V. ARMAS PORTUGUESAS VITORIOSAS - EMBARCA PARA COCHIM

"Às armas! às armas! em socorro da praça! o inimigo está às portas! Às armas! bravos portugueses; às armas! bravos índios! às armas!"

Este grito de alarme retiniu subitamente no meio do silêncio da noite, nas ruas de Malaca, a 9 de Outubro de 1547.

Produziu um geral terror nos habitantes e todos correram às armas; eram duas horas da manhã. O tempo estava quente, um luar sinistro iluminava a cidade inteira; gritos longínquos, alegres e prolongados como os gritos de vitória, e multiplicados por numerosos ecos, misturavam-se com o estrondo das descargas sucessivas de uma formidável artilharia.

Homens, mulheres, crianças, índios, portugueses, toda a população enfim, está de pé em um instante. Cada um procura conhecer o perigo de que é ameaçado; dirigem-se ao porto... Está em fogo!

Todos os navios ancorados são presa das chamas, o incêndio que devora aquele rico meio de defesa, deixa a cidade à mercê dos bárbaros que a atacam tão traiçoeiramente! Contudo ela procura defender-se do interior pelo maior tempo possível, e consegue repelir os assaltantes que investem ferozmente e contam ocupar a fortaleza antes do dia.

Ao nascer do sol, sete pobres pescadores entram na cidade; tinham sido surpreendidos pelo inimigo, que depois de lhes cortar os narizes e as orelhas os enviava, assim mutilados, com uma carta do general em chefe do exército muçulmano a D. Francisco de Melo, governador de Malaca.

Aquela carta, que merece ser transcrita, era concebida nos seguintes termos:

"Bajaja Soora, que tem a honra de levar em vasos de oiro o arroz do grande sultão Alaradim, rei de Achém e das terras que são banhadas pelos dois mares, te ordena que escrevas ao teu rei dizendo-lhe que estou aqui, mau grado seu, lançando o terror na sua fortaleza pelo meu feroz rugido, e que aqui estarei quanto tempo me, parecer. Eu tomo por testemunha não somente a gente que a habita mas todos os elementos até o céu da lua, e lhes declaro pela minha própria boca, que o teu rei é sem valor e sem nome, que os seus estandartes abatidos não poderão jamais levantar-se sem permissão daquele que lhos vence hoje; que, pela vitória que alcançamos, o meu rei tem debaixo dos seus pés a cabeça do teu, que é desde este momento seu vassalo e seu escravo; e a fim de que tu próprio confesses esta verdade, te provoco e desafio ao combate no local em que me acho, se te sentes com coragem de ousar resistir-me".

O governador não se inquietaria absolutamente com aquela carta se pudesse dispor da sua marinha; porém todos os navios portugueses se achavam destruídos pelo inimigo, e não podia aceitar o combate naval; a situação era, portanto, embaraçosa; mandou pedir ao Padre Xavier que viesse auxiliar com o seu parecer o conselho reunido em sua casa.

Francisco Xavier acabava de dizer a missa a Nossa Senhora do Monte; acode imediatamente ao chamamento de D. Francisco de Melo, que lhe dá a ler a carta de Soora, e lhe pede a sua opinião. Xavier, que, segundo a expressão de M. Crétineau-Joly, - "tinha o velho sangue de fidalgo nas veias" - respondeu-lhe:

- Senhor, o sultão é muito mais inimigo do Cristianismo do que de Portugal. Por honra da religião cristã é necessário aceitar-lhe o combate; um insulto semelhante não pode ficar impune! Se vós suportais aquela injúria deste rei muçulmano, a que se não atreverão todos os outros? Não! não! é necessário aceitar o desafio, e provar aos infiéis que o Criador do Céu e da terra é muito mais poderoso que o seu rei Alaradim.

- Mas, meu Padre, como quereis vós que vamos para a mar? Em que navios quereis que embarquemos? Dos oito que existiam no ancoradouro, só nos restam quatro cascos de fustas arruinadas! e poderiam elas prestar-nos algum serviço contra uma esquadra tão numerosa?

- Quando os infiéis tivessem um número de navios muito mais considerável ainda, respondeu Xavier, não seríamos nós os mais fortes, tendo o Céu por nós? E se Deus está por nós, quem contra nós? Poderemos porventura ser vencidos combatendo em nome de Jesus Nosso Senhor?

