XII. ADVERSÁRIOS VENCIDOS

Frei Agostinho do Piemonte, da Ordem das Eremita de Santo Agostinho, cuja reputação de eloqüência era célebre em toda a Itália, pregava em Roma, no ano de 1558. Ali, como em toda a parte, a multidão acotovelava-se junto dele, ávida da sua palavra brilhante e rica, sempre sedutora e persuasiva, mas - coisa estranha! -sempre estéril.. Depois de o ter ouvido com admiração, ninguém sentia desejo de reformar a vida, ninguém experimentava necessidade de sacrificar a consciência, todos se limitavam aos sentimentos eu admiração e via-se que essa eloqüência tão encarecida não produzia fruto nas almas.

Por outra parte, viam-se os maravilhosos resultados operados pelas prédicas simplesmente evangélicas de Inácio de Loiola e dos seus discípulos, e alguns espíritos sérios, impelidos a reflectir nestas diferenças de maneira e de triunfos, começaram a observar os sermões de Frei Agostinho não na sua linguagem encantadora, mas no fundo da sua doutrina. julgaram então reconhecer no eremita um propagador das heresias de Lutero e preveniram disso o nosso Santo. Inácio e alguns dos seus foram ouvir esse pregador e ficaram sabendo o que pensar dele. Frei Agostinho insinuou naquele dia a inutilidade das indulgências. A corte pontifícia estava ausente e Roma era governada por um Legado, o Cardeal Caraffa: parecera azada a ocasião ao luterano mascarado sob o burel e aproveitava-a para levantar uma parte do véu que cobria o veneno do seu pensamento. Depois de o ter ouvido algumas vazes, e não sendo possível a dúvida sobre as suas intenções, Inácio advertiu-o do perigo a que expunha a fé dos seus ouvintes; o nosso Santo fez-lhe esta advertência com todos os requisitos da mais afetuosa caridade. Frei Agostinho não vê, não ouve, nem compreende senão uma coisa: que está desmascarado. Não perdoará a Inácio o serviço que ele lhe quis prestar.

- Em tudo isso - disse ele ao santo apóstolo - não reconheço senão a sua ignorância e má fé. Como! os senhores a quem eu não aceitaria para meus alunos, ousam arvorar-se em doutores perante mim? Quem são os senhores? Creiam-me, fariam melhor se estudassem e se calassem do que ousarem censurar o que toda a cidade de Roma aplaude. Se o orgulho dos senhores não pode ver sem dor a admiração que eu excito, trabalhem, se podem, para merecer igual reputação; é preferível isso a procurar prejudicar-me, acusando de errônea a santa doutrina que eu prego. Assista ao meu primeiro sermão para que possa julgar qual a importância que eu dou às suas advertências; os aplausos que eu hei-de receber, ensinar-lhe-ão a prática da humildade, de que o senhor tem grande necessidade.

Frei Agostinho não via, sem dúvida, que não pregava com o exemplo a virtude que tão orgulhosamente recomendava na prática.

Os nossos apóstolos tinham apenas um meio para afastar o perigo que ameaçava a fé dos Romanos: era defender, nas suas instruções todos os pontos de doutrina atacados pelos luteranos. Agostinho irritou-se, mas não desanimou. O que já tinha ensinado, com o fim de dispor os espíritos a receberem o erro, é suficiente para pôr de sobreaviso aqueles que ouvem as prédicas dos nossos apóstolos; se os deixar seguir a marcha que adoptaram, ele ficará dentro em pouco sem auditório, será denunciado como propagador do erro e não terá a glória de ter dado um golpe no catolicismo no próprio centro da catolicidade.

O herege Agostinho viu tudo isto e quis vingar-se de Inácio e dos seus companheiros forçando-os a abandonar a praça; não tem um instante a perder, mete mãos à obra, começa a trabalhar na sombra, e, tendo-o o inferno ajudado, vê que pode ferir em pleno dia.

Sobe ao púlpito, ataca violentamente as novas heresias, faz sentir ao seu auditório a necessidade de se conservar fiel, mais que nunca, à antiga religião da Igreja e exclama com acento frenético:

"-Todos, meus irmãos, se devem acautelar do lobo vestido com a pele do cordeiro; que digo! contra o lobo que toma a máscara do pastor; contra um homem, ainda há pouco simples leigo, que percorreu algumas universidades da Europa deixando em todas deploráveis traços da sua passagem. Apoiado por alguns outros que se lhe assemelham, que vivem como ele e são animados do mesmo espírito, veio a Roma trazer o escândalo da sua heresia, e, com receio de ser condenado, começa por acusar os outros de semearem o veneno do erro. As seitas mais terríveis são as que tomam as aparências de santidade. Roma deverá mostrar-se menos zelosa da pureza da sua fé do que Paris, Alcalá e Veneza, de onde Inácio fugiu para se subtrair ao castigo que mereceu? Na própria Roma, homens do seu país, e de fé inalterável, o abandonaram. Um deles, seduzido a princípio pela sua doce linguagem, e atraído por suas falsas virtudes, afastou-se dele com horror, ao -ver o perigo de que estava ameaçada a sua alma".

