IV. EM FIRANDO E MEACO - O DOM DAS LÍNGUAS - PERSEGUIÇÕES E TRABALHOS

O ruído estrepitoso e repentino de numerosas salvas de artilharia, ao qual se misturavam os gritos confusos e prolongados de uma multidão de vozes, pôs em grande agitação toda a população de Firando, levando o terror ao espirito do seu rei Taquanambo.

Malquistado de pouco com o jovem soberano de Saxuma, temia que aquilo fosse uma surpresa deste antigo aliado tornado seu inimigo, e que ele tivesse chamado em seu auxílio os portugueses cujos navios se achavam ancorados nas suas águas.

Como defender-se do formidável canhão dos europeus? A situação era embaraçosa e critica e importava tomar conhecimento dela desde logo.

Taquanambo, possuído de tão sinistros pensamentos e cheio de terror, despachara um dos seus cortesãos com ordem de se informar com exactidão do que se passava no porto, e esperava a volta do emissário na maior ansiedade, quando este chegou.

Este disse ao rei, dando-lhe completa certeza que todo aquele ruído não era mais do que uma manifestação de alegria da parte das equipagens dos navios; que os portugueses e em geral os europeus, costumam exprimir a sua alegria por meio de tiros de canhão, saudar os seus soberanos com tiros de canhão, e matar os seus inimigos também a tiros de canhão!

- Ora, acrescentou o enviado, os portugueses dos navios ancorados no nosso porto, acabam de experimentar uma surpresa que lhes causou tão grande alegria, que gritaram e dispararam os seus canhões como se tivessem visto o inimigo ou o rei; eis tudo.

- E sabe-se o que foi que lhes causou aquela alegria e entusiasmo? perguntou Taquanambo.

- O que os regozija tanto, é que o grande bonzo europeu, que faz, quando quer, chover sobre a terra e aparecer o peixe no mar, aquele bonzo que restitui a vida aos mortos e a saúde aos doentes, aquele bonzo cristão, cujo Deus é tão poderoso, chegou ao porto num junco do país; os portugueses reconheceram-no de longe, dispararam os seus canhões, soltaram gritos de alegria, fizeram soar todas as suas trombetas, içaram todos os seus pavilhões e abraçaram o bonzo em choros e risos,

Poder-se-ia supor que haviam enlouquecido, se não se' soubesse que aquele grande bonzo é um Deus, e que pouco era tudo- quanto se fizesse por ele.

Encantado o rei por saber que o célebre bonzo cristão estava em Firando, mostrou desejos de o ver, e os portugueses, para darem àquele príncipe uma idéia da veneração que lhes merecia o seu santo apóstolo, quiseram conduzi-lo ao palácio com grande pompa.

O humilde Xavier não pôde esquivar-se àquelas honras, mormente porque elas deviam engrandecer a religião de que era ministro.

Escoltado de todos os soldados das equipagens, coam o estandarte na frente, ao som dos clarins, e cercado dos oficiais e capitães em grande uniforme, atravessou o nosso Santo, as ruas e praças de Firando, e dirigiu-se ao paço de Taquanambo, que o recebeu com o acolhimento proporcionado a pompa que o cercava.

Os portugueses apresentaram-no ao rei como o personagem mais ilustre e como amigo do seu soberano, depois do qual ninguém era mais poderoso do que Xavier, o grande apóstolo das Índias.

E quando eles fizeram saber a Taquanambo que o rei ele Saxuma o havia obrigado a sair dos seus estados, este príncipe, satisfeito pela ocasião de contrariar o seu inimigo tornando-se agradável ao rei de Portugal, deu toda a liberdade ao missionário para pregar a religião cristã no seu reino.

Saindo do palácio, começou Francisco Xavier a falar de um só Deus na praça pública, e o povo veio imediatamente cercá-lo e ouvi-lo.

Vinte dias lhe foram suficientes para fazer mais cristãos do que havia feito em Cangoxima no decurso de mais de um ano.

E como a docilidade e a dedicação daquele povo prometia os mais consoladores resultados, não hesitou em lhes deixar o Padre Cosme de Torres, para ir levar mais longe as suas conquistas.

Partiu, portanto, pelos fins de Outubro de 1550, acompanhado de João Fernandes e de dois cristãos japoneses, Bernardo e Mateus; foi embarcar-se em Facata, para se dirigir de ali a Amanguchi, capital do pequeno reino de Naugata, a mais de cem léguas de Firando.

