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Todos os membros da nobre família de Azpilcueta de Asnarez se
achavam reunidos, havia alguns dias, no velho solar de Xavier,
berço de todos. Cada um deles havia recebido sob o seu tecto as
primeiras carícias e a primeira educação; cada um aí recebera,
mais tarde, a derradeira bênção e o último suspiro de um pai e de
uma mãe terreamente venerados, e todos gostavam de reunir-se ali
todos os anos com a companheira escolhida e os filhos que ela lhe dera.
Um somente faltava a essas agradáveis reuniões de família; um só
se achava sempre ausente, mas este era sempre amado de todos.
Demais, aquele que faltava, e cujo lugar vazio à mesa e no lar se
respeitava, não era ele o mais magnífico lustre da nobre e piedosa
família?
E tanto assim o consideravam, que todos se julgavam mais orgulhosos
pelo grande apóstolo das Índias e do Japão, do que pelos
antepassados cujos retratos e armaduras figuravam na grande galeria do
castelo. Era mesmo ele, o querido ausente, que não deviam tornar a
ver mais neste mundo, que dava lugar à reunião que nos ocupa,
reunião antecipada, porque corria o mês de Abril.
Mas, logo nos primeiros dias de Fevereiro de 1552, o castelão
de Xavier escrevera a seus irmãos, os quais uns estavam na corte e
outros rias suas terras, comunicando-lhes que um acontecimento
maravilhoso, ocorrido no solar, e que ele atribuía à grande
santidade do seu querido Francisco, lhe fazia desejar a presença
deles o mais cedo possível.
Logo que receberam esta mensagem, os irmãos combinaram-se por
cartas, e cada um providenciara para se achar no castelo de Xavier nos
primeiros dias de Abril, porque as viagens naquela época se faziam
por pequenas jornadas, gastando-se nelas muito tempo, mormente quando
se levava família.
Na sexta-feira da Paixão, achava-se reunida toda a família,
muito cedo, na capela, onde o capelão ia oferecer o santo
sacrifício. Todos tinham os olhos fixos no grande crucifixo de
madeira, de tamanho natural, de que já falámos, esse crucifixo que
D. Francisco adorara e que sua mãe venerava em memória daquele que
Deus, no seu amor de preferência, arrebatara à sua ternura
maternal.
De repente, muitos gritos se escapam ao mesmo tempo;... todas as
cabeças se inclinam;... só se ouviam soluços de todos os
lados... A maravilha renova-se!... Do crucifixo via-se correr
sangue.
Aquele milagre reproduzia-se todas as sextas-feiras; algumas vezes
até o sangue perolizava por todo o corpo, como um abundante suor, e
as chagas das mãos, dos pés e do coração escorriam em igual
abundância.
Esta maravilha manifestara-se pela primeira vez, na primeira
sexta-feira de janeiro; renovara-se na segunda, depois ainda na
terceira; preveniu-se a autoridade eclesiástica, e o arcebispo,
depois de ter sido testemunha do facto, chamara o inquisidor, o
governador da província, o comandante da cidadela e todas as mais
autoridades de Pamplona para o verificar; todos o haviam presenciado e
certificado. Era, pois, natural que o senhor de Xavier desejasse
que toda a sua família fosse testemunha daquele prodígio.
Entre as cartas de S. Francisco Xavier, nenhuma encontramos
dirigida a sua família durante todo o período do seu apostolado nas
Índias : mas não tivéssemos nós outras provas dos sentimentos que
por ela conservara senão o milagre do crucifixo, na capela do castelo
de seus pais, que esta seria mais que suficiente.
É convicção geral no mundo, que a vocação religiosa extingue com
seu sopro todas as afeições de família, e que aquele que se separa
dos seus para seguir a vereda pela qual é chamado nada tem a sacrificar
do seu lado. A ilusão é completa. Ternos ouvido dizer muitas
vezes, mesmo a pessoas religiosas:
"Sim, S. Francisco Xavier é seguramente um grande Santo; mas
ele recusou ver seus pais antes de partir para as Índias, e isto é
muito duro: Um filho não tem o direito de impor um tal sacrifício a
sua mãe! é contra a natureza!"
