X. EM MELIAPOR - ACONTECIMENTOS PRODIGIOSOS - EMBARCA PARA MALACA

Toda a cidade de Meliapor conhecia pela reputação o nosso Santo; causou por isso um movimento geral a sua chegada ali. Gaspar Coelho, vigário da paróquia de S. Tomé, veio pedir-lhe instantemente que aceitasse a sua casa e não teve dificuldade em o conseguir, porque o presbitério se achava ligado à igreja onde estava o túmulo do primeiro apóstolo das Índias, e Xavier lembrou-se que poderia ali passar uma parte das noites.

Reclamavam já o seu ministério, e com o zelo que lhe conhecemos, previa ele já que os seus dias seriam absorvidos pelos trabalhos apostólicos, em vista do deplorável estado de relaxação de costumes em que se achava a cidade de Meliapor.

Logo nos primeiros dias da chegada, fez ouvir a sua poderosa voz sempre abençoada, sempre apoiada pela mais eminente santidade de vida, e logo também nos primeiros dias viu-se cercado dum grande número de pecadores que a sua palavra havia esclarecido e convertido.

A exaltação do povo chegou a ponto de se propalar o boato de que todos aqueles que resistissem às exortações do santo Padre morreriam como réprobos; citavam-se até exemplos horrorosos, e o número de pecadores crescia em torno do santo Padre para ouvir as suas prédicas, para aliviar a sua consciência e para procurar a paz da alma a fim de serem admitidos à graça de Deus.

Alguns pecadores, contudo, - mas em mui pequeno número-, evitavam ver e ouvir o santo Padre, a quem ninguém resistia.

Um deles, rico fidalgo português, cujas devassidões eram o maior escândalo da cidade, fugia de Xavier com tanto maior cuidado, quanto mais conhecido ele se tornava. Um dia, no momento em que ia à mesa do jantar, o Padre Xavier apresentou-se em sua casa

- D. Jacinto, lhe disse ele afavelmente, desde a minha chegada, aqui, desejo ver-vos e não vos encontro em parte alguma!

- Meu Padre...

- Eu tenho pouco tempo de meu, não posso fazer visitas e venho pedir-vos de jantar; aceitais-me, não é assim? Não achei outro meio de vos ver.

- Certamente... meu Padre... é uma grande honra para mim, balbuciou D. Jacinto.

Xavier foi amável, insinuante, jovial, espirituoso, atraente como o era sempre que a glória de Deus e a salvação duma alma o chamava, porém não falou absolutamente nada ao seu hospedeiro dos escândalos da sua culpável vida.

Jacinto via-se confundido. Perguntava a si mesmo como era que um Santo como o Padre Xavier, que nunca deixava escapar uma só ocasião de conquistar uma alma, e que buscava os pecadores com tamanhas fadigas e. um tão ardente zelo, não lhe dissesse uma palavra sequer com relação à sua consciência. A sua admiração cresceu ainda quando viu que o amável Santo o deixava e se retirava com a mesma afabilidade que mostrara à chegada.

Então operou-se na sua alma uma perturbação inexplicável; Jacinto, oprimido pelo pensamento de que o apóstolo havia julgado inútil ocupar-se da sua salvação, porque o supunha incorrigível, não gozou um só instante mais de repouso, e resolveu-se a ir procurar o santo Padre.

- Meu Padre, lhe disse ele, o vosso silêncio confundiu-me! Será porque me olheis como um réprobo que nunca obterá o perdão dos seus pecados?

- Certamente que não, caro senhor. E porque razão? - Viestes a aninha casa, meu Padre, e nem uma palavra me dissestes com respeito à minha consciência!...

- Ah! vós não me teríeis escutado! Preferi guardar silêncio...

- Oh! meu bom Padre, foi este silêncio que me perturbou. Não tenho tido um só momento de descanso depois da vossa visita; sou o mais desgraçado dos homens! Se é tempo ainda, -meu caríssimo Padre Francisco, não me abandoneis!

- Sempre é tempo de recorrer à misericórdia infinita de Deus, querido senhor; porém vós tendes grandes sacrifícios a fazer para pôr em ordem a vossa consciência...

- Farei tudo que quiserdes, meu bom Padre! Tudo sacrificarei, obedecer-vos-ei cegamente, uma vez que não desespereis da minha salvação.

O Santo ouviu-lhe uma confissão geral, e Jacinto completamente regenerado na sua vida, veio a ser um fervoroso e exemplar cristão.

