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A Companhia de Jesus, por toda a parte tão florescente e tão
amada, tão procurada e tão admirada, estava longe de obter em
França o êxito desejado. O Parlamento temia-a e fazia com que
o rei a temesse; a Universidade não a queria. O espírito de
independência destes dois corpos para com Roma explica a sua
animadversão para com uma Ordem completamente dedicada à
Santa Sé.
Uma Ordem religiosa só se podia estabelecer em França com
autorização do Parlamento. Tendo esta autorização sido
recusada à Companhia de Jesus, Inácio de Loiola tinha
encontrado apenas um meio para ali introduzir o gérmen dum
colégio: haura enviado a Paris, para trabalhar na
santificação dos estudantes, alguns professores espanhóis,
membros da Companhia. No número destes professores,
encontramos Emiliano de Loiola, sobrinho. do nosso Santo, que
lhe tinha dado a consolação de fazer os Exercícios
Espirituais sob a sua direção com o maior fruto.
Guilherme Duprat, Bispo de Clermont, e amigo de Santo Inácio,
esforçava-se em vão para obter o estabelecimento dum colégio.
Queria fundá-lo a expensas suas e oferecia para este fim a
sua casa, chamada então a casa de Clermont, cujo edifício é
hoje ocupado pelo colégio Luís o Grande; mas os jesuítas não
podiam tornar-se possuidores dele senão por cartas de
registo, cuja concessão foi recusada. Em Paris renovavam-se
mil acusações que a calúnia se esforçava por espalhar;
temiam-se, como um flagelo, estes santos apóstolos, que
levavam a luz ao meio das mais espessas trevas e reformavam
todos os lugares por onde passavam.
Os amigos do santo fundador convidaram-no a desmentir
categòricamente os caluniadores, como já tinha feito noutras
circunstâncias; mas ele contentou-se com responder:
- Jesus Cristo, quando abandonou a terra, disse aos seus
discípulos: Dou-vos a minha paz, deixo-vos a minha paz.
Tomemos nesta ocasião como dirigidas a nós estas palavras.
Algumas vezes é mais conveniente calar do que falar.
Esperemos que a verdade brilhe e se defenda a si mesma.
É, que a Companhia, apesar de jovem, já não estava no seu
começo. Tinha feito obras admiráveis, tinha conquistado a
estima e veneração do mundo; bastava-lhe seguir o seu caminho
sem se inquietar com os obstáculos que lhe levantava de longe
a longe o inimigo de todo o bem.
Os jesuítas que o nosso Santo havia enviado a Paris, ocuparam
o colégios dos Lombardos, esperando que a Providência lhes
permitisse formar um estabelecimento, e oravam com ardor,
cheios de confiança no futuro, quando uma circunstância
providencial veio secundar os seus desejos.
O rei de França, Henrique II, enviou o Cardeal Guise a Roma,
com a missão de convidar o Papa e o duque de Ferrara a
entrarem numa liga contra o imperador da Alemanha. Inácio
vê-o, explica-lhe o seu Instituto, diz-lhe que o seu fim
principal é combater a heresia e procurar a glória de Deus
pela santificação das almas. Acrescenta que um dos meios mais
eficazes para chegar a este duplo fim é a educação cristã da
juventude e que para isso são necessários colégios cristãos.
O Cardeal simpatiza com a idéia do santo fundador, e obtém,
apenas regressa a Paris, cartas patentes do rei autorizando o
estabelecimento da Companhia de Jesus em França. Mas estas
cartas deviam ser sancionadas pelo Parlamento e as
dificuldades renovaram-se. Não havia professo algum entre os
jesuítas de Paris; Inácio envia a fórmula ao Padre João
Baptista Viole e ordena-lhe que faça os seus votos nas mãos
do Bispo de Clermont; o Bispo, doente naquele momento, pede
ao abade de Santa Genoveva que os receba. Não podendo ainda
Guilherme Duprat presentear com a sua casa a Companhia, e não
querendo deixar um professo no colégio dos Lombardos,
empresta a casa aos jesuítas e instala-os ali.
Assim começou o primeiro colégio da Companhia de Jesus na
província de França; mas não pôde desenvolver-se tão
rapidamente como noutras partes por causa da oposição
persistente da Universidade e do Parlamento, oposição que não
cedeu, alguns anos mais tarde, senão perante a autoridade da
vontade real.
