III. CASTELO DE XAVIER - O SANGUE DO CRUCIFIXO - IMPIEDADE DE UM GOVERNADOR

Todos os membros da nobre família de Azpilcueta de Asnarez se achavam reunidos, havia alguns dias, no velho solar de Xavier, berço de todos. Cada um deles havia recebido sob o seu tecto as primeiras carícias e a primeira educação; cada um aí recebera, mais tarde, a derradeira bênção e o último suspiro de um pai e de uma mãe terreamente venerados, e todos gostavam de reunir-se ali todos os anos com a companheira escolhida e os filhos que ela lhe dera.

Um somente faltava a essas agradáveis reuniões de família; um só se achava sempre ausente, mas este era sempre amado de todos. Demais, aquele que faltava, e cujo lugar vazio à mesa e no lar se respeitava, não era ele o mais magnífico lustre da nobre e piedosa família?

E tanto assim o consideravam, que todos se julgavam mais orgulhosos pelo grande apóstolo das Índias e do Japão, do que pelos antepassados cujos retratos e armaduras figuravam na grande galeria do castelo. Era mesmo ele, o querido ausente, que não deviam tornar a ver mais neste mundo, que dava lugar à reunião que nos ocupa, reunião antecipada, porque corria o mês de Abril.

Mas, logo nos primeiros dias de Fevereiro de 1552, o castelão de Xavier escrevera a seus irmãos, os quais uns estavam na corte e outros rias suas terras, comunicando-lhes que um acontecimento maravilhoso, ocorrido no solar, e que ele atribuía à grande santidade do seu querido Francisco, lhe fazia desejar a presença deles o mais cedo possível.

Logo que receberam esta mensagem, os irmãos combinaram-se por cartas, e cada um providenciara para se achar no castelo de Xavier nos primeiros dias de Abril, porque as viagens naquela época se faziam por pequenas jornadas, gastando-se nelas muito tempo, mormente quando se levava família.

Na sexta-feira da Paixão, achava-se reunida toda a família, muito cedo, na capela, onde o capelão ia oferecer o santo sacrifício. Todos tinham os olhos fixos no grande crucifixo de madeira, de tamanho natural, de que já falámos, esse crucifixo que D. Francisco adorara e que sua mãe venerava em memória daquele que Deus, no seu amor de preferência, arrebatara à sua ternura maternal.

De repente, muitos gritos se escapam ao mesmo tempo;... todas as cabeças se inclinam;... só se ouviam soluços de todos os lados... A maravilha renova-se!... Do crucifixo via-se correr sangue.

Aquele milagre reproduzia-se todas as sextas-feiras; algumas vezes até o sangue perolizava por todo o corpo, como um abundante suor, e as chagas das mãos, dos pés e do coração escorriam em igual abundância.

Esta maravilha manifestara-se pela primeira vez, na primeira sexta-feira de janeiro; renovara-se na segunda, depois ainda na terceira; preveniu-se a autoridade eclesiástica, e o arcebispo, depois de ter sido testemunha do facto, chamara o inquisidor, o governador da província, o comandante da cidadela e todas as mais autoridades de Pamplona para o verificar; todos o haviam presenciado e certificado. Era, pois, natural que o senhor de Xavier desejasse que toda a sua família fosse testemunha daquele prodígio.

Entre as cartas de S. Francisco Xavier, nenhuma encontramos dirigida a sua família durante todo o período do seu apostolado nas Índias : mas não tivéssemos nós outras provas dos sentimentos que por ela conservara senão o milagre do crucifixo, na capela do castelo de seus pais, que esta seria mais que suficiente.

É convicção geral no mundo, que a vocação religiosa extingue com seu sopro todas as afeições de família, e que aquele que se separa dos seus para seguir a vereda pela qual é chamado nada tem a sacrificar do seu lado. A ilusão é completa. Ternos ouvido dizer muitas vezes, mesmo a pessoas religiosas:

"Sim, S. Francisco Xavier é seguramente um grande Santo; mas ele recusou ver seus pais antes de partir para as Índias, e isto é muito duro: Um filho não tem o direito de impor um tal sacrifício a sua mãe! é contra a natureza!"