Os prodígios acompanhavam por toda a parte o grande Xavier. Bento Cabral, mercador português em Meliapor, achando-se de partida para Malaca, foi pedir-lhe a sua bênção e suplicar-lhe que lhe desse em lembrança um objecto qualquer que ele pudesse conservar.

- Eu nada tenho, respondeu-lhe o humilde Santo; não vos posso dar mais que este rosário, que vos será útil, se tendes confiança em Maria.

Bento embarcou e o seu navio quebrou-se contra um rochedo; todos os passageiros e a maior parte dos marinheiros desapareceram submergidos, e os outros salvaram-se sobre uma rocha à flor da água; o mercador está entre eles com o seu rosário na mão. Eles reúnem algumas pranchas, restos do navio quebrado, e lançam-se nelas à mercê da Providência!

O nosso mercador não largava o seu rosário; invoca a Estrela do Mar, oferece os, méritos do santo Padre Xavier e perde o sentimento e o conhecimento da sua situação. Não supõe que se acha no mar, supõe-se em Meliapor junto do santo Padre, julga estar a falar-lhe e a ouvi-lo... E eis que de repente torna a si... Vê-se em terra, sobre uma costa que lhe parece desconhecida e cujo nome pergunta aos estranhos que o cercam, porque os marinheiros, seus companheiros de infortúnio, não estão a seu lado. Respondem-lhe que está 'em Nagapatão, e ele publica, com todo 0 entusiasmo do seu elevado reconhecimento, a maneira milagrosa como foi salvo das ondas.

O navio de Jerónimo Fernandes de Mendonça fazia toda a sua fortuna, e aquele navio foi aprisionado pelos corsários do- Malabar em frente do cabo Comorim. Jerónimo, para salvar a sua vida, lança-se ao mar, ganha, a nado, a costa de Meliapor e ali encontra o santo Padre a quem expõe a sua cruel situação.

- Se eu pudesse lastimar-me por ser pobre, respondeu-lhe o caritativo apóstolo, lastimá-lo-ia neste momento! Mas tende coragem, meu caro amigo! A divina Providência não vos abandonará, ela virá em vosso auxílio.

Dizendo isto, o Padre Xavier revolvia a sua algibeira, e como penalisado de nada achar nela, dirigiu um olhar suplicante para o Céu e afastou-se alguns passos orando. Torna a meter a mão na algibeira, e voltando-se para Jerónimo, diz-lhe:

- Caro senhor, tomai isto, o Céu vo-lo envia, aceitai, mas não digais nada a ninguém!

E dava-lhe cinquenta ducados de oiro. Jerónimo Fernandes, ébrio de alegria, por ter com que restabelecer os seus negócios e por ser devedor daquela fortuna a um milagre da Providência, empenhou-se em o fazer publicar, não obstante a oposição do santo Padre. Deus quis que o prodígio não pudesse ser contestado, porque aquelas peças de oiro foram reconhecidas como de uma matéria mais pura e de maior valor que a de todas as moedas em circulação nas Índias.

A grande santidade de Xavier produzia em Meliapor tão salutar fruto como a sua palavra, e a cidade inteira reformava-se com um empenho bem consolador para o coração do apóstolo amado de Deus.

Uma das mais satisfatórias conversões para ele, foi a de João de Eiro que depois de haver servido na armada portuguesa, se enriquecera no comércio das Índias, conquanto não tivesse ainda senão trinta e cinco anos. Veio um dia procurar o santa Padre e disse-lhe:

- Meu Padre, venho comunicar-vos um pensamento que me preocupa há muitos dias. Eu desejava servir a Deus o mais completamente possível, mas a pobreza aterra-me; permiti, pois, que me una a vós, que vos acompanhe por toda a parte, e que tome parte em todos os vossos cuidados; eu vos auxiliarei da melhor vontade nas vossas missões.

- Não está nisto a perfeição evangélica, respondeu-lhe Xavier. Lembrai-vos do conselho dado por Nosso Senhor Jesus Cristo ao jovem do Evangelho que lhe perguntou o que deveria fazer para ser perfeito: Se quereis ser perfeito, lhe disse o divino Salvador, vendei tudo quanto tendes e dai o seu valor aos pobres.

- Pois bem, meu Padre, dar-vos-ei tudo que tenho e vós o dareis aos pobres.

- Não é também desse modo que isto se deve levar à execução. Examinai primeiramente a maneira como vos enriquecestes nos vossos negócios. Pode acontecer que encontreis algumas restituições necessárias; preparai-vos a fazer uma boa confissão geral, e com a vossa consciência purificada por esta confissão e pelas restituições, obtereis mais facilmente a graça de conhecer a vontade de Deus para convosco.

