|
Via-se apinhado o porto de Lisboa; oficiais, soldados e
marinheiros, iam e vinham da praia para a cidade e vice-versa, com
carregamentos consideráveis que conduziam para a frota ancorada no
porto. Tratava-se de prover de armamentos e víveres cinco grandes
navios e alguns galeões reais de que se compunha a frota, prestes a
partir para as Índias Orientais.
Solícito na execução das ordens que recebera do rei, D. Antônio
de Ataíde, conde da Castanheira, intendente da armada real, veio
procurar Francisco Xavier:
- Padre Francisco, lhe disse ele, o rei quer que sejais
abundantemente provido de tudo que desejardes para a viagem. Tende a
bondade, pois, de enviar-me uma nota 'dos objetos que devo embarcar
para vós.
Confesso-me infinitamente grato às bondades de Sua Alteza,
senhor; mas eu de nada careço.
- Meu Padre, as ordens do rei são formais; ele insistiu fortemente
para que nada faltasse a bordo, do que tiverdes desejado.
- Nada falta, senhor, quando se não carece de nada; rendo-vos mil
graças, vejo-me extremamente reconhecido pelo muito que devo ao rei;
porém devo muito mais à Providência, senhor, e vós não
querereis, por certo, que me desanime e duvide dela neste ponto!
- Muito bem, meu caro Padre, vós sois admirável! permiti que vos
diga que devo obedecer ao rei.
- Já o fizestes, senhor.
- Acrescentarei, meu Padre, que a Providência não faz sempre
milagres, e não acha que seria provocá-la embarcando-vos para uma
tal viagem sem a menor provisão pessoal?
- Ora pois! senhor, vou dar-vos uma pequena relação de livros
religiosos que será útil espalhar entre os portugueses das Índias,
que deles estarão privados, e vos pedirei para mim um fato de fazenda
grossa, pois que o frio é perigoso, segundo dizem, ao dobrai o cabo
da Boa-Esperança.
- Rogo-vos, meu Padre, fazei-nos o obséquio de pedir mais do que
isso! fazei-o pelo rei!
- Não sei o que mais possa pedir, senhor, pois que eu de nada mais
careço.
- Não podereis servir-vos a vós mesmo, senhor, acrescentou
impacientemente D. Antônio; aceitareis pelo menos o criado que se
vos der.
- Enquanto eu tiver estas duas mãos, senhor, espero que Deus me
fará a graça de permitir que me sirva a mim mesmo
- As conveniências exigem, meu Padre, que tenhais ao menos um!
Ides revestido de uma dignidade que não deveis aviltar; o rei
disse-me que partíeis na qualidade de núncio apostólico. Será
conveniente ver-se um núncio do Papa a lavar a sua roupa a bordo, e
a preparar por si a sua comida?
- Peço perdão, senhor, por não poder ceder às vossas tão
grandes instâncias; porém, tenho a intenção e mesmo vontade de me
servir e de servir os outros o mais possível e conto fazê-lo sem
desonrar o meu caráter. Quando não pratico o mal, não temo nem
escandalizai o próximo, nem menosprezar e rebaixar a autoridade de que
'a Santa Sé se dignou revestir-me... Não nos iludamos,
senhor; cifram-se nisto as misérias humanas, são idéias falsas de
decoro e de dignidade que tem feito à Igreja o mal que nós vemos!
D. Antônio não insistiu mais; o tom enérgico de Francisco
Xavier, conservando, contudo, a sua extrema doçura, tinha ao mesmo
tempo tão grande dignidade e tal nobreza, que o intendente
convenceu-se que uma natureza daquela têmpera nunca rebaixaria em nada
a autoridade que lhe estava confiada.
Francisco Xavier sabia impor o respeito humilhando-se: é este o
segredo dos santos em geral; porém ele parecia possuir esse dom em
maior grau do que os outros. Deus assim lho permitia, sem dúvida em
vista das inúmeras conquistas a que o destinava.
O rei desejou ver o nosso Santo antes da sua partida e lhe entregou,
em mão própria, quatro breves do Soberano Pontífice: um nomeava o
Santo missionário núncio apostólico; outro dava-lhe poderes amplos
para estabelecer e manter a fé em todo o Oriente; um terceiro
recomendava-o ao rei David, imperador da Etiópia, e o quarto a
todos os príncipes soberanos das ilhas e da terra firme, desde o Cabo
da Boa-Esperança até além do Ganges.
Xavier recebeu aqueles breves das mãos do rei, com o respeito devido
ao Soberano Pontífice e à majestade real:
- Senhor, respondeu ele, eu me esforçarei por sustentar o pesado
fardo que Deus me impõe e os seus representantes sobre a terra. A
minha incapacidade é grande, mas Deus é todo-poderoso; deposito
n'Ele somente, toda a minha confiança.
- Examinai tudo, disse-lhe o rei; visitai todas as fortalezas
portuguesas, vede se Deus é ali servido, e dai-nos conta do que há
a fazer de melhor para se estabelecer o Cristianismo nas nossas novas
conquistas. Escrevei muitas vezes e extensamente acerca disto, não
somente aos ministros, unas diretamente à aninha pessoa.
