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Dois jovens cavaleiros, cobertos de poeira, que não pareciam
ter mais de vinte a vinte e dois anos de idade, entraram em
Paris pela porta de Saint-Michel, e pareciam procurar uma
hospedaria. Era no verão de 1533: o calor era sufocante
naquele dia e as ruas estavam quase desertas naquele momento,
no bairro Latino. Tendo os dois viajantes chegado ao local
desejado, descem do cavalo, e, no mesmo instante, o mais
velho exclama:
- Cá está ele!
E corre ao encontro dum homem mal vestido, que era a primeira
pessoa que tinha encontrado desde que haviam transposto a
porta da cidade. O jovem cavaleiro aproximou-se daquele homem
e disse-lhe:
- É, sem dúvida, ao senhor que eu desejo falar. Não se chama
D,. Inácio de Loiola?
- Sim, senhor.
-Apesar de nunca ter tido a honra de o ver, estava certo de
que era o senhor a quem eu procurava. Tenho ouvido falar
tanto do senhor em Alcalá e em Salamanca, e tenho tão ardente
desejo de servir a Deus sob a sua direção, assim como o meu
amigo Afonso Salmeron, que viemos expressamente para lhe
pedir o favor de nos receber no número dos seus discípulos.
Aquele que assim falava era Diogo Laynez, de Almazan, em
Castela; e o seu companheiro de viagem era dos arredores de
Toledo; o primeiro tinha vinte e um anos, o segundo dezanove.
Ambos se distinguiam por uma grande superioridade de
inteligência e tinham feito os seus estudos com brilhantismo
na Universidade de Alcalá.
Inácio viu logo neles à primeira vista dois apóstolos
destinados a ajudá-lo na grande obra que meditava. Abraçou-os
efusivamente, aceitou-os para discípulos, obrigou-os a fazer
os Exercícios Espirituais e teve a alegria de os ver sair
desse retiro prontos a tudo, a tudo sacrificarem, a tudo
sofrerem pela maior glória de Deus e salvação das almas.
Durante os seus estudos em Santa Bárbara, o nosso Santo
ligou-se por estreita amizade com Simão Rodrigues de Azevedo,
da diocese de Viseu, em Portugal, que estudava teologia em
Paris a expensas do seu soberano. Simão Rodrigues,
eminentemente piedoso e dum grande talento, tinha apreciado
de pronto Inácio de Loiola e ligara-se à sua pessoa e à sua
direção. Muitas vezes lhe tinha exprimido o secreto desejo de
partir para a Terra Santa logo que fosse elevado ao
sacerdócio e de se consagrar completamente à conversão dos
infiéis nesses venerandos lugares: Tendo Inácio reconhecido
nestas disposições um dos apóstolos que procurava, admitiu-o
no número dos seus discípulos, aconselhou-o a fazer os
Exercícios Espirituais e vendo-o em seguida mais resolvido
que nunca a não viver senão para a maior glória de Deus,
associou-o a si.
Tinha igualmente alistado sob a sua bandeira Nicolau,
conhecido por Bobadilha [40], que, tendo recorrido à sua
caridade para acudir às despesas dos seus estudos, se deixara
arrastar pelos conselhos do apóstolo, seguiu-os fielmente,
fez mais tarde os Exercícios Espirituais e declarou que
queria compartilhar a vida e os trabalhos daquele a quem
devia, depois de Deus, a felicidade interior de que gozava.
Entre os estudantes de teologia, um havia que o nosso Santo
desejava ardentemente; pedia-o a Deus há muito tempo, mas não
o conseguia obter, apesar de não ter dúvida alguma sobre a
sua vocação. Era Jerónimo Nadal, de Maiorca. Sentia-se
chamado ao estado eclesiástico, mas não podia aceitar a idéia
do apostolado tal como o nosso Santo o entendia. Pedro Fabro
e Diogo Laynez não foram mais felizes nas suas tentativas
para o convencer a partilhar aquela santa vida, que ele
achava demasiado perfeita. Um santo religioso, Manuel Miona,
diretor de Inácio, tentou também, mas baldadamente, persuadir
Jerónimo que a vontade de Deus o chamava à vida apostólica
entre os discípulos de Inácio de Loiola. Jerónimo
respondeu-lhe
- Crê V. Rev.a realmente que é agradável a Deus tudo o que
diz? Dê-me o exemplo, e verei então se o devo seguir. Una-se
a Ínigo de Loiola, viva pobremente como ele, peça esmola,
trate os leprosos, viva da sua vida, enfim, e depois
reflectirei!
