VI. PASSAGEM POR ESPANHA - CHEGA A LISBOA

Um extraordinário movimento animava o solar senhorial de Xavier. Toda a família de Jasso de Azpilcueta se achava reunida em torno da nobre castelã, D. Maria, cuja avançada idade não havia envelhecido o coração e lhe fortificara a fé. Seus filhos tinham sabido na corte que o rei de Portugal pedira ao Papa alguns Padres da Sociedade de D. Ínigo de Loiola para evangelizar as Índias, e D. Maria que conservara no coração a predição de sua filha, estava convencida que o seu amado Francisco estaria incluído no número daqueles que Deus escolheria para um tão perigoso e glorioso apostolado.

Bem depressa se espalhou também a notícia de que D. Pedro de Mascarenhas atravessaria a Espanha, que estava já em caminho, e que o Padre Francisco Xavier o acompanhava. Cada pessoa da nobre família esperava ver, na sua passagem, aquele último descendente, cuja infância recebera as carícias de todos, cuja mocidade encantara os primeiros. velhos dias do pai, que não existia já, e cuja ausência era uma contínua dor para a mãe veneranda que vivia ainda.

Quase todos os dias um dos criados de D. Maria montava a cavalo, ia a Pamplona, informava-se e voltava no dia seguinte para assegurar que o correio do embaixador não chegara ainda:

"Será amanhã, dizia suspirando a mãe do nosso Santo; esperemos".

E ela esperava, os dias corriam uns após outros, e o seu filho não aparecia! Desde aquele em que começara a esperar a felicidade de o tornar a ver. D. Maria quase que se estabelecera numa janela donde descobria o caminho que conduzia a Sanguesa e donde a sua vista alcançava a grande distância por ser um dos pontos mais elevados do castelo.

- Há dezassete anos que não vejo o meu belo Francisco, dizia ela algumas vezes; mas se ele vem agora, hei-de reconhecê-lo, por certo!

- Querida mãe! respondiam-lhe seus filhos, bem depressa o tornareis a ver.

- Pedro Ortiz tem-nos mandado dizer sempre que ele é a mesmo belo Francisco. Somente acrescenta que está magro porque este meu querido filho se tornou um Santo, e pratica austeridades que alteram a sua saúde...

Então procurava-se mudar a conversação, porque a pobre mãe não podia ocultar as lágrimas que lhe corriam em abundância, quando se lembrava que a santidade do seu filho o levara a martirizar o corpo, a ponto de enfraquecer a sua robusta constituição. Depois elevava os olhos para o céu com expressão resignada e ajuntava:

- É verdade que ele é de Deus! inteiramente d'Ele!... já me não pertence!

E recaía no seu lânguido e habitual silêncio.

Os dias corriam; o embaixador de Portugal avançava na sua jornada e entrava em Navarra.

- Padre Francisco, disse ele ao nosso Santo, nós não estamos longe de Pamplona, onde devo descansar. Ali vos esperarei.

- Esperar-me, senhor?

- Pois vós não ides ao castelo de Xavier visitar vossa família?

- Não, senhor; agradeço a vossa bondade, mas não posso aceitar.

- Como! acaso esqueceis, meu caro Padre, que ides deixar a Europa talvez para sempre?!

- É provável, senhor.

- Pois muito bem! vós não vedes a vossa família há já muito tempo, e a senhora vossa boa mãe está hoje velha.

- Conheço tudo isso, senhor, mas não é para Xavier que Deus me chama, é para as Índias.

- Meu Padre, é esta uma abnegação que eu admiro verdadeiramente, mas permiti-me fazer-vos observar que a senhora de Jasso deve esperar-vos, e que é impor um sacri- fício muito grande ao coração duma mãe. É por ela, é pois D. Maria, que vos peço, que vos rogo, meu Padre. Ide a Xavier! Dai esta consolação à vossa família!

- A esta consolação, senhor, se ajuntarão a amargura da separação e dos adeuses dilacerantes. Por minha mãe, que eu amo terna e extremosamente, por toda a minha família, que me é tão cara, e por mim mesmo, é melhor que eu evite estes desgostos, e que nos não tornemos a ver senão no Céu. Ali, senhor, a união será sem separação, a consolação sem amarguras e a felicidade sem estorvo.

O embaixador ia insistir. Francisco conhece e replica:

- Eu dei tudo a Deus, senhor, não me é permitido, portanto, dispor de mim para os outros; não me julgo com esse direito.

O caráter cavalheiresco que o jovem Francisco manifestara em Santa Bárbara torna a patentear-se aqui com toda a generosidade do Santo formado na escola de Inácio, e que não vivia senão do contínuo sacrifício de si próprio.

