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CIVANDONO, REI DE BUNGO, AO GRANDE
BONZO DE CHEMACHICOGIM [72]
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PADRE BONZO DE CHEMACHICOGIM!
Que a vossa feliz chegada aos meus estados seja agradável ao vosso
Deus com os rogos dos seus santos.
Quansionafama, meu secretário, foi ao porto de Figen por minha
ordem, e tendo vindo comunicar-me a vossa chegada de Amanguchi,
trouxe com esta nova a maior alegria ao meu coração.
O vosso Deus não me julgou digno de vo-lo poder ordenar, e por isso
vos suplico que venhais antes do nascimento do sol bater à porta do meu
palácio, onde vos esperarei com impaciência. Permiti que vos peça
este favor, e oxalá o meu pedido vos não seja importuno!
O vosso Deus é o supremo e o mais poderoso de todos os deuses; ele
é o melhor dos soberanos que vivem no Céu, e eu lhe rogo de
joelhos, prostrado ante o seu vulto invisível, que faça compreender
a todos os soberbos quanto a vossa vida santa e pobre é agradável a
seus olhos, a fim de que os nossos filhos não sejam iludidos pelas
falsas promessas do mundo.
Mandai-me notícias da vossa saúde para me fazer dormir bem a noite,
até ao momento em que o canto do galo me acorde anunciando a vossa
vinda.
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Esta mensagem era levada por um jovem príncipe de sangue real,
acompanhado do seu preceptor Poomendono e escoltado por trinta
Jovens, pajens da corte. Quando o príncipe chegou a boro do navio,
foi recebido pelo capitão, a quem pediu a honra de falar ao grande
bonzo de Chemachicogim.
D. Eduardo da Gama, que vira chegar a embaixada, e que suspeitava
a causa que a trazia, dera as suas ordens antes de a receber a bordo,
mas não quis que o santo Padre fosse prevenido.
Logo que o jovem príncipe disse que trazia uma mensagem da parte do
rei de Bungo para o grande bonzo de Portugal, foi dado o sinal, e as
praças da guarnição reúnem-se para preceder e seguir a embaixada;
entram no grande salão e ali formam em duas alas, destacando-se o
capitão e alguns oficiais para irem buscar o nosso Santo a quem
acompanham em cerimônia até à sala onde era esperado.
A humildade de Xavier via-se exposta a uma dura prova; mas não
contava já ela tantas vitórias quantos haviam sido os ataques?
Devia, portanto, triunfar até ao fim.
O jovem príncipe fez entrega da sua mensagem ao grande apóstolo,
rogando-lhe que a lesse para poder levar a sua resposta ao rei, e
enquanto o santo Padre lia aquela carta, tendo atrás de si e aos
lados os oficiais do navio na mais respeitosa atitude, disse o
príncipe ao seu preceptor:
- É, pois, tão grande o Deus de Chemachicogim?
- Parece que sim, respondeu-lhe o nobre Poomendono, cerrando os
lábios e meneando a cabeça.
- Ele deve ter segredos desconhecidos das outras nações, replicou o
príncipe, pois que põe tão ricos navios sob a obediência e poder de
um bonzo tão pobre como este! Compreendeis vós que aquele Deus
faça disparar o canhão para que todas as nações que ouvem o seu
terrível estrondo saibam que aquela pobreza lhe é agradável, quando
nós julgávamos que era tão desgraçada!...
- Este bonzo, que é tido como uma virtude, e a pratica para ser
agradável ao seu Deus, é sem dúvida mais feliz do que aqueles que
são ricos, respondeu o preceptor.
Xavier logo que concluiu a leitura da carta do rei, prometeu
satisfazer o seu convite, e o jovem príncipe, maravilhado de ver um
bonzo tão honrado e considerado pelos da sua religião, voltou ao
palácio dar conta ao rei da sua missão, e acrescentou, falando do
exterior tão pobre do bonzo cristão:
- Ele não tem senão a aparência de pobreza, por que é tido como
um soberano a bordo do navio; todos lhe obedecem e lhe prestam as
honras de rei; os portugueses consideram-se tão felizes em
possuí-lo a bordo, que sacrificariam todas as riquezas dos seus
navios de preferência a um só cabelo do seu santo Padre!
