II. CARTAS - RECONHECIMENTO PARA COM DONA FRÓIS - EMBARCA PARA O JAPÃO

A graça e amor de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam sempre conosco! Amém.

"Apresso-me a escrever-vos, meus muito queridos Irmãos, porque conheço a consolação que terão com a notícia da nossa viagem.

Fizemo-nos à vela de Cochim a 25 de Abril, e desembarcámos em Malaca, com a mais perfeita saúde, a 31 de Maio. Em menos de quarenta dias se efectuou a nossa viagem sem a menor indisposição de nenhum de nós, tendo-nos sido o céu e o mar constantemente favoráveis. Não corremos nenhum outro perigo, graças a Nosso Senhor, que visivelmente protegeu a nossa navegação.

O governador, à testa de todos os habitantes daquela cidade, desde o mais pequeno aos maiores, vieram receber-nos ao desembarque com demonstrações de grande alegria.

Na nossa primeira entrevista fiz-lhe conhecer os nossos projetos de viagem para o Japão, e ele me respondeu com os mais obsequiosos oferecimentos, que se apressou em realizar. Nós e toda a Companhia lhe devemos muitas obrigações.

Queria absolutamente equipar à sua custa, e para nós somente, um navio português que nos conduzisse ao Japão, e tê-lo-ia feito se tivesse encontrado um próprio para aquele fim. Não podendo fazer o que desejava determinou-se por um navio de construção chinesa, dos conhecidos pelo nome de juncos, cujo capitão, cognominado o Voador, se achava estabelecido em Malaca, ainda que chinês e idólatra.

D. Pedro da Silva [65] não se contentou com a simples promessa que lhe fazia aquele pagão, de nos deixar nas costas do Japão: lavrou com ele um contrato pelo qual foi convencionado que o Voador poria sua mulher e seus filhos em reféns, em poder de D. Pedro da Silva, que os confiscaria, assim como todos os bens que ele possuía em Malaca e nas Índias portuguesas, se não trouxesse cartas nossas atestando a nossa chegada ao Japão.

Ajuntai àquele importante serviço que o governador nos prestou generosamente, outros não só para a nossa viagem daqui ao Japão, mas ainda para o nosso desembarque e estabelecimento.

A sua generosidade foi ainda mais longe; mandou-nos duzentos escudos para nos fazer abrir o caminho até ao imperador e facilitar-nos a pregação do Evangelho.

Vamo-nos, pois, fazer à vela para o Japão, sem tocar em porto algum da China. Deus favorecerá, eu o espero, a nossa navegação e nos conduzirá sãos e salvos àquele império, onde o seu Santo Nome será, pela primeira vez, glorificado e nós seremos os seus primeiros apóstolos. Afonso de Castro celebrou os santos mistérios pela primeira vez no dia da Santíssima Trindade, com diácono e subdiácono. Um numeroso clero, de sobrepelizes veio processionalmente buscar o novo celebrante à Misericórdia, onde nós morávamos. Seguimos a procissão que nos conduziu à catedral, e que depois do ofício, nos acompanhou de novo à nossa morada. Ele tinha por assistentes o senhor vigário geral e Francisco Peres.

O Padre Cosme de Torres desempenhava as funções de diácono. Coube-me a mim subir ao púlpito.

O povo experimentou grande. prazer em assistir a uma primeira missa celebrada com tanta solenidade como não havia exemplo.

Não me esqueçais, meus amados filhos, e fazei-me lembrado dos nossos Padres e dos nossos Irmãos; recomendai-lhes que se lembrem de mim no santo sacrifício e nas suas orações quotidianas, e que não esqueçam o governador de Malaca, cujos benefícios para a nossa Companhia são tão importantes, que nós seremos incapazes de pagar-lhe se não apelamos para a liberalidade toda poderosa de Deus. Não podemos faltar a este dever sem nos tornarmos culpados do odioso vício da ingratidão.

Mandai-me, Padre Baltazar, notícias do meu amigo Cosme Anes. Dizei-me com que graça Deus Nosso Senhor o beneficia, a sua família e a sua casa.

Falai-me de vós também da vossa saúde e dos vossos progressos na vida espiritual. Dizei-me se tendes trabalhado com desejos de conseguir grandes coisas e sofrer muito pela glória de Jesus Cristo.

Eu estou convencido que, pela amizade que a mim consagrais, fareis tudo quanto vos peço; mas com o fim de não vos subtrair ao dever da obediência, vos ordeno: Estai pronto a partir ao primeiro aviso, pois que é possível que vos chame para junto de mim mais cedo do que esperais...".

A solicitude de Francisco Xavier para com todos os países em que implantara a lei do Evangelho, fez-lhe escrever numerosas cartas aos seus irmãos de Goa, durante as três semanas que passou em Malaca, antes de embarcar para o Japão.

