VI. MAIS CONTRADIÇÕES

Um jovem de porte nobre, elegante e rico, apresentou-se um dia no hospital Saint-Jacques, antes do pôr do sol:

- Desejo falar a um homem que acaba de entrar - disse ele - e que é fácil reconhecer, não só pela sua túnica cinzenta, mas também pelos seus compridos e desalinhados cabelos.

- Ah! sim, senhor, é o Santo, como todos lhe chamamos aqui; venha comigo.

O jovem elegante foi apresentado ao nosso herói, que pensou ver nele um desconhecido:

- Não me conhece, D, Ínigo?

- João de Madeva ! Sim meu amigo, reconheço-o muito bem!

- O senhor aflige viva e profundamente sua família, D. Ínigo. Desonra-a com a sua vida aventureira e com a sua obstinação em pedir esmola. É indigno do seu nascimento proceder assim! Que quer que se pense de sua família? Supor-se-á, ou que ela não tem meios para acudir às suas necessidades, ou que não quer. Num ou noutro caso enganam-se, e a censura recairá sobre ela, por que os seus bens são consideráveis e todo o espanhol de raça nobre sabe quem são os ilustres Oñaz de Loiola. Direi mais: um fidalgo do seu nascimento, que tem a fortuna que o senhor tem, não pode viver á custa da caridade pública, como o senhor vive, sem se tornar culpado para com a própria família, que desonra, para com Deus, que ofende, e para com os pobres, que espolia em proporção do que recebe.

- Talvez o sr. D. João tenha razão; vou esclarecer este ponto e agradeço-lhe o interesse, que toma pela minha família.

No dia seguinte, Inácio de Loiola fez esta pergunta, por escrito, à Sorbona:

" Um fidalgo que, por amor de Deus, renunciou ao mundo e abraçou a pobreza voluntária, ofende a Deus vivendo de esmolas nos diversos países que percorre?"

Todos os teólogos responderam por escrito:

"Não há pecado, nem sequer sombra de pecado".

Inácio apressou-se a comunicar esta decisão a D. João de Madeva, acrescentando

- Foi menos para minha justificação que procurei esclarecer a V. Ex.a, do que pelo respeito que se deve ter pela pobreza voluntária, de que o nosso soberano Senhor Jesus Cristo nos deu exemplo.

Não encontrando João de Madeva nada que opor, não mais o inquietou e prometeu-lhe não revelar o seu nome.

Entretanto, os parentes e amigos dos discípulos do nosso Santo renovavam, sempre sem resultado, as suas tentativas, para os afastarem do caminho em que tinham entrado. A inutilidade dos seus esforços determinou-os a adoptarem de combinação o meio mais eficaz.

Uma manhã, ao romper da aurora, apresenta-se a força armada, leva os três jovens e entrega-os a suas famílias. Submetem-nos a um interrogatório na esperança de que as suas respostas dêem motivo para acusar o seu mestre; mas os jovens falam de Inácio com a mais profunda veneração e a mais, viva ternura. Não importa! O inferno, que já treme só ao ouvir pronunciar o nome de Inácio, saberá inspirar aqueles de que se serviu para lhe arrebatar os seus discípulos.

Entrementes, o nosso herói recebe uma carta de Diogo, aquele que o espoliou das esmolas de que Inácio, o fizera depositário. Diogo acusa-se desta infidelidade, da desordem em que se lançou, da miséria que a isso se seguiu, e acrescenta que, achando-se detido em Rouen pela doença e mais completa miséria, pede a Inácio que o alude a voltar a Espanha, buscando-lhe alguns socorros.

O Santo não hesita. Diz a um amigo o motivo duma ausência cuja duração ignora. Vai pôr-se em oração na igreja dos Dominicanos; e depois de ter consultado com Deus, parte, a pé, pedindo sempre esmola, esperando ao menos consolar e fortificar o seu inimigo, se não lhe for possível fazer-lhe mais. Parte em jejum; e convencido de que andará mais depressa se tirar o pesado calçado, caminha de pés descalços, oferecendo a Deus as fadigas e os seus sofrimentos pelo pobre pecador que vai socorrer. O seu coração bate, docemente comovido, ao pensamento de que talvez recolha suficientes esmolas no caminho para ser ainda mais útil a Diogo. E, contudo, apenas fora de Paris, experimenta uma espécie de apreensão das fadigas desta viagem; sente-se pesado, quase desanimado. Prometera nada tomar e estar em jejum até Rouen; agora, perguntava a si se poderia sustentar aquele longo jejum, e temia-o. Todavia, renova esta resolução como se estivesse certo de a cumprir, porque conta com o auxílio de Deus.

Está perto de Argenteuil quando, de repente, se sente cheio duma força e de um vigor que só lhe podia vir do céu. Caminhou com tanta ligeireza e vivacidade que andou dez léguas durante o dia, parando apenas de longe a longe para louvar e agradecer a Deus, que o cumulava dos seus favores.

A noite, parou numa pequena cidade, pediu um leito no hospital somente para a noite, e aceitou com alegria metade de uma cama que lhe ofereceram; a outra metade era ocupada por um pobre mendigo, cujo aspecto causava repulsa. Inácio de Loiola agradeceu a Deus mais este favor, que terminava, tão bem para ele, aquele belo dia. Como poderia testemunhar a Deus o seu reconhecimento e o seu amor, se não tivesse tido tão bela ocasião de vencer a natureza?

A segunda noite foi menos meritória, na sua opinião: passou-a numa meda de palha, onde esteve só. Era quase luxo, comparativamente.

Na terceira noite estava em Rouen, tratava Diogo, abraçava-o, animava-o, prometia procurar-lhe socorro no dia imediato, e sobretudo mostrava-lhe a sua amizade e assegurava-o do completo esquecimento da falta cometida para com ele. Apenas raiou o dia, foi mendigar para Diogo, obteve-lhe passagem gratuita num navio mercante e deu-lhe cartas de recomendação para Espanha.

