IX. CONVERSÃO NO MAR - ARRIBADA A CRANGANOR

FRANCISCO XAVIER, depois de se ter combinado com Miguel Vaz, como vimos, embarcou para Cambaia, com o fim de obter do vice-rei a expedição que desejava contra o tirano de Jafanapatão.

Logo que entrou no navio, reconheceu um daqueles fidalgos portugueses cujos escândalos faziam a maior dor do seu coração, e não quis perder esta bela ocasião de ganhar para Deus uma das almas que eram em extremo nocivas à sua glória nas Índias.

Para render este homem refaz-se o nosso Santo de todo o encanto do seu espírito, de toda a sua graça pessoal, de tudo; finalmente, quanto possuía de atrativo e sedutor, até ao entusiasmo.

O fidalgo português sente o encanto; procura a companhia do Padre Francisco, não pode passar sem ele, não se julga feliz senão junto dele. Mas cada vez que o apóstolo lhe fala da sua alma, não colhe mais que sarcasmos e ironias; porém insiste, ofendido contra uma impiedade que lhe sangra o coração. Xavier não desanima; quanto mais o pobre pecador mostra repugnância, mais o apóstolo lhe testemunha bondade e carinho.

O navio ancorou em Cranganor e os passageiros desembarcaram. Durante aqueles poucos dias de demora ali, o fidalgo não pôde resistir ao desejo de procurar a companhia do Padre Francisco, de passear com ele, de aproveitar; enfim, todas as ocasiões de gozar do prazer que lhe proporciona, a sua conversação.

Ao terceiro dia, passeavam eles juntos num denso palmar, quando inesperadamente Xavier, cedendo a uma inspiração divina, descobre-se até à cintura e bate em si tão rudemente com a sua disciplina, que rasga as carnes e o seu sangue corre abundantemente.

O português, que ao princípio olhara para ele com admiração, e mostrando-se estupefacto pelos violentos movimentos do Santo, solta gritos de horror logo que viu correr sangue

- Meu Padre! Que fazeis! Suspendei!... Isso importa um verdadeiro suicídio!...

- Ah! meu caro senhor, vós não quereis compreender as minhas palavras! é por vás, é por amor à vossa querida alma! mas isto nada é comparativamente com o que eu deveria fazer. Custastes muito mais caro a Jesus Cristo, e a sua Paixão, a sua morte, todo o seu sangue, todo o seu amor não tem podido enternecei o vosso coração!...

Senhor acrescentou ele, deixando-se cair de joelhos e levantando para o céu os olhos cheios de lágrimas, Senhor! lançai a -vista sobre o vosso sangue adorável e não sobre o de um pecador como eu!...

- Meu Padre! meu Padre! eis-me aqui! exclama o fidalgo lançando-se aos pés de Xavier; suplico-vos que me confesseis aqui mesmo, não adiemos para mais tarde! não retardemos um só instante!

E fez uma confissão geral, prometeu viver cristãmente e foi fiel à sua palavra. Aquela conversão, tão difícil até ali, consolou e alegrou muito mais o coração do nosso Santo, porque dela esperava colher importantes resultados em benefício dos interesses da religião.

Chegado a Cambaia, obteve Xavier o que desejava: o vice-rei expediu ordens para reunir as tropas e formar um considerável exército em Nagapatão, a fim de cair de surpresa sobre o tirano de Jafanapatão, que devia ser entregue a Xavier sem condições; porque o Santo apóstolo que esperava o sangue das vítimas intercederia por ele e seus olhos se abririam à luz da fé.

Xavier tomou a estrada de Cochim, e tendo de demorar-se em Cranganor, hospedou-se em casa dum cristão cujo filho vivia numa deplorável devassidão.

O infeliz pai testemunhou ao Santo tão viva dor pela inutilidade das suas observações e dos seus conselhos no espírito do jovem, que Xavier, empregou as mais amáveis expressões para o consolar, e suspendendo-se por um instante, recolheu-se como arrebatado por uma iluminação súbita; depois, com o acento da inspiração e da certeza, disse ao desventurado pai:

- Vós sois o mais feliz dos pais! Agradecei a Deus, meu amigo, porque este filho, que para vós é hoje um objecto de tão amarga dor, se converterá, será religioso da Ordem de S. Francisco e terá a glória de morrer mártir!

Esta predição cumpriu-se literalmente. O jovem pecador converteu-se, entrou na Ordem de S. Francisco, foi mandado para o reino de Candia para evangelizar os bárbaros daqueles países e teve a felicidade de ali morrer mártir.

