos portugueses, em número tão somente de oito, e diz-lhes

- Deixaremos impune um tal atentado à Majestade divina? Mereceremos o glorioso título de soldados de Jesus Cristo, se não acudirmos em sua defesa, se não soubermos fazer respeitar a sua lei e castigar os revoltosos do seu império? Partamos! tomemos os quatrocentos cristãos indígenas que nos cercam, vamos atacar o rei na sua praça-forte de Tolo, sem nos importar com o número avultado dos seus guerreiros! Que nos importa o número! Deus está por nós; eu vos prometo a vitória!...

- Marchemos, meu Padre! respondem todos os portugueses; estamos prontos a dar o nosso sangue e a nossa vida, se necessário for, por uma só das vossas ordens!

O santo apóstolo abraça-os, aperta-os ao coração, assegura-lhes sobretudo a mais brilhante vitória e enche-os de entusiasmo. Prontamente se organiza o pequenino exército, marcha-se sobre Tolo e quando se achavam já a pouca distância, o grande Xavier detém-se e prostra-se para orar. A sua gente também se detém e ora a seu exemplo, feliz e orgulhosa por se ver comandada por um tal chefe. Ouve-se no mesmo instante uma horrorosa detonarão... e as chamas do mais violento incêndio cobrem a cidade e a devoram!

Tolo era dominada por uma montanha... Aquela montanha acabava de abrir-se repentinamente, e lançava, com a mais desesperadora impetuosidade, pedras, cinza, a lava incendiária e enxofre inflamado! Os estilhaços das rochas voam em bocados encandescentes e caem sobre as habitações que abatem e consomem! A terra treme, o solo parece faltar sob os pés dos habitantes que fogem e vão buscar um abrigo nas florestas. O montão de pedras e a lava, que não cessa de sair do vulcão, excede bem depressa a altura das muralhas da cidade, onde não fica nem um só indígena!...

Finalmente cessa o flagelo, o Padre Xavier e os seus soldados entram na praça e tornam-se facilmente senhores dela. Então os culpados correm a cair aos pés do grande apóstolo, confessam publicamente os seus crimes, obtêm o perdão, e a penitência a que se sujeitam prova a sinceridade do seu arrependimento.

Celebes estava conquistada; a fé veio a ser ali viva e ardente; Xavier embarcou para voltar a Ternate, com disposição de levar mais longe o nome de Jesus Cristo

"...A setenta e duas léguas, proximamente, além das Molucas, - escrevia ele aos seus irmãos de Roma-, existe uma terra que se chama Morica, onde a religião cristã tendo sido pregada há muitos anos, foi abandonada por absoluta falta de Padres, e hoje se acha de todo extinta; e os seus habitantes levados à ignorância e barbaria primitivas.

Este país, rico e fértil, é o mais inóspito que existe sob o Céu. É com o veneno que os seus naturais acolhem os estrangeiros, e por esta razão têm afastado os missionários das suas costas desde muito tempo.

Contudo, em consideração às necessidades espirituais daquele povo, - tanto mais a lamentar porque os seus crimes são a conseqüência da sua ignorância e da completa ausência da nossa religião e dos sacramentos, - acho-me resolvido a tentar aquela conquista com perigo da minha vida, auxiliado e armado da minha única esperança em Deus, e de seguir com o patrocínio -da sua graça esta máxima do meu Mestre: Aquele que queira salvar a sua alma, a perderá, e aquele que a perder por mim, a raivará".

"...Os meus amigos fazem todos os esforços possíveis para me dissuadirem desta perigosa empresa; às suas lágrimas e aos seus rogos unem eles os quadros mais horrorosos dos factos ali ocorridos, e encontrando-me inacessível a todas as observações e oposições, tomaram a resolução de recorrerem a um outro expediente; fizeram uma grande provisão de contravenenos de toda a espécie; cada indivíduo me leva e me encarecia o seu.

Para contentar a todos e não causar invejas, recusei todas aquelas drogas e não quero outro recurso e outro antídoto mais que a confiança em Deus, que poderia, porventura, afrouxar-se em mim pelos preservativos da ciência humana.

Agradeci pois afetuosamente a todos os meus amigos pedindo-lhes o melhor e o mais eficaz de todos os contravenenos: o auxílio das suas orações...".

Vendo o governador de Ternate, D. João de Freitas, que os amigos do nosso Santo não conseguiam destruir a sua firmeza, fez publicar um édito impondo penas severas contra todo e qualquer capitão que recebesse a bordo do seu navio o Padre Francisco Xavier, com destino para a Morica, ou ilhas do Moro"[49].