O rei de Bungo ordenou que se preparasse a mais brilhante recepção
àquele grande personagem, e todos se apressaram em executar as suas
ordens.
Enquanto se faziam todos aqueles preparativos nó palácio de
Civandono, trabalhavam os portugueses, de seu lado, por vencer a
humildade do seu apóstolo querido!
- Meu Padre, disse-lhe D. Eduardo da Gama em nome de todos,
meu Padre, os bonzos têm feito tudo quanto podem para atrair sobre
vós o desprezo do povo; eles têm-vos caluniado duma maneira infame!
Trabalham, vós o sabeis, para cortar o progresso do Cristianismo.
E, pois, do nosso dever, a nós os cristãos nos pertence, honrar a
religião que eles insultam e testemunhar a veneração que consagramos
ao caráter sagrado daquele que é seu ministro.
É necessário que os japoneses. conheçam e vejam a diferença que
existe entre um sacerdote dos seus ídolos e um sacerdote do nosso
Deus.
Vós vistes, meu Padre, que foi completo n resultado obtido em
Ficando. O rei e o povo reconheceram a divindade da nossa religião,
veado as honras que os portugueses rendiam ao seu ministro. Permiti,
pois, que nós façamos o que eles fizeram!...
O humilde apóstolo submeteu-se; rendido, deixou vencer as suas
repugnâncias em Figen, pelos mesmos motivos que o levaram a
deixar-se vencei em Ficando.
Na manhã seguinte, uma chalupa e das de magníficas tapeçarias
chinesas e duas lanchas, orna de bandeirolas de vivas cores, subiam o
rio até à cidade de Fucheo, residência real.
O apóstolo dirigia-se ao palácio do soberano, acompanhado de trinta
portugueses trajados de ricos estofos, cujos bordados de oiro eram
matizados de pedras preciosas; todos levavam cadeias de oiro; os seus
gorros eram guarnecidos com bordados de oiro e com penachos flutuantes,
retidos por chapas de pedias preciosas.
Os seus escravos, ricamente trajados, enchiam uma das lanchas.
Vários instrumentos executavam sinfonias em cada embarcação.
O habitantes de Fucheo, curiosos de querer ver ò famoso bonzo, que
tinha a reputação de submeter à sua vontade o céu, a terra, os
mares, as doenças e a própria morte, enchiam em massa as ruas que
devia percorrei o cortejo.
Quansiandono, à testa dos canafamas [73] que comandava, esperava o
grande Xavier no cais de embarque, e fez avançar uma liteira real
para o transportar ao palácio.
Xavier recusou-a e quis ir a pé. Os canafamas formaram-se em duas
alas e deixaram o cortejo passar pelo meio.
Marchava na frente o capitão D. Eduardo da Gama, levando na mão
direita uma cana de comando e na esquerda o seu gorro brilhantemente
guarnecido, e cujo penacho excedia em grandeza e em beleza, aos dos
outros oficiais. Depois dele marchavam, um atrás de outro, cinco
oficiais, dos quais o primeiro levava o livro dos Evangelhos coberto
por um véu de setim branco; o segundo, uma cana de Bengala,
guarnecida de oiro; o terceiro, as chinelas de veludo negro; o
quarto, um quadro representando a Santíssima Virgem e coberto dum
volante de damasco violeta; o quinto, finalmente, levava um magnifico
pára-sol [74].
Xavier vinha em seguida; tinha-se imposto uma batina nova de
camaleão, uma magnífica sobrepeliz e uma estola de veludo verde
guarnecida de brocados de oiro.
Na sua profunda humildade e amável modéstia, conservava toda a
distinção nativa e nada perdera da sua nobreza, o que fazia dizer aos
oficiais que lhes era em extremo agradável fazer parte da sua cante de
honra, pela circunstância de que a dignidade do seu santo Padre, no
meio da pompa de que estava cercado, com uma majestade tão santa,
trazia o desejo de se ajoelhar diante dele para receber as suas
ordens[75] . Ele caminhava seguido de todos os seus amigos, cujos
escravos fechavam o cortejo.
A música militar, na frente e ria retaguarda, alternava as
sinfonias.
