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Inácio de Loiola retomara a sua habitação no hospital D. de
Santa Lúcia. Teria preferido a vida solitária na gruta onde
recebera tantas graças e fruíra tão doces consolações; mas
tendo-lhe a obediência imposto o sacrifício de habitar no
hospital, teve que renunciar à gruta e não voltar lá senão
para orar e meditar. Deus, porém, compensou-o
superabundantemente não só desse sacrifício, mas das
tribulações interiores com que lhe experimentava a
fidelidade.
Ao abandonar o inundo, Inácio era ignorante como todos os
fidalgos da sua época.. Ninguém entendia melhor que ele da
arte da caça, conhecia perfeitamente a ciência do bem viver e
da alta cortesia; à frente dos seus homens de armas, teria
desafiado o melhor capitão; no campo de batalha era um herói;
mas, doutras coisas, nada sabia. Fazia versos, é verdade, e a
sua rica e poética imaginação produzia-os com tanta
facilidade como elegância. Mas escrevia-os... sem ortografia,
de que fazia pouco caso, o. que então se deixava aos
sacerdotes e aos letrados. O nosso herói não sabia mais que
ler e escrever, e sabemos o uso, que tinha até então feito
duma coisa e doutra.
Era contudo necessário no plano da sabedoria e da
misericórdia infinitas, que o nobre penitente de Manresa
possuísse no grau mais eminente o gênio, que faz os grandes
homens, as virtudes que fazem os maiores Santos, a ciência
que faz os maiores doutores.
Do gênio tem ele o gérmen: o desenvolvimento será pronto e
completo; às virtudes praticou-as todas na perfeição antes de
as conhecer; a ciência vai possui-la, antes de ter estudado.
Estava um dia Inácio na escadaria da igreja dos Dominicanos,
onde, durante uma procissão, recitava o ofício da Santíssima
Virgem. De repente, o seu espirito é arrebatado até ao seio
de Deus, e é-lhe dado compreender e contemplar o
Incompreensível mistério dum Deus, único em três pessoas
distintas! Depois desta visão, fica muito tempo em presença
do Santíssimo Sacramento e não pode testemunhar senão pela
abundância das lágrimas o reconhecimento que lhe enche o
coração.
Ao sair da igreja a sua alma expande-se junto dos religiosos
em termos magníficos; fala-lhes do adorável mistério da
Santíssima Trindade com palavras de fogo e numa linguagem
sublime,. evidentemente inspirada; os mais sábios escutam-no
com admiração, ninguém duvida de que ele haja recebido luzes
sobrenaturais, e todos exclamam, quando Inácio te, afasta:
"- Nunca nenhum doutor da Igreja falou tão eloqüentemente e
com tanta clareza sobre este mistério! Nunca este Mistério
foi apresentado sob tais imagens!"
A notícia desta maravilha espalha-se na cidade, correm para
junto de Inácio e pedem-lhe para que fale da Santíssima
Trindade. O Santo causa admiração àqueles que o escutam.
Esquece a linguagem popular que afetava de ordinário e
exprime-se com notável elegância; a sua eloqüência arrasta
algumas almas e ganha-as. para Deus. Não se cansam de o
ouvir, ele não se cansa de falar, seguem-no nas ruas,
acompanham-no nas suas diversas peregrinações; em toda a
parte, aonde vai, lhe pedem que fale de Deus, e por toda a
parte e sempre corresponde à expectativa geral com igual Fala
sobretudo da Santíssima Trindade; sobre este assunto, Inácio
é inesgotável, porque tem sempre presente a sua visão.
Um dia, quando orava na igreja de Nossa Senhora de Manresa
[22], foi de novo arrebatado, e vê e compreende todo o plano
da divina sabedoria na criação.