O que equivale a dizer que um filho, que ouve de um lado a voz de
Deus e do outro a voz de sua mãe, e não tem o direito de obedecer à
primeira; ou que Deus não tem o direito de pedir um sacrifício
heróico àquele que de todo se dedica ao seu serviço e à sua
glória.
Se o nosso Santo tivesse menos afeição a sua família, não teria
julgado dever oferecera Deus a privação de a tornar a ver por uma
última vez neste mundo. Aquela, sublime abnegação não é contra a
natureza; é sobrenatural, o que é bem diferente.
Os que julgam assim aquela heróica ação do generoso Xavier, não
leram por certo a sua correspondência. Não penetraram naquela alma
tão sensível e tão ternamente expansiva: não compreenderam aquele
coração que deixara verter tantas lágrimas pelos sofrimentos do
próximo, que achava tão doces consolações para todas as dores, que
tinha tão tenras caricias para a infância, que testemunhava uma tão
compassiva caridade por todas as misérias...
Não compreenderam aquele a quem os leprosos e os empestados chamavam
seu pai, seu amigo, seu consolados! aquele a quem os pobres beijavam
as mãos, porque a sua humildade não permitia deixar-lhes beijar os
pés!...
Mas Deus sabia tudo quanto o grande Xavier sofria por seu amor e pela
sua glória, e parecia querer testemunhar a toda a família do ilustre
Santo quão vivas e profundas eram as dores do seu laborioso
apostolado, e de que abundantes consolações ele se sustinha naquela
vida de imolação e de sublime dedicação pela glória de Deus e pela
salvação das almas. Deus queria patentear que compartia os
sofrimentos do heróico apóstolo, que afrontava todos os riscos,
desprezava tanto os perigos, suportava tantas fadigas por honra do seu
nome.
A família do nosso Santo assim o compreendeu: Ela tornou nota dos
dias em que o sangue corria mais abundantemente das chagas e do corpo do
crucifixo, e, mais tarde, confrontando-se as datas e os factos, foi
reconhecido, asseguram os historiadores, que o sangue afluía mais
quando o Santo apóstolo corria maiores perigos ou experimentava
maiores sofrimentos.
Chegando a Malaca, encontrou Francisco Xavier aquela cidade
infestada de uma epidemia contagiosa que devorava os seus habitantes.
Os doentes estavam sem socorros; os mortos sem sepultura; os Padres
da Companhia de Jesus dedicavam-se àqueles trabalhos sem contudo
poderem satisfazer a todas as necessidades. Xavier, que sabia
multiplicar-se por todos os modos, faz do colégio um hospital,
excita os ânimos, prodigaliza os seus cuidados e suas consolações,
não descansa um só instante, faz prodígios, e faz-se abençoar de
todos como sempre. Nem ele nem os seus Irmãos foram atacados do
contágio.
Tendo a peste diminuído de intensidade, Xavier pensava em preparar a
sua viagem para a China, quando entrando um dia por uma rua donde
ouvia gritos de dor, procurou a causa e soube que uma devota mulher,
que estava desde muito tempo sob a sua direção, acabava de perder
repentinamente seu filho.
Francisco Xavier tinha imprudentemente tocado aos lábios a ponta duma
flecha indiana, e morrera quase instantaneamente: a flecha estava
envenenada.
Xavier entra naquela casa de dor, comove-se de tantas lágrimas, e
diz ao morto:
"Francisco! em nome de Jesus Cristo, levanta-te!"
Francisco levanta-se, e tendo recuperado uma vida que lhe foi
restituída para a glória de Deus, vai consagrá-la toda inteira na
Companhia de Jesus.
Pela mesma ocasião levara o nosso Santo ao governador o alvará de
Intendente da Marinha, que o vice-rei lhe concedera em
consideração para com Xavier, a quem nada se recusava. D. Alvaro
recebeu, com testemunho de sincera gratidão este novo titulo que
aumentava consideravelmente a sua fortuna e autoridade.
