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Xavier já não pertencia a si; havia-se dado inteiramente a Deus,
dedicara-se de todo ao seu serviço e à salvação das almas, e dali
em diante todos os instantes da sua vida iam ser exclusivamente
empregados no cumprimento deste duplo voto.
Vivendo sempre em companhia de Inácio e de Fabro, aperfeiçoara-se
naquela escola, seguindo os conselhos e a direção do seu santo mestre
com a docilidade de uma criança c com a humildade do mais perfeito
religioso.
No ano seguinte, 1535, devendo Inácio fazer uma viagem a
Espanha, ficou convencionado que Xavier lhe daria amplos poderes para
regular os seus negócios de família e do seu interesse porque
receava-se que os irmãos do nosso jovem Santo o impedissem de
voltar, se ele em pessoa fosse vê-los e fazer suas despedidas. Mas
Satanás havia tomado a vanguarda.
Miguel Navarro, por um momento aterrado pelo maravilhoso obstáculo
que a Providência opusera à sua primeira tentativa de vingança,
voltava bem depressa aos seus antigos sentimentos de ódio e de baixa
inveja.
Xavier não ocultava, por modo algum, a transformação suas
idéias, vistas e ambições. Guardava unicamente segredo com
respeito aos votos que fizera, e convencia-se de que o da pobreza não
seria obrigatório na prática exterior, senão depois de concluídos
os estudos teológicos.
Miguel seguia de longe os progressos daquele que Santo Inácio lhe
arrancara, e depois de ter procurado todos os meios de o tirar das suas
mãos, julgou ter encontrado o melhor e apressou-se a pô-lo em
prática.
Partiu para Navarra, foi ao castelo de Obanos, onde habitava o
capitão D. João de Azpilcueta, irmão mais velho de Francisco,
e em termos os mais persuasíveis para mostrar o interesse que o
animava, apresentou-lhe Xavier inteiramente ligado a um miserável
herético acusado de sortilégio e magia, e fez ver que ainda era tempo
de chamar Francisco para o grêmio de sua família se quisesse salvar a
sua honra e a sua vida.
Francisco acabava de saber desta infame calúnia nas vésperas da
partida de Inácio para Espanha, e então não quis perder esta
ocasião de escrever ao seu irmão mais velho sobre este assunto; este
longo fragmento da sua carta dará completa idéia do nobre caráter e
do grandioso coração de Xavier, assim como da consideração -que
ele tinha pelo seu querido mestre.
Ao Capitão João de Azpilcueta, no Castelo de Obanos:
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Paris, 25 de Março de 1535.
"...Não deixo partir pessoa alguma para a Espanha sem a
encarregar de uma carta minha para vós, senhor; porém tenho todo o
fundamento para supor que estes testemunhos da minha amizade não vos
chegam à mão com exactidão.
Sei que é imensa a distância de Paris a Obanos, que as
dificuldades dos caminhos aumentam as das comunicações, e julgo que
é esta a causa de me ver privado de vossas notícias com a frequência
que eu desejo. É, sem dúvida, este o único obstáculo que
embaraça as nossas relações, tão caras ao vosso coração como são
ao meu.
Se eu não tivesse recebido tantas provas e tão convincentes da vossa
afetuosa solicitude por mim, não atribuiria senão a negligência de
alguns mensageiros e à impossibilidade em que se vêm os outros, em
satisfazer os nossos desejos. Reconheço pelas provas de amizade que
de vós tenho recebido, assim como pelo que vários dos nossos amigos
me têm dito, a grande parte o interesse que tomais nos trabalhos e
vicissitudes por que tenho passado neste solo estrangeiro.
Sei que na vossa aprazível residência de Obanos onde gozais de todos
os bens de fortuna, tomais um vivo interesse pela penosa posição em
que me vejo muitas vezes, na vida trabalhosa e de estudos a que me
dedico com tanto ardor.
Conheço que se me falta muitas vezes o necessário, esta privação
não é imposta ao vosso irmão senão por motivos independentes da
vossa vontade.
É provável que não estejais suficientemente informado das
necessidades tão multiplicadas da minha posição em Paris cuja
narração seria infinitamente longa e para mim duma dolorosa amargura.
Porém, tudo suporto, sustentado na confiança íntima que tenho da
vossa bondade para comigo; não duvido que no momento em que tivésseis
conhecimento das minhas variadas necessidades, apressar-vos-íeis em
providenciar generosamente [18], proporcionando todos os
melhoramentos possíveis a uma vida demasiadamente restrita e
mortificada.
Encontrei-me há poucos dias com o R. P. F. recentemente chegado
a Paris para cursar os estudos da Universidade. Falámos de vós,
senhor, muito detidamente e tanto quanto me podia satisfazer naquele
momento, porém, no correr da conversação, ele deixou-me perceber
as queixas graves que pessoas mal intencionadas vos fizeram contra mim,
e sendo instantemente rogado, contou-me com minuciosidade toda a
verdade. Se me acreditardes convencer-vos-eis que tudo quanto vos
hão dito é falso; que são calúnias forjadas, com a mais odiosa
perfídia, com perverso fim de desacreditar a vossos olhos este vosso
infeliz irmão; teríeis então piedade dele, eu o sei, conhecendo
que tem sido tão cruelmente vilipendiado pela mais execranda
falsidade, e sentiríeis então toda a dor que o oprime.
Contudo eu vos afianço, irmão e senhor, que me penaliza menos esta
difamação contra mim, do que o desgosto que deveis experimentar e que
o sinto na minha alma. A vossa grande afeição por mim permite-me
avaliar o doloroso golpe que esta tão horrível calúnia deve ter
produzido no vosso nobre coração.
