III. NOVAS CONTRADIÇÕES

Um fidalgo, de porte elegante e muito bem vestido, passeava um dia dum lado para outro na colegiada de Santa Justa, e parecia esperar alguém com certa impaciência. Um homem saiu da igreja, estendeu a mão a alguns fiéis que ali entravam, recebeu maravedis, fez o sinal da cruz e continuou o seu caminho, orando. O fidalgo acabou o passeio diante da fachada da colegial e seguiu após o mendigo. Chegado diante duma pobre casa, cuja aparência denunciava a miséria dos que a habitavam, o mendigo entrou; o fidalgo seguiu-o de perto e esteve em observação na rua estreita e suja onde era situada esta casa. Esperou bastante tempo. Enfim o mendigo tornou a aparecer; desta vez o fidalgo não o seguiu; deixou-o afastar-se e entrou por sua vez na casa. Subiu até ao último andar, abriu uma porta fechada com uma simples aldrava, e achou-se em face duma mulher a quem a doença tinha pregada no leito:

- Minha boa senhora, - lhe disse ele - desejava saber o nome do homem que acaba de sair de sua casa.

- Ignoro-o, senhor.

- Pois não o conhece?

- Não, senhor; não conheço senão a sua caridade e a sua santidade. Ele soube que grandes infortúnios me reduziram à situação em que V. Ex.a me vê, e teve a bondade de vir ver-me, trazer-me socorros e dar-me consolações. Não é um homem, é um Santo, é um anjo! Não posso dizer mais nada; não sei o seu nome de família; sei apenas que se chama Ínigo.

- Muito bem, minha boa senhora, quando ele voltar, faça favor de entregar-lhe o meu nome e o da rua onde moro, que aqui deixo, e dizer-lhe que conte comigo para acudir às necessidades de todos os seus pobres.

Dois dias depois, o mendigo foi visitar a pobre doente

- Senhor, - lhe disse ela - um fidalgo veio anteontem e pediu-me que lhe entregasse este papel e lhe dissesse que ele lhe daria tantas esmolas quantas o senhor quisesse para os seus pobres.

O mendigo pegou no papel e leu: " D. Martinho de Saenz, de Azpeitia..."

- Minha boa irmã, - disse ele à doente - a Providência encarregar-se-á de a socorrer doravante, porque nada mais posso fazer em seu favor.

Inácio de Loiola acabava de ler o nome dum dos seus mais próximos parentes do lado materno, via-se reconhecido e não queria expor-se a encontrar D. Martinho que, tendo ouvido falar dele e da sua santidade, quisera vê-lo, reconhecera-o e havia-o esperado à saída da Igreja, como vimos. D. Martinho respeitava o segredo de Inácio e não queria dar a entender que o descobrira, mas desejava fazer-lhe saber que Inácio podia contar com um amigo dedicado, e que, se quisesse reconhecer um parente, que agora se encontrava em Alcalá, podia estar certo de ser recebido de braços abertos. O nosso Santo viu grandes inconvenientes numa aproximação que poderia revelar nele sentimentos humanos, e recusou-a.

Alguns meses depois, Inácio não vivia no hospital; distante, como estava, obrigava-o a perder muito tempo. O Santo alojou-se na cidade em casa dum impressor, Estêvão de Eguia, cujo irmão, Diogo, era seu amigo e o ajudava nas suas boas obras com um zelo e uma generosidade que lhe mereceram mais tarde a graça de ser chamado à santa Companhia de Jesus.

Tendo Inácio um dia necessidade duma certa quantia para a obra de caridade, pediu-a ao seu amigo.

- É impossível agora, sr. Ínigo, - lhe respondeu Diogo - porque estou sem dinheiro, mas se quer roupas brancas ou de cor para os seus pobres, pegue no que encontrar.

E ao mesmo tempo Diogo abria os seus armários ao nosso Santo. Inácio pegou logo em cobertas, lençóis, roupas e até velas, meteu tudo num pano, pôs este pesado fardo aos ombros, foi vender uma parte da sua carga em proveito dos seus pobres e distribuiu-lhes o resto.

Entretanto Calisto, a quem um negócio levara a Segóvia, caiu ali gravemente doente; e Inácio, sabendo esta noticia, partiu imediatamente para lhe prodigalizar os cuidados e consolações da sua terna caridade; apenas o discípulo se restabeleceu, voltou a Alcalá.

Poucos dias depois do seu regresso, a 19 de Abril de 1527 [32], de madrugada, alguns aguazis apresentaram-se-lhe em casa e apoderaram-se dele:

- Mandaram-nos aqui, - lhe disse aquele que os comandava - a prendê-lo; aqui está a ordem do substituto da Inquisição.

