NO CÉU

Dezembro 1552 - 1555


I. O TRIUNFO -IMPIEDADE DE UM GOVERNADOR

A nova da morte do santo Padre tão amado, todos os portugueses da Santa-Cruz romperam em soluços.

Os marinheiros desembarcaram com todo o pessoal do navio; todos queriam ver e venerar o corpo do grande apóstolo, todos queriam beijar-lhe os pés e as mãos, recomendarem-se às suas orações, e testemunhar-lhe o amor e o reconhecimento que ele havia grangeado de todos os corações!

O santo corpo foi conservado até ao terceiro dia, domingo, estendido sobre a esteira que cobria o solo da cabana.

Jorge Alvares, Francisco de Aguiar, Cristóvão e Antônio de Santa-Fé, tiraram-lhe a sua pobre batina da qual repartiram entre si os preciosos pedaços, acharam sobre o seu peito uma pequena boceta contendo a assinatura de santo Inácio, os nomes dos Padres com os quais o nosso Santo tinha vivido em Roma, a fórmula dos seus votos, e uma parcela de osso do apóstolo S. Tomé, sob cuja proteção ele pusera o seu apostolado das Índias.

Revestido o corpo de seus hábitos sacerdotais, foi posto num esquife que se encheu de cal viva, a fim de que a carne fosse consumida logo e os ossos pudessem ser removidos na volta da nau Santa-Cruz.

Os portugueses tinham erigido uma cruz num prado, na base da colina que domina o porto; foi ao pé daquela cruz que Jorge Alvares fez depositar o esquife. Levantou-se um montículo de pedras ao lado da cabeça e um outro aos pés, e isto foi tudo!...

Francisco Xavier tinha previsto esses tristes funerais... Para ele, o sacrifício devia ir mesmo além da morte! Deus nada lhe poupara! Mas bem depressa também nada poupará para manifestar a glória do imortal apóstolo.

Dispondo-se Luís de Almeida a fazer-se à vela para as Índias, depois dos grandes frios, suplicou-lhe Jorge Alvares que não deixasse o corpo de Xavier em Sancião, assegurando-lhe que ele podia encarregar-se de o conduzir, por isso que pelas precauções tomadas só teriam de transportar os ossos já despojados da carne pela cal.

O capitão enviou dois dos seus homens com ordem de abrir o esquife e verificar o seu conteúdo. Esta abertura fez-se a 17 de Fevereiro de 1553, dois meses e meio depois da morte de Francisco Xavier.

Encontrou-se o seu rosto fresco, corado, sereno... o Santo parecia dormir. Os ornamentos não estavam alterados. Examinando o corpo, ele parece cheio de vida. Um dos homens corta um fragmento de carne, acima do joelho... o sangue salta! Correm ao navio, e levam a preciosa relíquia ao capitão; ele quer julgar por si próprio... cai de joelhos diante daquela grande maravilha, correm-lhe as lágrimas, não pode crer no que vê!

Em alguns instantes toda a equipagem da Santa-Cruz havia corrido para o prado e rendia homenagem ao corpo venerando do santo Padre. Todos se aproximaram, beijaram-lhe os pés e as mãos, e certificaram-se de que se exalava deste santo corpo um perfume que não tinha nada com que se comparasse sobre a terra.

Deitou-se de novo no esquife a cal que se tinha retirado, levaram religiosamente aqueles restos maravilhosos para bordo da Santa-Crus, e pouco depois, fez-se à vela para Malaca, onde chegou a 22 de Março, com a mais bonançosa viagem.

Estava sendo aquela cidade de novo infestada de todos os horrores da fome e da peste, e os Padres da Companhia de Jesus não se achavam ali para prodigalizarem às vítimas desses destruidores flagelos os tesouros do seu santo ministério e da sua sublime dedicação. O capitão da Santa-Cruz, tendo expedido a chalupa para anunciar à cidade a chegada do santo corpo, a clerezia, a nobreza e o povo, vieram de tochas na mão, recebê-lo ao porto, não obstante a disposição de ódio do governador, e conduziram-no processionalmente à igreja de Santa Maria do Monte, que pertencia. à Companhia de Jesus.

Os pagãos e os maometanos incorporaram-se espontaneamente na multidão para renderem homenagem àqueles restos venerandos; Diogo Pereira parecia acompanhar os de seu pai; a sua dor era dilacerante!

- Qual é a causa deste lúgubre motim? perguntou D. Alvaro, deixando uma mesa de logo e abrindo uma janela que deitava para a praça do governo.

