II. EM ALCALÁ DE HENARES

Inácio de Loiola chegou só a Alcalá num dos primeiros dias do mês de Agosto de 1526. Ao entrar na cidade, pede esmola ao primeiro viandante que encontra: é um jovem estudante de filosofia, D. Martinho Olavo, que lhe dá da melhor vontade uma moeda qualquer. Deus recebeu esta esmola pela mão de Inácio e saberá recompensar um dia aquele que a deu, chamando-o à santa Companhia, da qual o pobre mendigo será fundador.

O nosso Santo foi alojar-se no hospital de Antezuma, é, como as aulas se não abriam antes de dois meses, entregou-se completamente à santificação das almas e a cuidar dos pobres e dos doentes. Vê no hospital, onde está, um jovem que lhe respira interesse tão vivo quanto era grave a doença da sua alma. Trata-o com terna caridade, faz-se amar por ele e pergunta-lhe qual a sua família e posição.

- Sou francês, - lhe respondeu o doente - mas fui educado em Espanha e sou pajem de D. Martinho de Córdova, novo vice-rei da Navarra. Acompanhava-o ao seu governo, quando ao passar em Alcalá, tive uma pendência de honra, na qual recebi a ferida que aqui me obriga a estar.

- Tenha coragem, senhor, - lhe disse o nosso Santo. Espero que Deus, na sua misericórdia infinita, se dignará servir-se desta ferida para curar todas as chagas da sua alma.

Este voto do apóstolo mendigo foi completamente ouvido; e tendo-se João, o jovem pajem convertido, declarado seu discípulo após a cura, partilhou a sua santa vida e as suas boas obras com Calista, Artiaga e Diogo Cazeros, chegados a Alcalá havia poucos dias. Inácio continuava só no hospital, onde lhe davam um pequeno quarto; os seus quatro discípulos tinham aceitado o asilo que a caridade lhes oferecera por consideração ao santo mestre: D. Fernando de Para alojava dois, D. André de Arce [31] outros dois.

Na sua extrema ansiedade de trabalhar exclusivamente para a conversão dos pecadores, Inácio de Loiola teria querido devorar as ciências humanas que devia aprender. Disseram-lhe que na Universidade de Alcalá se ensinava a lógica de Soto, a física de Alberto Magno, a teologia do mestre das sentenças; Inácio deseja estudar tudo ao mesmo tempo, persuadido de que, penetrando estas três ciências na sua inteligência, ganhará um tempo precioso, que melhor poderá aproveitar.

Mas apenas consegue sobrecarregar o seu espírito, fatigá-lo sem proveito para a instrução e aumentar mais o desgosto do estudo.

Estabeleceu-se-lhe uma terrível confusão nas idéias, a coragem enfraqueceu, e, cedendo à inspiração que o impelia a abandonar o estudo por então, só se ocupou da salvação das almas, do cuidado dos pobres e dos doentes e dos seus progressos espirituais. Via por outra parte com clareza, pelas luzes sobrenaturais que o esclareciam, que Deus o tinha conduzido a Alcalá para este fim e não para continuar os estudos, que devia retomar mais tarde.

Empregou, pois, o tempo que não dedicava à oração, ao serviço dos doentes, à visita dos pobres envergonhados, à explicação do catecismo às crianças e às conferências espirituais. O catecismo e as conferências efectuavam-se numa sala do hospital. Dedicou-se principalmente à conversão dos numerosos estudantes da Universidade; os resultados ultrapassaram as esperanças. Em breve, a maior parte desses estudantes davam edificação geral. Reuniam-se nas conferências do nosso Santo, aproximavam-se dos sacramentos todos os domingos e todos os dias de festa e viviam exemplarmente.

Os amigos do santo apóstolo falam-lhe dum dignitário eclesiástico cujas desordens são conhecidas e cujos perniciosos exemplos já fizeram perder muitas almas. Tem uma fortuna considerável, e pertence a família ilustre; vive como nobre e é difícil aproximarem-se dele; nada disto, porém, pode ser obstáculo para o nosso herói. Sente que a conversão desta alma arrastará a de muitas outras. Cheio de confiança em Deus, tentá-la-á. Não foi para salvar almas que a Providência o enviou a Alcalá?

