V. CONSELHOS E LEMBRANÇAS

INSTRUÇÕES DE S. FRANCISCO XAVIER AO PADRE GASPAR BARZEU NA SUA PARTIDA PARA A MISSÃO DE ORMUZ

Goa, 1549.

A graça e o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam convosco. Amem.

A minha ternura e dedicação para convosco não permitem que vos deixe partir para a importante missão de Ormuz, sem vos dar instruções que julgo de grande utilidade para glória de Deus, para a salvação das almas e para vosso progresso espiritual.

O vosso principal cuidado deve ser o da vossa própria perfeição. Considerai, antes de tudo, o que deveis a Deus e à vossa consciência; é o mais seguro meio de colher abundantes frutos nas almas.

Dedicai-vos ao exercício das mais humildes funções do vosso ministério, com o fim de avançar mais na humildade. Ensinai vós mesmo o catecismo aos filhos dos portugueses, aos seus escravos e às crianças indígenas; não delegueis este cuidado em outra alguma pessoa. Fazei-lhes repetir, palavra por palavra, as orações que todo o cristão deve saber de cor; exercitareis assim a paciência; edificareis o próximo, e a estima que vos atrairá a vossa modéstia vos fará julgar-vos próprio para ensinar, a todos, os mistérios da religião.

Visitai os pobres e os doentes nos hospitais; exortai-os a recorrer ao sacramento da Penitência que vence os pecados, e ao da Eucaristia que é um preservativo contra as recaídas. Quando eles quiserem confessar-se, ouvi as suas confissões, imediatamente, se puderdes. Em seguida aos cuidados dados à alma, tratai do corpo; recomendai aqueles pobres desgraçados, aos administradores dos estabelecimentos, e empenhai-vos em procurar-lhes, além disto, todos os socorros e todo o bem estar possíveis.

Visitai os prisioneiros, persuadi-os a fazer uma confissão geral; mais do que os outros, eles carecem de ser levados a isso, porque existem poucos entre eles que tenham feito jamais uma confissão. Rogai aos irmãos da Misericórdia que se empenhem com os magistrados a fim de obter a sua liberdade, e socorros para os mais pobres.

Servi, em tudo que puderdes, a confraria da Misericórdia, e trabalhai para o seu desenvolvimento.

Encontrareis ricos negociantes que depois de se terem confessado, terão de restituir o que tiver sido mal adquirido, e vos confiarão o dinheiro destinado à restituição, não sabendo a quem ele é devido. Depositai a soma toda em poder do tesoureiro da Misericórdia, a fim de não serdes iludido no modo de o empregar; porque muitas vezes aquelas pessoas que vos pareciam dignas de merecer a esmola pela miséria que vos acusariam, não seriam senão impostores, que não surpreenderiam nem iludiriam tão facilmente a boa fé dos confrades da Misericórdia, cuja principal missão é distinguir os verdadeiros pobres daqueles que não têm senão a aparência de pobreza.

Estareis, além disso, mais em liberdade para o exercício do vosso ministério, que deve ser todo consagrado à conversão das almas, porque a distribuição de esmolas rouba muito tempo, causando distrações e embaraços.

Finalmente, por este meio, prevenireis as queixas e suposições daqueles que, dispostos a maldosas interpretações, julgariam talvez que sob pretextos de satisfazerdes as dívidas dos vossos penitentes, converteis em vosso proveito uma parte do dinheiro que vos é confiado.

Trabalhai para com as pessoas que se disserem vossos amigos, ou para com aquelas com que tiverdes relações sociais, como se elas devessem vir a ser algum dia vossos inimigos. Deste modo não fareis nem direis nunca o que possa tornar-se contra vós num momento de cólera. Vêmo-nos obrigados a tomar estas precauções com a mocidade do século que, em geral, olha os filhos da luz com desconfiança e malignidade.

Não cuideis menos, de tudo que diga respeito ao vosso progresso espiritual. Tende por certo que fareis grandes progressos no desprezo de vós mesmo e na união corri Deus, se regulardes todas as vossas palavras e ações pela prudência.

O exame particular vos ajudará muito; não deixeis jamais de o fazer duas vezes por dia, ou pelo menos uma vez, seguindo o nosso método, quaisquer que sejam as vossas ocupações.

