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Apenas entrou no castelo, D. Martinho Garcia, magoado com a
persistência de Inácio não querer outra morada senão a dos
pobres, e isto no seu próprio país, a alguns passos da sua
ilustre família e da sua rica habitação, disse aos irmãos:
- Visto que não podemos evitar esta dor de coração e esta
humilhação de família quero ao menos que Ínigo seja melhor
tratado do que os mendigos, a quem ele nos prefere. Vou dar
ordem para que lhe levem um leito agora mesmo, e, duas vezes
por dia, enviar-lhe-ei a melhor parte do que for servido à
mesa da sua família.
Pouco depois os criados do castelo chegavam ao hospital da
Madalena, colocavam no quarto do Santo o leito enviado por D.
Garcia e punham sobre a mesa os mais delicados acepipes. O
coração de Inácio bateu de alegria ao ver essa suculenta
comida. O seu olhar fixou-se nos servos de seu irmão com uma
comovente expressão de reconhecimento.
- Agradeço a D. Garcia, - lhes disse - e agradeço-lhes
também, meus bons amigos; não me podiam dar maior prazer. Os
meus queridos doentes vão ficar muito satisfeitos! A soberana
bondade de Deus lhes pague tudo!
E imediatamente foi tudo distribuído aos pobres doentes;
Inácio recebeu em troco o pão negro da caridade. A noite,
depois de uma longa oração, rasgou o corpo com a disciplina e
em seguida estendeu-se no chão para tomar um pouco de
descanso. Quando se levantou, desfez a cama de que se não
quis servir, e julgou enganar deste modo aqueles que podiam
ter adivinhado a sua mortificação. Durante o dia, percorreu
as ruas da cidade pedindo esmola, convidou as criancinhas a
irem ouvir a explicação do catecismo e os pais a escutarem as
prédicas que fazia na igreja do hospital.
D. Garcia, prevenido de que seu irmão implora a caridade
pública nas ruas de Azpeitia, procura-o e pede-lhe que não
desonre assim a família:
- Meu irmão e senhor, - lhe respondeu o nosso herói - Nosso
Senhor Jesus Cristo, mestre divino de todos nós, deu-nos o
exemplo da pobreza voluntária. Creia que, praticando-a, não
faço mal; permita-me, pois, que a honre e a respeite, se Deus
me quiser fazer essa graça, até ao fim da minha vida.
- Diz-se que o meu querido irmão também quer pregar. Pense
que, expondo-se à irrisão pública pela mendicidade, não terá
autoridade alguma para ensinar o povo. Por outra parte, o
mano não é Sacerdote e aqui não faltam Sacerdotes e
Religiosos para a pregação.
- Meu bom irmão, por toda a parte vejo um grande relaxamento
nos costumes e muita indiferença no cumprimento dos deveres
do cristianismo. A causa desta desordem é a ignorância dos
povos e estou firmemente resolvido a pregar em toda a parte
onde me encontre, quando isso me for possível, para maior
glória de Deus, nosso Mestre e Senhor.
-Mas não quererão ouvi-lo ! É uma tentativa inútil.
- Ainda que tivesse uma só criança, pregaria como se tivesse
numeroso auditório; e, se lhe aproveitassem os meus
ensinamentos, não pensaria ter perdido o tempo.
Vendo D. Martinho que não conseguia vencer a humilde firmeza
de seu irmão, não insistiu mais.
Depois que o Santo abandonou Paris, o seu estômago funcionava
regularmente; a saúde melhorou, em geral, e aproveitou-se
disso para continuar as suas austeridades. A sua alimentação
era o pão duro da caridade; dormia no chão do quarto e tomava
apenas alguns momentos de sono; o cilício estava-lhe colado
ao corpo por uma cadeia de ferro cheia de pontas e assaz
comprida para lhe cair dos dois lados, depois de lhe
atravessar a cinta; enfim, multiplicava as disciplinas e
tratava-se com espantoso rigor. Tendo os criados do hospital
conhecido que ele se não deitava, levaram o leito que D.
Garcia lhe tinha enviado e substituíram-no por um dos pobres
grabatos para uso dos indigentes.
Desde esse momento, Inácio serviu-se dele regularmente, feliz
por não ter melhor cama do que os pobres de Jesus Cristo, do
qual ele queria partilhar o roteiro desprendimento.
Pregava todos os domingos, todos os dias de festa e três
vezes na semana, independentemente do catecismo que ensinava
às crianças. A primeira vez que pregou, teve imensa gente a
ouvi-lo. D. Garcia enganara-se nas suas previsões: Inácio,
longe de excitar o desprezo do povo, inspira profunda
veneração pela santidade da sua vida, e atraía a si todos os
corações pela simplicidade das suas maneiras, pela doçura da
sua palavra, pela benevolência do seu olhar e pela amável
bondade que testemunhava a todos. Comovido pelo interesse que
todos tomaram em dirigir-se à igreja do hospital para ouvirem
a primeira instrução, Inácio lança o olhar sobre a imensa
assembléia, reconhece aqueles que desejava ali ver, e
apercebe alguns membros da sua família. D. Garcia era do
número. Era excelente a ocasião para a deixar escapar; a
humildade do nosso herói aproveita-a com uma espécie de
avidez.
