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Um fidalgo, de porte elegante e muito bem vestido, passeava
um dia dum lado para outro na colegiada de Santa Justa, e
parecia esperar alguém com certa impaciência. Um homem saiu
da igreja, estendeu a mão a alguns fiéis que ali entravam,
recebeu maravedis, fez o sinal da cruz e continuou o seu
caminho, orando. O fidalgo acabou o passeio diante da fachada
da colegial e seguiu após o mendigo. Chegado diante duma
pobre casa, cuja aparência denunciava a miséria dos que a
habitavam, o mendigo entrou; o fidalgo seguiu-o de perto e
esteve em observação na rua estreita e suja onde era situada
esta casa. Esperou bastante tempo. Enfim o mendigo tornou a
aparecer; desta vez o fidalgo não o seguiu; deixou-o
afastar-se e entrou por sua vez na casa. Subiu até ao último
andar, abriu uma porta fechada com uma simples aldrava, e
achou-se em face duma mulher a quem a doença tinha pregada no
leito:
- Minha boa senhora, - lhe disse ele - desejava saber o nome
do homem que acaba de sair de sua casa.
- Ignoro-o, senhor.
- Pois não o conhece?
- Não, senhor; não conheço senão a sua caridade e a sua
santidade. Ele soube que grandes infortúnios me reduziram à
situação em que V. Ex.a me vê, e teve a bondade de vir
ver-me, trazer-me socorros e dar-me consolações. Não é um
homem, é um Santo, é um anjo! Não posso dizer mais nada; não
sei o seu nome de família; sei apenas que se chama Ínigo.
- Muito bem, minha boa senhora, quando ele voltar, faça favor
de entregar-lhe o meu nome e o da rua onde moro, que aqui
deixo, e dizer-lhe que conte comigo para acudir às
necessidades de todos os seus pobres.
Dois dias depois, o mendigo foi visitar a pobre doente
- Senhor, - lhe disse ela - um fidalgo veio anteontem e
pediu-me que lhe entregasse este papel e lhe dissesse que ele
lhe daria tantas esmolas quantas o senhor quisesse para os
seus pobres.
O mendigo pegou no papel e leu: " D. Martinho de Saenz, de
Azpeitia..."
- Minha boa irmã, - disse ele à doente - a Providência
encarregar-se-á de a socorrer doravante, porque nada mais
posso fazer em seu favor.
Inácio de Loiola acabava de ler o nome dum dos seus mais
próximos parentes do lado materno, via-se reconhecido e não
queria expor-se a encontrar D. Martinho que, tendo ouvido
falar dele e da sua santidade, quisera vê-lo, reconhecera-o e
havia-o esperado à saída da Igreja, como vimos. D. Martinho
respeitava o segredo de Inácio e não queria dar a entender
que o descobrira, mas desejava fazer-lhe saber que Inácio
podia contar com um amigo dedicado, e que, se quisesse
reconhecer um parente, que agora se encontrava em Alcalá,
podia estar certo de ser recebido de braços abertos. O nosso
Santo viu grandes inconvenientes numa aproximação que poderia
revelar nele sentimentos humanos, e recusou-a.
Alguns meses depois, Inácio não vivia no hospital; distante,
como estava, obrigava-o a perder muito tempo. O Santo
alojou-se na cidade em casa dum impressor, Estêvão de Eguia,
cujo irmão, Diogo, era seu amigo e o ajudava nas suas boas
obras com um zelo e uma generosidade que lhe mereceram mais
tarde a graça de ser chamado à santa Companhia de Jesus.
Tendo Inácio um dia necessidade duma certa quantia para a
obra de caridade, pediu-a ao seu amigo.
- É impossível agora, sr. Ínigo, - lhe respondeu Diogo -
porque estou sem dinheiro, mas se quer roupas brancas ou de
cor para os seus pobres, pegue no que encontrar.
E ao mesmo tempo Diogo abria os seus armários ao nosso Santo.
Inácio pegou logo em cobertas, lençóis, roupas e até velas,
meteu tudo num pano, pôs este pesado fardo aos ombros, foi
vender uma parte da sua carga em proveito dos seus pobres e
distribuiu-lhes o resto.
Entretanto Calisto, a quem um negócio levara a Segóvia, caiu
ali gravemente doente; e Inácio, sabendo esta noticia, partiu
imediatamente para lhe prodigalizar os cuidados e consolações
da sua terna caridade; apenas o discípulo se restabeleceu,
voltou a Alcalá.
Poucos dias depois do seu regresso, a 19 de Abril de 1527
[32], de madrugada, alguns aguazis apresentaram-se-lhe em casa
e apoderaram-se dele:
- Mandaram-nos aqui, - lhe disse aquele que os comandava - a
prendê-lo; aqui está a ordem do substituto da Inquisição.