O que equivale a dizer que um filho, que ouve de um lado a voz de Deus e do outro a voz de sua mãe, e não tem o direito de obedecer à primeira; ou que Deus não tem o direito de pedir um sacrifício heróico àquele que de todo se dedica ao seu serviço e à sua glória.

Se o nosso Santo tivesse menos afeição a sua família, não teria julgado dever oferecera Deus a privação de a tornar a ver por uma última vez neste mundo. Aquela, sublime abnegação não é contra a natureza; é sobrenatural, o que é bem diferente.

Os que julgam assim aquela heróica ação do generoso Xavier, não leram por certo a sua correspondência. Não penetraram naquela alma tão sensível e tão ternamente expansiva: não compreenderam aquele coração que deixara verter tantas lágrimas pelos sofrimentos do próximo, que achava tão doces consolações para todas as dores, que tinha tão tenras caricias para a infância, que testemunhava uma tão compassiva caridade por todas as misérias...

Não compreenderam aquele a quem os leprosos e os empestados chamavam seu pai, seu amigo, seu consolados! aquele a quem os pobres beijavam as mãos, porque a sua humildade não permitia deixar-lhes beijar os pés!...

Mas Deus sabia tudo quanto o grande Xavier sofria por seu amor e pela sua glória, e parecia querer testemunhar a toda a família do ilustre Santo quão vivas e profundas eram as dores do seu laborioso apostolado, e de que abundantes consolações ele se sustinha naquela vida de imolação e de sublime dedicação pela glória de Deus e pela salvação das almas. Deus queria patentear que compartia os sofrimentos do heróico apóstolo, que afrontava todos os riscos, desprezava tanto os perigos, suportava tantas fadigas por honra do seu nome.

A família do nosso Santo assim o compreendeu: Ela tornou nota dos dias em que o sangue corria mais abundantemente das chagas e do corpo do crucifixo, e, mais tarde, confrontando-se as datas e os factos, foi reconhecido, asseguram os historiadores, que o sangue afluía mais quando o Santo apóstolo corria maiores perigos ou experimentava maiores sofrimentos.

Chegando a Malaca, encontrou Francisco Xavier aquela cidade infestada de uma epidemia contagiosa que devorava os seus habitantes. Os doentes estavam sem socorros; os mortos sem sepultura; os Padres da Companhia de Jesus dedicavam-se àqueles trabalhos sem contudo poderem satisfazer a todas as necessidades. Xavier, que sabia multiplicar-se por todos os modos, faz do colégio um hospital, excita os ânimos, prodigaliza os seus cuidados e suas consolações, não descansa um só instante, faz prodígios, e faz-se abençoar de todos como sempre. Nem ele nem os seus Irmãos foram atacados do contágio.

Tendo a peste diminuído de intensidade, Xavier pensava em preparar a sua viagem para a China, quando entrando um dia por uma rua donde ouvia gritos de dor, procurou a causa e soube que uma devota mulher, que estava desde muito tempo sob a sua direção, acabava de perder repentinamente seu filho.

Francisco Xavier tinha imprudentemente tocado aos lábios a ponta duma flecha indiana, e morrera quase instantaneamente: a flecha estava envenenada.

Xavier entra naquela casa de dor, comove-se de tantas lágrimas, e diz ao morto:

"Francisco! em nome de Jesus Cristo, levanta-te!"

Francisco levanta-se, e tendo recuperado uma vida que lhe foi restituída para a glória de Deus, vai consagrá-la toda inteira na Companhia de Jesus.

Pela mesma ocasião levara o nosso Santo ao governador o alvará de Intendente da Marinha, que o vice-rei lhe concedera em consideração para com Xavier, a quem nada se recusava. D. Alvaro recebeu, com testemunho de sincera gratidão este novo titulo que aumentava consideravelmente a sua fortuna e autoridade.

