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Toda a população de Bolonha se achava em grande agitação na
sexta-feira de Páscoa do ano de 1540. Homens e mulheres,
jovens e velhos, ricos e pobres, todos iam e vinham em grande
alvoroço; um raio de felicidade parecia brilhar em cada semblante, e
de todos os lados se ouviam trocar as mesmas palavras:
- Sabeis a novidade?
- Sim, acabam de me contar, e vou transmiti-la aos outros...
- E eu também! Que bênção sobre Bolonha!
- Sabe-se se ele se demorará muito tempo?
- Ninguém o sabe! Acaba de chegar... e não passa aqui senão a
noite!...
- Oh! se ele tornasse a partir sem que nós o pudéssemos ver!
Rezemos a Nossa Senhora! roguemos-lhe que nos permita ouvi-lo ao
menos uma vez!
E ajoelhavam-se, com a piedade nativa daqueles tempos de fé e de
doces esperanças, que valia muito mais do que o cepticismo destruidor
dos nossos dias; ajoelhavam-se diante da Imagem da Virgem colocada
no nicho que ficava por cima da porta do edifício, cuja entrada
guardava e protegia os habitantes, falando-lhe bem alto, sem temor
dos sorrisos dos que por ali passavam:
"Virgem Santíssima! se ele deve partir amanhã, impedi-o! Que
nós o possamos ver e ouvi-lo, e que ele nos abençoe ainda uma
vez!"
Naquele momento propala-se o boato de que o cura de Santa Lúcia se
acha muito satisfeito por ter visto aquele de quem tanto se ocupava:
ainda mais, que dele se apoderara, que o conduzira a sua casa, e que
ali estava! Então o povo dirige-se precipitadamente para o
presbitério; quer entrar, quer saber... Produziam um barulho
atroador; o cura aparece a uma janela, com um gesto indica que quer
falar e o silêncio se restabelece:
- Meus filhos, disse ele, vinde amanhã às seis horas da manhã a
Santa Lúcia e sereis satisfeitos...
- Obrigado! obrigado! senhor! exclamava o povo a uma voz.
Na manhã seguinte, desde as quatro horas da madrugada, toda a
população se dirigia a Santa Lúcia, e foi necessário abrirem-se
as portas àquela hora. A igreja estava cheia, a ponto de não poder
conter nem mais uma pessoa; o Santo que se esperava, o nosso S.
Francisco Xavier, a instâncias do cura, disse a missa no altar-mor
e falou de Deus àquela multidão ávida de o ouvir e que o escutava
aos soluços, por que sentia que lhe seria de novo arrebatado.
Xavier viera com o embaixador de Portugal, não trazendo por bagagem
mais do que o seu breviário, a bênção do Vigário de Jesus
Cristo e a do seu amado pai, Santo Inácio de Loiola.
No século XVI não se viajava tão fácil e ràpidamente como
hoje. As estradas eram quase intransitáveis, as viaturas muito
raras, os caminhos de ferro desconhecidos. Montava-se então em bons
e fortes cavalos, mais próprios para resistirem a longas viagens do
que para velozes corridas; se se quisesse levar mulheres, faziam-nas
montar na garupa e cavalgava-se assim por montes e por vales; os que
não podiam ter cavalgadura, viajavam a pé.
D. Pedro de Mascarenhas, na qualidade de embaixador, tinha a sua
carroça; a sua comitiva acompanhava-o a cavalo, e os domésticos a
pé. Ele pusera também à disposição do nosso Santo um cavalo,
porém a bondade do coração de Xavier não permitia que o reservasse
só para si; fazia utilizar dele os criados, por turnos, e ele era
quem o montava o menos possível; este arranjo satisfazia de algum modo
o seu zelo e a sua caridade.
Quando se achava a pé, sustentava, com mais liberdade, largas
conversações com os companheiros de viagem, e depois de os ter
entusiasmado pela sua amável benevolência e habitual alegria,
falava-lhes das suas almas e fazia-lhes compreender que deviam temer e
amar a Deus.
Quando descansavam nas hospedarias, era para o embaixador e para os
principais da sua comitiva que se dirigiam as atenções do Padre
Francisco, mostrando-se para coxas eles amável, espirituoso e
atraente.
- O rei aguarda-o para o enviar às Índias, dizia D. Pedro, mas
quando o conhecer quererá por certo deixá-lo em Lisboa.
- Ou mesmo na corte, acrescentava o capelão, por que ali prestaria
valiosos serviços.
- Nunca vi tão elevada distinção pessoal aliada a uma tão grande
santidade, prosseguia o embaixador; o rei não 0 deixará sair de
Portugal.
