QUINTA PARTE

GERAL DA COMPANHIA DE JESUS

(1541 - 1556)


I. INÍCIOS DA ATIVIDADE GENERALÍCIA

Deus parecia querer testemunhar que ratificava a eleição Inácio de Loiola.

No dia 15 de Abril, o nosso Santo acabava de abandonar os seus irmãos, e havia-se encerrado durante três dias, como dissemos, no convento dos Franciscanos, em. S. Pedro in Montorio, quando o demônio se apossou de repente de Mateo, jovem Biscainho empregado no serviço da casa. dos Padres. Lançava-o por terra e segurava-o com tal força que eram insuficientes dez homens para o levantar, e provocava-lhe no corpo as mais súbitas e extraordinárias inchações locais. Se um Padre fazia o sinal da cruz sobre alguma dessas inchações, desaparecia no mesmo instante e aparecia noutra parte. Uma das testemunhas destes estranhos factos, não podendo atribuí-los senão ao demônio, disse-lhe:

- O Padre Inácio vai regressar e expulsar-te-á certamente do corpo desse jovem e da casa.

- Não pronuncies sequer o seu nome! exclamou o espírito infernal pela boca da sua vítima, da qual redobrava as convulsões. É o maior e mais terrível dos inimigos que tenho neste mundo

Inácio reentrou em sua casa no dia de Páscoa, soube do estado deplorável de Mateo, foi procurá-lo, tomou-o pela mão, levou-o ao seu quarto, fez-lhe uma breve oração, e livrou-o para sempre dos ataques exteriores do demônio..

Na sexta-feira seguinte, 22 de Abril, todos os Padres foram juntos, de madrugada, visitar as sete igrejas e terminaram esta piedosa peregrinação pela de S. Paulo extramuros. Ali confessaram-se todos uns aos outros, segundo nos diz o Padre Ribadeneira, depois do que Inácio de Loiola celebrou o Santo Sacrifício no altar da Santíssima Virgem situado então à esquerda do altar-mor, junto do crucifixo miraculoso que falou a Santa Brígida. Antes da comunhão voltou-se para a assistência, tendo numa das mãos a patena, na qual repousava o corpo de Nosso Senhor, e na outra a fórmula dos seus votos, que pronunciou com voz forte e muito distinta. A fórmula era assim concebida:

"Eu, Inácio de Loiola, prometo ao Deus Todo-Poderoso e ao Sumo Pontífice, seu Vigário na terra, em presença da Santíssima Virgem, sua Mãe, de toda a corte celeste e da Companhia, aqui presente, viver na castidade, na pobreza e ria obediência, como o exigem as Constituições da Companhia de Jesus, de que se faz menção na Bula. Prometo também obediência especial ao Sumo Pontífice no que toca às missões, encerrado na mesma Bula. Prometo igualmente dedicar todos os meus cuidados à instrução da juventude, em conformidade com a dita Bula.".

O nosso Santo, voltando-se para o altar, tomou o corpo e o sangue do Salvador; depois, virando-se de novo para os Padres ajoelhados junto do altar, e pegando na patena na qual estavam cinco hóstias, recebeu os votos de todos os seus discípulos, cada um por sua. vez, que pronunciaram a mesma fórmula, com a diferença de que Inácio fizera os seus votos ao Papa e os Padres fizeram os seus ao seu chefe, a Inácio de Loiola, seu geral. Pronunciados os votos, Inácio deu-lhes a comunhão. Depois da ação de graças, fizeram juntos a visita aos altares privilegiados daquela igreja, e terminaram pelo altar-mor, diante do qual todos foram abraçar o geral -e beijar-lhe a mão em sinal de submissão e respeito. Todos, choravam de felicidade, e alguns dos assistentes não puderam conter as lágrimas de enternecimento e de edificação. Os bons Padres estavam tão contentes de ver chegar enfim este dia desejado e tanto tempo esperado, que o Padre Ribadeneira, presente a esta imponente e comovente cerimônia, diz-nos que no regresso, não podendo João Codure dominar a sua alegria, o ouviu exclamar:

- Estou oprimido pelo excesso da felicidade!

