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O navio que partia para a Terra Santa ia fazer-se à vela no
momento em que o nosso Santo o abordou: apenas teve tempo de
passar de bordo de um para outro. No dia 31 de Agosto, depois
da mais feliz travessia, desembarcava em Jafa e no dia 4 de
Setembro estava em Jerusalém.
Não falaremos das suas impressões à vista dos lugares
santificados pela presença do divino Salvador e daqueles onde
se realizaram os inefáveis mistérios do seu amor; que favores
não deve receber, naqueles sagrados lugares, aquele a quem
Deus se tinha comunicado tão freqüentemente e tão
maravilhosamente em Manresa?
Nesta última cidade, Deus tinha-lhe feito conhecer que o
destinava a trabalhar na salvação das almas, e que seria
ajudado nesta missão por alguns discípulos. Mas em que época?
Em que lugar? Quem seriam os seus discípulos? Inácio
ignorava-o. O desejo que tinha experimentado, desde o
primeiro momento da sua conversão, de fazei a peregrinação à
Terra Santa, pareceu-lhe ser uma indicação dos lugares nos
quais devia exercer o seu zelo e formar a Companhia de
discípulos destinados a tomar parte no seu apostolado.
Resolveu, pois, fixar-se em Jerusalém e dirigir-se ao Padre
Guardião dos Franciscanos, a quem entregou uma carta de
recomendação que trouxera da Europa, acrescentando:
- Tenho o maior desejo de permanecer em Jerusalém e peço a
vossa Reverência autorização para aqui residir sempre.
- Só o Reverendo Padre Provincial lhe pode dar essa licencia,
meu irmão; - lhe respondeu o religioso - ele está
presentemente em Belém, esperamo-lo em breve, o senhor
vê-lo-á e talvez ele lhe conceda o que pede.
- Apesar de viver de esmolas, meu Padre, - continuou o nosso
peregrino - não serei pesado à casa e só pedirei à caridade
de Vossas Reverências os socorros espirituais do seu
ministério.
- Espero pelo Padre Provincial, - repetiu o Padre Guardião -
falar-lhe-ei em seu favor e espero que ele o atenderá.
Cheio de esperança, Inácio escreveu logo a alguns de seus
amigos, dos quais contava fazer apóstolos, e convidou-os a
irem juntar-se-lhe a Jerusalém. As suas cartas deviam partir
quando regressasse o navio que trouxera os peregrinos.
Havia perto de dois meses que a piedosa caravana estava em
Jerusalém, quando, chegado enfim o Padre Provincial dos
Franciscanos, Inácio se lhe apresentou e lhe fez o pedido,
sem todavia lhe dizer o motivo que o fazia desejar estar na
Palestina [27].
- Compreendo e aprovo a sua devoção - lhe respondeu-mas sinto
não poder satisfazer o seu pedido, porque prejudicaria os
interesses da nossa casa, já tão pobre. A muito custo
encontramos os suficientes recursos, o senhor não tem outros
meios senão a caridade pública, e assim privar-nos-ia em
proporção do que lhe fosse dado... Sou até obrigado a
reenviar para a Europa alguns dos nossos irmãos que não
podemos alimentar. Amanhã partirão com os peregrinos.
- Meu Reverendo Padre - disse o, nosso Santo - prometo não
tirar as esmolas que são destinadas à vossa casa e só pedir a
Vossa Reverência os socorros espirituais.
- Meu caro irmão, - replicou o Padre Provincial - o interesse
da nossa casa não é o único motivo da minha recusa; vai nisso
também o seu interesse pessoal. Muitas vezes os peregrinos
são mortos pelos Turcos; algumas vezes fazem deles escravos;
e, neste último caso, o nosso convento é obrigado a
resgatá-los. O mais seguro para o senhor é voltar - à Europa.
- Meu Padre, o receio da morte ou da escravatura não me
afastará dos Lugares Santos. Só o temor de ofender a. Deus
terá poder de me determinar a esse sacrifício.
- Então parta imediatamente, - acrescentou o Provincial -
porque o senhor o ofenderia permanecendo aqui contra, minha
vontade. Tenho uma bula do Santo Padre que nos. autoriza a
excomungar quem continue na Terra Santa depois. da nossa
proibição.