- Cheio de admiração, D. Pedro de Mascarenhas, sem o dizer a Francisco, modificou as disposições do seu itinerário, por delicadeza para com a família do nosso Santo. Atravessou a cidade de Pamplona, retendo-se ali só por momentos, a fim de renovar as suas provisões e despachar um correio ao rei de Portugal, a quem escreveu para lhe dar antecipadamente conhecimento da elevada santidade do missionário que lhe levava.

Poucas horas depois de os viajantes deixarem Pamplona, apresentou-se ali o enviado do castelo de Xavier... Era já, porém, muito tarde. D. Pedro não dissera onde pernoitaria naquela dia; supunha-se mesmo que alterara o seu itinerário, e ouviram-no dizer às pessoas da sua comitiva que o Padre Francisco Xavier era duma tal santidade que recusara desviar-se do caminho para ir ao solar visitar a sua família.

Além disso, assegurava que ele parecia ter saúde, que era amável e bom para todos em geral, e que em toda a parte onde fosse visto se reconheceria imediatamente nele, não obstante a pobreza do seu traje, um grande fidalgo da velha Navarra espanhola.

"Eu, por mim, reconheci-o perfeitamente!" acrescentava com orgulho o estalajadeiro de Pamplona, que sentia duplicar a sua importância ao pensar que não somente um embaixador se hospedara em sua casa, mas ainda, porque vira de bem perto o filho da castelã de Xavier, ao passo que ela própria fora privada daquela felicidade..."

Era necessário comunicar-se esta pungente notícia a D. Maria: seus filhos procuraram todos os rodeios possíveis, porém quaisquer que fossem a prudência e a doçura dos meios, um semelhante golpe dirigido ao coração duma mãe causa sempre profunda ferida!

D. Maria agradeceu a seus filhos as meigas carícias que deles recebeu; depois pediu para ser conduzida à capela e ali renovou os votos do seu sacrifício e de ações de graças, oferecendo em holocausto toda a sua dor maternal aos pés do crucifixo de madeira, de tamanho natural, que ornava o fundo da capela.

Este crucifixo fora muito venerado por Francisco na sua infância... e D. Maria comprazia-se em falar-lhe do seu querido ausente; parecia-lhe então que as forças e a generosidade se lhe aumentavam, e que recebia tesouros de bênçãos para si e para o filho tão amado, que nunca mais tornaria a ver.

Entretanto chegava Francisco Xavier a Lisboa, e não obstante todas as instâncias de D. Pedro, foi pedir hospitalidade onde Simão Rodrigues a recebia, no hospital de Todos-os-Santos. O Padre Rodrigues, doente dumas febres intermitentes, esperava o acesso no momento em que o seu querido irmão Xavier se apresentou na sua presença: a alegria de o receber, e a natural virtude do nosso Santo foram mais eficazes que todos os remédios até então empregados: abraçando o seu santo amigo, o Padre Rodrigues sentiu-se curado e a febre não lhe voltou mais. Os dois amigos achavam-se separados desde longo tempo e por isso foi mútua a alegria de se tornarem a ver.

Eis o que escreveu o Padre Francisco Xavier à Companhia de Jesus, em Roma; ouçamo-lo na narração que faz das suas impressões e do acolhimento que recebeu do rei. Dá-se ali a conhecer melhor, pela expressão dos íntimos sentimentos que patenteia.

"... À nossa chegada a Lisboa, encontrei mestre Simão Rodrigues que esperava um acesso de febre quartã; mas desde o momento em que nos vimos e nos abraçámos, foi tal a alegria, que a febre lhe desapareceu, depois dum mês de sofrimento, e a sua saúde conserva-se perfeita. Ele trabalha com extremo zelo e com bom resultado na vinha do Senhor.

Contamos aqui muitos amigos dedicados, a maior parte distintos pela sua posição ou nascimento, mas vejo com pesar que nos será difícil visitar todos em particular. Naquele número noto muitos que se inclinam para o bem, que desejariam servir a Deus, e que seria prestar-lhes um grande serviço ir em auxílio da sua indolência por meio dos Exercícios Espirituais, e forçá-los, par qualquer modo, a executar o que eles protelam dum dia para outro.

Muitos despertariam da sua letargia, se se lhes fizesse sentir francamente o aguilhão desta profunda verdade: que, não encontrarão a paz onde não existe a paz.

