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Existia na Companhia, desde os primeiros Padres da fundação,
uma graciosa e poética crença que aumentava a terna veneração
que o santo fundador inspirava a todos os seus filhos. Esta
opinião era apoiada, segundo se dizia, numa revelação feita a
um dos primeiros Padres; mas o mistério que rodeava a sua
origem deixa muito a desejar.
O Padre Laynez, autorizando-se da sua antiga intimidade com
Inácio, e da confiança que ele sempre lhe testemunhara, quis
saber dele a verdade, e disse-lhe um dia:
- Padre, todos nós estamos persuadidos, e alguns motivos há
para o crermos, que a querida alma de Vossa Reverência está
confiada à guarda dum arcanjo. É verdade?
Inácio de Loiola baixou os olhos, corou como um criminoso,
não respondeu e ficou no mais doloroso embaraço. O Padre
Laynez não insistiu, porque sabia o bastante; mudou de
conversa e Inácio recobrou a sua liberdade de espirito, que
só a humildade pôde perturbar por um instante.
O nosso Santo tinha tal império sobre si mesmo, que nada
podia alterar a tranqüila expressão da sua angélica
fisionomia. A sua natureza violenta e impetuosa estava a tal
ponto transformada que os médicos julgavam o temperamento de
Inácio melancólico e fleumático, e persuadiam-se que o
admirável Santo nunca tivera paixões a combater. Era esta a
opinião de todas as pessoas que raras vezes o viam e não
podiam julgar o seu enorme valor. Para conhecer o homem e
apreciar o Santo, é mister lançar um olhar sobre o seu
passado, e depois sobre o conjunto de tudo o que ele tinha
realizado em alguns anos; é necessário ver os heróis que ele
formara, as grandes coisas que eles haviam feito, os
brilhantes serviços que tinham prestado à Igreja e ao mundo.
Somente então se conhecia Inácio de Loiola.
Já dissemos que não havia nada que abalasse o nosso Santo;
bastarão alguns factos para o provar.
Foi mister aplicar-lhe um aparelho no pescoço para curar um
tumor. O Irmão enfermeiro, encarregado deste serviço,
querendo fazê-lo conscienciosamente, depois de ter apertado a
tira de pano, que fez passar sobre a cabeça, entendeu que
devia cosê-la para evitar que saísse do seu lugar. Quando se
entregava a esta operarão, Santo Inácio disse-lhe com a maior
tranquilidade.
- Irmão João Paulo, creio que também me está cosendo a
orelha.
Com efeito, a orelha estava cosida; a agulha tinha-a
atravessado e o fio ia entrando sem que o paciente tivesse
feito o mais ligeiro movimento nem soltado a menor queixa.
Esperou, um dia, catorze horas seguidas para falar a um
Cardeal, e não mostrou fadiga após este longo exercício de
paciência nem deu a entender que outros negócios reclamavam a
sua presença noutros lugares. É verdade que se tratava da
glória de Deus na audiência que ele esperava, e Inácio, como
sabemos, sacrificava tudo a esta glória. Citaremos, a
propósito disto, a resposta que deu ao Padre Polanco, quando,
tendo de dirigir-se a Alvito, no reino de Nápoles, e caindo a
chuva a torrentes no momento da partida, o Padre Polanco o
convidou a adiá-la para o dia seguinte:
- Padre Polanco, - respondeu-lhe o Santo-, há trinta anos que
nada há que me tenha feito adiar por um instante aquilo que
julgo dever fazer para o serviço e a glória de Deus Nosso
Senhor.
E partiu, sem parecer contrariado pela chuva forte e pelo
vento impetuoso que aumentava a imprudência da partida.
Tendo-o o seu zelo e a sua caridade conduzido a uma casa,
aparece-lhe um Irmão pouco depois e pede para lhe falar
acerca dum negócio importante e urgente. Mandam-no entrar;
diz algumas palavras em voz baixa ao santo fundador, que o
despede dizendo-lhe
- Está bem, basta.
O Irmão retira-se; Inácio continua a conversa, e, quando
terminou, despede-se daqueles a quem foi visitar. Um deles
diz-lhe no momento em que saía
- Padre, o Irmão que aqui veio há pouco parecia muito
agitado; trouxe a Vossa Reverência alguma má notícia?
