II. RECEPÇÃO DOS PARAVÁS - VIAGEM A BAÇAIM - VOLTA A GOA

UMA vela! uma vela! gritavam batendo as palmas muitos índios colocados em observação, desde a madrugada, sobre a penedia mais avançada das costas do Comorim.

- Uma vela! uma vela! repetiam milhares de vozes sobre toda a extensão da praia: é ele! é o grande Padre! O Sanctissima Trinitas!

- O grande Padre chega!

- Como ele ficará contente de nos ouvir cantar a doutrina cristã para o receber!-e ver que nós nada esquecemos!

- E como ele abraçará Francisco!

Dali a pouco a alegria dos bons Paravás tornou-se mais entusiástica ainda. Aquele navio; que ao princípio se apresentava como um ponto negro no horizonte, foi reconhecido claramente, e, impelido pelo mais favorável vento, avançou com rapidez.

Toda a população das Costas se achava abalada pela chegada do grande Padre: as casas, as aldeias, os campos, os trabalhos, tudo tinha sido abandonado; cristãos e pagãos desejavam ver o grande Padre muito querido, do qual se achavam privados desde muitos anos.

Os Padres Criminale, Henrique e Cipriano tinham continuado entre eles os trabalhos do grande apóstolo, e haviam conseguido conquistar os corações e a confiança dos Paravás; mas nada valia, para aqueles bons índios, como o grande Padre tão amado.

Finalmente fundeou o navio que conduzia o Santo venerado; Xavier é visto, e um imenso grito de alegria, partindo daqueles milhares de homens, vai repercutir no seu coração. Ele faz sinais de afeição àquela massa de povo que cobre a praia; testemunha-lhes também a sua alegria por tornar a ver o seu querido rebanho, e logo que põe o pé sobre a praia, os gritos de entusiasmo são substituídos por cantos da doutrina cristã, aos quais o nosso amável Santo acompanha com sua encantadora voz. Era a prova do prazer que nele produzia o acolhimento dos seus primeiros filhos em Jesus Cristo. Eles assim o cumprimentaram, o seu querido Pai, até à primeira povoação, sem interromperem os cantos.

Xavier parou à entrada da povoação para falar, àquela grande multidão; mostra a sua alegria por tornar a ver os seus Paravás e o prazer que nele causou a recepção que lhe fizeram; felicita-os por se terem conservado fieis na sua ausência, e procurava animá-los para o futuro, quando um índio lhe disse com orgulho que não podia dissimular:

- Oh! isto nada é, grande Padre.

- Nada é, meu filho! Ah! o que há então mais?

- Há, grande Padre, que Francisco, a quem baptizastes e destes o vosso nome, quis morrer pela doutrina: ei-lo, que diga ao grande Padre o que lhe fizeram.

- Vejamos, meu caro Francisco, disse Xavier ao jovem indiano abraçando-o com lágrimas de ternura, contai-me isso; o que vos aconteceu, meu filho?

- Grande Padre, respondeu-lhe Francisco, eu achava-me em um navio português que a tempestade arrojou para um porto muçulmano; o navio foi aprisionado, os portugueses mortos, e a mim, como era índio, quiseram fazer-me muçulmano; eu disse-lhes que era cristão e cantava a doutrina do grande Padre.

Prometeram fazer-me muito rico se eu quisesse renunciar ao meu batismo. Não o quis, e tornei a cantar a doutrina cristã do grande Padre.

Quiseram matar-me, e eu disse: "Matai-me, mas eu cantarei até à última hora a doutrina cristã! O Sanctissima Trinitas! como diz o grande Padre." Então privaram-me de alimento e encerraram-me numa prisão, mas eu cantava sempre a doutrina para morrer cristão!

Oh! sim, eu queria morrer cristão, grande Padre! O Sanctissima Trinitas!

- E como foi que a Providência vos livrou, meu querido filho? perguntou-lhe Xavier, abraçando-o de novo.

- Foi um navio português, grande Padre, que chegou com muitos soldados; eles mataram todos os muçulmanos que se bateram com eles, e quando lhes disseram que eu estava preso vieram buscar-me e me trouxeram para aqui.

O santo apóstolo agradeceu a Deus por aquele triunfo da fé naquele jovem coração; era para a sua alma uma grande consolação! Abraçou repetidas vezes o fiel Francisco, e felicitava-o ainda por haver sofrido por Jesus Cristo, quando vieram aumentar a sua alegria dizendo-lhe que muitos Paravás tinham igualmente resistido a todas as promessas e a todas as ameaças dos infleis.

- Sim, grande Padre, disseram-lhe os confessores da fé que acabavam de se tornar notáveis, nós respondíamos a tudo cantando a doutrina cristã! E a cantaremos até à morte! O Sanctissima Trinitas!

Os índios selvagens não compreendiam o sentido das palavras: O Sanctissima Trinitas! mas tinham-nas ouvido por várias vezes repetir ao seu apóstolo venerado; haviam notado que elas eram nascidas dum impulso do seu coração, que ele as pronunciava com uma acentuação abrasadora, um olhar que parecia perder-se nos Céus, e um ardor. que se traía pelo vivo colorido do seu rosto.

