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Miguel Navarro, por um momento horrorizado de si próprio, e cedendo
à voz da consciência, pedira a Santo Inácio, o favor de o admitir
no número dos seus discípulos. Inácio, sempre pronto a acolher em
seus braços o arrependido, aceitou aquele que pouco antes era o seu
mais cruel inimigo, e tratou-o com bondade verdadeiramente paternal;
porém Miguel, bem depressa desgostoso de uma vida tão santa,
retirara-se e readquirira todos os sentimentos de vil inveja que nele
havia excitado a conversão de Francisco Xavier.
Depois de ter buscado em vão um novo meio de se desfazer de Inácio,
por ter a sua consciência cheia de remorsos "ou por qualquer outro
motivo desconhecido", diz o Padre Bártoli, voltou de novo ao
combate; reunindo-se a Santo Inácio em Veneza pediu-lhe a sua
readmissão na Companhia.
Desta vez a experiência motivou a recusa, e então, ofendido no seu
orgulho, jurou que a sua vingança seria terrível e tão medonha como
a afronta que acabava de receber. Inácio ia partir para Roma; era
necessário precedê-lo ali.
Miguel chega à cidade santa, encontra ali um dos seus Muitos
amigos, Ramon Barrero; este regozija-se dos vergonhosos sentimentos
que Miguel lhe confia e não hesita em propor-lhe um pacto infame.
Combinam-se com Pedro Castilho e Francisco Mudarra, juntos se
dirigem a Frei Agostinho, monge da Ordem dos Eremitas de Santo
Agostinho, pregador célebre e luterano oculto, que procurava iludir
a fé dos seus ouvintes, entusiasmando-os com a sua eloqüência, e
reunidos tratam de perder Inácio de Loiola por todos os meios que o
inferno pudesse sugerir.
Miguel declara que é rico e que empregará o seu dinheiro até ao
último real, se necessário for, para se vingar daquele que lhe
arrebatou Francisco Xavier; o monge aceita tudo; traça-se um plano
de campanha, e aguarda-se a chegada dos que juraram perder.
Assim que Inácio e seus discípulos se acharam reunidos em Roma,
pelas proximidades da festa da Páscoa do ano 1538, distribuíram
desde logo entre si os diversos bairros da cidade para neles trabalharem
pela salvação das almas e defesa da verdade, contra os erros e
prejuízos que os partidários de Lutero buscavam introduzir e
propagar.
Bem depressa descobriram que Frei Agostinho semeava a heresia nas
suas prédicas e não deixava de atrair um grande número de pessoas
impressionadas e sempre ávidas de ouvirem a sua brilhante e persuasiva
palavra. Contudo procuraram certificar-se disto pessoalmente, e
depois de o terem ouvido pregar por muitas vezes, julgaram dever
adverti-lo dos perigos a que expunha a fé dos seus ouvintes.
Esta advertência, embora feita comas maiores atenções e a mais
sincera urbanidade, irritou o orgulho do religioso luterano que se
achava comprometido naquela empresa, e que pondo de parte todas as
considerações, e julgando também que era chegado o momento de dar um
golpe decisivo, atreveu-se, o fogoso pregador, a apresentar à
vindicta pública em um dos seus sermões, os novos apóstolos que
defendiam tão valorosamente a doutrina da Igreja; acusava-os de
heresia, esperando assim paralisar o zelo que os animava e afastar de
si as suspeitas que nasciam.
Ao mesmo tempo Miguel Navarro, que pagara largamente para aquele
fim, era autor de uma denúncia em forma, contra Inácio de Loiola,
ao governador de Roma, Benedito Conversini; assegurava sob
juramento, e prometia provar, que D. Inácio de Loiola havia sido
duas vezes condenado na Espanha, a primeira em Alcalá, a segunda em
Salamanca, e uma terceira vez, em Paris, pelo crime de sortilégio
e de magia.
Todo este negócio fez grande ruído e produziu geral sensação, sem
contudo desanimar as vítimas daquele odioso trama.
Inácio e os seus presados discípulos viam-se isolados, abandonados
de todos e apontados a dedo nas ruas de Roma como heréticos que não
tardariam a ser condenados peto tribunal da Inquisição, não ousando
ninguém aproximar-se deles com o temor de os fazerem duvidar da
ortodoxia da sua fé.
Mas esta grande prova de sofrimento devia ter um fim; Deus ali
estava!...
Os caluniadores foram convencidos de impostura e acabaram por se
confessarem culpados.
O pregador herético, revestido de um hábito religioso e que servia
para encobrir os seus sentimentos de proselitismo, teve de fugir e foi
completamente desmascarado em Génova; Pedro Castilho foi condenado
a prisão perpétua; Francisco Mudarra e Ramon Barrem foram
queimados em efígie, e teriam também sofrido uma longa prisão se
Santo Inácio não tivesse intercedido por eles; Miguel Navarro foi
condenado a degredo por toda a vida[22].
