VIII. O CORAÇÃO DO SANTO

Já falamos das solicitudes que Santo Inácio dedicava à direção espiritual da casa de Roma, e da perfeição que exigia de todos aqueles que Deus chamava à honra de o servir na Companhia de Jesus; mas far-se-ia uma fraca idéia da sua competência e do seu espírito de discernimento se nos limitássemos aos traços já citados. Demais, temos falado principalmente da sua serenidade e da sua firmeza; devemos falar também dos tesouros de indulgência, da bondade, da doce e compassiva caridade que constituíam o fundo do seu grande coração. Para isso, entraremos em minudências, pois é por elas que o homem se dá a conhecer.

Conta-se que, quando Santo Inácio decidia uma coisa, mesmo pouco importante na aparência, adiava sempre a execução para a pôr nas mãos de Deus, apesar de o ter já consultado antes de submeter a sua opinião aos Padres que compunham o seu conselho. "Convém dormir ainda sobre o caso", dizia-lhes ele com a maior tranquilidade.

Quando se conhece a impetuosidade da sua ardente natureza, não se pode deixar de admirar a completa transformação nele operada. Era senhor de si mesmo e de todas as suas impressões, a ponto de não as deixar nunca transparecer no rosto senão na medida da sua vontade e em harmonia com o bem que tinha em vista. O seu rosto era calmo e sereno, 0 olhar doce e límpido; mas, se acontecia que um noviço ou outro qualquer membro da Companhia caísse numa falta que o geral julgasse dever punir severamente os seus olhos brilhavam, o rosto parecia transformado, a voz era severa. Desde que o culpado se afastava, Inácio readquiria a doce serenidade e ninguém se apercebia, se o visitasse, do que acabara de passar-se. O Padre Olivier Manare mostrava-lhe um dia o desejo de abandonar o colégio de que era superior, porque, desde que ocupava este cargo, experimentava a violência de caráter que julgava completamente extinta.

- Não se trata, - lhe responde o Santo - senão de governar esta disposição de maneira tal que, sem dominar, o superior mantenha os inferiores no dever; mas não deve servir-se dela com severidade senão nos casos graves e para as almas fortes. Aquelas cuja virtude é tímida, exigem mais deferência.

Era assim que ele procedia. Quanto mais os seus religiosos eram perfeitos, tanto menos os poupava, querendo aperfeiçoá-los ainda pelos exercícios duma humildade maior. Era duma extrema severidade para os Padres Nadal e Polanco a quem amava ternamente, e duma extrema indulgência para Pedro Ribadeneira, cuja ligeireza de caráter parecia a alguns merecer maior severidade. Mas Santo Inácio via muito longe e conhecia muito bem os homens para não prever o grau de mérito a que podia chegar aquele que ele tratava com tão doce paciência e tão amável bondade. Usava da mesma indulgência para um noviço japonês chamado Bernardo, enviado à casa de Roma por Francisco Xavier. Deu-lhe durante muito tempo os encargos mais suaves, recomendando-lhe que o prevenisse quando estivesse fatigado.

Um noviço italiano não tinha podido moderar ainda o seu olhar muito vivo e muito aberto. Inácio disse-lhe um dia com a mais insinuante voz:

- Irmão João Domênico, por que não procura fazer ler nos seus olhos a modéstia com que a Deus aprouve adornar-lhe a alma?

João Domênico corrigiu-se um pouco devido a estas poucas palavras. O nosso Santo foi mais severo para o Padre Olivier Manare, que o amava e venerava de todo o coração. Partindo para o colégio de Loreto, de que fora nomeado reitor, foi pedir a bênção do seu bom Padre Inácio, e não pôde afastar a vista do venerável rosto do santo fundador, que temia não tornar a ver. Santo Inácio pareceu não dar por isso; mas no momento em que o Padre Manare saía de casa, o Padre Polanco foi-lhe ao encontro e disse-lhe:

- O nosso bom Padre não ficou contente com a maneira com que Vossa Reverência o fixou, e encarrega-me de lhe dizer que deve trabalhar para se corrigir desta falta, e fazer todos os dias um exame sobre isso, recitar três orações e dar-lhe conta todas as semanas destas penitências.

Ao mesmo tempo, o Padre Polanco dava-lhe por escrito este aviso e a designação das orações vocais que devia recitar todos os dias. Por esta falta, que contudo não era mais que uma ternura do coração, o Padre Manare fez durante quinze meses a penitência que lhe foi imposta.

