VI. POR TERRAS E MARES DISTANTES

Chega o momento da partida. o navio vai levantar ferro e Inácio dirige-se a bordo. As suas provisões são suficientes: o seu alforje leva o pão e a sua cabaça vai cheia de água.

Não será bastante? Tem algumas moedas de cobre. Guardá-las como propriedade sua seria contrário ao espirito de pobreza; dá-las aos marinheiros seria dispô-los em seu favor; reservá-las para comprar pão no desembarque seria falta de confiança em Deus. Deixa-as na margem para o primeiro pobre que as encontre.

Cinco dias depois, uma violenta borrasca lançava o navio no porto de Gaeta, e o nosso peregrino, sem perder um instante, segue a pé, a estrada de Roma.

No fim do primeiro dia, encontra-se numa vila, onde algumas pessoas reunidas junto dum grande fogo, peito da hospedaria, o convidam a aquecer-se. Inácio estende-lhes a mão e pede à sua caridade uma esmola e um abrigo por amor de Deus. Dão-lhe de comer e mandam-no para a estrebaria! O nobre Inácio de Loiola dirige-se para ali, bendizendo a Deus por esta humilhação; porque o orgulho de raça não está ainda extinto na sua alma e ele tem sede de tudo o que possa contribuir para o esmagar sem piedade. No meio da noite, ouve gritos de socorro sobre a estrebaria; sobe o mais depressa possível para levar socorro à pessoa que parece chamá-lo, e encontra uma mulher lutando com um homem que quer ultrajá-la. Inácio fala espanhol a esse desgraçado italiano, mas fala-lhe em nome de Deus, ameaça-o com a sua cólera, é compreendido e a mulher é salva.

Antes do pôr do sol o Santo põe-se a caminho. Chegando à noite muito tarde a uma pequena cidade, encontrou a porta fechada; retira-se a uma pequena capela fora dos muros c aí passa a noite. Ao abrirem-se as portas, apresenta-se para entrar na cidade; perguntam-lhe pelo passaporte, porque a peste assola uma parte da Itália e ninguém penetra nas cidades se não for munido dum certificado de saúde. O nosso herói ruão tem por si senão a sua confiança em Deus e tem contra si um rosto extenuado, uma magreza excessiva... É-lhe recusada a entrada. Resigna-se a seguir outro caminho, ladeando a cidade; mas chegando à primeira vila, é forçado a parar. Exausto de fadiga, reduzido à extrema fraqueza pelos jejuns e austeridades, sofrendo da perna direita, à qual não deixou o tempo necessário para se fortificar e restabelecer-se do violento tratamento que lhe fez sofrer, experimentando vivas dores de estômago, não podia dar mais um passo.

Enquanto o santo peregrino descansava das suas grandes fadigas numa vila desconhecida, ignorando a língua dos habitantes e sofrendo com este gênero de isolamento, vê o povo subitamente agitado, e todos correm a vestir os seus hábitos de festa com a agitação do prazer e da alegria. Daí a pouco compreende que a princesa suserana da cidade, em que lhe foi recusada a entrada, vai atravessar a vila para se dirigir àquela cidade. Junta-se aos habitantes que a vão esperar e aproveita a ocasião para lhe pedir autorização de passar pela sua boa cidade a fim de se dirigir a Roma, acrescentando

"- Afirmo a Vossa Alteza que não tenho a peste e que a minha doença é apenas fraqueza".

Tendo-lhe sido concedida esta autorização, descansou dois dias naquela cidade e retomou em seguida o caminho de Roma, onde chegou no domingo de Ramos do ano de 1523.

Passou ali a Semana Santa, visitou todas as igrejas, recebeu a bênção do Soberano Pontífice Adriano VI, assim como a permissão de fazer a peregrinação à Terra Santa, e dispôs-se para a partida.

Não tendo podido dissuadi-lo de empreender esta perigosa viagem alguns espanhóis que encontrara na Cidade Eterna, forçaram-no a aceitar ao menos sete peças de ouro para a travessia. Inácio de Loiola censurou-se logo desta falta contra a santa pobreza. Saindo de Roma, distribuiu aos pobres tudo o que acabava de receber e dirigiu-se para Veneza, sempre a pé, pedindo a esmola do tecto que o devia abrigar e do pão que o devia alimentar.

As dificuldades da viagem tornavam-secada vez maiores. A doentia palidez do seu rosto aterrava a todos; afastavam-se dele com terror, tomando-o por um pestífero.. Não podendo atravessar as cidades cuja entrada lhe era recusada, nem achar nas vilas e aldeias um abrigo para a noite, via-se obrigado a tornar ao ar livre os curtos momentos de descanso que concedia à sua fraqueza. Entre Chioggia e Pádua tinha conseguido juntar-se a alguns viajantes que iam a pé como ele e esperava poder entrar coxas eles na cidade. Chegados à porta, pediram-lhes o passaporte; ninguém o apresentou e foram repelidos. Os companheiros do nosso Santo voltam atrás para arranjar o atestado de bom estado de saúde, mas não querem ir com o pobre mendigo, que se dispunha a segui-los, porque estão persuadidos que só o seu aspecto seria um obstáculo para obterem o atestado. Além disso, Inácio está fraco e anda a custo. Parece-lhes bom este pretexto para se desembaraçarem dum pobre mendigo, cuja companhia é uma humilhação para eles. Declaram-lhe pois que, não podendo acompanhá-lo na sua marcha vagarosa, lhe tomam a dianteira.

