VI. OS VOTOS DE MONTMARTRE - CRIMINOSO PLANO

Miguel Navarro, pontual à entrevista que lhe concedera o seu jovem protetor, apresentou-se em sua casa na manhã seguinte à hora convencionada, e não podendo dissimular inteiramente o mau humor que se lhe conservava ainda do diálogo da véspera, atreveu-se a soltar de novo algumas expressões ásperas e zombeteiras, que D. Francisco repeliu com uma só palavra:

- "É demais!" disse ele, dando-lhe o dinheiro que vinha buscar.

Miguel empalideceu a esta palavra, cujo alcance compreendeu. Receou perder de todo a amizade e benevolência de Francisco, se o deixasse sob aquela impressão de descontentamento, e apressou-se a reparar o que ele chamava uma negligência. Tomou as mãos do jovem senhor de Xavier e beijou-as com tanta afeição e sinais de arrependimento, que o comoveram.

- Não pretendi afligir-vos, Miguel disse ele, mas sim fazer-vos compreender que não deveis falar daquele modo, de hoje em diante, em minha presença. Estimo e respeito D. Ínigo; e olvidemos isso.

Miguel estava consternado; a lembrança de alguns nobres espanhóis, que abraçaram por voto voluntário a pobreza, depois de convertidos por D. Ínigo, apresentava-se-lhe como um fantasma aterrador. Lançou-se aos pés de Xavier e suplicou-lhe, banhado em lágrimas; que não desonrasse a sua ilustre família, imitando D. Amador e D. João de Castro.

- Ide, Miguel, lhe disse Francisco, deixai-me a liberdade de dispor de mim sem necessidade de vosso consentimento: sei que a afeição que me dedicais é o que vos leva a falar-me desse modo; mas muito estimaria que fosse esta a última vez.

Miguel retirou-se devorado de tristeza e de raiva; perguntava a si mesmo qual seria o modo de se vingar de D. Ínigo e vingar ao mesmo tempo a família de Azpilcueta. Concebeu e rejeitou vários projetos, até que se decidiu a esperar, confiado em futuras inspirações.

Dias depois, D. Francisco declarava-se abertamente como um dos discípulos do seu caro mestre na vida espiritual, anelando o momento em que lhe fosse possível fazer um retiro sob a sua direção e seguindo os Exercícios Espirituais que D. Ínigo, inspirado pelo Céu, escrevera em Manresa.

Passava-se isto nas proximidades das férias. Logo que elas começaram, Xavier deixou o colégio e afastou-se do bulício do mundo para ir viver durante algum tempo, a sós com Deus, no retiro e na penitência.

Passou os quatro primeiros dias sem tomar alimento algum; a sua pungente dor por ter ofendido a Deus, e o seu desejo de o servir dali em diante, eram dois sentimentos tão ardentes da sua alma magnânima e verdadeira, que ele ligava os pés e as mãos, tanto quanto lhe fosse possível, antes da oração, e assim se apresentava em presença de Deus como uma vítima disposta a ser imolada; não deixava o cilício, jejuava todos os dias e orava sem cessar.

Enquanto Francisco Xavier se tornava um novo homem no seu retiro, o demônio, rugindo de raiva, apossava-se da alma de Miguel Navarro para lhe inspirar o infernal pensamento de subtrair ao Céu esta magnífica conquista, inutilizando o instrumento que ali o retinha.

D. Ínigo, como dissemos, habitava só o quarto dos três amigos; era, pois, favorável o momento, e se Miguel o deixasse escapar, poderia não ter outra ocasião igual.

A rua de Santo Hilário era completamente deserta durante a noite: além disto o convento do Carmo que ficava próximo, só se abriria em caso de necessidade; os conventos são casas de asilo e os seus vigias não podem prender ninguém... E, sobretudo, confiava que a família de Azpilcueta o protegeria, se preciso fosse, pois que era em defesa de sua honra que ele se expunha!... Assim raciocinava o espirito do mal na alma de Miguel Navarro.

Uma noite, pois, próximo da meia-noite e dias antes de terminar o retiro de Xavier, poder-se-ia ver uma sombra deslizar-se na escuridão e andar ao longo do muro do colégio de Santa Bárbara, na rua de Santo Hilário. Esta sombra parou no ponto correspondente ao ângulo formado pelo edifício com o passeio. Parecia escutar... porém o silêncio não era interrompido em torno dela, anão ser pela respiração abafada e pelas palpitações precipitadas dum coração que ela só sentia naquele momento.

Seguro por este lado, Miguel, porque era ele, tirou da, algibeira uma corda de nós que lançou ràpidamente sobre o muro e por ela subiu com ligeireza; escutou de novo... Nada!