Xavier esperava que o primeiro uso que ele fizesse daquela autoridade,
fosse o imediato armamento dum navio para a embaixada, e por muitos
dias esteve nesta esperança sem ver os menores preparativos, quando
soube que D. Alvaro jurara que a embaixada se não verificaria, que
ele lhe poria todos os embaraços pelo seu poder, e que acabava de dar
ordens para que se tirasse o leme da Santa Crus, a fim de impedir que
Diogo Pereira pudesse partir, a despeito da sua oposição.
Havia dois motivos para a oposição do governador.
No ano anterior pedira ele a Diogo Pereira o empréstimo duma soma de
dinheiro que Diogo lhe negara, em conseqüências de ter razões
fundadas para suspeitar da sua insolvência. D. Alvaro prometera
vingar-se.
A este primeiro motivo de oposição vinha reunir-se a inveja e a
ambição. D. Alvaro levara muito a, mal que o não tivessem
escolhido para embaixador, e que se tivesse honrado com aquela
dignidade um homem de inferior nascimento e que fizera a sua fortuna no
comércio marítimo.
Xavier fez-lhe oferecer uma considerável soma para satisfazer a sua
sede de oiro, e captar assim a sua boa vontade, mas ficou malogrado.
D. Álvaro queria tudo ou nada.
Esquecendo-se dos cuidados que Xavier lhe havia prodigalizado na
grave enfermidade que acabara de sofrer; esquecendo-se que o bom
Padre fora todos os dias dizer a missa na sua câmara durante todo o
tempo daquela doença; esquecendo-se, finalmente, de tudo quanto
devia ao Santo apóstolo, D. Alvaro resolveu chegar ao último
extremo contra ele.
Os seus mais sinceros amigos fizeram-lhe lembrar as penas impostas
pelas leis contra os funcionários que punham entraves à navegação
dos navios mercantes portugueses, e o perigo de incorrer no desagrado
do rei, recusando ao santo Padre Francisco os meios de propagar e
estender a fé; nada pôde dobrar o irascível governador. Tornando a
sua cana e ameaçando os oficiais que lhe falavam assim em seu próprio
benefício, disse-lhes:
- Eu estou já muito velho para aceitar conselhos! Jurei que Diogo
Pereira não iria à China nem a titulo de embaixador, nem a título
de mercador, e declaro-vos que ele não irá enquanto eu for
governador de Malaca e Intendente da Marinha! Se o Padre Xavier
tem tanto desejo de pregar aos pagãos, se tem tão grande zelo pela
sua conversão, que vá para o Brasil! que vá para o
Monomotapal...
Francisco Alvares, na sua qualidade de comandante da cidadela, quis
fazer valer a sua autoridade para haver o leme da Santa Cru.Z.
Xavier opôs-se. O leme achava-se sob a guarda de soldados sujeitos
à obediência do governador, e tê-lo-iam defendido; a pendência
teria podido provocar uma revolta geral contra o autor daquela atroz
injustiça, e Xavier não queria, portanto, autoriza-la; tentou um
outro caminho, quis ensaiar um outro meio.
Pediu a D. João Soares, vigário geral, que fosse levar ao
governador as cartas régias, ordenando a todos os oficiais de terra e
mar todo o auxílio ao seu alcance para secundarem as intenções do
Padre Xavier, e o decreto do vice-rei D. Afonso de Noronha,
declarando criminoso do Estado qualquer que pusesse obstáculos à
embaixada que enviava à China, em nome do rei D. João III. O
vigário geral anuiu ao desejo do santo apóstolo, e levou aqueles
documentos a D. Alvaro, cuja cólera, à vista deles, excedeu
todos os limites
- Ora! que me importam os interesses do rei! exclamou ele
empalidecendo de raiva. O rei assim o quer, eu não o quero! Serei
o soberano! A embaixada não partirá!
D. Alvaro de Ataíde achava-se em estado de alucinação; todos os
meios empregados para o chamar à razão faziam tornar mais densas as
trevas do seu espirito, e aumentar a ferocidade do seu coração.
