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O plano das Constituições estava, enfim, redigido. Eis como
foi apresentado pela Bula de Paulo III, que autoriza a
Companhia de Jesus. Reproduzimos por inteiro este documento
PAULO, BISPO, SERVO DOS SERVOS DE DEUS.
PARA PERPÉTUA MEMÓRIA.
Proposto, apesar da nossa indignidade, por disposição do
Senhor, para o governo da Igreja militante, e compenetrado,
para a salvação das almas, de todo o zelo que nos exige o
cargo de Pastor, dispensamos todo o favor apostólico aos
fiéis, quaisquer que sejam, que abaixo nos expõem os seus
desejos, reservando-nos para ordenar depois, segundo o que um
maduro exame dos tempos e dos lugares nos façam útil e
salutar no Senhor.
Assim, acabamos de saber que os nossos queridos filhos Inácio
de Loiola, Pedro Fabro, Diogo Laynez, Cláudio Lejay, Pascásio
Broet, Francisco Xavier, Afonso Salmeron, Simão Rodrigues,
João Codure e Nicolau Bobadilha, todos sacerdotes das cidades
e dioceses respectivas de Pamplona, Genebra, Siguenza,
Toledo, Viseu, Embrun, Placência, todos mestres em artes,
graduados na Universidade de Paris e exercitados durante
alguns anos nos estudos teológicos, soubemos, como dizíamos,
que estes homens, impelidos, como piamente se deve crer, pelo
sopro do Espírito Santo, se reuniram de diferentes lugares do
mundo, e depois de terem renunciado aos prazeres do século,
consagraram para sempre a sua vida ao serviço de Nosso Senhor
Jesus Cristo, nosso e dos outros Pontífices Romanos, nossos
sucessores. Já têm trabalhado duma maneira louvável na vinha
do Senhor, pregando publicamente a palavra de Deus, depois de
terem obtido a necessária autorização; exortando os fiéis em
particular a levarem uma vida santa e meritória da felicidade
eterna, e convidando-os a fazer piedosas meditações; servindo
nos hospitais, instruindo as crianças e os simples acerca das
coisas necessárias para a educação cristã; numa palavra
exercendo com ardor digno de todo o elogio, em todos os
países que têm percorrido, todos os ofícios da caridade e
todas as funções próprias para a consolação das almas.
Enfim, depois de se terem dirigido a esta ilustre cidade,
persistindo sempre no laço da caridade, a fim de conservar e
cimentar a união da sua Sociedade em Jesus Cristo, formularam
um plano de vida conforme aos conselhos evangélicos, às
decisões canônicas dos Padres, segundo o que a sua
experiência lhes ensinou ser mais útil ao fim que se propõem.
Ora, este gênero de vida, expresso na fórmula de que falamos
não somente merece os elogios de homens sábios e cheios de
zelo pela honra de Deus, mas agradou tanto a alguns deles,
que tomaram a resolução de a abraçar.
Eis essa fórmula de vida, tal como foi concebida:
"Qualquer que na nossa Companhia, a qual desejamos que tenha
o nome de Jesus, pretenda alistar-se sob o estandarte da
cruz, para ser soldado de Cristo e servir somente a Nosso
Senhor e à sua Esposa, a Santa Igreja, sob a direção do
Romano Pontífice, Vigário de Cristo na terra, persuada-se de
que, depois dos três votos solenes de perpétua Castidade,
Pobreza e Obediência, fica feito membro desta mesma
Companhia. Foi ela principalmente instituída para trabalhar
no aperfeiçoamento das almas na vida e doutrina cristã, e na
propagação da fé, por prédicas públicas e pelo ministério da
palavra de Deus, por exercícios espirituais e obras de
caridade, principalmente ensinando o catecismo às crianças e
àqueles que não estão instruídos no Cristianismo, e ouvindo
as confissões dos fiéis para sua consolação espiritual. Deve
também proceder de modo que tenha sempre diante dos olhos em
Primeiro lugar a Deus, e em seguida a fórmula deste
instituto, que abraçou. É um caminho que a ele conduz, e deve
empregar todos os esforços para atingir este fim que o
próprio Deus lhe propõe, segundo todavia a medida da graça
que recebeu do Espirito Santo, e segundo o grau peculiar da
sua vocação, com receio de que algum se deixe arrastar a
um-zelo que não seja segundo a ciência. É o geral ou prelado
que nós escolhermos que decidirá desse grau peculiar a cada
um, assim como dos empregos, os quais estarão todos na sua
mão, a fim de que a ordem, tão necessária em qualquer
comunidade bem dirigida, seja observada. Este geral terá
autoridade de fazer Constituições conformes ao fim do
instituto, com o consentimento daqueles que lhe sejam
associados e num conselho onde tudo será decidido pela
pluralidade dos sufrágios."