Sua intenção era de não se demorar em Amanguchi, e de continuar a viagem até Meaco, capital do império; mas tendo conhecimento da desordem de costumes que reinava na capital de Naugata, quis aí lançar, de passagem, a semente evangélica. Espalhava-a às mãos cheias; o seu zelo, excitado pelo pensamento dos crimes que manchavam aquela cidade, parecia mais ardente do que nunca; o fervor da sua oração continua, por todas aquelas almas perdidas no vicio, correspondia ao seu zelo; mas Deus quis que ele não colhesse, naquele momento, senão o insulto e o ultraje.

O povo, inclusive as crianças, perseguiam-no apedrejando-o e enchendo-o de injúrias!

Francisco Xavier suportou aquelas humilhações com uma mansidão inalterável, e não atribuiu senão aos seus pecados o nenhum sucesso das suas pregações.

Oxodono, rei de Amanguchi, querendo conhecer por si próprio a doutrina europeia, de que tanto se falava, desejou ver os bonzos da Europa, e reuniu os grandes da corte para os ouvir.

- De onde sois vós? perguntou ele a Xavier.

- Sou europeu.

- Porque viestes ao Japão?

- Para pregar a lei de um Deus único; porque ninguém se pode salvar, se não adorar aquele Deus e Jesus Cristo seu Filho, com um coração puro de vícios, se lhe não render o culto religioso que lhe é devido, se não cumprir, finalmente, a lei divina.

- Explicai-nos essa lei.

Então o santo apóstolo explicou as principais verdades da fé, respondeu às objeções de cada um, falou mais de uma hora, e fez até verter algumas lágrimas ao seu auditório... mas foi tudo quanto conseguiu. Não ganhou nem uma só alma para Jesus Cristo!

Depois de ter assim semeado sem colher durante um mês inteiro, resolveu-se a tomar o caminho de Meaco com os seus companheiros, pelos fins de Dezembro, por uma chuva miúda e nevada que não cessava senão para deixar cair o gelo mais espesso e duradoiro.

O inverno é tão rude e rigoroso no Japão, que as casas se comunicam por galerias cobertas sem sair à rua. Mas a coragem dos quatro viajantes é superior ao rigor da temperatura; ela vencerá denodadamente todos os obstáculos que se opuserem ao seu zelo.

O nosso humilde e intrépido Xavier, cujo exemplo animava os seus companheiros, empreende resolutamente, a pé, com o seu altar às costas, e sem fato de inverno, uma viagem de quinze dias de jornada em qualquer outra estação, mas cuja duração provável não se podia antever pelo tempo da neve, dos tufões tão violentos, tanto em terra como no mar.

Bernardo servia de guia e levava às costas as provisões de boca... um saco contendo arroz torrado. Era aquele todo o recurso que possuíam para se reconfortarem das suas fadigas; e elas foram grandes naquela viagem!

Foram grandes para o corpo; foram grandes para o coração, e para a alma dos nossos heróis, mas a sua coragem não foi abalada.

Por todo o caminho se encontravam torrentes geladas; era necessário atravessá-las; escorregavam, caíam e feriam-se... Não importa! levantavam-se, prosseguiam e chegavam à outra margem, tomando o Santo a mão aos outros três menos ágeis, conquanto mais novos do que ele.

Umas vezes enterravam-se ria neve até por cima dos joelhos: outras vezes também, depois de terem trepado penosamente os rochedos escarpados das altas montanhas, nas quais a neve era rija e gelada, desapareciam de repente, e iam parar ao fundo dum abismo, de onde não poderiam sair senão por milagre da divina Providência que velava por eles, não poupando nenhuma prova à sua fé.

Aquelas grandes fadigas influíram finalmente na saúde do nosso Santo: ele foi atacado de uma febre que o obrigou a deter-se por alguns dias em Facai; mas logo que se sentiu melhor, seguiu corajosamente o caminho de Meaco.

Em todas as cidades, em todas as aldeias que atravessava, ele anunciava um só Deus e Jesus Cristo seu Filho, por quem unicamente o homem pode ser salvo; mofavam dele. As crianças perseguiam-no gritando: Deus! Deus! Deus! Xavier repetia tantas vezes aquela palavra nas suas pregações, que as crianças a retinham como uma palavra estrangeira que haviam ignorado até então.