- Vou partir, meu Reverendo Padre, - respondeu o nosso Santo
inclinando-se profundamente.
- E retirou-se a fim de preparar a sua partida. Não podendo
todavia resignar-se a embarcar sem tornar a ver e venerar
pela última vez os vestígios dos sagrados pés do Salvador no
monte da Ascensão, e querendo ir só a esta última.
peregrinação, dirigiu-se furtivamente ali, apesar do perigo
que corria de ser maltratado ou roubado pelos Turcos. Não
tinha dinheiro, e deu ao guarda o seu estilete de escrever, e
o guarda deixou-o passar. Ao voltar, queria ir fazer uma
estação à montanha de Betfagé; mas recordando-se de que não
observara a orientação dos vestígios sagrados, volta, atrás,
dá ao guarda a única coisa que lhe restava, as suas tesouras,
e satisfaz a sua devoção.
Entretanto dá-se pela ausência de Inácio e em vão o procuram.
Os Franciscanos desconfiam da sua imprudência e mandam um
Armênio ao monte das Oliveiras com ordem de trazer o
peregrino. O Armênio encontra o nosso herói na parte inferior
da montanha, insulta-o, maltrata-o, ameaça-o com o pau, e
fá-lo caminhar adiante de si como um criminoso Inácio de
Loiola mal ouve as injúrias com que o honram Nosso Senhor,
por amor de quem se expôs a esta humilhação, aparece-lhe no
mesmo momento, em que o Armênio se apresentou, e caminhava
junto dele, espalhando-lhe na alma indizíveis consolações.
No dia seguinte, o nosso Santo embarcava com os peregrinos,
levando a doce esperança de poder voltar um dia àquela terra
bendita, onde deixava o coração.
Chegado ao porto da ilha de Chipre [28], donde partira,
encontrou três navios prontos a fazer-se à vela para Itália:
um era um galeão turco, que recusou o novo peregrino; o
segundo era um navio veneziano bem armado, em que todos os
italianos tomaram passagem, pedindo ao capitão que recebesse
Inácio por amor de Deus
É um verdadeiro Santo, - lhe disseram - e fará descer, as
bênçãos do céu sobre a vossa travessia.
- Pois - respondeu o capitão - se é Santo, que faça o milagre
de andar sobre as águas e que atravesse o mar a pé.
O terceiro navio estava em mau estado e receava-se que não
pudesse resistir ao menor golpe de vento; mas, tendo-o o
capitão recebido gratuitamente, Inácio subiu para bordo, e no
a dia seguinte, ao romper da aurora, os três navios
levantaram ferro. Durante todo o dia foram açoitados pelo
vento mais favorável; ao pôr do sol, separou-os uma
imprevista tempestade.
O galeão turco desaparece em pleno mar com toda a equipagem;
o navio veneziano, lançado violentamente sobre as margens da
ilha de Chipre, bate num escolho e faz-se pedaços conseguindo
a equipagem salvar-se nas canoas; o navio que conduz o nosso
Santo recebe algumas avarias, repara-as num porto napolitano
e chega felizmente a Veneza, nos fins de Janeiro de 1524,
depois de mais de dois meses de travessia.
O frio era intenso; Inácio de Loiola trazia vestidas umas
calças de algodão, um colete e uma túnica do mesmo tecido,
que não tinha abandonado desde a sua partida de Manresa e que
estavam a cair a pedaços. Que tinha feito do seu manto de
pano? Sabia-o a sua caridade. Em Veneza encontrou o rico
negociante espanhol que o conhecia e que não conseguiu
fazer-lhe aceitar outra coisa, para o preservar do frio,
senão um pedaço de pano, que colocou, dobrado, no estômago,
de que continuava a sofrer muito. Todavia, as instâncias do
bom negociante foram tais, que o nosso peregrino, temendo
afligi-lo se persistisse na recusa, consentiu em aceitar uma
esmola de quinze peças de ouro, e, instado para voltar a
Espanha, pôs-se imediatamente a caminho.
A Franca e a Espanha estavam em guerra, as suas tropas
cobriam a Lombardia, e convidaram o nosso Santo a seguir pelo
mar em Veneza para evitar as terras de ocupação, através das
quais podia correr grandes perigos; mas sendo o itinerário
mais simples ir embarcar em Génova, julgou que seria falta de
confiança na Providência se tomasse outro caminho. Partiu
pois, a pé, vestido como dissemos, pedindo esmola, tiritando
de frio e enterrando-se nas neves que cobriam as montanhas.