Seria necessário, sobretudo, fazer sentir isto àqueles que parecem querer empregar todos os meios de cansar a Providência arrastando-a, por assim dizer, para toda a parte onde os seus caprichos os levam e que se obstinam em recusar a ir onde ela os chama, entregando-se de todo às suas paixões desregradas e tornando-se surdos às santas instâncias com que ela os solicita.

São mais dignos de compaixão que de inveja, aqueles que vemos caminhar tão penosamente por veredas tortuosas e escarpadas, e através de mil precipícios e mil perigos, pois que só têm a esperar uma ruína certa.

Três ou quatro dias depois da nossa chegada a Lisboa, o rei dignou-se chamar-nos à sua presença e recebeu-nos com a maior benevolência. Ele estava no seu gabinete só com a rainha. Durante mais de uma hora de audiência interrogou-nos sobre o nosso modo de vida, sobre as circunstâncias que nos levaram a conhecer-nos uns aos outros, e que nos fizeram reunir ao depois; sobre o nosso fim principal, e, finalmente, sobre as perseguições de que fomos objecto em Roma.

Suas Altezas[23] ouviram com prazer tudo quanto lhes narrámos sobre o modo como as nossas casas são regidas e as funções a que o nosso plano, as nossas regras, o nosso fim nos consagram.

Em seguida o rei fez chamar os infantes, seu filho e sua filha para nos apresentar e falou-nos com a maior benevolência dos filhos que a Providência lhe concedera, tanto dos que chamara para si como dos que lhe conservara.

Em suma, Suas Altezas nos testemunharam o mais vivo interesse. O rei encarregou-nos especialmente da direção dos mancebos da nobreza, pertencentes à sua corte. Ordenou que todos os seus pajens se confessassem semanalmente e nos recomendou expressamente a execução desta ordem, fundando-se em que todo o mancebo que desde tenra idade haja contraído o hábito de servir a Deus, torna-se, em maior idade, um homem útil ao seu país.

- Se os nobres fossem o que deveriam ser, acrescentou ele, as classes inferiores da sociedade se formariam a seu exemplo.

É na mocidade da nobreza que ele funda as suas esperanças de reforma de costumes de todo o seu reino. E, efetivamente, a regularidade dos costumes do primeiro corpo do estado arrasta a uma reforma geral.

No espírito religioso deste excelente rei, no seu zelo em procurar e promover a glória do Senhor, na sua dedicação tão pronunciada por tudo quanto pertence à nossa santa religião, encontro mais uma forte razão para agradecer a Deus; e a confirmação da nossa Sociedade não pode demorar muito, à sombra dum príncipe que derrama os seus benefícios não somente sobre os nossos que habitam em seus estados, mas também sobre nós todos em geral.

O Senhor Núncio apostólico teve uma audiência particular com Sua Alteza depois da nossa, e o rei lhe disse que lhe seria muito agradável poder reunir nos seus estados todos os membros actuais da nossa Companhia, obrigando-se ele a destinar para o seu estabelecimento e conservação uma grande parte das suas rendas. Foi o próprio Núncio que nos referiu isso. Sabemos que muitos dos nossos amigos procuram pôr entraves à nossa partida para as Índias, com o fundamento de que poderíamos aqui colher melhor fruto, tanto no tribunal da penitência como nos Exercícios Espirituais; que conseguiríamos confissões e comunhões mais frequentes, empregando no ministério apostólico o mesmo zelo, o mesmo método de ensinar e pregar que pretendemos adoptar nas Índias. Entre as pessoas desta opinião noto com especialidade o confessor e o capelão de Sua Alteza; um e outro induzem o rei a reter-nos aqui na esperança de que faríamos mais abundante aquisição de almas...".

A humildade de Francisco Xavier convencia-o que alguém influenciava no ânimo do rei; não acontecia porém assim. O rei, encantado pelo bem que os dois Padres haviam já feito, tanto à corte como à cidade, desejava ardentemente retê-los, e o seu confessor assim como o seu capelão eram do mesmo parecer. Ele desejava até que Xavier habitasse no paço, e lhe fizera preparar um aposento que o nosso Santo recusara, preferindo mil vezes o hospital onde, podia estar junto dos doentes pobres e do Padre Rodrigues, e onde podia mais livremente servir a Deus.

O rei queria também que os Padres comessem à sua mesa; porém eles preferiram continuar esmolando o pão de cada dia, e sobretudo conservar a liberdade de seguir a regra, à qual haviam feito voto de serem fiéis até à morte.

A sua vida tão mortificada, tão humilde, tão perfeita fazia a admiração geral, e quando se comparava com o que Francisco Xavier havia sacrificado, redobrava a admiração pela sua pessoa, e o rei encontrava sempre calorosas aprovações quando expunha os seus desejos de o conservar em Lisboa.