- É, provavelmente, respondeu-lhe um dos jogadores, o funeral do Padre Xavier, pois que o seu corpo devia chegar hoje.

- Que fanáticos! Eles verão bem depressa as honras que eu reservo ao seu santo Padre!

Depois das cerimônias religiosas, foi retirado o Santo do esquife que o encerrava; levaram-no para o cemitério dos pobres, lançaram-no numa cova muito pequena, forçando-o muito para ali entrar, e calcaram aquela terra "com pesadas alavancas" - diz o catequista do Santo, testemunha ocular-, e lhe abriram e achataram o nariz no estado em que vós o vistes em Goa, e quebraram-lhe o costado direito!... Eram aquelas, sem dúvida, as honras que o sacrílego governador havia prometido prestar a Xavier [86].

Naquele mesmo dia, cessava a peste em toda a cidade, os doentes viam-se milagrosamente curados, e embarcações carregadas de víveres, ancoravam no porto e vinham pôr termo à fome. O grande apóstolo recompensava assim as provas de veneração que os habitantes de Malaca acabavam de lhe prestar, a despeito da culpável governador, cuja malvadez tinha atraído sobre eles os castigos do Céu.

O corpo de S. Francisco Xavier, retirado do seu esquife, ficou assim indignamente enterrado na terra, na imundície!... E desgraçado daquele que tivesse ousado subtrai-lo àquela profanação...

Por aquele tempo o Padre João da Beira, voltando às Molucas, por ordem de Xavier, com o Irmão Manuel de Távora, chegou a Malaca no correr do mês de Agosto, e não pôde resolvei-se a embarcar para o seu destino, sem ter visto o que restava do seu amado superior. Por seu lado, Diogo Pereira desejava desde muito tempo poder prestar ao seu Santo amigo as honras merecidas pela sua incomparável vida; mas o terrível governador estava ali. O Padre João da Beira insistia, contudo:

- Somente vê-lo! dizia ele a Diogo; em seguida o tornaremos a enterrar e Deus saberá um dia mudar as circunstâncias de maneira que nos dará a consolação de prestar ao seu santo apóstolo as honras que merece.

- Pois bem! meu Padre, lá iremos pelo meio da noite, a fim de não sermos surpreendidos, respondeu-lhe Diogo Pereira.

Na noite de 15 de Agosto de 1553, dirigiram-se eles para o sítio em número de seis: o Padre Beira, o Irmão Manuel de Távora, Diogo e Guilherme Pereira e dois outros portugueses. Descobriram o precioso corpo e acharam-no tão fresco como se a vida, o não tivesse deixado; o lenço branco que cobria o belo rosto de Xavier estava molhado com o seu sangue!... Os amigos do nosso Santo prostraram-se diante daquele prodígio, e derramaram lágrimas de sentimento pela profanação de que eram testemunhas.

- "Levêmo-lo! levêmo-lo! disseram eles em voz baixa e todos ao mesmo tempo: a Providência nos protegerá."

E tomando nos braços o querido e venerando corpo, removeram-no para uma pequena ermida que Diogo Pereira possuía fora da cidade, convencionando conservá-lo ali até que Deus lhes permitisse fazê-lo transferir convenientemente para Goa. Diogo Pereira fez-lhe construir uma de madeira preciosa e forrada de damasco; colocou-se uma almofada de brocado por baixo da cabeça do Santo, cobriu-se-lhe com um pano de tecido de oiro, e pôs-se uma tocha acesa na câmara. Esta tocha devia ter uma duração de dezoito horas; ardendo, porém, noite e dia durou dezoito dias!

Nessa ocasião estando um barco prestes a fazer-se à vela para as Molucas, julgou o Padre Beira dever deixar o Irmão Távora junto do corpo de que se via forçado a separar; encarregou-o da vigia e guarda daquele querido depósito e de o acompanhar a Goa logo que se oferecesse ocasião, e partiu ardendo mais que nunca em zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas. Dizia-se que parecia que o espirito do grande Xavier passara para ele.

Logo depois da sua partida, o Padre Alcáçova, vindo do Japão, desembarcava em Malaca, onde devia esperar que algum navio se fizesse à vela para Goa; reuniu-se a Manuel de Távora para honrar a santa relíquia do seu Padre tão amado, na morada solitária de Diogo Pereira, pedindo todos os dias a Deus ocasião de a transportar com segurança para a metrópole das Índias portuguesas, onde a veneração pública o esperava impacientemente.