O vento era tão ligeiro que não fazia agitar nem uma só folha das árvores do passeio; nem uma só luz alumiava as janelas; tudo dormia, tudo estava em profundo silêncio... e Satanás a impeli-lo sempre; e eis que Miguel se agarra à corda e nela se deixa balançar... Acorda é sólida, pode subir por ela... sobe, chega ao alto do muro e acha-se muito próximo da janela de D. Ínigo... Calcula os movimentos necessários, introduz a mão para dentro do seu gibão... e ela sai armada duma navalha catalã... Avança cautelosamente, e vai, finalmente, levantar o frágil caixilho da janela...

- Onde vais tu, desgraçado? que vais fazer? gritou uma voz vibrante, terrível, fulminadora como uma repreensão do Céu[15].

Miguel ficou aterrado! olhou por todos os lados... Não descobriu ninguém!... Escuta, todo trêmulo... O silêncio por toda a parte... exceto na sua alma...

- Meu Deus! meu Deus! murmurou o culpado, é S. Miguel, meu patrono!

E em seguida landa a mão à vidraça da janela, agita-a febrilmente, abre-a e precipitando-se para o interior da câmara, vai lancear-se dominado pelo terror, aos pés de D. Ínigo cuja oração interrompe; ali, de joelhos, faz a confissão do seu crime, implora o perdão e obtém-no.

O inferno estava vencido, triunfava o Céu.

Na volta do seu retiro, Xavier começou os estudos de teologia, e dirigido sempre pelo seu santo mestre, fez rápidos progressos no caminho da perfeição.

Ofereceram-lhe em vão um rico canonicato em Pamplona; recusou-o, por não ambicionar outras riquezas que não fossem as do Céu.

D. Ínigo, vendo-o tão seguro, e forte, comunicou-lhe os seus desejos de ir trabalhar na conversão dos judeus e infiéis que habitavam a Terra Santa. Xavier respondeu-lhe que o seguiria por toda a parte para onde ele fosse.

Pedro Fabro dera-lhe, meses antes, igual resposta.

No ano seguinte, 1534, Fabro recebeu as ordens sacerdotais e celebrou a primeira missa a 22 de julho. D. Ínigo, que aguardava aquele momento para reunir em torno de si todos aqueles que havia conquistado para o serviço de Deus, aconselhou-os a que se preparassem para aquela reunião por meio de penitências corporais e de longas e frequentes orações, a fim de atraírem a luz e a inspiração divina sobre a vocação de cada um em trabalhar pela salvação das almas, e maior-glória de Deus.

No dia fixado, os seus discípulos, em número de sete, reuniram-se a ele como fora combinado. Todos, homens de ciência, de elevado mérito e de reconhecida inteligência, contemplaram-se por um instante com mútua admiração, experimentando, cada um deles a mais viva comoção que se traía pelas lágrimas involuntárias que derramavam.

- "Compreendendo a comoção que experimentarieis, lhes disse Ínigo, quis que ignorásseis os nomes dos vossos companheiros escolhidos pelo Céu, com o fim de deixar os vossos corações mais livres em seguir as inspirações de Deus. Conheço que desde que vos vistes, o vosso zelo, a vossa coragem e a vossa confiança redobraram de vigor. Convenço-me de que Deus vos chamava a todos para uma empresa de muito grande importância. E se cada um de vós, em separado, é capaz de grandes empreendimentos, muito se pode esperar dos vossos trabalhos achando-vos reunidos para um único fim, por um único pensamento e com um único interesse, a glória de Deus e o bem da igreja! Tivestes tempo bastante para consultar, em presença de Deus, a vossa vocação, e vindes hoje declará-la."

"Por mim, não tenho mais que um só desejo: e vem a ser, conformar a minha vida com a do divino Modelo, socorrido da sua graça. A santidade pessoal de Jesus Cristo não foi julgada suficiente: padeceu, sofreu e morreu pela salvação dos homens. Desejo, pois, esforçar-me por imitá-lo quanto seja possível às minhas poucas forças. Trabalhando pela minha própria salvação quero dedicar-me à salvação dos meus irmãos".

Depois patenteou-lhes a dor que sofria a sua alma por ver que os Lugares Santos, que tinham sido banhados pelo sangue divino, se achavam transformados em verdadeiros infernos, e comunicou a resolução que tomara de ir trabalhar pela conversão dos infiéis da Terra Santa.

"Que feliz seria eu! exclamou ele, se me fosse permitido derramar o meu sangue, por uma tal causa, sobre aquela terra, regada pelo sangue do Redentor! Tenho esperanças de que um dia me será concedida uma tão grande felicidade! Confiado nestas esperanças, estou resolvido a entregar-me, a consagrar-me inteiramente a Deus, dedicando-me tão somente ao seu serviço para nunca mais pertencer senão a Ele, por um solene voto; desejo dedicar-me irrevogàvelmente à pobreza voluntária, à castidade perpétua e à viagem para a Terra Santa!"

