XIII. A MORTE DO JUSTO

Dois Padres da casa do Loreto tinham ido em missão a Macerata, e deviam encontrar-se ali durante os três dias que precediam a quaresma daquele ano, 1555. Preveniram-nos de que alguns jovens se preparavam para dar ao povo, durante estes três dias, a representação de peças de teatro, que se assegurava serem muito imorais. Os dois jesuítas, em reparação dum mal que não podiam impedir, anunciam no púlpito que o Santíssimo Sacramento estará exposto durante aqueles dias, e convidaram os fiéis a virem adorá-lo. A multidão corre à igreja. Os jesuítas pregam, obtêm algumas conversões e participam este resultado ao bom Padre Geral, que quer saber tudo.

Inácio chora de alegria ao receber esta notícia; tem um pensamento que o seduz e cuja fecundidade pressente. Ordena imediatamente a todas as casas da Companhia que exponham o Santíssimo Sacramento durante os três dias, que precedem a quaresma, em reparação dos crimes que se cometem durante estes dias de prazer; depois falou deste pensamento de reparação ao Papa e aos Cardeais; daí, a instituição do exercício das Quarenta Horas.

Fica-se como aturdido lançando um olhar sobre todas as instituições criadas por Inácio de Loiola, ou das que ele teve o primeiro pensamento. É a ele que se deve a criarão dos orfanatos, das casas de refúgio, dos asilos para os judeus convertidos, dos seminários, do Colégio Romano, do Colégio Germânico, e enfim a instituição das quarenta Horas. O pensamento duma associação de orações para a conversão da Inglaterra não é novo: Santo Inácio havia estabelecido essa associação na sua Companhia, que a conservou. Juntem-se agora a todas estas obras, tão importantes, os magníficos trabalhos da santa Companhia de Jesus desde a sua fundação até os nossos dias e compreender-se-á tudo o que a Igreja e o mundo devem a Inácio de Loiola..

As forças do nosso Santo declinavam de novo. Decidiu-se a chamar o Padre Nadal e confiou-lhe o governo, assim como aos Padres Polanco e Cristóvão de Madrid. Já no mês de Março, Inácio tinha encarregado de todo o temporal o Padre Pezano, o que lhe era de grande alívio; mas a sua fraqueza aumentava de dia para dia; sentia o próximo fim e desejava-o. Quando ouvia um dos seus religiosos falar do que tencionava fazer para a glória de Deus no ano seguinte, dizia-lhe:

- Como tem Vossa Reverência a coragem de pensar que viverá até então? Visto que a incerteza lhe permite a esperança de ir gozar a Deus muito mais cedo, não compreendo que suporte um pensamento que não pode ser senão uma ilusão e que devia causar-lhe grande dor.

Todavia, teria aceitado com alegria a prolongação do exílio para o serviço e a glória de Deus. Num momento em que conversava com os Padres Ribadeneira, Laynez e Oviedo, disse ao segundo:

- Padre Laynez, se Nosso Senhor se apresentasse diante de Vossa Reverência neste momento e lhe dissesse: "Queres morrer agora? Dar-te-ei a glória eterna, mas se preferes viver ainda sobre a terra, deixar-te-ei sem te garantir a salvação; julgar-te-ei segundo o estado em que estiveres na hora da tua morte". Se Nosso Senhor lhe falasse assim, e lhe desse ao mesmo tempo o pensamento de que, permanecendo neste mundo, Vossa Reverência podia prestar alguns serviços à divina Majestade, que escolheria?

- Confesso-lhe, meu Padre, - respondeu Laynez -, que tomaria o partido mais seguro e certamente sem hesitação.