Entretanto Fernando, rei dos Romanos, renovava as suas
solicitações junto de Inácio de Loiola, a fim de obter o
Padre Canísio para o bispado de Viena. O santo fundador,
inabalável na sua vontade de afastar todas as dignidades da
sua querida Companhia, pediu ao Papa que não cedesse, se não
queria a destruição duma Ordem que tinha a sua força e vida
na humildade, e que não decidisse nada sem lho dizer; o Papa
prometeu-lho. O embaixador de Fernando, desanimado com
respeito a Inácio a quem não pode vencer, suplica ao Papa que
ordene ao Padre Canísio que aceite o bispado de Viena, apesar
da oposição do santo fundador.
- Oh ! isso nunca! - respondeu Júlio III - nós temos
necessidade dos jesuítas!
Quando o embaixador se retirou, o Papa, dirigindo-se ao
Cardeal Santa Cruz, disse-lhe:
- Uma Ordem tão útil à Igreja seria imediatamente destruída
se nela entrassem as dignidades, porque estas abririam a
porta à ambição; e a Companhia, perdendo então 0 seu espírito
próprio, não seria mais a Companhia.
D. Fernando foi ainda desta vez obrigado a ceder diante da
inflexibilidade de Inácio. O Cardeal Carpi dizia, a propósito
desta tão enérgica firmeza do nosso Santo: - "Quando o prego
está cravado, nada o pode arrancar"! Inácio também não cedeu
quando o Papa desejou elevar Francisco de Bórgia à dignidade
de Cardeal. O santo jesuíta, que já empregara todos os
esforços para fugir a esta honra, soube que continuavam a
querer-lha conferir, pediu para se afastar de Roma, e partiu
furtivamente, deixando o seu Padre Inácio, repelir o chapéu,
que contra sua vontade, lhe queriam dar.
O mau estado de saúde de Inácio de Loiola e os muitos e
importantes negócios da Companhia não impediam de se ocupar
duma multidão de . coisas relativas ao interior dos colégios,
que havia criado em Roma, ou do noviciado, que vigiava
sempre. O seu admirável gênio chegava para tudo e nunca
encontrava nada pequeno para ocupar a sua atenção.
Estava-se construindo, na casa que se havia aumentado, um
muro de vedação na via pública, e o nosso Santo ordena que
fossem trabalhar nele os noviços. Estes jovens, alguns dos
quais pertenciam às mais nobres famílias, eram objecto de
edificação para a cidade. Vinham admirá-los neste trabalho
tão humilde, às horas em que se sabia que a ele se entregavam
sob a vigilância dos Padres, e todos ficavam assombrados da
doçura dos seus movimentos, da modéstia de seu porte, da
expressão serena dos seus rostos.
Um dia o Padre Geral veio ver os trabalhos e viu um dos
jovens noviços com as costas voltadas pata o público,
trabalhando com um ar preocupado e esforçando-se por evitar
os olhares dos curiosos. A sua família era uma das principais
de Roma. Era evidente para Inácio que este noviço tinha
receio de ser reconhecido; o orgulho apoderara-se-lhe do
coração, e, porque não era combatido, ia tornar-se o mais
forte e pôr a sua vítima em oposição direta com a vontade de
Deus, apesar da sua vocação ser certa. Inácio de Loiola viu
isto tudo num relance de olhos.
Mandou chamar o Padre Bernardo Olivieri e disse-lhe,
designando aquele noviço:
- Vossa Reverência não vê que aquele jovem Irmão está
tentado? A vergonha está estampada no seu rosto e o orgulho
no seu coração. Espera que ele sucumba para o socorrer? Não
se atemoriza Vossa Reverência por deixá-lo perder por tão
fútil motivo?
- Meu Padre, - balbuciou o Padre Olivieri - Vossa Reverência
ordenou-me que empregasse . os noviços neste trabalho.
- Quando lhe dei essa ordem, - replicou o nosso Santo - não
lhe ordenei que pusesse de parte o espirito de discrição e de
caridade.
E indo em seguida para junto do noviço, sem mostrar que lhe
tinha descoberto o segredo, disse-lhe cora a mais doce
expressão de brandura:
- Como? pois também está aqui a trabalhar? É demasiado pesado
para si; entre em casa; esse rude trabalho não é para as suas
forças.
Mais tarde, esse noviço agradecia ao nosso Santo:
- Meu Padre, - lhe dizia - quanto agradeço a Vossa Reverência
ter aproveitado então a fraqueza do meu corpo para curar a da
minha alma ! Eu queria abandonar a Companhia, e é á doce
compaixão de Vossa Reverência que devo a felicidade de ter
permanecido nela.
É certo que o santo fundador não tinha sempre semelhantes
contemplações; dependia isso das almas com que tratava. Mas
quando empregava a severidade, tinha de ordinário um tacto
particular para não deixar nunca uma impressão má ou
lamentável àquele que recebia a correção. O que fazia dizer
ao Padre Millon:
"O nosso Padre Inácio tem o talento de curar as feridas, que
faz, de modo a não deixar cicatrizes".