O grande Xavier pronunciara aquelas palavras coze um acento tão inspirado, que não deixava hesitação por um só momento sobre o partido a tomar, Dirigem-se todos ao arsenal; Francisco Xavier guia e anima a todos em geral e a cada um em particular: descobrem uma barca chamada Catar, em bom estado e destinam-na para o combate. Existiam sete fustas fora do serviço e ele julga que podem ser reparadas; porém Eduardo Barreto, capitão e diretor dos armamentos, declara a empresa impossível:

- Aos armazéns do estado, diz ele, falta neste momento tudo que é necessário para a obra da reparação e equipamento; demais, o cofre de reserva está absolutamente sem dinheiro.

Xavier agarra-se então aos sete capitães dos navios, membros do conselho; abraça-os e suplica-lhes que se encarregue cada um da reparação e do armamento duma fusta, e sem lhes dar tempo para responder, designa a cada um a sua, com tanta viveza nos movimentos, tanta grada na sua exigência e atração nas suas palavras, que todos aceitam com entusiasmo e empregam imediatamente naqueles trabalhos, mais de cem operários, à sua custa, em cada embarcação. Em cinco dias ficaram elas em estado de serem lançadas ao mar. Andréa Toscano, um dos mais distintos marinheiros, tomou o comando da Catar. Cada capitão vai comandar o barco que reparara, e recebe a seu bordo cento e oitenta soldados. D. Francisco Deza toma o comando da frota.

O heróico Xavier pediu para acompanhar a armada naval; os habitantes de Malaca opuseram-se tenazmente, considerando-se abandonados por Deus, se o santo Padre os deixasse num momento de tão grande ansiedade para eles. Dirigiram-se em massa à casa do governador para lhe suplicarem que retivesse o santo Padre; D. Francisco de Melo prometeu-lhes pedir aquele favor ao seu apóstolo deixando-lhe, contudo, a decisão:

"Vamos para ali todos! exclamaram eles imediatamente; vamos procurar o santo Padre! ele terá piedade de nós; não rios poderá recusar!"

Efetivamente, Xavier, não pôde resistir às suas solicitações e às suas lágrimas

- Sim, meus queridos irmãos, lhes respondeu ele, eu ficarei entre vós durante todo o tempo desta guerra; orarei convosco pelo triunfo da nossa valente armada, e espero que Deus, combatendo por ela, no-la restituirá vitoriosa.

Aquelas singelas palavras bastaram para acalmar a grande consternação do povo.

Na véspera do embarque da expedição, Xavier, reuniu na igreja os oficiais e os soldados da armada naval:

- Eu vos acompanharia, lhes disse ele, de alma e coração. Vossas famílias pediram-me com tantas lágrimas que ficasse com elas para as consolar e amparar durante a vossa ausência, que não pude resistir às suas instâncias e à sua dor; mas seguir-vos-ei com os meus votos e as minhas orações. Elevarei as mãos para o Deus dos exércitos, enquanto vós arremeteis o inimigo do nome cristão. Combatei com valor, não para adquirir uma glória vã e transitória, mas uma glória sólida e imortal!

No calor do combate, dirigi a vista para o divino Salvador crucificado cuja causa defendeis e sustentais, e em vista das suas veneráveis chagas, não temais as feridas e a morte! Bem felizes vos deveríeis julgar se vos fosse permitido dar vida por vida...

- Meu Padre, exclamaram a uma voz todos aqueles bravos guerreiros, meu Padre, nós juramos aqui, perante Deus e perante vós, combater os infiéis até à morte! Juramos dar o nosso sangue até à última gota pela causa de Jesus Cristo l

-Este juramento impressiona-me profundamente, replicou Xavier, cujas lágrimas traíam a comoção que o dominava. Jesus Cristo ouviu-o, aceitou-o: vós sois de hoje em diante a falange de Jesus Cristo! e eu vou abençoar-vos em seu nome.

No mesmo instante, todos aqueles bravos guerreiros caem de joelhos, o grande apostolo implora para eles as bênçãos celestes, depois, ouve em confissão a cada um e administra-lhes a sagrada comunhão.