- Pois eu, - replicou o venerável Santo - não o faria. Se julgasse que podia aumentar a glória de Deus em alguma coisa, suplicar-lhe-ia que me deixasse viver. Parece-me que no fim de contas, nada arriscava; porque, se um rei oferece uma recompensa magnífica a um dos seus súbditos, e este a recusa para ficar em condições de continuar a servir o seu soberano, o príncipe não se julgaria obrigado, não só a conservar-lhe esta recompensa, mas a aumentá-la em proporção dos seus serviços prestados? E se os monarcas da terra ordinariamente ingratos, procedem assim, que não devemos esperar do Rei dos reis, que nos enche da sua graça e de quem recebemos tudo o que temos e somos? Como poderíamos recear ser condenados por termos sacrificado os nossos interesses à glória e ao serviço do nosso Mestre? Pensem outros o que quiserem; mas eu nunca pensarei de tal modo dum Deus, tão bom, tão magnífico, tão fiel !

Era evidente para todos que o pensamento da morte não abandonava o santo fundador e para convencer os seus queridos filhos de que, chegado o momento, a sua morte não seria uma perda para a Companhia, respondia a todos os pesares exprimidos pelos superiores a quem tirava súbditos de grande merecimento, e que eram mais úteis que outros na sua residência

- Que faria Vossa Reverência se ele tivesse morrido?

Durante muito tempo os seus religiosos tinham instado com ele para que deixasse memórias da vida; o Santo havia-se recusado, dizendo que os primeiros Padres sabiam tudo; mas, a novas instâncias, tinha terminado por fazer, por diversas vezes, ao Padre Gonçalves da Câmara, a simples narração dos factos desde o momento da sua conversão até ao ano de 1543. Acabando este trabalho, o Santo acrescentou:

- Relativamente ao resto, pergunte-o Vossa Reverência ao Padre Nadal.

Os Padres Laynez e Eguia podiam dizer muito mais, porque tinham tido toda a sua confiança; mas a sua humildade não lhe permitiu que os designasse.

Com receio de afligir os seus filhos, o venerável patriarca evitava falar-lhes francamente do pressentimento da sua morte próxima; mas preparava-os para isso. Assim, disse-lhes um dia:

- Desejei três coisas, e graças a Deus vejo-as realizadas. Estas três coisas eram ver a Companhia autorizada, o livro dos Exercícios Espirituais aprovado pela Santa Sé, e as Constituições acabadas e observadas por toda a Companhia. Nosso Senhor dignou-se conceder-me tudo isso.

Os religiosos presentes compreenderam que o Santo acrescentava interiormente: "Só me resta morrei". Escreveu, poucos dias depois, a D. Leonor de Mascarenhas, que havia sido aia do rei Filipe II, e dizia-lhe que aquela carta era a última que lhe escrevia e que não tardaria a ir orar por ela no céu. A fim de se preparar com mais tranquilidade para aparecer diante de Deus, desejou ir para a casa de campo que mandara construir para os doentes. Os Padres, temendo os grandes calores dos arredores de Roma, consultaram o dr. Petrônio, que os tranqüilizou. O nosso Santo retirou-se, pois, para ali no meado de junho; ruas experimentou tão frequentes desfalecimentos, ocasionados pelo calor, que foram obrigados a trazê-lo para Roma. Os médicos prescreveram-lhe apenas repouso absoluto, não o julgando mais doente do que estava já há muito tempo. Sobreveio em seguida uma ligeira febre, à qual não ligaram importância. Havia naquele momento alguns doentes na casa; e, conquanto o Padre Geral fosse aquele a quem mais estimavam, era o de que se ocupavam menos, porque estavam tranqüilos acerca do seu estado. Inácio de Loiola sabia entretanto que a sua hora chegara; mas, humilde e desapegado de si mesmo até ao fim, queria que só se ocupasse dele Deus e não procurava persuadir o que todos ao redor dele se recusavam a crer. Continuou com as ocupações a que se limitava desde que a sua extrema fraqueza o obrigara a diminuir o trabalho; dava conselhos, informava-se dos negócios e pedia notícias dos doentes algumas vezes ao dia, com tanta tranquilidade como de costume. Os Padres Laynez e Mendonça estavam gravemente doentes naquele momento, principalmente o primeiro, que os médicos tinham declarado em perigo. Inácio não devia ter a consolação de morrer nos braços desse amigo. O único dos seus primeiros discípulos presentes em Roma estava moribundo; Hocez, Codure, Fabro e Xavier já estavam no céu; os outros, dispersos na Companhia.

