VIII. AS DESPEDIDAS - AUDIÊNCIA REAL - O EMBARQUE

Via-se apinhado o porto de Lisboa; oficiais, soldados e marinheiros, iam e vinham da praia para a cidade e vice-versa, com carregamentos consideráveis que conduziam para a frota ancorada no porto. Tratava-se de prover de armamentos e víveres cinco grandes navios e alguns galeões reais de que se compunha a frota, prestes a partir para as Índias Orientais.

Solícito na execução das ordens que recebera do rei, D. Antônio de Ataíde, conde da Castanheira, intendente da armada real, veio procurar Francisco Xavier:

- Padre Francisco, lhe disse ele, o rei quer que sejais abundantemente provido de tudo que desejardes para a viagem. Tende a bondade, pois, de enviar-me uma nota 'dos objetos que devo embarcar para vós.

Confesso-me infinitamente grato às bondades de Sua Alteza, senhor; mas eu de nada careço.

- Meu Padre, as ordens do rei são formais; ele insistiu fortemente para que nada faltasse a bordo, do que tiverdes desejado.

- Nada falta, senhor, quando se não carece de nada; rendo-vos mil graças, vejo-me extremamente reconhecido pelo muito que devo ao rei; porém devo muito mais à Providência, senhor, e vós não querereis, por certo, que me desanime e duvide dela neste ponto!

- Muito bem, meu caro Padre, vós sois admirável! permiti que vos diga que devo obedecer ao rei.

- Já o fizestes, senhor.

- Acrescentarei, meu Padre, que a Providência não faz sempre milagres, e não acha que seria provocá-la embarcando-vos para uma tal viagem sem a menor provisão pessoal?

- Ora pois! senhor, vou dar-vos uma pequena relação de livros religiosos que será útil espalhar entre os portugueses das Índias, que deles estarão privados, e vos pedirei para mim um fato de fazenda grossa, pois que o frio é perigoso, segundo dizem, ao dobrai o cabo da Boa-Esperança.

- Rogo-vos, meu Padre, fazei-nos o obséquio de pedir mais do que isso! fazei-o pelo rei!

- Não sei o que mais possa pedir, senhor, pois que eu de nada mais careço.

- Não podereis servir-vos a vós mesmo, senhor, acrescentou impacientemente D. Antônio; aceitareis pelo menos o criado que se vos der.

- Enquanto eu tiver estas duas mãos, senhor, espero que Deus me fará a graça de permitir que me sirva a mim mesmo

- As conveniências exigem, meu Padre, que tenhais ao menos um! Ides revestido de uma dignidade que não deveis aviltar; o rei disse-me que partíeis na qualidade de núncio apostólico. Será conveniente ver-se um núncio do Papa a lavar a sua roupa a bordo, e a preparar por si a sua comida?

- Peço perdão, senhor, por não poder ceder às vossas tão grandes instâncias; porém, tenho a intenção e mesmo vontade de me servir e de servir os outros o mais possível e conto fazê-lo sem desonrar o meu caráter. Quando não pratico o mal, não temo nem escandalizai o próximo, nem menosprezar e rebaixar a autoridade de que 'a Santa Sé se dignou revestir-me... Não nos iludamos, senhor; cifram-se nisto as misérias humanas, são idéias falsas de decoro e de dignidade que tem feito à Igreja o mal que nós vemos!

D. Antônio não insistiu mais; o tom enérgico de Francisco Xavier, conservando, contudo, a sua extrema doçura, tinha ao mesmo tempo tão grande dignidade e tal nobreza, que o intendente convenceu-se que uma natureza daquela têmpera nunca rebaixaria em nada a autoridade que lhe estava confiada.

Francisco Xavier sabia impor o respeito humilhando-se: é este o segredo dos santos em geral; porém ele parecia possuir esse dom em maior grau do que os outros. Deus assim lho permitia, sem dúvida em vista das inúmeras conquistas a que o destinava.

O rei desejou ver o nosso Santo antes da sua partida e lhe entregou, em mão própria, quatro breves do Soberano Pontífice: um nomeava o Santo missionário núncio apostólico; outro dava-lhe poderes amplos para estabelecer e manter a fé em todo o Oriente; um terceiro recomendava-o ao rei David, imperador da Etiópia, e o quarto a todos os príncipes soberanos das ilhas e da terra firme, desde o Cabo da Boa-Esperança até além do Ganges.

Xavier recebeu aqueles breves das mãos do rei, com o respeito devido ao Soberano Pontífice e à majestade real:

- Senhor, respondeu ele, eu me esforçarei por sustentar o pesado fardo que Deus me impõe e os seus representantes sobre a terra. A minha incapacidade é grande, mas Deus é todo-poderoso; deposito n'Ele somente, toda a minha confiança.