A esta notícia, dirige-se o heróico apóstolo à presença do governador em audiência pública, e, não tendo em consideração senão o seu zelo, diz-lhe com o acento de nobreza que lhe era natural e a dignidade que lhe conhecemos

- "Eu vos sou em extremo reconhecido, senhor, por uma medida que julgastes dever adoptar unicamente em meu interesse, mas, seja-me permitido perguntar-vos e a todos os meus amigos aqui presentes se credes que o poder de Deus seja limitado? Vós tendes uma bem fraca idéia da graça do divino Salvador!"

"Existirão, pois, corações que possam resistir à virtude do Altíssimo quando lhe apraz enternecê-los e convertê-los? Aquela virtude, suave e forte ao mesmo tempo, que pode fazer florescer a planta morta, e do seio da pedra fazer nascer os filhos de Abraão?! Como! Aquele que submeteu o mundo ao império da Cruz pelo ministério dos Apóstolos não poderá também submeter um mesquinho ponto da terra? As ilhas de Moro ficariam unicamente privadas do benefício da Redenção? Quando Jesus Cristo ofereceu todas as nações ao Padre Eterno, como sua herança, teriam sido aqueles povos exceptuados? Eles são os mais bárbaros, eu creio; mas que a fossem ainda mais, é por que eu nada posso só por mim que espero muito deles. Eu tudo posso, confiado n'Ele que me fortifica, e de quem unicamente vem a força dos obreiros evangélicos!"

Notava-se uma tal inspiração na expressão do celeste semblante de Xavier, que todos o ouviam sem ousarem interrompê-lo, não obstante o enternecimento que cada uma das suas palavras produzia nos corações, que tão carinhosamente o amavam.

Os seus, ouvintes. eram seus amigos e não se achavam privados de todos os sentimentos humanos para com aquele que tão profundamente amavam e veneravam! O apóstolo tão querido continuou

- "Às nações menos selvagens e menos cruéis não faltarão pregadores! As ilhas de Moro são para mim, uma vez que ninguém as quer! Ah! se elas encerrassem minas de oiro, madeiras odoríferas, riquezas preciosas, os cristãos saberiam encher-se de coragem para afrontarem todos os perigos! nada os aterraria! Mas ali não existe, senão almas a conquistar, e para a aquisição daquele tesouro, eles não têm senão indiferença, timidez... e desprezo! Será, pois, necessário, vos pergunto eu, que a caridade seja menos corajosa, menos generosa do que a cobiça- e a ambição? Matar-me-ão, dizeis vós, pelo ferro e pelo veneno!...

"Esta graça não é concedida a um pecador como eu! mas atrevo-me a dizer-vos que, qualquer que seja o gênero de tormento ou de morte que me espere, acho-me pronto a sofrer mil vezes mais pela salvação duma só alma. Oh! se eu tivesse a felicidade de morrer nas suas mãos, talvez que todos eles adorassem o nome de Jesus Cristo!

"Desde a origem da Igreja o Evangelho tem frutificado nas terras incultas do paganismo, muito mais pelo sangue dos mártires do que pelos suores dos missionários. Nada há pois, a recear por mim nas ilhas de Moro; além disto, Deus me chama, os homens não me impedirão de obedecer à sua voz!"

Viam-se lágrimas em todos os olhos. O amável e Santo apóstolo era tão querido em Ternate, que logo que o édito ficou revogado, todos disputavam a graça de acompanhar Xavier às ilhas de Moro, e tais foram os pedidos e as instâncias, que o forçaram a aceitar a companhia de alguns dos seus amigos, e consolar aqueles que não podia levar consigo.

O povo cobria a praia no momento do seu embarque, e só se ouviam gritos de consternação e soluços de dor da parte dos índios, porque cada um deles lhe previa uma morte inevitável e o choravam como chorariam pelo mais carinhoso pai.

Era grande a comoção de Xavier; copiosas lágrimas corriam também dos seus olhos, mas originadas pela dor do povo: era ele o objecto daquela viva dor, via quanto era querido daquela gente que arrancara ao demônio e dera a Jesus Cristo, e o coração do nosso Santo não podia deixar de estar vivamente comovido por tanto reconhecimento e tanto amor.

De pé, sobre a tolda do navio, solicitou as bênçãos celestes para aquele querido rebanho, cujo pastor e pai era ele, deu o sinal de partida, a âncora subiu, e a multidão, ajoelhada na praia, levantou-se, trepou para os rochedos sobranceiros e ali se conservou por todo o tempo que foi possível descobrir-se a embarcação que conduzia o objecto venerado que os deixava cheios de pesares e da mais dolorosa solicitude. Ninguém esperava tornar a vê-lo nesta vida.

"Deus me chama às ilhas de Moro", dissera o ilustre apóstolo ao governador de Ternate e aos que se achavam reunidos em sua casa naquele momento.

Deus o chamava efetivamente e não tardou em prová-lo.