Um dia o nosso Santo, a quem nada desanimava quando se
tratava da glória de Deus, vai ver Jerónimo, leva-o consigo a
uma igreja onde estava certo de não encontrar ninguém àquela
hora, e, na presença de Nosso Senhor, renova-lhe todas as
suas instâncias para o fazer abraçar a perfeição da vida
evangélica. É repelido como de ordinário. Investe de novo,
lê-lhe uma carta que acabara de escrever a um dos seus
sobrinhos [41] para o convidar a entrar no mesmo caminho,
põe-lhe em evidência os períodos que lhe parecem mais
decisivos e pede a Nadal que reflita em tudo aquilo diante de
Deus. Jerónimo sentia-se comovido; mas teve vergonha, calcou
todos os seus sentimentos, e, tirando do bolso o livro dos
santos Evangelhos, diz a Inácio, mostrando-lho:
- Este livro me basta; se me não pode oferecer nada melhor do
que isso, por certo o não seguirei. Ignoro quem o senhor é;
não conheço melhor os seus associados; não sei nem compreendo
o que quer fazer e por isso não serei dos seus.
E, abandonando Inácio, saiu, prometendo fugir-lhe doravante
com o maior cuidado.
Estava-se no fim de julho de 1534; Pedro Fabro acabava de ser
ordenado sacerdote e celebrara a sua primeira missa a 22 do
mesmo mês.
O nosso Santo não tinha feito conhecer a nenhum dos seus
discípulos os nomes daqueles que esperava agregar-lhes. Cada
um se julgou destinado a segui-lo só à Palestina. Mas,
aproximando-se o momento de os reunir, convidou-os a
consultarem a vontade de Deus com uma renovação de fervor e a
disporem-se a conhecê-la por jejuns, mortificações e
recolhimento. Esta nova prova parecia-lhe indispensável.
Quando terminou, tendo-lhe cada um, separadamente, dito que
estava firmemente resolvido a segui-lo e a obedecer-lhe em
todas as coisas, para maior glória de Deus, fixou-lhes
reunião para o mesmo dia e à mesma hora, a fim de que se
pudessem reconhecer e entender-se com ele. Todavia,
deixou-lhes ignorar este projecto e o fim da reunião. No dia
fixado, dirigiram-se junto do seu santo mestre, e não puderam
subtrair-se à viva comoção que experimentaram ao ver-se.
Todos, em número de sete, se conheciam e apreciavam. Sabendo
que todos eram chamados a viver doravante a mesma vida,
deixaram correr lágrimas de alegria.
Inácio de Loiola narrou-lhes a dor que se apoderara do seu
coração à vista dos Lugares Santos, ao presente nas mãos da
infidelidade, depois de terem sido inundados do sangue de um
Deus, e deu-lhes parte da sua resolução de ir à Terra Santa
empregar todo o seu zelo, todo o seu amor, todas as suas
forças na conversão dos infiéis:
A alma de Inácio de Loiola parecia passar na dos seus
discípulos à medida que lhes falava. Depois de um instante de
silêncio, todos exclamaram ao mesmo tempo, e como impelidos
por um mesmo movimento, por uma mesma inspiração
- À Terra Santa! à Terra Santa!
Todos tomaram o compromisso de seguir o seu santo mestre até
à morte, e mestre e discípulos abraçaram-se com comoção e
doce e terna caridade, prometendo amar-se mutuamente como
irmãos. O seu bom mestre seria o chefe, o irmão mais velho.
Resolveram em seguida que, depois de terminarem os seus
estudos teológicos, se dirigiriam a Veneza, de onde
embarcariam para a Palestina, a não ser que esta viagem lhes
fosse impossível durante um ano inteiro. Neste último caso,
ficariam desligados do seu voto de ir à Terra Santa e iriam a
Roma pôr-se -à disposição do Sumo Pontífice.