Não tendo a língua japonesa o equivalente à palavra Deus para exprimir a idéia de um poder soberano, o santo apóstolo pronunciava aquele nome em português; era tamanha a admiração dos japoneses, que se riam sem compreender.

Numa cidade em que ele se via escutado com mais atenção do que de antes, falou por mais tempo, explicou a necessidade de fugir ao vício e de praticar a virtude para ser salvo. Aquela estranha doutrina excitou o furor da multidão.

Lançam-se sobre o Santo, arrastam-no para fora dos muros da cidade, condenam-no a ser apedrejado, e ia-se já executar aquela cruel sentença, quando uma tempestade horrorosa, que ninguém havia previsto, rebentou tão violenta, que cada um fugiu precipitadamente a buscar um abrigo.

Francisco Xavier ficou só no meio daquela tormenta, agradecendo à adorável Providência que o livrara assim duma morte certa, para lhe dar tempo de levar mais além o nome de Jesus Cristo.

Contudo os nossos viajantes continuavam a sua jornada para Meaco, através de perigos constantemente renovados e de retardamentos e embaraços tais, que Bernardo, encarregado de dirigir a pequena caravana, muitas vezes enganado pela, neve de que o país estava coberto, se desnorteava completamente.

Um dia em que ele não conseguia orientar-se suficientemente, viram um cavaleiro que parecia estar seguro do caminho que seguia. Xavier perguntou-lhe se eles estavam na estrada de Meaco.

- Sim, respondeu ele, e eu também para aí vou; se vós quereis seguir-me, vinde, levai-me este pacote que me é de grande embaraço sobre o meu cavalo.

- Da melhor vontade, lhe disse o Santo.

E carregou com um grande alforge, satisfeito por ter sido tomado por um pobre desgraçado que qualquer tinha direito de fazer trabalhar por sua conta. O viajante nem sequer afrouxou o passo do cavalo, resultando disso que Francisco Xavier, esforçando-se por muito tempo em o seguir, caiu na estrada, desfalecido, aniquilado, semi-morto de debilidade e de fadiga.

Os seus companheiros, que não tinham podido caminhar tão ràpidamente, não obstante os seus desejos, acharam-no estendido no chão, e mal podendo falar!

Suas pernas e pés, excessivamente inflamados, estavam feridos em vários lugares... Mas não se queixava; esperara chegar assim até Meaco, guiado pelo cavaleiro desconhecido.

Deus, porém, não o permitira, somente lhe dera uma ocasião de se humilhar e de sofrer, e ele agradecia-lhe com todas as forças da sua alma.

Finalmente, depois de dois meses da mais penosa jornada, entrava ele em Meaco, pelos fins de Fevereiro de 1551.

Encontrou aquela cidade absorvida rios trabalhos de uma guerra; não conseguiu obter audiência do soberano, cuja autoridade reconheceu ser nula; e considerando que não era própria a ocasião de anunciar àquela cidade uma religião desconhecida, que condena todas as desordens em que ela se achava abismada, tomou a resolução de voltar a Amanguchi, mas em condições diferentes.

Notara ele que o povo escarnecia da sua pobre batina rota, que remendava por suas mãos o melhor que podia; mas somos forçados a concordar que aquele meio não era o melhor, e que equivalia quase a uma rotura constante com o povo convinha pois mudá-la.

Notara também que os japoneses eram muito curiosos de todos os produtos da indústria europeia, e convencido de que presentes daquele gênero lhe mereciam a estima do rei, dirigiu-se imediatamente para Firando onde deixara, entregue aos portugueses, os objecto que lhe havia parecido supérfluo levar.

Quando partiu de Meaco, cantava ele os primeiros versículos do salmo CXIII, com um acento que comoveu vivamente João Fernandes, e lhe fez pensar que o seu Padre Xavier se achava interiormente esclarecido sobre o progresso que a religião faria em breve no império cuja capital acabava de deixar.

A sua viagem foi pelo rio, por ser muito longa a jornada por terra, para ser feita a pé; demais, o estado da guerra daquele país tornava-a cada dia mais perigosa. Em Facai, embarcou-se e chegou a Firando.

O vice-rei das Índias e o governador de Malaca haviam-no forçado a levar para o Japão um pequeno relógio, uma espineta, instrumento muito procurado então, mesmo na Europa, e alguns outros objecto desconhecidos nos países que ele ia percorrer.

Francisco Xavier, esperando tudo do efeito daqueles presentes, no espirito do rei de Amanguchi, apressou-se em solicitai dele uma audiência logo que ali chegou.