No largo do palácio seiscentos guardas, de sabres em punho,
esperavam imóveis o grande bonzo de Chemachicogim, e soltaram
entusiásticos brados de aclamação, logo que o descobriram;
avançaram para ele. em boa ordem, sob o comando do seu chefe
Fingendono, e, depois abrindo as fileiras, formaram alas aos dois
lados da sua passagem. À porta, o capitão D. Eduardo da Gama e
os cinco oficiais, que precediam o nosso Santo, voltando-se para ele
e fazendo-lhe uma profunda inclinação de reverência, um lhe
ofereceu a sua cana de Bengala, o outro as chinelas de veludo; o
terceiro abriu o pára-sol sobre a sua cabeça; o que levava o quadro
colocou-se à sua direita, o que levava o livro pôs-se à sua,
esquerda. Todos estes movimentos se executaram, com a melhor ordem e
perfeita harmonia. Atravessaram uma longa galeria passando para uma
imensa sala onde se achavam reunidos os gentis-homens da corte em
costumes de aparato. Ali, um menino, que um ancião conduziu pela
mão à presença de Xavier, inclinou-se profundamente e lhe disse:
- Grande bonzo! que a tua entrada na morada de Civandono, meu
senhor, lhe seja tão agradável como a água do. céu ao agricultor
em tempo de estiagem! Entra sem temor.
Os maus vêem-te pesarosos; a tua presença obscurece a sua vista, e
lhes produz a escuridão da noite, mas os homens de bem deram-te o
amor dos seus corações, e tua presença causa-lhes alegria e ilumina
os seus rostos como o sol da manhã.
Os nossos bonzos, bem longe de viverem pobres como tu o fazes para
agradar ao teu Deus, amam as riquezas e dizem que os pobres e as
mulheres não podem ser salvos.
Xavier respondeu ao menino, que parecia escutar com um doce e terno
interesse:
- Apraza à bondade infinita de Deus esclarecer aqueles pobres cegos
com os raios da sua celeste doutrina. Eles reconheceriam então os
seus erros sobre este ponto e sobre os outros.
Desta sala, o nosso Santo, levando pela mão, o menino que o
acabava de cumprimentar, foi conduzido para uma outra onde se achavam
muitos fidalgos magnificamente vestidos. Logo que o viram entrar,
prostraram-se diante dele, à maneira e segundo o uso dos japoneses,
tocando a terra com a fronte, por três vezes seguidas, testemunho de
submissão a que chamam gromenare, e que não prestam senão aos
soberanos.
Um de entre eles, avançando, disse a Xavier:
- Padre bonzo santo! que a vossa chegada seja tão agradável ao
nosso rei Civandono, como o primeiro sorriso da criança é agradável
à sua mãe! Tudo, até mesmo estas muralhas, exulta de alegria em
vossa presença! Tudo nos leva ao regozijo e a celebrar com
distinção a vossa chegada a estes lugares; nós vo-lo juramos,
pelos cabelos da nossa cabeça, que o rei Civandono, nosso soberano,
se considera feliz pela vossa visita ao seu palácio, onde fareis
conhecer o Deus de quem dissestes tão grandes e tão admiráveis
coisas em Amanguchi!
Depois deste discurso, abriu-se unia porta sobre um terraço bordado
de laranjeiras, e o Padre bonzo santo foi conduzido por aquele
terraço para uma sala mais vasta ainda que as precedentes, onde o
esperava o príncipe Facharandono, irmão do rei, cercado da sua
brilhante comitiva
- Ilustre bonzo cristão! lhe disse ele, este dia é um dia de
festa! É o mais solene do ano para a corte de Bungo!
O rico Civandono, meu senhor, considera-se mais rico neste momento
pela vossa presença no seu palácio, do que ele possuísse os trinta
tesouros da China!
- Desejo-vos, grande bonzo cristão, uma glória sempre crescente e
cada vez mais brilhante! Que o Deus que adorais vos conceda tudo
quanto desejardes! Que os votos que fizestes em vir das extremidades
da terra até aqui, sejam cumpridos!
Em seguida, o príncipe inclinou-se reverente para o grande bonzo,
cuja mão o menino colocou na de Facharandono, e atravessaram a
antecâmara do rei entre duas alas de cortesãos, para entrarem,
finalmente, na sala de audiência. O rei pôs-se de pé, deu alguns
passos para o ilustre bonzo cristão, inclinou-se três vezes até
tocar o chão, com grande admiração dos cortesãos, porque era a
primeira vez que um rei japonês se baixava àquele ponto, e Xavier,
segundo o uso do país, prostrando-se diante dele, ia tocar o seu
pé, quando o rei o levantou, por considerar-se indigno de receber
aquele testemunho de submissão da parte de um bonzo tão poderoso;
tomou a sua mão e o fez sentar a seu lado no trono, enquanto o
príncipe seu irmão tomava lugar sobre um degrau inferior.