Ainda desta vez o demônio fugira rugindo; o inferno fora vencido.
Naquela época a fome assolava a cidade de Roma, e os discípulos de
Santo Inácio dedicavam-se com admirável caridade a socorrer as
vítimas deste horrível flagelo.
Xavier, cuja saúde recuperara finalmente algum vigor, exercia o
santo ministério na igreja de S. Lourenço in Damaso, e na de S.
Luís dos Franceses, e o mais consolados resultado correspondia aos
seus trabalhos.
Todo o tempo que lhe sobrasse depois das pregações, confissões e
instrução das crianças, dedicava aos pobres, que, extenuados pela
fome, arrastavam-se e morriam pelas ruas. Procurava para eles algum
asilo, pedia aos ricos um bocado de pão para minorar a fome e
prolongar-lhes a vida; conduzia à última morada, em seus braços,
os cadáveres, e os moribundos para os asilos de caridade que para eles
obtivesse, proporcionando-lhes, finalmente, todos os socorros que os
pudesse chamar à vida. Tratava deles, consolava-os, punha-os em
santas disposições, e se lhe não era dado salvar sempre a vida do
corpo, salvava-lhes ao menos a das almas.
No meio destes penosos trabalhos desejava o nosso Santo outros ainda
mais cruéis. Tudo isto nada era para o zelo que o animava. Falava
muitas vezes do bem que se poderia fazer nos grandes países
conquistados pelos portugueses nas Índias orientais, e da felicidade
que gozariam aqueles que obtivessem a graça de serem para ali
mandados, expostos a todos os sofrimentos, a todos os perigos e a
todas as privações inseparáveis de um tal apostolado.
Era tal a sua preocupação que quase diariamente, nos poucos momentos
que concedia ao sono, sonhava que tinha em seus braços ou às costas
um negro sofrendo penas horríveis. Então ouvia-se-lhe gritar, no
excesso do seu amor a Deus e do seu zelo pela sua glória:
"Ainda mais, Senhor! ainda mais!"
Disseram-lhe, um dia, que D. João III, rei de Portugal,
solicitara do soberano Pontífice a graça de lhe conceder seis Padres
formados na escola de Inácio.
D. Diogo de Gouveia, reitor do colégio de Santa Bárbara na
época em que Francisco, Fabro e Inácio ali estiveram, voltara
depois a Portugal. Enviado a Roma, pelo seu governo, a fim de ali
tratar dum negócio de interesse da coroa, veio encontrar naquela
cidade os seus antigos discípulos de Santa Bárbara, e presenciou os
trabalhos dedicados que prestavam durante a fome aqueles cujas
brilhantes faculdades e prodigioso talento ninguém melhor do que ele
conhecia, e que mostravam não saber praticar senão atos de
humilhação e caridade. Comunicou a sua admiração ao rei seu
soberano, cujo zelo pela glória de Deus ele conhecia, pedindo-lhe
que solicitasse alguns destes santos Padres para evangelizar as Índias
orientais.
O rei de Portugal, aceitando gostoso esta proposta, acabava de
escrever ao seu embaixador D. Pedro de Mascarenhas encarregando-o
de dirigir aquele pedido ao Papa em seu nome. O Papa deixou o
negócio à decisão de Inácio, que resolveu não dever conceder mais
que dois dos seus discípulos para aquele apostolado, porque ele não
tinha até ali mais que dez.
Xavier sentiu o seu coração palpitar com maior força quando soube
desta decisão; e, contudo, poderia pensar em si para um tal
destino? Não, porque se julgava mil vezes indigno daquele favor!
Não sabia, é verdade, qual dos seus irmãos merecesse mais para
poder ser escolhido; achava-os todos tão perfeitos, que não via
senão em si a exceção e humilhava-se profundamente perante Deus por
aquela incapacidade.
Enquanto se tratava este negócio, Inácio ocupava-se em constituir
a sua Companhia em Ordem religiosa, e em submetê-la à aprovação
do soberano Pontífice. Comunicara todo o seu projecto aos seus
discípulos e lhes rogara que reflectissem maduramente, perante Deus,
sobre a escolha daquele a quem deveriam dar o título de Geral, logo
que o Papa tivesse aprovado os estatutos da Sociedade e a tivesse
autorizado.
Chamado naquela ocasião pelo rei, o embaixador de Portugal, e
encarregado de acompanhar os dois Padres que lhe tinham sido
prometidos, empregou este as maiores diligências e instâncias em os
obter desde logo, e para que a sua partida fosse o mais breve possível
Inácio designou então Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilha; não
se lembrou de Xavier, e o nosso Santo achou muito natural que o seu
querido mestre não o tivesse escolhido para uma tal missão.