Não contente de desprezar as ordens do seu soberano, expandia-se em
palavras ultrajantes para o grande apóstolo das Índias, que sabia ser
objecto de veneração para a cidade inteira; mas o humilde Xavier
não lhe testemunhava senão a mais cativante caridade em retribuição
dos seus culpáveis insultos.
Porém o período da monção ia já a terminar; os momentos eram
preciosos; Xavier esgotara todos os recursos da sua humildade para
vencer a oposição de D. Álvaro por meios suaves; julgou dever
empregar, finalmente, os da severidade.
No século XVI, a ciência não tinha ainda feito grandes
progressos; as luzes não se tinham ainda derramado a ponto de
extinguir a fé nas almas e torná-las indiferentes aos efeitos das
grandes ameaças da Igreja; estava reservada ao século das luzes e do
progresso, ao século da perfeição, rir dos seus anátemas, mofar
dos seus castigos, desconhecer e desprezar a sua autoridade divina.
D. Álvaro doe Ataíde antecipava a sua época.
Xavier se deixara conhecer ao arcebispo de Goa os poderes que tinha da
Santa Sé; os grandes da corte de Portugal, que se sucediam nas
Índias na qualidade de vice-reis, sabiam que Francisco Xavier era
núncio do Papa; tinham ouvido isto na corte. Mas nos dez anos que o
santo apóstolo estava nas Índias, preferira sempre apresentar-se em
toda a parte, sob o título mais caro ao seu coração: o de membro da
Companhia de Jesus.
Urgia, porém, tentar ainda um meio de vencer a obstinação de D.
Álvaro; Xavier resolveu-se a isso. Apresentou a D. João
Soares o breve que o honrava com a dignidade de núncio apostólico em
todo o Oriente, conferindo-lhe todos os poderes que se ligavam ao
cargo; depois entregou-lhe a seguinte petição, rogando-lhe que a
fizesse conhecer ao governador:
"A pedido do rei nosso senhor, o soberano pontífice Paulo III me
mandou para as Índias, com a missão de aí propagar a luz do
Evangelho, fazer conhecer o Culto devido ao Criador do universo,
converter à verdadeira fé os homens criados à imagem de Deus. Para
dai a esta missão maior eficácia, para afastar mais facilmente os
obstáculos que poderiam trazei-lhe embaraços, deu-me o mesmo
Soberano Pontífice o título e os poderes de núncio apostólico em
todo o Oriente. Enviou o breve ao rei de Portugal, acompanhado de
carta sua, confirmando, por este importante caráter a missão que eu
tinha tido a honra de receber.
"Chamado para junto do rei, no momento da minha partida para as
Índias, Sua Alteza entregou-me o breve do Soberano Pontífice e
as cartas de sua confirmação real. A minha chegada às Índias,
apresentei esses títulos ao senhor arcebispo de Goa, D. João de
Albuquerque, que os reconheceu e aprovou como convinha.
"Hoje, o mesmo senhor arcebispo, me encarrega de levar a fé ao
império da China, esperando desta missão os mais vantajosos
resultados para a glória de Deus. Podeis convencer-vos dos
sentimentos do senhor arcebispo e desta sua intenção, pela leitura da
carta que ele dirige ao imperador da China, e que ajunto aqui."
"O vice-rei das Índias, com o fim de facilitar-me a entrada na
China e de garantir a minha pessoa, no interesse da religião que
prego, despachou um embaixador ao imperador da China, com cartas que
provam a autenticidade da sua missão: este embaixador é Diogo
Pereira."
"Francisco Álvares, oficial militar, comandante da cidadela e
inspetor das finanças de Sua Alteza o rei de Portugal, determinou a
execução das ordens escritas do vice-rei relativamente a esta
embaixada."
"O governador de Malaca é o único que se opõe ao cumprimento das
ordens do vice-rei. Antepõe obstáculos à partida do embaixador, e
por conseqüência à pregação do Evangelho. Impede a liberdade do
ministério apostólico numa empresa evidentemente agradável a Deus.