Santo Inácio inaugurou o exercício do governo da Companhia duma maneira digna, da sua humildade. Dirigiu-se à cozinha, ajudou aquele que dela estava encarregado, ocupou-se em seguida do serviço da casa, varrendo, lavando, não encontrando nenhum trabalho inferior a si, desempenhando os mais baixos misteres, transpirando alegria no meio destes humildes trabalhos.

Mas não negligenciava ao mesmo tempo nenhum dos negócios importantes do seu cargo. Depois de algumas semanas consagradas especialmente à organização do serviço, deu quarenta dias seguidos o catecismo às crianças na Igreja de Santa Maria da Estrada, igreja que Pedro Codure, oficial do Papa, e que gozava de muito crédito em Roma, fizera entregar à Companhia. A estas instruções concorriam ainda mais adultos do que crianças. Iam ali pessoas de todas as idades e condições, mesmo Cardeais e príncipes.

O nosso Santo, falando sobretudo com o coração, produzia as mais vivas e salutares impressões sobre os pecadores que o escutavam. Segundo diz o Padre Laynez, freqüentemente chamado para os confessar, eles não podiam confessar-se senão no meio de muitos soluços, tão viva e profunda era a sua dor de haverem ofendido a Deus. O Padre Ribadeneira diz-nos que Santo Inácio falava com tanto calor, que parecia abrasado de amor divino, e que o seu rosto era brilhante, mesmo quando tinha acabado de falar. A explicação da doutrina cristã era sempre seguida de uma calorosa e patética exortação terminada por estas simples palavras, pronunciadas com inefável expressão de amor:

- É necessário amar Deus Nosso Senhor com todo o nosso coração, com toda a nossa alma, com toda a nossa vontade!

Eu era muito jovem então, - acrescenta o autor contemporâneo, Pedro Ribadeneira - e repetia no dia seguinte, no catecismo, o que o Padre Inácio tinha dito na véspera na sua instrução. Receando que os seus pensamentos, tão belos e tão próprios a impelir os homens para a piedade e virtude, fossem muito negligenciados na forma, e obscurecidos algumas vezes pela impropriedade das palavras, convidava-o a polir mais os seus discursos. Escutando então apenas a sua modéstia e a. humildade profunda que nele dominava, respondia-me com a sua candura habitual e sempre tão persuasiva

- Agradeço-lhe a advertência, Pedro; obsequeia-me se continuar a advertir-me das faltas do meu italiano.

Continuei pois, mas o número das faltas era tão considerável que desesperei de poder notá-las todas, tão sobrecarregada era a sua linguagem italiana de locuções espanholas. Dei-lhe parte do meu embaraço e ele disse-me com doçura:

- Pois bem, que fazer? É um mal sem remédio. Que podemos nós contra Deus?

A partir da sua eleição de geral, eis a ordem que o nosso Santo tinha adoptado para todos os dias.

Começava pela oração, depois da qual celebrava missa.

Se qualquer negócio o chamava fora, saía em seguida. com qualquer companheiro; no caso contrário, recebia aqueles. que tinham necessidade de lhe falar, quer fossem de casa_ quer da cidade. Acolhia a todos com uma doçura e amável benevolência que, cativava os corações e com uma alegria que tranqüilizava os espíritos mais agitados. Sem lhes testemunhar desconfiança, era sempre prudente e reservado com as pessoas do mundo. Depois de jantar, conversava com os seus irmãos acerca dos negócios da Companhia e de assuntos instrutivos e edificantes. Ocupava-se em seguida dos deveres do seu cargo e da correspondência que lia, corrigia e assinava.

A noite, depois da ceia, regulava as ocupações para o dia seguinte, indicava a cada um o que tinha a fazer, segundo o emprego que exercia; depois trabalhava com o seu secretário. Quando este último se retirava, o santo fundador passeava no quarto apoiado no seu bastão, refletindo, meditando ou orando. Não dormia nunca mais de quatro horas.

Dividia a noite em três partes: a primeira para os deveres do seu cargo, como acabamos de dizer; a segunda para o descanso, que não tomava nunca sem ter o terço na mão; a terceira para a oração.

