IV. NA VINHA DO SENHOR - CARTA À COMPANHIA DE JESUS

S. FRANCISCO XAVIER À COMPANHIA DE JESUS, EM ROMA

Cochim, 12 de janeiro de 1544.

Que a graça e o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam sempre conosco. Amen.

Faz já três anos que deixei Lisboa e é esta a terceira vez que escrevo. Não tenho recebido mais que uma só carta vossa, datada de 13 de Fevereiro de 1542, e tendo o navio que a trazia sido obrigado a demorar-se muito tempo em Moçambique, só me chegou à mão em Novembro último. Deus sabe que prazer e consolação ela me fez experimentar...

Acho-me, com Francisco Mancias, na cristandade de Comorim, que, já de antes numerosa, cresce cada dia mais.

Logo que cheguei, o meu primeiro cuidado foi o de assegurar-me do grau de instrução destes povos, e a cada uma das minhas perguntas sobre os mais importantes dogmas da religião, respondiam-me invariàvelmente que eram cristãos, mas que ignorando a língua portuguesa, nada tinham podido aprender dos mistérios e preceitos do Cristianismo.

Convoquei alguns de entre eles que me pareceram os mais inteligentes, e que tinham algum conhecimento, uns do espanhol e outros do português; reunimo-nos por muitos dias seguidos, e conseguimos, depois de grandes dificuldades, traduzir em pouco tempo, um catecismo em língua malaia. Logo que o tive pronto, comecei a percorrer todos os bairros com uma campainha na mão. Reúno assim em torno de mim, duas vezes por dia, os homens e as crianças, e lhes explico o catecismo; um mês tem sido bastante para as crianças o aprenderem perfeitamente. Quando elas o sabem tem de cor, recomendo-lhes que o repitam a seus maiores, aos seus criados e aos seus vizinhos.

Nos domingos, todos se reúnem na igreja voluntariamente: homens, mulheres e crianças todos têm igual desejo de se instruírem.

Ali, começo, em nome da Santíssima Trindade, a recitar, em língua malaia, em voz alta e pausadamente, o Pai Nosso, a Ave-Maria e o Credo, que todos repetem depois de mim, com um prazer e um interesse -bem evidentes. Em seguida repito o Credo, detendo-me em cada artigo, e perguntando a cada um dos assistentes, pessoalmente, se ele crê, do fundo do coração, o que acaba de pronunciar. Todos, cruzando as mãos sobre o peito respondem afirmativamente.

Faço-lhes recitar o Credo mais vezes do que as outras orações, repetindo-lhes que não são cristãos senão aqueles que crêem no que ele encerra.

Depois do Credo, passo aos Mandamentos explicando-lhes que há no Cristianismo dez leis que todo o cristão é obrigado a observar rigorosamente, e que por aquele preço somente terá parte na felicidade eterna, enquanto que aquele que despreza uma única daquelas leis, será eternamente condenado, se não fizer penitencia.

Todos, em geral, neófitos e pagãos, sentem-se igualmente maravilhados pela sublimidade da lei cristã e da sua perfeita conformidade com a razão.

Concluídas aquelas explicações, renovo ainda a prática do Credo posto em verso; cantamos o primeiro artigo de fé que é seguido desta estrofe de canto:

"Jesus, Filho do Deus vivo; concedei-nos a graça de crer firmemente este primeiro artigo de fé; nós vos oferecemos, para a obter, a oração que vós mesmo nos haveis ensinado".

Cantada esta estrofe, recitamos o Pater. Depois passamos ao segundo artigo do Símbolo, findo o qual cantamos a seguinte estrofe dedicada a Maria:

"Santa Maria, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, obtende para nós do vosso querido Filho a graça de crermos sem duvidar neste segundo artigo de fé".

Esta segunda estrofe é seguida da recitação-da Ave-Maria. E assim seguimos todos os artigos, ajuntando a cada um a estrofe de canto e a recitação do Pater ou da Ave-Maria.

Para lhes ensinar bem o Decálogo, emprego o mesmo método. Cantamos a primeira encomendação, assim como a oração:

"Jesus, Filho de Deus vivo, concedei-nos a graça de vos amar sobre todas as coisas; para a obter vos oferecemos a oração que vós mesmo nos haveis ensinado".

E recitamos o Pater e em seguida cantamos:

"Santa Maria, Mãe de Jesus Cristo, obtende para nós do vosso divino Filho a graça de observar fielmente esta primeira encomendação".