Inácio fixou o dia 15 de Agosto, festa da Assunção, para
fazer o seu compromisso solene, que eles deporiam nas mãos da
Rainha do céu, pedindo-lhe que o fizesse aceitar a seu divino
Filho. Devia cada um deles preparar-se para isso pelo retiro,
oração, jejum e mortificações corporais.
Havia então em Montmartre um convento, cuja igreja se elevava
no ponto culminante do cabeço e pelos subterrâneos da qual se
ia à capela subterrânea dos Santos Mártires, situada a
pequena distância da igreja e assim chamada porque, sendo
crença geral que S. Duns e seus companheiros foram
martirizados naquele lugar, este santuário lhes era dedicado.
Foi esta capela que o nosso Santo escolheu para a sua
consagração solene e para a dos seus queridos discípulos.
Deviam estar ali absolutamente sós e guardar segredo sobre
este projecto.
A 15 de Agosto de 1534, todos se dirigiram a este santuário,
onde os primeiros apóstolos dos Gauleses tinham recebido a
morte em testemunho da fé que ali vieram trazer. Pedro Fabro,
o único que era sacerdote, celebrou a santa missa. Antes da
comunhão voltou-se para os seus irmãos, tendo nas mãos o
corpo de Nosso Senhor, e todos, um após outro pronunciaram,
em face da Hóstia adorável, a fórmula dos seus votos de
castidade perpétua, de pobreza voluntária, e de viagem
apostólica à Terra Santa ou abandono à disposição do Sumo
Pontífice para maior glória de Deus. Comprometeram-se, além
disso, a não aceitar nenhuma dignidade eclesiástica, e a não
receberem gratificação por nenhuma das funções do seu santo
ministério.
Depois destas promessas, todos comungaram com -tanto fervor e
tão doce consolação, que Simão Rodrigues, trinta anos depois,
afirmava não ter nunca experimentado felicidade comparável
àquela que se seguiu ao seu primeiro compromisso em
Montmartre.
Os novos apóstolos sentiam-se tão felizes que não se podiam
separar depois desta grande e solene ação; tinham necessidade
de se verem, de se felicitarem mutuamente, de gozarem juntos
da sua felicidade comum. Corria uma pequena fonte, límpida e
fresca, ao sopé da colina; desceram, rodearam-na, tomaram uma
pequena refeição e combinaram o que deviam fazer. Alguns
deles não tinham terminado os seus estudos teológicos, era
preciso terminá-los e resolveram que o seu voto de pobreza
não seria obrigatório exteriormente senão depois destes
estudos. Até então, continuaria a guardar-se segredo sobre a
associação que acabava de formar-se.
Decidiu-se em seguida que, no dia 25 de janeiro de 1536,
partiriam para Veneza, de onde embarcariam para a Palestina,
a não ser que os corsários inimigos fossem um obstáculo
invencível à viagem. Entretanto reunir-se-iam frequentes
vezes, ora em casa duns, ora em casa doutros, tomariam juntos
uma refeição muito frugal, conversariam sobre assuntos
espirituais, e conservariam entre si uma terna caridade, que
os uniria de maneira que não houvesse entre eles senão um só
coração e uma só alma. Inácio recomendou-lhes que se
aproximassem dos sacramentos todos os domingos e dias
santificados, e que renovassem os seus votos todos os anos,
em igual dia, no mesmo sítio:
Combinado tudo isto, os amigos abraçaram-se cordialmente e
separaram-se.
Tinha nascido a Companhia de Jesus.
Naquele mesmo ano de 1534, Henrique VIII, rei de Inglaterra
publicava um edito, declarando culpado de crime capital, e
dignos de morte, os súditos que não riscassem o título de
soberano pontífice de qualquer livro ou escrito em que o
encontrassem.
Ao mesmo tempo, Calvino enviava os seus emissários a todas as
universidades de França para inocular nelas o veneno da
heresia.
No momento em que vemos aparecer os primeiros apóstolos, que
deviam ser os mais temíveis adversários desta nova heresia,
começava ela a fazer estragos, com um resultado deplorável,
entre os estudantes dos colégios de Paris.
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