Gostavam tanto de o contemplar no momento em que aquele grito de amor se escapava da sua alma, que a ingrata memória daqueles selvagens as havia conservado como palavras misteriosas e poderosas e as tinham adoptado como a sua mais expressiva exclamação; delas se serviam para exprimir os seus mais vivos sentimentos.

Muitas vezes notavam que quando o seu santo apóstolo ás pronunciava, ardendo no fogo divino de que era favorecido, entre-abria o fato e deixava sair do peito e do rosto raios luminosos, cujo brilho os seus olhos não podiam suportar. Notavam mais, que este prodígio se repetia muitas vezes no nosso Santo.

Muitos escravos fugidos dos seus amos vieram procurar o indulgente Xavier para implorarem o seu valioso apoio, logo que souberam da sua chegada:

- Grande Padre, lhe disseram eles a chorar, nós eramos muito desgraçados com os portugueses: fugimos e tornámo-nos mais desgraçados! Não nos atrevemos a voltar para os nossos amos porque eles nos puniriam; mas morremos de fome! Grande Padre! se vós pedis perdão por nós, não seremos por certo castigados!

E Xavier, cujo terno coração se deixava impressionar por todos os sofrimentos, advogou em favor dos escravos, seus caros filhos, que conseguiram voltar para os seus amos com toda a segurança.

Depois de haver visitado toda a Costa da Pescaria, seguiu o nosso Santo para Meliapor onde reuniu todos os Padres empregados nos serviços das -cristandades, a fim de julgar por si das virtudes, dos talentos, da capacidade de cada um, e de os.empregar da maneira mais vantajosa para o bem das almas e glória de Deus.

Nomeou como superior o Padre Criminale, ordenou que todos aprendessem a língua Malabar [55], a mais vulgarizada, e encarregou o Padre Henriques de estudar os princípios daquela língua, de estabelecer as. regras, de compor uma gramática própria para facilitar o seu estudo aos que fossem destinados ao apostolado da Índia.

O Padre Henriques ignorava ainda o malaio; aquele trabalho parecia-lhe impossível, e nunca pensara em o empreender; mas como o seu superior lho ordenara, empreendeu-o sem calcular as dificuldades, e todos se admiraram da prontidão com que o executou.

A obediência operaria um prodígio.

Xavier mandou traduzir naquela língua, por um indígena, a explicação da doutrina cristã que havia empregado nas Molucas com excelente resultado; deixou instruções escritas e pormenorizadas sobre a maneira como os Padres deviam exercer o santo ministério nas diversas cristandades que lhes eram confiadas, e sobre o modo como deviam tratar com os portugueses para conseguir o maior bem dos neófitos, e finalmente partiu para a ilha de Ceylão.

Depois da sua partida escrevia o Padre Vales aos seus irmãos de Portugal.

"...Não sei explicar a felicidade que experimentei vendo o santo Padre. É um servo de Deus ao qual ninguém pode ser comparado. A sua linguagem a sua presença, tudo nele faz admirar e amar a Deus produzindo o maior desejo de o servir. Ele diz muitas vezes: Louvado seja Jesus Cristo! e diz isto com tanto amar que aqueles que ouvem se entusiasmam...".

Haviam morrido em Goa o irmão e o filho do rei de Jafanapatão, e o tirano via-se inquietado pelas inflexíveis hostilidades dos portugueses. Francisco Xavier, antevendo preciosas vantagens para a Igreja e para a coroa de Portugal num tratado que garantisse a liberdade da religião cristã no reino de Jafanapatão, ao mesmo tempo que tornasse aquele país tributário de Portugal, resolveu propôr ao rei este meio de restabelecer e de consolidar a paz entre os dois povos.

Ele parte, chega a Jafanapatão, faz-se apresentai ao rei e comunica-lhe o seu plano

- Vós estais cercado de inimigos, lhe diz ele; tende-los tanto no interior, como fora; o vosso trono, já abalado, está prestes a cair, ele se abaterá ao primeiro choque que lhe for dado pelos vossos vassalos revoltados ou pelas armas portuguesas. Não seria, pois, melhor firmar o vosso poder pelos meios que vou propor-vos? Estabelecei uma aliança sólida com Portugal; pagai-lhe um tributo, e ele se comprometerá a manter-vos.

- Grande Padre de Travancor, a vossa palavra é sagrada, mas os portugueses são cristãos.

- Eis aí porque eu proponho a condição de publicardes um édito pelo qual permitísseis aos missionários pregar a lei de Jesus Cristo nos vossos estados, e aos vossos vassalos a submeterem-se às mesmas leis sem receio de novas perseguições.

Francisco Xavier, vendo-se atendido, explicou os principais dogmas do Cristianismo àquele príncipe, e obteve a promessa de que ele renunciaria um dia aos seus ídolos e às suas paixões; no entanto, aceitou todas as condições propostas, e um dos seus ministros, encarregado de ir negociar o tratado com o vice-rei, acompanhou o grande Padre de Travancor a fim de ser melhor acolhido sob a sua proteção.

