IV. EM ROMA - PARTIDA PARA PORTUGAL

Miguel Navarro, por um momento horrorizado de si próprio, e cedendo à voz da consciência, pedira a Santo Inácio, o favor de o admitir no número dos seus discípulos. Inácio, sempre pronto a acolher em seus braços o arrependido, aceitou aquele que pouco antes era o seu mais cruel inimigo, e tratou-o com bondade verdadeiramente paternal; porém Miguel, bem depressa desgostoso de uma vida tão santa, retirara-se e readquirira todos os sentimentos de vil inveja que nele havia excitado a conversão de Francisco Xavier.

Depois de ter buscado em vão um novo meio de se desfazer de Inácio, por ter a sua consciência cheia de remorsos "ou por qualquer outro motivo desconhecido", diz o Padre Bártoli, voltou de novo ao combate; reunindo-se a Santo Inácio em Veneza pediu-lhe a sua readmissão na Companhia.

Desta vez a experiência motivou a recusa, e então, ofendido no seu orgulho, jurou que a sua vingança seria terrível e tão medonha como a afronta que acabava de receber. Inácio ia partir para Roma; era necessário precedê-lo ali.

Miguel chega à cidade santa, encontra ali um dos seus Muitos amigos, Ramon Barrero; este regozija-se dos vergonhosos sentimentos que Miguel lhe confia e não hesita em propor-lhe um pacto infame.

Combinam-se com Pedro Castilho e Francisco Mudarra, juntos se dirigem a Frei Agostinho, monge da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, pregador célebre e luterano oculto, que procurava iludir a fé dos seus ouvintes, entusiasmando-os com a sua eloqüência, e reunidos tratam de perder Inácio de Loiola por todos os meios que o inferno pudesse sugerir.

Miguel declara que é rico e que empregará o seu dinheiro até ao último real, se necessário for, para se vingar daquele que lhe arrebatou Francisco Xavier; o monge aceita tudo; traça-se um plano de campanha, e aguarda-se a chegada dos que juraram perder.

Assim que Inácio e seus discípulos se acharam reunidos em Roma, pelas proximidades da festa da Páscoa do ano 1538, distribuíram desde logo entre si os diversos bairros da cidade para neles trabalharem pela salvação das almas e defesa da verdade, contra os erros e prejuízos que os partidários de Lutero buscavam introduzir e propagar.

Bem depressa descobriram que Frei Agostinho semeava a heresia nas suas prédicas e não deixava de atrair um grande número de pessoas impressionadas e sempre ávidas de ouvirem a sua brilhante e persuasiva palavra. Contudo procuraram certificar-se disto pessoalmente, e depois de o terem ouvido pregar por muitas vezes, julgaram dever adverti-lo dos perigos a que expunha a fé dos seus ouvintes.

Esta advertência, embora feita comas maiores atenções e a mais sincera urbanidade, irritou o orgulho do religioso luterano que se achava comprometido naquela empresa, e que pondo de parte todas as considerações, e julgando também que era chegado o momento de dar um golpe decisivo, atreveu-se, o fogoso pregador, a apresentar à vindicta pública em um dos seus sermões, os novos apóstolos que defendiam tão valorosamente a doutrina da Igreja; acusava-os de heresia, esperando assim paralisar o zelo que os animava e afastar de si as suspeitas que nasciam.

Ao mesmo tempo Miguel Navarro, que pagara largamente para aquele fim, era autor de uma denúncia em forma, contra Inácio de Loiola, ao governador de Roma, Benedito Conversini; assegurava sob juramento, e prometia provar, que D. Inácio de Loiola havia sido duas vezes condenado na Espanha, a primeira em Alcalá, a segunda em Salamanca, e uma terceira vez, em Paris, pelo crime de sortilégio e de magia.

Todo este negócio fez grande ruído e produziu geral sensação, sem contudo desanimar as vítimas daquele odioso trama.

Inácio e os seus presados discípulos viam-se isolados, abandonados de todos e apontados a dedo nas ruas de Roma como heréticos que não tardariam a ser condenados peto tribunal da Inquisição, não ousando ninguém aproximar-se deles com o temor de os fazerem duvidar da ortodoxia da sua fé.

Mas esta grande prova de sofrimento devia ter um fim; Deus ali estava!...

Os caluniadores foram convencidos de impostura e acabaram por se confessarem culpados.

O pregador herético, revestido de um hábito religioso e que servia para encobrir os seus sentimentos de proselitismo, teve de fugir e foi completamente desmascarado em Génova; Pedro Castilho foi condenado a prisão perpétua; Francisco Mudarra e Ramon Barrem foram queimados em efígie, e teriam também sofrido uma longa prisão se Santo Inácio não tivesse intercedido por eles; Miguel Navarro foi condenado a degredo por toda a vida[22].

