ITÁLIA- PORTUGAL

Novembro, 1536 - Abril, 1541


I. DE PARIS A VENEZA - MORTIFICAÇÃO E VENCIMENTO PRÓPRIO

Tinha-se, combinado, como já fica dito, que os discípulos de Inácio se reuniriam em Veneza, nos primeiros dias do ano de 1537. Nessa data era já o seu número mais crescido.

Arrastados pelo poder do exemplo, três mancebos, igualmente distintos nas Ciências, e notáveis pelos seus merecimentos pessoais, haviam-se incorporado aos nossos ferventes religiosos com a resolução firme de partilharem da mesma vida de pobreza, humildade, obediência e devoção. Eram dois padres, Cláudio Lejay e Estêvão Brouet, e um secular, João Codure. Todos três haviam feito iguais votos em dia da festa da Assunção de Maria, e Xavier e seus irmãos renovaram os seus na mesma ocasião.

Partiram, pois, com destino a Veneza, em número de nove: Francisco Xavier, Pedro Fabro, Diogo Laynez, Afonso Salmeron, Simão Rodrigues, Nicolau Bobadilha, Cláudio Lejay, Estêvão Brouet e João Codure. Puseram-se a carrinho a 15 de Novembro de 1536, vestidos de longas batinas, levando cada um o seu bastão na mão, o breviário debaixo do braço e o rosário pendente exteriormente sobre o peito, com o fim mostrarem, nos países protestantes que tinham de atravessar, a sua dedicação à religião católica; levavam às costas pequenos malotes com alguns livros e manuscritos.

Empreenderam a jornada a pé, esmolando pelo caminho, e porque a guerra com Carlos V tornava impraticável uma grande parte da fronteira, viram-se na necessidade de alongarem muito mais o seu itinerário, passando pela Lorena, seguindo pela Alemanha e atravessando pela Suíça para alcançarem a Itália.

Xavier, que se considerava feliz por ver realizado aquilo que o seu zelo e fervor religioso tanto desejara, seguia corajosamente seus irmãos, havia já muitos dias, quando repentinamente lhes declarou, com a mais pungente tristeza, que não os podia acompanhar por que se não sentia com forças de prosseguir mais para diante:

- Porque motoro? perguntaram-lhe os outros imediatamente. Estais doente, não é assim?

- Sim... é verdade...

- E não há que duvidar, disse Fabro, que o conhecia mais de perto; o vosso semblante denuncia grandes sofrimentos. Que tendes?

- Tenho alguma febre... e conheço que não posso, andar mais... Continuai, meus amigos, a jornada sem mim... eu vos alcançarei em breve.

- Que vos deixemos aqui! que vos abandonemos! Por certo que não. Deve haver nesta aldeia, ou nas suas proximidades, um médico; recorreremos a ele para vos tratar e não vos deixaremos.

- À palavra médico, Francisco empalideceu e dirigindo ao seu amigo um olhar suplicante, disse-lhe:

- Oh! não, imploro-vos que me deixeis aqui e partais.

Fabro, porém, insistiu, e Xavier viu-se forçado a confessar toda a verdade àquele que possuía, há muito, toda a sua confiança. Eis o que ele veio a saber.

Que um dos maiores prazeres de Xavier, nos seus passados tempos de infância, eram as corridas e outros exercícios do corpo, nos quais se tornava notável e causava admiração, pela grande agilidade e graça dos seus movimentos. Era tão destro em todos os exercícios ginásticos, e executava-os com tal destreza e perfeição, e isto junto à sua natural elegância e notável beleza, produzia um tal entusiasmo nos espectadores, que o levaram a comprazer-se com aquele gênero de divertimento, orgulhando-se dos aplausos que recebia.

Esta vaidade foi amargamente lamentada por Francisco, desde que compreendera a ilusão dela, e no desejo de a expiar imaginou ligar fortemente as pernas, até acima dos joelhos, com rijos cordéis e por tal modo, que depois de alguns dias de jornada, lhe produziram tão grande inchação que encobria completamente as ligaduras já enterradas na carne. O jovem Santo sofrera até ali com a maior resignação aquela tão dolorosa tortura, sem que nenhum dos seus irmãos e companheiros suspeitassem o suplício que sé impunha.

Fabro comunicou imediatamente aos seus companheiros esta triste descoberta; transportaram o querido doente até à aldeia mais próxima e chamaram um cirurgião que declarou desde logo ser a operação impraticável.

- Só Deus, disse ele, pode evitar os funestos resultados que devem sobrevir, tendo em atenção a causa porque o sacrifício foi feito. Tentar retirar as ligaduras, é expor o doente a morrer durante a operação.

Xavier, cheio de confiança na bondade infinita, e certo de que ela não permitiria que ele servisse de obstáculo à pronta partida dos seus irmãos, rogou-lhes que suplicassem a Deus esta prova da sua proteção à empresa encetada.

- O cirurgião tem razão, disse ele, é necessário pedir a Deus que me livre; Ele o fará, tenho nisso toda a confiança.

No mesmo instante todos se entregaram à oração; era quase noite. O doente dormiu e teve um sono tranqüilo; na manhã seguinte viu-se que as ligaduras tinham caído por si em pequenos fragmentos, a inchação. havia desaparecido de todo, extinguira-se a inflamação, os cordéis não tinham deixado o menor vestígio sobre a pele, e Xavier sentia-se cheio de saúde.