A pregação é um bem geral; de todas as funções do ministério evangélico, é dela que se tira melhores frutos. Pregai, pois, o maior número de vezes que puderdes; mas evitai de avançar proposições duvidosas; não tomeis por assunto dos vossos sermões senão verdades incontestáveis, claras e que por si mesmas produzam a reforma dos costumes.

Fazei sobressair a majestade infinita de Deus e a enormidade do pecado que o ultraja. Imprimi nos espíritos a crença da aterradora sentença que será fulminada contra os réprobos no dia do julgamento final.

Apresentai com todos os recursos da eloqüência, os suplícios eternos para os que forem condenados. Falai, finalmente, da morte e da morte súbita aos que vivem na indiferença e no olvido da sua salvação, com uma consciência carregada de crimes.

A todas estas considerações acrescentai a da paixão e morte do Salvador dos homens, mas fazei-o de uma maneira tocante, patética, própria para excitar nos corações uma viva dor dos pecados cometidos, e a comovê-los até às lagrimas. Eis aí o que eu desejo que exponhais e torneis bem claro nos vossos sermões.

Não admoesteis nunca em público os magistrados e os principais funcionários, cujo procedimento vos pareça irregular e repreensível. Quando eles se confessarem convosco fazei-lhes as vossas observações no sigilo do tribunal da penitência e, em caso contrário, ide fazer-lhas em particular. Eles são de ordinário orgulhosos e susceptíveis: uma advertência pública, em vez de lhes ser útil, os irritaria e torná-los-ia furiosos, como o touro acossado e perseguido.

Mas também nunca façais estas advertências antes de grangear a confiança e a perfeição daqueles que tiverdes de repreender, empregando a doçura ou a força, segundo o grau de influência que tiverdes podido adquirir.

Moderai sempre as vossas observações pela doçura da voz, benevolência do olhar, escolha de expressões, e que um sorriso amável acompanhe as vossas palavras; além disto, fazei ver que um sentimento de caridade é o que unicamente vos inspira. E se virdes que, não obstante estes protestos, haveis ferido as susceptibilidades, abraçai-os, estreitai-os entre os vossos braços e testemunhai-lhes o mais vivo interesse.

A repreensão é de si mesma desagradável e amarga; se for acompanhada de palavras duras e de aspecto severo, os homens habituados às adulações a rejeitarão e se tornarão contra o censor do seu procedimento.

Para a confissão, nos países dó Oriente, onde a liberdade de pecar é muito grande e o uso da penitência muito raro eis o método que eu julgo melhor: Quando um pecador, habituado desde muito ao vício, queira confessar-se convosco, induzi-o a empregar dois ou três dias no minucioso exame da sua consciência, correndo a vista sobre toda a sua vida desde a infância, fazendo-lhe escrever os seus pecados para auxiliar a memória.

Não será conveniente absolver depois desta confissão; convém se puderdes fazê-lo afastar por dois ou três dias do mundo, e excitá-lo à dor dos seus pecados e ao amor de Deus, a fim de lhe tornar mais útil a absolvição sacramental; durante este curto retiro lhe ensinareis a meditar; far-lhe-eis repetir alguns Exercícios, da primeira semana [59]; aconselhareis alguma mortificação corporal, como o jejum ou a disciplina, para ajudar a conceber um grande arrependimento dos seus pecados. E caso o penitente se tenha enriquecido por vias injustas, ou infamado a reputação do próximo, fazei-lhe restituir o mal adquirido e reparar o dano feito à honra dos seus irmãos.

Deveis fazer tudo isto durante o retiro; é a ocasião mais própria de exigir dos pecadores esses deveres tão difíceis como indispensáveis. Se vos contentardes com as suas promessas passado o fervor, teríeis o desgosto de os ver recair no precipício de que os não tiverdes afastado suficientemente.

Evitai desanimar, por uma severidade precipitada, os que tiverem começado a descobrir-vos as úlceras da sua alma. Por maiores que sejam os seus crimes, escutai-os com paciência e doçura, vinde em seu auxílio, aliviai a sua vergonha demonstrando-lhes uma grande compaixão, e não vos mostreis admirado por nenhuma das suas declarações, por mais enormes que sejam.