Outro dia, assistia à santa missa na igreja de Monserrate[23],
o seu olhar fixa-se com amor sobre a divina Hóstia exposta à
adoração pública naquele dia, e vê e compreende a presença
real de Jesus Cristo na adorável Eucaristia. Num dos seus
passeios contemplativos, senta-se numa pedra perto da cruz do
Tort, e o seu rosto volta-se para o Cardoner, que corre
diante dele; de repente, perde todo o sentimento das coisas
da terra, Deus dá-lhe um conhecimento claro e distinto de
todos os mistérios da nossa fé e faz-lhe ver e compreender o
encadeamento e o conjunto deles. Voltando a si, Inácio vai
prostrar-se aos pés da cruz do Tort e demora-se ali bastante
tempo em ações de graças
"- Se, por impossível, - dizia ele algumas vezes - as
Sagradas Escrituras desaparecessem da terra, com isso eu nada
perderia".
"- As verdades da fé parecem-me tão claras, - dizia também -
que, ainda que não estivessem contidas no santo Evangelho,
não hesitaria em defendê-las e sustentá-las à custa do meu
sangue!"
No hospital de Santa Lúcia, Inácio habitava um quarto que
tinha uma tribuna para a capela [24].
Um sábado, depois de completas, entrou em êxtase, na sua
tribuna, e ali esteve até ao sábado seguinte, à mesma hora.
Durante estes oito dias, não tomou alimento algum e não mudou
um só instante de posição; julgaram-no morto; auscultaram-lhe
o peito, sentiram um ligeiro movimento de coração, e pensando
que ele estava desmaiado, começaram a prodigalizar-lhe
cuidados. Nada, porém, conseguiu chamá-lo à realidade da
vida; compreenderam então que o seu espírito estava abismado
em Deus, e ergueram-no para o despertar. Quando o puseram em
terra, o Santo pareceu despertar dum doce sono, e, abrindo os
olhos, disse, vertendo lágrimas:
"-Ó Jesus! ó Jesus!" E mais nada.
Que se passou, durante estes oito dias, entre a alma de
Inácio de Loiola e o Deus de amor que se dignava
comunicar-se-lhe? Nunca ninguém o soube; mas há razões para
pensar que o livro dos Exercícios Espirituais e o plano da
santa Companhia de Jesus são os frutos desse longo êxtase, e
que foi então que o próprio Deus o traçou na alma do nosso
Santo. A todas as perguntas que lhe foram dirigidas a este
respeito, Inácio respondia estas simples palavras
"- Nada mais posso dizer senão que todos os favores de que a
divina Majestade se dignou cumular-me são inexprimíveis !"
Fossem quais fossem as luzes sobrenaturais com que fora
esclarecido, Inácio de Loiola, sempre humilde, não cessara de
seguir a direção do Padre João Chanones, a quem ia
regularmente pedir conselhos. Este santo velho dizia muitas
vezes aos seus religiosos:
"- O meu discípulo de Manresa é um grande mestre! Será um dia
o defensor, o sustentáculo, o ornamento da Igreja; será
reformador do mundo, verdadeiro sucessor de S. Paulo, e, por
ele, a luz do Evangelho será levada às mais longínquas nações
idólatras".
Uma santa jovem, conhecida em toda a Espanha pela beata de
Manresa, só falava de Inácio com toda a veneração, e
assegurava que via nele um dos maiores Santos da igreja.
Não havia mais. que uma voz para o proclamar homem de Deus, e
todos repetiam que só a sua humildade lhe fazia ocultar o
brilho do seu nascimento sob as aparências da maior pobreza.
Entretanto, o nosso herói sabia agora que a maior glória e
Deus, para a qual ele, só queria viver e morrer, consiste na
santificação das almas, e ardia no desejo de trabalhar para
esse fim.
"- Não basta, - dizia ele - que eu sirva o Senhor soberano do
céu e da terra; é necessário que Ele seja amado por todos os
corações; é necessário que todas as vozes o bendigam e cantem
os seus louvores! Não basta que eu trabalhe para a minha
própria perfeição; é necessário, para a maior glória da sua
divina Majestade, que eu trabalhe para a dos outros!" Cheio
deste pensamento, redobra as suas exortações, e a sua
palavra, sempre ouvida com prazer, opera prodígios. De todas
as circunvizinhanças correm para escutar aquele que pratica
tão escrupulosamente o que aconselha, e é obrigado a subir a
uma pedra, à porta do hospital, para se fazer ouvir de todos.