Os portugueses e os cortesãos do rei conservaram-se de pé em frente
do trono.
Depois de todas aquelas formalidades, o rei, pela primeira vez na sua
vida, com prejuízo da etiqueta real, de que os soberanos japoneses
jamais se afastam, conversou livremente com o apóstolo que se apressou
em falar-lhe da doutrina evangélica, de modo que fosse entendido de
todos.
Xavier falava o japonês com tanta perfeição como elegância, o que
causou admiração aos seus ouvintes e o rei manifestou-lhe francamente
o prazer que experimentava em 0 ouvir, mas o bonzo Faxiondono,
presente à audiência, tentou refutar a doutrina do Cristianismo, e
vendo que o rei o animava, persuadido de que ele seria bem depressa
confundido pelo grande bonzo cristão, levou tão longe os absurdos do
seu raciocínio que excitou a hilaridade do rei, e por conseqüência,
a da sua corte.
Então Faxiondono entrou em um tão violento acesso de cólera, que
foi mandado retirar vergonhosamente pelo seu soberano. O bonzo
retirou-se lançando sobre o rei de Bungo todas as maldições dos
deuses Chaca e Amida.
Era a hora da refeição real, e Francisco Xavier não pôde
subtrair-se às instâncias de um soberano cujo coração ambicionava
ganhar para glória de Deus; foi, pois, forçado a sentar-se à sua
mesa, assim como fora forçado a sentar-se no seu trono; porque o rei
lhe disse, para vencer a sua recusa:
- Eu sei perfeitamente, meu Padre, meu amigo, que não tendes
necessidade da minha mesa; mas se fôsseis japonês saberíeis que um
soberano, neste império, não admite à sua mesa senão os amigos que
ele mais preza; é o maior testemunho de afeição que podemos dar-lhe
segundo os nossos usos. Permiti, pois, que vos rogue a graça de
comerdes comigo publicamente, e eu me julgarei mais honrado do que
vós.
Xavier inclinou-se, beijou, segundo o uso, o alfange real, e
respondeu:
- Rogo sinceramente ao soberano Senhor do Céu e da terra que
reconheça por mim todos os favores com que vós me obsequiais. Que
ele vos dê a fé em seu nome, e a graça de o servir fielmente durante
a vida, a fim de que gozeis dela depois da vossa morte!
- Que o vosso Deus escute as vossas orações, disse-lhe o rei
abraçando-o, mas com a condição de que estarei perto de vós no,
céu, que não nos separaremos nunca, e que nos entreteremos sempre
com a doutrina celeste que viestes trazer-nos de tão longe.
Durante a refeição, a humildade do enviado de Deus teve de sofrer
muitíssimo, por que todo o cerimonial usado no Japão nos banquetes
solenes, foi executado rigorosamente, ponto por ponto, e o nosso
Santo foi forçado a ver os seus amigos portugueses assistirem de
joelhos àquela refeição de honra, assim como os cortesãos, os
grandes da cidade, e muitos bonzos pouco lisonjeados de serem
testemunhas dos favores concedidos tão generosamente ao chefe dos
bonzos cristãos.
Todas aquelas honras lhe atraíram o respeito da população;
concorreram em multidão às suas pregações que tiveram começo no
mesmo dia e logo que saiu do palácio, e alguns dias depois tornou-se
extraordinário o fervor e a solicitude geral. Como em Firando e em
Amanguchi, ele não cessava de pregar, de confessar e de baptizar; o
sucesso foi imenso.
Os portugueses não o viam, conquanto morassem com ele; se tinham
necessidade de lhe falar, só o conseguiam, raras vezes, de noite:
Xavier não dormia, orava ou trabalhava sem descanso
- Meu querido Padre, disse-lhe uma noite D. Eduardo da Gama,
que desgosto para nós, que vos amamos tão extremosamente, ver-vos
oprimido por trabalhos que abateriam vinte missionários! Por favor,
poupai-vos! A natureza tem suas exigências; vós não lhe concedeis
nenhuma, ela sucumbirá, a não ser por um milagre maior ainda do que
aquele que vos tem sustentado até aqui...
