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Numa tarde do mês de Abril de 1535, no momento em que os
últimos raios do sol acabavam de desaparecer por detrás dos
cumes mais elevados dos montes Cantábricos, o ruído do galope
dalguns cavalos fez-se ouvir à entrada da pequena cidade de
Andoain, na província de Biscaia. Era um fidalgo seguido
dalguns dos seus criados. Foi direito a uma hospedaria, que
parecia conhecer bem e apeou-se. O hospedeiro estava à porta
e esperava:
- Seja Vossa Excelência benvindo, sr. D. João de Equibar. A
hospedaria e o dono estão às ordens de Vossa Excelência.
Enquanto o obsequioso hospedeiro refrescava os cavalos e se
esforçava por justificar as palavras com que recebeu o
fidalgo, D. João de Equibar dirigiu-lhe algumas palavras e
perguntou-lhe com interesse:
- Tem passado aqui muita gente?
- Alguns fidalgos, de tempos a tempos, que vêm como, Vossa
Excelência, dessedentar as cavalgaduras, ao passar.
- Tanto pior, meu bom Antônio; quisera que a tua casa
estivesse cheia de hóspedes.
- Vossa Excelência é muito bondoso. Hoje, senhor, tive apenas
um pobre homem, mal montado, vestido dum modo esquisito,
falando biscainho como se fosse do país. Acaba de chegar.
Francamente, senhor, suspeito algum mistério..
- Sim? E que suspeitas?
- Senhor, creio que há alguma coisa... Mas o quê?
- Ignoro.
- És interessante. E que razões tens para suspeitar desse
pobre homem?
-Que razões? Porque Vossa Excelência, como devido respeito,
não tem um porte mais nobre que ele, e, com esses ares de
fidalgo, tem um cavalo que não vale dez réis. Parece que vem
de longe e não diz o seu nome... Há mistério, senhor; tenho a
certeza disso.
- Homem, estou com curiosidade. E esse homem demora-se muito
tempo?
- Até amanhã.
- Tenho curiosidade de vê-lo.
- Queira Vossa Excelência ter o incômodo de subir. Ele está
no quarto mais pobre, lá no alto; a porta fecha mal [42] e
pode ver-se facilmente, sem a abrir, o que se passa no
interior. Vossa Excelência compreende que nas montanhas todos
os viajantes que se dizem pobres nem sempre são homens de
confiança e é prudente estar de sobreaviso.
- Vejamos, - disse D. João - vem comigo; quero ver esse
homem.
O hospedeiro obedeceu. D. João, examinando o viajante,
conteve a custo uma exclamação de surpresa e de alegria.
Desceu à pressa e disse a Antônio
- Reconheci o teu hóspede; é um grande fidalgo, com efeito, e
um grande Santo; mas Deus te livre de lhe dizeres uma só
palavra do que acaba de passar-se! Respeita-lhe o segredo, é
o que te cumpre fazer, se não queres comprometer a tua casa.
O hospedeiro inclinou-se profundamente:
- Vossa Excelência pode contar com a minha discrição. Mas
poderei falar quando o viajante haja partido?
- Poderás; mas, antes, não.
E D. João de Equibar, montando a cavalo, partiu a toda a
brida, deixando Antônio entregue a mil conjecturas e
suspirando pelo momento em que pudesse falar com toda a
liberdade do misterioso viajante.
Duas horas depois, o som da buzina ecoava à entrada do
castelo de Loiola, e a nobre família, reunida naquele
momento à mesa comum, perguntava quem podia ser o visitante
íntimo que vinha tomar parte na sua ceia, quando se anunciou
D. João de Equibar.
- Grande novidade, meus bons amigos! Quero abraçá-los a todos
e regozijar-me convosco. Feliz notícia! Acabo de ver D.
Ínigo.
Ninguém correspondeu a estas exclamações de alegria; no
primeiro momento, não o compreenderam, e todos interrogavam
com o olhar o amigo D. João, esperando uma explicação
- Sim, meus bons amigos, - disse ele - acabo de ver D. Ínigo
em Andoain.
- Em Andoain? Ínigo? Será verdade? Pois é possível?...
Todos falaram ao mesmo tempo, e a família era numerosa,
porque, por uma coincidência notável e certamente
providencial, todos os irmãos do nosso Santo e alguns de seus
parentes estavam no castelo de seus pais no momento em que
ele voltava, depois de treze anos de ausência.
