JAPÃO

Maio 1549 - Novembro 1551


I. DIOGO DE NORONHA - A VIAGEM - O JOGO DE XADREZ

Diogo de Noronha não conhecia o grande Xavier senão pela fama; recentemente chegado às colônias portuguesas, testemunhara ao seu jovem parente, D. Pedro de Castro, desejos de ver o santo Padre, de quem ouvira falar com tanta admiração na corte, e Pedro lhe havia prometido a viagem de Goa a Chochim no mesmo navio em que embarcasse o apóstolo venerado, acrescentando:

- Se tu deixas escapar esta ocasião, podes não ter outra; o Padre Xavier parte para o Japão, e só Deus sabe se ele dali voltará.

- Eu desejo vê-lo por causa da sua celebridade, respondeu Diogo, mas não tenho nenhum empenho de me aproximar dele; temo ser atraído para as suas fileiras.

- Tranqüiliza-te, Diogo, o santo Padre é o homem mais amável; ele conversará contigo sobre tudo que conhecer interessar-te, e nada te dirá sobre a tua consciência. Eu te acompanharei e te apresentarei, e ficarás encantado.

Os dois amigos embarcaram na mesma fusta que levava o santo Padre. Pedro apressou-se em apresentar-lhe o seu parente. Francisco Xavier acolheu o jovem Diogo com a sua habitual benevolência; entreteve-o falando-lhe das famílias, dos Noronhas e dos Castros, que conhecera intimamente na corte de Portugal, e dos seus interesses nas Índias, e só a isto se limitou.

Diogo viu-se fascinado, e experimentou um grande pesar quando viu afastar-se de junto de si aquele de quem receara aproximar-se.

- Eu estava persuadido, disse ele em seguida a Pedro que um santo daquela força não sabia senão pregar contra o inferno e fazer milagres...

- E tu viste que ele se acha armado para todos os gêneros de combates; qualquer que seja o assunto da conversação, tem sempre a mesma superioridade.

- Mas é verdade, perguntou D. Diogo, que ele ressuscita os mortos? Em Lisboa toda a corte está persuadida e tem isto como coisa provada.

- Eu não tenho sido testemunha, respondeu Pedro, mas em Goa, homens sérios e pouco crédulos me asseguraram terem visto. Cosme Anes e Diogo de Borda, que tu conheces, instaram um dia com o santo Padre a dizer-lhes, para glória de Deus, se era verdade que ele tivesse restituído à vida uma criança que se afogara num poço: o Padre Xavier fez-se vermelho e respondeu com embaraço

- Eu! um pecador como eu, ressuscitar um morto! podeis crê-lo? Puseram aquela criança diante de mim assegurando-me que estava morta! e assim, pecador como sou, disse à criança que se levantasse em nome de Jesus Cristo, e ela levantou-se; eis tudo. Deus sabe se ela estava realmente morta.

- Só isso?! disse D. Diogo.

- Mas o que é certo é que nós não faríamos outro tanto, respondeu Pedro.

Diogo suspirou profundamente e deixou escapar uma palavra que encheu de admiração ao seu amigo

- Tu, Pedro, confessas-te!...

Na manhã seguinte, vendo ele o Padre Xavier a jogar o xadrez, tomou o braço de Pedro e levou-o para a ponte, dizendo-lhe com admiração

- Explicar-me-ás tu este enigma, meu caro amigo? compreendes que um Santo jogue o xadrez?

- Para nós, que conhecemos de perto o santo Padre, o enigma é fácil de decifrar-se, ele quer converter aquele com quem joga.

- Tu crês isso?

- Tenho a certeza; não é esta a primeira vez que ele emprega este meio de conversão, e tem sido sempre bem sucedido.

Chegavam então a um porto da costa onde deviam fazer escala; todos os passageiros desembarcaram, e Pedro fez notar ao seu jovem parente que o Padre Xavier, dando o braço ao seu parceiro de jogo, penetrava com ele na floresta próxima; o ar de satisfação que animava o semblante do apóstolo era fácil de interpretar-se.

Quando o sinal do reembarque se fez ouvir, os passageiros apressaram-se a voltar a bordo; Francisco Xavier, porém, não apareceu! Pedro e Diogo internaram-se na floresta em que o haviam visto entrar quando desembarcou; chamaram-no repetidas vezes em alta voz, sempre inutilmente, e desanimados ria sua busca, tomavam já o caminho por onde tinham vindo, quando Diogo disse que. vira à direita uma luz estranha, através das árvores, e seguiram a direção do sítio em que se notava aquele fenômeno, que mal podiam crer, conquanto fosse real! E para aí avançaram... O santo apóstolo lá estava em oração; tinha o semblante fulgurante de luz, com as mãos cruzadas sobre o peito, de joelhos, mas não tocando o solo; ele não via nem ouvia nada do que se passava em torno de si:

- Acreditas, agora, que é Santo apesar do jogo do xadrez? perguntou Pedro ao seu amigo.

- Confesso-me perdido, respondeu-lhe Diogo.

E dizia a verdade. Diogo era vaidoso, leviano, amigo do prazer, e aquela vista produzia nele remorsos: estava pálido, comovido, e desde aquele momento via as coisas de outro modo.