O rei, maravilhado daqueles prodígios, admirou a inteligência e os talentos dos europeus, e no mesmo dia enviou ao chefe dos bonzos cristãos uma considerável soma de dinheiro que ele lhe devolveu intacta. Xavier recusava-a e pedia somente uma nova audiência para a manhã seguinte, a fim de entregar a Oxodono as cartas do arcebispo das índias e do governador de Malaca.

- É admirável! - disse Oxodono-, os bonzos da Europa recusam dinheiro, e os nossos tudo quanto têm acham pouco!

Na audiência do dia seguinte, ele louvou o bonzo cristão e lhe agradeceu testemunhando o desejo de lhe ser agradável.

- Todo o favor que eu solicito, respondeu-lhe Xavier, é a permissão de pregar a religião de Jesus Cristo nos vossos Estados, porque nenhum homem pode ser salvo senão por ele.

Oxodono, admirando o desinteresse dum tal bonzo, autorizou-o a pregar a religião que inspirava tanta generosidade, promulgou o édito pelo qual permitia a seus vassalos praticar a religião cristã, e proibiu, sob as mais severas penas, que se inquietassem os bonzos daquela religião.

Fez mais ainda; concedeu para morada de Xavier e dos três cristãos que o acompanhavam, uma antiga habitação dos bonzos, desabitada.

"...Logo que ali nos estabelecemos, escrevia o nosso Santo, fizemos lá as nossas instruções, e a afluência dos ouvintes era imensa. Pregávamos duas vezes ao dia, e em seguida a cada discurso, tínhamos uma longa conferência sobre as matérias de que tínhamos tratado, de modo que não cessámos de pregar ou de responder a questões que nos eram dirigidas.

Bonzos, nobreza, gente do povo, tudo, finalmente, concorria em chusma, e os que não podiam entrar ficavam à porta.

O resultado foi que a falsidade das superstições pagãs e as dos seus autores ficou desde logo demonstrada, e que a verdade apareceu brilhante a todos os espíritos.

É notável que aqueles que tinham sido os mais teimosos na discussão, foram as nossas primeiras conquistas. Quase todos eram homens de distinção, que se tornaram os nossos melhores amigos desde que foram cristãos, e nos puseram ao corrente dos mistérios, ou antes das inépcias da religião japonesa dividida em nove seitas.

Esclarecidos por este lado, fácil nos foi entrar na luta, Em cada discussão com os bonzos, mágicos e outros, confundíamo-los imediatamente com os nossos argumentos e raciocínios...".

A ansiedade daquele povo em procurar a verdade junto do santo apóstolo, não conhecia limites.

Não somente durante o dia, mas até de noite, vinham submeter-lhe as dificuldades. Ele não conseguia quase nunca recitar o seu breviário sem interrupção, e conquanto lhe fosse permitido rezar um ofício mais curto que o romano, nunca se aproveitou daquela autorização.

Conta-se até que ele jamais omitira a recitação do Veni Creator antes de cada uma das horas canônicas, e que o seu semblante se animava então como se o Espírito Santo tivesse querido dar um sinal sensível da sua presença sobre o seráfico Xavier.

Julgue-se por isto do sacrifício que ele se impunha, entregando-se incessantemente à discrição dos que o vinham consultar. Algumas vezes até, nem mesmo lhe deixavam tempo de dizer a missa, e muito menos ainda podia ele dispor dum momento para algum pequeno repouso ou tomar uns ligeiros alimentos: era aos olhos de todos um milagre permanente a que sustentava a sua preciosa existência e lhe dava força de resistir a fadigas que nenhum outro teria podido suportar.

Propunham-lhe as mais difíceis e variadas questões; ele ouvia com serenidade, dignidade e benevolência; depois, respondia a cada um coze tanta clareza, e apresentava a verdade tão palpável, que fazia mudar de opinião a todos.

Um dia em que a concorrência era imensa e as questões mais numerosas ainda que de costume, manifestou Deus o seu poder de uma maneira até então desconhecida. .

Pedia um ao apóstolo amado de Deus explicação da eternidade, que não podia compreender, enquanto outro rogava que lhe desse a do movimento dos astros; um terceiro desejava que ele esclarecesse as suas dúvidas sobre a imortalidade da alma, e um quarto queria saber donde vinham as cores do arco-íris; alguns outros propunham dificuldades sobre a graça, ou desejavam saber como se dão os eclipses do sol, enquanto que outros queriam ainda ser ilucidados sobre as penas do inferno, ou sobre a extensão e a população da terra.