Rogo-vos, pois, e suplico-vos com instância, em nome de Deus e
do senhor arcebispo de Goa, vosso superior eclesiástico e de quem
sois o representante neste país, que expliqueis ao governador de
Malaca o sentido dos decretos da Santa-Sé: Qui vero de coetero,
que contêm uma sentença de anátema contra aqueles que se opõem ao
ministério do núncio apostólico."
"Conjurai D. Alvaro, instai, suplicai-lhe, em nome do mesmo
Deus, que levante os obstáculos que tem posto à nossa embaixada
enviada pelo vice-rei e pelo senhor arcebispo. E se, a despeito de
todas as vossas instâncias, ele persiste na sua oposição,
declarai-lhe que fica desde o mesmo instante expulso do seio da Igreja
e que não terá mais direito à sua comunhão."
"Dizei-lhe também que isto não é em virtude da vossa autoridade
nem do senhor arcebispo; que não é igualmente em virtude da minha que
ele é excomungado, mas sim pelo poder supremo dos Soberanos
Pontífices donde dimanam estes santos decretos. Suplicai-lhe em
seguida, em meu nome, pelas chagas sagradas de Jesus Cristo Nosso
Senhor e pela sua santa morte, que não procure merecer penas tão
graves se não quer incorrer para com Deus em castigos cujo rigor ele
não poderá prever."
"Tomadas estas medidas, rogo-vos que me devolvais este memorial
juntando a ele, por escrito, a resposta do governador, a fim de que
esses documentos, apresentados ao senhor arcebispo, me livrem de ser
taxado de negligente na execução de uma expedição empreendida sob os
seus auspícios. Peço-vos que empregueis a maior urgência no
cumprimento deste dever do vosso ministério, porque a estação
própria para a navegação nos mares da China está já muito
adiantada. O passo que ides dar é uma obra útil para a glória de
Deus, e eu desejo-a ardentemente. Não posso crer que D. Alvaro
se tenha tornado tão cruel, tão insensível, que queira afrontar a
ira de Deus insistindo em opor-se à nossa partida".
D. João Soares não foi mais feliz desta vez do que o fora da
primeira.
- O vosso Padre Xavier, brada o governador, é um ambicioso
hipócrita, é o amigo dos pecadores e dos publicanos!...
Dizei-lhe que eu me rio dele e das suas censuras, e deixai-me
tranqüilo! retirai-vos!
O vigário geral nunca havia visto tanta impiedade. Julgou dever,
segundo a vontade do núncio, chegar ao último extremo. Excomungou
aquele que acabava de rir-se assim do vigário de Jesus Cristo, de
desprezar as suas ordens e de afrontar as mais temíveis ameaças.
Francisco Xavier viera às Índias cobiçoso de sofrimentos, ardendo
em desejos de merecer a coroa do martírio neste penoso apostolado, e
deplorava todos os dias perante Deus, haver dez anos que trabalhava
para a sua glória, no meio dos pagãos e dos infiéis, e ser julgado
indigno de morrer pela fé que pregava. As suas cartas provam até à
evidência este vivo e profundo pesar. Deus reservava-lhe um gênero
de martírio mil vezes mais doloroso e mais amargo à natureza e que ele
nunca ousara esperar na sua profunda humildade.
D. Alvaro apossa-se do navio Santa Cruz; dá o comando a Luís
de Almeida, a quem impõe vinte e cinco marinheiros que haviam
recebido as suas instruções, suas promessas e suas ameaças, e
anuncia que o Santa Cruz vai partir para a ilha de Sancião, e que
ele o manda a negociar por conta própria. O zelo do ardente apóstolo
ilude-se imediatamente por este engodo. Sancião é tão próximo da
China!
- Eu partirei no Santa Cruz, diz ele a D. João Soares; Deus
me dará, assim o espero, os meios de penetrar em um porto chinês;
se eu for preso, que importa! pregarei a verdade aos prisioneiros meus
companheiros de cárcere e lhes ensinarei a lei de Jesus Cristo, e
eles a poderão fazer conhecer aos outros. Partirei!