Convencei-os, ao contrário, que tendes tido muitas ocasiões de ouvir iguais confissões, e para que eles não desesperem do perdão dos seus pecados, falai-lhes das misericórdias infinitas de Deus; dizei-lhes que, com a sua graça, vós tendes o poder de curar todas as feridas mortais da alma; animai-os finalmente, por todos os meios ao vosso alcance.

Vereis muitas vezes a língua embaraçada pela vergonha. Nestas ocasiões, devemos cortar este embaraço, e para isto ir, se necessário for, até à descoberta das fraquezas da nossa vida passada; esta confidência abrirá os corações e os levará a declarações completas.

Ah! quem poderá recusar uma verdadeira e ardente caridade para salvar almas remidas pelo sangue de Jesus Cristo! Mas quando, como, e até que ponto deve este meio ser empregado? É o que a prudência, a experiência, a confiança em Deus vos inspirarão no próprio momento.

Encontrareis cristãos que não crêem na presença real de Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento do Altar. Esta incredulidade vem do afastamento dos sacramentos ou do seu contacto habitual com os pagãos, maometanos e heréticos; outras vezes pelo escândalo que dão outros cristãos, e digo-o, com grande pesar e vergonha, pelos Padres cuja vida desonra o seu ministério! Q povo, vendo-os subir ao altar sem preparação e sem respeito, supõe que eles próprios não têm fé na presença de Jesus Cristo no sacrifício da missa.

Consegui que aqueles cristãos vos exponham francamente as suas dúvidas; provai-lhes em seguida a verdade da presença real de Jesus Cristo, e esforçai-vos por lhes fazer compreender que o meio mais seguro de se esclarecerem é sair do abismo dos seus vícios e dos seus erros, é fazerem uma boa confissão geral e aproximarem-se do divino sacramento do altar. Conseguireis assim, facilmente que eles ali concorram muitas vezes com as disposições exigidas.

Não julgueis que tudo fique acabado quando o penitente tenha feito uma confissão para a qual estava de antemão preparado. É necessário ainda aprofundar na sua consciência e apresentar-lhe o que ele não tenha visto. Interrogai todos esses mercadores sobre a origem das suas fortunas, sobre a maneira como operaram as suas transações, sobre a natureza dos seus negócios, sobre os seus contratos de venda e de compra, e encontrareis a usura em tudo, reconhecereis que a maior parte das suas fortunas foi injustamente adquirida.

Quase todos eles têm um tal hábito deste gênero de fraude e de rapina, que não têm nenhum escrúpulo, ou têm tão pouco, que se não preocupam disso. Insisti sobre este ponto com respeito aos governadores, tesoureiros, recebedores e todos os empregados das finanças.

Quando eles se vos apresentarem no santo tribunal, interrogai-os sobre os meios que os enriqueceram tão prontamente; procurai saber por que segredos os seus empregos lhes fornecem,, tão grandes rendas.

Se mostrarem dificuldade em confessarem, insisti suavemente, por todos os meios, com o fim de os fazer falar, mau grado seu, e descobrireis as práticas secretas pelas quais os cobradores dos direitos reais revertem em seu proveito o que deveria ser empregado em utilidade pública. Eles compram as mercadorias com os dinheiros do rei e vendem-nos por sua própria conta; abarcam tudo no porto, forçam o povo a comprar-Lhes pelos preços por eles fixados, e este preço é sempre exorbitante e oneroso.

Muitas vezes fazem esperar e sofrer necessidades àqueles a quem o tesouro é devedor, obrigando-os a uma composição que deixe sempre para eles uma parte da soma devida; e esta locupletação manifesta, este vergonhoso roubo, adornam-no eles com o nome de indústria!

É este o meio que vos indico para que possais saber o que eles devem restituir ao próximo para se reconciliarem com Deus; porque se lhes perguntais, na generalidade, se eles têm praticado extorsões ao próximo, responder-vos-ão que a sua memória não lhes acusa nada a este respeito. A prática serve-lhes de lei, e persuadem-se que aquilo que têm feito e fazem, o podem continuar a fazer sem crime, como se a prática pudesse autorizar o que de si mesmo e vicioso e criminoso.

Não reconheçais nunca um tal direito e declarai àqueles pecadores que para porem as suas consciências em segurança, devem começar por se desfazerem do que possuem mal adquirido.