Depois de fervorosas orações em ação de graças, puseram-se de novo a caminho. A passagem dos nossos peregrinos pela Alemanha não foi isenta de perigos.

Os heréticos, reconhecendo a sua ortodoxia pelo rosário que ostensivamente levavam, apupavam-nos com ultrajes e ameaças. A Providência, porém, que por eles velava, mimava-os a suportai todas estas provas sem se lastimarem, e ate agradecendo do fundo do coração e pedindo a Deus a conversão destes pobres desgarrados; graças a esta proteção divina, chegaram salvos a Veneza a 8 de janeiro de 1537.

O seu santo mestre recebeu-os com lágrimas de ternura e bondade paternal. Desejava que os seus amados discípulos fossem apresentados ao Sumo Pontífice antes de partirem para a Palestina; porém a viagem para Roma não podia também ser desde logo efectuada, e nesta contrariedade distribuiu-os pelos diversos hospitais de Veneza, cabendo o dos incuráveis a Xavier.

Para se poder avaliar os progressos que o nosso Santo havia já feito, sob a direção de Santo Inácio, recordemo-nos do que ele era no colégio de Santa Bárbara, quatro anos antes, e vejamo-lo agora no hospital dos incuráveis, quando lhe disseram que existia, numa sala vizinha, um doente com uma úlcera tão repugnante, que era necessário uma coragem sobre-humana para se poder aproximar dele.

Nunca, até então, o elegante Francisco pudera ver uma úlcera; tinha por esta espécie de doença um tal horror instintivo, que o fazia fugir imediatamente; porém era já, outro, tornara-se um homem novo; via-se por tal modo transformado que ouvindo falar do doente, que todos evitavam, o seu semblante irradiou-se de alegria.

Reconhece que era esta a ocasião de vencer uma repugnância que lhe parecia invencível, mas da qual esperava triunfar com o auxílio de Deus.

O seu presado mestre, D. Ínigo, muitas vezes lhe dissera:

"Francisco, lembrai-vos que se não adianta no caminho da virtude, senão quando se tenha triunfado de si próprio! É tão rara a ocasião para um grande sacrifício, que não se deve deixar escapar!"

Era esta, pois, para Xavier uma daquelas ocasiões que ele não devia deixar passar. Pediu para ver o doente; aproximou-se imediatamente dele, cheio de força e de coragem... Porém o cheiro que exalava e ele sentia, fez-lhe tal repugnância que lhe _pausou uma grande comoção e vacilou nauseado!... Era chegado o momento de triunfar de si mesmo para dar um passo mais na renda da virtude, segundo a máxima do seu santo amigo.

Firme neste pensamento, vai desenvolver toda a generosidade do seu caráter: por maior que seja o sacrifício ele o fará.

Xavier cai de joelhos ao lado do doente, abraça-o carinhosamente, fala-lhe de Deus, consola-o e anima-o, em mau italiano, é verdade, mas com tão caridosa expressão que se tornou muito mais eloqüente do que o poderia ser na mais apurada linguagem. Descobre imediatamente o membro ulcerado... A repugnância cresceu!... Porém o jovem Santo quer triunfar a todo o preço, porque sabe que o combate se dá sob as vistas de Deus!

Aproxima o seu belo rosto do membro purulento e empalidece... a natureza revolta-se... Xavier sente-se desfalecer... Apressa-se, por isso, a levar os seus lábios para a hedionda chaga! Beija-a! e para ir mais longe... chupa-a!!!

Deus esperava esta última vitória.

Xavier considera-se então mais feliz por ter triunfado de si, do que havia sido até ali pelos seus brilhantes feitos do mundo.

Por este único traço da sua vida, se pode julgar do emprego que ele deu ao seu zelo, à sua caridade, e á sua mortificação durante as seis semanas que viveu neste lugar de sofrimentos. Enfermeiro e servente dos doentes pobres, preferia desempenhar os serviços mais vis, julgando-se feliz por expiar com aqueles exercícios de caridade, sem glória aos olhos dos homens, a vaidade que de contínuo lhe remordia a consciência.

Não era sem luta que ele.dominava as suas repulsões naturais. Julgava-se nobremente vencedor pelos bons resultados que obtivera; porém ficava-lhe ainda uma repugnância a subjugar: a vista dum cadáver fazia-lhe mal, e deles procurou fugir sempre... mas conseguiu ainda mais este sacrifício, aproximando-se e amortalhando todos os cadáveres dos pobres que morreram naquele hospital, durante a sua residência ali.

Queria triunfar completamente de si; procurava aproveitar todas as ocasiões de se sacrificar, a fim de avançar dia a dia pelo caminho da virtude.

Os doentes afeiçoaram-se desde logo aos desvelos e cuidados de Francisco Xavier; até então nunca haviam experimentado cuidados tão cheios de doçura e de afecto.

Ele dispunha de lenitivos para todos os sofrimentos, ânimo para todos os pesares, palavras meigas e consoladoras para todas as dores, e, finalmente, duma caridade evangélica. para todos, fazendo-os amar com o mais notável desinteresse.

"Que virá a ser de nós, diziam os doentes, se tivermos a desgraça de o ver deixar o hospital?!...".

Infelizes e pobres doentes