Não se sabe, realmente, qual dos dois se deve mais admirar, se aquele que a impôs, se aquele que se submeteu a ela.

Um noviço, ao entrar na Companhia, tinha trazido um crucifixo, junto do qual havia uma pequena imagem da Santíssima Virgem. Este grupo era um objecto de arte, que o jovem muito estimava. O Padre Geral fechou os olhos e deixou-o gozar do seu tesouro; mas, quando viu o noviço assaz avançado no caminho do desprendimento, disse:

- Agora, que este irmão tem o crucifixo no coração, bem impresso, é tempo de lho tirar das mãos.

E mandou-lho tirar, sem que o noviço desse sinais do menor pesar. Ia mais longe. Sabia, por experiência, quanto custa aos grandes da terra sacrificar os títulos e as honras de que gozam no mundo. Quando se apresentavam aspirantes duma virtude medíocre, mas realmente chamados e desejosos de serem todos de Deus e de se dedicarem ao seu serviço, tinha todas as deferências para com eles e conservava-lhes até os seus títulos: era senhor duque ou senhor marquês, e, no caso de necessidade, Vossa Excelência. Os recém-vindos, lisonjeados a princípio com a distinção, achavam-se daí a pouco embaraçados, porque os seus iguais no mundo, que viviam com eles no noviciado, não se preocupando com o que tinham calcado aos pés, eram para eles uma como censura muda, mas eloqüente, do seu resto de vaidade. Corriam então, a lançar-se aos pés do boxe Padre Geral e suplicavam-lhe permitisse que os tratassem como irmãos e não como mundanos. Quando chegavam ao ponto de virtude necessária para suportar fortes provas, Inácio humilhava-os até que tivessem esquecido completamente a sua origem Procedia do mesmo modo para com aqueles que se tinham ilustrado no mundo pela ciência ou talento; queria uma completa transformação: "É necessário, - dizia muitas vezes - sabermos acomodar-nos aos negócios que não podem acomodar-se a nós. É necessário sabermos entrar pela porta de certas pessoas, a fim de as fazer sair pela nossa".

É o que ele sabia aplicar maravilhosamente à direção das almas. Tendo Gaspar Loarte, pregador de grande celebridade em Espanha, ido a Roma, entrou na Companhia de Jesus. Inácio de Loiola sabia que Deus abençoava ordinariamente os trabalhos apostólicos em proporção da santidade dos apóstolos; viu, pois, logo o bem que faria um talento como o de Gaspar Loarte, se a sua alma chegasse a um grande grau de perfeição, e traçou o seu plano de maneira a assegurar esta conquista à Companhia. Quis submeter este noviço às mais rigorosas provas e adoptou ao mesmo tempo os meios necessários para o premunir contra o desânimo. Era necessária toda a habilidade do nosso herói para levar á realização este plano com o êxito desejado. O processo que empregou é interessante; ei-lo tal como está consignado nas Memórias do Padre Luís Gonçalves da Câmara, então ministro na casa de Roma; e a quem o Padre Geral tinha encarregado de experimentar este noviço.

Foi combinado que Inácio se reservava o trabalho de sustentar a coragem e a virtude de Gaspar, enquanto o Padre Luís Gonçalves se ocuparia de as exercitar; porque se fosse o contrário, o noviço não teria certamente perseverado. Era necessário que a consolação e a animação lhe viessem do mais alto possível, e que encontrasse o coração do superior sempre aberto para ele; tanto mais que Santo Inácio aproveitava todas as ocasiões para pôr em realce o mérito do Padre ministro na prova dos noviços e a vantagem que advinha para estes últimos de serem formados na vida espiritual por um homem de tão alta virtude e de tão grande experiência. Havia já muito tempo que Gaspar Loarte estava submetido a este regime, quando o Padre ministro lhe perguntou um dia:

- Que pensa da santidade do nosso Padre Inácio?

- O que penso é que esse bom Padre é realmente uma fonte de óleo; é todo unção.

- E de mim?

- Ah! Vossa Reverência é uma fonte de vinagre!

