|
Dois espanhóis apresentaram-se um dia em casa do
Inquisidor-mor, prior dos Dominicanos da rua Saint-Jacques,
Mateus Ori; era em Fevereiro de 1535.
- Reverendo Padre, - lhe disse um deles-cumprimos um dever de
consciência advertindo Vossa Reverência de que se passam
coisas graves entre os estudantes.
- Fale; de que se trata?
- Reverendo Padre, um estudante de teologia, que Vossa
Reverência conhece bem, formou uma associação secreta que
parece ser uma religião nova. Não sabemos se são as doutrinas
de Calvino as que eles adoptaram, ou se é uma seita que
começa a formar-se, porque os filiados guardam segredo
absoluto; o que é certo, é que eles têm reuniões, nas quais
não admitem toda a gente e aparentam uma santidade com a qual
ninguém se deixa iludir.
É numerosa essa associação?
- São sete, entrando no número o chefe, Ínigo de Loiola, que
perverteu as mais belas inteligências, os mais robustos
talentos, aqueles que maior honra faziam à Universidade de
Paris. Quase todos são espanhóis, e não podemos ver com
indiferença incutir aos nossos compatriotas o veneno da
heresia, sem suplicar a Vossa Reverência que dê remédio a
isto.
- Mas D. Ínigo não é herético, - disse o Inquisidor porque
diariamente me traz jovens que os partidários de Lutero e de
Calvino haviam seduzido e que ele converteu; a sua doutrina
pareceu-me sempre ortodoxa; fiquem os senhores tranqüilos.
Esta resposta não agradou a Miguel Navarro, o mais ardente
denunciante de Inácio.
Miguel, abatido por um momento pelo acontecimento
sobrenatural que o tinha impedido de realizar o seu projecto
criminoso contra a vida do santo apóstolo, sentiu reviver
todo o seu ódio quando descobriu a existência dum laço
secreto entro D. Francisco e Inácio de Loiola; e, quando teve
conhecimento das frequentes reuniões, tão recomendadas aos
seus discípulos pelo nosso Santo, prometeu a si mesmo
empregar todos os esforços para perder aquele a quem o Céu o
havia forçado a poupar a vida. Insistiu, pois, com o
Inquisidor e acrescentou
- Meu Reverendo Padre, conhece o livrinho de que se serve
Ínigo de Loiola para seduzir a juventude?
- Não; que livro é esse?
- Ah ! aí é que está o grande mistério! Ele não o comunica.
senão àqueles que querem escutar os seus discursos. Para
isso, faz desaparecer o seu homem, encerra-o -Deus sabe onde!
- com esse pequeno livro, e ao cabo dum mês, pouco mais ou
menos, o recluso reaparece. Mas está tão mudado que ninguém o
reconhece, e algum tempo depois vai encerrar-se provavelmente
num convento da nova seita. Meu Padre, Vossa Reverência deve
compreender que este livro é para nós motivo de inquietação.
Se é ortodoxo, porque - o oculta e só dá conhecimento dele
aos iniciados? Se o não é, porque o deixa a Inquisição nas
mãos daquele que o emprega para seduzir e perder as almas?
- Repito, - replicou o Inquisidor levantando-se - tenho a
doutrina de D. Ínigo por muito conforme à da Igreja. Quanto à
associação de que me fala e ao livro cujo perigo o preocupa;
tomarei informações.
Miguel e o seu cúmplice retiraram-se descontentes das
disposições de Mateus Ori. Tinham pouca confiança no
resultado das informações e teriam preferido que o Inquisidor
procedesse doutra maneira, e ordenasse provisoriamente a
captura do nosso Santo.
Entretanto, as dores de estômago voltaram a apoquentar
Inácio, o que não impedia de se entregar a austeridades
espantosas, a longas orações, aos cuidados dos doentes nos
hospitais, ao apostolado e aos seus estudos teológicos.
Ninguém compreendia como ele podia atender a tantas coisas.
Passava longas horas na igreja de Nossa Senhora des Camps,
mui pouco freqüentada, e onde estava sempre quase só. Muitas
vezes retirava-se ao fundo dum caminho de Montmartre e
abandonava-se ali à oração; certo de não ser incomodado, e
aproveitava esta solidão para se disciplinar valentemente.
Agravando este regime os seus sofrimentos, Inácio cedeu às
instâncias dos seus amados discípulos e consultou médicos,
que lhe ordenaram como único remédio eficaz fosse tomar os
ares pátrios. O nosso Santo hesitou em separar-se daqueles
que acabava de dar a Deus e à sua Igreja havia tão pouco
tempo; mas, depois de ter implorado as luzes do céu, decidiu
empreender a viagem. Xavier, Laynez e Salmeron deviam fazer
uma renúncia legal dos bens que possuíam em Espanha.