Ainda desta vez o demônio fugira rugindo; o inferno fora vencido.

Naquela época a fome assolava a cidade de Roma, e os discípulos de Santo Inácio dedicavam-se com admirável caridade a socorrer as vítimas deste horrível flagelo.

Xavier, cuja saúde recuperara finalmente algum vigor, exercia o santo ministério na igreja de S. Lourenço in Damaso, e na de S. Luís dos Franceses, e o mais consolados resultado correspondia aos seus trabalhos.

Todo o tempo que lhe sobrasse depois das pregações, confissões e instrução das crianças, dedicava aos pobres, que, extenuados pela fome, arrastavam-se e morriam pelas ruas. Procurava para eles algum asilo, pedia aos ricos um bocado de pão para minorar a fome e prolongar-lhes a vida; conduzia à última morada, em seus braços, os cadáveres, e os moribundos para os asilos de caridade que para eles obtivesse, proporcionando-lhes, finalmente, todos os socorros que os pudesse chamar à vida. Tratava deles, consolava-os, punha-os em santas disposições, e se lhe não era dado salvar sempre a vida do corpo, salvava-lhes ao menos a das almas.

No meio destes penosos trabalhos desejava o nosso Santo outros ainda mais cruéis. Tudo isto nada era para o zelo que o animava. Falava muitas vezes do bem que se poderia fazer nos grandes países conquistados pelos portugueses nas Índias orientais, e da felicidade que gozariam aqueles que obtivessem a graça de serem para ali mandados, expostos a todos os sofrimentos, a todos os perigos e a todas as privações inseparáveis de um tal apostolado.

Era tal a sua preocupação que quase diariamente, nos poucos momentos que concedia ao sono, sonhava que tinha em seus braços ou às costas um negro sofrendo penas horríveis. Então ouvia-se-lhe gritar, no excesso do seu amor a Deus e do seu zelo pela sua glória:

"Ainda mais, Senhor! ainda mais!"

Disseram-lhe, um dia, que D. João III, rei de Portugal, solicitara do soberano Pontífice a graça de lhe conceder seis Padres formados na escola de Inácio.

D. Diogo de Gouveia, reitor do colégio de Santa Bárbara na época em que Francisco, Fabro e Inácio ali estiveram, voltara depois a Portugal. Enviado a Roma, pelo seu governo, a fim de ali tratar dum negócio de interesse da coroa, veio encontrar naquela cidade os seus antigos discípulos de Santa Bárbara, e presenciou os trabalhos dedicados que prestavam durante a fome aqueles cujas brilhantes faculdades e prodigioso talento ninguém melhor do que ele conhecia, e que mostravam não saber praticar senão atos de humilhação e caridade. Comunicou a sua admiração ao rei seu soberano, cujo zelo pela glória de Deus ele conhecia, pedindo-lhe que solicitasse alguns destes santos Padres para evangelizar as Índias orientais.

O rei de Portugal, aceitando gostoso esta proposta, acabava de escrever ao seu embaixador D. Pedro de Mascarenhas encarregando-o de dirigir aquele pedido ao Papa em seu nome. O Papa deixou o negócio à decisão de Inácio, que resolveu não dever conceder mais que dois dos seus discípulos para aquele apostolado, porque ele não tinha até ali mais que dez.

Xavier sentiu o seu coração palpitar com maior força quando soube desta decisão; e, contudo, poderia pensar em si para um tal destino? Não, porque se julgava mil vezes indigno daquele favor! Não sabia, é verdade, qual dos seus irmãos merecesse mais para poder ser escolhido; achava-os todos tão perfeitos, que não via senão em si a exceção e humilhava-se profundamente perante Deus por aquela incapacidade.

Enquanto se tratava este negócio, Inácio ocupava-se em constituir a sua Companhia em Ordem religiosa, e em submetê-la à aprovação do soberano Pontífice. Comunicara todo o seu projecto aos seus discípulos e lhes rogara que reflectissem maduramente, perante Deus, sobre a escolha daquele a quem deveriam dar o título de Geral, logo que o Papa tivesse aprovado os estatutos da Sociedade e a tivesse autorizado.

Chamado naquela ocasião pelo rei, o embaixador de Portugal, e encarregado de acompanhar os dois Padres que lhe tinham sido prometidos, empregou este as maiores diligências e instâncias em os obter desde logo, e para que a sua partida fosse o mais breve possível Inácio designou então Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilha; não se lembrou de Xavier, e o nosso Santo achou muito natural que o seu querido mestre não o tivesse escolhido para uma tal missão.

