V. PRIMEIROS TEMPOS EM PARIS

Numa casa de assaz pobre aparência, situada no bairro Latino, alguns jovens estrangeiros ocupavam o mesmo quarto e viviam em perfeita harmonia. Atraídos pela celebridade dos professores da Universidade de Paris, tinham vindo seguir os seus cursos e haviam-se reunido para fazer as despesas em comum, a fim de tirar da modesta pensão que recebiam de suas famílias, a parte necessária para satisfazer alguns prazeres.

Um dia dos fins de Fevereiro de 1528, enquanto os estudantes estavam no colégio, um daqueles jovens entra no quarto comum, faz à pressa um embrulho,, introduz nele, com mão trêmula, uma bolsa, lança mão do embrulho, sai e desaparece.

Depois da aula, tendo os seus amigos entrado em casa, admiram-se de o não encontrar:

- Há alguns dias, - disse um deles - que Diogo não vai regularmente às aulas; desconfio que ele se tenha deixado arrastar por maus conselhos.

- E é isso tanto mais para temer, - disse outro que recusa explicar-se quando se lhe fala nisso. Operou-se nele uma mudança evidente nos seus hábitos e disposição.

- Não julguemos se não queremos ser julgados, meus bons amigos, - disse o terceiro.

A noite, Diogo não regressou; no dia seguinte e no outro ninguém o viu, no quarto dia soube-se que tinha abandonado Paris. Então, o estudante que tinha pedido que se não julgasse o fugitivo, disse aos amigos

- Vejo-me forçado a separar-me de vós; não tenho dinheiro, e recorrer à caridade pública para ocorrer às minhas -despesas de alojamento, absorver-me-ia uma grande parte do tempo.

- E onde quereis ir?

- Para o hospital Saint-Jacques [35], onde encontrarei asilo gratuito.

- Então renunciais aos estudos?

-Não; virei todos os dias a Montaigu [36].

- Mas não podeis sair do hospital antes do nascer do sol e deveis entrar antes do ocaso; calculai, pois, todo o tempo que perdeis a percorrer essa imensa distância. Ficai conosco sem receio de nos ser pesado; tudo se há-de arranjar.

- Não, meus bons amigos; chamai antes um Espanhol que possa tomar a sua parte nas despesas; eu vou para o hospital.

- Não nos aflijais, Ínigo. Ficai conosco.

Todas as instâncias não conseguiram abalar a firmeza de Ínigo.

Em Barcelona, os amigos do nosso Santo tinham-no prevenido de que os estrangeiros, principalmente os Espanhóis apesar da paz de Cambrai, dificilmente encontravam quem lhes desse esmola em Paris, e haviam instado com ele que aceitasse uma quantia assaz considerável para acudir às primeiras necessidades durante um ano ou mais. Inácio, sabendo por experiência que a mendicidade roubava um tempo precioso ao estudo, não teve escrúpulo de ceder às suas instâncias e de receber as diversas esmolas que lhe deram. Todavia, por espírito de pobreza, fez a viagem a pé, por um frio glacial, através das neves, arcando com os perigos dos Pirineus e implorando a caridade pública em todo o caminho, de Barcelona a Paris, onde chegara a 2 de Fevereiro de 1528. Foi viver, como vimos, com alguns estudantes espanhóis; pedira a um deles que lhe guardasse a bolsa, e este, depois de ter gasto loucamente uma parte, fugiu com o resto.

Muito delicado para se queixar deste roubo e para permanecer mais tempo com aqueles com quem não podia continuara partilhar das despesas, Inácio de Loiola tomou a resolução de se refugiar no hospital Saint-Jacques, logo depois das festas da Páscoa. A sua caridade levou-o até a calar absolutamente o roubo aos seus amigos, que podiam indenizá-lo facilmente. Assim, escrevendo a D. Inês Pascoal, não disse uma só palavra acerca dum acontecimento que dificultava os seus planos e o reduzia a uma posição tão difícil e dolorosa.