Tendo o Padre Gonçalves feito conhecer essa resposta ao nosso Santo, ficou Inácio muito satisfeito com a franqueza do Padre Gaspar, e convidou o Padre Gonçalves a moderar o rigor das provas, tão bem suportadas até então. É verdade que as lágrimas corriam algumas vezes dos olhos do Padre Gaspar, mas concluía dai que lhe restava ainda muito caminho a percorrer para chegar ao grau de humildade em que Deus o queria; e corria a lançar-se nos braços do Padre Inácio,, confessava-lhe a sua fraqueza, vertia muitas lágrimas e confessava que tinha necessidade de força e de consolação. O bom Padre Geral dava-lhe ambas as coisas e o Padre Gaspar voltava à sua vida de prova com ardente desejo de atingir a perfeição, à qual era chamado. Pouco depois, julgando-o Santo Inácio assaz avançado para dirigir os outros, nomeou-o reitor do colégio de Génova.

Era para o nosso herói uma alegria incomparável ver o bom resultado dos seus esforços em casos semelhantes. Nunca teve maior felicidade do que no dia em que, tendo perguntado a Jerónimo Nadal, que tanto pesar lhe causara com as suas primeiras resistências, qual das três residências designadas preferia, este lhe respondeu com toda a simplicidade:

- Padre, a minha única inclinação é não ter nenhuma.

Fazendo-lhe a mesma pergunta, o Padre Manare respondeu também com simplicidade

Estou pronto a tudo, mesmo a morrer, se a morte for conseqüência da obediência.

Tais eram os homens formados na escola de Inácio de Loiola.

A mais dolorosa prova para eles era afastarem-se da; casa de Roma, onde lhes era dado verem o seu muito amado Padre Geral, admirarem a sua maravilhosa santidade, gozarem a sua ternura paternal. Eram tão ternamente amados por ele, que cada um podia julgar-se o filho preferido do seu coração. Quando chegava o momento de se separarem dele, Inácio informava-se minuciosamente do pequeno viático que levavam, querendo que todos tivessem o indispensável para viajar pobremente. A sua solicitude seguia-os, acompanhava-os na viagem, e era uma festa para o seu coração de pai quando vinha a notícia de que tinham chegado ao termo do seu destino.

Nada era comparável à terna caridade e à solicitude da nosso Santo para com seus filhos doentes. Não somente os ia ver, abraçá-los, consolá-los e prodigalizar-lhes os seus cuidados; mas, não podendo ficar por muito tempo com eles, em razão das suas imensas ocupações, queria que lhe levassem notícias deles algumas vezes durante o dia. Se a doença necessitava dum tratamento assíduo, informava-se da exactidão dos enfermeiros em observá-lo escrupulosamente; a negligência neste gênero, por ligeira que fosse, era severamente punida.

Num momento em que o número dos doentes era assaz considerável, dois noviços, recentemente entrados, foram atacados da doença reinante; não havendo lugares, estando alguns quartos já transformados em enfermarias e sendo então os recursos pecuniários muito limitados, propôs-se ao Padre Geral que fizesse transportar os dois recém-vindos ao hospital:

- Ah! isso nunca! - respondeu. Aquele que abandonou o mundo para servir a Deus, não encontrará um asilo nesta casa? Dê-se-lhes já o mais necessário; Deus nos enviará o que nos falta.

Noutra circunstância, tendo o médico ordenado que se desse a um convalescente um alimento bastante caro, o ecônomo queixou-se ao Padre Geral e disse-lhe:

- Padre, tenho apenas uma quantia diminuta, que mal chega para acudir às necessidades urgentes de hoje.

- Pois bem, - respondeu o bom padre - gaste-se tudo com o doente; nós, que estamos bons de saúde, podemos contentar-nos com pão. Estamos bons de saúde! Sabe-se qual o estado de sofrimento em que sempre estava o seu estômago; mas isso pouco lhe importava.

Quando os seus queridos Padres doentes estavam tristes, mandava para junto deles os mais jovens noviços músicos e pedia-lhes que lhes cantassem cânticos para os distrair. Pensava Inácio que estas jovens e frescas vozes seriam um calmante para os seus nervos abalados. Ia ver os seus doentes no meio da noite, para se assegurar dos cuidados do enfermeiro e ver se tudo se fazia com exactidão, segundo as prescrições do médico. Algumas vezes se levantou de noite para ver se um Padre que tinha sido sangrado, tirara, ao dormir, as tiras do braço.

Compreende-se que esta bondade tão comovedora lhe cativasse os corações de seus filhos, e que, para eles, ninguém substituísse o seu querido Padre. Por isso o santo geral encontrava da parte deles mais pressa do que resistência em aceitar as humilhações que julgava dever impor-lhes para fortificar e aumentar a virtude dos seus religiosos.