"Nas coisas importantes e que devem subsistir no futuro, este
conselho será a parte da sociedade que o geral puder reunir
comodamente; e, para as coisas ligeiras e momentâneas, todos
aqueles que se encontrarem no lugar da residência do geral.
Quanto ao direito de mandar, pertencerá completamente ao
geral. Saibam, pois, todos os membros da Companhia e
lembrem-se, não -somente nos primeiros tempos da sua
profissão, mas todos os dias da sua vida, que toda esta
Companhia e todos aqueles que a compõem combatem por Deus sob
as ordens do nosso Santo Padre o Papa e dos outros Pontífices
Romanos seus sucessores. E, ainda que nós tenhamos sabido
pelo Evangelho e pela fé ortodoxa, e que façamos profissão de
crer firmemente que todos os fiéis de Jesus estão submetidos
ao Pontífice Romano como ao seu chefe e ao vigário de Jesus
Cristo; entretanto, a fim de que a humildade da nossa
Companhia seja ainda maior, e que o desprendimento de cada um
de nós e a abnegação das nossas vontades sejam mais
perfeitos, julgamos que seria muito útil, além desse laço
comum a todos os fiéis, ligarmo-nos também por um voto
particular, de sorte que se alguma. coisa que o Pontífice
Romano atual e os seus sucessores nos ordenarem,
relativamente ao progresso das almas e à propagação da fé,
sejamos obrigados a executá-lo no mesmo instante sem
tergiversar nem nos desculparmos, seja qual for o pais a que
nos enviem, quer seja aos. Turcos ou outros infiéis, mesmo
nas Índias, quer aos heréticos: e cismáticos ou a quaisquer
fiéis. Assim pois, aqueles que queiram juntar-se a nós
examinem bem, antes de se sobrecarregarem com este fardo, se
têm suficientes fundos espirituais para poderem, segundo- o
conselho do Senhor, acabar esta torre; isto é, se o Espirito
Santo, que os impele, lhes. promete bastantes graças para que
possam esperar que hão-de levar, com seu auxilio, o peso
desta vocação; e quando, por inspiração do Senhor, se hajam
alistado nesta milícia de Jesus Cristo, é necessário que,
cingidos os rins dia e noite, estejam, sempre prontos a pagar
esta imensa dívida. Mas, a fim de que não possamos nem
aspirar a estas missões nos diferentes países, nem
recusá-las, todos e cada um se obrigarão a não fazei jamais a
este respeito nem direta, nem indiretamente, nenhuma
solicitação junto do Papa, mas se abandonarão completamente à
vontade de Deus, do Papa como seu vigário e do geral. O
próprio geral prometerá, como os outros, nada solicitar do
Papa quanto ao destino e missão da sua pessoa, a não ser que
sela com consentimento da Companhia."
"Todos farão voto de obedecer ao geral em tudo o que: diga
respeito à observação da nossa regra, e o. geral prescreverá
as coisas que possam convir ao fim que Deus e a sociedade têm
em vista. No exercício do seu cargo, recorde-se sempre o
geral da bondade, da doçura e da caridade de Jesus Cristo,
assim como das palavras tão humildes de S. Pedro e de S.
Paulo,, e ele e o seu conselho não se afastem nunca desta
regra."