O grande Xavier ouvia todas as questões que lhe propunham coxas a sua graça e bondade ordinárias. Quando terminaram, levantou-se, lançou sobre a imensa assembléia um olhar inspirado, pronunciou algumas palavras e produziu em todos uma tal suprema e admiração que pareciam atacados de paralisia. Olhavam-se, olhavam para Francisco Xavier, e não achavam palavras com que exprimissem os sentimentos de que se viam possuídos...

Uma só resposta do santo apóstolo operara o mais maravilhoso dos prodígios: resolvera, ao mesmo tempo, todas as dificuldades duma maneira tão clara, tão precisa e tão completa que cada um se julgava sob a impressão dum sonho!

Foi contudo necessário reconhecer a realidade daquela maravilha, e para isso Deus a renovou depois, pelo seu apóstolo privilegiado, todas as vezes que lhe eram apresentadas semelhantes questões em grande número e diversidade e que exigiam muito mais tempo do que aquele de que ele podia dispor.

Os japoneses não quiseram ver naquele prodígio um milagre do poder divino e persistiram por muito tempo em o atribuir á ciência de Francisco Xavier, para a qual, diziam eles, não havia mistério neste mundo nem no outro; o que fazia com que os bonzos dissessem, quando falavam do Padre Torres

"Ele teias ciência, é verdade; mas não pode ser comparado ao Padre Xavier! Não existe outro talento que possa resolver tantas dificuldades por uma, só resposta! O Padre Francisco Xavier é o maior homem da Europa e do mundo inteiro!"

As conversações aumentavam à medida que os espíritos se viam mais esclarecidos, e como a classe ilustrada não carecia já de conferências, julgou Xavier devei cessá-Ias para se dedicar às pregações nas praças públicas. Elas tornavam-se muito necessárias porque os bonzos das diversas seitas, buscando combater a influência do grande bonzo cristão e o poder das verdades que ele ensinava, se combinaram para o desacreditar publicamente, e esforçavam-se por influir no ânimo do povo contra aquela religião nova que condenava todos os prazeres e excitava a cólera de Amida e Chaca.

Francisco Xavier pregava pois duas vezes por dia num bairro, enquanto João Fernandes pregava noutro, com grande desgosto dos bonzos, cujo crédito diminuía em proporção da confiança que o nosso Santo inspirava.

Os chineses, que o comércio atraia a Amanguchi, tiveram a curiosidade de ver o famoso bonzo europeu, de quem se diziam tantas maravilhas, e correram para a principal praça, logo que souberam que ele ali pregava.

A língua do Japão é bem diferente da da China, mas os mercadores chineses sabiam o necessário para o seu comércio, e esperavam compreendei alguma coisa da doutrina trazida de tão longe, e que aquele bonzo tão maravilhoso não adulterava.

Em presença do nosso apóstolo experimentaram eles um sentimento de respeito que testemunharam pela sua atitude e olhar. Xavier conheceu isto; o seu coração comoveu-se à vista daqueles chineses que o escutavam, e coxas a idéia do seu vasto império que a luz do Evangelho não esclarecera ainda. O seu desejo de ali penetrar, de levar para ali o adorável nome de Jesus Cristo torna-se rasais intenso, mais ardente do que nunca, e lança um olhar de compaixão para aqueles pobres pagãos...

Um novo prodígio se opera! Deus restitui ao seu apóstolo o dom que lhe havia sido retirado à sua chegada ao Japão.

Xavier dirige-se aos chineses que o escutam, e fala-lhes a sua língua vernácula com a maior perfeição possível! O povo, arrebatado por aquela admirável maravilha, exclama em altos gritos e batendo palmas, que jamais homem algum foi tão grande como o bonzo cristão, e que a sua doutrina não pode deixar de ser superior à dos bonzos japoneses.

Alguns dias depois, o número dos cristãos crescera consideravelmente, e em menos de dois meses mais de quinhentos idólatras haviam renunciado aos seus ídolos e recebido o batismo.

