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S. FRANCISCO
XAVIER A SANTO INÁCIO DE LOIOLA
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Tutucurim, 23 de Maio de 1543.
Que a graça e a caridade de Nosso Senhor Jesus Cristo nos venham
sempre em auxílio. Amen.
De Goa vos fiz mui extensamente, a narração da viagem de Lisboa
às Índias, e porque vós o desejais, meu querido Padre, vou
falar-vos hoje dos meus trabalhos no Cabo Comorim.
Trouxe em minha companhia alguns discípulos indígenas do Seminário
de Goa, que por terem suficiente instrução, receberam já as
Ordens. Logo que chegámos, começámos por percorrer os bairros dos
neófitos, que, privados de padres para lhes administrar os
sacramentos, e não tendo sequer catequistas para lhes fazer aprender o
Símbolo, a Oração dominical e a Saudação angélica, nada sabem
da sua religião, se não que foram batizados.
Não sendo os portugueses atraídos pelos seus negócios para estes
países pobres e estéreis, estão aqui os cristãos inteiramente
abandonados. Desde que aqui estou, vou duma aldeia a outra [36],
instruindo e baptizando todas as crianças. Tenho conseguido assim
purificar um grande número daqueles inocentinhos que verdadeiramente
não teriam sabido distinguir á sua mão direita da esquerda.
Aquelas queridas crianças não me deixam tempo para recitar o meu
breviário, comer, nem descansar, por um momento; seguem-me por
toda a parte, pedindo-me, sem cessar, que lhes faça repetir as
orações.
Compreendo que o reino dos Céus lhes pertence verdadeiramente. Como
não posso recusar sem impiedade as suas piedosas instâncias,
faço-lhes confessar o sinal da Cruz, os nomes do Pai, do Filho e
do Espírito Santo, depois do que procuro ensinar-lhes o
Pai-Nosso e a Ave-Maria. Noto nestas crianças uma tal viveza de
espírito, que, estou convencido, virão a ser excelentes cristãos
se puderem ser instruídas.
Encontrei nas minhas visitas um bairro inteiramente povoado de
pagãos, que recusavam fazerem-se cristãos, como todos os seus
vizinhos pela razão, diziam eles, de que o seu senhor lho havia
defendido. Constou-me que entre eles estava uma pobre mulher que
havia três dias lutava com os sofrimentos de um trabalhoso parto e que
já ali se desesperava de a poderem salvar.
Aqueles desgraçados dirigiam orações ao Céu, mas o Céu não
atende os rogos dos infiéis; invocavam todas as suas divindades mas os
demônios também eram surdos aos seus gritos. Eu dirigi-me a casa
daquela moribunda com um dos meus companheiros, e olvidando que estava
em solo pagão, ou antes, lembrando-me, segundo a letra dos Livros
Santos, que "a terra e tudo que ela encerra pertence ao Senhor",
invoquei com confiança o santo nome de Deus. Por intermédio do meu
intérprete, expus à doente os principais mistérios da nossa santa
religião, e, com a divina graça em nosso auxílio, ela deu-nos
grandes testemunhos de fé. Perguntei-lhe se desejava, se queria ser
cristã; depois da sua resposta afirmativa, recitei o Evangelho que
provavelmente nunca se lera naquele país, e baptizei-a...
Mas que aconteceu? Ela crera, ela esperara em Jesus Cristo!...
Viu-se livre inesperadamente, durante as cerimônias! No mesmo
momento, o pai e os outros filhos solicitaram tão insistentemente a
graça do batismo que a todos administrei aquele sacramento e chamei
assim para Jesus Cristo aquela numerosa família. A notícia desta
milagrosa cura correu em um momento. Fui em seguida procurar os mais
consideráveis do lugar; notifiquei-os em nome de Deus, a reconhecer
Jesus Cristo seu Filho, por quem unicamente o homem pode ser salvo;
responderam-me como os primeiros, que não podiam mudar de religião
sem autorização do seu chefe.
Naquele momento, chegou a propósito à povoação um enviado daquele
pequeno soberano, que vinha receber os impostos. Fui imediatamente
vê-lo e lhe desenvolvi alguns dogmas da nossa fé; mas ele não me
deixou acabar, e apressou-se em dizer-me que era cristão de
coração que a nossa religião lhe parecia boa, e que deixava a cada
um a liberdade de a abraçar e seguir, se o desejassem, porém não
teve a coragem de dar o exemplo. No entanto todas as famílias do
bairro se aproveitaram imediatamente da liberdade que se lhes concedia,
e eu administrei o santo batismo a todos os habitantes sem distinção
de idade e de sexo.
