II. CASTIGO DO GOVERNADOR - TRASLADAÇÃO DO CORPO - CHEGA FINALMENTE A GOA

Num dos primeiros dias do mês de Fevereiro de 1554, antes do nascer do sol, um navio de guerra lançava âncora no porto de Malaca. Era numerosa a sua equipagem, formidável o seu armamento. O desembarque efectuou-se sem delonga e no maior silêncio; havia mistério e solenidade naquele aparato.

As portas da cidade abrem-se... O capitão, os oficiais e um destacamento de tropa apresentam-se, parlamentara por alguns instantes, entram na cidade e vão diretamente ao palácio do governador.

Os soldados cercam o palácio e tomam todas as saídas; os oficiais, entre os quais se distingue um personagem cuja autoridade superior se adivinha pelo respeito que se lhe testemunha, penetram no interior.

Bem depressa se manifesta grande agitação nas ruas de Malaca, á nova do misterioso desembarque e da entrada silenciosa de um grande personagem cercado de oficiais e de homens de guerra. É geral a ansiedade para que o acontecimento seja conhecido; uns vão, outros vêm e todos procuram informações...

Finalmente sabe-se que a hora da justiça de Deus soara para o grande culpado; que D. Antônio de Noronha acabava de chegar para o substituir na qualidade de governador da cidade e de Intendente Marítimo, e que trazia a missão de o prender e de o enviar a Goa com boa e segura guarda.

Poucos dias depois, D. Alvaro de Ataíde, declarado criminoso de estado, atravessava as ruas de Malaca, escoltado por soldados e oficiais encarregados de guardar a sua pessoa, e é obrigado a embarcar para Goa, donde o vice-rei o mandou para Portugal para ali ser julgado pelo tribunal real.

Reconhecido criminoso de alta traição para coro a Igreja e para com o Estado, foi condenado a prisco perpétua, sendo confiscados todos os seus bens.

Passados alguns anos, o seu corpo cobriu-se de úlceras, viu-o desfazer-se aos bocados e reconheceu que a justiça de Deus o fulminava; acredita-se que este grande pecador apelou para a sua misericórdia e que morreu arrependido.

Diogo Pereira, cumulado de honras pela corte, foi generosamente indemnizado pelo rei das perdas que lhe havia feito sofrer a invejosa cobiça do seu inimigo; ficou assim, pois, cumprida a dupla predição do nosso Santo.

Ia largar para Goa o capitão Lopes de Noronha; o Padre Alcágova e o Irmão Távora, fizeram embarcar no seu navio o mais precioso tesouro das Índias, e embarcaram-se também com ele a bordo do navio Santa-Ana.

Este velho navio oferecia tão pouca segurança, que ninguém se atrevia a tomar passagem nele; porém logo que se espalhou a notícia de que ele levava o corpo do santo Padre, os passageiros apresentavam-se á, porfia; disputava-se a felicidade de fazer aquela viagem tão junto de quem era já honrado publicamente desde que se deixou de temer a cólera do sacrílego governador.

Porém, uma tempestade das mais violentas vera bem depressa experimentar a fé dos confiantes passageiros. O navio é lanceado sobre um banco de areia e a quilha enterra-se tão profundamente, que todos os esforços de manobra são infrutíferos para o desembaraçar.

- Santo Padre, gritam todos, desembaraçai-nos! vós estais aqui, o navio não pode perder-se!

No mesmo instante, um golpe de vento eleva a quilha, o navio sobe, e volta a flutuar por si mesmo... Estava salvo!

No estreito de Ceilão, um novo perigo mais aterrador se apresenta ainda. A embarcação choca contra um rochedo, o leme foi arrebatado, o navio fica encalhado, e não se compreende como ele se não reduziu a pedaços pela violência do choquei Corta-se a mastreação, procura-se aligeirar o peso, vão-se lançar as mercadorias ao mar.

- Não! não! o santo Padre há-de-nos salvar! dizem os passageiros cheios de confiança no precioso tesouro que possuem.

O capitão faz conduzir para a ponte a uma do apóstolo das Índias; todos caem de joelhos à roda daquele protetor tão querido; falam-lhe como quando ele se achava cheio de vida e que com uma palavra ou sinal aplacava as tempestades. Um ruído terrível se deixou imediatamente ouvir, o Santa-Ana deslisa-se ligeiramente entre dois rochedos e sai ao largo. O rochedo acabava de se abrir para o desencalhar!

Chegam, finalmente, ao ancoradouro de Cochim. Todos os habitantes da cidade correm a prestar homenagem de veneração e de saudades àquele a quem eles queriam como a um pai, e de quem se consideravam os primeiros filhos. Tocam o porto de Baticala; ali o mesmo entusiasmo, os mesmos sentimentos de dor e saudades, o mesmo amor.