João de Eiro submeteu-se à direção de Xavier; mas bem depressa a pobreza tornando-se-lhe intolerável, fretou misteriosamente uma pequena embarcação e dispunha-se a partir, às ocultas do santo Padre, a fim de recomeçar as suas empresas comerciais, quando o catequista Antônio veio ter com ele e disse-lhe

- Senhor João, vinde depressa falar ao Padre Francisco; ele espera-vos.

- Enganais-vos, Antônio; é algum outro João que o Padre procura, não pode ser comigo.

- Sois vós mesmo, por que ele me disse: João de Eiro; é urgente, vinde depressa!

Ei-lo, algum tanto desconcertado, e temendo que o Santo, sempre esclarecido por Deus, conhecesse já o seu plano secreto satisfez ao chamamento que lhe era feito.

- Vós pecastes! disse-lhe Xavier, logo que o viu.

- É verdade, é verdade, meu caro Padre! pequei; cedi a uma violenta tentação de voltar ao meu comércio!

- Penitência, pois, meu amigo, penitência! lhe respondeu o apóstolo levantando-o e abraçando-o.

Porque Eiro, não podendo sustentar a suavidade e a penetração do angélico olhar de Xavier, se prostrara a seus pés. Rendeu-se de todo contrito da sua falta, confessou-se, tratou em seguida de vender tudo quanto possuía, deu toda a sua importância aos pobres, reuniu-se ao santo Padre, e o seguiu na qualidade de seu catequista. Antes de largar Meliapor, onde ia deixar tão gratas recordações, escrevia o nosso Santo à Companhia de Jesus, em Goa, a 8 de Maio de 1545:

"...Opondo-se os ventos à minha volta, fui para Meliapor. Ali, sobre o túmulo do santo Apóstolo não cessei de pedir a Deus, por sua intercessão, para que me faça conhecer a sua divina vontade, à qual estou resolvido a ser fiel, com o auxílio da sua graça, por qualquer preço que seja Aquede que dá o desejo, dá os meios de o cumprir. Deus, na sua infinita misericórdia, lembrou-se do seu indigno servo, pois que eu sinto repentinamente a alma expandida pela alegria, o coração inundado de delícias, e reconheci que Deus me chamava a Malaca e dali para Macassar...

O Padre Francisco Maneias está em Comorim com alguns Padres do Malabar; o seu zelo é tal, que a minha presença ali é inútil. Os Padres que têm passado a estação das chuvas em Moçambique e aqueles que vieram neste ano de Portugal, poderão ir para Ceilão com os príncipes e senhores daquele país, que para ali voltam.

Quanto a mim dirigir-me-ei para Macassar, com a esperança de que Deus protegerá a minha coagem, pois que foi ele que me inspirou esta resolução, e que em prova de que é de seu agrado encheu a minha alma duma abundância de delícias!

Estou tão convencido da vontade de Deus, que se eu retardasse a execução deste projecto, somente por alguns instantes, julgar-me-ia em guerra aberta com o Céu!

Não me atreveria a esperar mais nada da sua soberana bondade, nem nesta vida, nem na outra. Assim, na falta de navio mercante português, acho-me decidido a embarcar em um barco de pagãos ou Sarracenos.

Tenho tão grande confiança em Deus, cujo amor somente para ali me leva, que sem hesitar, com o único bafejo do Espírito Santo, afrontei todas as tempestades do Oceano na mais débil barca. As minhas esperanças não se acham ligadas nem às velas, nem às âncoras, nem aos marinheiros. Deus unicamente! eis o meu piloto, eis a minha âncora de misericórdia e de salvação!

Ah! meus queridos irmãos, orai, orai constantemente por mim, miserável pecador! Não me esqueçais nas vossas orações diárias, nos vossos santos sacrifícios; recomendai-me a este Deus tão cheio de bondade! É em seu nome que eu vos rogo...".

O que poderíamos dizer do zelo do nosso admirável apóstolo que não estivesse muito abaixo desta ardente e magnífica expansão da sua alma?!...

Ele não pôde partir tão depressa como desejava, e conservou-se em Meliapor até aos princípios de Setembro, e só então embarcou para Malaca, deixando em lágrimas a população que acabava de reformar, e cuja vida se tornara tão edificante, que ao deixar a cidade disse:

"Meliapor é uma cidade das mais cristãs; Deus a abençoará: em poucos anos ela virá a ser uma das mais ricas e florescentes cidades de toda as Índias!"

E aquela predição cumpriu-se, poucos anos depois.