Logo depois da vossa chegada a Ormuz, ide apresentar-vos ao vigário geral, ponde-vos de joelhos diante dele, beijai-lhe humildemente as mãos. Não pregueis, e não exerçais nenhumas funções, do nosso Instituto sem lhe ter pedido licença; obedecer-lhe-eis em tudo. Não lhe apresenteis dificuldades por qualquer coisa que seja; procurai ao contrário ser-lhe agradável pelos vossos serviços e em ganhar a sua amizade pela vossa deferência e disposição em lhe ceder sempre; levai-o ao desejo de fazer os Exercícios espirituais, e consegui que ele faça ab menos os da primeira semana.

Consegui também o mesmo dos outros Padres, e quando não possais obter que eles façam o retiro dum mês, segundo nós costumamos convencei-os a fazer o de alguns dias; durante aquele tempo, ide desenvolver, vós mesmo, os assuntos das meditações.

Prestai ao governador o respeito e a submissão devidas à sua dignidade; não vos indisponhais com ele, sob nenhum pretexto, nem mesmo quando ele falte gravemente aos seus deveres. Aguardai até terdes conquistado a sua confiança e benevolência pelo vosso procedimento e relações para com ele; então, ide vê-lo sem receio, mostrai-lhe o interesse que ligais à sua salvação, e declarai-lhe com doçura e modéstia, o sentimento que vos causa o perigo ao qual ele expõe a sua alma e a sua reputação.

Fazei-lhe conhecer a opinião do povo, a possibilidade de a fazer chegar aos pés do trono, e a vantagem que ele teria em satisfazer a maioria do público; mas não empreendais isto antes que tenhais a certeza de serdes escutado.

Não vos encarregueis nunca de lhe levar as queixas dos particulares; recusai-vos absolutamente. Desculpai-vos com as vossas funções evangélicas que não vos permitem esperar dias inteiros pelo momento de uma audiência, sempre difícil de obter. Acrescentai que mesmo que tivésseis tempo para essas visitas, e todas as portas do palácio estivessem abertas para vós a toda a hora, pouco resultado colheríeis das vossas tentativas, se o governador é tal como o pintam; se ele não sente o temor de Deus nem o grito da sua consciência, pouco caso faria das vossas advertências.

Depois dos trabalhos ordinários e indispensáveis para os vossos cristãos empregai todos os momentos que vos sobrarem na conversão dos infiéis. Dai sempre preferência aos trabalhos cujo fruto se estende mais longe. Não prejudiqueis nunca uma pregação por causa duma confissão; não deixeis o catecismo, que se deve fazer todos os dias a hora certa, por uma visita particular ou outra boa obra. Uma hora antes do catecismo não deixeis de percorrer a cidade com o vosso companheiro e de convidar toda a gente, em alta voz a ir ouvir a explicação da doutrina cristã.

Escrevereis de tempos a tempos para o colégio de Goa dando conta dos vossos trabalhos, do modo como exerceis os ministérios sagrados, do fruto que tendes colhido até então, e para consultar sobre os melhores meios de progredir ria glória de Deus. Que as Vossas cartas sejam fidedignas, a fim de que os nossos Padres de Goa possam enviá-las para a Europa como provas autênticas dos nossos trabalhos no Oriente, e das bênçãos que Deus se digna derramar sobre os esforços da nossa mínima Companhia. Que se não insinue nada naquelas cartas de que alguém tenha de se ofender; nada que deixe de ser verosímil, e que não tenha por fim louvar a Deus e servi-Lo.

À vossa chegada a Ormuz procurai relações com os habitantes principais, dos quais tiverdes ouvido dizer bem, porque estes serão os melhores informadores dos costumes e das usos do país. Informai-vos ao depois, por eles, dos vícios dominantes e das fraudes mais geralmente praticadas no comércio, a fim de vos: preparar para esclarecer as consciências, quer seja no tribunal da penitência, quer seja nas relações exteriores.

Percorrereis, todas as noites, as ruas da cidade, recomendando em alta voz a oração pelos mortos e pelos vivos que se acham em pecado mortal. Conciliareis o tom da voz com a recomendação que fizerdes.