D. Pedro tinha sabido pela sua gente que onde as camas eram
insuficientes, jamais o Padre Xavier se utilizava da que lhe
reservavam; obrigava àquele que a não tivesse a aceitá-la.
Convencia-se, pois, de que o Santo tinha o maior empenho em ser
útil a todos, e até aos criados de serviço; avaliava, finalmente,
toda a importância do tesouro que tinha tido a felicidade de adquirir
para o seu soberano.
Descansaram alguns dias em Loreto, e Xavier, por si próprio, vai
dizer-nos, na seguinte carta que escreveu a Santo Inácio, qual o
benefício para a religião que para ali levaram.
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Bolonha, 31 de Março de 1540.
"Que a graça e o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo nos venha
sempre em auxílio. Amen.
No santo dia da Páscoa recebi a vossa carta por via do senhor
embaixador. Não posso descrever-vos qual foi a alegria e
consolação que experimentei naquele momento; só Deus o sabe.
É verdade que não nos veremos mais na terra; não nos correspondemos
senão por cartas; porém no Céu, ah! será face a face! e então
como nos abraçaremos! e uma vez que nos não resta outro meio de nos
consolarmos mutuamente a não ser por cartas, não me deixarei acusar
de negligência.
Em qualquer parte do mundo que eu esteja, só, ou em companhia dos
membros da nossa Sociedade, nunca me esquecerei do que tão sabiamente
me dissestes no momento da nossa separação: É necessário que as
colônias estejam ligadas às metrópoles coma as filhas a sua mãe.
Conservarei e entreterei sempre convosco c com a nossa Casa de Roma
íntimas relações, e vos darei exatas e pormenorizadas contas de
todas as nossas ações como as filhas submissas devem proceder para com
suas mães.
O senhor embaixador tem-me obsequiado tanto que eu não poderei
provar-lhe a minha gratidão senão nas Índias. Ouvi a sua
confissão e a de algumas pessoas da sua comitiva, no domingo de
Ramos, na igreja de Nossa Senhora de Loreto e todos receberam, da
minha mão, a sagrada comunhão.
No dia da Páscoa celebrei na capela de Nossa Senhora e o nosso bom
embaixador conseguiu que todas as pessoas de sua casa, que é muito
religiosa, comungassem ali com ele. O capelão, que se recomenda
instantemente às orações de vós todos, promete acompanhar-me às
Índias.
Apresentai os meus respeitos a Dona Faustina Ancolina.
Dizei-lhe, eu vos rogo, que rezei uma missa pela alma do seu
Vicente, cuja recordação me é tão cara como para ela, e que
amanhã celebrarei outra por sua própria intenção. Dizei-lhe
também que se convença de que, mesmo nas Índias, me não esquecerei
dela.
Rogo-vos que me recomendeis ao meu querido irmão D. Pedro; não
lhe deixeis esquecer a promessa que me fez de freqüentar os
sacramentos; fazei com que se comprometa a mandar-me dizer se tem
cumprido a mesma promessa, e quantas vezes; dizei-lhe mais, que se
ele quer ser ainda útil a seu filho, ao seu querido Vicente, que é
também meu, é necessário que perdoe aos que o mataram, e pelos
quais o próprio Vicente intercede no Céu.
Vejo-me aqui mais ocupado no tribunal da penitência do que o estava
em S. Luís de Roma.
Desejo-vos cordialmente toda a sorte de bens, e conquanto não faça
menção de cada um de vós em particular, não esqueço nenhum; crede
no vosso irmão em Jesus Cristo, e vosso servo,
Francisco".
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É o próprio Santo que o diz: ele achava-se absorvido pelas
confissões em Bolonha. O embaixador concedeu alguns dias de demora
ao público, e o Santo, querendo, por seu lado, satisfazer a
todos, quase que não saía da igreja. Porém foi geral a dor quando
se soube que o Padre Francisco Xavier ia para as Índias! Foi um
luto público para Bolonha! O povo chorava em altas vozes pelas
ruas, na igreja e em toda a parte onde o viam, em todo o lugar onde.
se falava dele; mortos queriam segui-lo para onde ele fosse.
- Iremos para as Índias convosco, meu Padre! levai-nos! permiti
que vos sigamos!
E ouviam-se lamentos, soluços e gritos de dor que dilaceravam o
coração tão terno, tão amável de Xavier! Ele não pôde impedir
que o povo em multidão o acompanhasse, à sua partida, até uma
grande distância, chorando sempre com a maior consternação, e
repetindo sem cessar e sem fim as seguintes palavras de dor:
- "Nunca mais!... Oh! não nos veremos mais!... Não nos
abençoareis jamais!...".
Era esta uma prova sensível para o coração impressionável do Santo
tão amado! O próprio embaixador se comoveu vivamente, assim como as
pessoas da sua comitiva.