Foi esta a vingança que Inácio tirou.

Enquanto ele se ocupava desta obra, o inferno trabalhava.

As pessoas que lhe tinham arrancado os seus três discípulos, fizeram uma queixa em forma ao Inquisidor mor, Mateus Ori, prior dos jacobinos. Acusavam Inácio de perverter a juventude das escolas e exercer sobre ela uma influência que só podia ter origem na magia. Mateus Ori chamou o culpado ao seu tribunal; mas Inácio não se achava em Paris naquele momento, e, daí, uma multidão de suposições, que, por absurdas, não convenciam ninguém.

- Inácio estava ralado de remorsos, - diziam uns e fugiu para se subtrair à fogueira.

- Toda aquela aparência de santidade, - diziam outros se esvaiu como fumo; vendo-se prestes a ser desmascarado, fugiu para não ser enforcado.

- Isso prova, - acrescentavam aqueles que se tinham na conta de prudentes e moderados - que se deve sempre desconfiar da exageração e tê-la par muito perigosa.

O amigo a quem o nosso Santo confiara as razões porque partia, escreveu-lhe imediatamente e enviou-lhe um mensageiro. Este encontrou o Santo numa praça pública em Rouen e entregou-lhe a carta.

Inácio leu-a, manda dizer a Diogo que o não pode abraçar porque tem pressa de voltar, a Paris, e entra em casa de um tabelião, acompanhado das pessoas que com ele se achavam. Apresenta ao tabelião a carta que acaba de receber, pedindo-lhe para a ler às suas testemunhas; e declara que, sem voltar à hospedaria onde está o amigo que veio visitar, e sem comunicar com ninguém, vai pôr-se a caminho de Paris. Pede ao tabelião um documento deste facto, insta com ele para que o acompanhe, com as testemunhas, até fora dos muros da cidade e parte.

Chegando a Paris, não pára em parte alguma; coberto da poeira do caminho, apresenta-se diante de Mateus Ori; diz onde e como recebeu a notícia das acusações que lhe fazem, e acrescenta:

- Aqui estou à disposição de Vossa Reverência, pronto a responder a tudo que julgue dever perguntar-me, pronto a submeter-me a tudo o que quiser. Peço a Vossa Reverência apenas uma coisa; é que me permita seguir o curso de filosofia, que começa no dia de S. Remígio.

Foi fácil ao Inquisidor reconhecer a inocência do pretendido culpado e apreciai a sua santidade. Inácio inspirou-lhe a mais completa confiança e uma verdadeira veneração; foi este o resultado da agitação e da perseguição dos seus inimigos. Mas a pureza reconhecida da sua doutrina e a eminente perfeição da sua vida não conseguiram mudar os sentimentos dos seus inimigos, e os discípulos não lhe foram restituídos. Rodearam-nos de vigilância e de perseguições até ao fim dos estudos, depois levaram-nos para a sua pátria, e, mais tarde João de Castro, sacerdote e grande pregador, entrou na ordem, de S. Bruno; Peralto quis empreender a viagem à Terra Santa, mas, não podendo obter autorização do Papa, voltou à Espanha. Ignora-se o que foi feito de Amatore.

As férias aproximavam-se; Inácio formara o projecto de empreender uma viagem à Inglaterra para recolher esmolas necessárias à sua subsistência durante o ano escolar, que ia seguir-se.

O Santo deplorava sempre o tempo que a distância do hospital Saint-Jacques ao bairro Latino roubava todos os dias aos seus estudos e perguntava a si mesmo muitas vezes o que deveria fazer para se aproximar das aulas, sem aumentar ar as despesas. Uma idéia, que só a sua admirável virtude lhe podia sugerir, se lhe apresentou ao espirito: "Todos os professores da Universidade têm criados; - disse ele - se um deles :me aceitasse como tal, sem outra retribuição mais que as lições que me desse, com a condição, todavia, de me: permitir que seguisse o curso de filosofia!... Servi-lo-ia o melhor possível, acostumando-me a ver Nosso Senhor Jesus Cristo na sua pessoa e os apóstolos na pessoa dos seus alunos... Sim, vou procurar obter isto"!

E o heróico Inácio procura e pede, com efeito, o lugar de criado! Tinha já feito a Deus o maior de todos. os sacrifícios, roubando algumas horas à oração para as dar ao estudo, sem o qual sabia não poder chegar nunca ao livre exercício do apostolado. Apresenta-se-lhe agora ao pensamento outro sacrifício, que pode acelerar os seus desejos e fazer-lhe atingir com segurança e prontidão o fim tão desejado para glória de Deus: fá-lo-á sem hesitar. Ele, o temido guerreiro, o nobre cortesão, o rico e magnifico Loiola far-se-á criado dum professor, de quem teria feito muito pouco caso alguns anos antes! Só a humildade o podia arrastar a isso.

Deus não permitiu que Inácio encontrasse o lugar ambicionado.

Durante as férias fez à Inglaterra a viagem projectada. Quando regressou, encontrou no hospital cartas de crédito que alguns negociantes espanhóis, estabelecidos nos Países Baixos, lhe enviaram, renovando-lhe a promessa de que enviariam todos os anos igual quantia, e até que a aumentariam tanto quanto ele desejasse para as suas boas obras ou para si mesmo. Alguns dias depois, recebia também consideráveis esmolas de Barcelona.

Assim provido do necessário, e mais que do necessário, pôde permitir-se o luxo dum pobre aposento no bairro Latino junto do colégio Santa Bárbara, onde ia começar o curso de filosofia. Tinha então trinta e oito anos.