VII. MIGUEL NAVARRO - EMISSÁRIO DO INFERNO - CARTA DE XAVIER A SEU IRMÃO

Xavier já não pertencia a si; havia-se dado inteiramente a Deus, dedicara-se de todo ao seu serviço e à salvação das almas, e dali em diante todos os instantes da sua vida iam ser exclusivamente empregados no cumprimento deste duplo voto.

Vivendo sempre em companhia de Inácio e de Fabro, aperfeiçoara-se naquela escola, seguindo os conselhos e a direção do seu santo mestre com a docilidade de uma criança c com a humildade do mais perfeito religioso.

No ano seguinte, 1535, devendo Inácio fazer uma viagem a Espanha, ficou convencionado que Xavier lhe daria amplos poderes para regular os seus negócios de família e do seu interesse porque receava-se que os irmãos do nosso jovem Santo o impedissem de voltar, se ele em pessoa fosse vê-los e fazer suas despedidas. Mas Satanás havia tomado a vanguarda.

Miguel Navarro, por um momento aterrado pelo maravilhoso obstáculo que a Providência opusera à sua primeira tentativa de vingança, voltava bem depressa aos seus antigos sentimentos de ódio e de baixa inveja.

Xavier não ocultava, por modo algum, a transformação suas idéias, vistas e ambições. Guardava unicamente segredo com respeito aos votos que fizera, e convencia-se de que o da pobreza não seria obrigatório na prática exterior, senão depois de concluídos os estudos teológicos.

Miguel seguia de longe os progressos daquele que Santo Inácio lhe arrancara, e depois de ter procurado todos os meios de o tirar das suas mãos, julgou ter encontrado o melhor e apressou-se a pô-lo em prática.

Partiu para Navarra, foi ao castelo de Obanos, onde habitava o capitão D. João de Azpilcueta, irmão mais velho de Francisco, e em termos os mais persuasíveis para mostrar o interesse que o animava, apresentou-lhe Xavier inteiramente ligado a um miserável herético acusado de sortilégio e magia, e fez ver que ainda era tempo de chamar Francisco para o grêmio de sua família se quisesse salvar a sua honra e a sua vida.

Francisco acabava de saber desta infame calúnia nas vésperas da partida de Inácio para Espanha, e então não quis perder esta ocasião de escrever ao seu irmão mais velho sobre este assunto; este longo fragmento da sua carta dará completa idéia do nobre caráter e do grandioso coração de Xavier, assim como da consideração -que ele tinha pelo seu querido mestre.

Ao Capitão João de Azpilcueta, no Castelo de Obanos:

Paris, 25 de Março de 1535.

"...Não deixo partir pessoa alguma para a Espanha sem a encarregar de uma carta minha para vós, senhor; porém tenho todo o fundamento para supor que estes testemunhos da minha amizade não vos chegam à mão com exactidão.

Sei que é imensa a distância de Paris a Obanos, que as dificuldades dos caminhos aumentam as das comunicações, e julgo que é esta a causa de me ver privado de vossas notícias com a frequência que eu desejo. É, sem dúvida, este o único obstáculo que embaraça as nossas relações, tão caras ao vosso coração como são ao meu.

Se eu não tivesse recebido tantas provas e tão convincentes da vossa afetuosa solicitude por mim, não atribuiria senão a negligência de alguns mensageiros e à impossibilidade em que se vêm os outros, em satisfazer os nossos desejos. Reconheço pelas provas de amizade que de vós tenho recebido, assim como pelo que vários dos nossos amigos me têm dito, a grande parte o interesse que tomais nos trabalhos e vicissitudes por que tenho passado neste solo estrangeiro.

Sei que na vossa aprazível residência de Obanos onde gozais de todos os bens de fortuna, tomais um vivo interesse pela penosa posição em que me vejo muitas vezes, na vida trabalhosa e de estudos a que me dedico com tanto ardor.

Conheço que se me falta muitas vezes o necessário, esta privação não é imposta ao vosso irmão senão por motivos independentes da vossa vontade.

É provável que não estejais suficientemente informado das necessidades tão multiplicadas da minha posição em Paris cuja narração seria infinitamente longa e para mim duma dolorosa amargura. Porém, tudo suporto, sustentado na confiança íntima que tenho da vossa bondade para comigo; não duvido que no momento em que tivésseis conhecimento das minhas variadas necessidades, apressar-vos-íeis em providenciar generosamente [18], proporcionando todos os melhoramentos possíveis a uma vida demasiadamente restrita e mortificada.

Encontrei-me há poucos dias com o R. P. F. recentemente chegado a Paris para cursar os estudos da Universidade. Falámos de vós, senhor, muito detidamente e tanto quanto me podia satisfazer naquele momento, porém, no correr da conversação, ele deixou-me perceber as queixas graves que pessoas mal intencionadas vos fizeram contra mim, e sendo instantemente rogado, contou-me com minuciosidade toda a verdade. Se me acreditardes convencer-vos-eis que tudo quanto vos hão dito é falso; que são calúnias forjadas, com a mais odiosa perfídia, com perverso fim de desacreditar a vossos olhos este vosso infeliz irmão; teríeis então piedade dele, eu o sei, conhecendo que tem sido tão cruelmente vilipendiado pela mais execranda falsidade, e sentiríeis então toda a dor que o oprime.

Contudo eu vos afianço, irmão e senhor, que me penaliza menos esta difamação contra mim, do que o desgosto que deveis experimentar e que o sinto na minha alma. A vossa grande afeição por mim permite-me avaliar o doloroso golpe que esta tão horrível calúnia deve ter produzido no vosso nobre coração.