Em Ferrara entrou na catedral para orar; apesar da sua pobre
aparência, um mendigo aproxima-se-lhe e implora a sua
caridade por amor de Deus. Inácio recorda-se que possui
quinze peças de ouro e dá-lhe uma. O mendigo, surpreendido
com tanta generosidade, corre ao átrio, anuncia aos seus
companheiros a sua boa fortuna e convida-os a irem estender a
mão ao generoso peregrino. Os pobres sucedem-se junto de
Inácio, que dá uma peça a cada um, até que, não tendo
nenhuma, sai da igreja e diz-lhes com a mais terna compaixão
- Meus bons amigos, não tenho mais nada, nem para mim, nem
para vós; dei-vos tudo quanto tinha !
Vendo passar pessoas ricas, vai estender-lhes a mão e pedir a
sua parte à caridade delas. Os mendigos exclamam então: - É
um Santo! É um Santo!
Inácio, ouvindo isto, desaparece com a prontidão do
relâmpago. Continua a sua viagem pela Lombardia, passando a
noite ao ar livre ou abrigado num telheiro, e algumas vezes
num pardieiro em ruínas.
Atravessando uma viela, ocupada pelo exército de Carlos V, é
tomado como um espião e preso como tal. Pode ser reconhecido
por oficiais ou soldados, pois que todos são espanhóis; toma
então uma resolução: afetará as maneiras e a linguagem do
povo, porque o amor próprio não está morto nele e sente
vivamente o seu aguilhão naquele momento. Sabe que bastará
dizer: Sou Inácio de Loiola, para se ver rodeado de honras e
de respeito. Mas não dirá! Talvez sofra um rude castigo...
Teme-o, sente-se fraco em face deste receio, que não lhe pode
vir senão do demônio, reconhece-o e não cederá. A todas as
perguntas que lhe dirigem os soldados espanhóis, responde com
silêncio. Despem-no para ver se lhe encontram papéis
comprometedores, de que supõem que é portador. Não
encontrando nada e não sabendo o que fazer dele conduzem-no,
assim despido, ao oficial que comanda o corpo.
-Quem és? Donde vens?
Inácio guardou silêncio.
- Onde vais?
- A Génova.
-És um espião?
- Não.
- De que país és? Com que fim viajas?
Inácio não respondeu.
- Este homem é idiota, - disse o comandante àqueles que lho
trouxeram. Como tomaram este imbecil por um espião? Deixem-no
ir em paz.
Levando-o, os soldados maltratam-no, riem-se dele e do seu
idiotismo, enchem-no de humilhações. Inácio agradece a Deus
interiormente este favor de que se reconhece indigno. Um
oficial, impelido pela compaixão, tira-o das mãos dos
soldados, dá-lhe alguma coisa que comer e alberga-o durante
aquela noite.
Mais adiante atravessa o quartel dos franceses; as sentinelas
prendem-no, conduzem-no ao general e Inácio espera colher um
novo tesouro de sofrimentos e humilhações; mas a Providência
ordenou o contrário. Estando entre franceses, Inácio não
receia ser reconhecido.
- Donde vens? -lhe pergunta o general.
- Da Terra Santa.
- Aonde vais?
- A Génova, embarcar para Espanha.
- Donde és?
- Da Província de Biscaia, em Espanha.
- Pois bem, meu amigo, serás bem tratado no campo, porque eu
sou Biscainho de origem e quero proteger um compatriota.
Inácio recebeu, com efeito, cuidados e esmolas no campo
francês; descansou ali alguns dias das suas grandes fadigas e
dirigiu-se em seguida a Génova, onde foi reconhecido por D.
Rodrigo de Porteado, general das galeras de Espanha, que o
vira na corte dos reis católicos e que era também da
província de Biscaia. D. Rodrigo fez-lhe tomar passagem num
navio que se fazia à vela para Espanha, e que, apesar da
perseguição dos piratas genoveses e das galeras de André
Dória ao serviço da França, chegou poucos dias depois, sem
incidente, às águas de Barcelona.
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