II. VISÃO PROFÉTICA - TRABALHOS EM GOA - PARTE PARA OS PARAVÁS

Um intrépido navegante, cujo nome célebre para Portugal se tornou também célebre para todo o mundo, Vasco da Gama, nunca empreendia uma viagem de longa duração sem se fazer acompanhar dos socorros da religião; levava sempre consigo o seu confessor.

Naqueles tempos de verdadeira fé, que foram tidos como de morta ignorância e de algum tanto de barbárie, via-se geralmente, por mais sábio que alguém fosse, ninguém viver e morrer sem sacramentos; não temiam, é certo, serem taxados de jesuitismo quando praticavam a religião na qual se gloriavam de haver nascido; e contudo os jesuítas só existiam então no pensamento de Deus.

Vasco da Gama, na sua primeira viagem das descobertas, em 1497, chegara até à península daquém do Ganges; explorava a costa do Malabar, e acrescentava a glória que se ligava ao seu nome, quando o seu confessor lhe foi arrebatado pelos índios com alguns dos seus companheiros.

Foi a 31 de julho que os selvagens fizeram um mártir de D. Pedro da Covilhã, religioso da Ordem da Trindade para a Redenção dos Cativos. Ligaram-no a uma árvore e crivaram o seu corpo de numerosas flechas. Enquanto seu corpo escorria em sangue, o santo mártir fez ouvir palavras proféticas que os seus companheiros acolheram piedosamente, e que foram fielmente consignadas na sua volta, nas Memórias da Biblioteca dotei de Portugal e nos manuscritos da História da Ordem da Redenção dos Cativos, em Lisboa, e sempre conservadas.

"De aqui alguns anos, - disse Pedro da Covilhã, enquanto as flechas indianas choviam sobre o seu corpo e aí se enterravam dilacerando-o-, de aqui alguns anos, nascerá na Igreja de Deus uma Ordem de clérigos que terá o nome de Jesus [34]. Um dos seus primeiros Padres, conduzido pelo Espírito Santo, penetrará até as mais longínquas terras das Índias Orientais, das quais a maior parte abraçará a fé cristã pelo ministério deste pregador evangélico".

Esta predição, que Portugal esperava ver realizada, não teve o seu completo efeito senão cinquenta anos mais tarde. O ilustre fundador da santa Companhia de Jesus, nascido em 1491, tinha apenas seis anos no tempo em que Pedro da Covilhã anunciava nas Índias o "pregador evangélico" que devia para ali levar a fé; este mesmo pregador, Francisco Xavier, só devia vir ao mundo nove anos depois, em 1506 e às Índias só no ano de 1542.

Vimos já como Xavier trabalhava na salvação das almas e pela glória de Deus na cidade de Goa. Pode-se avaliar, pois, os cuidados afetuosos que ele prodigalizava aos leprosos pelas palavras escapadas do seu coração: "Eu não fiz mais do que repetir a palavra de Deus àqueles desgraçados, que as acolheram com avidez e tive a consolação de me ver por eles estimado". Todo o poder da sua voz, auxiliado pela sua amável e terna caridade, se patenteia naquelas palavras. Os leprosos achavam-se encantados, haviam-no amado desde que o ouviam, e estavam ávidos por o ouvirem.

O vice-rei fez-lhe vivas instâncias para conseguir a honra de o ter no seu palácio; o nosso Santo recusou com afabilidade e firmeza, como costumava fazer, respondendo a D. Martim Afonso

- Vós não querereis, estou certo, ver-me infiel ao meu voto, senhor; permiti, pois, que eu não tenha outra morada que não seja a dos pobres.

- Obrigais-me sempre a ceder, meu querido Padre, respondeu-lhe o vice-rei com expressão de pesar; ide. pois para o hospital, já que não posso impedir-vos, mas orai por mim e pelos meus que privais duma grande consolação.

E Xavier foi para o hospital! Estranha habitação para um Núncio Apostólico!

Como o arcebispo de Goa devia ter conhecimento da amplitude dos poderes de Francisco Xavier, o Santo apresentou-se, logo que chegou, no seu palácio arquiepiscopal, entregou-lhe os breves do Soberano Pontífice e prostrando-se a seus pés, pediu-lhe a sua bênção e autorização para exercer o santo ministério nos países submetidos à sua jurisdição.

O arcebispo, D. João de Albuquerque [35], um dos mais santos prelados daquela época, encantado da angélica expressão do nosso Santo, levantou-o imediatamente e o abraçou com um sentimento de afeição de que ele próprio se admirava mais tarde, falando da impressão que a vista do Santo apóstolo nele havia produzido.

Os historiadores de S. Francisco Xavier são unânimes sobre o efeito atrativo da sua presença desde o momento em que se encarava. Compreende-se isto mui facilmente.