João de Equibar contou como a sua curiosidade, excitada pela
loquacidade do hospedeiro, o havia impelido a querer ver o
viajante, de que falava; e acrescentou:
- Julguem da minha surpresa e da minha alegria ao reconhecer
D. Ínigo! Ele estava de joelhos, orando com o recolhimento
dum verdadeiro Santo e a expressão dum anjo! Se eu lhe visse
fazer milagres, não me causaria admiração. Têm razão em dizer
que ele é um Santo. Mas devo prevenir a todos que está muito
mudado, muito pálido e extremamente magro. Quanto ao seu
vestuário, sabem qual é, porque lhes têm falado muitas vezes
dele: continua sendo a sotaina cinzenta e o chapéu cinzento
de Barcelona.
Era imensa a alegria na ilustre família. Apressaram-se em
preparar o programa da recepção que devia fazer-se ao
humildade apóstolo, o que não foi coisa fácil de decidir.
Queriam a princípio vir-lhe ao encontro com brilhante
cavalgada. Os irmãos, os sobrinhos, os parentes, alguns
fidalgos da vizinhança que se mandariam prevenir ele noite e
o séquito de todos eles; teria sido uma escolta pomposa,
capaz de fazer fugir o Santo.
- Pelo que sei dele, - disse D. Garcia - receio
descontentá-lo com um tal aparato. Dêmos um ar de festa ao
castelo, porque ele nos não pode estranhar este testemunho de
alegria; mas nada no exterior. Apenas pedirei ao capelão que
vá a Andoain cumprimentar Ínigo em nosso nome e dizer-lhe que
o seu regresso é para toda a família objecto de alegria.
- Mas se Ínigo vier pela montanha, - disse D. Beltrão o
capelão não o encontrará!
- Tens razão, meu irmão, - respondeu D. Garcia. O capelão vai
partir imediatamente; dormirá em Andoain e não deixará de
encontrar Ínigo. No caso que o nosso querido irmão queira
tomar o caminho da montanha, vou mandar espalhar homens
armados nas passagens, a fim de que possam defendê-lo em caso
de ataque. Vou também expedir a Azpeitia um mensageiro a
prevenir o clero e os magistrados da chegada de meu irmão;
eles farão o que quiserem.
Esse plano não foi por diante, em consideração à humildade do
nosso Santo.
No dia seguinte, Inácio de Loiola, acabando de ouvir a santa
missa em Andoain, entrava na hospedaria para montar a cavalo,
quando foi cumprimentado - á porta pelo capelão de Loiola,
que o esperava:
- Sr. D. Ínigo, - lhe disse - sou enviado junto de Vossa
Excelência para lhe dizer que é esperado com impaciência e
alegria por D. Martinho Garcia, seus filhos e seus irmãos que
estão no castelo, bem como toda a família e amigos; todos
desejam cumprimentar Vossa Excelência, e eu peço-lhe me
conceda a honra de o acompanhar até lá.
- Agradeço-lhe, sr. capelão; muito me obsequiaria, visto que
a sua cavalgadura é melhor do que a minha, se quisesse ir na
dianteira. Desejo ir só pelos caminhos da montanha, de que me
recordo muito bem.
O capelão insistiu, mas Inácio não se deixou vencer e ele
teve que ceder. Inácio receava que lhe saíssem à estrada para
lhe prestar honras que queria evitar, custasse o que
custasse. Meteu-se, pois, na montanha, apesar dos perigos que
o ameaçavam ali, e o capelão tonou o caminho freqüentador por
todos os viajantes.
Daí a pouco o nosso herói viu dois homens armados, montados
em duas mulas, que julgou reconhecer. Aproximou-se deles
- De quem sois, meus bons rapazes? - lhes perguntou.
- De D. Martinho Garcia de Loiola, senhor, que nos enviou
para escoltar Vossa Excelência e defendê-lo, no caso que os
ladrões da montanha o atacassem.
- Agradeço a meu irmão e peço-lhes que caminhem adiante de
mim, meus bons amigos; não tenho necessidade de ninguém para
me guiar pois não temo os ladrões. Partam !
O humilde apóstolo devia atravessar Azpeitia. Ao aproximar-se
daquela pequena cidade, vê avançar processionalmente o clero,
os religiosos, os magistrados e os principais habitantes que
vinham cumprimentá-lo e testemunhar-lhe a consolação e
alegria que com o seu regresso, todos experimentavam. No
número das pessoas que mais pressa tiveram em rodeá-lo,
viam-se seus irmãos e irmãs, que instaram com ele para ir a
Loiola, não cessando de lhe repetir que o castelo era dele e
que o devia olhar como propriedade sua:
Desde que abandonei a casa de meus pais, - lhes respondeu o
Santo - não tenho outra habitação senão a dos pobres. Vou
para o hospital da Madalena.
E, resistindo a todas as instâncias, dirigiu-se com efeito a
esse asilo da miséria e do sofrimento, deixando sua família
profundamente humilhada por vê-lo confundido com os doentes
pobres da cidade e dos arredores.
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