Xavier esperava que o primeiro uso que ele fizesse daquela autoridade, fosse o imediato armamento dum navio para a embaixada, e por muitos dias esteve nesta esperança sem ver os menores preparativos, quando soube que D. Alvaro jurara que a embaixada se não verificaria, que ele lhe poria todos os embaraços pelo seu poder, e que acabava de dar ordens para que se tirasse o leme da Santa Crus, a fim de impedir que Diogo Pereira pudesse partir, a despeito da sua oposição.

Havia dois motivos para a oposição do governador.

No ano anterior pedira ele a Diogo Pereira o empréstimo duma soma de dinheiro que Diogo lhe negara, em conseqüências de ter razões fundadas para suspeitar da sua insolvência. D. Alvaro prometera vingar-se.

A este primeiro motivo de oposição vinha reunir-se a inveja e a ambição. D. Alvaro levara muito a, mal que o não tivessem escolhido para embaixador, e que se tivesse honrado com aquela dignidade um homem de inferior nascimento e que fizera a sua fortuna no comércio marítimo.

Xavier fez-lhe oferecer uma considerável soma para satisfazer a sua sede de oiro, e captar assim a sua boa vontade, mas ficou malogrado. D. Álvaro queria tudo ou nada.

Esquecendo-se dos cuidados que Xavier lhe havia prodigalizado na grave enfermidade que acabara de sofrer; esquecendo-se que o bom Padre fora todos os dias dizer a missa na sua câmara durante todo o tempo daquela doença; esquecendo-se, finalmente, de tudo quanto devia ao Santo apóstolo, D. Alvaro resolveu chegar ao último extremo contra ele.

Os seus mais sinceros amigos fizeram-lhe lembrar as penas impostas pelas leis contra os funcionários que punham entraves à navegação dos navios mercantes portugueses, e o perigo de incorrer no desagrado do rei, recusando ao santo Padre Francisco os meios de propagar e estender a fé; nada pôde dobrar o irascível governador. Tornando a sua cana e ameaçando os oficiais que lhe falavam assim em seu próprio benefício, disse-lhes:

- Eu estou já muito velho para aceitar conselhos! Jurei que Diogo Pereira não iria à China nem a titulo de embaixador, nem a título de mercador, e declaro-vos que ele não irá enquanto eu for governador de Malaca e Intendente da Marinha! Se o Padre Xavier tem tanto desejo de pregar aos pagãos, se tem tão grande zelo pela sua conversão, que vá para o Brasil! que vá para o Monomotapal...

Francisco Alvares, na sua qualidade de comandante da cidadela, quis fazer valer a sua autoridade para haver o leme da Santa Cru.Z. Xavier opôs-se. O leme achava-se sob a guarda de soldados sujeitos à obediência do governador, e tê-lo-iam defendido; a pendência teria podido provocar uma revolta geral contra o autor daquela atroz injustiça, e Xavier não queria, portanto, autoriza-la; tentou um outro caminho, quis ensaiar um outro meio.

Pediu a D. João Soares, vigário geral, que fosse levar ao governador as cartas régias, ordenando a todos os oficiais de terra e mar todo o auxílio ao seu alcance para secundarem as intenções do Padre Xavier, e o decreto do vice-rei D. Afonso de Noronha, declarando criminoso do Estado qualquer que pusesse obstáculos à embaixada que enviava à China, em nome do rei D. João III. O vigário geral anuiu ao desejo do santo apóstolo, e levou aqueles documentos a D. Alvaro, cuja cólera, à vista deles, excedeu todos os limites

- Ora! que me importam os interesses do rei! exclamou ele empalidecendo de raiva. O rei assim o quer, eu não o quero! Serei o soberano! A embaixada não partirá!