Simão Rodrigues achava-se então em Sena e Nicolau Bobadilha no reino de Nápoles, e ambos voltaram à ordem de Inácio. Rodrigues, ferido de febres intermitentes, mal podia ter-se de pé, mas mesmo assim ia obedecer: embarcou imediatamente em Civita-Vecchia no primeiro navio que se fazia de vela para Lisboa. Bobadilha adoeceu logo que chegou a Roma, mas como não estava ainda designado o dia da partida, esperava recuperar as forças perdidas, para poder obedecei também...

Xavier humilhava-se cada dia mais da sua indignidade, por ver os mais perfeitos do que ele destinados para aquele apostolado, que ocupava dia e noite o seu pensamento.

A partida do embaixador fora finalmente fixada para o dia imediato. Sabe-o o nosso Santo, e faz ardentes votos pelo bom êxito dos seus irmãos; orava por eles com todo 0 fervor da sua alma, quando Inácio o chama.

- Francisco, lhe disse ele, eu havia designado Bobadilha para a missão das Índias, porém aprouve ao Céu escolher um outro. Sois vós que ele acaba de designar hoje mesmo, e eu vo-lo anuncio em nome do Vigário de Jesus Cristo...

Xavier, prostrado aos pés do seu santo mestre escutava no maior recolhimento de gratidão e humildade.

Inácio continuou: - Aceitai a missão de que Sua Santidade vos encarrega, como se Jesus Cristo em pessoa vo-la tivesse intimado, e alegrai-vos por encontrardes nela o cumprimento do ardente desejo de que nós todos nos achamos animados: levar a fé para além dos mares. Não é somente a Palestina, ou uma província da Ásia que tereis de evangelizar; são países imensos, estados inumeráveis, o mundo todo! Aquele tão vasto campo é digno da vossa coragem, é digno do vosso zelo! Ide, Francisco; ide, meu irmão, onde a voz de Deus vos chama, onde a Santa Sé vos -envia, e desenvolvei todo o fogo que vos anima!

As lágrimas de Francisco corriam até ao chão; porém eram lágrimas de felicidade!

- Pai da minha alma, respondeu ele, como pudestes vós pensar em mim para uma missão que exige um verdadeiro apóstolo? Eu sou o mais inerte, o mais fraco, o mais incapaz e o menos virtuoso dos vossos discípulos! E é por isso que eu me considero duplamente feliz!

"Meu Padre, eu obedecerei ao mandato de Deus! Estou preparado e pronto a sofrer tudo e com a maior alegria do meu coração, para a salvação dos pobres índios r Confesso-vos, hoje, meu amado Padre, que há muito tempo o meu coração suspirava pelas Índias; porém não me atrevia a confessá-lo senão a mim próprio, por isso que me julgava indigno duma tal graça. Ah! Eu espero em Deus, que naqueles países idólatras, encontrarei o que a Terra Santa me recusou.

"Espero também que terei a felicidade de ali morrer por Jesus Cristo!...".

Inácio tinha já feito levantar o seu amigo: apertava-o ao seu coração de pai, profundamente comovido.

Francisco significou-lhe quanto o apostolado das Índias ocupava o seu pensamento e o seu espírito, a ponto de o acompanhar até nas suas horas de sono; em seguida apressou-se a remendar a sua batina, abraçar os seus amigos e ir prostrar-se aos pés do Soberano Pontífice para lhe pedir a sua bênção. Paulo III, rendia graças a Deus desde que o rei de Portugal lhe manifestara o desejo de fazer pregar o Evangelho nos países infiéis que lhe eram sujeitos, porque contava como seguro o triunfo da Cruz em todos os lugares onde os discípulos de Inácio a levassem. Recebeu Xavier com benevolência verdadeiramente paternal, felicitou-o pela sublime missão que ele ia desempenhar, e disse-lhe:

- "A soberana Sabedoria dá sempre a graça necessária para suportar os encargos que ela impõe, embora eles sejam superiores às forças humanas! Vós tereis muitas ocasiões de sofrer; mas deveis lembrar-vos sempre que no serviço de Deus não se consegue o bom êxito senão pelo caminho dos sofrimentos, e que se não deve ambicionar a honra cio apostolado senão caminhando pelos traços deixados pelos Apóstolos, cuja vida foi sempre uma pesada cruz e uma morte de cada dia."