Não deixou de lhes indicar, em todas aquelas cartas, tudo quanto julgou útil para a manutenção da fé naquelas cristandades; deu-lhes conselhos espirituais para eles próprios; fez-lhes inumeráveis recomendações relativas à administração da Companhia, entrando em minuciosos pormenores a este respeito, com a maior previdência em tudo, uma sabedoria de conselho, e uma habilidade que chegava a ser prodigiosa.

Depois de lhes dar contas dos trabalhos e dos sucessos do Padre Peres em Malaca, acrescenta, com a mais penetrante humildade:

"Estou certo e espero que não será a ele que o Senhor dirigirá estas palavras: que fazeis aí todo o dia em ociosidade? a ele que a toda a hora do dia e da noite se acha ocupado em retirar das almas as manchas do pecado, ou a inspirar-lhes o amor de Deus que as criou!... As igrejas não são assaz vastas para conter o seu auditório. A sua conversação é de uma polidez e de uma afabilidade raras; atrai todos para si; igualmente amável, igualmente delicado para com os grandes e pequenos, é obedecido e querido de todas as classes da sociedade. O seu zelo insaciável levou-o a ser considerado como um apóstolo favorecido de Deus.

Em verdade, meus Irmãos, eu vo-lo confesso, este homem faz-me corar a meus próprios olhos! A vista dos ricos e numerosos despojos com que ele, só, fraco e sofredor, enriquece constantemente a Igreja, a consciência da minha própria incapacidade enche-me de confusão!...

...Expedi para aqui, sem delonga, um Padre que tenha experiência e prática do confessionário, para coadjuvar Francisco Peres, muito sobrecarregado de outros trabalhos. Não há talvez em todas as colônias portuguesas das Índias, uma cidade que tenha mais urgente necessidade de bons confessores como a de Malaca.

O comércio atrai para ali um grande número de estrangeiros, pela. maior parte cristãos e que têm necessidade de procurar no sacramento da penitência um remédio contra a fragilidade humana, e se aquele tribunal não lhes for aberto a propósito, correm grande risco de se perderem...".

Em uma outra carta, com data do mesmo dia do embarque, cheio dos seus pensamentos do futuro do Japão, das suas preocupações pelos imensos sucessos da religião nas Índias, de solicitude pelos seus irmãos, por ele disseminados numa extensão de perto de três mil léguas, e cujos interesses materiais o ocupavam até nas mais insignificantes coisas, assim como dos seus interesses espirituais, seu coração encontra ainda tempo e meios de se ocupar generosamente dos amigos aos quais ele crê dever reconhecimento.

Seu magnânimo gênio, sua elevada inteligência, abraçam os mais variados e importantes negócios e dirige-os com uma segurança de vistas, tão sábia previdência e tal precisão, que só se pode admirar, e que não é possível apreciar senão lendo a sua correspondência. Mas isto não é bastante para a sua grande alma, é necessário ainda que o seu coração -fique satisfeito!

Ele acabava de escrever ao rei de Portugal em favor de alguns funcionários para os quais pedia recompensas merecidas, e vai escrever ainda aos Padres Camerini e Gomes sobre assuntos bem diferentes...

Encontrou em Malaca, na véspera da partida, um dos seus antigos amigos, Cristóvão de Carvalho, a quem fez observar que a vida agitada que levava era contrária aos interesses da sua alma, e lhe mostrou um vivo desejo de o ver largar o comércio e descansar, de modo que encontrasse o sossego necessário para a vida da alma.

Seus conselhos são aceitos; D. Cristóvão de Carvalho, aliás bom cristão, promete-lhe satisfazer os seus desejos.

Naquele momento ocorre uma idéia ao pensamento do nosso Santo, e põe-na logo em execução.

A. viúva Dona Fróis, prestara serviços à Companhia de Jesus nas pessoas dos Padres do colégio de Santa-Fé e habitava em Goa. Sua filha era boa e virtuosa; Cristóvão de Carvalho não era casado; e Xavier propõe-lhe desposá-la e lhe faz a enumeração de todas as suas qualidades. Bastou isto para a resolução de Carvalho: sem mostrar desejos de querer ver a donzela, promete unir-se a ela, bem certo de que Deus lha destinou pela boca do santo Padre.