Querendo Deus fazer dele o conquistador pacífico de inúmeros povos, concedera-lhe tudo quanto pode encantar e atrair. As suas conquistas não deviam ser de Estados, mas sim de almas; devia possuir o império dos corações para neles estabelecer o reino de Jesus Cristo, recebera em abundância tudo quanto devia facilitar aquela conquista, a mais difícil de todas, e Deus, fazendo reunir a todos aqueles dons a sua graça toda-poderosa, nada havia que pudesse resistir ao apóstolo que escolhera.

A beleza, que o mundo nele tanto admirara, adquirira uma expressão inteiramente celeste, desde que Xavier foi todo de Deus; a atração que inspirava nada tinha de humana; era, uma impressão misturada de respeito, de admiração e de disposição para se ceder à influência e à ascendência que se faziam sentir.

Tinha tão somente o cuidado de chamar a si os corações que desejava conquistar e todos corriam para ele imediatamente.

O arcebispo de Goa beijou respeitosamente os breves do Soberano Pontífice, e devolvendo-os a Xavier disse-lhe:

"Um núncio apostólico e enviado imediato do Vigário de Jesus Cristo não carece de receber dos outros a sua missão. Usai livremente dos poderes que a Santa Sé vos deu e estai seguro de que se carecerdes da autoridade episcopal para os manter, ela nunca vos faltará".

Os sentimentos que o santo Núncio inspirou tão subitamente no coração do arcebispo, cresciam à proporção que este mais de perto o conhecia, e fizeram estabelecer entre eles a mais íntima união, que serviu prodigiosamente de auxílio aos desígnios e bons resultados que o nosso Santo conseguiu no serviço e glória de Deus.

Conquanto a cidade de Goa fosse católica desde a conquista, notava-se que o espírito do Cristianismo estava ali bastante enfraquecido.

Os portugueses, atraídos às Índias pela cobiça, não reconheciam obstáculos à sua ambição; todos os meios eram lícitos para aumentarem a sua fortuna, e, como de ordinário acontece, a sede das riquezas, arrastava-os a toda a sorte de crimes. Faltava a ciência ao clero de Goa, e era por isso nula a instrução do povo. Era chegado o tempo de se cumprir a profecia do Padre Pedro da Covilhã, era chegado o tempo de ser enviado por Deus o seu "vaso de eleição" àqueles países longínquos onde os católicos só serviam- de obstáculo à propagação da fé!

Este estado de coisas tornava a chegada do Santo muito mais apreciável aos olhos do arcebispo, cujo maior desejo era o de secundar o seu zelo por todos os meios possíveis.

Contristado profundamente o apóstolo por ver abandonados os sacramentos por aqueles que tinham maior necessidade de se aproximar deles, porque estavam em contacto contínuo com os idólatras e maometanos, julgou dever começar a sua missão pelos portugueses.

Para atrair as bênçãos divinas sobre a sua importante empresa, entregava-se à oração a maior parte da noite, não concedendo ao repouso senão três ou quatro horas, e mesmo isto estendido no chão junto dos doentes do hospital e levantando-se todas as vezes que eles fizessem o menor movimento, como o vimos praticar no hospital de Moçambique. Depois de algumas horas de ligeiro sono, de ordinário interrompido, por vezes, voltava às orações, e ao raiar da aurora oferecia a santo sacrifício. Era tão vivo o seu fervor no altar, tão abundantes as lágrimas que vertia, que impressionava em extremo, os assistentes:

" Sinto uma sensação tão extraordinária e agradável quando ajudo à missa ao Santo Padre", dizia Antônio Andra, soldado português, que quisera podei ajudar-lhe todos os dias.

Em seguida à missa ia o nosso Santo dar os bons dias aos doentes dos hospitais, aos quais abraçava, prestando-lhes alguns cuidados è falando-lhes de Deus, que era conhecedor de todos os sofrimentos, assim como abraçava e tratava os leprosos com a mesma dedicação e a mesma ternura e caridade.

Depois de ter mendigado para eles alguns alimentos mais delicados do que aqueles que de ordinário lhes davam, considerava-se muito feliz por lhes levar com que pudessem satisfazer os seus desejos; então o seu rosto angélico irradiava alegria e abraçava mais uma vez os seus pobres queridos agradecendo à bondade divina pela consolação que experimentava.

Concluídos estes trabalhos, visitava os presos, e dali, com uma campainha na mão, percorria as ruas da cidade, convidando e mesmo suplicando aos chefes de família a mandarem seus filhos è seus escravos à instrução que ia administrai-lhes:

"Fiéis cristãos, dizia ele com a- mais penetrante expressão, fiéis cristãos, mandai vossos filhos e vossos escravos, a fim de que eles aprendam a santa doutrina de Jesus Cristo! -Eu o suplico, mandai-os pelo amor de Deus".