D. Alvaro de Ataíde achava-se em estado de alucinação; todos os meios empregados para o chamar à razão faziam tornar mais densas as trevas do seu espirito, e aumentar a ferocidade do seu coração. Não contente de desprezar as ordens do seu soberano, expandia-se em palavras ultrajantes para o grande apóstolo das Índias, que sabia ser objecto de veneração para a cidade inteira; mas o humilde Xavier não lhe testemunhava senão a mais cativante caridade em retribuição dos seus culpáveis insultos.

Porém o período da monção ia já a terminar; os momentos eram preciosos; Xavier esgotara todos os recursos da sua humildade para vencer a oposição de D. Álvaro por meios suaves; julgou dever empregar, finalmente, os da severidade.

No século XVI, a ciência não tinha ainda feito grandes progressos; as luzes não se tinham ainda derramado a ponto de extinguir a fé nas almas e torná-las indiferentes aos efeitos das grandes ameaças da Igreja; estava reservada ao século das luzes e do progresso, ao século da perfeição, rir dos seus anátemas, mofar dos seus castigos, desconhecer e desprezar a sua autoridade divina.

D. Álvaro doe Ataíde antecipava a sua época.

Xavier se deixara conhecer ao arcebispo de Goa os poderes que tinha da Santa Sé; os grandes da corte de Portugal, que se sucediam nas Índias na qualidade de vice-reis, sabiam que Francisco Xavier era núncio do Papa; tinham ouvido isto na corte. Mas nos dez anos que o santo apóstolo estava nas Índias, preferira sempre apresentar-se em toda a parte, sob o título mais caro ao seu coração: o de membro da Companhia de Jesus.

Urgia, porém, tentar ainda um meio de vencer a obstinação de D. Álvaro; Xavier resolveu-se a isso. Apresentou a D. João Soares o breve que o honrava com a dignidade de núncio apostólico em todo o Oriente, conferindo-lhe todos os poderes que se ligavam ao cargo; depois entregou-lhe a seguinte petição, rogando-lhe que a fizesse conhecer ao governador:

"A pedido do rei nosso senhor, o soberano pontífice Paulo III me mandou para as Índias, com a missão de aí propagar a luz do Evangelho, fazer conhecer o Culto devido ao Criador do universo, converter à verdadeira fé os homens criados à imagem de Deus. Para dai a esta missão maior eficácia, para afastar mais facilmente os obstáculos que poderiam trazei-lhe embaraços, deu-me o mesmo Soberano Pontífice o título e os poderes de núncio apostólico em todo o Oriente. Enviou o breve ao rei de Portugal, acompanhado de carta sua, confirmando, por este importante caráter a missão que eu tinha tido a honra de receber.

"Chamado para junto do rei, no momento da minha partida para as Índias, Sua Alteza entregou-me o breve do Soberano Pontífice e as cartas de sua confirmação real. A minha chegada às Índias, apresentei esses títulos ao senhor arcebispo de Goa, D. João de Albuquerque, que os reconheceu e aprovou como convinha.

"Hoje, o mesmo senhor arcebispo, me encarrega de levar a fé ao império da China, esperando desta missão os mais vantajosos resultados para a glória de Deus. Podeis convencer-vos dos sentimentos do senhor arcebispo e desta sua intenção, pela leitura da carta que ele dirige ao imperador da China, e que ajunto aqui."

"O vice-rei das Índias, com o fim de facilitar-me a entrada na China e de garantir a minha pessoa, no interesse da religião que prego, despachou um embaixador ao imperador da China, com cartas que provam a autenticidade da sua missão: este embaixador é Diogo Pereira."

"Francisco Álvares, oficial militar, comandante da cidadela e inspetor das finanças de Sua Alteza o rei de Portugal, determinou a execução das ordens escritas do vice-rei relativamente a esta embaixada."