Ordinariamente começava a oração de pé; alguns momentos depois, inclinava-se profundamente como se visse Deus presente; então dobrava o joelho e adorava-o; ficava ajoelhado, se as forças lho permitiam; no caso contrário, tomava uma cadeira muito pequena e ficava numa atitude de humildade e respeito, como se tivesse visto com os olhos do corpo a presença da divina Majestade: as lágrimas corriam sem dar a menor agitação ao rosto, a menor contração às feições; parecia fruir a felicidade do céu.

Gastava pelo menos uma hora na celebração do Santo Sacrifício da Missa, e muitas vezes sucedeu que, apoderando-se das suas faculdades o espírito de Deus, conservava-se no altar mais tempo ainda. Tinha decidido que os Padres não deviam levar mais de meia hora a celebrar missa, e sempre o primeiro a dar exemplo, da mais perfeita observância, não queria infringir esta parte da regra; mas teria podido responder, como respondeu a respeito das suas locuções espanholas: "Que podemos nós contra Deus?" O Padre Nicolau Lannoy, assistindo um dia à sua missa, viu na ocasião do Memento, uma chama sobre a sua cabeça; correu para ele a fim de a apagar, mas parou de repente à vista do belo rosto de Inácio de Loiola reflectindo raios celestes e do seu brilhante olhar, que parecia mergulhado no próprio seio da divindade.

O ardor do seu amor para com Deus devorava-o a ponto que não podia celebrar a missa regularmente todos os dias, tão exausto ficava pelos longos êxtases que o prendiam ao altar. Um dia de Natal, depois de ter celebrado duas missas, achou-se tão fraco que se viram obrigados a levá-lo ao seu quarto, julgando-o moribundo. As palpitações do coração no altar eram visíveis para os assistentes. Tendo um homem do povo um dia presenciado isto, e vendo-o ao mesmo tempo verter muitas lágrimas, aproximou-se cautelosamente de Francisco Estrada, que acabava de acolitar à missa do nosso Santo, e disse-lhe:

- O sacerdote que acaba de dizer a missa é um grande pecador, não é? É de crer que Deus lhe haja perdoado, porque chorou muito!

Depois da missa, Santo Inácio encerrava-se no seu quarto e dedicava duas horas à ação de graças. Não era permitido a ninguém perturbá-lo durante estas duas horas, a não ser que fosse para negócio muito grave e que exigisse pronta solução.

"Quando eu não podia deixar de ir interrompê-lo, - diz o Padre Luís Gonçalves da Câmara, que exercia na casa o cargo de ministro - encontrava-lhe sempre o rosto brilhante e inflamado. Coxas o espírito muito ocupado no negócio que ali me levava, ficava surpreendido ao vê-lo, porque não era somente o recolhimento que lhe estava impresso no rosto, era uma expressão celeste que me atraía, e alguma coisa de sobrenatural, que eu não vi nunca noutros".

O quarto do Padre geral era separado da igreja por um muro; Inácio mandou apear esse muro a fim de gozar sempre a presença de Nosso Senhor. Esta tribuna estava precisamente diante do tabernáculo; era o único luxo do quarto do nosso Santo. A mobília não era mais do que no quarto dos outros religiosos: um leito, uma cadeira, uma mesa, um candieiro. Toda a sua biblioteca: uma Bíblia, um Missal e a Imitação de Cristo, da qual lia um capítulo todos os dias, e algumas linhas, de tempos a tempos, quando abria o livro: chamava-lhe a pérola dos livros.