Inácio de Loiola não se informou do crime de que o acusavam,
não opôs resistência e deixou-se levar como um malfeitor. No
caminho que ele percorria, os agentes fizeram-no parar
durante alguns instantes, porque o filho do duque de Gandia
passava naquele momento, rodeado de brilhante cortejo. Tem
dezessete anos e chama-se D. Francisco de Bórgia; o respeito
devido à sua pessoa exige que todos parem quando ele passa. O
nosso prisioneiro descobre-se respeitosamente diante dessa
criança... e essa criança, depois homem e vice-rei,
prostra-se aos seus pés e não tem outra vontade senão a sua.
Soube-se logo a prisão do apóstolo de Alcalá. Todos os seus
discípulos e admiradores correm em multidão a vê-lo e
ouvi-lo, e voltam profundamente comovidos da sua alegre
resignação, do seu ardente amor de Deus, da sua doce caridade
para com aqueles a quem devia o seu cativeiro
- Amar a Deus ! - dizia ele sem cessar - amar a Deus é a
única felicidade desta vida! Sofrer por Ele é o maior
testemunho do nosso amor; sofrer pela sua glória é a
verdadeira alegria, a mais insigne felicidade!
D. Jorge Navera, primeiro professor de Escritura Sagrada na
Universidade, vinha freqüentemente ver o nosso Santo à prisão
para o ouvir falar de Deus. Um dia esqueceu-se e faltou à
hora da sua aula. Quando se apercebeu do tempo que tinha
decorrido, dirigiu-se apressadamente à aula, e, chegando,
disse aos seus alunos, reunidos:
- Demorei-me, mas venho de ver Paulo entre ferros!
E falou-lhes da admiração que lhe inspirava tão eminente
santidade, de maneira a fazer-lhes partilhar aquele
sentimento.
Algumas pessoas de distinção advertiram Inácio que se estava
fazendo um novo inquérito sobre a sua doutrina e as suas
obras, que ele fora caluniado, que era conveniente que aquele
negócio fosse abafado; e ofereceram-se-lhe para empregar os
necessários meios para isso. Entre essas pessoas, D. Teresa
Henriques de Mercada [33] e D. Leonor de Mascarenhas, dama da
imperatriz, e depois governante de Filipe II, eram as mais
zelosas
- A minha causa é a de Deus, - lhes respondeu - e Ele a
defenderá; entreguei-a nas suas mãos. Perdoem-me se não
aceito o oferecimento que me fazem.
Mas o substituto da Inquisição, D. Rodrigues de Figueiroa,
acompanhado de um escrivão, veio ver o nosso Santo, e, depois
de algumas perguntas, disse-lhe:
- O senhor observa o sabbat?
- Sem dúvida; - respondeu ele - mas o sábado que eu observo é
em honra de Nossa Senhora. Demais, ignoro completamente os
usos e costumes hebraicos, porque não há judeus no pais onde
eu nasci.
D. Rodrigues acrescentou:
- Tomei novas e sérias informações a seu respeito, como o
senhor deve saber, e todas elas lhe são favoráveis; mas há um
ponto que eu desejo esclarecer, e é da sua própria boca que
quero saber a verdade.
- Queira interrogar-me.
- Conhece duas mulheres viúvas, mãe e filha, chamadas Maria
del Vado e Luísa Velasques ?
- Sim, senhor.
- Essas mulheres assistiam às suas conferências espirituais?
- Sim, senhor.
- Foi o senhor que as converteu?
- A graça tocou-as, quando ouviam as minhas explicações sobre
as verdades cristãs.
- E foi o senhor que as aconselhou a vestirem-se de
peregrinas e irem fazer peregrinações a lugares muito
distantes, a pé e pedindo esmola, em expiação dos seus
pecados?
- Oh! não, senhor. Opus-me formalmente a isso, quando elas me
consultaram e expuseram o seu projecto. Esforcei-me por
mostrar-lhes os perigos a que podia expô-las a beleza de D.
Luísa, e disse-lhes que os hospitais de Alcalá ofereciam um
exercício que devia bastar ao seu zelo e à sua caridade, e
que era isso o que Deus delas exigia. Pareceu-me que cederam;
mais tarde, porém, nos primeiros dias da Quaresma, soube que
haviam partido sem sequer terem consultado D. Pedro Cirvelho,
que as dirigia.
O substituto da Inquisição sorriu, pôs a mão no ombro de
Inácio e disse-lhe:
-Muito bem ! tenha coragem, senhor, porque a causa única da
sua prisão é esta: acusaram-no de ter aconselhado a essas
senhoras a extravagância que elas praticaram. Todavia,
confesso que seria preferível que os seus discursos não
tivessem o cunho de novidade que o senhor lhes dá.
- Senhor vigário geral, - disse Inácio coze uma santa
dignidade -nunca pensei que falar de Jesus Cristo a cristãos
pudesse ser uma novidade!