Conservai, em todas as ocasiões de crises, o rosto sereno, a fisionomia alegre, o olhar terno e benevolente o humor agradável. Nunca mostreis tristeza nem impaciência; distinguireis aqueles que se mostrarem dispostos a abrir-vos o seu coração. Falai sempre com doçura, sede sempre amável, mesmo quando tiverdes de repreender alguém. A vossa caridade deve dar a conhecer que a falta vos é desagradável, mas não a pessoa que a cometeu.

Nos domingos e dias santificados pregareis, pelas duas horas depois do meio-dia, na igreja da Misericórdia, ou numa das principais igrejas da cidade, depois de haver enviar Raimundo Pereira a percorrer as ruas com uma campainha, convidando o povo a vir ao sermão; isto quando não julgardes preferível irdes vós mesmo fazer aquele convite. Levareis para a igreja a explicarão do símbolo dor apóstolos e o regulamento de vida que eu redigi.

Dareis uma cópia daquele regulamento a cada um dos que ouvirdes de confissão, impondo-lhes, por penitência, a prática dm que ele contém, durante alguns dias. Eles se acostumarão assim a uma vida cristã, e bem depressa farão, eles mesmos, por hábito, o que não fariam de outro modo, senão por exceção e por ordem do confessor. E como não tereis tempo de fazer um tão grande número de cópias, aconselho-vos que mandeis copiar uma em grandes caracteres, expô-la em um lugar público, e aqueles que quiserem servir-se dela poderão lê-Ia ou copiá-la sem dificuldade.

Recorrerão a vós vários jovens que desejarão ser admitidos na nossa Companhia. Examinai-os, e aqueles que julgardes capazes, enviai-os a Goa com uma carta que exprima os seus desejos e as vossas observações sobre os seus talentos. Podereis, se preferirdes, deixá-los convosco; neste último caso, depois de lhes ter feito praticar, durante um mês, os Exercícios espirituais, os experimentareis em fazer instruir o povo sem os tornar ridículos a si próprios. Para este fim ordenai-lhes o serviço dos doentes nos hospitais, prestando-lhes os que forem mais abjetos e mais repugnantes. Fazei-lhes visitar os presos, aprendendo a consolá-los.

Finalmente exercitai vossos noviços em todas as práticas de humildade e mortificação; mas não consintais nunca que eles apareçam em público em trajes ridículos que provoquem a irrisão do povo. E repito, além de lho não ordenar, não o consintais nunca.

Não sujeiteis, indiferentemente todos os noviços às provas que a natureza de cada um recusa; examinai as forças de cada um deles, e proporcionai as mortificações ao seu temperamento, à educação e ao seu progresso espiritual, de modo que possais esperar que a prova não seja inútil, e que frutificará, segundo o grau da graça que lhes for dado.

Se aquele que dirige os noviços despreza estas regras, acontecerá que os que teriam podido fazer grandes progressos na virtude, se tivessem sido prudentemente dirigidos, perderão a coragem e recuarão.

Além disto, essas provas muito fortes para as almas que começam, arredam os corações do mestre dos noviços e lhes fazem perder a confiança. Aquele que forma os jovens para a vida religiosa deve empregar todos os meios para ganhar a sua confiança, a fim de que, abrindo-se a ele com sinceridade e franqueza, lhe descubram as suas inclinações e as tentações que os assaltam.

Se os noviços não tiverem esta franqueza de coração, não se desembaraçarão jamais das armadilhas do demônio e não chegarão nunca à perfeição religiosa.

Estas primeiras sementes do mal germinam e se desenvolvem pelo silêncio; insensivelmente o noviço se desgosta, fatiga-se da disciplina religiosa, acaba por sacudir o jugo de Jesus Cristo, e volta ao mundo, e muitas vezes a todas as suas devassidões.

Entre os noviços, uns serão levados por uma glória efêmera, outros pelo prazer dos sentidos ou por outros erros e vícios.

A melhor maneira de os curar é fazer-lhes compor discursos contra aqueles mesmos vícios; fazer com que eles procurem todos os argumentos e todos os meios de os combater e de os destruir, e que preguem esses discursos ao povo na igreja ou no hospital, aos convalescentes ou aos outros. É de esperar que aquele estudo e aquela aplicação lhes serão mais úteis do que aos seus ouvintes. Aproveitarão a si próprios os remédios que tiverem indicado aos outros, e não quererão conservar-se na vida donde tiverem querido afastar seus irmãos.

