VII. NOITE MISTERIOSA - JAFANAPATÃO - PRIMEIRO MÁRTIR

Era meia-noite; todos dormiam em Jafanapatão depois de um dia de vivas agitações e de cruéis angústias; reinava a tranquilidade por toda a parte; a lua inundava o espaço com a sua suave luz, as estrelas cintilavam no céu; era, finalmente uma das mais belas noites das regiões tropicais.

No vale, do lado ocidental da cidade, a meia encosta, na extremidade duma floresta de caneleiros, ouviu-se um ligeiro rumor, e um homem, que pelo traje e pela cor fácil era reconhecer-se por um europeu, saiu da floresta, olhou à direita e à esquerda, escutou como se temesse alguma surpresa, e seguro, sem dúvida, pela sua observação, desceu a vereda que separava a floresta duma vasta plantação de canas de açúcar, cujas altas -varas o encobriam completamente.

Chegado à base da colina, e entrando num terreno quase descoberto, dirigiu-se a uma árvore que parecia conhecer, e pôs-se a cavar a terra com toda a atividade, suspendendo o trabalho de espaço a espaço para enxugar a fronte, observar de novo e prestar ouvidos por alguns momentos.

Aquele trabalho foi longo porque o estrangeiro não estava, por certo, habituado àquela espécie de fadiga. Quando conseguiu cavar na extensão e profundidade das dimensões que pretendia, afastou-se alguns passos do sítio; ajoelhou e inclinando-se para o solo ergueu-se logo, levando nos braços o cadáver dum índio. Ainda havia sangue no cadáver!...

O estrangeiro beijou aquele sangue, levou o índio morto para a cova que acabava de abrir, tornou a deitar a terra que extraíra, orou alguns momentos, e tomando de novo pela vereda por onde viera, desapareceu na floresta.

Algumas horas depois, cada um voltava à sua vida habitual, e os primeiros índios que passaram próximo do terreno onde o estrangeiro enterrara o cadáver fizeram ouvir gritos de surpresa que atraíram de muito longe todos os insulares disseminados pelos campos. Estes por sua vez também soltam altos gritos; a grande nova espalha-se pela cidade, o rei é sabedor, tudo corre ao vale ocidental, e os gritos crescem com uma espécie de frenesi satânico.

Sobre a terra removida de fresco, via-se distintamente estampado o sinal duma cruz; esta marca era tão perfeita que não parecia ser obra de homem; daí os gritos de raiva do povo pagão excitado pelos brâmanes que viam naquela aparição um infalível caminho para a conversão dos idólatras.

O rei de Jafanapatão ordenou que se lançasse sobre a marca milagrosa uma considerável quantidade de pedras misturadas com terra; porém pouco depois a cruz formou-se de novo sobre aquele montão, tão perfeita como de antes.

"Ordeno, disse a majestade indiana, que se remova tudo quanto ali está, que se calque aos pés, que se destrua! Eu proíbo que a cruz torne a aparecer!"

Foi obedecido com prontidão; a cruz não tornou a aparecer, a multidão retira-se, e os brâmanes fazem ouvir gritos e exclamações de vitória: triunfam finalmente, do Deus dos cristãos!

Na manhã seguinte novo alarme: a cruz reaparece tão bela, tão perfeita como na véspera! O rei é logo avisado, corre para ali e ordena que se revolva tudo de novo em sua presença; quer a todo o preço obrigar o Deus dos cristãos a bater em retirada diante de si. Põe mãos à obra...

Mas, oh! prodígio! aquela cruz, que trabalhavam por fazer desaparecer, renasce luminosa! eleva-se e cresce à medida que se distancia da terra! Chegando a uma grande altura e tomando gigantescas proporções, conserva-se suspensa por muitas horas, e os pagãos maravilhados, exclamam em altos gritos que o Deus dos cristãos é todo-poderoso, que os seus ídolos nunca operaram coisa semelhante, e que a religião do grande Padre de Travancor é a melhor, pois que é a mais forte na luta.

Aquelas palavras são denunciadas ao rei pelos brâmanes; o rei, cuja cólera não conhecia limites, fez publicar um édito pelo qual ameaçava com a morte todo e qualquer vassalo de Jafanapatão que mostrasse respeitar, por qualquer modo que fosse, a religião do grande Padre Xavier, e preferisse o seu Deus aos ídolos reconhecidos como únicas divindades do rei e de todo o país sujeito ao seu domínio.

A sepultura sobre a qual apareceu a cruz maravilhosa está ali para atestar que com um rei como aquele, que então reinava, a execução segue de perto a ameaça, e que ninguém deve contar com a sua clemência.

Aquela sepultura encerrava o corpo do seu próprio filho, o primogênito da sua família; fora votado à morte por ordem do rei seu pai! Ele fora degolado... só por que havia reconhecido a divindade da religião cristã, e por que recusara voltar ao culto dos ídolos; preferira morrer... e morrera com a coragem dos primeiros mártires!

Seu pai ordenara que o corpo fosse lançado ao campo para que servisse de pasto aos animais ferozes; mas as feras respeitaram-no, e Fernando da Cunha, negociante português que instruíra o jovem príncipe nas verdades da fé, viera nas trevas da noite, dar misteriosamente ao mártir a sepultura que lhe havia sido recusada por seu pai...

Eis aqui o que havia excitado a cólera do rei de jafanapatão. Os habitantes da ilha de Manaar, vassalos daquele príncipe, ouvindo falar dos prodígios operados por Francisco Xavier em toda a Costa da Pescaria, e das inumeráveis conversões que eram a sua conseqüência, enviaram-lhe emissários para pedir que os viesse instruir e baptizar.