No dia 30 de julho, Inácio de Loiola, depois de ter comungado e dado ação de graças por longo tempo, chama o Padre Polanco; este apresenta-se, e o santo doente, tendo mandado sair o enfermeiro, diz ao Padre:

- Chegou o momento de mandar dizer a Sua Santidade que eu estou prestes a morrer, que não creio que a minha vida se prolongue muito e que lhe peço humildemente a sua bênção para mim e para um dos nossos Padres, que não tardará a falecer [57]. Diga também a Sua Santidade que, depois de ter orado muito por ele neste mundo, continuarei no céu a fazê-lo, se a divina Bondade se dignai de receber-me lá.

- Padre, - lhe respondeu Polanco - os médicos estão longe de julgar Vossa Reverência tão mal como pensa, e asseguraram-me que não há nenhum sintoma alarmante no estado de Vossa Reverência. Espero que a misericórdia divina nos conservará o nosso Pai muito tempo ainda.

- Padre Polanco, - replicou o Santo - sinto-me tão fraco que só me resta soltar o derradeiro suspiro.

- Para lhe obedecer, - disse Polanco - irei falar ao Papa; mas tenho algumas cartas que expedir esta tarde para Espanha; poderei adiar a incumbência para amanhã?

- Faça como quiser, - respondeu o humilde doente abandono-me à sua vontade.

Que abnegação, que humildade, que espirito de obediência nestas doces e simples palavras do grande Loiola! E que admiração excita quando essas palavras se aproximam das grandes coisas que ilustram tão bela vida!

O Padre Polanco, sempre cheio de esperanças, tinha adiado a visita ao Papa para o dia seguinte. Algumas horas depois, falou ao dr. Petrônio acerca dos pressentimentos do santo fundador e pediu-lhe o seu parecer:

- Até agora, - respondeu-lhe o. doutor - nada vejo de inquietador; virei vê-lo amanhã de manhã, e direi a Vossa Reverência a minha opinião, se achar mudança.

À noite, os Padres Madrid e Polanco foram para junto do nosso Santo, assistiram à sua frugal ceia, não o acharam pior e trataram com ele alguns assuntos relativos aos colégios. Inácio ouviu-os, examinou as coisas, deu a sua opinião com a liberdade de espírito, perfeito juízo, calma, capacidade ordinárias. Os Padres retiraram-se, convencidos de que o teriam ali por muito tempo e que o seu estado não era perigoso.

No dia seguinte, sexta-feira, antes do nascer do sol, os mesmos Padres entram no quarto do venerável patriarca... Inácio estava agonizante!... E não chamara ninguém! Passara a noite só e deixava-se morrer sem testemunhas; havia-se abandonado à vontade de um dos seus religiosos, que não queria acreditar na sua morte, e Inácio não falava dela senão a Deus.

O Padre Polanco corre ao palácio do Papa, apesar da hora matutina. Os Padres Madrid e Frúsio, pensando que a fraqueza é a causa única do estado em que vêm o seu muito amado Geral, pedem-lhe que tome um caldo; Inácio recusa-o com doçura e diz:

- Não é necessário.

O Sumo Pontífice mostrou viva dor quando soube a notícia que lhe levou o Padre Polanco e concedeu a sua bênção ao santo moribundo. O Padre voltou a toda a pressa e deu a bênção apostólica ao nosso Santo. Duas horas depois, Inácio de Loiola junta as descoradas mãos, ergue os belos olhos para o céu, pronuncia o doce e santo nome de Jesus e evola-se para o seio de Deus!