No dia seguinte, toda a cidade de Roma sabia o que dissera o pregador, todos sabiam ou julgavam saber que Inácio de Loiola fora algumas vezes condenado por heresia e todos receavam aproximar-se dele ou dos seus discípulos com medo de tornar suspeita a ortodoxia da sua fé. Os nossos apóstolos eram apontados a dedo nas ruas, fugiam deles à sua aproximação, olhavam-nos como agentes do inferno que mereciam a fogueira.

Não nos admiremos: Miguel Navarro estava em Roma.

Aturdido a princípio pelo poder maravilhoso que o tinha aterrado em Paris no momento em que ia erguer mão homicida sobre o nosso herói, Miguel arrependeu-se e pediu a D, Inácio que o aceitasse no número dos seus discípulos. Mas depois, atemorizado com; a perfeição que era necessário atingir para ser admitido na pequena Companhia do nosso Santo, retirou-se e recaiu nos seus hábitos de pecado. Mais tarde juntou-se a Inácio em Veneza e pediu-lhe que o recebesse de novo entre os seus discípulos. Inácio conhecia muito bem Miguel para renovar a prova: recusou, e este último, sempre odiento, sempre vingativo, jurara perder o santo fundador. Depois de o ter denunciado em Veneza, foi a Roma e encontrou-se com Pedro de Castilho, Francisco Mudarra e Ramon Barrera, todos três em relações com Fr. Agostinho. Miguel apressou-se a apresentar sob o seu ponto de vista satânico as perseguições que o inferno tinha suscitado contra o santo apóstolo, e, posto em relações com o fogoso Agostinho. ofereceu-se-lhe para lhe fornecer provas irrecusáveis dos factos que avançava. Daí, a audaciosa acusação pública de Fr. Agostinho, e os resultados que acabamos de ver sobre o espírito do povo romano. Dai a pouco, não era só na cidade de Roma que a calúnia aumentava de dia para dia: em pouca tempo se espalhou em toda a Itália, e o inferno batia as mãos de contente. O seu triunfo não devia parar aqui.

A questão foi levada perante o Cardeal Legado. Inácio vai ser chamado ao seu tribunal; Pedro de Castilho e Fr. Agostinho têm relações intimas com alguns membros do Sacra Colégio, aos quais lhes será fácil pôr do seu lado. Quanto ao nosso Santo, tem apenas um amigo que lhe se conservou fiel. Um só ! É Quirino Garzónio, em casa do qual encontrou um asilo á chegada a Roma. Mas Nosso Senhor disse-lhe, na igreja de Storta: "Ser-vos-ei favorável em Roma". Inácio está, pois, tranqüilo e cheio de confiança; eleva ao céu orações com os seus discípulos, lembra-lhes a promessa divina e espera.

Quirino Garzónio vai um dia ver o Cardeal Cupis, seu parente e amigo, decano do Sacro Colégio, e é censurado por ele pela intimidade que tem com Inácio de Loiola:

- Deve apressar-se, - lhe diz o Cardeal - a romper essa intimidade, cujo menor perigo é fazer-lhe perder ã estima das pessoas de bem e destruir a reputação de que tem gozado até agora. Pense que, persistindo em estar em contacto com esse homem, expõe a; sua fé, e portanto a salvação da sua alma. Sei também que os costumes de Inácio não valem mais que a sua doutrina.

- E por que hei-de-replicou, Garzónio - dar mais crédito aos boatos que se espalham, do que aos factos de que sou testemunha diária? Por que hei-de aceitar cegamente narrações inverossímeis, cujos factos se passaram tão longe, e não hei-de aceitar as coisas que se passam aos nossos olhos e que são fáceis de julgar por nós mesmos? E tudo o que vemos, fala mui alto em favor de Inácio de Loiola.

- É um homem que possui a arte de ganhar os espíritos por uma espécie de encanto; - replicou o Cardeal - acautele-se, porque vejo que ele o seduz.

Garzónio comunicou imediatamente ao santo apóstolo a sua conversação com o Cardeal Cupis:

- Visto que o Cardeal me julga culpado, - respondeu Inácio com doçura - tem razão para procurar afastar de mim o meu amigo. Mas Deus Nosso Senhor pode fazer muito mais para me salvar do que todo o mundo para me perder. O meu amigo o verá quando chegar o momento. Quanto ao Senhor Cardeal, é um homem sábio e virtuoso, e, se me fosse concedido falar-lhe, estou certo de que mudaria de sentimentos a meu respeito.