Inácio de Loiola não se informou do crime de que o acusavam, não opôs resistência e deixou-se levar como um malfeitor. No caminho que ele percorria, os agentes fizeram-no parar durante alguns instantes, porque o filho do duque de Gandia passava naquele momento, rodeado de brilhante cortejo. Tem dezessete anos e chama-se D. Francisco de Bórgia; o respeito devido à sua pessoa exige que todos parem quando ele passa. O nosso prisioneiro descobre-se respeitosamente diante dessa criança... e essa criança, depois homem e vice-rei, prostra-se aos seus pés e não tem outra vontade senão a sua.

Soube-se logo a prisão do apóstolo de Alcalá. Todos os seus discípulos e admiradores correm em multidão a vê-lo e ouvi-lo, e voltam profundamente comovidos da sua alegre resignação, do seu ardente amor de Deus, da sua doce caridade para com aqueles a quem devia o seu cativeiro

- Amar a Deus ! - dizia ele sem cessar - amar a Deus é a única felicidade desta vida! Sofrer por Ele é o maior testemunho do nosso amor; sofrer pela sua glória é a verdadeira alegria, a mais insigne felicidade!

D. Jorge Navera, primeiro professor de Escritura Sagrada na Universidade, vinha freqüentemente ver o nosso Santo à prisão para o ouvir falar de Deus. Um dia esqueceu-se e faltou à hora da sua aula. Quando se apercebeu do tempo que tinha decorrido, dirigiu-se apressadamente à aula, e, chegando, disse aos seus alunos, reunidos:

- Demorei-me, mas venho de ver Paulo entre ferros!

E falou-lhes da admiração que lhe inspirava tão eminente santidade, de maneira a fazer-lhes partilhar aquele sentimento.

Algumas pessoas de distinção advertiram Inácio que se estava fazendo um novo inquérito sobre a sua doutrina e as suas obras, que ele fora caluniado, que era conveniente que aquele negócio fosse abafado; e ofereceram-se-lhe para empregar os necessários meios para isso. Entre essas pessoas, D. Teresa Henriques de Mercada [33] e D. Leonor de Mascarenhas, dama da imperatriz, e depois governante de Filipe II, eram as mais zelosas

- A minha causa é a de Deus, - lhes respondeu - e Ele a defenderá; entreguei-a nas suas mãos. Perdoem-me se não aceito o oferecimento que me fazem.

Mas o substituto da Inquisição, D. Rodrigues de Figueiroa, acompanhado de um escrivão, veio ver o nosso Santo, e, depois de algumas perguntas, disse-lhe:

- O senhor observa o sabbat?

- Sem dúvida; - respondeu ele - mas o sábado que eu observo é em honra de Nossa Senhora. Demais, ignoro completamente os usos e costumes hebraicos, porque não há judeus no pais onde eu nasci.

D. Rodrigues acrescentou:

- Tomei novas e sérias informações a seu respeito, como o senhor deve saber, e todas elas lhe são favoráveis; mas há um ponto que eu desejo esclarecer, e é da sua própria boca que quero saber a verdade.

- Queira interrogar-me.

- Conhece duas mulheres viúvas, mãe e filha, chamadas Maria del Vado e Luísa Velasques ?

- Sim, senhor.

- Essas mulheres assistiam às suas conferências espirituais?

- Sim, senhor.

- Foi o senhor que as converteu?

- A graça tocou-as, quando ouviam as minhas explicações sobre as verdades cristãs.

- E foi o senhor que as aconselhou a vestirem-se de peregrinas e irem fazer peregrinações a lugares muito distantes, a pé e pedindo esmola, em expiação dos seus pecados?

- Oh! não, senhor. Opus-me formalmente a isso, quando elas me consultaram e expuseram o seu projecto. Esforcei-me por mostrar-lhes os perigos a que podia expô-las a beleza de D. Luísa, e disse-lhes que os hospitais de Alcalá ofereciam um exercício que devia bastar ao seu zelo e à sua caridade, e que era isso o que Deus delas exigia. Pareceu-me que cederam; mais tarde, porém, nos primeiros dias da Quaresma, soube que haviam partido sem sequer terem consultado D. Pedro Cirvelho, que as dirigia.

O substituto da Inquisição sorriu, pôs a mão no ombro de Inácio e disse-lhe:

-Muito bem ! tenha coragem, senhor, porque a causa única da sua prisão é esta: acusaram-no de ter aconselhado a essas senhoras a extravagância que elas praticaram. Todavia, confesso que seria preferível que os seus discursos não tivessem o cunho de novidade que o senhor lhes dá.

- Senhor vigário geral, - disse Inácio coze uma santa dignidade -nunca pensei que falar de Jesus Cristo a cristãos pudesse ser uma novidade!