Estes infames impostores não recearam comprometer na sua vergonhosa calúnia, o mais perfeito, o mais santo de todos os homens, mestre Ínigo! Julgareis da pureza da sua vida e das suas intenções nesta viagem que ele vai fazer. Vai ter-se convosco no grêmio da vossa família: ele vos entregará esta carta em mão própria. Credes que se ele fosse tal como o odioso pincel da calúnia vos figurou, se não tivesse a mais plena, a mais justa confiança na sua inocência, iria entregar-se assim, e desarmado, à mercê daqueles que tão cruelmente o ofenderam? É porque não pretende por modo algum subtrair-se às suas vistas.

Demais, para anular a desagradável impressão que em vós causou, senhor, e para que possais apreciar a graça que Deus se dignou conceder-me, relacionando-me intimamente com o excelente mestre Ínigo, declaro-vos aqui solenemente, pela minha alma e minha consciência, e sob a firma da minha assinatura, declaro-vos a vós, senhor meu irmão mais velho, e que por tantos títulos mereceis o respeito e a ternura do meu coração, que sou devedor das maiores finezas a D. Ínigo, e que elas são de tal ordem que me considero incapaz de as recompensar como merecem.

Em ocasiões de falta de dinheiro em que me tenho visto muitas vezes, por causa da grande distância que nos separa a sua bolsa tem-me sido sempre aberta, e quando porventura ele não pudesse obsequiar-me com a sua, recorria, por minha causa, à de seus amigos.

Mas de todos os serviços de que lhe sou devedor, o mais precioso, o mais importante, é o cuidado com que ele tem preservado a minha inexperiente mocidade dos perigos deploráveis a que me tenho visto arrastado pela convivência de homens que não respiram senão a heresia[19], e que infeccionam atualmente toda a cidade de Paris.

Estes desgraçados ocultam a corrupção da sua fé.e dos seus costumes, sob a máscara sedutora do seu espírito, dum falso amor pela humanidade, e de algumas outras virtudes hipócritas.

D. Ínigo mostrou-me e provou-me as armadilhas perniciosas com que a fingida amizade desses homens me procuravam seduzir por todos os modos, confiados na minha inexperiência; foi ele que me pôs tudo a descoberto. Assim afastou de mim tantas e tão grandes desgraças, beneficiando-me por tal modo, que não poderia recompensar-lhe nem pelo preço do Universo inteiro, se possível me fosse. Sem o seu auxílio ser-me-ia impossível livrar-me da intimidade desses mancebos que, sob uma aparência sedutora, possuem corações purulentos de heresia e cheios de perfídia; os factos mo têm provado...

Eu vos rogo, eu vos imploro, senhor meu irmão, que recebais mestre migo com toda a ternura que o vosso coração me dedica, dispensai-lhe todos os obséquios que por mim teríeis feito se para aí fosse; que aquele a quem me confesso o mais agradecido dos homens, receba de vós todas as finezas e todo o agasalho que eu teria direito de esperar da vossa amizade. Eis aqui, pois, o pedido que vos dirijo em meu interesse, e eis aquele que agora vou fazer pelo vosso.

Aproveitai a ocasião de gozar da proveitosa companhia deste sábio por excelência, a quem Deus aprouve adornar e encher de dotes os mais preciosos; dai-lhe o mais íntimo conhecimento dos projetos que tendes em vista. As suas observações, os seus conselhos, são sempre ditados pela sabedoria e pela prudência, e deles tirareis grande proveito e bem agradáveis consolações, eu o asseguro e peço-vos que acrediteis na minha experiência.

Podeis abrir-lhe os vossos pesares, os vossos desgostas, os vossos escrúpulos, se os tendes, e faiei o que ele vos aconselhar. A experiência vos provará que eu não estou iludido na confiança que me inspira este homem eminente e tão em graça de Deus.

Quanto ao que me diz respeito, ele vos dará todas as notícias que podeis desejar, e que estimareis cheguem ao vosso conhecimento. Crede tudo quanto ele vos disser, como se o ouvísseis da minha própria boca, por isso que ninguém há melhor do que ele que conheça o fundo da minha alma; ele está senhor de todas as particularidades da minha vida privada; sabe avaliar, melhor do que eu, as minhas necessidades e pode informar-vos o modo como me podeis ser útil...

...Beijo respeitosamente, senhor, as vossas mãos e as da senhora minha cunhada e cara prima[20]. Fico rogando a Deus que vos encha de suas bênçãos, que vos conserve felizes e que ouça todas as orações das vossas piedosas e generosas almas. São estes os meus sinceros votos.

Vosso servo muito dedicado e vosso irmão mais novo,

Francisco Xavier".

Pelo estilo desta carta se conhece que é dirigida ao chefe da família.

Xavier tinha perdido seu pai; o seu irmão mais velho substituía-o. D. Madalena, sua irmã, havia já falecido também; D. Maria vivia ainda para chorar aqueles que perdera, e a ausência dos que a vontade de Deus conservava afastados de si, e entre estes o seu muito querido Francisco, que ela sabia ser "o vaso de eleição" destinado ao apostolado nas Índias...

Feliz!... e pobre mãe!...

O inferno ficou ainda por esta vez vencido ria pessoa de Miguel Navarro e de seus cúmplices.

A presença de Santo Inácio, a sua vida santa, os numerosos milagres que Deus concedia às suas orações, dissiparam pronta e completamente em Navarra as impressões produzidas pela calúnia, e no castelo de Obanos, como no de Xavier, agradecia-se a Deus pelas bênçãos e consolações, que para ali havia levado consigo o pai espiritual de Xavier.