A expedição embarca na manhã seguinte com um entusiasmo que parece pressagiar a vitória. Levantam-se ferros... O navio almirante faz ouvir um ruído medonho!... Abre-se uma veia de água que deixa apenas o tempo necessário para salvar a equipagem, e o navio submerge-se!... O povo cobria a praia; grita vigorosamente contra a partida da frota, pede que se renuncie àquela expedição, revolta-se contra o santo Padre, não obstante toda a veneração, todo o amor que lhe inspira.

A equipagem do navio almirante estivera em tamanha perigo e tão próxima da morte, que aquele povo exasperado pelo receio duma nova desgraça, perdendo a consciência do que diz e do que faz, acusa de imprudente aquele de quem recusava separar-se dois dias antes.

O governador manda chamar o santo Padre, que o enviado encontra no altar quase no fim da missa; ele aproxima-se para lhe falar; o Santo acena-lhe que espere. Depois da missa, Xavier diz ao enviado do governador, sem lhe dar tempo de falar;

- "Ide dizer a vosso amo, da minha parte, que não nos devemos desanimar pela perda dum navio".

Conservou-se ainda por algum tempo em ação de graças aos pés do altar da Santíssima Virgem, e ouviram-lhe exclamar com todo o ardor de sua alma, antes de se retirar

"Meu Jesus, amor do meu coração! olhai-me dum modo favorável! considerai vossas adoráveis chagas! lembrai-vos que elas nos dão o direito de pedir-vos o que desejamos! E vós, Virgem Santa, sêde-me propícia!"

E, erguendo-se, corre à fortaleza, onde a conselho reunido o aguardava:

- Que é isto, pois! vós perdeis a coragem por tão pouco? diz ele ao governador.

- Mas, meu Padre, o povo está exaltado! Fostes vós que promovestes esta triste crise...

- Vamos ao porto, senhor, tudo isto vai arranjar-se, eu vo-lo prometo.

A gente que acabava de escapar da morte estava consternada. Xavier enche-se de toda a sua coragem pata lhes dizer:

- Sêde firmes na vossa resolução, não obstante esta desgraça que Deus não permitiu senão para experimentar a vossa fidelidade. Ele vos salvou do naufrágio, como fim de vos obrigar a cumprir a promessa que lhe fizestes sob juramento!

- Sim! sim, meu Padre! nós sustentaremos e cumpriremos o nosso juramento!

Tal foi o grito de expansão unânime da guarnição do navio almirante, ao qual todas as outras respondem com o mesmo entusiasmo da véspera. Apesar disso, o governador, deixando-se influenciar pela oposição dos habitantes, persiste em declarar a guerra impossível... Eleva-se então um brado formidável das fileiras do exército; os capitães encarregam-se de pedir a palavra em nome das equipagens, e anunciam ao governador que os soldados preferem a morte à inação; que eles juraram solenemente a Jesus Cristo combater os infiéis até à última gota do seu sangue, e não cessam de repetir:

"Nós devemos esperar tudo das orações e das promessas do santo Padre Francisco!"

A esta última palavra, Francisco Xavier, ergue-se com tom inspirado que dominava todos os espíritos, e diz ao governador e ao conselho

- A fusta perdida será bem depressa substituída; antes do pôr do sol nos chegarão melhores navios: eu vos anuncio isto em nome de Deus!

Seguiu-se um momento de silêncio, depois do qual ficou convencionado que se adiasse a resolução para a manhã seguinte.

O dia correu longo para todos!... O sol estava quase a desaparecer, quando vieram anunciar que do campanário da igreja de Nossa Senhora do Monte, se descobriram duas velas na direção do norte. O governador manda-as reconhecer por um bote: eram dois navios portugueses que vinham de Patana, mas que não deviam tocar em Malaca; pertenciam eles a Soares Galega e a seu filho Baltazar, e cada um comandava o seu.

Achava-se então o Padre Xavier em oração na igreja de Nossa Senhora do Monte; foram ter com ele a disseram-lhe:

- Meu Padre, os capitães dos navios não querem ancorar, e a vossa predição não se cumprirá!

Xavier mete-se no bote que havia reconhecido os navios portugueses e dirige-se para bordo deles. Os capitães apenas descobriram o santo Padre, viraram de bordo, aproaram para o bote, recebem-no com veneração e põem-se à sua disposição, eles, seus navios e suas equipagens, para o serviço de Deus e do rei.