- Se me amais verdadeiramente, meu caro Eduardo, respondeu-lhe o
heróico Padre, se vós me amais em Deus e para Deus, esquecei-me
pois por Deus. Para tudo quanto a natureza exige, contai-me entre
os mortos. A aninha alimentação, o meu repouso, a minha vida,
finalmente, destina-se a arrancar à tirania do demônio as almas para
as quais Deus me chamou das extremidades do mundo.
O capitão não teve nada a responder. Tomou a mão do santo Padre,
levou-a respeitosamente aos lábios, e retirou-se cheio de
admiração.
O ódio dos bonzos não podia ficar adormecido à vista dos progressos
extraordinários do Cristianismo na cidade real. Não podendo
desacreditar livremente o bonzo cristão, amado e honrado pela,
corte, como jamais o fora nenhum bonzo dos ídolos, resolveram
discutir com ele nas praças públicas, onde pregava, esperando que a
discussão lhes serviria de pretexto aos olhos do povo e de desculpa
para com o rei, aproveitando aquela ocasião para insultar o pregador
que, desmascarando-os, os arruinava e chamava sobre eles o desprezo
público. Porém o triunfo nunca esteve do seu lado. Xavier
confundiu-os sempre com todo o poder da eloqüência que defende a
verdade contra o erro.
Um dos mais célebres entre eles veio um dia provocá-lo na praça
principal de Firando, em meio duma imensa concorrência de povo, que
a notícia daquela controvérsia havia atraído, não somente da cidade
mas também das circunvizinhanças.
Sacai-Feran, o douto bonzo, tão afamado pela sua ciência em todo
o reino de Bungo, apresenta-se resolutamente e propõe uma
dificuldade a Xavier que, animado do espírito de Deus, lhe
respondeu da maneira mais brilhante e vitoriosa.
Confundido por aquela magnífica linguagem, impressionado no íntimo
pela graça que Deus concedia à palavra do seu apóstolo,
Sacai-Feran cai de joelhos, e sem se inquietar com a indisposição
e censura que ia levantar contra si, da parte dos bonzos reunidos para
assistirem à derrota de Xavier, exclamou entre lágrimas
"Jesus Cristo, único e verdadeiro Filho de Deus! Eu me rendo a
vós! Convenço-me e confesso que sois o Deus eterno e
todo-poderoso, e rogo a todos que me ouvem que me perdoem o
haver-lhes ensinado uma doutrina que reconheço e declaro ser falsa em
tudo".
O efeito desta cena foi prodigioso, pois que mais de quinhentas
pessoas pediram o batismo.
Xavier não julgou conceder-lhes aquela graça antes de os ter
preparado contra os raciocínios e as subtilezas empregadas pelos bonzos
para extinguir á fé nas almas dos neófitos.
Foi esta também a razão que lhe fez adiar o batismo do rei. Exigiu
dele uma reforma completa nos seus costumes, e medidas públicas para a
reforma dos seus vassalos; quis dele uma submissão tão completa, que
pudesse ser garantia de perseverança.
Havia já muitos meses que Francisco Xavier estava em
Fucheo;aproximava-se o momento da partida; todos os portugueses que
haviam escoltado o seu santo Padre à primeira audiência real, o
acompanharam á última.
O rei mostra-se extremamente comovido:
- Invejo-vos, disse ele aos amigos do nosso Santo, invejo-vos a
felicidade de terem o Padre Xavier convosco! Separando-me dele,
experimento o mesmo pesar que sente um filho que se separa de seu pai.
Confesso que a idéia de o não tornar a ver jamais é uma amarga dor
para o meu coração!
O Santo apóstolo, impressionado à vista das lágrimas do rei,
beijou-lhe a mão, prometendo-lhe voltar a vê-lo logo que os seus
trabalhos lho permitissem, quando vieram dizer àquele príncipe que o
grande bonzo Fucarandono acabava de chegar e pedia para ser recebido,
o mais depressa possível, para um negócio que interessava a glória
do rei e do Estado.