Terminado este negócio, seguiu o nosso infatigável apóstolo para o interior da ilha, e teve a felicidade de converter o rei de Candia e um grande número dos seus vassalos; depois embarcou com o enviado do rei de Jafanapatão. Chegando a moa, a 2o de Março, soube que o vice-rei se achava em Baçaim, distante sessenta léguas; tornou a embarcar com aquele destino.

O vice-rei tinha-se rendido durante a ausência do nosso Santo: Dom João de Castro substituía naquele cargo D. Afonso de Sousa, e não conhecia de vista Francisco Xavier; mas ouvira falar, na corte de D. João III, da sua eminente santidade, dos seus admiráveis milagres, e viera às Índias com grande desejo de o conhecer. Alegrou-se portanto coxas a notícia da sua chegada a Baçaim, recebeu-o com todas as honras que teria prestado ao embaixador do mais poderoso monarca, e imediatamente ratificou o tratado preparado pelo santo diplomata.

Achando-se ainda em Baçaim o Padre Xavier e saindo uma vez do palácio do governador, descobriu um jovem que atravessava a praça e que dirigindo-se para ele toma a sua mão e a leva aos lábios. Xavier retira-lha, olha severamente para o jovem português e diz-lhe em tom de censura e de autoridade

- Como, Rodrigo! eu encontro-vos aqui?... Quando deixei Malaca não me tínheis prometido partir em seguida para Portugal?

- Mas, meu Padre, o vice-rei deu-me o cargo de recebedor dos dinheiros reais... e eu demorei-me.

- E ele fez-vos deixar Malaca por isso?

- Meu Padre, eu detive-me em Goa onde fora ver o governador que me conservou ali...

- E foi o governador que vos ordenou que passásseis dois anos sem vos confessar! é o governador que vos obriga a viver à mercê de todas as vossas paixões? Vejo com dor que vos precipitais para o fundo dum abismo!

- Meu Padre! meu querido Padre!...

- Nós não podemos estar bem, meu pobre Rodrigo enquanto estiverdes de mal com Deus!

- Pois bem, meu bom Padre, farei tudo que quiserdes; partirei, e obedecer-vos-ei! Confessai-me!...

Dos olhos de Rodrigo de Sequeira corriam copiosas lágrimas; tomou a mão do santo Padre, beijou-a com amor e veneração e seguiu-o para se confessar sem demora.

Rodrigo pertencia a uma nobre família portuguesa, e habitava Malaca, onde, por haver matado o seu adversário em duelo, incorrera na severidade das leis e para se pôr ao abrigo delas se recolhera ao hospital; fora ali que o Padre Xavier o havia conhecido e conquistado a sua afeição e confiança.

Rodrigo regressava aos seus sentimentos cristãos e reconciliado com Deus prometera ao santo Padre deixar as Índias, onde a sua alma estaria sempre exposta a graves perigos, e voltar para Portugal. Então o caridoso Santo, tão delicadamente amável para com aqueles que se sujeitavam, dissera-lhe

- Muito bem! meu amigo, pois que já tenho a vossa promessa de deixar este país e voltar para a Europa, dir-vos-ei que podeis tornar a aparecer, mesmo em Malaca, com toda segurança, porque fui feliz em compor o vosso mau negócio. Não sereis perseguido pela família a quem privastes dum dos seus membros, e o governador concedeu-me o vosso perdão. Parti, pois; voltai para o seio da vossa família e vivei sempre como bom cristão.

Rodrigo prometera... e depois faltara 'à sua palavra! Mas desta vez conseguindo voltar à graça de Deus, por intermédio do ministério de Xavier, pediu a sua demissão ao governador:

- Senhor, lhe disse ele, eu prometi ao santo Padre voltar para a minha família, e é quanto basta, porque fui muito criminoso faltando à minha palavra uma vez! Não conhecia o pesar do Padre Xavier quando incorri no seu descontentamento! Não me exporei mais a isso! Julguei sentir sobre mim o peso da justiça divina quando noutro dia o tornei a encontrar. Parto com ele para Goa, onde me aproveitarei do primeiro navio que se fizer à vela para Lisboa.

Rodrigo partiu, com efeito, e recomendado por Francisco Xavier aos Padres da Companhia de Jesus residentes em Lisboa, veio a ser um excelente cristão.

O vice-rei, cuja afeição Xavier havia conquistado, viu-o partir com pesar; desejava reformar a sua vida pelos seus conselhos, e queria sujeitar-se à sua direção por alguns meses. Xavier, porém, não podendo naquela ocasião demorar-se em Baçaim, concordou em passar o inverno em Goa, para onde D. João de Castro voltaria logo que tivesse concluído os negócios que ali o detinham; então ele faria uma confissão geral e se conformaria para o futuro com os conselhos e instruções espirituais do santo Padre.

Combinado isto, Xavier deu a sua bênção ao vice-rei, e embarcou.