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Tinha-se, combinado, como já fica dito, que os discípulos de
Inácio se reuniriam em Veneza, nos primeiros dias do ano de
1537. Nessa data era já o seu número mais crescido.
Arrastados pelo poder do exemplo, três mancebos, igualmente
distintos nas Ciências, e notáveis pelos seus merecimentos
pessoais, haviam-se incorporado aos nossos ferventes religiosos com a
resolução firme de partilharem da mesma vida de pobreza, humildade,
obediência e devoção. Eram dois padres, Cláudio Lejay e
Estêvão Brouet, e um secular, João Codure. Todos três haviam
feito iguais votos em dia da festa da Assunção de Maria, e Xavier
e seus irmãos renovaram os seus na mesma ocasião.
Partiram, pois, com destino a Veneza, em número de nove:
Francisco Xavier, Pedro Fabro, Diogo Laynez, Afonso
Salmeron, Simão Rodrigues, Nicolau Bobadilha, Cláudio
Lejay, Estêvão Brouet e João Codure. Puseram-se a carrinho a
15 de Novembro de 1536, vestidos de longas batinas, levando
cada um o seu bastão na mão, o breviário debaixo do braço e o
rosário pendente exteriormente sobre o peito, com o fim mostrarem,
nos países protestantes que tinham de atravessar, a sua dedicação à
religião católica; levavam às costas pequenos malotes com alguns
livros e manuscritos.
Empreenderam a jornada a pé, esmolando pelo caminho, e porque a
guerra com Carlos V tornava impraticável uma grande parte da
fronteira, viram-se na necessidade de alongarem muito mais o seu
itinerário, passando pela Lorena, seguindo pela Alemanha e
atravessando pela Suíça para alcançarem a Itália.
Xavier, que se considerava feliz por ver realizado aquilo que o seu
zelo e fervor religioso tanto desejara, seguia corajosamente seus
irmãos, havia já muitos dias, quando repentinamente lhes declarou,
com a mais pungente tristeza, que não os podia acompanhar por que se
não sentia com forças de prosseguir mais para diante:
- Porque motoro? perguntaram-lhe os outros imediatamente. Estais
doente, não é assim?
- Sim... é verdade...
- E não há que duvidar, disse Fabro, que o conhecia mais de
perto; o vosso semblante denuncia grandes sofrimentos. Que tendes?
- Tenho alguma febre... e conheço que não posso, andar
mais... Continuai, meus amigos, a jornada sem mim... eu vos
alcançarei em breve.
- Que vos deixemos aqui! que vos abandonemos! Por certo que não.
Deve haver nesta aldeia, ou nas suas proximidades, um médico;
recorreremos a ele para vos tratar e não vos deixaremos.
- À palavra médico, Francisco empalideceu e dirigindo ao seu amigo
um olhar suplicante, disse-lhe:
- Oh! não, imploro-vos que me deixeis aqui e partais.
Fabro, porém, insistiu, e Xavier viu-se forçado a confessar toda
a verdade àquele que possuía, há muito, toda a sua confiança.
Eis o que ele veio a saber.
Que um dos maiores prazeres de Xavier, nos seus passados tempos de
infância, eram as corridas e outros exercícios do corpo, nos quais
se tornava notável e causava admiração, pela grande agilidade e
graça dos seus movimentos. Era tão destro em todos os exercícios
ginásticos, e executava-os com tal destreza e perfeição, e isto
junto à sua natural elegância e notável beleza, produzia um tal
entusiasmo nos espectadores, que o levaram a comprazer-se com aquele
gênero de divertimento, orgulhando-se dos aplausos que recebia.
Esta vaidade foi amargamente lamentada por Francisco, desde que
compreendera a ilusão dela, e no desejo de a expiar imaginou ligar
fortemente as pernas, até acima dos joelhos, com rijos cordéis e por
tal modo, que depois de alguns dias de jornada, lhe produziram tão
grande inchação que encobria completamente as ligaduras já enterradas
na carne. O jovem Santo sofrera até ali com a maior resignação
aquela tão dolorosa tortura, sem que nenhum dos seus irmãos e
companheiros suspeitassem o suplício que sé impunha.
Fabro comunicou imediatamente aos seus companheiros esta triste
descoberta; transportaram o querido doente até à aldeia mais próxima
e chamaram um cirurgião que declarou desde logo ser a operação
impraticável.
- Só Deus, disse ele, pode evitar os funestos resultados que devem
sobrevir, tendo em atenção a causa porque o sacrifício foi feito.
Tentar retirar as ligaduras, é expor o doente a morrer durante a
operação.
Xavier, cheio de confiança na bondade infinita, e certo de que ela
não permitiria que ele servisse de obstáculo à pronta partida dos
seus irmãos, rogou-lhes que suplicassem a Deus esta prova da sua
proteção à empresa encetada.
- O cirurgião tem razão, disse ele, é necessário pedir a Deus
que me livre; Ele o fará, tenho nisso toda a confiança.
No mesmo instante todos se entregaram à oração; era quase noite.
O doente dormiu e teve um sono tranqüilo; na manhã seguinte viu-se
que as ligaduras tinham caído por si em pequenos fragmentos, a
inchação. havia desaparecido de todo, extinguira-se a
inflamação, os cordéis não tinham deixado o menor vestígio sobre a
pele, e Xavier sentia-se cheio de saúde.