O Padre Bobadilha pediu-lhe um dia para mudar de quarto; o que ocupava era muito pequeno, muito incômodo, e preferia outro que designou.

- Isso seria um mau precedente; - respondeu o nosso Santo-outros, a exemplo de Vossa Reverência, quereriam também fugir aos inconvenientes da santa pobreza. Não somente não mudará de quarto, mas irá arranjar tudo, naquele que ocupa, de modo a alojar nele dois companheiros que para lá mandarei.

O Padre Bobadilha obedeceu imediatamente, sem a mais ligeira hesitação.

Um noviço declara um dia ao Padre Geral que desespera de atingir o ponto de perfeição a que todos os seus irmãos lhe parecem chegados, que quer renunciar a uma vida para a qual se reconhece indigno e voltar ao mundo. Inácio conversa com ele durante grande parte da noite, chega a persuadir-lhe que aquele desânimo é obra do demônio e vê-o cair a seus pés, banhado em lágrimas, pedir-lhe uma penitência proporcionada à sua culpa:

- A penitência que lhe dou, - disse-lhe o Santo levantando-o e abraçando-o - é que nunca se arrependa de ter querido servir a Deus. Eu oferecerei uma outra por si, se Nosso Senhor não me julgar indigno disso, todas as vezes que as dores de estômago me apoquentarem.

Pedro Ribadeneira, como já dissemos, era leviano como uma criança; alguns Padres tinham pedido a Inácio que o despedisse, dizendo que ele nunca poderia ocupar um lugar entre os homens graves de que a Companhia era composta. Inácio, que pensava . de modo diferente, queria conservar o jovem brincalhão, e fechava os olhos às suas infantilidades. Mas o espírito do mal, que os tinha muito abertos, conhecendo que o jovem Pedro se conservava ali pela terna veneração que tinha a Inácio de Loiola, soube mudar-lhe de repente este sentimento a tal ponto que aquele amor e veneração se transformaram em desgosto e antipatia. Inácio não mudou as suas maneiras, não deu a perceber que notava que Pedro lhe fugia; contentou-se em orar por ele e em pedir a Deus que lhe indicasse o meio de vencer no coração do jovem um sentimento tão oposto àquele que até então o havia conservado no noviciado. Inácio tinha pedido algumas vezes a Pedro que fizesse os Exercícios Espirituais; mas Pedro respondia sempre que preferia abandonar a casa e a Companhia. Um dia, o nosso Santo conheceu que a sua prece era ouvida e que podia falar a Pedro com bom resultado. Mandou-o chamar imediatamente. Pedro apresentou-se disposto como de ordinário, prometendo repelir qualquer proposta de retiro e aproveitar a ocasião para acabar com a questão, declarando que quer abandonar a Companhia.

- Pedro, - diz-lhe Inácio estendendo-lhe os braços meu Pedro, meu caro filho !...

Pedro não o deixa continuar; cai a seus pés, o seu coração rebenta em soluços e exclama:

-Meu Pai! meu Pai! Fá-los-ei, quero fazê-los! sim, meu Pai !

Inácio não tinha ainda pronunciado a palavra retiro e não havia falado dos Exercícios; mas Pedro bem sabia que o inimigo da sua alma era quem o havia impedido de os fazer até então, e ele sentia-se, naquele momento, tão subjugado pela santidade do seu bom Pai, sentia tal necessidade de recuperar o passado, que o seu primeiro grito foi a pedir o que mais havia temido. Lançando-se em seguida nos braços e sobre o coração daquele querido Pai, pelo qual tinha agora a sua primeira veneração, suplicou-lhe que o dirigisse nos Exercícios e que o ouvisse de confissão geral. Inácio concede-lhe. tudo. Depois de o ter ouvido de confissão geral, disse-lhe: apenas estas simples palavras

"Pedro, peço-lhe que não seja ingrato para com aquele de quem tem recebido tão preciosos dons".

Ribadeneira, que nos deixou todas estas informações, acrescenta: "A estas palavras, pareceu-me que um véu caía dos meus olhos. O meu coração ficou tão fortalecido, que, desde esse momento, há cinquenta e dois anos, até hoje, na meu espírito não se levantou nunca a mais ligeira tentação.