- Não; - respondeu-lhe o nosso Santo - veio dizer-me que os
oficiais de justiça se tinham apresentado para nos levar os
móveis, porque devemos alguns escudos, que ainda não pudemos
pagar. Trata-se dum empréstimo, que fomos forçados a
contrair. Se nos levarem as camas, dormiremos perfeitamente
no chão. Pedi somente que nos deixem os manuscritos; mas se
no-los quiserem levar, não me oporei a isso.
No dia seguinte, Jerónimo Astali, fidalgo romano,
responsabilizava-se pela divida, e uma esmola de duzentos
escudos que chegava ao mesmo tempo, pagava aos credores e
restabelecia os negócios do nosso Santo.
A casa professa teve, durante nove anos, um vizinho que,
querendo forçar os Padres a comprar-lhe a casa, imaginava mil
maneiras de os incomodar. Não podendo o refeitório receber
luz senão do muro que dava para o pátio deste mau vizinho,
não se pôde conseguir que ele deixasse abrir as janelas e,
durante nove anos, viram-se obrigados a acender luz em pleno
dia naquela parte da casa. Este vizinho encheu o pátio dos
mais incômodos animais. Enfim, as coisas chegaram a ponto que
Santo Inácio querendo alargar a casa, em conseqüência do
aumento sempre crescente dos religiosos, terminou por dar
àquele homem o elevado preço que ele exigia pela sua casa.
Tinha suportado até então, sem se queixar, todos os
inconvenientes daquela má vizinhança. Estava combinado o
preço pela casa e suas dependências, tais como estavam; mas o
vizinho, antes de a entregar a Inácio, mandou tirar portas,
janelas, grades, obra de talha, ferragens e até algumas
pedras. Qualquer outro teria intentado um processo àquele
miserável; o nosso Santo pareceu não ter dado por essa
injustiça. Tomou posse desses muros arruinados com tanta
satisfação aparente como se lhe tivessem prestado um grande
serviço com aquela deterioração. Não teve uma só palavra de
censura para aquele que o tinha assim espoliado, nem
manifestou nenhum pesar!
Tendo um dia o Padre ministro de lhe falar dum negócio
importante, procurou-o, soube que tinha saído e retirou-se. O
Santo voltou tarde a casa; vinha de esperar muito tempo e
inutilmente uma audiência do Papa. O Padre ministro, supondo
o seu superior muito fatigado para se ocupar de negócios,
esperou para o dia seguinte. Inácio censurou-o por esse
adiamento:
- Onde estagiamos nós, - lhe diz ele-, se perdêssemos a
liberdade de espírito e de apreciação por termos praticado a
paciência segundo a vontade de Deus Nosso Senhor, e não
segundo a nossa vontade?
O nosso Santo podia falar assim, porque em todas as ocasiões
o encontravam disposto a escutar o que se lhe queria dizer, e
a responder com a mesma segurança de vistas, sabedoria de
conselho e desinteresse de opinião. A doença, a perseguição,
a fadiga e o trabalho, o excesso dos negócios, nada tinha
influência sobre os conselhos e decisões que se lhe pediam; e
fosse qual fosse a importunidade daqueles que recorriam às
suas luzes, deixava-os penetrados sempre de reconhecimento
pelo seu amável acolhimento e pela sua muita bondade. Mas se
homens do mundo se apresentavam, sem outro fim senão o de o
verem e conversarem acerca de coisas inúteis, apressava-se a
mudar de conversa, e falava-lhes das grandes verdades
cristãs: a morte, o juízo, o inferno e o paraíso.
- É - dizia ele - um ganho certo, quer para eles, quer para
mim. Para eles, se isso os levar a descer ao fundo da sua
consciência e a pô-la em regra diante de Deus. Para mim,
porque se retiram mais depressa se estas verdades os não
comovem, e me deixam assim um tempo precioso, que sem 'isso
me roubariam.
Alguns homens do mundo vinham pedir-lhe a sua proteção, junto
dos soberanos; queriam um emprego na corte do imperador
Carlos V, do rei de Portugal ou de outro. A resposta de
Inácio era a mesma para todos os pretendentes
- Não lhes posso ser útil, -dizia ele-, senão junto do
monarca soberano do céu e da terra. Se conhecem uma corte
mais brilhante e onde o favor seja mais duradoiro, trabalhem,
e, logo que entrem, pedir-lhes-ei que me procurem a mesma
felicidade. Entretanto, como a minha ambição é fazer-lhes o
que sei de melhor, ofereço-lhes os meus serviços e ficarei
muito satisfeito com ensinar-lhes o caminho da verdadeira
glória e da verdadeira grandeza.