Depois de fervorosas orações em ação de graças, puseram-se de
novo a caminho. A passagem dos nossos peregrinos pela Alemanha não
foi isenta de perigos.
Os heréticos, reconhecendo a sua ortodoxia pelo rosário que
ostensivamente levavam, apupavam-nos com ultrajes e ameaças. A
Providência, porém, que por eles velava, mimava-os a suportai
todas estas provas sem se lastimarem, e ate agradecendo do fundo do
coração e pedindo a Deus a conversão destes pobres desgarrados;
graças a esta proteção divina, chegaram salvos a Veneza a 8 de
janeiro de 1537.
O seu santo mestre recebeu-os com lágrimas de ternura e bondade
paternal. Desejava que os seus amados discípulos fossem apresentados
ao Sumo Pontífice antes de partirem para a Palestina; porém a
viagem para Roma não podia também ser desde logo efectuada, e nesta
contrariedade distribuiu-os pelos diversos hospitais de Veneza,
cabendo o dos incuráveis a Xavier.
Para se poder avaliar os progressos que o nosso Santo havia já
feito, sob a direção de Santo Inácio, recordemo-nos do que ele
era no colégio de Santa Bárbara, quatro anos antes, e vejamo-lo
agora no hospital dos incuráveis, quando lhe disseram que existia,
numa sala vizinha, um doente com uma úlcera tão repugnante, que era
necessário uma coragem sobre-humana para se poder aproximar dele.
Nunca, até então, o elegante Francisco pudera ver uma úlcera;
tinha por esta espécie de doença um tal horror instintivo, que o
fazia fugir imediatamente; porém era já, outro, tornara-se um
homem novo; via-se por tal modo transformado que ouvindo falar do
doente, que todos evitavam, o seu semblante irradiou-se de alegria.
Reconhece que era esta a ocasião de vencer uma repugnância que lhe
parecia invencível, mas da qual esperava triunfar com o auxílio de
Deus.
O seu presado mestre, D. Ínigo, muitas vezes lhe dissera:
"Francisco, lembrai-vos que se não adianta no caminho da virtude,
senão quando se tenha triunfado de si próprio! É tão rara a
ocasião para um grande sacrifício, que não se deve deixar
escapar!"
Era esta, pois, para Xavier uma daquelas ocasiões que ele não
devia deixar passar. Pediu para ver o doente; aproximou-se
imediatamente dele, cheio de força e de coragem... Porém o cheiro
que exalava e ele sentia, fez-lhe tal repugnância que lhe _pausou
uma grande comoção e vacilou nauseado!... Era chegado o momento
de triunfar de si mesmo para dar um passo mais na renda da virtude,
segundo a máxima do seu santo amigo.
Firme neste pensamento, vai desenvolver toda a generosidade do seu
caráter: por maior que seja o sacrifício ele o fará.
Xavier cai de joelhos ao lado do doente, abraça-o carinhosamente,
fala-lhe de Deus, consola-o e anima-o, em mau italiano, é
verdade, mas com tão caridosa expressão que se tornou muito mais
eloqüente do que o poderia ser na mais apurada linguagem. Descobre
imediatamente o membro ulcerado... A repugnância cresceu!...
Porém o jovem Santo quer triunfar a todo o preço, porque sabe que o
combate se dá sob as vistas de Deus!
Aproxima o seu belo rosto do membro purulento e empalidece... a
natureza revolta-se... Xavier sente-se desfalecer...
Apressa-se, por isso, a levar os seus lábios para a hedionda
chaga! Beija-a! e para ir mais longe... chupa-a!!!
Deus esperava esta última vitória.
Xavier considera-se então mais feliz por ter triunfado de si, do que
havia sido até ali pelos seus brilhantes feitos do mundo.
Por este único traço da sua vida, se pode julgar do emprego que ele
deu ao seu zelo, à sua caridade, e á sua mortificação durante as
seis semanas que viveu neste lugar de sofrimentos. Enfermeiro e
servente dos doentes pobres, preferia desempenhar os serviços mais
vis, julgando-se feliz por expiar com aqueles exercícios de
caridade, sem glória aos olhos dos homens, a vaidade que de contínuo
lhe remordia a consciência.
Não era sem luta que ele.dominava as suas repulsões naturais.
Julgava-se nobremente vencedor pelos bons resultados que obtivera;
porém ficava-lhe ainda uma repugnância a subjugar: a vista dum
cadáver fazia-lhe mal, e deles procurou fugir sempre... mas
conseguiu ainda mais este sacrifício, aproximando-se e amortalhando
todos os cadáveres dos pobres que morreram naquele hospital, durante a
sua residência ali.
Queria triunfar completamente de si; procurava aproveitar todas as
ocasiões de se sacrificar, a fim de avançar dia a dia pelo caminho da
virtude.
Os doentes afeiçoaram-se desde logo aos desvelos e cuidados de
Francisco Xavier; até então nunca haviam experimentado cuidados
tão cheios de doçura e de afecto.
Ele dispunha de lenitivos para todos os sofrimentos, ânimo para todos
os pesares, palavras meigas e consoladoras para todas as dores, e,
finalmente, duma caridade evangélica. para todos, fazendo-os amar
com o mais notável desinteresse.
"Que virá a ser de nós, diziam os doentes, se tivermos a desgraça
de o ver deixar o hospital?!...".
Infelizes e pobres doentes
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