Cantada esta estrofe recitamos a Ave-Maria. E assim por diante, conformando a oração cantada com o sentido da encomendação que a precede.

Faço-lhes em seguida compreender que quando tiverem obtido da bondade de Deus as graças que acabam de lhe pedir, tudo mais obterão em abundância.

Faço recitar o Confiteor aos catecúmenos, juntos ou em separado; mando-lhes repetir ao depois o Credo, perguntando-lhes, a cada artigo, se eles o crêem firmemente, e depois da sua resposta afirmativa, faço-lhes uma exortação por mim composta em língua malaia, na qual passo em revista os mais importantes dogmas da fé católica, e os deveres que a eles se ligam na vida cristã. Quando os vejo suficientemente preparados, baptizo-os.

Terminamos todos os nossos exercícios pelo canto da Salve-Regina, a fim de obtermos a proteção da Santíssima Virgem [37].

Para dar idéia do empenho e interesse destes povos em receber a graça do batismo, basta dizer-vos que muitas vezes eu baptizo em um dia populações inteiras; que meus braços caem de fadiga, e que à força de repetir o Credo e as orações, a minha voz, totalmente gasta, acaba por se extinguir e caio desfalecido.

O batismo das crianças produz frutos incríveis; tenho confiança que, com a ajuda de Deus, estas crianças virão a ser em tudo melhores do que seus pais.

O horror que possuem pela idolatria chega a ponto de repreenderem seus pais e maiores quando descobrem que eles prestam culto a algum dos seus ídolos, e correm a denunciá-los. Logo que tenho conhecimento de que algum deles sacrifica aos ídolos, dirijo-me a sua casa com um grande número de meninos que lançam ao demônio mais ultrajes do que de honras eles têm recebido de seus pais e vizinhos. Estas crianças fazem uma guerra acirrada aos ídolos; voltam-nos, quebram-nos, pisam-nos aos pés e cobrem-nos de toda a sorte de ignomínias.

Habitei por quatro meses uma cidade inteiramente cristã, onde trabalhava em traduzir o catecismo, e em cada dia um grande número de indígenas concorria de todas as circunvizinhanças para me pedirem que recitasse orações aos doentes que me traziam e a ir levar o mesmo socorro aos que não podiam arrastar-se até junto de mim.

Durante os quatro meses, conquanto a afluência fosse imensa, e que uma grande parte do meu tempo fosse empregado em recitar o Evangelho a todos os doentes que o desejavam, tenho podido continuar a inscrever as crianças e os adultos, a responder às questões que me vinham propor, a sepultar os mortos... Porém a concorrência crescia cada dia e como eu tinha todo o interesse em satisfazer toda aquela pobre gente, com o receio de que uma recusa enfraquecesse a sua confiança nos socorros da religião, tomei o partido de enviar as crianças, da minha parte, para os diferentes bairros para onde era chamado.

Aqueles inocentes logo que chegavam junto dos doentes, reuniam os parentes e vizinhos, faziam-lhes recitar o Credo, buscando inspirar aos doentes confiança e esperança em Deus, e recitando em seguida as orações da Igreja.

Acontecia que Deus, compadecido da piedade dessas crianças e da das pessoas presentes, restituía a saúde aos doentes e curava ao mesmo tempo as suas enfermidades espirituais. Manifestando assim Deus o seu poder e a sua bondade, estabeleceu o seu reino e a confiança em Jesus Cristo seu Filho, sobre a ruína dos demônios.

Atualmente, não mando as crianças só para estarem junto dos doentes; encarrego-as também de instruir os ignorantes das povoações, ensinando nas casas e nas ruas os primeiros elementos da religião. Quando concluem o ensino numa aldeia, passam para outra; depois eu percorro todos aqueles lugares; deixo um exemplar do catecismo em cada um, recomendando aos que sabem escrever que o copiem e aprendam de cor a fim de ensinarem aos outros; designo os sítios em que se devem reunir todos os dias santificados, para cantarem as orações e os principais dogmas da religião cristã, escolhendo aquele que deve presidir a essas reuniões.

D. Martim Afonso, que tem em grande estima a nossa Companhia, pelo seu zelo na glória de Deus, resolveu, a meu pedido, que fosse abonada uma goma de quatro mil soldos em oiro, que os indígenas chamam fanons, para os honorários desses presidentes de paróquias. Ele tem feito as mais vivas instâncias ao rei, em todas as suas cartas, para obter alguns membros mais da nossa Sociedade para este país; porque aqui inúmeros povos se acham abismados nas trevas da idolatria por falta de apóstolos que os esclareçam.