Poreis em prática, proporcionalmente, a mesma indústria para com os pecadores que se não decidirem a fugir das ocasiões do pecado, nem a restituírem o alheio. Quando tiverdes conseguido ganhar a sua confiança, aconselhai-os a que digam a si próprios o que diriam aos seus amigos em iguais circunstâncias, desenvolvendo todas as razões que possam apoiar a condenação da sua dilação ou resistência.

Antes de tratar da grande questão da salvação, assegurai-vos da disposição de espírito daquele que quiserdes salvar. Buscai descobrir se ele está tranqüilo ou agitado por alguma paixão violenta; se se deixa perder voluntariamente, ou se tem forças para reconhecer a verdade quando se lhe apresenta; se é arrastado para o mal pela violência da tentação ou pela sua má índole; se é dócil, de modo que se possa esperar que aproveitará dum bom conselho, ou se é de humor difícil e pouco tratável.

Tudo isto deve ser examinado, a fim de falar a cada um segundo a disposição que tiverdes notado nele.

Usai da maior prudência com os corações duros e difíceis; mas não iludais nunca o doente; não lhe digais jamais nada que possa fazer perder a virtude do remédio ou impedir o seu efeito.

Em qualquer lugar que estejais, embora de passagem, procurai saber, pelos habitantes mais honrados e considerados, não somente quais são os crimes que se cometem mais de ordinário na cidade, e as fraudes mais usadas no comércio, como vos recomendei para Ormuz, mas também as inclinações do povo, os costumes do país, a forma do governo, as opiniões e tudo, finalmente, que diz respeito à vida civil.

Crede-me, o conhecimento destas coisas é da maior importância e utilidade para o missionário, a fim de dar remédio pronto às doenças espirituais, e achar-se sempre preparado para fazer bem a todos aqueles que se lhe apresentarem. Adquirido este conhecimento, nada vos surpreenderá, nada vos causará admiração; manejareis mais facilmente os corações, tereis mais autoridade sobre eles sabereis sobre que pontos vos deveis basear na pregação c o que deveis recomendar com mais instância na confissão.

Desprezam-se muitas vezes os avisos e conselhos dos religiosos, sob pretexto de que eles desconhecem o mundo e lhes falta experiência dele; mas quando se encontra um que sabe viver e que tem inteira experiência das coisas humanas, admiram-no como a homem extraordinário, abandonam-se a ele, violentam-se voluntariamente sob a sua direção; os seus conselhos por mais espinhosos, são executados. Tal é o fruto maravilhoso da ciência do mundo.

Deveis, pois, trabalhar para adquirir este conhecimento com tanto zelo como empregastes noutro tempo para aprender a ciência dos filósofos e dos teólogos.

Não é somente nos manuscritos e nos livros impressos que se adquire aquela ciência; é nas relações com as pessoas de caráter firme e inteligentes. Com esta ciência colhereis mais fruto do que com todos os raciocínios dos doutores e todas as subtilezas das escolas.

Disporeis de um dia da semana para trabalhar em reconciliar os inimigos ou aqueles que, divididos por questões de interesse, estão a ponto de pleitear. Ouvi as queixas de cada um, proponde-lhes argumentos, buscai fazer-lhes compreender que há mais vantagem em se acomodarem do que envolverem-se em processos intermináveis que arruínam a consciência, a reputação e a fortuna.

Os advogados, procuradores e escrivães que a chicana enriquece, não gostarão disto; mas fazei-lhes compreender que, prolongando ou provocando os processos, se expõem a uma condenação eterna. E se puderdes mesmo chamá-los a um retiro e recolhimento dalguns dias, fazei-o, a fim de que os Exercícios espirituais os esclareçam e mudem as suas disposições.

Não espereis chegar a Ormuz para pregardes; começai no mar, logo que embarcardes.

Não vos esmereis em provar a vossa erudição ou memória, citando muitos textos de autores antigos; citai pouco e escolhei convenientemente as citações. Interessai-vos, sobretudo, em pintar ao vivo o estado das almas abandonadas ao mundo e ao pecado, de modo que elas possam ver reproduzidas nos vossos sermões, como num espelho, as suas inquietações, seus artifícios seus projetos frívolos e suas vãs esperanças. Mostrai-lhes o abismo que assim cavam, descobri-lhes as armadilhas que lhes são tecidas pelo espírito do mal; ensinai-lhes os meios de as evitar, acrescentando que têm tudo a perder se se deixarem prender por elas.