Francisco Xavier escreve no dia seguinte aos Padres de Goa encarregando-lhes a negociação deste casamento; nesta carta não somente não omite coisa alguma que pudesse esclarecer sobre D. Cristóvão, que os Padres não conheciam, mas pede-lhes também que trabalhem por obter do vice-rei autorização, a favor de Dona Fróis, para vender o cargo de seu marido, cargo que, pelo seu alvará -tornando-se reversível para o genro e devendo representar o dote da filha, -estaria abaixo do nascimento de Cristóvão de Carvalho; e acrescenta:

"Se vos opuserem dificuldades, removei-as, mas não vos desanimeis. Fazei todos os esforços, interessai todos os vossos amigos; fazei trabalhar o tesoureiro e todos de quem puderdes lançar mão para determinar o vice-rei e seu Conselho a interpretarem a favor daquela viúva a intenção real na concessão desse privilégio. Que se convençam, efetivamente, de que sua Alteza não teve em vista senão fazer a filha de Diogo Fróis herdeira da recompensa que seu pai merecera. Vós ganhareis a causa ela é muito justa para que Deus, protetor das viúvas e pai dos órfãos, deixe de vos auxiliar.

Se tomo tanto interesse por este negócio, se ponho tanto empenho nas minhas instâncias, é por que estou persuadido que não podemos desprezar nada para o seu bom êxito, sem nos tornar culpáveis de ingratidão para com a nossa benfeitora, mancha vergonhosa que recaíra sobre a nossa Companhia. Empregai, pois, todos os vossos esforços para destruir todos os obstáculos que se opuserem a este casamento, que eu creio ratificado no Céu, e que projectei em interesse da venerável viúva, que nós costumamos chamar nossa mãe, e no da sua modesta filha.

Encontrais em Carvalho um homem sincero e tratável, escrupuloso nos negócios, fiel observador da sua palavra. Ele deseja do coração esta aliança que lhe trará o repouso pelo qual, eu sei, suspira há muito tempo. Isto é bastante para vos fazer compreender o vivo interesse que me inspira este negócio, e para vos fazer apreciar os motivos. Se eu souber que os meus votos se realizam, ser-vos-ei tão reconhecido como se me tivésseis pessoalmente obsequiado. Que Deus nos reúna na sua glória! porque é muito para duvidar que nos vejamos jamais neste mundo.

Francisco".

E agora, se se quiser conhecei melhor a disposição íntima do nosso Santo no momento da sua partida para o Japão, é necessário recorrer-se ainda à sua correspondência.

Ele escreve aos seus Irmãos de Roma, datado de Maloca a 22 de julho.

"...Apenas desembarquei recebi de muitos negociantes portugueses cartas do Japão. Elas fazem-me saber que um príncipe japonês, desejando abraçar o Cristianismo, enviara embaixadores ao vice-rei das Índias para lhe pedir pregadores evangélicos. Essas cartas contêm um facto muito notável que eu vou contar-vos.

Numa cidade do Japão, os mercadores portugueses alojaram-se, por ordem do rei, em uma casa desabitada e que se dizia estai infestada de espíritos malignos. Dali a pouco, ignorando ainda eles o motivo por que se lhes designara aquele alojamento, foram surpreendidos ouvindo uma medonha algazarra até no interior dos seus quartos, e sentindo-se atormentados de golpes, sem verem a mão que os feria, sem descobrirem sequer, não obstante as mais minuciosas pesquisas, a causa daquele estranho acontecimento.

Em uma noite, despertados pelos gritos de um dos seus criados, e tendo corrido precipitadamente e armados, para o sítio de onde vinham os brados, encontraram o criado trêmulo de medo; perguntam-lhe por que gritara e por que tremia. Ele responde que vira o mais medonho espectro, que, preso de terror, fizera o sinal da cruz, e que o espectro desaparecera àquele sinal. E recuperando o ânimo, o criado apressou-se a fazer cruzes por todos os pontos da casa; nas paredes, nas portas, nas janelas por toda a parte; e desde aquele momento, não se ouviu mais bulha, nem se viram mais espectros; continuaram a viver ali perfeitamente tranqüilos.

Admirados os habitantes da constância dos portugueses em habitarem uma casa da qual ninguém se atrevia a aproximar-se, porque era a morada dos duendes ou demônios, perguntaram-lhes o que haviam feito para os expulsar. Responderam-lhes então que possuíam um meio certo: o sinal da cruz. Daí a pouco os habitantes daquela cidade colocaram cruzes à entrada de todas as casas [66].

Se os nossos pecados não puserem obstáculo a que Deus queira servir-se do nosso ministério, creio que um grande número de japoneses se submeterão ao império da cruz. Contudo, não me decidia a fazer esta viagem senão depois de madura reflexão, mas conheço a vontade de Deus pelos sinais duma tal certeza, que me consideraria como mais miserável ainda do que o japonês idólatra, se não insistisse nesta empresa.

O inimigo da salvação dos homens nada tem poupado para impedir a minha partida; ele teme-nos certamente.