- Pois bem, - exclamou Garzónio - vou pedir-lhe que o receba, e farei tudo para o obter.

Cumpriu a sua palavra. O Cardeal, cansado das suas instâncias, terminou por dizer-lhe:

- Pois que venha, visto que o senhor assim o quer; tratá-lo-ei como ele merecer.

No dia seguinte Inácio, acompanhado do seu amigo, dirigiu-se a casa do decano do Sacro Colégio e foi introduzido no seu gabinete, ao fundo do aposento; Garzónio esperou numa das salas precedentes e orava pelo bom resultado desta conferência, que agora temia tanto como a havia desejado. Que se passou entre Inácio e o Cardeal Cupis? Ninguém o soube. Estavam já em conferência havia duas horas quando Inácio apareceu, conversando com o Cardeal, que o conduziu até à última porta dos seus aposentos com todos os testemunhos da mais alta estima, dizendo-lhe ao deixá-lo:

- Renovo-lhe a promessa de ser o seu mais zeloso defensor nessa questão e em qualquer outra, se mais algumas surgirem.

Voltando-se depois para os seus domésticos disse-lhes

- Todas as semanas levar-se-á à torre Melangolo o pão e o vinho necessários para D. Inácio e para aqueles que com ele vivem.

Depois desta longa audiência, Garzónio foi ter com o Cardeal e perguntou-lhe o que pensava do nosso herói:

- O que penso é que é verdadeiramente um Santo. Experimentei tão grande pesar por ter acreditado nas calúnias espalhadas pelos seus inimigos, que lhe pedi perdão de joelhos.

Desde esse dia, o Cardeal Cupis não deixou nunca de enviar aos Padres, todas as semanas, a quantidade de pão e de vinho proporcionada ao seu número, e isto até à morte.

Inácio de Loiola, sempre cheio de confiança na promessa de Nosso Senhor, não se admirou desta mudança, que ele tinha previsto, e esperava mais ainda; mas queria lançar mão de todos os meios humanos, que a Providência parecia indicar-lhe, para chegar ao fim. A acusação fora levada perante o governador de Roma, Benedetto Conversini, Bispo de Bertinoro; Inácio solicita um julgamento sobre os factos de que o acusam; pede para ser acareado com os seus caluniadores, porque precisa da sua reputação para o exercício do seu ministério, e está certo de obter justiça. A acareação foi-lhe concedida.

No dia fixado, Inácio de Loiola aparece diante do tribunal do governador, bem como Miguel Navarro, seu denunciante, a quem o juiz faz perguntas; ele persiste nas acusações. Miguel, depois de ter prestado juramento de dizer a verdade, renova as suas infames calúnias e acrescenta:

- Sim, estando eu presente, Inácio foi condenado em Alcalá, em Paris e Veneza pelas suas heresias e por alguns outros crimes; subtraiu-se pela fuga aos castigos que lhe estavam reservados; mas eu, Miguel Navarro, fui testemunha dos factos e afirmo-os sob a fé do juramento!

Inácio, que tinha escutado Miguel até ao fim com a maior tranqüilidade, meteu a mão ao bolso, tirou uma carta, mostrou-a ao seu inimigo e disse-lhe, sem perder a serenidade e sem a menor comoção na voz:

- Conhece esta carta, Miguel?

Naquele momento o inferno não batia palmas, porque pressentia a derrota:

- É minha, respondeu Miguel - admirado da pergunta e da apresentação da carta.

- Pois bem, - replicou o nosso Santo - até agora o senhor falou de mim, não segundo o que viu, mas segundo o que lhe foi sugerido; agora vou fazer conhecido o que o senhor disse noutro tempo, quando falava segundo as suas próprias observações, e o juízo que de mim fazia em toda a liberdade de espirito e de posição.

Inácio leu esta carta. Miguel, escrevendo a um dos seus amigos, falava-lhe de D. Inácio e das suas virtudes, das quais dizia ser testemunha todos os dias, com um elogio que nada podia deixar a desejar e que parecia ter sido permitido e previsto pela Providência para o dia da sua justiça. Miguel, ouvindo esta leitura, empalideceu; o seu rosto tornou-se lívido, procura uma palavra para se justificar, balbucia, mas a palavra expira-lhe nos lábios trémulos: está aniquilado. A audiência foi levantada.

Não é tudo. Nosso Senhor prometeu à Companhia nascente ser-lhe "favorável em Roma". Inácio não o esquece c não se admira de nenhuma das circunstâncias providenciais que vêm em seu apoio. Apenas acabara de confundir o seu denunciante perante o tribunal do governador, três dos mais importantes personagens para a sua causa chegam a Roma de três pontos diversos, e todos são levados ali por negócios relativos à sua jurisdição.