- Eu sei o que é, disse ele a Xavier. Os bonzos, exasperados
pela sua derrota, chamaram este, que é o mais sábio do reino, com a
esperança de vos confundir e de reaver para o culto dos ídolos os
cristãos que o abandonaram. Mas eu não quero recebê-lo antes do
vosso embarque; ele é muito grosseiro e eu prezo-vos muito para
expor-vos a esta luta...
- Não temo Fucarandono mais que os outros, respondeu Xavier; eu
vos rogo, príncipe, quê o recebais, e que escuteis ainda esta
discussão! Que posso recear? Eu tenho a verdade, eles têm
unicamente a mentira; estou, pois, seguro da vitória tendo Deus a
meu lado!
Aquela conferência teve o mesmo resultado das anteriores.
Fucarandono, vencido em presença do soberano, em presença dos
cortesãos e dos bonzos que o tinham chamado como a luz do Japão,
fulo de raiva, entregou-se a todos os excessos do seu orgulho
irritado, e lançou sobre o rei e sua corte tantas e tão horríveis
maldições, que foi ignominiosamente expulso por ordem do soberano.
Então a cólera de todos os bonzos ultrapassou os limites; procuravam
sublevar o povo contra um soberano que insultava os deuses e atraía a
sua vingança sobre o país; fecharam os templos, anunciaram
calamidades, excitaram os idólatras contra o bonzo cristão e os
portugueses da mesma religião; assustaram finalmente os neófitos que
temiam uma perseguição declarada, e se lamentavam pela partida tão
próxima do, apóstolo estremecido
- Nós morreremos felizes, meu bom Padre, lhe diziam eles, se
estiverdes conosco; mas se nos abandonais, que virá a ser de nós?
Os portugueses, tendo a temer tudo do furor dos bonzos conservando-se
em Fucheo, tanto pelas suas pessoas, como pelos seus navios ancorados
em Figen, convencionaram voltar a bordo para vigiar os seus
carregamentos e dar as ordens precisas em caso de ataque; mas quiseram
levar consigo o seu santo Padre.
Xavier recusou-se a todas as instâncias que lhe fizeram; o seu
coração de apóstolo não lhe permitia abandonar os neófitos em um
tal momento de prova para a sua fé.
Os seus amigos esperaram ainda, conquanto a partida fosse -urgente,
visto os seus negócios sofrerem por aquela demora; resolveram,
finalmente, uma última tentativa.
D. Eduardo da Gama foi rogado para ir falar ao santo Padre que não
aparecia já na sua residência, e para não desprezar nenhuma
instância com o fim de o resolver a partir.
O capitão, depois de ter procurado Xavier por muito tempo,
descobriu-o em uma pobre choupana, no meio de oito neófitos que
tendo-se declarado contra os bonzos, mais energicamente que os
outros, tinham mais a recear da sua vingança.
D. Eduardo não pôde convencer o seu santo amigo.
- Meu querido Eduardo, lhe disse ele, eu seria muito feliz se me
acontecesse aquilo a que chamais uma desgraça, e que eu chamo a maior
felicidade! Não mereço que Deus me conceda um tal favor, e
tornar-me-ia muito mais indigno ainda se embarcasse convosco. Isto
seria uma fuga. Que escândalo para os meus pobres neófitos! Não
encontrariam eles nisso um pretexto para violarem a sua fé?
Se pelo preço que recebestes dos vossos passageiros, vos julgais
obrigado a garanti-los dos perigos que os ameaçam, se vós os fazeis
recolher por esta razão para o vosso navio, cuja artilharia os poderá
defender, não sou eu também obrigado, ainda que diversamente, a
guardar o meu rebanho, a morrer aqui com ele, pelo Deus infinitamente
bom que me remiu do pecado a preço da sua vida sobre a cruz? Não sou
eu obrigado a assinalar com o meu sangue e a tornar público com a
aninha morte, a todos os homens, que devem sacrificar o seu sangue e a
sua vida por este Deus de misericórdia e de amor?
- Meu Padre, meu querido Padre, respondeu-lhe D. Eduardo, eu
não vos abandonarei! Deixo-me ficar em Fucheo convosco; parto a
declarar isto aos nossos amigos e a dar as minhas ordens à equipagem.
O capitão enxugou os olhos cheios de lágrimas, abraçou o santo
Padre e correu à pousada dos portugueses, onde era impacientemente
esperado
- Então! então! capitão, gritaram eles muito aflitos.
