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O nosso Santo, sempre pobre e peregrino, partiu de Vicência
para Roma, como costumava viajar havia desasseia anos: a pé,
de bordão na mão orando e pedindo esmola, como os seus
companheiros. Todas as manhãs, os Padres Fabro e Laynez
ofereciam o Santo Sacrifício na mais próxima igreja do lugar,
onde tinham passado a noite, e, todas as manhãs, o santo
fundador comungava à missa de um e assistia à do outro.
Saindo de Pádua, encontraram um aldeão que conduzia o gado ao
pasto, o qual, olhando para Inácio, se pôs a rir e a motejar
dele. Laynez convidou o nosso Santo a apressar o passo para
fugir ao malcriado aldeão; Inácio respondeu-lhe sem se
perturbar:
- Para que havemos dê privar este jovem da recreação que a
minha presença lhe fornece?
Esta viagem de tão alta importância para o presente e para o
futuro da santa Companhia de Jesus, estava quase terminada,
faltava apenas aos nossos peregrinos percorrerem meia légua
para chegarem a Roma, quando o nosso Santo, atravessando a
vila da Storta, se sentiu interiormente impelido a entrar na
igreja dali, a fim de recomendar mais uma vez a Deus, com
todo o ardor da sua alma, a completa realização da obra de
que Ele tragara o plano e cuja difícil execução lhe havia
confiado.
Entrou naquela igreja, ajoelhou e orou... A sua, oração
deteve-se-lhe no coração e nos lábios. Ficou em êxtase e o
rosto parecia reflectir um raio divino; estava com o céu...
Quando voltou a si, saiu da igreja, e os Padres Fabro e
Laynez ficaram impressionados com o seu olhar inspirado, com
os raios de felicidade que brilhavam no seu belo e nobre
rosto, com a expressão celeste de todos os seus trados
- Meus amigos, meus irmãos, - disse-lhes - ignoro 0 que nos
vai suceder em Roma; talvez ali sejamos perseguidos r
maltratados; mas o que é certo, do que eu estou seguro, é cie
que Nosso Senhor nos será favorável.
Contou então o que acabava de ver, o que acabava de ouvir,
cujas minúcias, consignadas nas memórias do Padre Laynez, nos
foram fielmente conservadas.
Como dissemos, Inácio havia entrado na igreja da Storta hora
suplicar a Nosso Senhor que abençoasse os seus trabalhos em
Roma. Pediu-lhe com lágrimas que fosse propicio à pequena
Companhia que Ele lhe tinha encarregado de formar e
disciplinar para o seu servido; essa Companhia que não devia
ter outro chefe senão Jesus Cristo e não reconhecer outro
estandarte senão a sua cruz; essa Companhia destinada a
tornar-se um exército formidável contra o inferno e da qual
cada soldado devia ser um herói [48].
Enquanto Santo Inácio assim orava, com todo o fervor da sua
alma, uma luz brilhante o inundou de repente, deixando-lhe
ver Deus Pai e Nosso Senhor Jesus Cristo levando a cruz. O
Eterno Padre apresenta Inácio e os seus discípulos ao seu
divino Filho, coloca-os sob a sua mão protetora e
omnipotente, e, designando o santo fundador, diz-lhe: "Quero
que ele seja teu servo". Nosso Senhor acolheu a Companhia
nascente com expressão de inefável amor e disse-lhe: " Ser-
vos-ei favorável em Roma".
Lançando em seguida sobre Inácio de Loiola um olhar ruja
doçura infinita encheu a sua alma de indizível consolação,
dirigiu-Ihe; estas palavras: "Quero que me sirvas". Naquele
momento, Santo Inácio viu-se associado, por Deus Pai, a Nosso
Senhor Jesus Cristo, e não morreu de felicidade.
Falando desta associação, disse ao Padre Laynez, na sua
língua materna: "Pôs-me com seu Filho". O Padre Ribadeneira,
que colheu estas informações do Padre Laynez, acrescenta que,
quando se pediam informações a Santo Inácio acerca deste
assunto; ele respondia sempre:
- Interroguem Diogo Laynez, que conhece o facto narrei-lho na
ocasião, tal como me sucedeu, e o que ele disser podem tê-lo
por certo, porque eu só lhe disse a verdade.
