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Miguel Navarro, pontual à entrevista que lhe concedera o seu jovem
protetor, apresentou-se em sua casa na manhã seguinte à hora
convencionada, e não podendo dissimular inteiramente o mau humor que
se lhe conservava ainda do diálogo da véspera, atreveu-se a soltar
de novo algumas expressões ásperas e zombeteiras, que D. Francisco
repeliu com uma só palavra:
- "É demais!" disse ele, dando-lhe o dinheiro que vinha buscar.
Miguel empalideceu a esta palavra, cujo alcance compreendeu. Receou
perder de todo a amizade e benevolência de Francisco, se o deixasse
sob aquela impressão de descontentamento, e apressou-se a reparar o
que ele chamava uma negligência. Tomou as mãos do jovem senhor de
Xavier e beijou-as com tanta afeição e sinais de arrependimento,
que o comoveram.
- Não pretendi afligir-vos, Miguel disse ele, mas sim fazer-vos
compreender que não deveis falar daquele modo, de hoje em diante, em
minha presença. Estimo e respeito D. Ínigo; e olvidemos isso.
Miguel estava consternado; a lembrança de alguns nobres espanhóis,
que abraçaram por voto voluntário a pobreza, depois de convertidos
por D. Ínigo, apresentava-se-lhe como um fantasma aterrador.
Lançou-se aos pés de Xavier e suplicou-lhe, banhado em
lágrimas; que não desonrasse a sua ilustre família, imitando D.
Amador e D. João de Castro.
- Ide, Miguel, lhe disse Francisco, deixai-me a liberdade de
dispor de mim sem necessidade de vosso consentimento: sei que a
afeição que me dedicais é o que vos leva a falar-me desse modo; mas
muito estimaria que fosse esta a última vez.
Miguel retirou-se devorado de tristeza e de raiva; perguntava a si
mesmo qual seria o modo de se vingar de D. Ínigo e vingar ao mesmo
tempo a família de Azpilcueta. Concebeu e rejeitou vários
projetos, até que se decidiu a esperar, confiado em futuras
inspirações.
Dias depois, D. Francisco declarava-se abertamente como um dos
discípulos do seu caro mestre na vida espiritual, anelando o momento
em que lhe fosse possível fazer um retiro sob a sua direção e
seguindo os Exercícios Espirituais que D. Ínigo, inspirado pelo
Céu, escrevera em Manresa.
Passava-se isto nas proximidades das férias. Logo que elas
começaram, Xavier deixou o colégio e afastou-se do bulício do
mundo para ir viver durante algum tempo, a sós com Deus, no retiro e
na penitência.
Passou os quatro primeiros dias sem tomar alimento algum; a sua
pungente dor por ter ofendido a Deus, e o seu desejo de o servir dali
em diante, eram dois sentimentos tão ardentes da sua alma magnânima e
verdadeira, que ele ligava os pés e as mãos, tanto quanto lhe fosse
possível, antes da oração, e assim se apresentava em presença de
Deus como uma vítima disposta a ser imolada; não deixava o
cilício, jejuava todos os dias e orava sem cessar.
Enquanto Francisco Xavier se tornava um novo homem no seu retiro, o
demônio, rugindo de raiva, apossava-se da alma de Miguel Navarro
para lhe inspirar o infernal pensamento de subtrair ao Céu esta
magnífica conquista, inutilizando o instrumento que ali o retinha.
D. Ínigo, como dissemos, habitava só o quarto dos três amigos;
era, pois, favorável o momento, e se Miguel o deixasse escapar,
poderia não ter outra ocasião igual.
A rua de Santo Hilário era completamente deserta durante a noite:
além disto o convento do Carmo que ficava próximo, só se abriria em
caso de necessidade; os conventos são casas de asilo e os seus vigias
não podem prender ninguém... E, sobretudo, confiava que a
família de Azpilcueta o protegeria, se preciso fosse, pois que era
em defesa de sua honra que ele se expunha!... Assim raciocinava o
espirito do mal na alma de Miguel Navarro.
Uma noite, pois, próximo da meia-noite e dias antes de terminar o
retiro de Xavier, poder-se-ia ver uma sombra deslizar-se na
escuridão e andar ao longo do muro do colégio de Santa Bárbara, na
rua de Santo Hilário. Esta sombra parou no ponto correspondente ao
ângulo formado pelo edifício com o passeio. Parecia escutar...
porém o silêncio não era interrompido em torno dela, anão ser pela
respiração abafada e pelas palpitações precipitadas dum coração
que ela só sentia naquele momento.
Seguro por este lado, Miguel, porque era ele, tirou da, algibeira
uma corda de nós que lançou ràpidamente sobre o muro e por ela subiu
com ligeireza; escutou de novo... Nada!
O vento era tão ligeiro que não fazia agitar nem uma só folha das
árvores do passeio; nem uma só luz alumiava as janelas; tudo
dormia, tudo estava em profundo silêncio... e Satanás a
impeli-lo sempre; e eis que Miguel se agarra à corda e nela se deixa
balançar... Acorda é sólida, pode subir por ela... sobe,
chega ao alto do muro e acha-se muito próximo da janela de D.