Que de vezes me vem ao pensamento, que, se eu o pudesse, transportar-me-ia à Europa; e a despeito de passar por louco, quereria percorrer as academias e dizer a todos aqueles sábios, especialmente aos de Paris, e a todos aqueles homens que têm mais doutrina do que caridade:

"É devido a vós que uma infinidade de almas são excluídas do reino dos Céus!" Ah! prouvera a Deus!, digo a mim mesmo muitas vezes, que esses doutores tivessem tanto empenho pela salvação das almas, como têm pelas ciências humanas! Um dia terão eles de dar contas bem rigorosas da ciência que adquiriram e dos talentos que lhes foram confiados! É possível que esta idéia os assustasse e comovesse! é possível que se entregassem por alguns momentos à oração e ouviriam então a voz de Deus! Talvez fizessem um esforço sobre si mesmos; desprender-se-iam dos seus hábitos terrestres e se entregariam inteiramente à disposição da vontade de Deus. Chegariam, finalmente, a exclamar do fundo do coração:

"Senhor, eis-me aqui; eu sou vosso todo vosso! Mandai-me para onde quiserdes, até mesmo para as Índias!"

Grande Deus! Quanto a vida lhes seria agradável! que paz gozariam! Com que tranquilidade e confiança eles se apresentariam ao juízo do Deus vivo, do qual ninguém poderá esquivar-se! Então, como o servo do Evangelho, diriam com alegria: Senhor, vós me concedestes cinco talentos, eis aí como eu adquiri outros cinco .

...Deus sabe que, na impossibilidade de voltar à Europa, tenho pensado muitas vezes em escrever para á Universidade de Paris, e particularmente aos nossos doutores Corne e Picard [38] para lhes fazer ver o prodigioso e infinito número de almas que seria fácil chamar ao conhecimento de Jesus Cristo, se os homens estivessem menos ocupados da sua glória pessoal do que da de Deus.

Rogai, pois, meus amados irmãos, rogai ao Senhor das conquistas para que envie obreiros para o seu campo!

O colégio de Goa está quase concluído. Educam-se ali crianças de muitas nações, que são assim arrancadas às trevas do paganismo. Uns aprendem somente a ler e a escrever; outros aprendem o latim. O Padre Paulo, reitor, confessa-os, instrui-os e lhes diz a missa todos os dias. O colégio tem bastante capacidade para conter quinhentos alunos; é dotado em proporção e recebe abundantes esmolas do vice-rei e das pessoas ucas.

Os cristãos do país chamam a este colégio: o Seminário da Santa-Fé [39]. Eles têm razão, porque, com o auxílio de Deus, esperamos que, por meio deste seminário, fará a Igreja tão grandes conquistas que estenderá algum dia o seu domínio sobre todo o Oriente.

Entre os pagãos deste país, existe uma classe de homens que se denominam brâames ou brâamanes, eles guardam os templos e servem neles. É uma raça perversa e má, que me faz dizer muitas vezes, dirigindo-me a Deus: Senhor, livrai-me desta carta ímpia, desses homens traidores e perversos.

Toda a sua ciência e habilidade consiste em envolver nas suas ciladas a gente sincera e ignorante. Em nome dos seus deuses fazem levar para os seus templos tudo quanto desejam, e eles, suas mulheres e seus filhos vivem assim a expensas do povo, a quem persuadem que as suas estátuas comem e bebem como os mortais.

Além disto os pobres ignorantes não se atrevem a tomar as suas refeições antes de oferecer ao ídolo uma moeda de dinheiro. Os brâmanes não cessam de aterrar os crédulos, ameaçando-os com toda a espécie de males, se falam à generosidade para com os deuses; e o povo, oprimido pelo terror, apressa-se em satisfazer a cobiça desses impostores.

Os brâmanes desta Costa. estão furiosos contra mim, porque tenho manifestado e provado as suas torpezas. Quando estão a sós comigo, confessam-me, sem escrúpulo, que não vivem senão das suas mentiras; concordam que são ignorantes e dizem-me que eu somente sei mais do que todos eles juntos. Muitas vezes me enviam presentes que eu recuso sempre, a seu pesar, porque eles desejam impor-me obrigações para me orçar ao silêncio. Esforçam-se em lisonjear-me e dizem-me muitas vezes:

Sabemos perfeitamente que não há mais que um Deus, e nós lhe rogaremos por ti.