Toda a alma de D. Ínigo parecia transportar-se para os seus discípulos à medida que ele lhes falava, e tal era a impressão e o respeitoso entusiasmo que experimentavam, que supunham escutá-lo, ainda algum tempo depois de ter cessado de falar. Despertados daquele êxtase, exclamaram espontaneamente e a uma só voz:

- "A Terra Santa! À Terra Santa!"

Em seguida todos se comprometeram a seguir o seu querido mestre na vida e na morte, e mestre e discípulos abraçaram-se com a maior ternura e comoção, com solene promessa de se amarem, de ali em diante, como irmãos, dos quais seria Ínigo o chefe, o irmão mais velho.

Combinaram depois no plano que deveriam seguir e concordaram em que terminados os seus estudos teológicos, dirigir-se-iam a Veneza e dali seguiriam para a Palestina, se a Providência lhes concedesse, no decurso dum ano, os meios necessários para esta viagem. Se, porém, depois de esperarem em Veneza aquele tempo, não pudessem, por quaisquer circunstâncias alheias à sua vontade, julgar-se-iam desobrigados do seu voto relativamente à Terra Santa, e iriam a Roma entregar-se â disposição do soberano Pontífice.

Adoptado este plano unanimemente, fixou Ínigo o dia da festa da Assunção de Nossa Senhora, para o solene juramento que depositariam aos pés da Rainha do Céu, rogando-lhe a sua intercessão para que o mesmo juramento fosse agradável ao seu Divino Filho. Combinou-se também que cada um se preparasse para um tão sublime oferecimento das suas próprias pessoas, por meio da oração, do jejum e de castigos corporais.

Existia então em Montmartre e junto do muro da cerca da célebre abadia que coroava a montanha, uma capela da invocação dos Santos Mártires. E era crença geral que S. Dinis e seus companheiros haviam sido martirizados naquele lugar [16].

Este santuário, dependente da abadia, para onde se faziam peregrinações com o fim de venerar e pedir graças especiais ao apóstolo dos Gauleses, tinha uma capela inferior menos freqüentada: foi esta capela subterrânea que Ínigo escolheu para a sua consagração e a dos seus discípulos. Eles deviam reunir-se ali sem mais testemunhas.

A 15 de Agosto de 1534, efetivamente se reuniram todos. Pedro Fabro, que era o único sacerdote, celebrou o santo sacrifício da Missa. Antes da comunhão, quando ele se voltou para os seus irmãos, tendo nas mãos o Sagrado Corpo de Nosso Senhor, todos, um após outro, pronunciaram os votos de pobreza e castidade, e o de irem a Terra Santa trabalhar na conversão dos judeus e infiéis, ou de se entregarem à disposição do soberano Pontífice; em seguida receberam a comunhão com seráfico fervor!

Acabava de nascer a Companhia de Jesus.

À Espanha coube a glória de haver recebido do Céu o primeiro pensamento desta santa instituição, pois que no momento em que o imenso amor de Deus pelos homens brotou do seu Coração, este nasceu no de Ínigo de Loiola, então em Manresa, na Catalunha. Mas era em Paris que a Companhia de Jesus devia nascer. O seu primeiro berço devia ser ali onde os primeiros Apóstolos dos Gauleses receberam a morte das próprias mãos daqueles que vinham evangelizar e salvar!...

Assim, pois, não daremos, daqui em diante, ao eminente fundador da Santa Companhia de Jesus e ao mais ilustre dos seus apóstolos, senão os nomes de Inácio e Francisco, não somente porque depois que se tornaram tão célebres, só foram conhecidos por esses nomes franceses, mas também porque temos quase os mesmos direitos que os de Espanha, em os reivindicar como nossa glória e nossa propriedade. Foi, sim, na Espanha que eles nasceram, mas foi na França, em Paris, que Xavier se converteu e renunciou ao mundo e a si próprio; foi em Paris que Santo Inácio e seus discípulos se entregaram ao serviço de Deus e à salvação das almas: foi em Paris finalmente, que eles estabeleceram e firmaram as bases dos estatutos da sua Ordem.

Isto foi no tempo em que a cidade se honrava de adoptar o glorioso título de Mãe da Companhia de Jesus. Talvez o torne a adoptar algum dia!...

Na capela inferior dos Santos Mártires, via-se uma lâmina de bronze na qual a cidade de Paris fizera gravar, em latim, uma inscrição destinada a perpetuar a memória da fundação da Companhia de Jesus, e, a fazer recordar que este lugar foi o berço da Ordem célebre que reconhece Santo Inácio de Loiola por pai e Lutécia por mãe[17].

Que foi feito desta inscrição?... Que foi feito da capela em que ela estava colocada?... Que foi feito do mosteiro de que esta capela era dependência?... Tudo desapareceu, até o próprio nome do lugar abençoado em que S. Dinis recebeu a palma do martírio em troca do seu sangue.

Esta gloriosa morte não é hoje recordada ao povo de Paris senão pela barreira dos Mártires...