Os grandes e os sábios deram o exemplo; o povo seguiu-os, e o fervor daqueles neófitos era tão manifesto que a única conversação em toda a cidade de Amanguchi era sobre a religião cristã e as suas santas práticas. Eles viam-se tão felizes, que não tinham expressões para testemunharem o seu reconhecimento àquele que viera de tão longe para lhes trazer a verdade, e coze ela a felicidade desta vida e da vida eterna. Xavier chegara ao auge da alegria

"...Conquanto eu esteja já todo branco[70], escrevia ele, sinto-me mais vigoroso e mais robusto do que nunca, porque os trabalhos a que a gente se entrega para instruir uma nação civilizada, ávida de conhecer a verdade, são bem adoçados pela abundância das searas e pela esperança de novas colheitas.

Na maior das minhas fadigas, quando me era necessário satisfazer ao empenho da multidão entusiasta que concorria gostosa às nossas conferências, o meu corpo banhava-se em suor, é verdade, mas a minha alma nadava em alegria!"

"Um dos principais fidalgos deste pais, o príncipe Neatondono, assim como sua mulher, deram-nos provas evidentes da sua afeição, promovendo todos os meios para a propagação do Evangelho; mas não pudemos determinar nem um nem outro a abraçar uma religião cujas verdades reconheciam. E porquê Porque eles depositaram grande soma de dinheiro no banco do deus Amida; porque estabeleceram em honra do mesmo deus mosteiros de bonzos e os mantêm ricamente dotados, a fim de que os bonzos orem e roguem sem cessar ao deus Amida que os preserve de toda a desgraça neste mundo que lhes faça participar da sua felicidade no outro. Temiam por tanto perder o capital, o interesse e a recompensa, se mudassem de religião.

Uma circunstância veio aumentar ainda muito o número dos cristãos, com grande desespero dos bonzos.

João Fernandes pregava um dia em uma praça; o povo escutava-o em recolhimento, quando um homem de ínfima classe se aproxima e lhe escarra afrontosa e atrevidamente no rosto!

Fernandes, formado na escola do humilde Xavier, não mostrou alterar-se com o ultraje que recebera; tira o seu tenso com a maior serenidade, limpa o rosto e continua a falar sem mesmo procurar ver de onde partira aquele insulto.

A heróica paciência de Fernandes foi apreciada e admirada como merecia; ela produziu numerosas conversões entre os pagãos que foram testemunhas daquele facto, e achavam-se ali indivíduos de todas as classes. Um deles, notável pelo seu nascimento e pela sua instrução, e que recebera no batismo o nome de Lourenço, veio a ser tão devotado cristão, que, depois de suficientes provas, Xavier o admitiu na Companhia de Jesus. Ele viera a Amanguchi para se fazei admitir no número dos bonzos, e veio a ser jesuíta!

Tais progressos do Cristianismo, traziam naturalmente a ruína completa dos sacerdotes de Chaca e Amida; o inferno pedia vingança e para isto se trabalhava com todo o ardor.

Os bonzos queixavam-se ao rei; Oxiondono cedeu às suas ameaças, e sem revogar o édito concedido ao Padre Xavier, mostrou-se hostil à religião cristã; mandou confiscar os bens dos fidalgos que a tinham abraçado, e concedeu aos bonzos a liberdade de caluniar publicamente os pregadores europeus.

Aquelas medidas tiveram um efeito oposto, pois que fez crescer consideravelmente o número dos cristãos, ao ponto de chegar a mais de três mil dali a poucos dias, e todos tão fervorosos, tão dedicados, que teriam preferido a morte mais cruel, a ter de renunciar à sua fé.

No meio destas grandes consolações, soube Francisco Xavier que um navio português acabava de chegar ao porto de Figen, a cinquenta léguas de Amanguchi, e a uma légua de Funai [71], capital do reino de Bungo. Escreveu imediatamente ao capitão e aos daquele navio pedindo-lhes os seus nomes, notícias das Índias e da época em que deviam voltar, e expediu Mateus encarregado daquelas cartas.

Admirados e satisfeitos os portugueses por saberem que o seu santo Padre se achava tão perto deles, mandaram-lhe as cartas de Goa e de Malaca de que vinham encarregados, respondendo-lhe que dentro de um mês se fariam à vela para um porto da China onde haviam deixado três navios, um dos quais era comandado por Diogo Pereira, seu amigo, e que em janeiro voltaria às Índias.

Cinco dias foram suficientes para que Mateus fizesse o duplo trajeto por mar.

Xavier recebeu de Goa uma carta do Padre Camerini em que lhe dizia que a sua presença ali era indispensável, a bem dos negócios da Companhia, e suplicando-lhe que viesse imediatamente.