Ínigo... Calcula os movimentos necessários, introduz a mão para
dentro do seu gibão... e ela sai armada duma navalha catalã...
Avança cautelosamente, e vai, finalmente, levantar o frágil
caixilho da janela...
- Onde vais tu, desgraçado? que vais fazer? gritou uma voz
vibrante, terrível, fulminadora como uma repreensão do Céu[15].
Miguel ficou aterrado! olhou por todos os lados... Não descobriu
ninguém!... Escuta, todo trêmulo... O silêncio por toda a
parte... exceto na sua alma...
- Meu Deus! meu Deus! murmurou o culpado, é S. Miguel, meu
patrono!
E em seguida landa a mão à vidraça da janela, agita-a
febrilmente, abre-a e precipitando-se para o interior da câmara,
vai lancear-se dominado pelo terror, aos pés de D. Ínigo cuja
oração interrompe; ali, de joelhos, faz a confissão do seu crime,
implora o perdão e obtém-no.
O inferno estava vencido, triunfava o Céu.
Na volta do seu retiro, Xavier começou os estudos de teologia, e
dirigido sempre pelo seu santo mestre, fez rápidos progressos no
caminho da perfeição.
Ofereceram-lhe em vão um rico canonicato em Pamplona; recusou-o,
por não ambicionar outras riquezas que não fossem as do Céu.
D. Ínigo, vendo-o tão seguro, e forte, comunicou-lhe os seus
desejos de ir trabalhar na conversão dos judeus e infiéis que
habitavam a Terra Santa. Xavier respondeu-lhe que o seguiria por
toda a parte para onde ele fosse.
Pedro Fabro dera-lhe, meses antes, igual resposta.
No ano seguinte, 1534, Fabro recebeu as ordens sacerdotais e
celebrou a primeira missa a 22 de julho. D. Ínigo, que aguardava
aquele momento para reunir em torno de si todos aqueles que havia
conquistado para o serviço de Deus, aconselhou-os a que se
preparassem para aquela reunião por meio de penitências corporais e de
longas e frequentes orações, a fim de atraírem a luz e a
inspiração divina sobre a vocação de cada um em trabalhar pela
salvação das almas, e maior-glória de Deus.
No dia fixado, os seus discípulos, em número de sete, reuniram-se
a ele como fora combinado. Todos, homens de ciência, de elevado
mérito e de reconhecida inteligência, contemplaram-se por um
instante com mútua admiração, experimentando, cada um deles a mais
viva comoção que se traía pelas lágrimas involuntárias que
derramavam.
- "Compreendendo a comoção que experimentarieis, lhes disse
Ínigo, quis que ignorásseis os nomes dos vossos companheiros
escolhidos pelo Céu, com o fim de deixar os vossos corações mais
livres em seguir as inspirações de Deus. Conheço que desde que vos
vistes, o vosso zelo, a vossa coragem e a vossa confiança redobraram
de vigor. Convenço-me de que Deus vos chamava a todos para uma
empresa de muito grande importância. E se cada um de vós, em
separado, é capaz de grandes empreendimentos, muito se pode esperar
dos vossos trabalhos achando-vos reunidos para um único fim, por um
único pensamento e com um único interesse, a glória de Deus e o bem
da igreja! Tivestes tempo bastante para consultar, em presença de
Deus, a vossa vocação, e vindes hoje declará-la."
"Por mim, não tenho mais que um só desejo: e vem a ser, conformar
a minha vida com a do divino Modelo, socorrido da sua graça. A
santidade pessoal de Jesus Cristo não foi julgada suficiente:
padeceu, sofreu e morreu pela salvação dos homens. Desejo, pois,
esforçar-me por imitá-lo quanto seja possível às minhas poucas
forças. Trabalhando pela minha própria salvação quero dedicar-me
à salvação dos meus irmãos".
Depois patenteou-lhes a dor que sofria a sua alma por ver que os
Lugares Santos, que tinham sido banhados pelo sangue divino, se
achavam transformados em verdadeiros infernos, e comunicou a
resolução que tomara de ir trabalhar pela conversão dos infiéis da
Terra Santa.
"Que feliz seria eu! exclamou ele, se me fosse permitido derramar o
meu sangue, por uma tal causa, sobre aquela terra, regada pelo sangue
do Redentor! Tenho esperanças de que um dia me será concedida uma
tão grande felicidade! Confiado nestas esperanças, estou resolvido
a entregar-me, a consagrar-me inteiramente a Deus, dedicando-me
tão somente ao seu serviço para nunca mais pertencer senão a Ele,
por um solene voto; desejo dedicar-me irrevogàvelmente à pobreza
voluntária, à castidade perpétua e à viagem para a Terra
Santa!"
