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Um dia do mês de Março do ano de 1522, ao pôr do sol, um
jovem e belo cavaleiro, montado num cavalo andaluz, saía da
cidade de Cervera, na. província de Catalunha, e tomava a
estrada que conduzia a Barcelona. Não levava escudeiro nem
criado, mas na sua pessoa tudo anunciava um dos primeiros
fidalgos da Espanha, um dos grandes senhores da corte. Usava
o saio curto de veludo encarnado[10]; a sua calça, tufada
desde o alto terminava pela bota mole adornada duma glande de
oiro e duma brilhante espora; pendia-lhe do cinto rica espada
e do lado oposto via-se-lhe um punhal de muito valor; no
gorro, cheio de rodados e pendido sobre a orelha direita,
flutuava graciosamente a longa e bela pluma que só a nobreza
tinha direito a usar [11].
Vendo-o cavalgar tão tranqüilamente; ao passo regular sua
cavalgadura, ninguém explicava a ausência dos criados todos
a comentavam a seu modo. Estava pouco distante lugar de
Igualada, quando um cavaleiro, saindo dum caminho à direita,
se lhe aproximou saudando-o e dizendo-lhe:
- Senhor cavaleiro, teria grande prazer em viajar convosco,
se me permitísseis acompanhar-vos.
- Da melhor vontade, - lhe respondeu o nosso fidalgo. - Sois
Mouro, não é verdade? Conheço-o pelo vosso vestuário ...
-Sim, senhor, mas vivemos tranqüilos agora no reino de Aragão
e no de Valência, aonde me retirei com minha família. Estava
previsto ! Era essa a vontade de Alá 1
- Ides longe, senhor?
- A Igualada e de lá a Nossa Senhora de Monserrate.
- Ah ! Ides em peregrinação à capela da Mãe de Jesus, senhor
cavaleiro?
-Vou em peregrinação à capela da Santíssima Virgem, -
respondeu com vivacidade o fidalgo cristão.
Então travou-se controvérsia entre os dois viajantes. O
muçulmano sustenta que Maria não era virgem depois do parto;
o cristão, forte na sua fé e na verdade que defende, sustenta
a virgindade de Maria, antes, durante e depois do nascimento
do Salvador. A discussão acalora-se; o muçulmano esgota em
vão todas as razões, e não encontrando nada que opor ao seu
adversário, exclama cheio de ódio:
- Não! por Maomé! a Mãe de Jesus não conservou a virgindade!
E, esporeando a mula, toma a dianteira e parte a galope.
Ouvindo esta última blasfêmia, o nobre cristão fez o sinal da
cruz, recolheu-se, orou um instante e disse:
"- Aquele desgraçado ousou insultar horrorosamente a divina
Mãe do meu Soberano Senhor! E eu, fidalgo, eu, cavaleiro da
nossa soberana Senhora e Mestra, sofrerei este ultraje feito
à sua honra sem procurar vingá-lo?! Não passarei a minha
espada através do corpo desse maldito muçulmano?! Não, não
será assim! Ínigo de Loiola não pode tornar-se culpado de
semelhante felonia! Corramos após esse infiel, e, pondo-lhe o
pé no pescoço, forcemo-lo a confessar que ele é um miserável
blasfemador e que a puríssima Senhora e Rainha do Mundo, que
eu tenho a honra de servir, conservou sempre a sua
santíssima virgindade!..."
Lançou a toda a brida o cavalo e ia transpor a distância que
o separava do muçulmano... De repente, pára; a sua
consciência perturba-se, e pergunta a si mesmo:
"- Ser-me-á permitido matar um homem para a glória e honra da
minha Soberana? Ignoro-o completamente
Na dúvida, entreguemos o negócio ao juízo de Deus[12]. Vou
abandonar o meu cavalo a si mesmo; se ele avançar para além
do caminho que devo tomar e seguir a estrada de Barcelona,
lançar-me-ei sobre esse miserável infiel e atravessá-lo-ei de
lado a lado sem compaixão. Se ele voltar à esquerda,
perdoarei a esse miserável".
Tomada esta resolução, o nosso herói seguiu a distância o
muçulmano; chegado ao caminho que devia tomar para se dirigir
a Monserrate, o seu andaluz abandonou a estrada real, voltou
à esquerda e dirigiu-se a Igualada. Inácio aceitou o Juízo de
Deus, mas compreendeu-o muito pouco. Mais instruído nas
ciências que faziam os grandes capitães e cortesãos
cavaleiros, do que na que fazia os grandes Santos ou somente
os verdadeiros cristãos, aplicava à sua -nova vida todas as
idéias de guerra e de antiga cavalaria, de que sempre se
alimentara.
