VIII. EM BUSCA DE PECADORES

Inácio de Loiola começava a falar bem o francês, que ignorava ao chegar a Paris, e sentia alegria por isso, porque lhe facilitava os seus trabalhos apostólicos, limitados até então só aos espanhóis e portugueses. É verdade que eles eram numerosos nas escolas da Universidade; mas não bastavam ao ardor do seu zelo. Prometera não aconselhar ninguém a fazer os Exercícios Espirituais antes de terminar os estudos; todavia aproveitava as férias para procurar a Deus esta glória e trabalhar mais ativamente na conversão dos pecadores.

Um dia levou-o um negócio a casa dum sábio doutor, dignitário eclesiástico, mais ocupado dos interesses do tempo que dos da eternidade, e encontrou-o absorvido numa partida de bilhar. Esperou que ele acabasse. Ao dar a última carambola, o doutor apresenta um taco ao nosso Santo e propõe-lhe uma partida

- Ignoro as regras do jogo, -lhe respondeu Inácio V. Ex.a ganhará com certeza.

- Não importa! - acrescentou o doutor. Dou-lhe uma lição e poderei dizer a todo o tempo que o vi jogar o bilhar.

Um raio de luz esclareceu de repente o espírito do apóstolo; aproveita a brincadeira do doutor e diz-lhe:

- Pois bem, estou pronto; mas jogando, quero ganhar. Sou muito pobre para jogar com o único fim de me divertir, e como só possuo a minha pessoa, é a ela que eu jogo. Se perder, pôr-me-ei às ordens de V. Ex.a e obedecer-lhe-ei humildemente em tudo o que lhe aprouver ordenar-me, durante um mês, com a condição de não ofender a Deus. Se ganhar, V. Ex.a fará uma coisa que eu lhe pedir e que lhe será com toda a certeza vantajosa.

Deus permitiu que esta proposta divertisse o doutor, o qual a aceitou com entusiasmo. Começa a partida, ou antes, o nosso herói começa a jogar, e as suas tacadas são tão firmes, o seu olhar tão seguro que acaba a partida dum jacto, sem perder uma tacada.

O doutor ficou pensativo; não era natural que, não tendo nunca jogado, Inácio fosse um jogador de primeira força. O dedo de Deus estava ali, e servia-se daquela circunstância para o levar a reformar a sua vida assaz mundana e assaz agitada...

O doutor tinha razão. Tendo o santo apóstolo ganhado o jogo, reclamou o preço: o doutor submeteu-se e perguntou-lhe o que devia fazer. Inácio impôs-lhe os Exercícios Espirituais durante um mês. Obedeceu, saiu deste retiro completamente mudado e tornou-se modelo de todas as virtudes sacerdotais.

Um amigo do nosso Santo tinha-se deixado arrastar a uma ligação condenável: todas as instâncias de amizade de Inácio, todas as suas exortações não conseguiram obter dele a ruptura daquelas relações pecaminosas. Inácio orou ainda mais ardentemente pela conversão deste pecador; às mortificações acrescentou as austeridades. Deus parecia surdo às suas orações, invencível à sua dor. Todas as noites o culpado sai da cidade e vai a Gentilly, onde tomou o funesto hábito de se dirigir regularmente. Inácio de Loiola não tinha esgotado ainda todos os recursos do seu zelo e da sua caridade. Segue a distância aquele que já não quer chamar-lhe amigo a fim de ofender a Deus mais livremente, e, sabendo o caminho que ele segue todos os dias, vê o que lhe resta fazer para triunfar da obstinação do culpado.

Era no inverno; o frio tinha gelado alguns regatos, e, entre outros, a Bièvre, que o amigo do nosso Santo atravessava sobre uma pequena ponte para se dirigir ao seu destino. Uma noite, Inácio, cuja palavra havia sido infrutífera, foi lançar-se seminu na Bièvre, perto da ponte sobre a qual o seu amigo devia passar. Mete-se por entre o gelo que cobre a superfície do rio, e ali permanece, mergulhado até aos ombros,. pedindo, lacrimoso, a Deus que aceite este sofrimento para salvação dum pecador a quem tanto ama. A hora costumada o amigo chega; vai a entrar na ponte... Pára! Inácio lá está! ouve a sua voz e o remorso faz-se sentir:

- Caminha ! - exclamou o heróico apóstolo - caminha,, com perigo da tua alma, aonde o inferno te conduz ! Eu, teu amigo, aqui fico para expiar pelo sofrimento o condenável prazer que não receias ir gozar comprometendo a tua alma! Vai; esperarei que voltes; aqui me encontrarás; e encontrar-me-ás também amanhã e todos os dias até que apraza a Deus restituir-te a vida à alma ou dar a morte ao meu corpo.