Atravessando um dia o nosso Santo um corredor, viu dois
Irmãos coadjutores conversando despreocupadamente, parecendo
que não tinham nada que fazer. Encarou-os, mostrou-lhes com o
dedo um-montão de pedras e ordenou-lhes que as içassem ao
tecto. O outro dia surpreendeu-os igualmente desocupados e
entretendo-se com coisas fúteis; encarou-os como da primeira
vez, mostrou-lhes as pedras que estavam no tecto e
ordenou-lhes que as fossem buscar e as pusessem no corredor.
Os Irmãos compreenderam então a lição e não se entregaram
mais à ociosidade.
Para aqueles que trabalhavam corajosamente em aperfeiçoar-se,
o bom Padre Geral tinha palavras que os faziam redobrar de
ardor. e pareciam dar-lhe asas.
Um Irmão coadjutor, a quem a natureza violenta arrebatava
algumas vezes, era apenas ocupado em vigiar e conter a
expressão dos seus pensamentos
- Coragem, Irmão, - dizia-lhe freqüentemente o nosso Santo-,
continue a vigiar e a vencer-se e adquirirá mais merecimentos
do que aqueles cuja doçura natural não exige combate.
Outro Irmão, dum natural igualmente impetuoso, afastava-se
dos outros o mais possível para evitar as ocasiões de
impaciência. Inácio, a quem nada escapava, vê-o um dia,
durante o recreio, no isolamento que ele se criara.
Aproxima-se dele, e com a sua voz o mais ternamente paternal,
pergunta-lhe porque está só.
- Meu reverendo Padre, sou tão arrebatado que tenho receio de
pecar por impaciência, se estiver com os meus irmãos.
- Engana-se procedendo assim, meu irmão, - disse-lhe o Santo.
Não é pela fuga que se triunfa do inimigo, é pelo combate. A
solidão não destrói a impaciência, apenas a dissimula. Alguns
momentos de império sobre si mesmo, no meio das ocasiões que
o atemorizam, fará com que o meu irmão avance mais do que com
um ano de solidão.
E o bom Irmão, julgando ouvir a doce voz de Nosso Senhor,
apressou-se a seguir o conselho do seu Padre Geral, e
reconheceu daí a pouco toda a utilidade dele.
Inácio de Loiola dizia moitas vezes que, no caminho da
perfeição, era necessário haver toda a cautela em não pôr a
oração no lugar da virtude. Por isso, instando com ele um dia
o Padre Nadal para que prolongasse o tempo prescrito aos
religiosos para a oração, respondeu:
- Padre Jerónimo, as longas meditações são necessárias para
aprender a dominar as paixões; mas quando, pela oração e pela
reflexão, se obteve este resultado, unimo-nos mais facilmente
a Deus num quarto de hora de recolhimento do que um homem não
mortificado durante algumas horas de oração. O maior
obstáculo para a união da alma com Deus é o apego a si mesma;
é isso o que lhe impede o vôo.
Explicou-se mais brevemente, mas não menos inteligivelmente
na seguinte ocasião.
O Irmão Lourenço Tristano era exemplar a todos os respeitos;
contudo uma vez expôs-se a receber uma liçãozinha que nunca
mais esqueceu. Trabalhava ativamente em reparar o muro de um
terraço; Inácio apresenta-se, observa-o com atenção e prazer,
e, no mesmo momento, um movimento do Irmão faz-lhe cair uma
maçã do bolso. O bom Padre Geral, viu, mas fingiu que não deu
por isso. Lourenço, muito embaraçado, parece ignorar a
dificuldade da posição e evita voltar-se para não ser forçado
a ver a comprometedora maçã. Inácio, a quem nada escapava,
aproveita o momento em que o Irmão se aproxima do corpo do
delito, e, com a ponta da bengala, faz rolar a maçã sob os
olhos do delinqüente. O Irmão cora, não ousa olhar para o bom
Padre Geral e muito menos pronunciar uma só palavra e
continua tristemente a sua tarefa. Santo Inácio renova
algumas vezes a sua pequena manobra s retira-se certo de que
foi compreendido.
Um irmão dizia a outro:
- Estou muito persuadido de que não há em todo 0 mundo tão
grande Santo como o nosso Padre Inácio.
No mesmo instante, esse santo Padre Inácio, que aparecia
muitas vezes à hora e em sítio onde menos o esperavam,
exclama com essa voz possante que fazia vibrar tudo em redor
dele, quando queria aterrorizar um culpado:
- Desde quando lhe foi permitido aviltar a santidade a ponto
de a atribuir a um pecador como eu? Essas palavras equivalem
a uma blasfêmia! Há-de expiá-las, comendo durante quinze dias
nos lugares mais vis da casa.