Já não é uma corda de cânhamo que lhe cinge o corpo é uma
longa cadeia de ferro, pesada e áspera; o seu jejum é
continuo, as suas disciplinas sangrentas, o seu rosto cavado
pela austeridade da vida; o seu olhar não é da terra. É, o
homem evangélico na. mais alta perfeição; só o seu aspecto
arrasta ao arrependimento e à penitência.
Alguns meses antes, a cidade de Manresa oferecia um doloroso
espetáculo; os costumes eram relaxados; os sacramentos
desprezados, a fé parecia quase extinta. Agora, é uma cidade
exemplar. Inácio reformou-a completamente e restituiu-a a
Deus.
Foi no próprio seio de Deus que ele hauriu o poderoso método
que empregava para fazer vibrar mais profunda e eficazmente
nas almas a palavra evangélica. Ele vê as vocações religiosas
que desperta, os sacrifícios que obtém, a reforma de costumes
que opera, e quer facilitar o meio de o espalhar e de
multiplicar os seus frutos. Escreve o livro imortal dos
Exercícios Espirituais,
Deus continuava a prodigalizar os seus favores ao nosso
Santo; algumas vezes foi-lhe dado ver e contemplar Nosso
Senhor e sua divina Mãe, não duma maneira sensível, mas por
uma espécie de vista interior, como ele-mesmo explicou mais
tarde ao Padre Gonçalves.
O demônio quis aproveitar-se da disposição em que tão
frequentes visões mantinham o seu espírito.
Algumas vezes uma serpente, de brilhantes e luminosas cores,
se apresentara à sua vista, no campo. Inácio admirara-a; mas,
não vendo nisso nenhuma significação e experimentando apenas
uma espécie de perturbação depois do seu desaparecimento,
tinha pensado que isso não podia ser senão uma ilusão do
inimigo de Deus e dos homens. Representando-se-lhe a serpente
um dia ao cimo da cruz do Tort, logo após um dos êxtases que
tão maravilhosamente o esclareciam, notou que as cores da
serpente tinham perdido o seu brilho. Desde este Momento, não
havia dúvida para ele: reconheceu a presença do demônio.
Desde esse dia, todas as vezes que a visão se renovava,
bastava ao Santo fazer um movimento com o bastão para se ver
livre desta imagem importuna.
Entretanto, Inácio tinha perdido o sono; as suas austeridades
tinham-lhe deteriorado o estômago, que não suportava
alimentos. Não pôde resistir mais tempo a tantas fadigas,
privações e sofrimentos e caiu perigosamente doente. Foi um
luto para Manresa. Os magistrados e os principais habitantes
da cidade quiseram quinhoar da consolação de o tratar as suas
expensas, em casa de D. André Ferreira de Amigante, para onde
foi de novo conduzido. Os Dominicanos e os Beneditinos
combinaram-se para lhe imporem o dever de Moderar as suas
austeridades, e, apenas recobrou a saúde submeteu-se a tudo o
que lhe impuseram. Abandonou as pobres roupas de Monserrate,
aceitou as que lhe deram em troca e vestiu por cima delas uma
longa batina de algodão cinzento tendo a forma da dos
clérigos; consentiu também em cobrir-se com um manto de pano
azul e com um boné do mesmo pano [25] para se preservar do
frio, que começava a fazer-se sentir.
O valente cavaleiro de Jesus e de Maria acabava de fazer o
seu primeiro ensaio de armas em Manresa. A espada da Palavra,
com a qual tinha alcançado brilhantes e magníficas vitórias
sobre as paixões humanas, havia-lhe sido dada pelo próprio
céu, e a sua maravilhosa virtude não podia ser posta em
dúvida, porque a reforma duma cidade inteira e dos seus
arredores o atestavam evidentemente.
Nos romances de cavalaria, que Inácio bem conhecia, aos mais
valorosos paladinos e àqueles cujas proezas haviam
conquistado maior nomeada, é que eram concedidas as armas
encantadas que asseguravam a vitória. Havia também armaduras
que tinham a virtude de tornar invulneráveis aqueles que as
usavam; mas sucedia por vezes que um malvado ou um traidor se
apoderava delas por astúcia, e então o cavaleiro espoliado
tornava-se vulnerável como um simples mortal.