Os dois amigos restituíram à terra aquele que todos buscavam com tanta ansiedade, e a simplicidade de Xavier, voltando às coisas terrenas, a graça e afabilidade com que agradecia aos seus amigos a sua solicitude e obséquio, completaram a conquista de Diogo de Noronha, e fizeram dele um perfeito cristão. Mas o jovem português não veio a saber logo o que se passara entre o jogador e o santo Padre.

Francisco Xavier pouco entendia do xadrez; jogava-o muito mal. Vendo um dos passageiros, Vicente Lopes, entusiasmar-se por aquele jogo e mostrar, pelos seus juramentos, que a sua consciência estava em mau estado, pedira-lhe que sossegasse, no próprio interesse da partida começada, porque aquela grande exaltação podia fazer-lhe perder.

Depois da partida, a conversação foi levada para o estado da religião nas Índias, e o jogador tendo felicitado o santo apóstolo pelos seus sucessos milagrosos, este disse-lhe:

- Nada é impossível a Deus; ele pode mesmo fazer de um jogador desenfreado um cristão exemplar...

- Ah! eu vejo, santo Padre! eu adivinho-vos, mas o milagre seria muito grande, vós não me converteríeis.

Nada é impossível a Deus, senhor.

- Meu Padre, eu amo-vos muito, mas vós não me tereis.

Quero mais uma partida, vamos! - acrescentou ele, dirigindo-se para alguns passageiros portugueses, - quem quer empreender uma partida de xadrez? D. Henrique, não quer mais lutar contra mim.

O desafio de Vicente ficou sem efeito; os seus amigos recusaram-se a satisfazer-lhe a paixão desordenada pelo jogo e fizeram-lhe novas observações que ele desprezou com a sua gaiatice e indiferença ordinárias.

O Padre Xavier foi o único a oferecer-se.

-Vós, meu Padre! Mas vós não conheceis as regras do jogo!

- Que importa? Uma vez que vós sois um jogador de primeira, e eu não valho nem um aprendiz, e sem dinheiro, convencionemos que a aposta da partida seja a vossa consciência. Se eu perder, conservá-la-eis tal como está, esperando uma melhor ocasião; se eu ganhar, vós ma entregareis e eu a darei a Deus!

- Pela celebridade da idéia, aceito! Vamos, santo Padre, a minha consciência por aposta!... A partida é minha!

Sentaram-se à mesa do xadrez e logo no começo da partida, Vicente perturba-se; nota no semblante do santo Padre uma expressão muito mais celeste que de ordinário; dir-se-ia que um jogador invisível lhe indica a marcha que deve seguir, os lances que deve executar. Os assistentes mostram-se maravilhados, e cada um pergunta ao seu vizinho se é verdade que o santo Padre não sabe jogar o xadrez.

Vicente, fora de si, exclama finalmente:

- Meu Padre, vós dissestes que não entendíeis nada do jogo, e sois mais forte do que eu!

- É bem verdade que não sei jogar, senhor Vicente; mas eu pedi a Deus que me desse a vossa alma, e ele quis fazer-me ganhar.

Efetivamente o santo Padre ganhou a partida, e Vicente como homem honrado, devia pagar a sua aposta; assim o fez com lágrimas de dor pela sua vida passada, e de admiração pela santidade do grande apóstolo que acabava de operar a sua conversão por um tal prodígio.

Xavier demorou-se poucos dias em Cochim; mas aquele pouco tempo lhe foi suficiente para arrancar mais uma presa ao demônio: cada um dos seus passos era uma conquista sobre o inferno.

Um português que ele sabia culpado de muitos crimes ocultos, apresentava-se no seu caminho, e ele vai digestamente ao seu encontro

- Oh! senhor Marinho! Estais em Cochim! Estimo muito ver-vos! Como passais?

- Maravilhosamente, meu Padre; e...

- Maravilhosamente? Oh! não...

- Como não?! mas eu vos asseguro que sim, meu Padre!

- É porque vós cuidais só da saúde do corpo; mas eu trato da vossa alma, e vejo-a em muito mau estado! Neste momento meditais uma péssima ação; conheço-vos perfeitamente, e tomo muito grande interesse pela vossa salvação, para vos dar tempo de a praticar. Vinde confessar-vos!

- Meu Padre!... eu não estou preparado; estava longe de pensar nisso; não posso, pois, confessar-me sem me preparar.

- Isso pertence-me, e eu vos prepararei; vinde comigo.

Marinho queria escapar-se à sedução do santo Padre mas era já tarde. A impressão que produziu nele a revelação que acabava de fazer-lhe o nosso Santo era tão forte como a sua repugnância pela confissão, e não sabendo o que fizesse, deixou-se arrastar. Uma vez aos pés do irresistível apóstolo ficou bem depressa vencido e sinceramente contrito.

A grande fama e bons resultados que adquirira o Padre Castro em Cochim, pela eloqüência das suas pregações, levaram os portugueses a pedirem a Francisco Xavier que o deixasse naquela cidade; mas o santo apóstolo havia-o destinado para as Molucas onde o seu talento era mais necessário, e foi inabalável.

Afonso de Castro embarcou a 25 de Abril com o nosso Santo, e partiu para Malaca, onde devia encontrar um navio que o conduzisse para o mar das Molucas.