Toda a alma de D. Ínigo parecia transportar-se para os seus
discípulos à medida que ele lhes falava, e tal era a impressão e o
respeitoso entusiasmo que experimentavam, que supunham escutá-lo,
ainda algum tempo depois de ter cessado de falar. Despertados daquele
êxtase, exclamaram espontaneamente e a uma só voz:
- "A Terra Santa! À Terra Santa!"
Em seguida todos se comprometeram a seguir o seu querido mestre na vida
e na morte, e mestre e discípulos abraçaram-se com a maior ternura e
comoção, com solene promessa de se amarem, de ali em diante, como
irmãos, dos quais seria Ínigo o chefe, o irmão mais velho.
Combinaram depois no plano que deveriam seguir e concordaram em que
terminados os seus estudos teológicos, dirigir-se-iam a Veneza e
dali seguiriam para a Palestina, se a Providência lhes concedesse,
no decurso dum ano, os meios necessários para esta viagem. Se,
porém, depois de esperarem em Veneza aquele tempo, não pudessem,
por quaisquer circunstâncias alheias à sua vontade, julgar-se-iam
desobrigados do seu voto relativamente à Terra Santa, e iriam a
Roma entregar-se â disposição do soberano Pontífice.
Adoptado este plano unanimemente, fixou Ínigo o dia da festa da
Assunção de Nossa Senhora, para o solene juramento que
depositariam aos pés da Rainha do Céu, rogando-lhe a sua
intercessão para que o mesmo juramento fosse agradável ao seu Divino
Filho. Combinou-se também que cada um se preparasse para um tão
sublime oferecimento das suas próprias pessoas, por meio da oração,
do jejum e de castigos corporais.
Existia então em Montmartre e junto do muro da cerca da célebre
abadia que coroava a montanha, uma capela da invocação dos Santos
Mártires. E era crença geral que S. Dinis e seus companheiros
haviam sido martirizados naquele lugar [16].
Este santuário, dependente da abadia, para onde se faziam
peregrinações com o fim de venerar e pedir graças especiais ao
apóstolo dos Gauleses, tinha uma capela inferior menos freqüentada:
foi esta capela subterrânea que Ínigo escolheu para a sua
consagração e a dos seus discípulos. Eles deviam reunir-se ali sem
mais testemunhas.
A 15 de Agosto de 1534, efetivamente se reuniram todos. Pedro
Fabro, que era o único sacerdote, celebrou o santo sacrifício da
Missa. Antes da comunhão, quando ele se voltou para os seus
irmãos, tendo nas mãos o Sagrado Corpo de Nosso Senhor, todos,
um após outro, pronunciaram os votos de pobreza e castidade, e o de
irem a Terra Santa trabalhar na conversão dos judeus e infiéis, ou
de se entregarem à disposição do soberano Pontífice; em seguida
receberam a comunhão com seráfico fervor!
Acabava de nascer a Companhia de Jesus.
À Espanha coube a glória de haver recebido do Céu o primeiro
pensamento desta santa instituição, pois que no momento em que o
imenso amor de Deus pelos homens brotou do seu Coração, este nasceu
no de Ínigo de Loiola, então em Manresa, na Catalunha. Mas era
em Paris que a Companhia de Jesus devia nascer. O seu primeiro
berço devia ser ali onde os primeiros Apóstolos dos Gauleses
receberam a morte das próprias mãos daqueles que vinham evangelizar e
salvar!...
Assim, pois, não daremos, daqui em diante, ao eminente fundador da
Santa Companhia de Jesus e ao mais ilustre dos seus apóstolos,
senão os nomes de Inácio e Francisco, não somente porque depois
que se tornaram tão célebres, só foram conhecidos por esses nomes
franceses, mas também porque temos quase os mesmos direitos que os de
Espanha, em os reivindicar como nossa glória e nossa propriedade.
Foi, sim, na Espanha que eles nasceram, mas foi na França, em
Paris, que Xavier se converteu e renunciou ao mundo e a si próprio;
foi em Paris que Santo Inácio e seus discípulos se entregaram ao
serviço de Deus e à salvação das almas: foi em Paris finalmente,
que eles estabeleceram e firmaram as bases dos estatutos da sua Ordem.
Isto foi no tempo em que a cidade se honrava de adoptar o glorioso
título de Mãe da Companhia de Jesus. Talvez o torne a adoptar
algum dia!...
Na capela inferior dos Santos Mártires, via-se uma lâmina de
bronze na qual a cidade de Paris fizera gravar, em latim, uma
inscrição destinada a perpetuar a memória da fundação da Companhia
de Jesus, e, a fazer recordar que este lugar foi o berço da Ordem
célebre que reconhece Santo Inácio de Loiola por pai e Lutécia
por mãe[17].
Que foi feito desta inscrição?... Que foi feito da capela em que
ela estava colocada?... Que foi feito do mosteiro de que esta
capela era dependência?... Tudo desapareceu, até o próprio nome
do lugar abençoado em que S. Dinis recebeu a palma do martírio em
troca do seu sangue.
Esta gloriosa morte não é hoje recordada ao povo de Paris senão
pela barreira dos Mártires...
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