VIII. REUNIÃO DE MESTRE E DISCÍPULOS

No dia 8 de janeiro de 1537, o nosso Santo via chegar a Veneza os seus queridos discípulos. As suas lágrimas correram doce e abundantemente, e apertou-os ao coração quando soube da solicitude de que a Providência os rodeara constantemente durante a sua longa e perigosa viagem.

Depois dos primeiros desalentos destas almas tão ternamente ligadas, tão santamente unidas, foi necessário separarem-se de novo para trabalharem na obra de Deus, ou antes, foi mister dividirem-se. Separaram-se sem se abandonarem-, estavam na mesma cidade, onde se juntariam no caso de necessidade, e onde poderiam efectuar frequentes reuniões. Não sendo favorável a estação para empreender a viagem a Roma, Inácio mandou-os tratar dos doentes nos hospitais. Tomou para si e para quatro dos seus discípulos o hospital de S. João e S. Paulo; Francisco Xavier e os outros quatro foram para o dos Incuráveis.

Não sabiam o italiano, mas a caridade é facilmente compreendida em todas as línguas. Desde logo foram muito estimados por todos os doentes e olhados por eles como anjos que o céu enviava à terra. Tudo o que vimos praticar de mais heróico pelo nosso Santo nos diversos hospitais de Espanha e de Paris, os seus filhos espirituais o imitaram em Veneza com a mesma energia, a mesma caridade, a mesma avidez de mortificação, principalmente Francisco Xavier. Este Santo renovava os mesmos prodígios, sem se enfastiar nunca de vencer as suas repugnâncias, de dominar a sua natureza e de a esmagar em todas as coisas.

O seu serviço no hospital não o fazia negligenciar o trabalho do apostolado na cidade. Ganhava todos os dias para. Deus novas almas e encaminhava outras pelo caminho mais perfeito. Os Exercícios Espirituais eram sempre o grande meio que ele empregava para determinar estas vocações.

No fim de Março, Inácio enviou os seus discípulos a Roma e julgou prudente ficar em Veneza para evitar as dificuldades que podia encontrar da parte do Cardeal Caraffa,, pouco favorável à sua obra.

Os nove peregrinos fizeram esta viagem a pé, jejuaram. todos os dias, porque se estava na Quaresma, pedindo a esmola dum pedaço de pão, que lhes era muitas vezes recusado, suportando as mais duras privações, os mais humilhantes maus tratos, as mais dolorosas fadigas, não só sem se queixarem' mas agradecendo a Deus esses sofrimentos, a que chamavam favores.

Pedro Ortiz, enviado extraordinário de Carlos V em. Roma para sustentar junto da Santa Sé a causa de Catarina de Aragão, repudiada por Henrique VIII, encontrou os nossos peregrinos na Cidade Eterna e fez-lhes o mais amigável acolhimento. Sabendo que vinham pedir a bênção apostólica. ao Soberano Pontífice e autorização para irem evangelizar a Palestina, encarregou-se de lhes obter a audiência necessária e apressou-se a pedi-la, elogiando a muita virtude e ciência pouco comum dos novos apóstolos.

Este elogio tocou a corda sensível de Paulo III; porque o seu gosto pelas letras e pelas ciências ia até promover discussões entre os sábios durante as suas refeições para se dar a satisfação de os ouvir sem prejuízo das suas ocupações. O Papa. quis ver os jovens doutores da Universidade de Paris no dia seguinte, durante o jantar. Ali se dirigiram, com as roupas que tinham quando abandonaram Paris, e foram logo convidados a tomar parte na discussão começada. Trataram com tão grande superioridade de ciência e de talento as questões que lhes foram propostas, e sustentaram os seus argumentos com tanta modéstia e humildade, que Paulo III não pôde conter a admiração e abraçou-os, dizendo-lhes:

- Alegro-me de ver unida a tanta ciência tanta modéstia. Que vos posso fazer?

- Santíssimo Padre, solicitamos a permissão de ir à Terra Santa pregar Jesus Cristo, nos próprios lugares em que Ele deu todo o seu sangue pela salvação do mundo, e pedimos a Vossa Santidade que se digne conceder-nos a sua bênção, a fim de que ela nos garanta a de Jesus Cristo aos trabalhos que desejamos empreender;

- Parece-me, - replicou o Papa - que a viagem à Terra Santa não é possível: a guerra vai rebentar, as passagens serão interceptadas e estes obstáculos podem ser cie longa duração; o vosso zelo seria empregado com muita utilidade noutra parte.

O Soberano Pontífice abençoou-os em seguida com afeto muito paternal, deu-lhes sessenta escudos e permitiu aos que ainda não eram presbíteros que recebessem as sagradas Ordens, a título de pobres voluntários, de qualquer Bispo e em qualquer lugar.

Alguns ricos espanhóis juntaram uma esmola de cento e quarenta escudos à que os peregrinos tinham recebido de Paulo III, a fim de que eles tomassem o caminho de Veneza em condições menos duras.