- Então! o santo Padre está firme como um rochedo; ele fica coxas
os seus neófitos, e eu declaro-vos que me deixo ficar também. Se
insistis em querer partir, cedo-vos o meu navio. Ele está em bom
estado, vós tendes bons marinheiros, bons soldados, munições de
boca e de guerra, disponde de tudo, ide para onde quiserdes, pois que
eu estou resolvido a partilhar da sorte do nosso santo Padre!
Todos, a uma voz, protestam que os mesmos sentimentos os animam, que
abandonam as suas riquezas de bordo à guarda de Deus e da
tripulação, e que não sairão da cidade antes do seu amado Padre.
Os bonzos, irritados de despeito, quando souberam do adiamento da
partida de Xavier, reúnem-se em número de três mil, chamados a
pressa de todos os pontos do reino, e solicitam de Civandono
permissão para atacar de novo a doutrina do bonzo cristão. Foi-lhes
concedida aquela licença com a condição de que eles seriam mais
moderados, e que as conferências se fanam em presença do rei e dos
grandes da sua corte, os quais decidiriam de que lado estava a
verdade.
Muito adiantados para poderem recuar, os bonzos aceitam, são
vencidos pelo grande Xavier, e o rei declara que sendo a doutrina
cristã infinitamente mais perfeita que a dos bonzos do Japão, deseja
que ela seja propagada nos seus estados, acrescentando que vai
despachar um embaixador ao vice-rei das Índias, a fim de lhe pedir,
em seu nome, Padres da Companhia de Jesus para evangelizar o seu
reino.
Os bonzos enfurecem-se em invectivas contra Xavier; lançam todas as
maldições do inferno sobre Civandono e sobre os grandes da corte, e
retiram-se levados do maior desespero.
Mas o povo, tendo conhecimento da decisão real, subleva-se contra
os impostores que tinham abusado até então da sua credulidade,
força-os a fugir e a ocultarem-se nos seus templos.
O rei fez afixar um édito fazendo constar que não receberia mais os
bonzos no seu palácio, e ameaçando com as mais severas penas aos que
ousassem inquietar os cristãos.
Esta medida aterra os sacerdotes idólatras e força-os a tomar a
retirada. Estabelece-se o sossego, o Santo apóstolo foi
despedir-se do rei prometendo-lhe apoiai o seu embaixador e de ele
próprio designai os Padres da sua Companhia que deveriam ser mandados
para o reino de Bungo; depois dirigiu-se, coxas o embaixador,
Mateus e Bernardo, ao porto de Figen onde D. Eduardo da Gama
preparava ativamente a partida.
Francisco Xavier achando-se no meio dos seus amigos, a bordo do
navio, pediu-lhes que orassem ardentemente não somente pela viagem
que iam empreender, mas ainda e especialmente por Malaca.
- O que foi que aconteceu, meu Padre? perguntou o capitão.
- A desgraçada cidade de Malaca, replicou o Santo elevando para o
céu os olhos inundados de lágrimas, está sitiada por terra e por
orar! Os javaneses e os malaios, em número de doze mil, marcharam
contra ela... e D. Pedro da Silva, auxiliado por D. Fernando
de Carvalho, não têm podido sustentai os seus ataques! Os
javaneses estão senhores da praça e saquearam-na! Dos trezentos
portugueses que ela encerrava massacraram mais de cem, e os outros
retiraram-se para a fortaleza.
Desgraçada Malaca! essa cidade não é hoje mais que um lugar de
horror... A morte!... a carnificina!... mortos milhares de
prisioneiros!...
São os pecados daquela culpável cidade que lhe atraíram estes
castigos!... Oh! orai, meus amigos! orai muito por ela!...
- Mas isso é horroroso, meu Padre! Como soubestes tudo isso?
Nenhum navio aqui chegou...
- Deus mo fez saber, respondeu amavelmente Xavier baixando os
olhos.
Esta predição lançou a consternação em todos os corações,
porque cada um dos que compunham a equipagem do São Miguel tinha
interesses e afeições em Malaca.
Levantaram ferro, sob estas tristes preocupações, a 20 de
Novembro de 1551, por um mar semeado de escolhos e perigoso em
todas as estações, mesmo para os mais experimentados navegantes.
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