Simão Rodrigues achava-se então em Sena e Nicolau Bobadilha no
reino de Nápoles, e ambos voltaram à ordem de Inácio.
Rodrigues, ferido de febres intermitentes, mal podia ter-se de pé,
mas mesmo assim ia obedecer: embarcou imediatamente em
Civita-Vecchia no primeiro navio que se fazia de vela para Lisboa.
Bobadilha adoeceu logo que chegou a Roma, mas como não estava ainda
designado o dia da partida, esperava recuperar as forças perdidas,
para poder obedecei também...
Xavier humilhava-se cada dia mais da sua indignidade, por ver os mais
perfeitos do que ele destinados para aquele apostolado, que ocupava dia
e noite o seu pensamento.
A partida do embaixador fora finalmente fixada para o dia imediato.
Sabe-o o nosso Santo, e faz ardentes votos pelo bom êxito dos seus
irmãos; orava por eles com todo 0 fervor da sua alma, quando
Inácio o chama.
- Francisco, lhe disse ele, eu havia designado Bobadilha para a
missão das Índias, porém aprouve ao Céu escolher um outro. Sois
vós que ele acaba de designar hoje mesmo, e eu vo-lo anuncio em nome
do Vigário de Jesus Cristo...
Xavier, prostrado aos pés do seu santo mestre escutava no maior
recolhimento de gratidão e humildade.
Inácio continuou: - Aceitai a missão de que Sua Santidade vos
encarrega, como se Jesus Cristo em pessoa vo-la tivesse intimado, e
alegrai-vos por encontrardes nela o cumprimento do ardente desejo de
que nós todos nos achamos animados: levar a fé para além dos mares.
Não é somente a Palestina, ou uma província da Ásia que tereis de
evangelizar; são países imensos, estados inumeráveis, o mundo
todo! Aquele tão vasto campo é digno da vossa coragem, é digno do
vosso zelo! Ide, Francisco; ide, meu irmão, onde a voz de Deus
vos chama, onde a Santa Sé vos -envia, e desenvolvei todo o fogo
que vos anima!
As lágrimas de Francisco corriam até ao chão; porém eram
lágrimas de felicidade!
- Pai da minha alma, respondeu ele, como pudestes vós pensar em mim
para uma missão que exige um verdadeiro apóstolo? Eu sou o mais
inerte, o mais fraco, o mais incapaz e o menos virtuoso dos vossos
discípulos! E é por isso que eu me considero duplamente feliz!
"Meu Padre, eu obedecerei ao mandato de Deus! Estou preparado e
pronto a sofrer tudo e com a maior alegria do meu coração, para a
salvação dos pobres índios r Confesso-vos, hoje, meu amado
Padre, que há muito tempo o meu coração suspirava pelas Índias;
porém não me atrevia a confessá-lo senão a mim próprio, por isso
que me julgava indigno duma tal graça. Ah! Eu espero em Deus, que
naqueles países idólatras, encontrarei o que a Terra Santa me
recusou.
"Espero também que terei a felicidade de ali morrer por Jesus
Cristo!...".
Inácio tinha já feito levantar o seu amigo: apertava-o ao seu
coração de pai, profundamente comovido.
Francisco significou-lhe quanto o apostolado das Índias ocupava o seu
pensamento e o seu espírito, a ponto de o acompanhar até nas suas
horas de sono; em seguida apressou-se a remendar a sua batina,
abraçar os seus amigos e ir prostrar-se aos pés do Soberano
Pontífice para lhe pedir a sua bênção. Paulo III, rendia
graças a Deus desde que o rei de Portugal lhe manifestara o desejo de
fazer pregar o Evangelho nos países infiéis que lhe eram sujeitos,
porque contava como seguro o triunfo da Cruz em todos os lugares onde
os discípulos de Inácio a levassem. Recebeu Xavier com
benevolência verdadeiramente paternal, felicitou-o pela sublime
missão que ele ia desempenhar, e disse-lhe:
- "A soberana Sabedoria dá sempre a graça necessária para
suportar os encargos que ela impõe, embora eles sejam superiores às
forças humanas! Vós tereis muitas ocasiões de sofrer; mas deveis
lembrar-vos sempre que no serviço de Deus não se consegue o bom
êxito senão pelo caminho dos sofrimentos, e que se não deve
ambicionar a honra cio apostolado senão caminhando pelos traços
deixados pelos Apóstolos, cuja vida foi sempre uma pesada cruz e uma
morte de cada dia."