A esposa de Antônio Rodrigues, oficial do rei, doente desde muito tempo, assegura que ficará curada se a levarem para o navio, para junto da uma venerada. Cedem às suas instâncias, e ela recupera a saúde.

A vinte léguas de Goa o vento torna-se contrário e o navio não pode prosseguir. O capitão Lopes de Noronha embarca na chalupa, chega à cidade à força de remos, vai' anunciar ao Colégio a chegada dos restos mortais do Santo Provincial, e narra os perigos por que passaram durante a viagem e dos quais o Santo apóstolo os salvou duma maneira tão milagrosa. Deixemos agora falar o Padre Blandoni então em Goa. Ele escrevia à Companhia de Jesus, em data de 24 de Dezembro do mesmo ano de 1554:

"Melchior Nunes [87] correu a casa do vice-rei a pedir-lhe um bote de dois remos para ir em demanda do navio retido por ventos contrários, e receber a bordo o precioso depósito que conduzia. O vice-rei mandou imediatamente aprestar uma fusta. O capitão Lopes viu fazerem-se aquelas disposições com vivo pesar. Ele rogava e pedia, como uma graça especial, que não tiras sem do seu navio aquele poderoso sustentáculo que o tinha milagrosamente salvado dos maiores perigos; mas Belchior e todos os nossos Irmãos ardiam num vivo desejo de Padre, o mais cedo possível, os restos venerandos do seu Padre, e não cederam aos rogos do capitão. Embarcaram sem demora com três dos nossos Irmãos, quatro jovens discípulos da casa, e Mendes Pinto, negociante português que vivera em intimidade com Xavier durante a sua estada no Japão.

O vice-rei pediu a Melchior, quando partia, que não entrasse na cidade sem o prevenir da sua chegada.

Depois de terem navegado durante quatro dias e quatro noites encontraram finalmente os nossos Padres o navio de Lopes de Noronha próximo de Baticala; subiram imediatamente para bordo e fizeram transportar para a sua embarcação a uma de Xavier com todos os ornamentos. Durante aquele tempo, as crianças, coroadas de flores e levando ramos de oliveira, cantavam o Gloria in excelsis, seguido do cântico Benedictus. Os marinheiros empavesavam o navio, disparavam a artilharia e faziam ouvir as suas aclamações.

A sobrepeliz que revestia o santo corpo, conquanto tivesse estado enterrado perto de três meses em cal viva [88] conservava uma alvura admirável; estava tão perfeitamente conservada que Melchior teve desde aquele momento a idéia de a reservar para dela se revestir quando fosse apresentar-se ao imperador do Japão.

O rosto de Xavier estava coberto; as mãos estavam cruzadas sobre o peito; a cor da fita que as trazia ligadas estava tão viva como se naquele momento saísse das mãos do obreiro; seus pés estavam calçados com sandálias.

Melchior veio desembarcar com o seu precioso depósito em Ribandar, distante da cidade meia légua aproximadamente, e o depôs numa ermida consagrada à Santíssima Virgem [89], passando ali a noite com os seus companheiros.

Apesar de se estar na Quaresma os nossos Irmãos fizeram decorar os altares e ornar a igreja. Muitas pessoas queriam que se pusessem em movimento todos os sinos da cidade, mas os nossos Padres opuseram-se a isso e julgaram mais conveniente que se tocasse duas vezes somente como para um serviço fúnebre.

Na manhã seguinte [90], o vice-rei, o cabido, a confraria da misericórdia, a nobreza, os altos funcionários, os magistrados, nós todos, finalmente, e uma imensa multidão de povo, saímos processionalmente ao encontro do corpo, que fomos esperar ao cais.

As ruas estavam empavezadas em todo o percurso, e tão cheias de espectadores de todas as classes, que mal se podia abrir uma passagem para o cortejo; todas as janelas e telhados estavam atulhados de gente que fazia cair uma chuva de flores sobre o corpo do Santo, à medida que ele passava.

Noventa meninos de sobrepeliz, e levando cada um uma tocha, abriam o cortejo; queimavam-se perfumes em todas as ruas do trânsito; dois incensadores de cada lado da uma envolviam-na numa ligeira nuvem de fumo. Chegados à nossa igreja, o corpo conservou-se coberto; a afluência do povo era tão grande que não se podia expor sem inconveniente. O vice-rei, não obstante o seu ardente desejo de o contemplar, não pôde satisfazer a sua devoção por este motivo.

Tendo, finalmente, a multidão perdido a esperança de o ver, ia-se retirando a pouco e pouco, não ficando senão um pequeno número de pessoas que suplicavam com lágrimas que lhes dessem a consolação de verem o seu bom Padre, e protestavam que não se retirariam sem ter tido aquela felicidade.