"O governador de Malaca é o único que se opõe ao cumprimento das ordens do vice-rei. Antepõe obstáculos à partida do embaixador, e por conseqüência à pregação do Evangelho. Impede a liberdade do ministério apostólico numa empresa evidentemente agradável a Deus. Rogo-vos, pois, e suplico-vos com instância, em nome de Deus e do senhor arcebispo de Goa, vosso superior eclesiástico e de quem sois o representante neste país, que expliqueis ao governador de Malaca o sentido dos decretos da Santa-Sé: Qui vero de coetero, que contêm uma sentença de anátema contra aqueles que se opõem ao ministério do núncio apostólico."

"Conjurai D. Alvaro, instai, suplicai-lhe, em nome do mesmo Deus, que levante os obstáculos que tem posto à nossa embaixada enviada pelo vice-rei e pelo senhor arcebispo. E se, a despeito de todas as vossas instâncias, ele persiste na sua oposição, declarai-lhe que fica desde o mesmo instante expulso do seio da Igreja e que não terá mais direito à sua comunhão."

"Dizei-lhe também que isto não é em virtude da vossa autoridade nem do senhor arcebispo; que não é igualmente em virtude da minha que ele é excomungado, mas sim pelo poder supremo dos Soberanos Pontífices donde dimanam estes santos decretos. Suplicai-lhe em seguida, em meu nome, pelas chagas sagradas de Jesus Cristo Nosso Senhor e pela sua santa morte, que não procure merecer penas tão graves se não quer incorrer para com Deus em castigos cujo rigor ele não poderá prever."

"Tomadas estas medidas, rogo-vos que me devolvais este memorial juntando a ele, por escrito, a resposta do governador, a fim de que esses documentos, apresentados ao senhor arcebispo, me livrem de ser taxado de negligente na execução de uma expedição empreendida sob os seus auspícios. Peço-vos que empregueis a maior urgência no cumprimento deste dever do vosso ministério, porque a estação própria para a navegação nos mares da China está já muito adiantada. O passo que ides dar é uma obra útil para a glória de Deus, e eu desejo-a ardentemente. Não posso crer que D. Alvaro se tenha tornado tão cruel, tão insensível, que queira afrontar a ira de Deus insistindo em opor-se à nossa partida".

D. João Soares não foi mais feliz desta vez do que o fora da primeira.

- O vosso Padre Xavier, brada o governador, é um ambicioso hipócrita, é o amigo dos pecadores e dos publicanos!... Dizei-lhe que eu me rio dele e das suas censuras, e deixai-me tranqüilo! retirai-vos!

O vigário geral nunca havia visto tanta impiedade. Julgou dever, segundo a vontade do núncio, chegar ao último extremo. Excomungou aquele que acabava de rir-se assim do vigário de Jesus Cristo, de desprezar as suas ordens e de afrontar as mais temíveis ameaças. Francisco Xavier viera às Índias cobiçoso de sofrimentos, ardendo em desejos de merecer a coroa do martírio neste penoso apostolado, e deplorava todos os dias perante Deus, haver dez anos que trabalhava para a sua glória, no meio dos pagãos e dos infiéis, e ser julgado indigno de morrer pela fé que pregava. As suas cartas provam até à evidência este vivo e profundo pesar. Deus reservava-lhe um gênero de martírio mil vezes mais doloroso e mais amargo à natureza e que ele nunca ousara esperar na sua profunda humildade.

D. Alvaro apossa-se do navio Santa Cruz; dá o comando a Luís de Almeida, a quem impõe vinte e cinco marinheiros que haviam recebido as suas instruções, suas promessas e suas ameaças, e anuncia que o Santa Cruz vai partir para a ilha de Sancião, e que ele o manda a negociar por conta própria. O zelo do ardente apóstolo ilude-se imediatamente por este engodo. Sancião é tão próximo da China!

- Eu partirei no Santa Cruz, diz ele a D. João Soares; Deus me dará, assim o espero, os meios de penetrar em um porto chinês; se eu for preso, que importa! pregarei a verdade aos prisioneiros meus companheiros de cárcere e lhes ensinarei a lei de Jesus Cristo, e eles a poderão fazer conhecer aos outros. Partirei!