Abandonando o tecto paterno com a resolução de não habitar
mais a feudal morada de seus pais, Inácio não tinha outro fim
senão fugir do mundo e consagrar-se inteiramente à maior
glória de Deus. Quanto à maneira como devia chegar a este
fim, ignorava-a: tudo o que sabia era que queria viver de
pobreza, de penitência, de humilhação, de imolação contínua
de si mesmo, como os Santos cujo heroísmo era para ele
objecto de tão grande admiração.
- Estivera poucos dias em Navarrete, e, abandonando esta
cidade, tinha dado ordem aos seus criados de voltarem ao
castelo de Loiola, e acrescentara, dirigindo-se ao seu
escudeiro:
- Dirás ao sr. D. Garcia que vou fazer uma viagem, durante a
qual os teus serviços me são desnecessários.
Dirigiu-se em seguida para a Catalunha, querendo ir a
Monserrate pôr sob a proteção da Santíssima Virgem a sua
resolução de viver doravante a vida dos Santos. Ao iniciar
esta peregrinação, tinha feito voto de castidade perpétua, e
chegara sem incidente a Cervera, onde o encontramos.
Depois de ter renunciado a matar o muçulmano, cuja vida tinha
submetido ao juízo de Deus, o nosso cavaleiro parou em
Igualada e comprou alguns objetos, que ligou ao seu cavalo,
entrando em seguida no caminho tortuoso que conduz à santa
montanha.
Chegado ao convento dos religiosos beneditinos, aos quais
está confiada a guarda da miraculosa imagem, pediu para fazer
uma confissão geral a um deles; designaram-lhe o Padre João
Chanones [13], encarregado especialmente de ouvir os
peregrinos.
Inácio escreveu a sua confissão com tão escrupuloso cuidado e
tão viva contrição, que a sua acusação, freqüentemente,
interrompida pela abundância das. lágrimas, só pôde ser
acabada no terceiro dia. Feliz de poder abrir a sua alma a um
homem de tão eminente virtude, fez-lhe conhecer as graças com
que tinha sido favorecido, e pediu-lhe conselhos sobre a
maneira como devia executar a sua inabalável resolução de não
mais viver senão para serviço e glória de Deus. Essas
conferências foram longas e frequentes vezes renovadas.
Inácio, evidentemente chamado à mais alta santidade, mas
ignorando os meios de lá chegar, estava persuadido de que os
mais enérgicos deviam ser os mais eficazes.
Disciplinava-se todos os dias e trazia o mais rude cilicio
sob o seu elegante vestuário; privava-se do alimento e do
sono e só esperava pelo momento em que pudesse, desconhecido
de todo o mundo, sofrer os mais humilhantes desprezos dos
homens. Quanto a consultar a vontade de Deus para conhecer o
que dele exigia, não pensava nisso, e não pensava até que
pudesse haver vocações especiais. Não compreendia e não
queria senão uma coisa: uma vida de imolação incessante para
glória de Deus. Jesus Cristo fez-se vítima pelos homens, ele
queria fazer-se vítima por Jesus Cristo. A sua dor de ter
vivido até então para o prazer e para a glória ilusória deste
mundo era das mais amargas, e, todavia, o fim principal das,
suas espantosas mortificações não era a expiação dos seus
pecados, mas a glória de Deus. Para ele tudo consistia nisto.
Depois de ter recebido a absolvição, o nosso santo penitente,
pediu e obteve o favor de passar a noite no santuário
privilegiado, aos pés de Jesus e Maria. Era no dia 24 de
Março.
À tarde, apresenta-se no átrio da igreja, passeia a vista
sobre os mendigos que ali se encontram, vê um mais miserável,
mais pobre que os outros, aproxima-se dele, saúda-o
respeitosamente, pede-lhe que o siga, e leva-o para um lugar
onde possa falar-lhe sem testemunhas:
- Meu amigo, - lhe diz - tenho um favor a pedir-lhe: Quer
dar-me a sua roupa e aceitar em troca a minha?
O mendigo seguira da melhor vontade o belo peregrino
esperança de receber uma boa. esmola; mas estava longe
esperar tal proposta, e pensando ter ouvido mal, ou julgando
que o jovem fidalgo tinha perdido o juízo, olhou-o admirado e
não sabia o que responder
- Falo-vos seriamente, - acrescentou Inácio. - Fiz um voto
No tempo em que sucedeu esta história, esta palavra explicava
tudo.
- Oh ! então, da melhor vontade, meu nobre senhor, -
respondeu o pobre catalão, contente por lhe aparecer tão de
fortuna.