As crianças corriam a cercar o Santo Padre, logo que ouvissem a campainha; beijavam-lhe as mãos, testemunhavam-lhe as mais ternas e afetuosas carícias, e o seguiam à medida que ele ia passando por suas casas, de modo que os primeiros que a ele se juntavam acompanhavam-no a dar a volta à cidade, e assim chegava à igreja escoltado por alguns centos de crianças.

Era belo, era comovedor ver-se aquele jovem Padre assim cercado daquelas inocentes crianças que lhe tributavam tão grande amor como natural veneração. Todas elas recebiam a instrução com igual vontade e a repetiam a seus pais. Iam até fazer-lhes observar quanto o seu procedimento estava em oposição com os preceitos da religião, o que ocasionava sérias reflexões aos pais.

Quando chegavam à necessidade de fazer respeitar a autoridade paternal, sentiam a importância de não dar lugar às insubordinações dos filhos, pelos exemplos contrários às lições que lhes faziam receber. A necessidade e mesmo obrigação de manter os filhos nos limites do dever, levou os pais a cumprirem eles próprios, os seus e a correrem para junto do santo apóstolo, que lhes administrou instrução especial e onde os pobres pecadores se desfaziam em lágrimas.

Vimos já, na carta do nosso Santo, que ele só não podia satisfazer às confissões, que tão numerosas eram elas; em seis meses a cidade achava-se transformada a ponto de se não poder reconhecê-la. Todos queriam confessar-se a Xavier, a fé voltara viva e fervorosa, era, finalmente, uma regeneração completa.

O vice-rei, que tão extremosamente estimava o Santo Padre, dava os mais belos exemplos e secundava com todo o seu poder o zelo apostólico de Xavier. Uma vez por semana acompanhava-o na visita dos hospitais e das prisões, dando a todos os doentes e encarcerados esmolas e consolações.

Goa tornara-se uma cidade santa.

D. Miguel Vaz, vigário geral do arcebispado, disse um dia a Xavier, quando este lhe significava o desejo que tinha de estender as suas conquistas

- Meu Padre, a costa oriental, desde o cabo Comorim até à Ilha de Manaar, oferece um vasto campo para satisfazer o vosso zelo. É um povo de pescadores chamados Paravás, constantemente inquietados pela invasão dos Mouros e que, tendo sido socorridos contra eles pelos portugueses, se fizeram baptizar para agradar e satisfazer os seus protetores; mas têm de cristãos só o nome, nada sabem do Cristianismo e solicitam instrução e luz.

- Eu para ali parto, caro senhor!...

- Aquela pobre gente acha-se muito disposta a receber a luz do Evangelho, e vós podeis ali fazer maravilhas com o zelo que vos anima; porém devo prevenir-vos, meu Padre, que é aquele o país o mais pobre que se conhece. Estrangeiro algum tem ainda podido resignar-se a estabelecer-se ali. Os mercadores só para lá vão, anualmente, na época da pesca das pérolas; devo ainda acrescentar que os calores são ali intoleráveis para os europeus.

- Mas eu espero que Deus me dará as necessárias forças para lhes resistir, senhor, respondeu Xavier. Quando ele me enviou às Índias, conhecia os diversos climas; deposito pois toda a minha confiança n'Aquele que me mandou, e vou partir.

O santo apóstolo deixou D. Miguel Vaz e foi pedir o consentimento do vice-rei, que quis retê-lo e mandar o Padre Paulo de Camerini para as Costas dos Paravás; mas teve de ceder à firmeza de Xavier, na qual julgava ouvir a voz de Deus. Em seguida deu o nosso Santo as suas instruções aos dois Padres que deixava em Goa; despediu-se afetuosamente dos seus doentes e leprosos, prometendo voltar para os ver; abraçou-os e abençoou-os derramando lágrimas pela sua compungente dor recomendou-lhes que obedecessem à voz dos seus irmãos como à sua própria, que amassem a Deus sobre todas as coisas, que orassem por ele e pelo bom resultado da missão que ia empreender, prometendo-lhes lembrar-se deles todos os dias no santo altar.

Os soluços interromperam por vários vezes o caritativo Padre, que, depois de ter recebido deles as mais sinceras e consoladoras promessas separou-se dos seus queridos doentes, ouvindo ainda de longe os gritos de consternação que a sua partida arrancava aos seus corações.

Igual cena se renovou em cada prisão, e o coração de Xavier estava dilacerado!

Concluídas todas as despedidas, foi ele receber a bênção episcopal e embarcou, a 17 de Outubro de 1542, levando consigo Francisco Mancias e dois jovens indígenas, discípulos do colégio de Goa.

O vice-rei quis oferecer-lhe muitos presentes; porém ele não aceitou senão uns sapatos e um sobretudo de peregrino, de fazenda das mais ordinárias. Quanto às provisões de boca, foi absoluta, como do costume, a sua recusa; não quis dever o seu sustento senão à caridade da equipagem.