- Não, - disse o infeliz pecador banhado em lágrimas não, meu amigo ! Não irei mais longe e não voltarei mais aqui. Tudo está terminado!

E assim foi, realmente. Converteu-se sinceramente,, seguiu a direção do Santo e viveu como perfeito cristão.

Tinham falado a Inácio dos escândalos dados por um sacerdote, que lhe indicaram. Inácio orou muito tempo por aquele pecador sem ser ouvido, e, não vendo pretexto algum para ir ao seu encontro e mostrar-lhe o mau caminho que seguia, consultou Deus e pediu-lhe que o inspirasse. Um domingo de manhã, foi pedir a este Padre que o ouvisse de confissão e narrou-lhe todos os pecados da sua vida, vertendo amaríssimas lágrimas, porque o nosso herói não cessava de prantear os seus pecados passados. Deus, que lhe sugeriu este pensamento, serviu-se disto para tocar o coração do sacerdote, ralado pelo remorso à medida que o penitente se acusava. Apenas a confissão acabou; os papéis trocaram-se; o Padre abre a sua alma ao Santo e pede-lhe que o ajude no caminho de que nunca se devera ter afastado. Inácio lembra-lhe que faça os Exercícios Espirituais. O conselho é seguido, o fruto maravilhoso; e o Padre repara, por uma dia de penitência exemplar, os escândalos que antes dera.

Um dos estudantes, que o santo apóstolo chamara para Deus, tinha recaído nos seus hábitos de pecado. Depois de ter esgotado em vão a linguagem da fé e da amizade para lhe fazer tomar de novo o caminho da virtude; depois de ter inutilmente orado por ele durante alguns meses, Inácio quis fazer ao céu uma santa violência, e, havendo-se imposto um jejum de três dias, passou-os todos junto do altar, sem comer e sem dormir, não cessando de pedir a Deus a alma, que o inferno lhe roubara. E Deus, amerceando-se de tantas lágrimas e orações, de tantas privações e sofrimentos, restituiu esta conquista à sua ardente caridade. Desta vez foi para sempre: o discípulo do nosso Santo não mais se desviou do caminho que lhe traçou o seu mestre e deu até ao fim o exemplo de todas as virtudes.

Inácio exercia também as obras de misericórdia nos hospitais. Cuidava dos doentes, convertia os pecadores, amortalhava os mortos e trabalhava heròicamente para extinguir tudo o que nele ainda havia de inclinações naturais.

Ínigo de Loiola devia morrer inteiramente. A sua delicada natureza já não se revoltava com os serviços humilhantes que prestava aos doentes dos hospitais; mas tinha uma repulsão instintiva por certas doenças e queria triunfar, custasse o que custasse, com o auxílio do céu, dessa repulsão.

Soube um dia que tinha dado entrada no hospital dos Espanhóis, o de Saint-Jacques, um pobre mendigo com uma doença contagiosa; vai vê-lo e prodigalizar-lhe os seus cuidados. O doente diz-lhe que está sendo devorado por uma úlcera. O nosso Santo limpa e cura esta chaga, procurando consolar e fortificar o doente... De repente apresenta-se um pensamento ao seu espírito, e o herói de Pamplona sente um arrepio de medo percorrer-lhe todo o corpo! "Se a doença se me comunicasse"! disse ele. Mas reconheceu logo a tentação: o brilhante fidalgo da corte queria afastar-se desse pobre doente, e assim de Jesus Cristo presente naquele de seus membros que estava diante dos seus olhos. Mas não será assim: o Santo vencerá o fidalgo. Ao mesmo tempo, Inácio inclina-se para o doente, abraça-o e levanta-se vencedor!

O inimigo, porém, não se atemorizou, e o nosso herói quer que ele seja esmagado, pulverizado. Todos os dias volta ao hospital, procura os doentes que sofrem moléstias contagiosas, trata deles com preferência e chega a triunfar completamente dos seus receios e repulsões.

Entretanto o estudo, o apostolado, o serviço dos hospitais, as austeridades, as longas orações não lhe bastam: o seu ardor não está satisfeito; tem necessidade de mais do que isso. Deus fez-lhe conhecer a sua vontade; sabe que chega o momento de recrutar os primeiros soldados do grande exército de que Jesus Cristo deve ser chefe. Este exército está destinado a fazer prodígios de valor no campo de batalha da Santa Igreja; Inácio sabe-o e suspira pelo momento em que lhe seja dado formar-lhe o núcleo e vê-lo em seguida aumentar e desenvolver jura maior glória de Deus.

Até esse dia Inácio não terá descanso.