Depois de termos tomado todas as medidas para o bem-estar daquela
pequena cristandade, dirigimo-nos a Tutucurim, onde temos sido tão
bem acolhidos, que esperamos a mais abundante colheita.
O vice-rei consagra uma afeição paternal pelos neófitos, e lha
veio provar duma maneira admirável. Todos aqueles habitantes da
Costa são pescadores de pérolas, e não têm outro meie de vida,
para si e suas famílias, a não ser aquela penosa indústria, Os
Sarracenos haviam-lhes arrebatado os barcos de que eles se servem para
aquela pesca. O vice-rei tem disto conhecimento, faz equipar uma
flotilha, ataca os Sarracenos, bate-os, mete-os. em derrota, faz
uma horrorosa carnificina naqueles infiéis e lhes aprisiona todas as
suas embarcações com exceção duma só. Depois desta vitória,
restitui aos neófitos ricos os barcos que lhes haviam sido levados, e
dá aos pobres os apreendidos ao inimigo, coroando assim uma grande
vitória por uma eminente obra de caridade.
Foi devido à proteção divina o bom resultado das suas armas, e ele
o reconhecia partilhando com os pobres os frutos que colhera.
Os Sarracenos consternados, pelas suas perdas e suas faltas, não se
atrevem a levantar os olhos e mostram-se humilhados. Todos os seus
chefes e todos os homens capazes de pegar em armas tinham sido extintos
pela flotilha.
Os neófitos amam o vice-rei com uma ternura filial. É
inacreditável o interesse com que ele me recomenda esta nova vinha.
Trabalha agora na execução dum projecto que contribuirá
poderosamente para o progresso da religião cristã: vem a ser reunir
em uma só ilha, sob a dominação dum rei da sua escolha, todos os
cristãos dispersos por estes vastos países, a imensas distâncias uns
dos outros.
Se o Soberano Pontífice tivesse conhecimento do zelo e dos esforços
de D. Martim Afonso de Sousa na propagação da fé, e o elogiasse
publicamente, a fim de excitar iguais sentimentos em todos os
dignitários cuja autoridade viria auxiliar poderosamente a
religião...
Eu o recomendo, pois, às vossas orações e às da nossa
Companhia, a fim de que Deus se digne conceder-lhe os benefícios de
que é merecedor, e a perseverança nas suas santas empresas; porque
não é aquele que tiver começado bem, mas o que tiver perseverado
até ao fim que receberá a recompensa.
Quanto a mim, sustentado pela bondade infinita, sustentado pelas
vossas orações, pelo santo sacrifício que vós e os meus irmãos
ofereceis por mim, espero que, se nos não for dado tornar-nos a ver
neste mundo, nos encontraremos na feliz Eternidade com uma alegria
infinitamente maior.
Francisco Xavier".
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Omitiu o nosso humilde Apóstolo nesta carta uma circunstância que
julgamos dever mencionar.
Foi a seus rogos que o vice-rei veio em socorro dos Paravás
oprimidos pelos Sarracenos; aqueles povos dedicavam, é verdade, uma
grande afeição a D. Afonso, mas experimentavam por Francisco
Xavier uma amizade e uma veneração incomparáveis.
Aqueles sentimentos tornaram-se tais, que os transmitiram, como uma
preciosa herança, às gerações que seguiram, e hoje ainda, os
missionários encontram vivas, por aquelas Costas, a lembrança do
ilustre Apóstolo das Índias, que eles chamam sempre o seu grande
Padre.
Vamos encontrar a continuação pormenorizada desta interessante
missão das Costas da Pescaria em uma outra carta de Xavier à
Companhia de Jesus. Reproduziremo-la quase na sua íntegra, para
que o leitor possa acreditar ainda mais naquela grande alma, que soube
tão admiravelmente inutilizar-se, por assim dizer, com o fim de se
pôr ao alcance das inteligências que pretendia esclarecer e salvar
para a glória de Deus que tanto amava.
A data daquela carta diz-nos que havia já mais de um ano que S.
Francisco Xavier percorria a Costa e trabalhava, como vamos ver,
com uma atividade e um resultado miraculoso.
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