A mais curta oração, como o Benedicite, o Angelus ou somente o santo nome de Deus ou o de Jesus, bastavam para inflamar a sua alma: era para ele uma faísca elétrica. Era muitas vezes forçado a evitar os entretenimentos espirituais para dissimular a sua disposição; deixar-se-ia arrastar pelo espírito de Deus, e, sabendo que os seus irmãos eram nisso menos favorecidos que ele, a sua humildade esforçava-se por encobrir as graças que recebia. Algumas vezes escapavam-lhe as lágrimas a seu pesar, e vendo que o coração estava prestes a explodir, abandonava os seus irmãos, fugia para o alto dá torre e exclamava: "Oh! como a terra é vil e desprezível, quando se contempla o céu!" Muitas vezes elevava os olhos para o céu; depois, concentrando-se, ficava como absorto.. Conquanto não perdesse nunca a presença da Majestade divina tinha adquirido o hábito de examinar de hora em hora, como tinha passado a hora precedente. Uma tarde perguntou a um Padre quantas vezes tinha já examinado a sua alma durante o dia

- Já a examinei sete vezes, - lhe respondeu.

- Somente sete vezes? - replicou o nosso Santo-; e contudo V. Rev.a teve muitos momentos livres durante o dia.

Estes frequentes exames não lhe bastavam; fazia também um exame da sua alma ao meio-dia e à noite, além do exame particular que recomendava com muita instância. As forças humanas são insuficientes para esta vida de contínua oração ou contenção de espírito e só um milagre permanente podia sustentar o Santo; e ele sabia-o. Por isso um dia deixou escapar estas notáveis palavras

- Se eu não tivesse outras forças senão as da natureza para sustentar a minha existência, certamente que há muito teria morrido.

O que o sustentava era ao mesmo tempo o que o devorava; era a sua ardente sede da glória de Deus. Não podia exigir que todos os membros da Companhia experimentassem um amor semelhante àquele com que era favorecido; mas exigia que dessem ao menos a Deus toda a sua vontade, e que gastassem todas as forças no seu serviço e na sua glória. Vendo um dia que um irmão coadjutor desempenhava coxas frouxidão a tarefa de que estava encarregado naquele momento, Santo Inácio aproxima-se, encara-o por um instante e diz-lhe:

- Ao serviço de quero entrou na Companhia, meu irmão?

- Ao serviço de Deus, reverendo Padre.

- Para quem trabalha neste momento? A quem serve?

- Trabalho para Deus, e é a Ele a quem sirvo.

- Com certeza? Duvidava-o. Se servisse os homens, compreendia eu a sua indolência e pouco zelo; mas, quando se tem a honra de estar empregado no serviço da divina Majestade, diante da qual nunca cumpriremos todos os nossos deveres, apesar dos maiores esforços, como é que não se lhe dá tudo o que se possui de força e de vontade?

Uma das mais agradáveis distrações para o bom Padre geral era ouvir os seus queridos Padres cantarem cânticos. Confessava que era tão grande nele este prazer, que a sua. saúde melhorava, se estava combalida. Sentia talvez um antegosto das harmonias dos anjos. E talvez fosse apenas um gosto natural da música.

Como a todos os espanhóis, a música eletrizava-o, mas nunca a procurava e falava dela com extrema reserva; só o rosto traía as suas impressões quando ouvia uma bela execução de música sacra.

Gostava também muito de flores, e admirava, em todos os pormenores que lhe constituíam o conjunto, a anão divina que as formou. Os Padres gostavam de vê-lo, das suas janelas, só no jardim da casa, colhendo flores, aspirando-lhes o perfume, admirando-lhes a beleza, levantando os olhos ao céu, bendizendo a Deus, louvando-o, agradecendo-lhe e quedando-se algumas vezes muito tempo, numa espécie de êxtase, com a flor nos dedos; as lágrimas caíam-lhe então uma a uma sem que desse por isso.

Quando recitava o ofício divino, ficava às vezes tão impressionado com o sentido dum versículo, que parava esquecido; perdia-se em Deus com tal abundância de lágrimas que os olhos se lhe enfraqueciam sensivelmente. O Papa, receando que ele perdesse a vista, dispensou-o do breviário e ordenou-lhe que o substituísse por algumas curtas orações.

Para conservar a lembrança dos favores extraordinários com que era tão abundantemente agraciado, o nosso Santo escrevia-os dia-a-dia; infelizmente, a sua humildade destruiu antes da sua morte esses preciosos escritos e apenas escaparam alguns fragmentos cuidadosamente recolhidos e conservados pelos seus discípulos.

Vamos reproduzi-los como se encontram no Padre Bartoli.