Há dezessete dias que o nosso herói estava na prisão, era a primeira vez que ouvia falar do motivo que ali o levara. Tendo sabido do seu cativeiro o seu discípulo Calisto, então em Segóvia, veio partilhá-lo com ele.

Inácio enviou-o ao substituto do Inquisidor para ser interrogado acerca do negócio das peregrinas; mas D. Rodrigues de Figueiroa não tinha necessidade daquele testemunho; esperava apenas o tempo necessário para fazer conhecer os factos ao tribunal, a fim de poder mandar pôr em liberdade o santo apóstolo. Ainda não estavam terminadas essas formalidades, quando, a 18 de Maio, D. Maria del Vado e D. Luísa Velasques apareceram de novo em Alcalá, depois de terem ido em peregrinação a Nossa Senhora de Guadalupe e ao Santo Sudário de Jaen. O seu regresso demorou o negócio, rasas contribuiu para o esclarecer. Interrogaram-nas e elas não hesitaram em certificar que tinham procedido contra o conselho do nosso Santo e haviam partido sem ele saber. Enfim, no 1 de Junho, Inácio de Loiola viu entrar-lhe na prisão D. Rodrigues de Figueiroa, que lhe vinha ler uma sentença assim concebida:

1º. Está reconhecida a inocência de Ínigo e dos seus companheiros;

2º. Deverão no futuro, e dentro do prazo de dez dias, começar a usar o trajo dos estudantes;

3º. Sendo ainda noviços nas Sagradas Escrituras, abster-se-ão de ensinar a religião ao povo, até que hajam estudado teologia durante quatro anos.

Depois desta leitura, Inácio respondeu a D. Rodrigues

- Quando V.Ex.a nos ordenou que nos vestíssemos de modo diferente do que andávamos, e que não usássemos todos a mesma cor, apressamo-nos a obedecer; hoje exige que nos vistamos como os estudantes, e não o podemos fazer, porque nada possuímos e estamos resolvidos a nada dever senão à caridade pública.

- Muito bem,-disse o vigário geral-arranjar-se-á tudo.

A sua maneira de arranjar foi pedir a um fidalgo, Luzerna de nome, cuja vida era inteiramente consagrada às obras de caridade, que acompanhasse Inácio pelas principais ruas da cidade e pedisse esmola para o vestir como se lhe exigia.

O heróico guerreiro, o elegante cortesão, o ilustre fidalgo que tinha calcado aos pés todas as grandezas terrestres e abraçado a pobreza evangélica, quando pedia esmola para si ou para os pobres operava por sua própria vontade. Mas este mesmo fidalgo, submetendo-se a caminhar após aquele que pede para ele publicamente, sofre voluntariamente a humilhação mais completa que pode ser infligida a uma natureza como a sua ! É a mais sublime virtude, é a humilhação levada até á santa loucura da cruz !

Foi o que fez Inácio de Loiola.

Durante este humilhante peditório passando Inácio e Luzena diante da casa de Lopes de Mendonça, viram este último a jogar a péla, no seu jardim, com alguns de seus amigos.

Luzena aproximou-se e pediu-lhe esmola para vestir o nosso Santo. Lopes lançou-lhe um olhar terrível, porque o santo apóstolo permitira-se dar-lhe alguns conselhos, que ele lhe não perdoara:

- Como é que um homem de honra, um fidalgo, -disse ele a Luzena-pode pedir para tal hipócrita? Morra eu queimado se esse miserável não merece ser condenado.

Deus ouviu esta imprecação. Os amigos de Lopes ficaram perturbados, como se tivessem assistido a um grande crime. A noticia circulou imediatamente de boca em boca, percorreu em poucos instantes toda a vila e produziu em toda a parte o efeito dum escândalo público.

Algumas horas depois, um arauto de armas percorria as ruas de Alcalá anunciando o nascimento de um infante (Filipe II). À noite, Lopes de Mendonça subiu à plataforma da sua casa, acompanhado de um pajem e de um escravo, para dar tiros de arcabuz, em sinal de regozijo... Uma centelha, lançada pela justiça divina, caiu num vaso que continha uma grande quantidade pólvora; ouviu-se uma espantosa explosão. Lopes é o único ferido; incendeiam-se-lhe as roupas, o desgraçado solta gritos dilacerantes, vai precipitar-se na cisterna da casa e expira antes que cheguem os socorros da Igreja!...

Não podendo Inácio de Loiola exercer mais o seu zelo apostólico na cidade de Alcalá, consultou a vontade divina para saber o partido que devia tomar, e alguns dias depois partia para Valhadolid, onde se encontrava D. Alonzo da Fonseca, Arcebispo de Toledo, a quem desejava consultar.