E, imediatamente, o valente capitão, o herói de Navarra e de
Pamplona, o elegante cortesão tão cortejado, tão aplaudido,
tão amado na corte do seu soberano, o brilhante Inácio de
Loiola despoja-se dos seus ricos vestidos e cobre-se com os
andrajos de um mendigo! E, tomando a mão negra e calosa do
pobre montanhês:
- Obrigado, meu amigo, - lhe disse - prestou-me um serviço
que jamais esquecerei!
Entrou no seu quarto, abriu o embrulho que continha os
objetos que comprou em Igualada, tirou dele uma longa túnica
de grosso tecido, que vestiu, uma corda de cânhamo que
atravessou à cinta, sandálias de junco entrançado [14] e uma
cabaça que atou na ponta dum grande bordão. O seu desejo era
ir de pés descalços, mas a sua perna esquerda, de que ainda
sofre, está fraca, incha todos os dias e é até obrigado a
conservá-la ligada [15]; limita-se, pois, a deixar só um pé
descalço e põe uma sandália no outro.
Leu, nos romances de cavalaria, que na véspera do dia em que
os eleitos deviam, ser armados cavaleiros, isto é, receber
solenemente a espada e espora, [16] passavam a noite de pé
cobertos com a sua espessa armadura e meditavam assim sobre o
compromisso que iam tomar [17]. A isto chamava-se a vigília
das armas.
Recordando-se disto, Inácio de Loiola, que devia ter a
felicidade de comungar no dia seguinte, perguntou a si mesmo
se não devia considerar-se como candidato à ordem da
cavalaria mais eminente que jamais houve.
"- Que sou eu, - disse ele - senão um cavaleiro do soberano
Senhor e da soberana Senhora do mundo ? Não vou receber
amanhã as mais poderosas armas para combater os seus
inimigos? Sim ! como esforçado e valente cavaleiro, no
momento de ser alistado na nobre milícia de Cristo e de Nossa
Senhora, devo meditar sobre os compromissos que vou tomar...
Devo fazer a vigília de armas".
E cingiu a sua espada por cima da corda, tomou o punhal, que
pôs à cinta e dirigiu-se à igreja. Passou a noite a orar e a
meditar, chorando abundantemente sobre a sua vida passada e
renovando a Jesus e a Maria a promessa de ser para sempre o
seu mais fiel vassalo e de morrer ao serviço de Suas
Majestades.
Antes do dia, desafivelou o cinturão, fez homenagem à Rainha
do céu da sua espada e do seu punhal, que deixou apensos a um
pilar da capela [18], assistiu à primeira missa e comungou com
fervor celeste.
Era o dia 25 de Março, festa da Anunciação.
O concurso dos peregrinos devia ser considerável. Inácio de
Loiola, receando ser reconhecido, abreviou a ação de graças e
abandonou Monserrate.
Despedindo-se dos bons Padres, fez-lhes presente do seu
cavalo e partiu a pé, de cabeça descoberta, bastão na mão e
vestido como acabamos de ver.
"Não é já o belo cavaleiro cujas recordações de infância se
perdiam no meio das prodigalidades e dos prazeres da corte do
rei católico. Nada há nele do jovem senhor que, há pouco
ainda através da licença das armas, sabia espalhar o perfume
da maior urbanidade e da mais poética galanteria... Este
fidalgo tão cheio de si mesmo, tão ardente, tão generoso, tão
susceptível sobre todas as coisas que se prendiam com pontos
de honra, corre à conquista da humilhação, como se a
humilhação se tornasse para ele uma nova fonte de glória"
[19].
Inácio de Loiola desejava ardentemente ir em peregrinação à
Terra Santa. Aos sentimentos piedosos que lhe inspiravam esta
devoção, juntaram-se as suas idéias cavaleirescas.
Recordava-se das cruzadas e dizia que um fiel cavaleiro de
Jesus e de Maria não podia dispensar-se de visitar os Santos
Lugares para a libertação dos quais o mais nobre sangue da
Europa havia sido tão generosamente espalhado. Mas o porto de
Barcelona estava fechado por causa da peste; nenhum navio
podia ali entrar nem sair, e, esperando que a navegação fosse
livre, o nosso Santo tinha determinado, por conselhos do
Padre Chanones, retirar-se a Manresa, pequena cidade distante
de Monserrate apenas doze quilômetros. Naquela época, tinha
poucos habitantes, mas possuía um Convento de Dominicanos e
um hospital, 'o que asseguraria a Inácio todos os recursos
desejáveis para satisfazer a sua piedade e a sua
mortificação. Estando o hospital situado fora da cidade,
preenchia melhor o seu fixe: ali, podia permanecer
desconhecido e exercer ao mesmo tempo a humildade, a
caridade, o zelo, todas as virtudes que tinha necessidade de
praticar no mais perfeito grau.
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