Beaudoin Angelo apenas acabou de entrar no noviciado de Roma, arrependeu-se amargamente e quis retirar-se. Tinha deixado no mundo um sobrinho a quem amava, e do qual o seu espirito e o seu coração não podia afastar-se. Não tendo pai aquele jovem, era uma ação pouco digna abandoná-lo, dizia; e queria voltar para ele. O bom Padre Inácio sabe isto, pede a Deus que lhe fada conhecer a sua vontade; e depois, seguro da luz que recebeu, manda chamar Beaudoin, fá-lo sentar junto dele e diz-lhe no tom mais afetuoso e mais simples

- Quero contar-lhe uma coisa que me é pessoal e que se assemelha muito ao que o senhor experimenta agora pelo seu querido sobrinho. Quando comecei a servir a Deus, e andava, como o senhor, muito ocupado no seu servido, tive que sustentar um rude ataque. O meu querido Beaudoin vai ver como o demônio obrou para me tentar e como Deus Nosso Senhor me ensinou a maneira como devia repelir a seu ataque.

Recitava eu todos os dias o ofício de Nossa Senhora num livro adornado de imagens, no número das quais havia uma muito parecida com minha cunhada. Todas as vezes que esta imagem se me apresentava à vista, recordações da aninha vida do mundo e da corte me vinham ao espírito e o meu coração experimentava a mais viva ternura pelos seus parentes. Querendo desembaraçar-me de recordações importunas, que reconhecia serem muito prejudiciais ao servido da divina Majestade, não achei expediente mais eficaz do que renunciar à prática da devoção, que era para mim uma ocasião desses impulsos para o mundo. Mas compreendi logo que, perdendo o mérito duma obra de piedade, e de muito livre vontade, cedia terreno ao inimigo. Vi que o demônio, no fundo e na forma, me tratava como trataria uma criança. Pois bem, - disse eu - livremo-nos das suas importunidades com a simplicidade duma criança. E cobri a imagem com uma folha de papel. A tentação desapareceu com a ocasião que eu lhe tinha dado".

Depois destas palavras, o santo fundador levantou-se, abraçou ternamente Beaudoin e deixou-o cheio da mais terna alegria.

"De repente, - conta este último - o meu rosto foi inundado de lágrimas e experimentei no fundo do coração um tal sentimento de doçura e de suavidade, que todo o meu amor para com meus parentes se voltou para Deus, e desde esse momento, o pensamento de meu sobrinho nunca foi para mim objecto de perturbação nem de pesar".

Vê-se por isto a grada que Deus concedia à palavra do nosso Santo e a virtude que dava a tudo o que dele vinha.

Lourenço Maggi reunia tudo o que promete o homem superior. Entrado no noviciado, tem daí a pouco um tal desejo de o abandonar, que vem ao encontro do Padre Geral e declara-lhe bruscamente a sua resolução. Inácio não ficou surpreendido e disse-lhe:

- Não vejo nisso dificuldade, visto que assim o deseja; pelo-lhe, porém, que me prometa uma coisa.

- Sim, Padre, tudo o que quiser, exceto continuar na Companhia, demasiado perfeita para mim.

- Não é isso o que lhe peço. O que desejo é o seguinte: - Esta noite, a qualquer hora, mas ao primeiro despertar, coloque-se no seu leito como um homem que está na agonia e só espera o derradeiro momento. Represente-se que vai, em alguns momentos, dar contas da sua vida ao tribunal de Deus Nosso Senhor e ouvir a sua sentença. Represente-se tudo isto o mais vivamente possível. Diga em seguida: "Se eu estivesse neste estado, a quem quisera ter obedecido, a Deus, que me chama ao seu serviço, ou ao demônio, que me quer afastar dele?" Escute a resposta da sua consciência, e pergunte-se, depois disto, se não tem a certeza de chegar um dia a esse derradeiro momento da sua vida. Depois de ter seguido este conselho, abandone a Companhia quando quiser.

No dia seguinte de manhã, Lourenço veio ter com Inácio.

- Então, Lourenço, - lhe disse o Santo - vem dizer-me adeus?

- Padre! se eu não estivesse já no noviciado, suplicar-lhe-ia que me abrisse a porta, apesar da minha indignidade. Nunca conheci tão bem o chamamento de Deus como esta noite.

E o noviço estava de joelhos diante do bom Padre Inácio, pedindo-lhe que esquecesse que ele esteve tão perto de sucumbir à tentação. Esta tentação não se lhe renovou nunca mais.