Os jovens apóstolos tinham, porém, feito voto de pobreza e quiseram ser fiéis a ele; queriam viajar como o nosso Santo, que se esforçavam por imitar em todas as coisas, e, dizendo que o discípulo não é mais que o mestre, puseram-se corajosamente a caminho, a pé, de bordão na mão e pedindo esmola. O seu pequeno tesouro, reservado para a viagem à Terra Santa, devia ser entregue intacto ao seu pai espiritual.

Chegados a Veneza, entraram de novo para o serviço dos hospitais, com grande alegria dos pobres doentes. No dia 24 de junho de 1537, festa de S. João Batista, Inácio de Loiola recebeu as sagradas Ordens, assim como os seus filhos espirituais, que para elas se prepararam, a seu exemplo, com um fervor celeste. Todos sete foram elevados ao Sacerdócio no mesmo dia[43], pelo ministério do Bispo de Alba, Vicente Nigusanti. O nosso Santo reservou-se um ano inteiro de preparação antes de celebrar os santos mistérios pela primeira vez. Talvez, na esperança de poder efectuar então a viagem à Palestina, quisesse ter a consolação de celebrar esta primeira missa no santuário de Belém. É o pensamento do Padre Genelli.

Os neopresbíteros dividiram-se em seguida para exercer o santo ministério em diversos lugares: Inácio, Fabro e Laynez foram para Vicência; Xavier e Salmeron para Montelice; Rodrigues e Lejay para Bassano; Codure e Hoces para Treviso; Broet e Bobadilha para Verona. Todos deviam preparar-se para o exercício das funções sacerdotais por um retiro de quarenta dias, depois do qual trabalhariam com todo, o zelo na santificação das almas, esperando o fim do ano.

Mas estava declarada a guerra entre a Turquia e os Estados ele Veneza, as frotas inimigas cobriam o Mediterrâneo, era impossível a passagem então, e era pouco provável que estes obstáculos desaparecessem antes de expirar o termo fixado pelo voto da pequena Companhia.

Chegando a Vicência, o nosso Santo apoderou-se de um mosteiro em ruínas, situado nos arredores, chamado de S. Pietro in Vivarolo.

Este mosteiro tinha sofrido muito com a última guerra a ponto de não ter portas nem janelas; não se podia estar ali nem ao abrigo do sol, nem da chuva, nem do calor, nem do frio, e os ventos tinham entrada livre. Quanto à mobília, o nosso Santo completou-a logo, segundo os seus desejos. Pôs no chão uma pouca de palha para servir de leito, arranjou uma pedra para se sentar, uma tábua para escrever, e mais nada. Os seus companheiros imitaram-no. A alimentação correspondia à pobreza da sua morada. Iam todos os dias mendigar o necessário, e muitas vezes recebiam tão pouco que passavam fome.

Durante quarenta dias viveram em retiro no seu pobre asilo, saindo apenas para mendigar, e regressando logo que recebiam o pão suficiente para aquele dia. Durante este retiro,, ocuparam-se exclusivamente dos seus interesses espirituais afim de se prepararem para ó apostolado que iam empreender. Inácio de Loiola julgou por um momento ter reencontrado a sua querida gruta de Manresa, tantos foram os favores com que à divina Bondade aprouve cumulá-lo. Foi tão abundantemente inundado de graças e de consolações celestes como nos primeiros meses da sua conversão, e apenas tinha lágrimas para exprimir a Deus o seu reconhecimento. A sua oração era continua, não podia orar mais; a sua mortificação estendia-se a tudo, não podia levá-la mais longe; as macerações eram espantosas, excessivas, não podia aumentá-las; só lhe restavam as lágrimas e deixava-as correr docemente e quase sem interrupção.

Depois deste retiro, João Codure veio juntar-se a Inácio e aos seus companheiros, e todos cheios do espirito de Deus começaram a pregar na cidade de Vicência.

Inácio sabe que fala muito incorretamente o italiano; sabe que se expõe aos motejos do povo e que, por isso, pode ver diminuir as esmolas, já insuficientes... Nada o detém. A obra de Deus chama-o, e ele corre. Não se apresenta nas igrejas, porque lá não o quereriam ouvir; percorre as ruas e as praças públicas, pára nos lugares onde vê mais gente, e, subindo a um banco de pedra, chama o povo agitando o chapéu e prega com um êxito que lhe causaria admiração, se ele não soubesse que é enviado de Deus. Os triunfos dos seus irmãos igualam os seus e provam-lhe mais uma vez que Deus faia por sua boca, e que a sua graça fecunda a sua palavra em todos os corações que a recebem. As conversões são numerosas, todos se apressam a reformar a vida e as esmolas abundam nas ruínas do mosteiro de S. Pietro in Vivarolo.

Até então, os nossos apóstolos só tinham tido por alimento restos de pão duro, algumas vezes mui duro, que coziam, em água para o poderem comer. Agora têm sempre sobejos, algum azeite, um pouco de manteiga, legumes, e dão-se por bem alimentados.

Diogo Laynez caiu doente e transportaram-no ao hospital; pouco depois, Inácio era assaltado por uma febre e viu-se obrigado a ir para junto de Diogo. Rodrigues também adoeceu. Tantas austeridades e fadigas ultrapassavam as forças humanas.