Enviá-los pessoalmente a regular estes negócios, seria
expô-los a todas as seduções de suas famílias, que não se
poupariam a esforços para os afastar da sua vocação.
Inácio de Loiola encarregou-se, pois, da sua procuração, e
ficou resolvido que, depois de ter regulado os seus próprios
negócios, se dirigiria às famílias dos seus amigos para
regular os deles.
Adoptado este plano, estava o nosso Santo chegado ao momento
de o pôr em execução, quando soube que o Inquisidor mandou
tirar informações sobre a sua pessoa, as suas ações e a sua
doutrina; dizia-se que novas acusações feitas contra ele
motivavam estas medidas.
Meus amigos, - disse ele logo aos seus discípulos - fui
denunciado como herético, sectário, corruptor da juventude em
matéria de fé... Se partir, não se deixará de dizer que quero
subtrair-me pela fuga ao exame da minha doutrina e dos meus
atos; prefiro, pois, antes de me afastar, adoptar todas as
providências possíveis, não só para vós durante a minha
ausência, mas para todos nós no futuro.
Dirigiu-se em seguida a casa do Inquisidor e disse-lhe com
uma santa dignidade:
- Reverendo Padre, sei que me denunciaram como herético. Aqui
estou para responder a todos os pontos de doutrina sobre que
apraza a Vossa Reverência interrogar-me, e pronto a fazer uma
profissão de fé, como Vossa Reverência a quiser formular.
Deixei-me acusar, prender, acorrentar em Alcalá e Salamanca,
sem me dar ao cuidado de me justificar, porque era. eu o
único comprometido e pouco me importava com a minha pessoa.
Mas hoje não se trata só de mim; tenho amigos, associados,
todos homens de grande valor e de eminente virtude, que se
destinam, como eu, às funções apostólicas. Ora, importa que a
reputação dos ministros do Evangelho seja pura de toda a
mancha de heresia.
- Não fiz caso algum das acusações que lhe assacaram; - lhe
respondeu Mateus Ori - sei o que devo pensar sobre a pureza
da sua fé; tomam-se informações com o único fim de confundir
os seus caluniadores. Peço-lhe apenas que me deixe ver um
livrinho com que eles fazem muito barulho e que dizem que o
senhor oculta a todas as pessoas, menos aos seus discípulos.
- Aqui está, Padre, - disse Inácio, apresentando-lhe o livro
dos Exercícios Espirituais. Muito me obsequia se quiser ter o
incômodo de o examinar.
Alguns dias depois, o Inquisidor pediu ao nosso herói que lhe
concedesse licença para copiar o livro
- Peço-o, - acrescentou ele - para que me possa servir para
meu bem espiritual e para o das almas que dirijo.
- Consinto nisso da melhor vontade, - lhe respondeu o Santo
-satisfeito por poder provar a Vossa Reverência que estou
longe de querer fazer segredo dele, como se afirma.
Mas esta aprovação era insuficiente para Inácio de Loiola;
era-lhe necessário um documento formal, duma autenticidade
irrecusável, que pudesse apresentar, no caso de necessidade.
Depois do Inquisidor ter já o livro copiado, o Santo
apresentou-se-lhe de novo, acompanhado dum escrivão e de três
doutores da Sorbona:
- Reverendo Padre, - lhe disse ele - venho pedir-lhe que me
dê um documento declarando formalmente que fui caluniado em
todas as acusações de que fui objecto; que Vossa Reverência
não encontrou nada de repreensível na minha fé e que o livro
dos Exercícios Espirituais é perfeitamente ortodoxo. O
tabelião que está presente escreverá esse documento, e peço a
Vossa Reverência que o assine e que também o assinem os
doutores que fizeram o favor de vir comigo.
O Inquisidor fez o que desejava o santo apóstolo e. foi mais
longe ainda; porque juntou à sua declaração o mais completo
elogio daquele que venereva como Santo. A humildade de Inácio
ficou humilhada; mas, apesar das suas instâncias, não pôde
obter um testemunho menos favorável acerca da sua santa vida.
Estando a partir para Espanha, Inácio fez os preparativos,
renovou as recomendações aos seus queridos discípulos e
designou Pedro Fabro para os dirigir a todos na sua ausência,
porque, sendo ele o único elevado ao sacerdócio, devia ter o
respeito de todos. Quis partir a pé; mas os seus discípulos
opuseram-se em razão da sua fraqueza e sofrimentos:
compraram-lhe um pobre cavalo estropiado, que ele certamente
montou sem escrúpulo, apesar do seu voto de pobreza.
Ignora-se a data precisa da partida, mas é provável que fosse
a 26 de Março, porque levava uma carta de Xavier a seu irmão
mais velho com data de 25 de Março de 1535
|
|