São precisamente os juízes do nosso Santo nas três cidades designadas por Miguel Navarro: D. João de Figueiroa, substituto do Inquisidor em Alcalá; Mateus Ori, Inquisidor em Paris e Gaspar de Doctis, assessor do Núncio em Veneza. Todos os três se apressam a informar o Bispo D. Conversini em favor da ortodoxia e das virtudes daquele que o inferno não cessa de perseguir com raiva impotente.

Mas isto não é bastante. A inocência do mestre é reconhecida, altamente proclamada, e parece que se inquietam pouco com os discípulos. Ainda não chegou o momento de os atacar de frente; o inimigo de Deus e dos homens vê-se forçado a adiar para tempo mais oportuno a alegria desta vingança. Mas dessa vez será logrado. Foi não só para o mestre, mas também para os discípulos, que a promessa divina se fez; é necessário pois que, não só quanto a ele, mas quanto a eles, a promessa se cumpra.

Todas as cidades da Itália no meio das quais a palavra dos nossos apóstolos se tinha feito ouvir com tanto fruto, se alarmaram com o boato das infames calúnias que os inimigos de Inácio lhe assacavam. Conhece-se que, se a fé e os costumes do mestre são atacados, a fé e os costumes dos discípulos devem também sê-lo. Imediatamente Veneza, Vicência, Pádua, Bolonha, Ferrara, todos os lugares edificados pela vida incomparável dos santos missionários, expedem em seu favor atestados em forma, emanados de todas as autoridades eclesiásticas e dirigidos ao governador de Roma.. Hércules de Este, duque de Ferrara, ordena ao seu embaixador junto da Santa Sé que fale em favor de Lejay e de Rodrigues, e que testemunhe, em seu nome, o seu respeito pela santa vida dos dois apóstolos e empregue toda a autoridade de que está investido para defender a causa dos discípulos de Inácio de Loiola.

Pedro de Castilho, Mudarra e Barreia, aterrados com as conseqüências que podia ter a sua abominável conspiração, confessam-se réus de calúnia, e empenham-se com todos os seus amigos para que se ponha pedra na questão. Pensam que Inácio deve ficai satisfeito com a sua confissão. Tendo Miguel sido condenado a ser banido perpètuamente, deve parecer suficiente a justificação do acusado... Mas Inácio insiste, pede uma sentença jurídica e faz comparecer no tribunal do governador os três cúmplices de Miguel. Estes recusam comparecer, renovam as suas declarações e escondem-se vergonhosamente. O Cardeal Legado e o governador convidam o Santo a não levar as coisas mais longe, porque a sua inocência está reconhecida; todos os seus discípulos são da mesma opinião... A firmeza do santo fundador é inabalável: quer, exige uma sentença autêntica que não possa deixar a mais leve dúvida sobre a pureza da sua fé e da sua vida, bem como da dos seus discípulos.

Esta sentença jurídica, tão desejada e solicitada pelo nosso Santo, foi dada em Roma no dia 18 de Novembro, depois dum rigoroso exame do livro dos Exercícios Espirituais. Por permissão divina, que não passou despercebida a todos os espíritos sérios, a sentença dizia que os mesmos caluniadores de Inácio de Loiola tinham sido reconhecidos e convictos dos crimes de que o haviam acusado.

Francisco Mudarra, condenado como herege, conseguiu evadir-se da prisão e foi queimado em efígie. Pedro de Castilho foi condenado pela mesma causa a prisão perpétua. Fr. Agostinho, que se apressou a transpor a fronteira, despiu m hábito, declarou-se francamente luterano em Genebra e terminou a sua vida pelos suplícios que lhe tinham merecido os seus crimes. Miguel, como se viu, foi banido dos Estados da Igreja; Barrera fugiu. No momento da sua morte declarou que tudo o que tinha ousado dizer contra Inácio de Loiola eram calúnias, das quais se arrependia do fundo da alma.

Pedro de Castilho retratou-se de tudo no fim da vida e foi assistido na morte, na. sua prisão, pelo Padre Aveglianeda, da Companhia de Jesus. Francisco Mudarra, a quem Deus experimentou com grandes desgraças, recorreu à caridade Deus nosso Santo e encontrou nele um benfeitor, um amigo e um pai.

Inácio de Loiola não conhecia outra vingança. E, apressemo-nos em dizê-lo, tinha usado de todos os meios, de toda a sua caridade, de todo o seu zelo para obter o perdão de seus inimigos. O que ele quis foi um julgamento e não o castigo dos culpados. E qui-lo porque o julgava necessário para o exercício do seu apostolado.