"O Céu vos envia a seguir os passos de S. Tomé, o apóstolo das Índias, na conquista das almas; trabalhai ardente e generosamente em fazer reviver a fé nas terras em que ele a semeou! e se Deus permitir que possais derramar o vosso sangue pela glória de Jesus Cristo, oh! considerai-vos feliz de serdes o escolhido para morrer por uma tal causa."

"É tão belo morrer mártir!"

Xavier, compenetrado das palavras do soberano pontífice, e parecendo-lhe ouvir a própria voz de Jesus Cristo, respondeu algumas palavras duma tão profunda humildade e de zelo tão ardente, que Paulo III depois de o ter abençoado, o abraçou por muitas vezes com extrema comoção.

No momento de partir, na manhã seguinte, Xavier prostrou-se aos pés do seu querido Padre Inácio para lhe pedir a sua bênção; o seu coração, naquele momento, cumpria um grande sacrifício, continha tanta dor como alegria.

Inácio abrasou com ternura aquele filho que tanto amava e que ia separar-se dele, sem dúvida para sempre. Apertou-o dolorosamente, mas com todo o afecto, ao seu coração, pois que ele também fazia um grande sacrifício!... Porém a glória de Deus o chamava, e pai e filho se achavam votados inteiramente à sua glória, à sua maior glória...

Abraçavam-se pela última vez, quando Santo Inácio descobriu, por acaso, que o seu amado discípulo desprezara completamente as precauções mais necessárias para tão longa viagem.

Oh! meu Francisco! lhe disse ele, apertando-o de novo ao seu coração paternal, - é muito! é demais! nem ao menos alguma roupa de lã para abrigar o vosso peito contra os grandes frios!

E despojando-se da sua camisola de lã, forçou o seu filho espiritual a vesti-la.

No derradeiro momento da partida, Francisco depositou nas mãos de Laynez uma declaração escrita, regando-lhe que a fizesse conhecer aos seus irmãos, no dia em que eles se reunissem para elegerem um Geral. Esta declaração, damo-la aqui dividida em três partes, tal qual a achamos reproduzida na série das Cartas de S. Francisco Xavier.

DECLARAÇÃO DE FRANCISCO XAVIER

"Eu, Francisco, declaro, que, quando Sua Santidade haja por bem aprovar o nosso Instituto, concordarei em tudo quanto a Sociedade estatuir, nas Constituições e Regras que ela estabelecer pelo órgão daqueles dos nossos que possa convocar e reunir em Roma; e como Sua Santidade envia alguns de entre nós em diversas missões, fora de Itália, e por este motivo não nos poderemos reunir todos, declaro por este escrito, que me comprometo a aceitar e a ter por bom e válido tudo quanto for estatuído em interesse da Sociedade, por dois ou por três dos nossos irmãos que se reunirem para aquele fim. Assim, por este autógrafo, digo e prometo ratificar tudo quanto por eles for feito.

Escrito em Roma, a 15 de Março de 1540.

FRANCISCO".

SUFRÁGIO

"J. H. S. Eu, Francisco, devendo deixar o meu voto sobre a escolha daquele que deve ser elevado à prelatura da nossa Sociedade, e a quem todos devemos obedecer, declaro e afirmo, sem instigação alguma, que me parece justo, em testemunho da minha consciência, que este seja o nosso antigo prelado, o nosso verdadeiro pai, Dom Inácio, que nos reuniu com tão grandes dificuldades e trabalhos. Declaro mais que nenhum outro está em melhores circunstâncias do que ele para nos conservar, dirigir e fazer-nos adiantar no caminho da perfeição, porque ele nos conhece a todos em geral e a cada um em particular; e digo também, na maior sinceridade da minha alma, como se me achasse à hora da morte,, que depois do seu falecimento, julgo acertado eleger-se para Geral o Padre mestre Fabro, e neste momento Deus me é testemunha de que digo somente o que penso; e em fé do que assino o presente escrito.

Feito em Roma, a 15 de Março de 1540

FRANCISCO".

OUTRA DECLARAÇÃO

"Depois de convocada a Sociedade e que ela tenha eleito o seu Geral, prometo, eu, Francisco, hoje e para sempre, obediência perpétua, pobreza e castidade. Assim, pois, Padre Laynez, meu mui prezado irmão em Jesus Cristo, rogo-vos, pelo servido de Deus Nosso Senhor, que apresenteis, na minha ausência, e em meu nome, ao Geral que elegerdes, ó testemunho da minha vontade, com os três votos religiosos, pois que, neste momento, eu prometo observá-los desde o dia em que ele for nomeado.

Em fé do que assino o presente escrito do meu próprio punho.

Feito em Roma, a 15 de Março de 1540.

FRANCISCO".