Inácio, exausto de fadiga, abandonado num lugar desconhecido, não sabendo o caminho que devia seguir, põe-se em oração, mais confiado que nunca na Providência, porque lhe falta todo o socorro humano.

Aquele por quem ele se expunha a tantas privações e sofrimentos vem, com efeito, em seu auxílio: Nosso Senhor aparece-lhe, consola-o, promete fazê-lo entrar em Pádua e em Veneza, e deixa-o inundado duma alegria inexprimível.

O nosso peregrino põe-se a caminho, cheio de força e de coragem. Junta-se aos viajantes que o tinham abandonado e sabe deles que, apesar de irem munidos do atestado de saúde, os não deixaram entrar em Pádua. Inácio não desanima.

Chegado à porta daquela cidade, passa por meio dos guardas, que lhe não dirigem nenhuma pergunta e parece não o verem. Continua a sua peregrinação, transpõe a entrada de Veneza como se fora invisível, e isto sob as vistas dos seus companheiros de viagem, que encontrou naquele momento, e que, menos felizes que o mendigo desprezado, sofreram um exame minucioso das suas pessoas e dos seus papéis antes de lhes consentirem que entrassem na cidade.

Era avançada a hora quando chegou a Veneza. Ignorando onde estavam situados os diversos hospitais, refugiou-se num pórtico para lá passar a noite.

Este pórtico era o do palácio Trevisano, pertencente ao senador deste nome, Marco Antônio, venerado pelas suas grandes virtudes e eminente piedade [26]. Este senhor, que acabava de pegar no sono, despertou de repente ouvindo estas palavras:

"- O meu servo está deitado na pedra à porta do teu palácio e tu dormes molemente num leito adornado de ricos bordados!"

O senador levantou-se logo, correu à porta do seu palácio; dá com os pés num corpo que faz um ligeiro movimento vê que é um pobre peregrino sem asilo e condu-lo a casa, onde o trata com o maior respeito.

O nosso herói não podia permanecer numa casa onde era tão estimado, e saiu para ir para casa dum negociante espanhol, biscainho, que o tinha reconhecido, mas não aceitou seus oferecimentos. O senador e o negociante queriam fazer-lhe as despesas da viagem, mas ele recusou e pediu-lhes apenas que lhe obtivessem uma audiência do doge André Gitti. O navio que levava os peregrinos para a Terra Santa, tinha abandonado as águas de Veneza e devia arribar à ilha de Chipre; ora, naquele momento, a república enviava um novo governador àquela ilha, e estando pronta a pôr-se à vela a nau do Estado que devia transportá-lo, Inácio desejava obter o favor de ir nessa nau:

- Pense, - diziam-lhe - que, desde a tomada de Rodes pelos Turcos, os seus piratas cruzam sem cessar o mar da Síria e que o menor perigo a que o senhor se pode expor é o da escravatura.

- Nada disso, - respondia ele - pode abalar a minha confiança; se os navios faltassem, eu faria, com o auxilio do céu, a atravessia numa prancha.

Pediram-lhe que não abandonasse Veneza sem ver o embaixador de Carlos V; mas Inácio recusou

- Nada tenho que fazer com os grandes deste mundo, - respondeu ele - e nada tenho que pedir-lhes: estou sob a proteção do Rei do céu e da terra, a quem tenho a honra de servir; esta me basta e não me faltará nunca.

Concederam-lhe passagem na nau do Estado; mas, na véspera da partida, assaltou-o uma ardente febre. Foi-lhe receitado um medicamento que exigia descanso e medidas de prudência; Inácio não pode resolver-se a seguir os conselhos da sabedoria humana. O médico proíbe-lhe que embarque, dizendo-lhe que a sua vida perigava; a sua inspiração impele-o, porém, a partir e a não perder esta ocasião de ir à Palestina, e obedece à sua inspiração. Embarcou no dia 14 de julho e o enjoo curou-o completamente.

A equipagem da nau compunha-se de marinheiros e de passageiros, cujo proceder e palavras eram objecto de escândalo para o nosso peregrino. Inácio fez ouvir a esses desgraçados pecadores a linguagem da fé e lembrou-lhes as verdades que eles pareciam ter esquecido. A sua palavra não é compreendida, os seus conselhos são desprezados; filham-no como censor importuno, cuja temeridade querem punir, desembaraçando-se da sua presença. Naquelas paragens há uma ilha deserta; manobram de maneira a parar ali apenas o tempo necessário para lá deixarem o peregrino espanhol. Um dos passageiros sabendo da infernal combinação, adverte dela o nosso Santo, que redobra as suas exortações com mui pouco êxito. Os marinheiros persistem no seu projecto homicida, manobram com este fim e aproximam-se da ilha desabitada; mais alguns instantes e o crime será consumado... Uma espantosa rajada de vento, que nada pressagiava, e que ninguém podia prever, repeliu a nau, arrebatou-a e levou-a até à ilha de Chipre!

Não tinha Inácio de Loiola dito antes de embarcar: "Estou sob a proteção do Rei do céu e da terra, a quem tenho a honra de servir; ela me basta e não me faltará nunca"?