"Meus caríssimos irmãos, - disse o santo apóstolo um dos
principais motivos que me determinaram a aparecer de novo
neste país, que abandonei com intenção de não mais aqui
voltar, foi o de ceder ao grito da minha consciência. Há
muito tempo que uma voz interior me dizia que, onde eu tive a
desgraça de dar outrora o mau exemplo duma juventude mundana,
frívola e dissipada, devia dar a do arrependimento e da
penitência. Todos os dias peço a Deus Nosso Senhor, e lho
peço com lágrimas de viva dor, que me perdoe esse passado que
deploro. Hoje venho pedir a todos, compatriotas e amigos
meus, a quem ofendi ou escandalizei então, que me perdoem e
não recusem o auxílio das suas orações a um miserável
pecador, como eu, que tanta necessidade tem delas. E se
alguns de vós, arrastados pelos meus funestos exemplos,
tiveram a desgraça de me imitar nos meus desvarios,
suplico-lhes que voltem para Deus e façam sincera penitência.
de todos os seus pecados."
"Outro motivo me trouxe junto de vós. Tenho que pagar uma
divida, tenho que confessar-me réu duma grande falta e de
proclamar altamente a inocência daquele que foi acusado e
punido publicamente. Tenho que indenizá-lo da perda que o fiz
sofrer (e aponta com o dedo um dos seus ouvintes, a quem
nomeia); foi ao senhor que eu causei prejuízo. Aquele homem
honrado, condenado a pagar uma quantia assaz considerável e a
sofrer a vergonha da prisão, por ter roubado frutos dum
jardim, não era réu dessa falta. Fui eu que a cometi; fui eu
que escalei o muro desse jardim, com alguns jovens da minha
idade, fui eu que roubei os frutos. Para reparar esta falta,
tanto quanto me é possível, dou àquele que sofreu as
conseqüências do meu pecado, dois domínios situados nestes
arredores, e que são propriedade minha. Aceite-os em
recordação da minha culpa (e nomeia de novo aquele a quem se
dirige), e provar-me-á desse modo que me concede o perdão que
lhe peço. Declaro publicamente que lhe dou um desses domínios
a título de restituição, e o outro a titulo de reparação,
suplicando-lhe de novo que me perdoe de todo o coração,
porque do fundo da minha alma deploro a injustiça que lhe
fiz"..
Todo o auditório vertia lágrimas. Aquele que assim falava,
todos em Azpeitia o tinham conhecido belo, elegante, muito
apreciado, muito pródigo! Hoje viam-no coberto com uma pobre
sotaina cinzenta, cingido por uma corda da mesma cor, pálido,
recolhido, orando sempre, humilhando-se até estender a mão
para implorar a esmola dum bocado de pão, e, naquele momento,
não temia confessar-se publicamente réu duma falta da sua
juventude, de todos ignorada.
D. Garcia estava também comovido; começava a compreender que
a profunda humildade de seu irmão podia pôr a seus pés todos
os que o escutavam. E foi o que sucedeu.
Dai a pouco corriam de todas as vilas, de todos os castelos,
de todas as cidades da província para consultar o Santo, para
o ouvirem, para o verem e pedirem-lhe as suas orações. Não
havendo igreja que pudesse conter a multidão que se
acotovelava em volta dele, viu-se forçado a falar ao ar
livre, e, conquanto a sua voz fosse bastante fraca, ouvia-se
a grande distância. Chegaram até a subir a árvores para o
ouvirem. O clero da província nunca tinha visto tão grande
número de penitentes invadir os confessionários; porque
todos, pressurosos de reformarem a sua vida e de porem em
prática a santa palavra que tinham ouvido, queriam começar
por pacificar a sua consciência. Mas o próprio clero tinha
necessidade de reforma, assim como algumas comunidades
religiosas; e Inácio, prevendo que estas conversões não
seriam duradoiras se não fossem sustentadas pelo zelo dos
pastores das almas, ocupou-se da reforma do clero. Leigo como
era, tentou esta imensa empresa, e Deus, que lha tinha
inspirado, abençoou-a abundantemente. Obteve então um
sacrifício muito meritório para os espanhóis, o do jogo das
cartas, que era uma verdadeira paixão em todo o país; os
Padres e os religiosos não estavam isentos disso. Fez outro
prodígio: atacou o luxo nas suas pregações com tal força, que
as mulheres, comovidas até às lágrimas, fizeram ceder a sua
vaidade à palavra do apóstolo, e esta reforma foi duradoira.
Durante os dez dias que precederam as festas do Pentecostes,
explicou todas as tardes um dos mandamentos de Deus. O efeito
foi maravilhoso. Algumas pessoas, que até então tinham vivido
na desordem, deram exemplo da mais bela conversão e moveram
muitas outras, que viveram depois na penitência, na
mortificação e no afastamento do mundo.
Estabeleceu em Azpeitia uma confraria do Santíssimo
Sacramento, encarregada de cuidar dos pobres envergonhados;
deu-lhe para este fim um capital assaz considerável,
confiando a sua administração a alguns dos magistrados da
cidade.
Estabeleceu também o uso de rezar todos os dias ao meio dia
pelas almas que estão em pecado mortal, e à noite pelos
mortos; e, a fim de não deixar morrer esta devoção, pôs a
render uma certa quantia para pagar àquele que tocasse o sino
da paróquia para dar o sinal de rezar.
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