Estes infames impostores não recearam comprometer na sua vergonhosa
calúnia, o mais perfeito, o mais santo de todos os homens, mestre
Ínigo! Julgareis da pureza da sua vida e das suas intenções nesta
viagem que ele vai fazer. Vai ter-se convosco no grêmio da vossa
família: ele vos entregará esta carta em mão própria. Credes que
se ele fosse tal como o odioso pincel da calúnia vos figurou, se não
tivesse a mais plena, a mais justa confiança na sua inocência, iria
entregar-se assim, e desarmado, à mercê daqueles que tão
cruelmente o ofenderam? É porque não pretende por modo algum
subtrair-se às suas vistas.
Demais, para anular a desagradável impressão que em vós causou,
senhor, e para que possais apreciar a graça que Deus se dignou
conceder-me, relacionando-me intimamente com o excelente mestre
Ínigo, declaro-vos aqui solenemente, pela minha alma e minha
consciência, e sob a firma da minha assinatura, declaro-vos a vós,
senhor meu irmão mais velho, e que por tantos títulos mereceis o
respeito e a ternura do meu coração, que sou devedor das maiores
finezas a D. Ínigo, e que elas são de tal ordem que me considero
incapaz de as recompensar como merecem.
Em ocasiões de falta de dinheiro em que me tenho visto muitas vezes,
por causa da grande distância que nos separa a sua bolsa tem-me sido
sempre aberta, e quando porventura ele não pudesse obsequiar-me com a
sua, recorria, por minha causa, à de seus amigos.
Mas de todos os serviços de que lhe sou devedor, o mais precioso, o
mais importante, é o cuidado com que ele tem preservado a minha
inexperiente mocidade dos perigos deploráveis a que me tenho visto
arrastado pela convivência de homens que não respiram senão a
heresia[19], e que infeccionam atualmente toda a cidade de Paris.
Estes desgraçados ocultam a corrupção da sua fé.e dos seus
costumes, sob a máscara sedutora do seu espírito, dum falso amor
pela humanidade, e de algumas outras virtudes hipócritas.
D. Ínigo mostrou-me e provou-me as armadilhas perniciosas com que a
fingida amizade desses homens me procuravam seduzir por todos os modos,
confiados na minha inexperiência; foi ele que me pôs tudo a
descoberto. Assim afastou de mim tantas e tão grandes desgraças,
beneficiando-me por tal modo, que não poderia recompensar-lhe nem
pelo preço do Universo inteiro, se possível me fosse. Sem o seu
auxílio ser-me-ia impossível livrar-me da intimidade desses
mancebos que, sob uma aparência sedutora, possuem corações
purulentos de heresia e cheios de perfídia; os factos mo têm
provado...
Eu vos rogo, eu vos imploro, senhor meu irmão, que recebais mestre
migo com toda a ternura que o vosso coração me dedica, dispensai-lhe
todos os obséquios que por mim teríeis feito se para aí fosse; que
aquele a quem me confesso o mais agradecido dos homens, receba de vós
todas as finezas e todo o agasalho que eu teria direito de esperar da
vossa amizade. Eis aqui, pois, o pedido que vos dirijo em meu
interesse, e eis aquele que agora vou fazer pelo vosso.
Aproveitai a ocasião de gozar da proveitosa companhia deste sábio por
excelência, a quem Deus aprouve adornar e encher de dotes os mais
preciosos; dai-lhe o mais íntimo conhecimento dos projetos que tendes
em vista. As suas observações, os seus conselhos, são sempre
ditados pela sabedoria e pela prudência, e deles tirareis grande
proveito e bem agradáveis consolações, eu o asseguro e peço-vos
que acrediteis na minha experiência.
Podeis abrir-lhe os vossos pesares, os vossos desgostas, os vossos
escrúpulos, se os tendes, e faiei o que ele vos aconselhar. A
experiência vos provará que eu não estou iludido na confiança que me
inspira este homem eminente e tão em graça de Deus.
Quanto ao que me diz respeito, ele vos dará todas as notícias que
podeis desejar, e que estimareis cheguem ao vosso conhecimento. Crede
tudo quanto ele vos disser, como se o ouvísseis da minha própria
boca, por isso que ninguém há melhor do que ele que conheça o fundo
da minha alma; ele está senhor de todas as particularidades da minha
vida privada; sabe avaliar, melhor do que eu, as minhas necessidades
e pode informar-vos o modo como me podeis ser útil...
...Beijo respeitosamente, senhor, as vossas mãos e as da senhora
minha cunhada e cara prima[20]. Fico rogando a Deus que vos encha
de suas bênçãos, que vos conserve felizes e que ouça todas as
orações das vossas piedosas e generosas almas. São estes os meus
sinceros votos.
Vosso servo muito dedicado e vosso irmão mais novo,
Francisco Xavier".
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Pelo estilo desta carta se conhece que é dirigida ao chefe da
família.
Xavier tinha perdido seu pai; o seu irmão mais velho substituía-o.
D. Madalena, sua irmã, havia já falecido também; D. Maria
vivia ainda para chorar aqueles que perdera, e a ausência dos que a
vontade de Deus conservava afastados de si, e entre estes o seu muito
querido Francisco, que ela sabia ser "o vaso de eleição" destinado
ao apostolado nas Índias...
Feliz!... e pobre mãe!...
O inferno ficou ainda por esta vez vencido ria pessoa de Miguel
Navarro e de seus cúmplices.
A presença de Santo Inácio, a sua vida santa, os numerosos
milagres que Deus concedia às suas orações, dissiparam pronta e
completamente em Navarra as impressões produzidas pela calúnia, e no
castelo de Obanos, como no de Xavier, agradecia-se a Deus pelas
bênçãos e consolações, que para ali havia levado consigo o pai
espiritual de Xavier.
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