- Examinai tudo, disse-lhe o rei; visitai todas as fortalezas portuguesas, vede se Deus é ali servido, e dai-nos conta do que há a fazer de melhor para se estabelecer o Cristianismo nas nossas novas conquistas. Escrevei muitas vezes e extensamente acerca disto, não somente aos ministros, unas diretamente à aninha pessoa. Recomendo-me às vossas orações, meu Padre; orai também pela rainha, pelos infantes e por Portugal.

- Durante toda a minha vida, senhor, não me esquecerei das bondades e obséquios com que Vossa Alteza se dignou honrar-me.

- E eu vos agradeço do bem que nos tendes feito a todos, Padre Francisco; vejo-vos partir com dor!... mas é necessário obedecer às ordens de Deus!

Chegara o dia do embarque. O Padre Paulo de Camerini, italiano, e Francisco Mancias, português, que não era ainda sacerdote, acompanhavam o nosso Santo às Índias. O Padre Rodrigues ia ser separado do irmão que tanto prezava; mas o Padre Xavier ia sê-lo da Europa inteira, desta parte do mundo onde deixava as suas mais caras, mais ternas e mais preciosas afeições, e considerava-se feliz em oferecer a Deus um tão grande sacrifício. Dissera muitas vezes:

"A ausência da cruz é a ausência da vida".

O dia da partida para as Índias era, pois, para a sua grande alma, um dia de excesso de vida. Simão Rodrigues acompanhou-o até à ponte da São Diogo que o vice-rei devia comandar. Nó momento da separação, o rosto de Rodrigues inundou-se de lágrimas; Xavier torna a anão do seu amigo, aperta-a coxas afeição e diz a este seu irmão querido:

"Meu querido Simão, eis as últimas palavras que vos vou dizer, porque não nos tornaremos a ver mais neste mundo. Soframos paciente e generosamente a dor amarga da nossa separação. Se nos conservarmos bem unidos a Deus, achar-nos-emos sempre ligados como o estamos hoje e nada haverá que possa romper a nossa união em Jesus Cristo! Para vos consolar, quero, ao deixar-vos, descobrir-vos um dos meus mais secretos pensamentos e a maior das alegrias da minha alma.

"Lembrar-vos-eis, de certo, que numa noite, no hospital de Roma, me ouvistes gritar: Ainda mais, Senhor! ainda mais! Muitas vezes me perguntastes e me pedistes vos explicasse o motivo daquela exaltação, e sempre respondi que preferia nada dizer. Ora pois! agora vo-lo direi, em memória da confiança e da amizade que depositou no vosso coração de irmão."

"Vi então, se em sonho ou acordado, Deus o sabe, tudo quanto devia sofrer pela glória de Jesus Cristo. Nosso Senhor deu-me naquele momento tamanha avidez pelos sofrimentos, que os que se me apresentavam me pareciam insignificantes e eu ardentemente desejava mais. Era esta exaltação da minha alma que me fazia gritar com transporte: Ainda mais! ainda mais! E espero que a divina bondade me concederá nas Índias o que me fez ver em Itália, e que os ardentes desejos que me inspirou ao coração serão imediatamente satisfeitos!"

Os dois irmãos abraçaram-se em seguida e separaram-se derramando copiosas lágrimas, mas lágrimas suaves como eram os seus desgostos, doces e silenciosas como são as lágrimas dos Santos.

Francisco Xavier acabava de revelar toda a grandeza e toda a energia da sua alma na consolação que deixava ao seu amigo. Via-o pesaroso e aflito pela sua partida, pela idéia de o não tornar mais a ver nesta vida, e de ficarem separados por uma distância que lhe parecia infinita:

"Consolai-vos, lhe disse ele, eu vou sofrer e sofrer muito!"

Era esta a verdadeira consolação dada por um Santo a um coração digno dele e capaz de o compreender! Repugnava à humildade de Xavier fazer conhecera Rodrigues o que Nosso Senhor lhe havia descoberto; era um sacrifício; porém a generosidade de Xavier era superior a todos os sacrifícios. O seu magnânimo coração supõe no do seu amigo tanto amor por Jesus Cristo como ele próprio nutria, outro tanto desejo de sofrer por ele, e de zelo pela sua glória; supõe-lhe todos os sentimentos sobre-humanos que o animam, o desligam da terra e o têm unido a Deus... repete-lhe:

"Consolai-vos, eu vou sofrer e sofrer muito!"

E Rodrigues, bastante Capaz de apreciar e de acolher aquela consolação, estende os braços para Xavier, aperta-o ternamente ao coração, abraça-o sem poder responder-lhe, e deixa-o com o sentimento de não ter sido julgado digno de o seguir para partilhar os seus trabalhos, os seus sofrimentos e. os seus perigos.

O Padre Rodrigues deixou a São Diogo dirigindo-se para terra, quando se deu o sinal; cada navio levantou ferro e a frota aproou para o alto mar sob as vistas de Deus e o comando de D. Maninho Afonso de Sousa, que quisera levar Francisco Xavier a bordo do navio em que ele embarcava.

Era a 7 de Abril de 1541, dia aniversário do nascimento do nosso Santo; entrava ele no trigésimo sexto ano.