Inácio de Loiola chegou à Cidade Eterna no fim de Novembro de
1537 [49] e pediu alojamento, com os dois Padres que o
acompanhavam, numa pequena casa, no meio de um vinhedo
situado perto do convento dos Mínimos da Santíssima Trindade
do Monte, pertencente a Quirino Garzónio.
D. Pedro Ortiz obteve logo para o nosso Santo uma audiência
do Sumo Pontífice, que acolheu com alegria a proposta destes
novos apóstolos, cujo zelo e ciência haviam adquirido tanta
reputação, e quis pô-los em atividade sem demora. Confiou a
cadeira de escolástica ao Padre Laynez e a da Escritura
Sagrada ao Padre Fabro, ambas no Colégio da Sapiência; quanto
a Inácio de Loiola, Paulo III encarregou-o do ministério
apostólico na cidade de Roma, cujos costumes tinham grande
necessidade de reforma.
Deus abençoou abundantemente o zelo de todos: Laynez e Fabro
ensinavam -com maravilhoso êxito e o nosso Santo dava os
Exercícios Espirituais publicamente ao povo, e aos principais
personagens em particular, sempre com os mesmos resultados
para glória de Deus e bem das almas. O Cardeal Gaspar
Contarini escreveu por seu próprio punho, depois deste
retiro, o livro do Exercícios Espirituais, e, admirando a
grande santidade do seu autor, confiara-lhe a direção da sua
alma e dizia:
- Encontrei, enfim, um diretor como há muito tempo desejava!
Recordam-se que os discípulos de Inácio de Loiola, na sua
viagem a Roma, no fim da Quaresma de 1537, tinham recebido de
alguns espanhóis esmolas consideráveis, a maior parte das
quais eram destinadas a facilitar a sua viagem à Palestina?
Tendo sido abandonado este projecto pela força das
circunstâncias, e tendo-se a pequena Companhia, desligado
deste voto, posto à disposição do Papa, que aceitara os seus
serviços, Inácio apressou-se a entregar a todos, mesmo ao
Sumo Pontífice, a quantia que os seus discípulos tinham
recebido e que ficara intacta. Chegou mesmo a enviar para
Espanha, Valência, quatro escudos de ouro, que um habitante
daquela cidade lhes havia dado.
D. Pedro Ortiz, enviado de Carlos V junto da Santa Sé, tinha,
como se sabe, ensinado teologia com brilhantismo na
Universidade de Paris, e fora, naquela cidade, um dos mais
ardentes adversários do nosso Santo. Mais tarde,
compreendendo o heroísmo das suas virtudes, mostrou-se um dos
mais simpáticos à causa de Inácio de Loiola, e vimos o
cuidado alue mostrou em apresentá-lo ao Papa Paulo III.
Ortiz, vendo os prodigiosos frutos que alguns sábios
importantes personagens tiravam dos Exercícios Espirituais,
pediu ao nosso Santo que lhos desse, e o acompanhasse para
isso ao mosteiro do Monte Cassino, onde podia fazer este
retiro com maior liberdade. O nosso Santo anuiu aos seus
desejos.
Sendo ainda pouco conhecido o livro da Imitação de Cristo,
nosso Santo, que se deliciava nele, levou alguns exemplares
consigo e deu um aos religiosos daquela abadia.
Durante a sua permanência no Monte Cassino, o santo I
fundador da Companhia de Jesus soube que um dos seus
discípulos, o Padre Diogo de Hoces, estava doente. Deus fez-
lhe conhecer que esta doença era mortal, e pouco depois,
quando orava por esse querido doente, viu a sua alma subir ao
céu, rodeada de glória e levada pelos anjos. A impressão foi
tão doce e tão consoladora que não podia falar nisso sem
verter lágrimas de alegria.
Outro dia, assistia Inácio à santa missa e no momento em que
o Padre pronunciava estas palavras do Confiteor: Et omnibus
sanctis, viu uma multidão de bem-aventurados, no meio dos
quais distinguiu o Padre Hoces, que lhe apareceu mais
brilhante que os outros. Narrando esta visão aos seus filhos
espirituais, o Santo acrescentava:
- Deus mostrou-mo mais brilhante que os outros não para que
eu pense que ele era mais santo, mas para me dar a. certeza
da sua felicidade.