A esta noticia, ele chama o Padre Torres a Amanguchi, confia-lhe aquela florescente cristandade e parte com Bernardo, Mateus e dois jovens cristãos de elevado nascimento, cujos bens haviam sido confiscados pelo rei e que se recusavam a recobrar a posse deles a troco da sua fé.

Lourenço também se reuniu a eles, e, pelos fins de Setembro, de 1551, os nossos viajantes puseram-se a caminho, a pé, com um bastão na mão e levando cada um às costas uma parte das suas poucas bagagens. A viagem teria sido mais curta e muito menos penosa por mar; Xavier, porém, cujas mortificações se uniam ao zelo, quis viajar por terra como os peregrinos pobres.

Caminharam cinco dias a marchas forçadas; mas chegados a Pinlaschau, aldeia situada a quase duas léguas do porto de Figen, as forças abandonaram-no completamente e caiu aniquilado de fadiga; atacado pela febre e violentas dores de cabeça, com os pés extremamente inflamados, não pôde seguir um passo mais.

Mateus, Bernardo e Lourenço continuam para diante e levam aquela triste notícia ao São Miguel, único navio português que se conservava ainda no porto de Figen.

O capitão, D. Eduardo da Gama, convoca imediatamente todos os oficiais e mercadores que estavam em Funai, diz-lhes que o santo Padre está doente a duas léguas do porto e convida-os a montar a cavalo para o ir ver; todos anuem em acompanhá-lo e prestar os seus serviços ao santo Padre, objeto de tanta veneração para os portugueses. A um quarto de légua de Figen, a cavalgada suspende-se admirada, o capitão apressa-se em apear e todos os mais põem pé em terra...

Francisco Xavier estava ali. Caminhava penosamente, apoiado ao seu bordão; tinha o rosto pálido, desfigurado, e os cabelos sensivelmente esbranquiçados... D. Eduardo da Gama só o reconhece pela radiante expressão da sua angélica Fisionomia, expressão que com nenhum sofrimento se alterava.

O humilde Padre não ignora os sentimentos que inspirava: convencido de que D. Eduardo da Gama viria ao seu encontro com os portugueses do seu navio, e achando-se um pouco melhor, resolvera pôr-se a caminho.

O capitão, tendo feito inúteis esforços para o obrigar a montar a cavalo, viu-se forçado a acompanhá-lo a pé com todos os seus cavaleiros. A equipagem logo que descobriu o Santo querido ao lado do capitão disparou os seus canhões, içou as bandeiras, os clarins soaram e as aclamações de alegria fizeram-se ouvir ao longe...

Era uma festa para todos!

Aconteceu também em Funai o que acontecera em Firando; a população pôs-se em alarme cheia de terror ouvindo aquelas numerosas descargas de artilharia; o rei sentiu tremer o seu trono julgando-se atacado pelos europeus; o pavor chegara a todos os espíritos.

Um grande da corte apresentou-se, todo aterrado ao capitão do São Miguel, a informar-se, em nome do rei, da causa daquele formidável motim. O capitão mostra-lhe pela mão o santo Padre tão prezado, e diz-lhe:

- Eis aqui, senhor, a causa deste entusiasmo que vos pôs em alarme e vos causou tão grande susto. Nós quisemos dar ao nosso santo Padre Xavier um testemunho da nossa alegria por o tornar a ver. Dizei ao vosso rei que vistes o homem mais ilustre, a honra e glória de Portugal, e das Índias, o amigo mais querido do nosso grande soberano, o homem do mundo mais amado e mais respeitado!

- É, pois, este bonzo cristão que tem feito tantas maravilhas em Amanguchi, perguntou o fidalgo japonês, e de quem os nossos bonzos dizem tanto mal? Eu não vejo nele nada daquela grande celebridade; parece bem pobre, bem mal vestido!

- Isso é verdade, senhor, respondeu-lhe D. Eduardo; mas o nosso santo Padre Xavier, de uma das mais nobres famílias da Europa, renunciou a sua fortuna, assim como a todas as honras da corte, por amor de Deus que nós adoramos, e por dedicação para com todos os homens, a fim de salvar as suas almas pregando-lhes as verdades cristãs.

O cortesão do rei de Bungo não teve que responder, e só se mostrava confundido e admirado do que ouvia. E depois de haver examinado bem o Padre Xavier, apressou-se a voltar para junto do rei a fim de lhe dar conta da sua mensagem.