Xavier, que não podia naquela ocasião abandonar os seus neófitos, mandara para ali um dos seus Padres, que em tempo obtivera a mais rica colheita.

Os brâmanes perdiam, assim, os meios de viver comodamente à custa da credulidade dos índios; desnorteados por se verem privados das suas oferendas, e não tendo também o direito de as exigir em nome dos seus ídolos, queixaram-se ao rei dos progressos do Cristianismo nos seus estados, e pediram justiça para um povo que ousava menosprezar a religião professada pelo seu soberano, destruir por toda a parte os pagodes, quebrar os ídolos e desacatar todos os deuses.

O rei, já inimigo da religião que reprovava os vícios a que ele se entregava, deu imediatamente ordem de massacre a todos os cristãos de Manaar, sem distinção de classes e de sexo, e aquela ordem bárbara foi fielmente executada; soubera ao depois que seu filho se dispunha secretamente a receber o batismo, e seu filho havia sido sentenciado à morte, como vimos!

A irmã daquele tirano era igualmente cristã de coração e de vontade; ela instruíra e educara naqueles preceitos o filho mais novo do rei e o seu próprio, e ambos anelavam o batismo; porém vendo a crueldade de seu irmão levada àquele excesso de raiva, a princesa temeu pelas vidas de seu filho e sobrinho, e resolveu afastá-los conquanto lhe fosse muito dolorosa aquela separação.

Confiou-os, pois, a Fernando da Cunha que os tirou secretamente de Jafanapatão e os levou a Manaar, onde deviam encontrar o pai de todos os cristãos das Índias, o nosso Santo, Francisco Xavier, cujo coração se achava dilacerado por aquela monstruosa perseguição. Ele recebeu-os com ternura inteiramente paternal; consolou-os e animou-os com a sua agradável e enérgica palavra, fazendo-os partir em seguida para Goa, onde encontraram, no colégio da Santa-Fé, uma nova família e os ternos cuidados da caridade cristã.

Sabedor o rei de Jafanapatão da fuga de seu filho e de seu sobrinho, expediu ordens para que os perseguissem e os conduzissem à sua presença a fim de os mandar matar.

Fez mais ainda: seu irmão mais velho, a quem ele usurpara o trono e o poder, havia-se retirado para o continente; despachou emissários com ordem de o descobrir, de o anatar e de lhe apresentarem a sua cabeça.

O fugitivo, a esta nova, apressou-se a tomar o caminho de Goa; ali, vendo-se em segurança, sob a proteção dos portugueses, instruiu-se na religião que seu irmão perseguia cozas tanto encarniçamento, e arrebatado de prazer pela sua sã doutrina, pediu o batismo; logo que o recebeu prometeu solenemente fazer pregar o Cristianismo nos seus estados, se algum dia recobrasse seus direitos ao trono de Jafanapatão.

O nosso Santo experimentava então uma grande e bem intensa dor, por ver assim perseguidos e ameaçados todos aqueles que desejassem renunciar os ídolos e reconhecer Jesus Cristo; derramava perante Deus lágrimas abundantes, mas gozava ao mesmo tempo de grandes consolações e escrevia aos seus irmãos de Roma:

"Agradeçamos a Jesus Cristo Nosso Senhor que se digna consolar-nos com o espetáculo do martírio, e que na sua infinita misericórdia e pela sua providência faz reverter em sua glória a perversidade dos homens, servindo-se da crueldade dos réprobos para preencher os tronos reservados aos escolhidos".

O infatigável apóstolo não se deixou ficar inactivo à vista daquela desolação.

Achava-se o vice-rei então em Cambaia, porém o coração de Xavier não cedia senão ante a vontade divina e nunca perante as dificuldades materiais, nem pela má vontade dos homens.

Chamou o Padre Mandas, confiou-lhe o cuidado das povoações da Costa da Pescaria e partiu.

Chegou a Cochim a 20 de janeiro de 1545; ali se deteve para tratar dos interesses daquela cristandade com D. Miguel Vaz, vigário geral de Goa, que ali trabalhava, incansavelmente pela salvação das almas, sob a sua direção, e viu coxas pesar que os obstáculos que se opunham aos progressos do Cristianismo eram bastante difíceis de vencer.

A cobiça dos portugueses, os desregramentos dos se costumes, a sua severidade e dureza para os indígenas, era espinhos que em extremo mortificavam o coração do nosso Santo.

Os funcionários do governo, longe de secundarem os desejos de D. João III, prestando à religião o apoio das suas autoridades, deixavam-se seduzir pelo oiro dos brâmanes e toleravam o culta dos ídolos na cidade de Goa.

Os cargos públicos eram vendidos aos muçulmanos, ao passo que os cristãos eram deles excluídos. Concedia-se ao rei de Cochim, tributário do de Portugal, a liberdade de confiscar os bens de todos os seus vassalos que abraçassem o Cristianismo.

D. Miguel deplorava amargamente um semelhante estado de coisas que punha entraves a todos os esforços do seu zelo; desejava que Francisco Xavier fosse levar as suas queixas aos pés do trono; porém o grande apóstolo não podia ausentar-se sem perigo para as suas cristandades, e ficou combinado que D. Miguel Vaz embarcaria no primeiro navio a fazer-se à vela, e iria apresentar ao rei, em nome de Xavier, as queixas da religião.

Francisco Xavier escreveu a D. João III com tanta energia, dignidade e santa liberdade, que não podemos resistir ao desejo de reproduzir integralmente a sua admirável carta, na convicção de que ela agradará, não obstante ser algum tanto longa.