Foram recebidos com entusiásticas aclamações do povo, e no seguinte dia de manhã, 25 de Outubro, logo que Xavier enviou ao almirante Deza o estandarte que haura benzido, a esquadrilha levantou ferro e partiu.

Não seguiremos a armada, pois que Francisco Xavier renunciara a acompanhá-la; aguardaremos, pois, com ele em Malaca, a notícia do seu triunfo ou da sua derrota.

Um mês depois da partida da esquadra, não se tinham recebido senão notícias indiretas, umas mais assustadoras do que outras; o nosso Santo animava a todos e prometia o mais feliz resultado. Contudo os dias sucediam-se naquela mortal incerteza para as famílias, e aquele povo, sempre pronto a voltar-se para qualquer lado, começava a queixar-se de Xavier; muitos portugueses foram até fazer em sua presencia insultantes censuras; porém o angélico Padre respondia àqueles insultos com as mais suaves e humildes palavras, acrescentando.

- Eu vos repito, porque tenho a certeza, que a esquadra voltará triunfante.

Decorreram ainda alguns dias e mesmo algumas semanas na desconsoladora incerteza da sorte da expedição! Num dia dos fins de Dezembro, um domingo, pregava o Santo apóstolo na catedral, entre as nove e as dez foras da manhã. Pára de repente... os músculos do seu belo rosto contraídos pela dor e pelo sofrimento; os olhos abertos; o olhar elevado e fixo: tinha uma expressão seráfica. Depois de alguns instantes volta-se para o auditório; mas fala-lhe em termos enigmáticos e tudo quanto se pode compreender é que ele vê duas armadas, em combate e cujos movimentos e manobras segue com uma agitação que se manifesta em toda a sua pessoa. Finalmente, dirigindo o seu celeste olhar para o crucifixo que tinha diante de si, exclama em voz suplicante:

"Ó Jesus, Deus da minha alma! Pai da misericórdia! eu vos rogo humildemente pelos merecimentos da vossa santa Paixão, para que não abandoneis os vossos soldados!"

Depois abaixa a cabeça, apóia-se sobre o púlpito, conserva-se assim, como abismado pela dor, durante alguns momentos, e levantando-se em seguida todo radiante, exclama:

"Meus irmãos! Jesus Cristo venceu por nós! Neste mesmo momento, os soldados do seu Santo Nome acabam de pôr em derrota a armada inimiga. Fizeram uma carnificina horrorosa! nós não perdemos senão quatro dos nossos bravos soldados; na sexta-feira próxima recebereis notícias, e pouco depois tornaremos a ver a nossa esquadra".

O governador e as principais pessoas da cidade não duvidaram da visão do santo Padre; mas não aconteceu o mesmo com as mulheres e mães dos marinheiros e dos soldados. E o suave e caridoso Xavier, que tinha empenho de beneficiar tanto os corações como as almas, reuniu todas aquelas pobres desconsoladas ao meio- dia, e repetiu-lhes tudo quanto tinha dito de manhã, consolou-as, fortificou-as por tal modo, que elas o deixaram convencidas.

Na sexta-feira imediata o navio comandado por D. Manuel Godinho, trouxe a notícia duma brilhante vitória; a esquadra seguiu-o de perto.

O nosso Santo conduziu o povo para o porto a fim de receber a expedição, e tendo o seu crucifixo levantado, fez entoar durante- o desembarque, cânticos de ações de graças, aos quais todos os vencedores misturavam suas vozes coxas alegria.

A presença do santo Padre fazia crescer a exaltação geral, porque, se eles atribuíam a iniciativa da guerra ao poder da sua influência, atribuíam igualmente o resultado ao poder da sua oração, e não se poupavam de lho patentear com o testemunho do mais vivo reconhecimento.

Tantos elogios, tantos aplausos, apressaram a partida de Francisco Xavier, que, além disso, já se demorara quatro meses em Maluca. Fez embarcar a bordo do navio de Jorge Alvares três japoneses, dos quais falaremos mais tarde; os trinta jovens que trouxera das Molucas partiram no navio de Gonçalo Fernandes; uns e outros foram com o maior interesse recomendados ao reitor do colégio de Goa, que os esperava.

Xavier, tendo de demorar-se na Costa da Pescaria, com o fim de visitar as suas cristandades, embarcou em um outro navio que se fazia à vela para Cochim.