Recomendo-me às vossas orações, meu Padre; orai também pela
rainha, pelos infantes e por Portugal.
- Durante toda a minha vida, senhor, não me esquecerei das bondades
e obséquios com que Vossa Alteza se dignou honrar-me.
- E eu vos agradeço do bem que nos tendes feito a todos, Padre
Francisco; vejo-vos partir com dor!... mas é necessário
obedecer às ordens de Deus!
Chegara o dia do embarque. O Padre Paulo de Camerini, italiano,
e Francisco Mancias, português, que não era ainda sacerdote,
acompanhavam o nosso Santo às Índias. O Padre Rodrigues ia ser
separado do irmão que tanto prezava; mas o Padre Xavier ia sê-lo
da Europa inteira, desta parte do mundo onde deixava as suas mais
caras, mais ternas e mais preciosas afeições, e considerava-se
feliz em oferecer a Deus um tão grande sacrifício. Dissera muitas
vezes:
"A ausência da cruz é a ausência da vida".
O dia da partida para as Índias era, pois, para a sua grande alma,
um dia de excesso de vida. Simão Rodrigues acompanhou-o até à
ponte da São Diogo que o vice-rei devia comandar. Nó momento da
separação, o rosto de Rodrigues inundou-se de lágrimas; Xavier
torna a anão do seu amigo, aperta-a coxas afeição e diz a este seu
irmão querido:
"Meu querido Simão, eis as últimas palavras que vos vou dizer,
porque não nos tornaremos a ver mais neste mundo. Soframos paciente e
generosamente a dor amarga da nossa separação. Se nos conservarmos
bem unidos a Deus, achar-nos-emos sempre ligados como o estamos hoje
e nada haverá que possa romper a nossa união em Jesus Cristo! Para
vos consolar, quero, ao deixar-vos, descobrir-vos um dos meus mais
secretos pensamentos e a maior das alegrias da minha alma.
"Lembrar-vos-eis, de certo, que numa noite, no hospital de
Roma, me ouvistes gritar: Ainda mais, Senhor! ainda mais!
Muitas vezes me perguntastes e me pedistes vos explicasse o motivo
daquela exaltação, e sempre respondi que preferia nada dizer. Ora
pois! agora vo-lo direi, em memória da confiança e da amizade que
depositou no vosso coração de irmão."
"Vi então, se em sonho ou acordado, Deus o sabe, tudo quanto
devia sofrer pela glória de Jesus Cristo. Nosso Senhor deu-me
naquele momento tamanha avidez pelos sofrimentos, que os que se me
apresentavam me pareciam insignificantes e eu ardentemente desejava
mais. Era esta exaltação da minha alma que me fazia gritar com
transporte: Ainda mais! ainda mais! E espero que a divina bondade
me concederá nas Índias o que me fez ver em Itália, e que os
ardentes desejos que me inspirou ao coração serão imediatamente
satisfeitos!"
Os dois irmãos abraçaram-se em seguida e separaram-se derramando
copiosas lágrimas, mas lágrimas suaves como eram os seus desgostos,
doces e silenciosas como são as lágrimas dos Santos.
Francisco Xavier acabava de revelar toda a grandeza e toda a energia
da sua alma na consolação que deixava ao seu amigo. Via-o pesaroso
e aflito pela sua partida, pela idéia de o não tornar mais a ver
nesta vida, e de ficarem separados por uma distância que lhe parecia
infinita:
"Consolai-vos, lhe disse ele, eu vou sofrer e sofrer muito!"
Era esta a verdadeira consolação dada por um Santo a um coração
digno dele e capaz de o compreender! Repugnava à humildade de Xavier
fazer conhecera Rodrigues o que Nosso Senhor lhe havia descoberto;
era um sacrifício; porém a generosidade de Xavier era superior a
todos os sacrifícios. O seu magnânimo coração supõe no do seu
amigo tanto amor por Jesus Cristo como ele próprio nutria, outro
tanto desejo de sofrer por ele, e de zelo pela sua glória;
supõe-lhe todos os sentimentos sobre-humanos que o animam, o
desligam da terra e o têm unido a Deus... repete-lhe:
"Consolai-vos, eu vou sofrer e sofrer muito!"
E Rodrigues, bastante Capaz de apreciar e de acolher aquela
consolação, estende os braços para Xavier, aperta-o ternamente ao
coração, abraça-o sem poder responder-lhe, e deixa-o com o
sentimento de não ter sido julgado digno de o seguir para partilhar os
seus trabalhos, os seus sofrimentos e. os seus perigos.
O Padre Rodrigues deixou a São Diogo dirigindo-se para terra,
quando se deu o sinal; cada navio levantou ferro e a frota aproou para
o alto mar sob as vistas de Deus e o comando de D. Maninho Afonso
de Sousa, que quisera levar Francisco Xavier a bordo do navio em que
ele embarcava.
Era a 7 de Abril de 1541, dia aniversário do nascimento do
nosso Santo; entrava ele no trigésimo sexto ano.
|
|