A todas as suas lisonjas eu respondo como convém, e continuo a trabalhar em desvendar os olhos ao povo.

Uma grande parte daqueles pobres ignorantes recebeu já o batismo mas muitos resistem ainda pelo temor que lhes inspiram os brâmanes.

Desde que estou nestas terras não tenho podido converter mais do que um brâmane, mancebo bastante novo que ensina às crianças os primeiros elementos da religião cristã.

Quando percorro as povoações dos neófitos, passo de ordinário por entre os pagodes que aqueles impostores habitam. Há pouco tive a idéia de entrar em um daqueles templos, onde duzentos brâmanes se achavam reunidos. Muitos saíram-me ao encontro, e depois da troca de algumas palavras indiferentes e de cumprimentos perguntei-lhes a que preceitos os seus deuses ligam a felicidade futura.

Travou-se imediatamente entre eles uma discussão tão acalorada como prolongada para resolverem o que me responderiam; finalmente foi concedida a palavra ao mais idoso.

O velho octogenário pergunta-me então, por sua vez; o que nos prescreve o Deus dos cristãos. Conhecendo eu para onde se dirigia o seu ardil respondi-lhe que não o satisfaria enquanto não respondesse à minha questão. Forçado a descobrir-me a sua ignorância, disse-me que os deuses não exigiam mais do que duas coisas: a primeira não matar as vacas, cuja forma eles tomam; a segunda fazer bem aos brâmanes, que são os seus servos e seus favoritos.

Aquela resposta penalizou-me profundamente! Experimentei no fundo da minha alma uma pungente dor, vendo até que ponto o demônio cega os homens! Pedi então aos brâmanes que me ouvissem, e recitei em voz alta o Símbolo dos Apóstolos e os Mandamentos de Deus. Depois expliquei-lhes em poucas palavras o paraíso, o inferno e o juízo final. Disse-lhes quais seriam os que gozarão da bem-aventurança eterna, e os que serão votados aos suplícios que terão a duração da eternidade, à intensidade do fogo sem fim.

A estas últimas palavras, todos eles se levantaram e todos em chusma me vieram abraçar, exclamando que o Deus dos cristãos é o único Deus verdadeiro, e que as suas leis estão em perfeita harmonia com a razão.

Perguntaram-me se as almas dos homens morriam com o corpo, assim como as dos animais.

Naquele momento Deus me sugeriu um raciocínio para lhes responder tão à medida dos seus desejos e inteligência, que ficaram todos convencidos da imortalidade da alma. Os argumentos pelos quais se busca convencer os ignorantes, não devem ter nunca a sublimidade dos que os nossos doutores empregam nos seus livros; é preciso, antes de tudo, avaliar a capacidade intelectual dessas pobres inteligências.

Os brâmanes ainda me perguntaram, como era que acontecia, que no sono, nós víamos pais e amigos, e nos comunicávamos com eles, - o que, meus amados irmãos me acontece muitas vezes para convosco-; - se Deus é branco ou negro; porque os Índios, que geralmente são negros, atribuem aquela cor às suas divindades. Os seus ídolos pintados de negro e untados dum óleo infecto, têm um aspecto hediondo e repugnante!

Depois de haver satisfeito a todas as suas instâncias, chamei-os a abraçar uma religião que eles próprios reconheciam ser a única verdadeira. A isto me opuseram os frívolos pretextos de que muitos cristãos temem uma mudança de vida; que isto daria que falar e eles perderiam o único recurso que lhes dá com que viver.

Em toda a Costa não encontrei senão um brâmane com alguma instrução e que se diz ter, sido. discípulo dum nobre e célebre colégio. Procurei vê-lo em particular e ele se prestou da melhor vontade, e sobre as questões e perguntas que lhe dirigi, me respondeu que eles estavam todos comprometidos por um juramento e não podiam revelar nada das suas doutrinas; mas, que por amizade e como exceção para comigo, me falaria abertamente.

Fiquei assim sabendo que o primeiro dos seus mistérios é que não existe senão um só Deus, criador do céu e da terra, a quem somente devem um culto, e que os seus ídolos são só as imagens dos demônios. Possuem monumentos que olham como livros sagrados, e que contêm as leis que eles crêem divinas. Para as ensinarem, servem-se duma língua tão pouco vulgarizada como é o latim entre nós.