Nunca se vira coisa semelhante por causa de um Padre de aparência
tão humilde, tão pobre, e tão despretensiosa, e ninguém poderia
esquecer, em toda a sua vida, aqueles comovedores adeuses.
A esta população, de joelhos no caminho, recebendo, em soluços e
brados de dor, a última bênção do apóstolo que tanto amara, e que
não tornaria a ver senão no Céu: o próprio Santo, que não tendo
já palavras de consolação para aqueles que assim choravam a sua
ausência, abençoava cada um com sua mão bendita, deixando correr
lágrimas de ternura e reconhecimento...
Este quadro era extremamente comovedor e devia deixar uma perpétua
memória. Quando a caravana se pôs a caminho, deixando o povo ainda
ajoelhado, o jovem santo voltou-se e dirigiu-se-lhe ainda uma vez:
- "Meus bons e queridos irmãos Bolonheses, eu não vos esquecerei
nem mesmo nas Índias! Orarei por vós todos os dias; rezai também
por mim!...".
Nada mais disse, e dirigindo o seu cavalo em seguimento dos que o
precediam, deixou os Bolonheses, que se conservaram no mesmo lugar
por todo o tempo em que. puderam seguir com a vista aquele que eles
tão saudosamente choravam. ,
A viagem devia ser longa, porque estava convencionado que de Roma a
Lisboa, deviam ir sempre por terra; em cada dia se adiantava um
criado da comitiva para preparar alojamentos.
Num dia, o embaixador, descontente pela maneira como o seu correio se
desleixara naquele serviço, repreendeu-o severamente.
Antônio conteve, em presença de seu amo, a explosão da sua
cólera, porém na manhã seguinte, violentamente encolerizado,
montou a cavalo, picou-o de esporas e partiu como um furioso.
Xavier, testemunha desta fuga, não lhe disse nem uma palavra;
receou irritá-lo em vez de o acalmar; contudo prevendo os perigos
daquela corrida louca que Antônio levava, o Santo monta a cavalo e
parte em seguimento do desgraçado correio que encontra estendido no
chão, por debaixo do seu cavalo morto e cujo peso o sufocava. Xavier
apeia-se, desembaraça-o, levanta-o, monta-o no seu cavalo e,
tomando as rédeas, o conduz à mão até à primeira aldeia. Ali o
faz descansar e lhe presta todos os cuidados de que ele carecia. Logo
que o viu melhor, disse-lhe:
- Meu pobre Antônio, o que teria sido da vossa alma se tivésseis
morrido naquele estado?
A voz de Francisco era tão meiga e tão penetrante naquele momento,
que foi direita ao coração do culpado e ali vibrou sensivelmente.
- É verdade, meu Padre, respondeu ele derramando copiosas
lágrimas; o que teria sido de mim sem a vossa caridade ?
E Antônio confessou-se e mudou de vida.
Deixemos agora Francisco Xavier contar ele mesmo os incidentes desta
longa viagem.
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S. FRANCISCO XAVIER À COMPANHIA DE
JESUS EM ROMA
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Lisboa, 3 de julho de 1540.
"Que a graça e o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam sempre
conosco. Amen.
A nossa viagem de Roma a Portugal durou três meses e em todo este
tempo Nosso Senhor Jesus Cristo nos encheu de suas graças; nunca
lhe poderemos agradecer.
Em meio de tantas fadigas e dificuldades, o senhor embaixador e toda a
sua família, gozaram sempre de perfeita saúde. Por uma proteção
especial da divina Providência, escapámos de grandes e variados
perigos, e é seguramente devido a Ela que nós somos devedores da
prudência e sabedoria com que o senhor embaixador se houve durante toda
a viagem; a sua casa tem sido dirigida com tanta ordem e regularidade,
que parece. mais uma comunidade religiosa do que uma casa secular.
É pelo exemplo que ele tem sabido manter esta disciplina. Recebia
muitas vezes os sacramentos, e todas as pessoas da sua comitiva
cumpriam este dever tão freqüentemente e em tão grande número, que
me via forçado a apear-me do cavalo e parar no caminho, no primeiro
lugar favorável, para confessar os domésticos e seus filhos,
porque, nas hospedarias, faltavam-me tanto o tempo como a facilidade
de ouvir todas as confissões.
Na nossa travessia dos Alpes, Deus manifestou milagrosamente a sua
proteção para com um dos nossos companheiros de viagem, que vós
conhecestes em Roma. É aquele que tendo desejada abraçar a vida
religiosa adiara a execução daquele desígnio, por fraqueza e
preguiça e acabou por desistir dela.