Diogo Pereira via-se forçado a viver oculto em Malaca para evitar a cólera insana e as vinganças do governador que já o havia arruinado apossando-se do Santa Crus e das riquezas que faziam o seu carregamento. O coração de Xavier sangrava de dor com a idéia da inteira ruína da família de seu amigo.

"Deus é testemunha, escrevia-lhe ele, da intenção que me guiava a vosso respeito; se ela não tivesse sido pura e reta eu morreria de pesar! Vou embarcar-me, esperarei a bordo a hora da partida, a fim de não ver a vossa família cuja ruína me dilacera... Que Deus perdoe ao autor de tantas desgraças!...

Não vos peço senão uma coisa: é que não venhais ver-me; a vossa presença me esmagaria. E contudo, espero que este desgosto reverterá em vosso proveito, porque não duvido que o rei faça tudo quanto eu lhe pedi para vós, e que vos indemnize generosamente de todos os sacrifícios que tendes feito pela causa de Jesus Cristo.

Mandei despedir-me do governador. Que Deus perdoe àquele homem porque sua sorte é digna de lástima! Oh! ele será punido mais severamente do que pensa...".

Com aquela pungente dor no coração, com a que lhe causava o estado espiritual de D. Alvaro, com o pesar que experimentava por ver todos os seus projetos transformados pelo inferno, o grande Xavier trata os negócios da Companhia como se gozasse do maior sossego, da mais perfeita liberdade de espírito. Escreveu muitas cartas para Goa, ocupou-se de diversas missões, deu conselhos espirituais ao seus irmãos e, - que nos seja permitido esta minuciosidade para dar uma idéia dos cuidados com que ele considerava tudo -, depois de ter dado conselhos ao Padre Barzeu sobre o modo de converter as moedas das Índias para as fazer passar ao Japão, recomendou-lhe que enviasse estofos de lá de Portugal aos Padres que habitavam aquele país onde o frio é muito rigoroso.

O Santa Cruz ia fazer-se à vela. Francisco Xavier fora pela manhã à igreja de Nossa Senhora do Monte e ali se detivera; estava ainda em oração quando o foram advertir, pela tarde, de que havia chegado o momento de levantar ferro. D. João Soares, acompanhando-o até o navio perguntou-lhe se ele se não despedia do governador.

- Os fracos de espírito são fáceis em se escandalizar, meu Padre, disse-lhe ele, e daí nascerem ressentimentos contra vós.

- Senhor, D. Alvaro não me verá mais nesta vida! Eu o esperarei no juízo de Deus! respondeu-lhe Xavier.

Depois, detendo-se junto da igreja vizinha do porto, eleva os olhos para o céu, ora em alta voz pela salvação de D. Álvaro de Ataíde, com um acento que parecia inspirado.

E logo que cessa de falar; prostra-se com a fronte no pó e conserva-se assim por alguns instantes em silêncio; quando se levantou trazia o semblante animado, dos seus olhos partiam raios, parecia dominado pelo espírito da justiça divina... Tira as sandálias, bate uma contra a outra, sacode-as numa pedra, e exclama, sempre coza a mesma animação: "Eu não levarei nem o pó desta cidade pecaminosa! A cólera de Deus paira sobre ela! Aquele que a governa, D. Álvaro de Ataíde, será preso, encarcerado, espoliado, e todos os seus bens serão confiscados... Ele levará deste mundo a pena merecida pelos seus crimes!..."

A imensa multidão de povo que se reunira em torno do santo Padre para assistir ao seu embarque, emudeceu de admiração e de pesar, ouvindo as palavras proféticas do ilustre Xavier. Silenciosas lágrimas foram o último adeus daquele povo desolado ao seu apóstolo querido, tão indignamente tratado pelo governador duma cidade, onde tanto bem praticara!... e que ele deixava para sempre!... [79].