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Um pregador célebre atraía o povo à catedral de Barcelona
durante a quaresma de 1523, e D. Isabel de Roseli, uma das
mais distintas senhoras da cidade, não faltava a nenhum dos
sermões. D. Isabel tinha-se retirado completamente do mundo e
vivia só para Deus e para seu marido, que, tendo perdido a
vista, reclamava todos os seus cuidados.
Um dia, escutava ela o pregador de que falamos, quando o seu
olhar se volta maquinalmente para o santuário. Os degraus do
altar estavam cobertos de crianças, como de ordinário, e,
entre elas, distingue um homem que lhe atrai a atenção. É um
estrangeiro. Os seus vestidos são comuns, mas a fisionomia é
celeste e os traços duma extrema distinção; o rosto pálido,
magro, alongado, e parecia extenuado pela fadiga, pelo
sofrimento ou pela mortificação; o seu manto é o dos
peregrinos. Virá ele de longe e terá necessidade de socorros
e de cuidados ?...
Enquanto a boa senhora se entrega a estas observações, uma
auréola luminosa rodeia a cabeça do estrangeiro, e D. Isabel
crê ouvir uma voz interior que lhe ordena que não saia da
igreja sem falar àquele peregrino. Mas atribui esta voz a uma
ilusão da fantasia, e entra em casa muito apressada depois do
sermão para contar a seu marido o que viu e as impressões que
recebeu
- Deve ser um Santo, - acrescentou ela - e, se aprovas,
mandarei um dos nossos criados convidá-lo, em teu nome, a
fazer-nos a honra de jantar conosco.
- Da melhor vontade; - lhe respondeu o marido - será para mim
uma felicidade ouvi-lo falar de Deus. Manda depressa o criado
para que o encontre ainda na igreja.
Estava terminado o ofício quando o criado de D. Isabel se
apresentou na catedral; mas o peregrino ainda ali estava e
reconheceu-o facilmente pelo retrato que dele lhe tinham
feito. Aproximou-se, pediu-lhe que saísse, e disse-lhe:
- Senhor peregrino, meus amos, que são verdadeiros servos de
Deus, enviam-me a dizer-vos, que faríeis uma obra agradável a
Deus e à Santíssima Virgem, se quisésseis, a titulo de
peregrino, fazer-lhes a honra de vos sentardes à sua mesa
para jantai com eles.
- Benvindo seja, meu irmão; - respondeu simplesmente o
estrangeiro - sou servo dos seus amos; conduza-me, que eu o
seguirei.
O santo peregrino encheu de consolação os seus hospedeiros
pela maneira como falava de Deus. Pela elevação dos seus
pensamentos, pureza de expressões, distinção de linguagem,
não puderam duvidar da sua origem fidalga; mas, :não ousando
interrogá-lo sobre este ponto, D. Isabel perguntou-lhe
somente qual o fim da peregrinação.
Roma, - respondeu.
Não ousava confessar o fim principal, os Lugares Santos, com
receio de dar largas à vaidade, pois que naquele tempo aquela
peregrinação era rara e atraía a estima sobre os que tinham a
coragem de a empreender.
- E quando partireis?
- Embarcarei no bergantim que vai fazer-se à vela para a
Itália.
- No bergantim! - exclamou D. Isabel - peço-vos que tal não
façais, senhor peregrino, porque a vossa vida correrá risco
Tomai passagem num navio mercante que partirá daqui a oito
dias; o nosso Bispo dirige-se a Roma nesse navio e podeis
fazer a travessia com ele.
- Esse santo Prelado é meu tio, - acrescentou o Sr. Rosell -
e estou certo que lhe será agradável viajar convosco.
- Já entrei em relações com o capitão do bergantim; - disse
Inácio de Loiola - mas retardarei a minha partida e irei no
navio mercante, visto que assim, o desejais.
- Por felizes nos daríamos,-acrescentou o Sr. Rosell - se
aceitásseis hospitalidade em nossa casa durante os dias que
tendes de espera.