Há dezessete dias que o nosso herói estava na prisão, era a
primeira vez que ouvia falar do motivo que ali o levara.
Tendo sabido do seu cativeiro o seu discípulo Calisto, então
em Segóvia, veio partilhá-lo com ele.
Inácio enviou-o ao substituto do Inquisidor para ser
interrogado acerca do negócio das peregrinas; mas D.
Rodrigues de Figueiroa não tinha necessidade daquele
testemunho; esperava apenas o tempo necessário para fazer
conhecer os factos ao tribunal, a fim de poder mandar pôr em
liberdade o santo apóstolo. Ainda não estavam terminadas
essas formalidades, quando, a 18 de Maio, D. Maria del Vado e
D. Luísa Velasques apareceram de novo em Alcalá, depois de
terem ido em peregrinação a Nossa Senhora de Guadalupe e ao
Santo Sudário de Jaen. O seu regresso demorou o negócio,
rasas contribuiu para o esclarecer. Interrogaram-nas e elas
não hesitaram em certificar que tinham procedido contra o
conselho do nosso Santo e haviam partido sem ele saber.
Enfim, no 1 de Junho, Inácio de Loiola viu entrar-lhe na
prisão D. Rodrigues de Figueiroa, que lhe vinha ler uma
sentença assim concebida:
1º. Está reconhecida a inocência de Ínigo e dos seus
companheiros;
2º. Deverão no futuro, e dentro do prazo de dez dias,
começar a usar o trajo dos estudantes;
3º. Sendo ainda noviços nas Sagradas Escrituras, abster-se-ão
de ensinar a religião ao povo, até que hajam estudado
teologia durante quatro anos.
Depois desta leitura, Inácio respondeu a D. Rodrigues
- Quando V.Ex.a nos ordenou que nos vestíssemos de modo
diferente do que andávamos, e que não usássemos todos a mesma
cor, apressamo-nos a obedecer; hoje exige que nos vistamos
como os estudantes, e não o podemos fazer, porque nada
possuímos e estamos resolvidos a nada dever senão à caridade
pública.
- Muito bem,-disse o vigário geral-arranjar-se-á tudo.
A sua maneira de arranjar foi pedir a um fidalgo, Luzerna de
nome, cuja vida era inteiramente consagrada às obras de
caridade, que acompanhasse Inácio pelas principais ruas da
cidade e pedisse esmola para o vestir como se lhe exigia.
O heróico guerreiro, o elegante cortesão, o ilustre fidalgo
que tinha calcado aos pés todas as grandezas terrestres e
abraçado a pobreza evangélica, quando pedia esmola para si ou
para os pobres operava por sua própria vontade. Mas este
mesmo fidalgo, submetendo-se a caminhar após aquele que pede
para ele publicamente, sofre voluntariamente a humilhação
mais completa que pode ser infligida a uma natureza como a
sua ! É a mais sublime virtude, é a humilhação levada até á
santa loucura da cruz !
Foi o que fez Inácio de Loiola.
Durante este humilhante peditório passando Inácio e Luzena
diante da casa de Lopes de Mendonça, viram este último a
jogar a péla, no seu jardim, com alguns de seus amigos.
Luzena aproximou-se e pediu-lhe esmola para vestir o nosso
Santo. Lopes lançou-lhe um olhar terrível, porque o santo
apóstolo permitira-se dar-lhe alguns conselhos, que ele lhe
não perdoara:
- Como é que um homem de honra, um fidalgo, -disse ele a
Luzena-pode pedir para tal hipócrita? Morra eu queimado se
esse miserável não merece ser condenado.
Deus ouviu esta imprecação. Os amigos de Lopes ficaram
perturbados, como se tivessem assistido a um grande crime. A
noticia circulou imediatamente de boca em boca, percorreu em
poucos instantes toda a vila e produziu em toda a parte o
efeito dum escândalo público.
Algumas horas depois, um arauto de armas percorria as ruas de
Alcalá anunciando o nascimento de um infante (Filipe II). À
noite, Lopes de Mendonça subiu à plataforma da sua casa,
acompanhado de um pajem e de um escravo, para dar tiros de
arcabuz, em sinal de regozijo... Uma centelha, lançada pela
justiça divina, caiu num vaso que continha uma grande
quantidade pólvora; ouviu-se uma espantosa explosão. Lopes é
o único ferido; incendeiam-se-lhe as roupas, o desgraçado
solta gritos dilacerantes, vai precipitar-se na cisterna da
casa e expira antes que cheguem os socorros da Igreja!...
Não podendo Inácio de Loiola exercer mais o seu zelo
apostólico na cidade de Alcalá, consultou a vontade divina
para saber o partido que devia tomar, e alguns dias depois
partia para Valhadolid, onde se encontrava D. Alonzo da
Fonseca, Arcebispo de Toledo, a quem desejava consultar.
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