Melchior Nunes não pôde resistir às suas instâncias. Fez colocar uma barreira à entrada da capela-mor, e cada um pôde ver o corpo sem dele se aproximar. Todos estavam comovidos de surpresa e admiração, reconhecendo as suas feições: "E contudo, diziam eles, já lá vão seis meses que ele morreu! É isto crível?"

Apenas eles saíram da igreja, toda a cidade foi sabedora do prodígio de que haviam sido testemunhas, e uma grande multidão se dirigiu para a nossa casa com uma brevidade e um interesse inexprimíveis; era uma massa prodigiosa de assaltantes à qual foi impossível resistir. Durante quatro dias e quatro - noites a igreja esteve constantemente cheia. Aqueles que o tinham já visto queriam tornar a vê-lo ainda, e depois ainda outra vez!

Melchior Nunes, julgando finalmente ter feito muito para a satisfação do público, fez colocar a caixa junto do altar-mor e mandou pôr uma barreira em frente para a defender contra a invasão dos fiéis.

Quanto a nós, se experimentamos uma grande alegria por possuirmos o corpo de Francisco Xavier, experimentamos outra, maior ainda, só pela idéia de que ele nos protege e intercede por nós no Céu [91]".

Os quatro dias concedidos pelo Padre provincial, às solicitações dos habitantes de Goa fizeram a glória do apóstolo do Oriente, mesmo além do que se esperava. Desde logo os doentes que se haviam feito conduzir para as ruas do trânsito no dia da sua entrada triunfal naquela cidade, que lhe fora tão querida, tinham todos recobrado milagrosamente a saúde.

Uma pobre mãe, cuja filha estava nas agonias da morte, abre a janela no momento em que o cortejo passava por diante de sua casa, chama. em altos gritos o santo Padre suplicando-lhe que não passe sem curar sua filha, que vai morrer, e o santo Padre atende-a e restitui-lhe a filha, que se levanta cheia de saúde.

Colocaram o corpo em ponto elevado e em posição tal que o povo o pudesse contemplar de todos os lados da igreja, o que impedia a desordem e satisfazia completamente a multidão. Concorriam de todos os pontos da cidade e das circunvizinhanças os doentes e achacados, e todos voltavam curados! Os paralíticos andavam, os cegos viam, e isto parecia mostrar que o santo Padre nada podia recusar aos seus filhos de Goa! A exaltação do amor e do reconhecimento, subiu a tal ponto entre os fiéis que haviam merecido aquela abundância de graças e bênçãos, que até os leprosos puderam vir misturar-se na multidão e pedir ao seu arnado Padre que se recordasse dos ternos cuidados e das carícias paternais que ele lhes prodigalizava durante a sua vida! Ninguém se lembrou de os afastar, nem de se afastar deles. Pelo contrário, todos lhe davam ânimo, dizendo:

"Ide, o santo Padre vos curará! ele curou tanta gente!"

E os leprosos viam desaparecer a sua lepra!

O Capitulo cantou a missa da Cruz, na Sexta-feira, na igreja do colégio; os religiosos franciscanos aí cantaram a da Santíssima Virgem, no sábado; ninguém pensou em celebrar um ofício fúnebre pelo apóstolo que havia propagado por todos os países do Oriente a fama dos seus milagres, e que operava tão brilhantes prodígios depois da sua morte.

A nau Santa-Ana abriu-se por si mesma, logo que terminou o desembarque dos passageiros e das mercadorias, e submergiu-se nas águas de Goa, sem que ficasse o menor fragmento!...

No mesmo ano de 1554, chegava a Goa, uma carta dirigida ao Padre-mestre Francisco; esta carta era de Santo Inácio, e chamava o nosso Santo para a Europa. O Padre Polanco, então secretário do célebre fundador da Companhia de Jesus, assegura que Santo Inácio chamava S. Francisco Xavier com a intenção de abdicar nele o titulo e as funções de geral da Companhia...

Esta carta chegava já muito tarde.

O ilustre gigante-havia terminado o seu curso, tinha chegado ao fim. Em dez anos somente, tinha ele transposto espaços tão consideráveis que, segundo os cálculos feitos, se reconheceu que as imensas distâncias percorridas pelo grande apóstolo, bastavam, reunidas umas às outras, para fazer muitas vezes o giro ao globo![92].

Em dez anos somente, levou ele a fé a povos cuja extensão era de mais de três mil léguas, e plantara a cruz tão sòlidamente naqueles países, que milhões de cristãos arriscaram a vida pela sua defesa.

As Índias e o Japão contam magníficas legiões de mártires, e o nome de S. Francisco Xavier jamais será ali esquecido.