O meu brâmane desenvolveu-me também em seguida os seus preceitos divinos, que não vale a pena repetir-vos. Observam e guardam o sétimo dia, recitando nesse dia a seguinte súplica, que repetem por várias vezes: Deus, eu te venero, eu imploro o teu socorro para sempre.

Em virtude do seu juramento recitam esta oração em voz baixa para que ninguém a possa ouvir. O seu livro contém uma profecia anunciando que um dia todos os povos da terra professarão uma única e mesma religião.

O mesmo brâmane me pediu que lhe explicasse também os preceitos do Cristianismo, prometendo-me guardar o mais absoluto segredo. Respondi que nada lhe diria, se ele me não prometesse o contrário, de publicar, por toda a parte e em alta voz o que soubesse da nossa religião. Com a sua promessa, lhe expliquei as seguintes palavras do divino Salvador, e que é a essência do Cristianismo: Aquele que crer e que tiver sido baptizado será salvo. Dei-lhe esta máxima e o Símbolo dos Apóstolos com um extenso comentário; ajuntei o Decálogo e fiz-lhe ver a relação que existe entre o dogma e a moral.

Um dia veio ele procurar-me; disse-me que tinha sonhado que era já cristão, que se achava associado aos meus trabalhos e que experimentara nisto a maior alegria.

Rogou-me em seguida que o admitisse secretamente nos nossos mistérios; mas como esta condição era ilícita, não concedi o batismo. Estou convencido que Deus lhe concederá algum dia a graça de o fazer cristão. Recomendei-lhe que ensinasse aos inocentes e aos ignorantes que não há mais que um Deus, criador do céu e da terra, e que reina nos céus. Este homem seria já cristão se não se visse retido pelo temor de ser perseguido pelos demônios, faltando ao seu juramento.

Eis aqui tudo quanto os meus trabalhos podem ter de interessante para vós, a não ser que vos fale das alegrias inefáveis de que Deus se apraz encher aqueles que trabalham em arrotear esta terra inculta e bárbara. Elas são tão abundantes, tão sólidas, que, seguramente, são as únicas de que se pode gozar nesta vida.

Parece-me ouvir um daqueles obreiros apostólicos gritar no maior transporte da sua alma:

"É muito! Senhor, é muito! é demasiado para esta vida!... Ponde um termo à minha felicidade!... Ou, se na vossa infinita misericórdia, quereis cumular-me das alegrias celestes, levai-me desta terra! ela deve ser um vale de lágrimas; transportai-me para a morada dos bem aventurados".

"Aquele que tem gozado destas inefáveis delícias, não pode viver por mais tempo fora da vossa divina presença..."

Meus amados irmãos, é um prazer bem agradável para mim o pensar em vós e recordar-me da vossa amizade, à qual devo a imensa misericórdia de Deus. Eu- repasso muitas vezes pelo meu pensamento os anos decorridos, e é com a mais verdadeira dor que vejo o tempo que perdi e quão pouco tenho aproveitado da vossa amizade, da vossa convivência e da vossa ciência nas coisas de Deus! É às vossas orações, não obstante tão afastado de vós, que Deus me faz a graça de me revelar a imensidade infinita dos meus pecados; é devido às vossas orações também que ele me deu forças e coragem para vir instruir as nações idólatras. Rendo por isso infinitas ações de graças à Bondade divina e à vossa caridade.

De entre todos os frutos que a divina Providência me tem feito colher nesta vida, o que eu mais aprecio é a aprovação e a confirmação do nosso Instituto pela Santa Sé. Tributo a Deus infinitas graças pelo que se dignou sancionar para sempre, por intermédio do seu Vigário, a regra que ele resolveu e ditou a seu servo, o nosso Padre Inácio.

Suplico ao Senhor, - uma vez que pela sua bondade nos reuniu a todos sob a mesma regra, ao mesmo tempo que pelo interesse da sua glória nos separou e dispersou para grandes distâncias uns dos outros-, que nos reúna de novo na morada dos bem-aventurados!

Entre outras intercessões, invoquemos a das crianças que tenho baptizado e que Deus, na sua misericórdia infinita, chamou para si antes que elas tivessem manchado o vestido da inocência. Julgo que serão em número de mil ou mais. Invoco-as para obter a graça de poder fazer, nesta terra de exílio e de misérias, o que Deus quer e à medida dos seus desejos.

O mais humilde dos vossos irmãos em Jesus Cristo,

Francisco".