O nosso Santo, estabelecido no hospital de Saint-Jacques, continuava, apesar da distância, a ir todos os dias ao colégio de Montaigu, onde tinha recomeçado as suas humanidades. Ao ir e vir, pedia esmola no caminho, não deixando nunca de dar a esmola espiritual, quando se lhe oferecia ocasião.

Esta mendicidade absorvia uma grande parte do seu tempo, e Inácio mal recolhia o pão suficiente para se alimentar. Um santo religioso, que dirigia a sua consciência, aconselhou-lhe que aproveitasse o tempo das férias em fazer uma viagem aos Países Baixos, onde encontraria ricos negociantes espanhóis, cuja caridade o proveria para o ano seguinte. Inácio obedeceu; quando vieram as férias, partiu, de bordão na mão e a cabaça às costas, confiado em Deus.

Em Anvers procurou Pedro Quadrado, jovem negociante de Medina del Campo, província de Valhadolid, que o acolheu com entusiasmo e generosidade. O nosso Santo recebeu a importante esmola que ele lhe deu, olhou-o fixamente e agradeceu reconhecido [37].

Em Bruges, Luís Vivés, homem distinto pela sua ciência e virtudes, deseja admitir à sua mesa um pobre peregrino que acaba de lhe estender a mão, e cuja expressão de santidade o sensibilizou. Fê-lo jantar com ele, falou-lhe de Deus, e, admirado da maneira como lhe respondeu, continuou a conversa sobre este assunto. Acabado o jantar, demora-o, desejoso de que os seus amigos também o ouçam. O peregrino comove, encanta a todos, e, quando partiu, Luís Vivés disse aos seus amigos:

- Este homem é um verdadeiro Santo!

Nesta viagem, reconhecido Inácio de Loiola por alguns negociantes espanhóis a quem se dirigiu, recebeu as mais penhorantes ofertas:

-Não procure mais esmolas, senhor; -lhe dizia cada um deles - é para mim uma felicidade fazer-lhe chegar às mãos em Paris todo o dinheiro de que tenha necessidade, e não esperarei que mo peça.

Regressando, tendo ido o nosso santo estudante para, o hospital Saint-Jacques, continuou também os seus estudos no colégio de Montaigu; mas, provido agora para a vida, material, consagrou mais tempo ao trabalho e ao apostolado que havia empreendido para a conversão dos estudantes.

Inácio conhecera, ao chegar a Paris, que estava enfim no lugar marcado pela Providência para o cumprimento dum grande desígnio de misericórdia e de amor. Devia pois entregar-se a formar discípulos para este fim; o momento chegara e era necessário meter ombros à empresa.

Entre os jovens a quem a palavra do nosso Santo mais profundamente havia impressionado, D. Peralto e D. Amatore, pareceram-lhe reunir as qualidades desejáveis, e por isso convidou-os a fazerem os Exercícios Espirituais. O resultado foi o que sempre era: a vontade determinada de não mais viverem senão para Deus e para a sua glória. D. João de Castro, doutor da Sorbona e que pertencia também a uma das mais nobres famílias de Espanha, fez igualmente os Exercícios Espirituais sob a direção de Inácio e tirou o mesmo fruto.

Pouco depois, D. Peralto, D. Amatore e D. João de Castro, vendiam tudo o que possuíam, davam o produto aos pobres, declaravam-se discípulos do estudante mendigo que ninguém conhecia, abraçavam a pobreza voluntária, o desprendimento evangélico em todo o seu rigor, cobriam-se de roupas miseráveis e iam partilhar com o seu santo mestre o alojamento dos pobres no hospital dos peregrinos.

Os seus amigos e parentes que se achavam em Paris empregaram, para os afastar deste caminho, todos os meios sugeridos pela amizade, pela cólera ou pelo orgulho; os jovens convertidos resistiram às suas ameaças, como tinham resistido já às instâncias da sua ternura; nada conseguiu abalar a sua resolução.