De volta a Cochim, encontrou ali, o nosso Santo, Cosme Anes que ele havia recomendado ao rei e por quem tinha particular afeição. Em uma das suas conversações, perguntou-lhe Xavier se o ano era bom para os negociantes portugueses

- Excelente, meu santo Padre, lhe respondeu ele, não pode ser melhor. Em mui poucos meses expedimos para a Europa sete carregações magníficas! Eu envio ao rei um diamante dos mais raros, que não custou menos de dez mil ducados em Goa, e que valerá trinta mil em Lisboa!

- Qual é o navio que leva esse diamante?

- É o Atouguia, meu Padre. Confiei-o ao capitão João de Noronha.

- Eu sentiria grande pesar se tivesse remetido aquele diamante, tão precioso, por esse navio...

- Então porquê, meu Padre? porque o Atouguia fez água uma vez? Mas ele está completamente restaurado, e vós o suporíeis novo se o vísseis hoje.

O Santo guardou silêncio. Anes, persuadido de que ele tivesse conhecimento da sorte desta importante embarcação, acrescentou:

- Meu Padre, o vosso silêncio faz-me recear pelo Atouguia. Recomendai-o a Deus, porque se ele se perde vou sofrer um considerável prejuízo. Eu não tinha autorização para comprar aquele diamante; se ele se perde, perco eu o seu preço e outras despesas que tive de fazer.

- Farei o que desejais, meu amigo, respondeu simplesmente Xavier.

Algum tempo depois, jantando o- nosso Santo com Cosme Anes, lhe disse:

- Rendei mil graças a Deus, meu amigo; o vosso belo diamante está já em poder da rainha de Portugal.

Mais tarde, recebia Anes uma carta do capitão do Atouguia; ele mandava-lhe dizer que poucos dias antes de chegarem a descobrir as costas de Portugal, se abrira uma veia de água por baixo do mastro grande; o rombo era tão considerável, era tão iminente o perigo para toda a equipagem, que se falava já em abandonar o barco e lançarem-se ao mar. Cortara-se o mastro grande, receava-se que o navio sossobrasse antes de se poder salvar a maioria dos passageiros que queriam lançar-se todos por uma vez às embarcações...

Mas eis que repentinamente a água desaparece! Que prodígio seria este! A abertura é tão grande! Como se operou isto?!... Examina-se a parte aberta e ela estava de todo fechada por si mesma... e o Atouguia, não tendo mais que duas velas, navegava admiravelmente e podia desafiar o melhor navio da armada real! Chegou em muito bom estado ao porto de Lisboa e não parecia ter sofrido; nenhuma avaria se dera também na sua rica carregação.

O Padre Xavier deixara Cochim para ir reunir-se armada portuguesa em Nagapatão, em um navio que tocava a ilha da Vaca; desembarcou ali e percorreu o interior da ilha. Encontrou uma família chorando inconsolável a morte duma criança cujos tristes despojos iam ser entregues à terra.

Aquela dor comoveu o nosso Santo; ele consola a família banhada em lágrimas, sabe que é muçulmana e ordena à criança morta que ressuscite em nome de Jesus Cristo Filho de Deus; a criança ressuscita àquele nome.

O apóstolo não tem tempo de instruir aquele povo; porém deixando-lhe a lembrança do prodígio, espera pelo futuro e volta ao mar implorando a misericórdia infinita para aquele povo, que não tivera tempo de evangelizar.

Passando à vista da ilha de Manar, pediu para ali se demorar alguns dias. Logo que desembarcou naquela terra ensopada do sangue de tantos mártires, dirigiu-se à povoação de Passim... Toda a ilha estava infestada pela peste. Quando viram chegar o grande Padre, que tanto amavam já sem o conhecerem, os consternados Manarenses recuperam a coragem, convencidos de que o bom Padre não os deixará sem os ter livrado do horroroso flagelo. Expedem emissários para todas as aldeias vizinhas com o fim de anunciar a chegada do grande Padre dos Paravás, e imediatamente todos os válidos, que excediam ao número de três mil, correm a cercar Francisco Xavier.

- Grande Padre! exclamam eles, livrai-nos da peste! Grande Padre, tudo morre aqui! Contam-se mais de cem mortos por dia! Grande Padre, livrai-nos

- A vossa dor corta-me o coração, meus queridos Manarenses, respondeu-lhes Xavier! Sim, eu vou pedir a Deus, que é o Todo-Poderoso, e cuja bondade e misericórdia são infinitas, que vos livre deste flagelo pelos merecimentos de Jesus Cristo seu Filho, e pelos dos mártires de Manar que vão também orar por vós., Esperai! Eu vos peço que espereis somente três dias. Orai também, orai ao Deus das misericórdias infinitas que tenha piedade de vós, e tende confiança.