- Não posso ceder a esse desejo, senhor; - respondeu Inácio -
impus-me a lei de não ter outra morada senão o hospital, onde
encontro grandes misérias a consolar e a aliviar.
- Pois bem, - disse Isabel - permiti ao menos que façamos as
despesas da viagem.
- Senhora, - respondeu o Santo - comove-me a sua caridade e
muito a agradeço; Deus lhe pagará o bem que deseja fazer-me e
que não posso aceitar; uma condição da minha passagem a bordo
do navio, é que o capitão ma concederá por amor de Deus.
Os novos amigos do nosso peregrino não puderam obter outras
concessões e separaram-se dele com pesar.
Inácio, persuadido de que Deus se tinha servido de D. Isabel
para o preservar dum grande perigo, foi buscar os seus
manuscritos, que já tinha no bergantim. Apressemo-nos a dizer
que tendo-se este navio feito à vela no dia imediato, foi
assaltado por uma violenta tempestade e no mesmo dia
submergiu-se, perdendo-se a carga e a tripulação.
O capitão do navio mercante consentiu em conceder passagem
gratuita ao santo peregrino, mas com a condição de que ele se
proveria de víveres e não pediria esmola aos passageiros.
Inácio prometera não comer outro pão senão o que mendigasse;
a condição imposta pelo capitão perturba a sua consciência e
consulta o seu confessor; tendo-lhe este ordenado que se
submetesse, o nosso herói encontrou meios de conciliar tudo.
Percorreu todas as ruas da cidade estendendo a mão aos
transeuntes, aceitando restos de pão, moedas de cobre, tudo o
que lhe davam. Metia o pão duro num alforje, o dinheiro no
bolso e a todos testemunhava um sincero reconhecimento.
Era assim que o brilhante Inácio de Loiola preparava as suas
provisões para tão longa viagem!
Quando ele assim mendigava numa das maiores ruas de
Barcelona, viu uma senhora de nobre e rica aparência à porta
de uma casa; essa senhora ia a entrar; Inácio aproxima-se e
pede-lhe uma esmola por amor de Deus
- Miserável vagabundo!-lhe responde ela-não tens vergonha do
modo de vida que segues? Crês que não é fácil ver que não
nasceste para mendigar? Não é a mim que tu enganas!
Adivinho-te: dissipaste a tua fortuna como o filho pródigo, e
agora estás reduzido a estender a mão para desonra e
ignomínia da tua família.
Inácio escutou sem responder; com os olhos baixos e atitude
respeitosa; parecia um criminoso na presença do juiz. A Sr.a
D. Zepila, assim se chamava, continuou:
- Aonde vais, desgraçado?
- A Roma, senhora.
- Aqueles que lá vão não vêm melhores. Onde moras?
- No hospital.
- Como te chamas?
- Não posso responder a essa pergunta.
- Já o sabia! Vai-te, és um miserável! Não te darei esmola,
que a não mereces !
- Diz V. Ex.a a verdade, senhora; eu não mereço esmola de
ninguém, e sou o maior de todos os pecadores! Agradeço a V.
Ex.a por me ter julgado e tratado como eu devia ser sempre
tratado. Muito obrigado, senhora, muito obrigado!
E o nosso Santo retirou, depois de se ter profundamente
inclinado diante da senhora que assim o acabava de humilhar.
D. Zepila era mãe de um filho que, com suas desordens, lhe
arruinara a fortuna, fugira alguns anos antes e de quem não
tinha notícias... A aparência de nobreza de Inácio, a
distinção dos seus traços e da sua pessoa tinham-lhe lembrado
o filho cujos desvairamentos deplorava, e, julgando-o também
culpado, tratara-o sem piedade. A doçura e a humildade do
nobre mendigo esclareceram-na e deram-lhe um grande pesar de
o ter repelido com tanta dureza. Naquela mesma tarde,
enviou-lhe uma esmola importante ao hospital, com
recomendação de que orasse por ela e pelo filho cuja
recordação lhe causara a irritação que lamentava com
amargura.
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