Foi no dia 31 de julho de 1556, dia aniversário da aprovação, pela Santa Sé, do livro dos Exercícios Espirituais.

Inácio de Loiola tinha sessenta e cinco anos. Havia trinta e cinco que se havia dado a Deus; vinte e dois anos que tinha consagrado os seus primeiros discípulos na capela subterrânea de Montmartre, em Paris, e dezasseis anos que a Companhia de Jesus estava constituída em Ordem religiosa e que, autorizada pelo Sumo Pontífice, se podia desenvolver livremente.

Nestes dezasseis anos, Inácio vira-a aumentar e desenvolver maravilhosamente. Deixava-a com doze provincial, mais de cem colégios e tendo tido a glória de enviar ao céu três mártires, saídos do seu seio: os Padres Antônio Criminale nas índias orientais, Pedro Correia e João de Sousa no Brasil.

O corpo do grande Loiola ficou no quarto donde a sua alma voara ao céu. Toda a cidade de Roma foi ali vê-lo com a mais terna veneração. Este movimento foi compreendido pelo Padre Laynez, a quem tinham ocultado a morte do seu amigo. Os outros Padres sucediam-se junto dele, a fim de vigiar para que a triste verdade não fosse sabida por ele, porque Laynez estava em grande perigo. Algumas vezes por dia, pedia noticias do seu querido Pai e o movimento desusado daquele dia, a tristeza involuntária que se lia no rosto de seus irmãos, tudo concorria para o esclarecer.

- O nosso Pai morreu? - perguntou ele.

Ninguém lhe respondeu. Então, erguendo os olhos e juntando as mãos, ofereceu a Deus o seu sacrifício interiormente; depois, levantando a voz tanto quanto lho permitia a sua fraqueza, disse:

"Eterno Pai, eu, que sou apenas uma miserável criatura, ouso suplicar-vos, a vós que nos destes por mestre, por pai e por chefe o vosso servo Inácio, e que tirastes hoje deste mundo a sua alma puríssima, que liberteis a minha dos laços que a prendem ao corpo! Peço-vos, pelos seus méritos e por suas santas orações, que me chameis breve a vós, para que eu vá, apesar da minha indignidade, juntar-me ao meu muito amado Pai, é gozar com ele da vossa divina e eterna presença!"

O Padre Ribadeneira, que nos dá estas informações, acrescenta que o Padre Laynez foi curado, e não ouvido, o que não surpreendeu ninguém, porque, alguns anos antes, Santo Inácio tinha-lhe dito: "Será Vossa Reverência, Padre Laynez que me sucederá no generalato".

Entretanto a multidão aumentava e acotovelava-se junto do despojo venerado, a ponto que um dos Cardeais lutou com grandes dificuldades para conseguir beijar a mão do santo fundador. No dia seguinte de manhã, as portas ficaram fechadas, a fim de se proceder ao embalsamamento; nesta operação descobriram que o estômago estava contraído, as entranhas dessecadas, o fígado endurecido e com três pedras. Os médicos declararam que ele não podia ter vivido tanto tempo sem milagre, e atribuíram o estado de dessecamento dos órgãos a jejuns muito prolongados. Um autor já muito citado, o Padre Ribadeneira, diz que o Santo passava algumas vezes sete dias inteiros sem tomar o menor alimento.

Depois de embalsamado, a porta abriu-se de novo aos fiéis. O concurso foi imenso, como na véspera. O corpo havia sido posto num caixão de madeira, que ficou descoberto e foi assim levado, depois de vésperas, para a igreja de Santa Maria da Estrada, pertencente aos jesuítas. Depois da cerimônia fúnebre, o caixão foi coberto e descido ao ,modesto túmulo preparado para o receber, à direita do altar-mor.

A Companhia de Jesus não pôde chorar Inácio de Loiola, porque sabia que, se perdia um pai na terra, ganhava um poderoso protetor no céu.