"Tenham a peito, sobre todas as coisas, a instrução das
crianças e dos ignorantes no conhecimento da doutrina cristã,
dos dez mandamentos e outros semelhantes elementos, segundo o
que convenha, tendo em consideração as circunstâncias das
pessoas, dos lugares e dos tempos. Porque é muito necessário
que o geral e o seu conselho vigiem este artigo com muita
atenção, quer porque não é possível construir sem fundamento
o edifício da fé entre o próximo tanto como é conveniente,
quer porque é de recear que suceda entre nós que, à proporção
que se sela mais sábio, se recuse a esta função por ser menos
bela e menos brilhante, apesar de a não haver mais útil, nem
ao próximo para sua edificação, nem a nós mesmos para nos
exercitar na caridade e na humildade. Quanto aos inferiores,
tanto por causa das grandes vantagens que disso hão-de advir
à ordem, como para-a prática assídua da humildade, que é uma
virtude que não se pode assaz louvar, serão obrigados a
obedecer sempre ao geral em todas as coisas que se refiram ao
Instituto; e na sua pessoa deverão ver Jesus Cristo como se
ele estivesse presente, e o reverenciarão tanto como é
conveniente."
"Mas, como a experiência nos ensina que a vida mais pura,
mais agradável e mais edificante para o próximo é aquela que
mais afastada está do contágio da avareza, e é mais conforme
à pobreza evangélica, e sabendo também que Nosso Senhor Jesus
Cristo fornecerá o que for necessário para a vida e vestuário
aos seus servos que não procurem senão o reino de Deus,
queremos que todos os nossos, e cada um deles, façam voto de
pobreza perpétua, declarando que não querem adquirir nem em
particular, nem mesmo em comum, para a sustentação ou uso da
Companhia, nenhum direito civil a bens imóveis ou a quaisquer
rendas, mas devem contentar-se com o que se lhes der para os
usos necessários da vida. Todavia, poderão ter nas
universidades colégios que possuam rendas, censo e fundos
aplicáveis ao uso e necessidades dos estudantes, conservando
o geral e a sociedade toda a administração e superintendência
sobre os ditos bens e sobre os referidos estudantes, acerca
da escolha, recusa, recepção e exclusão dos superiores e dos
estudantes, e sobre os regulamentos relativos à instrução,
edificação e correção dos ditos estudantes, a maneira de os
alimentar e vestir, e qualquer outro objecto de administração
e de regime, de modo contudo que nem os estudantes possam
abusar dos ditos bens, nem a Sociedade convertê-los em seu
uso, mas somente acudir às necessidades dos estudantes. E os
ditos estudantes quando haja certeza dos seus progressos na.
piedade e na ciência, c depois duma suficiente prova, poderão
ser admitidos na nossa Companhia, na qual todos os membros
que tenham ordens sacras, ainda que não tenham benefícios nem
rendas eclesiásticas, serão obrigados a dizer o ofício divino
segundo o rito da Igreja Romana., cada um separadamente e em
particular, e não em comum ou em coro. Tal é a imagem que nos
foi possível traçar da nossa profissão sob os auspícios de
nosso senhor, Paulo III e da Sé apostólica. O que fizemos com
o fim de instruir, por este sumário escrito, aqueles que
presentemente se informam do nosso Instituto, e aqueles que
nos sucederão no futuro, se acontecer que, por vontade de
Deus, tenham imitadores neste gênero de vida. Tem ele grandes
e numerosas dificuldades, como sabemos por nossa própria
experiência, julgamos por isso conveniente ordenar que
ninguém seja admitido nesta Companhia senão depois de ter
sido experimentado bastante tempo com muito cuidado. Só
quando se tenha feito conhecer como prudente em Jesus Cristo,
e se haja distinguido pela doutrina e pela pureza da vida
cristã, é que poderá ser recebido na milícia de Jesus Cristo.
Apraza ao mesmo Senhor favorecer as nossas pequenas empresas
para glória de Deus Pai, ao qual só é devida glória e honra
em todos os séculos. Amen."
Ora, não encontrando nesta exposição nada que não seja
piedoso e santo, a fim de que esses mesmos associados, que
nos fizeram apresentar a esse respeito a sua petição, abracem
com tanto mais ardor o seu plano de vida quanto mais se
sintam agraciados com o favor da Sé apostólica; Nós, em
virtude da autoridade apostólica, pelo teor destas presentes
e de ciência certa, aprovamos, confirmamos, abençoamos e
garantimos duma perpétua estabilidade a precedente exposição,
o seu conjunto e as suas minudências; e quanto aos
associados, nós os tomamos sob a nossa proteção e a da Santa
Sé apostólica; concedendo-lhes todavia que redijam
livremente, e em pleno direito, as Constituições que julguem,
conformes ao fim desta Companhia, à glória de Nosso Senhor
Jesus Cristo e à edificação do próximo, não obstante as
Constituições e ordenações apostólicas do concílio geral e do
nosso predecessor de feliz memória, o Papa Gregório X, ou de
outros quaisquer que lhes sejam contrários.