Logo que ali chegar, iremos imediatamente à corte apresentar-nos ao rei e fazer-lhe conhecer as ordens de que vamos encarregados por parte do Rei dos reis. Vamos cheios de confiança em Deus, esperando, sob a sua proteção, triunfar dos seus inimigos. Não receamos a luta com os jurisconsultos japoneses: que ciência poderá ser aquela que não conheça Deus e Jesus Cristo seu Filho? e o que pode ter a recear aquele que não tem outra ambição mais do que a glória de Deus, outro desejo do que salvar as almas pregando o Evangelho?

É verdade que nós nos vamos achar entre os bárbaros, no império do demônio; mas o que podem contra nós a raiva das potências infernais e a barbaria dos homens? Nada, senão o que Deus permitir.

Uma só coisa há a recear da nossa parte; é o ofender a Deus. Se conseguirmos evitar esta desgraça, seguros da sua proteção, estaremos igualmente seguros da vitória.

Até aqui, Deus nos tem socorrido poderosamente nos trabalhos empreendidos para a sua glória; ele não nos recusará, na sua misericórdia, os socorros que nos tem prodigalizado até ao presente.

O mais importante é que não abusemos dos dons da Providência; mas eu espero isso das orações da Igreja nossa mãe, a esposa de Jesus Cristo e sobretudo das da nossa Companhia e dos seus filhos; com este socorro, faremos reverter para a glória de Deus os dons do próprio Deus.

Um delicioso pensamento nos enche de ardor e de forças: é que Deus nos vê e penetra nos nossos corações é que ele lê no fundo de nossas almas, que o nosso único fim é de o fazer conhecer e servir, fazer estender o seu império, procurar alcançar a sua glória...

A viagem para o Japão é perigosa, concordo; mas o nosso excelente Padre Inácio dizia-nos muitas vezes que os membros da nossa Companhia devem estar corajosamente acima de todos os receios que os impeçam de ter unicamente confiança em Deus. Eu tenho a convicção de que nunca olvidei aquela recomendação...

...Os japoneses que nos acompanham dizem que os bonzos, sacerdotes do país, se escandalizarão vendo-nos comer carne ou peixe; resolvemos, pois, submeter-nos a uma abstinência perpétua, se necessário for, para não escandalizar quem quer que seja.

Que Deus nos reúna na pátria celeste, porque não sei se nos tornaremos a ver neste exílio! Contudo a santa obediência tem tanta força que torna fácil o que parece impossível.

Francisco".

Antes de deixar Malaca, recebeu Xavier os primeiros votos de D. João Bravo, jovem português, que se deixara converter pela vida de sublime devoção dos Padres Peres e Oliveira; ele renunciara a uma grande fortuna, a uma brilhante posição no mundo e se retirara ao hospital, onde vivia havia três meses sob a direção e regime dos Padres, no exercício das obras de penitência e caridade, não aspirando a nada mais do que à felicidade de vir a ser membro da santa Companhia de Jesus.

Xavier aceitou-o depois de o haver examinado, e deixou-lhe, antes de partir, um regulamento de vida, datado de modo que pudesse revelar toda a sensibilidade do seu coração.

Da capela de Santa Maria do Monte, próximo de Malaca, na noite da véspera de S. João Batista, pouco antes de me embarcar para o Japão, 1549

Daquelas instruções, citaremos tão somente um fragmento que nos parece apresentar o conjunto das sublimes virtudes do nosso Santo, e nos recorda os sacrifícios que teve de fazer para as adquirir.

"Qualquer coisa que façais, em qualquer situação que vos acheis, trabalhai sempre por vos vencer a vós mesmo."

"Subjugai as vossas paixões, segui aquela que os sentidos aborrecem mais; reprimi, sobretudo, o desejo natural da glória, e neste ponto nada vos perdoeis até que tiverdes conseguido arrancar do vosso coração as próprias raízes do orgulho, a ponto de não somente suportardes voluntariamente que vos rebaixem a todos, mas ainda de mostrar que vos alegrais por serdes desprezado. Sem esta humildade e mortificação, tende por certo que não podeis nem crescer em virtude nem ser útil à salvação do próximo, nem agradar a Deus, nem, finalmente, conservar-vos na Companhia de Jesus.

Obedecei em tudo ao Padre com quem viverdes, e por mais penosas e difíceis que vos pareçam as coisas que ele vos ordenar, executai-as com alegria, não lhe resistindo jamais e não vos escusando nunca, por qualquer causa que seja.

Finalmente, ouvi-o, obedecei-lhe, deixai-vos guiar por. ele em tudo, como se o Padre Inácio vos falasse e ele próprio vos dirigisse!"

Depois de haver assim regulado tudo como se se preparasse para a morte, o ilustre apóstolo do Oriente embarcou-se no junco de Neceda, corsário chinês que pelas suas correrias fora cognominado o Voador, e ao qual ninguém se atrevia a confiar a vida, embarcando a bordo do seu navio !