"O Céu vos envia a seguir os passos de S. Tomé, o apóstolo das
Índias, na conquista das almas; trabalhai ardente e generosamente em
fazer reviver a fé nas terras em que ele a semeou! e se Deus permitir
que possais derramar o vosso sangue pela glória de Jesus Cristo,
oh! considerai-vos feliz de serdes o escolhido para morrer por uma tal
causa."
"É tão belo morrer mártir!"
Xavier, compenetrado das palavras do soberano pontífice, e
parecendo-lhe ouvir a própria voz de Jesus Cristo, respondeu
algumas palavras duma tão profunda humildade e de zelo tão ardente,
que Paulo III depois de o ter abençoado, o abraçou por muitas
vezes com extrema comoção.
No momento de partir, na manhã seguinte, Xavier prostrou-se aos
pés do seu querido Padre Inácio para lhe pedir a sua bênção; o
seu coração, naquele momento, cumpria um grande sacrifício,
continha tanta dor como alegria.
Inácio abrasou com ternura aquele filho que tanto amava e que ia
separar-se dele, sem dúvida para sempre. Apertou-o dolorosamente,
mas com todo o afecto, ao seu coração, pois que ele também fazia um
grande sacrifício!... Porém a glória de Deus o chamava, e pai
e filho se achavam votados inteiramente à sua glória, à sua maior
glória...
Abraçavam-se pela última vez, quando Santo Inácio descobriu,
por acaso, que o seu amado discípulo desprezara completamente as
precauções mais necessárias para tão longa viagem.
Oh! meu Francisco! lhe disse ele, apertando-o de novo ao seu
coração paternal, - é muito! é demais! nem ao menos alguma roupa
de lã para abrigar o vosso peito contra os grandes frios!
E despojando-se da sua camisola de lã, forçou o seu filho
espiritual a vesti-la.
No derradeiro momento da partida, Francisco depositou nas mãos de
Laynez uma declaração escrita, regando-lhe que a fizesse conhecer
aos seus irmãos, no dia em que eles se reunissem para elegerem um
Geral. Esta declaração, damo-la aqui dividida em três partes,
tal qual a achamos reproduzida na série das Cartas de S. Francisco
Xavier.
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DECLARAÇÃO DE FRANCISCO XAVIER
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"Eu, Francisco, declaro, que, quando Sua Santidade haja por bem
aprovar o nosso Instituto, concordarei em tudo quanto a Sociedade
estatuir, nas Constituições e Regras que ela estabelecer pelo
órgão daqueles dos nossos que possa convocar e reunir em Roma; e
como Sua Santidade envia alguns de entre nós em diversas missões,
fora de Itália, e por este motivo não nos poderemos reunir todos,
declaro por este escrito, que me comprometo a aceitar e a ter por bom e
válido tudo quanto for estatuído em interesse da Sociedade, por dois
ou por três dos nossos irmãos que se reunirem para aquele fim.
Assim, por este autógrafo, digo e prometo ratificar tudo quanto por
eles for feito.
Escrito em Roma, a 15 de Março de 1540.
FRANCISCO".
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"J. H. S. Eu, Francisco, devendo deixar o meu voto sobre a
escolha daquele que deve ser elevado à prelatura da nossa Sociedade,
e a quem todos devemos obedecer, declaro e afirmo, sem instigação
alguma, que me parece justo, em testemunho da minha consciência, que
este seja o nosso antigo prelado, o nosso verdadeiro pai, Dom
Inácio, que nos reuniu com tão grandes dificuldades e trabalhos.
Declaro mais que nenhum outro está em melhores circunstâncias do que
ele para nos conservar, dirigir e fazer-nos adiantar no caminho da
perfeição, porque ele nos conhece a todos em geral e a cada um em
particular; e digo também, na maior sinceridade da minha alma, como
se me achasse à hora da morte,, que depois do seu falecimento, julgo
acertado eleger-se para Geral o Padre mestre Fabro, e neste momento
Deus me é testemunha de que digo somente o que penso; e em fé do que
assino o presente escrito.
Feito em Roma, a 15 de Março de 1540
FRANCISCO".
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"Depois de convocada a Sociedade e que ela tenha eleito o seu
Geral, prometo, eu, Francisco, hoje e para sempre, obediência
perpétua, pobreza e castidade. Assim, pois, Padre Laynez, meu
mui prezado irmão em Jesus Cristo, rogo-vos, pelo servido de Deus
Nosso Senhor, que apresenteis, na minha ausência, e em meu nome,
ao Geral que elegerdes, ó testemunho da minha vontade, com os três
votos religiosos, pois que, neste momento, eu prometo observá-los
desde o dia em que ele for nomeado.
Em fé do que assino o presente escrito do meu próprio punho.
Feito em Roma, a 15 de Março de 1540.
FRANCISCO".
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