Diogo Pereira via-se forçado a viver oculto em Malaca para evitar a
cólera insana e as vinganças do governador que já o havia arruinado
apossando-se do Santa Crus e das riquezas que faziam o seu
carregamento. O coração de Xavier sangrava de dor com a idéia da
inteira ruína da família de seu amigo.
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"Deus é testemunha, escrevia-lhe ele, da intenção que me guiava
a vosso respeito; se ela não tivesse sido pura e reta eu morreria de
pesar! Vou embarcar-me, esperarei a bordo a hora da partida, a fim
de não ver a vossa família cuja ruína me dilacera... Que Deus
perdoe ao autor de tantas desgraças!...
Não vos peço senão uma coisa: é que não venhais ver-me; a vossa
presença me esmagaria. E contudo, espero que este desgosto
reverterá em vosso proveito, porque não duvido que o rei faça tudo
quanto eu lhe pedi para vós, e que vos indemnize generosamente de
todos os sacrifícios que tendes feito pela causa de Jesus Cristo.
Mandei despedir-me do governador. Que Deus perdoe àquele homem
porque sua sorte é digna de lástima! Oh! ele será punido mais
severamente do que pensa...".
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Com aquela pungente dor no coração, com a que lhe causava o estado
espiritual de D. Alvaro, com o pesar que experimentava por ver todos
os seus projetos transformados pelo inferno, o grande Xavier trata os
negócios da Companhia como se gozasse do maior sossego, da mais
perfeita liberdade de espírito. Escreveu muitas cartas para Goa,
ocupou-se de diversas missões, deu conselhos espirituais ao seus
irmãos e, - que nos seja permitido esta minuciosidade para dar uma
idéia dos cuidados com que ele considerava tudo -, depois de ter dado
conselhos ao Padre Barzeu sobre o modo de converter as moedas das
Índias para as fazer passar ao Japão, recomendou-lhe que enviasse
estofos de lá de Portugal aos Padres que habitavam aquele país onde
o frio é muito rigoroso.
O Santa Cruz ia fazer-se à vela. Francisco Xavier fora pela
manhã à igreja de Nossa Senhora do Monte e ali se detivera; estava
ainda em oração quando o foram advertir, pela tarde, de que havia
chegado o momento de levantar ferro. D. João Soares,
acompanhando-o até o navio perguntou-lhe se ele se não despedia do
governador.
- Os fracos de espírito são fáceis em se escandalizar, meu
Padre, disse-lhe ele, e daí nascerem ressentimentos contra vós.
- Senhor, D. Alvaro não me verá mais nesta vida! Eu o
esperarei no juízo de Deus! respondeu-lhe Xavier.
Depois, detendo-se junto da igreja vizinha do porto, eleva os olhos
para o céu, ora em alta voz pela salvação de D. Álvaro de
Ataíde, com um acento que parecia inspirado.
E logo que cessa de falar; prostra-se com a fronte no pó e
conserva-se assim por alguns instantes em silêncio; quando se
levantou trazia o semblante animado, dos seus olhos partiam raios,
parecia dominado pelo espírito da justiça divina... Tira as
sandálias, bate uma contra a outra, sacode-as numa pedra, e
exclama, sempre coza a mesma animação: "Eu não levarei nem o pó
desta cidade pecaminosa! A cólera de Deus paira sobre ela! Aquele
que a governa, D. Álvaro de Ataíde, será preso, encarcerado,
espoliado, e todos os seus bens serão confiscados... Ele levará
deste mundo a pena merecida pelos seus crimes!..."
A imensa multidão de povo que se reunira em torno do santo Padre para
assistir ao seu embarque, emudeceu de admiração e de pesar, ouvindo
as palavras proféticas do ilustre Xavier. Silenciosas lágrimas
foram o último adeus daquele povo desolado ao seu apóstolo querido,
tão indignamente tratado pelo governador duma cidade, onde tanto bem
praticara!... e que ele deixava para sempre!... [79].
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