Queremos entretanto que as pessoas que desejarem fazer
profissão deste gênero de vida, não possam ser admitidas na
Sociedade, nem nela serem aceitas, além do número de
sessenta.
Ninguém, pois, tenha a temeridade de infringir ou de
contradizer nenhum dos pontos aqui expressos de nossa
aprovação, de nosso acolhimento, de nossa concessão e de
nossa vontade. Se alguém ousar atentá-lo, saiba que incorrerá
na indignação de Deus todo-Poderoso e dos bem-aventurados
Apóstolos S. Pedro e S. Paulo.
Dado em Roma, em S. Marcos, no ano da Encarnação do Senhor de
1540, quinto das calendas de Outubro, sexto do nosso
pontificado.
Redigido e aceito o plano pelos seus discípulos, Inácio, de
Loiola fê-lo apresentar e submeter ao Papa pelo Cardeal
Gaspar Contarini. Tendo Paulo III acolhido com benevolência a
fórmula que lhe foi apresentada, entregou-a a Tomás Badia,
dominicano, mestre do sacro palácio, encarregando-o de a
examinar. Tomás Badia, depois de a ter em seu poder dois
meses, mandou-a, aprovando-a em todos os pontos, ao Cardeal
Contarini, a fim de que a entregasse ao Papa, então em
Tivoli. O Cardeal dirigiu-se ali no dia seguinte e leu o
projecto a Paulo III que, depois de o ter escutado
atentamente, pronunciou estas notáveis palavras: "O dedo de
Deus está aí". O Cardeal apressou-se a escrever ao nosso
Santo a dar-lhe esta boa notícia. Mas esta aprovação verbal
do Soberano Pontífice não bastava para fazer redigir e
expedir a Bula erigindo a Companhia em ordem religiosa. Havia
formalidades a cumprir,, que de ordinário levam muito tempo.
O Papa nomeou uma comissão de três Cardeais, reputados como
os mais virtuosos, prudentes e sábios e declarou que se
conformaria com a sua opinião. Um dos três Cardeais
escolhidos devia dirigir este importante negócio e ninguém,
mais que ele, era oposto à aceitação duma nova ordem
religiosa. Era o Cardeal Bartolomeu Guidiccioni a quem a sua
elevada virtude e talento haviam feito julgar digno da Santa
Sé, e de quem o Papa Paulo III disse, quando soube a notícia
da sua morte: "Acaba de falecer o meu sucessor".
O Cardeal Guidiccioni queria reduzir a quatro as ordens
religiosas existentes; tinha muitas vezes exprimido esse
desejo e chegou até a fazer essa proposta ao Sumo Pontífice.
E foi ele o escolhido para decidir acerca da autorização
apostólica solicitada pela Companhia de Jesus I Não parece
que a Providência queria provar de todas as maneiras, que a
obra de Inácio de Loiola não era obra de homem, mas realmente
obra de Deus?
Ouvindo falar deste projecto, o Cardeal Guidiccioni declarou
francamente que se não ocuparia dele:
- É - disse ele - um pensamento condenável por si mesmo,
porque é contrário ao bem da Igreja ; pois degenerando uma
ordem religiosa com o tempo, termina por ser mais prejudicial
do que foi útil no seu princípio.
A opinião dum homem deste valor arrastou a dos outros
Cardeais, e o Papa só encontrou oposição numa questão cujo
triunfo desejava, e na qual havia reconhecido "o dedo de
Deus".
Sabendo desta decisão, Inácio de Loiola disse aos seus
discípulos:
- O Cardeal Guidiccioni é-nos oposto, toda a comissão é
contra nós, mas Jesus Cristo Nosso Senhor é por nós, e
ser-nos-á favorável, porque temos a sua promessa: oremos e
esperemos.
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