Xavier, conquanto ambicionasse sempre a missão das Índias não mostrava contudo nenhuma preferência, e esperava que Deus dispusesse de si segundo a sua vontade. Escrevia então o seguinte ao seu prezado Padre Inácio:

"...O senhor Arcebispo, que nos é muito dedicado, fez-nos saber que o rei não decidira ainda se nos enviaria ou não para as Índias, por que supõe que nós serviremos a Deus tão bem aqui como ali. Dois prelados, persuadidos intimamente que converteremos alguns reis índios, insistem pela nossa partida. Quanto a nós, enquanto esperamos, ocupamo-nos em angariar companheiros; tenho fé que não nos faltariam se este negócio se resolvesse.

Se permanecermos aqui, fundaremos algumas casas, e para isso encontraremos pessoas que se nos associem muito mais facilmente do que seguir-nos para além-mar. Se partirmos e que Deus, nos conceda alguns anos de vida, com o seu poderoso auxílio fundaremos alguns estabelecimentos entre a Índia e a Etiópia.

Se o Breve concernente à nossa Companhia não tiver sido ainda expedido, consegui, eu vos rogo, que mencione a faculdade de se poderem estabelecer Casas Professas entre os infiéis.

Finalmente, quer nos conservemos aqui, quer nos façamos de vela para as margens do Ganges, em nome do amor e da obediência que em Nosso Senhor Jesus Cristo vos hei consagrado, fazei-me conhecer a regra que devo observar na aceitação dos noviços, e isto desenvolvidamente.

Vós conheceis perfeitamente a fraqueza da minha inteligência; se não vindes em auxílio da minha imperícia nos negócios deste mundo, perderemos a melhor ocasião de ampliar e engrandecer o reino de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O mais humilde filho da vossa caridade em Jesus Cristo,

Francisco".

A cidade de Lisboa achava-se já transformada, devido ao abençoado ministério dos dois santos jesuítas; e o rei cada vez mais satisfeito nutria maiores desejos de conservar estes apóstolos com o fim de fazer reviver a fé e a piedade em todo o reino.

A santa vida dos missionários atraiu-lhes discípulos que se ofereceram a segui-los até às Índias, e Xavier, considerando-se feliz por encontrar jovens decididos a secundar o seu zelo, escrevia a Santo Inácio:

"O nosso número cresce; somos já seis. Conheci em Paris todos aqueles que se acham reunidos a nós, com exceção de Paulo e Manuel de Santa-Clara. Deus atendeu os nossos rogos e coadjuvou os nossos esforços associando-nos estes obreiros para trabalhar na sua vinha e celebrar o seu santo nome por entre as nações infiéis.

Atribuímos às vossas orações as bênçãos que o Céu se digna derramar sobre o nosso ministério, porque os resultados vão além de toda a proporção com as nossas faculdades, nossa ciência e inteligência.

Achamo-nos sitiados no tribunal da penitência; a concorrência é tão grande e composta ordinariamente de tantos personagens eminentes pela sua dignidade, que bem dificilmente podemos satisfazer a todos.

O príncipe Henrique, irmão do rei e grão-mestre da Inquisição, pediu-nos que nos ocupássemos dos presos daquele tribunal; visitamo-los todos os dias e procuramos convencê-los do benefício que a bondade de Deus lhes tem concedido, chamando-os assim à necessidade de praticar a penitência. Fazemos-lhes diariamente uma instrução comum e obrigamo-los a praticar os Exercícios da primeira semana, nos quais eles gozam uma grande consolação e de que colhem o melhor fruto. Muitos de entre eles dizem muitas vezes que Deus lhes concedeu um sublime favor, servindo-se do nosso ministério para lhes fazer conhecer tantas coisas indispensáveis à salvação das suas almas . . . . . . . . . . . . . ".

Era chegado o momento de se tomar uma resolução imediata. D. João III reuniu o seu conselho e pediu-lhe a opinião sobre este objecto, depois de ter feito conhecer a sua, ou antes o seu grande desejo de reter os dois apóstolos.

À exceção do infante D. Henrique, todos os conselheiros foram da opinião do rei; e anunciou-se aos Padres que não sairiam do reino, onde prestavam tão grandes serviços.

Qualquer que fosse a dor de Francisco Xavier, submeteu-se às ordens do soberano como à voz da Providência e continuou os seus trabalhos. Não se queixou nem mesmo ao seu Padre Inácio, limitando-se a expor-lhe somente os factos com a humildade e submissão habituais, e aguardou a sua decisão.