Uma larga corrente, de profundidade incerta, atravessava o nosso
caminho; a sua temeridade levou-o a tentar o vau: fizemos-lhe todas
as observações para o dissuadir daquele intento; mas tudo foi
inútil; ele lança-se a cavalo através da corrente. Apenas dá
alguns passos, eis que a impetuosidade das águas faz rolar, num abrir
e fechar de olhos, cavalo e cavaleiro, tão longe, como a distância
que vai da vossa casa à igreja de S. Luís, e isto à nossa vista!
Na margem ressoavam os nossos gritos.
Naquele momento, Deus foi sensível às orações e as lágrimas de
D. Pedro de Mascarenhas e de toda a sua comitiva, pela vida daquele
desgraçado que estava evidentemente perdido: por um milagre
admirável, vimo-lo de repente sair dos abismos da morte.
Confessou-me depois, que quando se sentiu arrastado pelas águas e
precipitar-se para o abismo, se lamentou e arrependeu dolorosamente de
ter sido infiel à sua vocação e de ter desprezado as ocasiões que a
divina graça lhe proporcionara tantas vezes, e que ele bem quisera
remir. Protestou-me que naquele momento terrível para a natureza,
ficara menos aterrado do perigo que corria, do que dos remorsos da sua
consciência, que lhe exprobravam o ter passado a vida sem pensar na
morte.
O que sobretudo o afligia, era o haver desprezado a sua vocação pela
vida monástica, vocação de que jamais duvidara. Foi cheio destes
pensamentos que ele nos foi restituído para nos servir de exemplo; a
fim de que não sejamos nunca levados a imitá-lo.
O seu rosto pálido, quase inanimado, dava uma expressão terrível
às suas palavras! Parecia escapado os infernos. Quando nos falava
das penas da outra vida, a sua voz, a sua expressão eram tais que
teríeis dito que ele acabava de atravessar os fogos eternos!
Discorria sobre isto com tanta força e energia como se os tivesse
experimentado, repetindo incessantemente que aquele que se houver
descuidado durante a vida de se preparar para a morte, não espere,
quando ela se lhe apresente repentinamente, recordar-se de Deus e dos
seus julgamentos.
Os discursos deste homem, que não podiam ser fruto da leitura, da
meditação, nem de estudo, mas sim e unicamente da experiência,
produziram um vivo interesse entre as pessoas da nossa caravana.
Quanto a mim, quando penso nisto, fico penosamente impressionado da
negligência de tanta gente que conheço e que vejo do mesmo modo adiar
a execução de bons pensamentos e dos desejos de servir a Deus,
confessando, contudo, que aquela idéia os preocupa instantemente.
Tremo quando me lembro de que o tempo que lhes foge em cada dia, pode
faltar-lhes repentinamente, e que então será já tarde!"
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Francisco Xavier tinha a convicção de que era devido às orações
do embaixador e das pessoas da sua casa, o evidente milagre que
restituíra a vida ao escudeiro; porém D. Pedro e os que o
acompanhavam não hesitaram um momento sequer em atribuí-lo ao Padre
Francisco, que todos olhavam como um Santo.
A neve ainda cobria uma grande parte das montanhas quando a caravana
atravessou os Alpes. O secretário do embaixador apeara-se do cavalo
numa passagem perigosa; mas a neve não permitia, à vista mais
perspicaz, reconhecer o sítio em que se punha o pé, e cada um temia
por si. Um grito desesperado se fez ouvir inesperadamente. O
secretário havia desaparecido. Avança-se com precaução, e
olha-se pela inclinação rápida dum imenso precipício... Os seus
vestidos estavam embaraçados nas asperezas dum rochedo, estava
suspenso sobre o abismo, o peso do seu corpo vai arrastá-lo, o fato
vai rasgar-se pela ação do mesmo peso, e ele perecerá da mais
horrível morte! Ninguém ousa socorrê-lo, o seu salvamento é
impossível; quem o tentasse corria a uma perda certa...
Xavier lança-se por aquele horroroso precipício, sem escutar os
gritos e as súplicas coxas que buscavam retê-lo. Desce com
admirável facilidade até onde estava o secretário, toma-lhe a
mão, puxa-o para si, e salvo o restitui ao embaixador, que,
maravilhado, não pode crer o que seus olhos viam.
Os viajantes exclamam então a uma voz: "Milagre!" porque Xavier
acabava de praticar uma coisa humanamente impossível; e é isto que
explica o seu silêncio sobre este facto na sua carta à Companhia de
Roma. Porém esta tão sublime modéstia não podia ficar ignorada;
existiam muitas testemunhas, qual delas mais impressionada, de que
Deus o havia recompensado por um milagre incontestável, cuja
recordação não podia extinguir-se em nenhum deles.
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