O bom Irmão submeteu-se humildemente a esta estranha
penitência, achando muito simples a santa indignação do seu
venerável Pai.
Francisco Cartero, jovem noviço, dum caráter muito alegre,
ria francamente e a propósito de tudo. A sua fisionomia
aberta, a sua aparência sempre satisfeita, davam-lhe o ar de
rir interiormente das suas próprias idéias. Mas esta franca
alegria não prejudicava nada o seu fervor e a regularidade da
sua vida religiosa. Inácio encontra-o um dia, sempre
sorrindo, e diz-lhe
- Francisco, diz-se que o Irmão está sempre a rir?
Francisco baixa os olhos e espera uma severa repreensão.
- Está bem, - acrescentou o Santo-, ria e regozije-se no
Senhor, meu filho; um bom religioso não tem razões nenhumas
para estar triste, e tem muitas para estar alegre e contente.
Seja alegre, e sê-lo-á sempre se for humilde e obediente.
Recomendo-lhe sobretudo estes dois pontos, porque conheço cm
si faculdades que, no futuro, o poderão tornar apto para
negócios importantes; se então lhe derem esses empregos,
afligir-se-á se for humilde. Julgo reconhecer que os ares de
Roma lhe não convêm; talvez deseje ir para Flandres, quando a
minha intenção é enviá-lo à Sicília. Veja, pois, que, se
tiver apego aos lugares e aos empregos, se expõe à tristeza e
ao pesar, porque a obediência o porá muitas vezes em oposição
com os seus gostos e desejos. A fim de ser sempre alegre,
como hoje está, seja sempre humilde e sempre obediente.
Francisco, perfeitamente tranqüilo, e contentíssimo com a
bondade paternal com que o seu venerável Geral lhe falara,
mostrou-se mais satisfeito e mais alegre que nunca quando o
deixou.
O Irmão João Baptista, cozinheiro da casa professa,
encontrava assunto de meditação nas coisas mais
insignificantes do seu emprego; era uma alma simples e duma
grande virtude. O fogo da cozinha lembrava-lhe muitas vezes
as chamas eternas ou as do purgatório e inspirava-lhe um
grande horror ao pecado; recordava-se então das faltas da sua
juventude e queria sofrer mil mortes para as expiar. Um dia o
bom Irmão, dominado por essa viva contração, e julgando
talvez evitar assim o fogo do purgatório, meteu a mão no fogo
e deixou-a queimar. O odor que dela exala espalha-se
imediatamente na casa; o Padre ministro corre, informa-se, e
o pobre Irmão, a quem a dor arrancava abundantes lágrimas,
mostrava-lhe a mão e lança-se-lhe aos pés implorando perdão,
porque compreende a sua temeridade. O Padre ministro adverte
o Padre Geral, e diz-lhe que, na sua opinião, este imprudente
deve ser despedido da casa; os outros Padres são do mesmo
parecer. Inácio julga o culpado de modo diferente:
- Este bom Irmão, - diz ele - merece mais compaixão. Sejamos
indulgentes, porque a sua falta foi cometida por
simplicidade.
O nosso Santo põe-se em oração, pede toda a noite a cura do
bom Irmão, e no dia seguinte o Irmão João Baptista, que tinha
dormido muito bem enquanto o seu Padre Geral velava por ele,
encontra-se perfeitamente curado: a sua mão não tinha o menor
sinal da horrível queimadura da véspera.
Compreende-se a veneração que o santo fundador inspirava a
todos os seus religiosos, quando se vê que Deus parecia
comprazer-se em justificá-la. Os bons Padres recolhiam tudo o
que podiam apanhar ao seu santo Geral. Dividiam os cabelos:
que cortava, os restos dos papéis nos quais tinha escrito uma
ordem já inútil por ter sido executada, tudo o que lhe
pertencia e lhe dizia respeito. Inácio tinha conservado o
saca que usava em Manresa; mas não o pôde guardar intacto,
porque lho descobriram e não tiveram escrúpulo de tirar-lhe
alguns bocados; felizmente para os piedosos culpados, o Santo
ignorou-os sempre.
O Padre Nadal foi menos feliz. Santo Inácio sofria muito dum
dente e resolveu-se a mandá-lo arrancar. Nadal, presente á
operação, apoderou-se furtivamente do dente e queria
conservá-lo como uma relíquia; mas o nosso Santo, que tinha
excelente ouvido, escutou algumas palavras, suficientes para
traírem o segredo; censura severamente o seu querido Padre
Nadal, a quem amava com terna afeição, obriga-o a apresentar
o corpo de delito e fá-lo desaparecer para sempre.
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