Ao terceiro dia a peste cessou, todos os doentes se viram instantaneamente curados e à mesma hora. Tudo quanto restava de pagãos na ilha de Manar pediu o batismo com instância, não obstante a perseguição aberta contra os cristãos. O Santo apóstolo, depois de os ter baptizado a todos, deixou-os, para voltar à armada naval onde era esperado.

Quando chegou a Nagapatão, teve o desgosto de saber que a armada recusava atacar o rei de Jafanapatão. Um navio português, ricamente carregado que vinha do Pegu, naufragara na costa de jafanapatão; o rei estava de posse da preciosa carregação, e os mercadores portugueses, persuadidos de que não obteriam nada, se a armada começasse as hostilidades, combinaram-se a seduzir os oficiais a preço de ouro, e estes recusavam-se ao ataque ordenado pelo vice-rei.

Xavier viu nisto oposição da Providência ao plano que formara; renunciou também a ele e tornou a embarcar para voltar a Travancor. Passando em frente da ilha de Ceilão, lançou sobre ela um triste olhar.

"Ah! desgraçada ilha, disse ele, vejo-te coberta de cadáveres! Rios de sangue te banham por todos os lados"!

Algum tempo depois, D. Constantino de Bragança, e depois dele D. Furtado de Mendonça, faziam passar a fio de espada todos os habitantes da ilha, e o tirano que reinava em Jafanapatão e seu filho foram desapiedadamente massacrados.

O vento, constantemente contrário, forçou o nosso Santo a voltar para Nagapatão. Durante aquela penosa viagem soube que os insulares de Macassar anelavam ansiosos pelo momento em que lhes fosse permitido ouvir-lhe pregar o Evangelho, de que eles não tinham senão uma idéia muito confusa, levada para ali por~um mercador português.

A esta nova, exalta-se o zelo do grande apóstolo, que resolve partir no mesmo instante para Macassar, a fim de aproveitar a ocasião duma tão rica colheita, que, dizia ele, não supunha tão fácil; mas carecia antes de tudo de consultar a vontade de Deus.

Na sua chegada a Nagapatão, encontrou Miguel Ferreira que acabava de fretar o seu navio, e que se achava prestes a partir para Meliapor. Xavier aproveita esta circunstância e embarca com ele a 29 de Março, domingo de Ramos, com o fim de ir implorar as luzes divinas junto do túmulo de S. Tomé.

O vento, então favorável, nas costas de Coromandel mudou repentinamente, e obrigou-os a ancorar próximo dum promontório; sete dias decorreram à espera do momento em que pudessem, sem perigo, ganhar o alto mar. O admirável Santo conservou-se por aqueles sete dias em contínua contemplação e sem tornar o mais ligeiro alimento.

No Sábado Santo, somente, a pedido de Diogo Madeira, anuiu em beber um pouco de água, na qual pediu que se fizesse cozer uma cebola. Este facto foi atestado por todo os passageiros.

Naquele mesmo dia, q. de Abril, tornando-se melhor o tempo, puderam levantar âncora e voltar ao mar:

- Capitão, o vosso navio é bastante forte para resistir a uma violenta tempestade? perguntou Xavier.

- Oh! não, santo Padre; é, ao contrário, um velho barco; porém eu não o exponho nunca quando o tempo não está seguro.

- É necessário, pois, tornar a ganhar o porto, senhor.

- Oh! Padre Francisco! como, pois, tendes vós medo com um tempo assim? Eu iria a Meliapor em uma cascazinha de noz com um vento como este.

- Não vos fieis nisso, capitão, poderíeis enganar-vos!

- Meu Padre, olhai para este belo céu, nunca vi melhor tempo para o mar, eu conheço-o; a mais frágil barca estaria em segurança com este vento. Nada temais, Padre Francisco! Confiai em mim, que sou um velho homem do mar. Vós chegareis a salvamento.

Xavier não insistiu mais; além disto os passageiros recusavam voltar ao ancoradouro que haviam deixado. Mas no mesmo instante o mar mostra-se agitado; um ponto negro se apresenta no horizonte; avança e sobe ràpidamente, e o navio, jogando em todos os sentidos, ameaça sossobrar, quando uma violenta rajada de vento, retrocedendo-o com uma força prodigiosa , o lança precisamente na rada de Nagapatão, de onde haviam partido.

Imagine-se o pesar do capitão e da equipagem, ao recordarem-se que nenhum de entre eles atendera as advertências do santo Padre.

Xavier tinha de fazer a sua peregrinação ao túmulo do primeiro apóstolo das Índias; para evitar novas demoras, tomou o partido de fazer a viagem por terra e a pé, não obstante a distância e as dificuldades dos caminhos.