O Padre Hoces pregava numa praça pública em Pádua e explicava
estas palavras do Evangelho: Vigiai e orai, porque não sabeis
nem o dia nem a hora. Ao terminar, assaltou-o um violento
acesso de febre: levaram-no ao hospital, e, pressentindo que
o dia e a hora haviam chegado para ele, dispôs-se para a
morte com tanta alegria que os seus amigos agradeceram a Deus
tê-los feito testemunhas de tal morte. Diogo de Hoces era
muito trigueiro e os seus traços irregulares desagradavam à
primeira vista... Apenas entregou a alma a Deus, o seu rosto
tornou-se tão branco e tão belo que o Padre Lejay que o não
tinha abandonado, não podia crer nos seus olhos e a custo o
reconhecia.
Ao sair do retiro, Pedro Ortiz apressou-se a proclamar que a
teologia que acabava de aprender no Monte Cassino em quarenta
dias, valia mil vezes mais do que a que ele tinha ensinado em
Paris durante alguns anos
- Há grande diferença - dizia ele - entre a gente estudar
para instruir os outros e estudar para se aperfeiçoara si;
estudando para os outros, procura-se ser sábio; estudando
para si, procura-se ser santo. Uma só luz na solidão vale
incomparavelmente mais que todas as ciências humanas.
Desde este momento, a Companhia de Jesus não teve amigo mais
zeloso e mais calorosamente dedicado do que Pedro Ortiz.
Voltando a Roma, Inácio encontrou um jovem espanhol,.
Francisco Estrada, que ia a Nápoles com intenção de entrar na
carreira militar, esperando encontrar nela menos decepções
que noutra qualquer. Naturalmente expansivo, abriu o coração
a Inácio de Loiola, a quem conhecia há muito tempo, e
queixou-se amargamente do mau resultado de tudo o que tinha
empreendido até então, confessando que experimentava a.
carreira das armas mais por necessidade do que por gosto e
por vocação.
- Por que se queixa do inundo, meu querido Francisco ? - lhe
disse o Santo. Se ele iludiu as suas esperanças, não deve
amá-lo, pois bem sabe que só Deus é fiel às suas promessas. O
mundo tem sempre iludido aqueles que têm tido a fraqueza de
se deixar seduzir pelo seu prestígio, e o meu amigo deve
agradecer-lhe o ter-lhe ele deixado ver tão cedo a maneira,
como trata os seus escravos. Se o mundo tivesse começado por
acariciá-lo e tratá-lo bem, talvez o meu querido Francisco só
conhecesse o seu inimigo no momento da morte. Agradeça a Deus
Nosso Senhor que assim o permitiu para o forçar a procurar um
senhor ao serviço do qual nem se perdem as fadigas nem os
trabalhos. O meu querido Francisco abandona a corte pelo
exército; sai duma cidade para percorrer outra e cruza-se na
estrada com desgraçados que fazem o inverso: abandonam o
exército para tentar fortuna na corte; saem de Nápoles, para
onde o meu amigo vai, para correr a Roma, donde o meu
Francisco sai, e tudo na esperança de melhorar de situação.
Se quer que lhe fale como amigo, dir-lhe-ei que não foi feito
para o mundo e que o mundo não se fez para si. A paz da alma
só se encontra em Deus. Por toda a parte, o meu querido
Francisco só encontra perturbação e decepções.. Creia-me,
Francisco, renuncie a Nápoles, venha a Roma comigo e
encontrará a felicidade.
Francisco não lhe resistiu. Santo Inácio deu-lhe os
Exercícios Espirituais; e, completamente transformado depois
deste retiro, só aspirou ao momento de entrar na santa
Companhia de Jesus de que se tornou um dos mais distintos
membros pelos seus trabalhos apostólicos em Itália, em
Espanha e em Portugal.
Entretanto Inácio de Loiola, sempre ocupado em constituir
regularmente a sua Companhia, julgou chegado o momento de
reunir os membros dispersos. Escreveu aos seus discípulos,
deu-lhes parte dos triunfos obtidos pelo seu ministério e
pelo dos Padres Fabro e Laynez, e ordenou-lhes que se
pusessem a caminho e viessem juntar-se-lhe em Roma por
ocasião das festas da Páscoa, a fim de resolverem acerca da
organização definitiva da Sociedade cujo desenvolvimento
Inácio tão ardentemente desejava.
Os filhos espirituais do nosso Santo acudiram todos ao
chamamento do seu muito amado pai, e, deixando no luto as
populações que acabavam de regenerar pela unção da sua
palavra, tomaram o caminho de Roma, onde Deus os chamava para
sua glória e para consolação da Igreja.
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