Por este modo cativareis a atenção, por que é sempre escutado quem fala interessando o auditório.

Evitai os assuntos elevados, as questões complicadas e controvertidas, porque achando-se elas além do alcance do vulgo, não produzem senão um abalo sem resultado na restauração das consciências.

Atraireis vossos ouvintes representando-os a eles próprios; mas para isto é necessário tê-los observado e aprofundado; é necessário conhecê-los bem. Estudai, pois, aqueles livros vivos, e neles achareis os meios de vos tornar senhor dos corações e poder dirigi-los, em seguida, para o caminho que devem trilhar.

Não vos proíbo que consulteis a Sagrada Escritura, os Padres da Igreja, os sagrados cânones, os livros de piedade, os tratados de moral Deus me livre disso! Eles vos fornecerão provas sólidas para estabelecer as verdades cristãs, remédios soberanos contra as tentações, exemplos heróicos de todas as virtudes. Mas tudo isto é frio para os espíritos pouco dispostos a recebê-los, e não se consegue convenientemente senão pelo sistema que vos indiquei, de conhecer o homem por um profundo estudo dele próprio, pintá-lo fielmente e colocar o quadro em tal luz, que cada um possa nele reconhecer-se.

Uma vez que o rei deu ordens para se prover às vossas necessidades, usai deste benefício, e não peçais nada senão às suas autoridades. Recusai, diretamente o que os outros vos queiram oferecer; estareis assim mais seguro de conservar a vossa independência e liberdade apostólica, segundo o adágio: quem prende prende-se.

Porque se nós nos vemos na necessidade de dar um conselho caridoso àqueles de quem tivermos recebido esmolas, somos tratados com altivez, como se a esmola que recebemos os tornasse nossos senhores e lhes desse o direito de nos desprezar.

Acautelai-vos de certos pecadores que se apressarão a procurar-vos, mostrando-se honrados por serem vossos amigos, e procurando captar a vossa amizade com toda a sorte de atenções. Não vos iludais com isso, porque se procuram a vossa convivência, não é, de certo, com o fim de a aproveitar para a correção da sua vida: é para vos fechar a boca e evitarem a censura que merecem.

Sem os repelir, acautelai-vos deles. Se vos convidarem para a sua mesa, não recuseis. Não recuseis também os presentes de pouco valor que estão em uso nas Índias, tais como frutas e água fresca [60], que se não podem recusar sem mostrar desprezo; mas declarai-lhes que não os recebereis senão com a condição de eles aceitarem bem os vossos conselhos, e que vós ireis comer com eles só quando vos for permitido prepará-los para fazerem uma boa confissão e se aproximarem da sagrada mesa.

Quanto aos presentes que vos virdes forçado a receber, mandai-os imediatamente aos doentes, aos presos ou a outros pobres. O povo ficará satisfeito e não poderá taxar-vos de avareza, nem desconfiar da vossa delicadeza.

Quando chegardes a Ormuz, depois de haver considerado e conhecido o estado das coisas, decidireis onde convirá que moreis, se no hospital, na casa da Misericórdia, ou em algum alojamento que não esteja muito afastado.

Se eu vos chamar para o Japão, escrevereis logo ao reitor dó colégio de Goa, por duas ou três vias diferentes, a fim de que ele vos substitua por um dos nossos Padres, capaz de missionar a cidade de Ormuz.

Finalmente recomendo-vos a vossa própria pessoa a vós mesmo, meu querido Gaspar; sobretudo, não esqueçais nunca que sois membro da Companhia de Jesus!

Nos negócios particulares, a experiência vos ensinará o que for mais útil para a glória de eus; porque, havendo prudência, a prática e o uso são os melhores mestres.

Lembrai-vos de mim nas vossas orações e nos vossos santos sacrifícios, e recomendai aos que dirigirdes que orem por mim ao Senhor que servimos.

Lede estas instruções todas as semanas, a fim de as não esquecerdes.

Praza ao Senhor conduzir-vos, guardar-vos na vossa viagem, e que esteja, em tudo, sempre conosco!

Francisco.