"- Nada tenho feito, - dizia o nosso Santo - para merecer a
espada maravilhosa que o meu Senhor e Mestre se dignou de
confiar-me para sua glória. Recebendo-a, comprometi-me a,
defender a sua honra em toda a parte e sempre; não posso nem
devo deixá-la ociosa! Irei à Palestina atacar as falanges
inimigas do meu soberano Senhor e da soberana Senhora e
Rainha do mundo. A minha armadura encantada será composta da
Fé, da Esperança, da Caridade, e da Oração. A graça
sustentar-me-á e ajudar-me-á! Se eu conservar preciosamente
esta santa armadura, serei invulnerável; se, ao contrário,
não desconfiar constantemente do malvado e do traidor, a sua
infernal astúcia poderá roubar-ma. Avante pois, contra a
infidelidade que cobre a Terra Santa e guerra ao traidor
maldito ! "
Inácio estava resolvido a partir. A peste diminuía de
intensidade em Barcelona, os navios não podiam demorar-se a
fazer-se ao mar, e o nosso Santo queria encontrar-se lá para
embarcar no primeiro que se fizesse à vela para Itália.
A notícia da sua próxima partida causou intensa dor aos seus
amigos. Orações, lágrimas, súplicas, tudo foi empregado em
vão para o afastar de uma viagem que então se julgava das
mais perigosas. Algumas pessoas inutilmente solicitaram o
favor de o acompanhar, acrescentando
- O senhor não sabe nem latim nem italiano; leve em sua
companhia alguém que fale um ou outro idioma, para lhe servir
de intérprete e evitar os inconvenientes, que resultam da
ignorância da língua desses países.
- Ainda que me dessem o filho do duque de Córdova, -
respondeu enèrgicamente o nosso herói-não o aceitaria. Se eu
levasse companheiro de viagem, contaria com ele para me
alimentar quando tivesse fome, para me levantar quando
caísse... Não! Poria nele a confiança que só devo pôr em
Deus; unir-me-ia a ele, em vez de só amar a Deus... Não! não
quero ninguém..., ou, antes, parto acompanhado da Fé, da
Esperança e da Caridade; a Fé me guiará, a Esperança será a
minha despenseira e a Caridade não me abandonará nunca.
Inácio tinha como inimigos, naquela cidade, alguns homens, em
pequeno número, é certo, cujo endurecimento no pecado havia
resistido às suas constantes exortações. D. Inês Pascoal,
temendo que ele fosse perseguido com as suas injúrias, e que
a sua própria vida fosse ameaçada, chamou seu irmão D.
Antônio Pujole, que era um dos familiares do Arcebispo de
Tarragona, e pediu-lhe que acompanhasse a Barcelona o santo
penitente. Não podendo recusar esta companhia, submeteu-se
humildemente.
Inácio não tinha dinheiro; mas todas as bolsas se lhe
abriram; queriam que levasse ao menos uma soma suficiente
para as despesas da viagem.
- A Providência, - respondeu ele - encarregar-se-á de fazer
as despesas da viagem e do regresso.
E, tomando os manuscritos e o bordão de peregrino, partiu a
pé, não querendo outras provisões senão o pão da esmola, que
lhe fosse dado no caminho, a água que a sua cabaça levava, e,
principalmente, a confiança em Deus. Um sacerdote, chamado
Caváglia, tinha-lhe sempre dado esmola com terno respeito. No
momento de o abandonar, Inácio quis deixar-lhe uma lembrança
do seu reconhecimento, mas não possuía nada: tem apenas o seu
livro de oficio da Santíssima Virgem e faz o sacrifício de
lho dar.
Não pode conter as lágrimas à vista da desolação daqueles que
o amam; promete a todos as suas recordações e lembranças e
arrancando-se enfim aos seus pesares e à sua ternura,
encaminha-se para Barcelona com D. Antônio Pujole, que
cavalgava perto dele numa mula.
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