A sua reputação de santidade era tão grande na Companhia que
o Padre Leonardo Kessel, reitor do Colégio de Colônia, que o
não conhecia, lhe escreveu a suplicar-lhe que lhe concedesse
a permissão de ir a Roma, a fim de ter a consolação de o
conhecer e de receber a sua bênção. O Padre Kessel era muito
idoso, duma saúde fraquíssima, e fazia tanto bem dm Colônia,
que Inácio hesitava em satisfazê-lo. Custava todavia ao seu
coração recusar esta consolação ao bom velho e consultou Deus
para saber o que devia decidia. Depois de ter orado, escreveu
ao Padre Kessel:
- "Não é necessário empreender tão longa viagem para ver o
vosso Padre Geral, porque é provável que Deus arranje as
comas de modo que Vossa Reverência me vela em Colônia".
Ora, sucedeu que um dia em que o Padre Leonardo Kessel estava
só no seu quarto, muito ocupado nos negócios que estavam a
seu cargo, viu o Padre Inácio diante de si, olhando-o com uma
bondade toda paternal, sem lhe falar, e quando o Padre Kessel
o tinha contemplado bem, desapareceu, deixando o bom reitor
inundado da mais doce alegria.
O santo fundador tinha escrito regras sobre á modéstia,
prescrevendo a posição exterior até às suas menores
minudências. Dizia que estas doze regras lhe tinham custado
muitas lágrimas; que havia consultado Deus durante muito
tempo, nas suas longas orações, a fim de conhecei a sua
vontade acerca de cada uma delas duma maneira certa, antes de
impor a sua prática aos seus religiosos. Desejando pôr em
vigor, estas regras o mais cedo possível, Inácio
aproveitou-se, para as fazer conhecer, da presença de alguns
professos vindos a Roma de diversos pontos da Europa, os
quais deviam partir em breve. O Padre Laynez foi encarregado
de as promulgar e de fazer uma exortação sobre a necessidade
da sua observância. Inácio fixou o dia e ordenou a todos os
Padres que se reunissem na sala das conferências, à hora em
que de ordinário se juntavam no terraço.
Este terraço, à altura do primeiro andar, dava para a jardim,
e era uma espécie de galeria coberta. Todos os dias depois de
jantar, os Padres passeavam naquele terraço, ao abrigo do
sol, do vento e da chuva.
No dia designado, dirigindo-se todos à sala das conferências,
o Padre Laynez leu as novas regras e acompanhou a leitura dum
discurso. No momento em que exortava os seus irmãos a não
negligenciarem as menores observâncias delas porque todas
eram destinadas a concorrer para o seu progresso espiritual,
ouviu-se um estalido espantoso, seguido dum abalo que se
sentiu em toda a casa. Ninguém se mexeu. Laynez continuou o
seu discurso e todos pareciam muito tranqüilos. Mas logo que
a sessão terminou, saíram para conhecer a causa de tal
barulho e abalo e viram que o terraço tinha aluído. Se os
Padres não tivessem sido forçados, pela obediência, a estar
na sala das conferências naquele momento, alguns teriam
infalivelmente perigado, esmagados por aquela massa. Todos ,
ergueram as mãos ao céu agradecendo à Providência e venda
neste acontecimento a manifestação da aprovação divina em
favor das regras que acabavam de ser promulgadas.
- Sim, meus irmãos, - disse o nosso Santo - Deus
testemunhou-nos por este facto que estas regras lhe são
agradáveis; esforcemo-nos por que elas sejam observadas com
exactidão.
Esta observância deu ensejo, dai a pouco, a algumas críticas
dos mundanos, inimigos dos jesuítas; diziam que a Padre
Inácio queria fazer dos seus religiosos outros tantos
hipócritas. Estas críticas foram repetidas ao santo fundador:
- Deus queira, - respondeu ele - que esta hipocrisia aumente
de dia para dia entre nós ! Quanto a mim, não conheço em toda
a Companhia, senão estes dois hipócritas.
E designava os Padres Bobadilha e Salmeron, que considerava
como modelos, e que sabia que eram interiormente. muito mais
perfeitos ainda do que pareciam.
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