Inácio apresenta-se resolutamente à porta desse importante personagem e manda-lhe dizer que deseja falar-lhe para um negócio dos mais importantes e do maior interesse para ele. Inácio era conhecido, dizem ao dono da casa quem ele é, e este consente em recebê-lo, persuadido de que este mendigo, de quem se proclama a santidade, nada mais deseja do que uma boa esmola:

- É de assunto do maior interesse que eu tenho de ocupar V. Ex.a, e sei que, de todos os seus amigos, nenhum lhe seria assaz dedicado para o advertir dos perigos que V. Ex.a corre.

- De que se trata? Fale?

- Senhor, trata-se da reputação de V. Ex.a, perdida, em Alcalá, e da sua alma, perdida para a eternidade, se V. Ex.a. for neste momento ferido de morte pela justiça divina.

- Com que direito me vens insultar assim, miserável mendigo?

- Com o direito que dá a caridade, que me impele, para perguntar a V. Ex.a se Deus o colocou no mundo para perder a própria alma e perverter aqueles a quem já arrastou ao mal, e de quem dará contas ao soberano juiz, no dia e hora em que citar V. Ex.a. a comparecer no seu temível tribunal.

-És louco! Sai, ou mando-te expulsar pelos meus criados.

-Não ! V. Ex.a. não fará isso; porque empalideceu e a consciência já lhe disse que eu vim aqui da parte de Deus. Ela deve dizer-lhe também que me não retirarei sem ter obtido de V. Ex.a uma promessa de emenda de vida.

O culpado estava pálido, com efeito, e profundamente comovido; as últimas palavras de Inácio fizeram-no entrar em si, a cólera extinguiu-se-lhe subitamente, as lágrimas correram, escutou as palavras de exortação do santo mendigo, pediu-lhe perdão de o ter insultado, confessou a sua má vida, prometeu renunciar aos seus hábitos de pecado e terminou por lhe pedir que ceasse com ele. Inácio julgou dever aceitar esse convite que lhe dava meio fácil de prolongar a conversa. Mas isto não bastou ao pecador arrependido. No auge da cólera, elevara a voz de modo a ser ouvido pelos seus criados, e queria fazer uma reparação completa ao enviado de Deus. Abre a porta e diz aos criados que ali se achavam prontos a receber as suas ordens:

- O mendigo que tenho a dor de ter acolhido mal, é um Santo que acaba de prestar-me o maior e o mais importante serviço que podia prestar-me. Ponham-lhe um talher à minha mesa, porque ele quer fazer-me a honra de cear comigo.

Esta conversão tão pronta produziu muita sensação, porque o personagem ocupava uma posição elevada. Como o nosso Santo previra, essa conversão produziu frutos maravilhosos em algumas almas, a quem tão bom exemplo arrastou facilmente.

Era difícil explicar como um pobre desconhecido, vestido miseravelmente, vivendo de esmolas, estendendo a mão publicamente nas ruas e não tendo por asilo senão o hospital, atraia tão grande número de jovens às suas conferências espirituais operava tantas conversões, tinha tão grande influência sobre todos os que dele se aproximavam:

- Não será um feiticeiro? - dizia um.

- Talvez; - respondia outro - porque é impossível obter sem magia tal ascendente sobre os espíritos.

- Deve desconfiar-se de tantos triunfos; - dizia um terceiro - é talvez um herege que atrai a juventude das escolas para lhe inocular o veneno do erro. Não será um discípulo secreto de Lutero, cujas doutrinas infestam a Alemanha?

- Ou não será um dos iluminados que escaparam ultimamente às investigações da Inquisição? -acrescentava um quarto.

Os espíritos perdiam-se deste modo numa multidão de suposições. Perguntavam o que significava essa sotaina cinzenta com a forma da dos sacerdotes e o chapéu cinzento que usavam este homem e os seus quatro companheiros. Não compreendiam que, vindo para estudar, o que provava a sua ignorância, Inácio se permitisse ensinar. Estas dúvidas iam aumentando de dia para dia, e o santo apóstolo perdia o favor popular a tal ponto que um dia D. Alonzo Lanchez, cônego de Santa justa, recusou-lhe publicamente a sagrada comunhão, assim como aos seus discípulos, dizendo-lhes:

-É escandaloso abusar assim das coisas santas!

Apenas o cônego acabara de pronunciar estas palavras, sentiu uma perturbação tão inexprimível que se apressou a dar a comunhão a todos cinco. Naquele momento experimentou tão doce consolação, que lhe assomaram aos olhos lágrimas de felicidade.

Entretanto as dúvidas a que tinham dado ocasião os triunfos do apóstolo, chegaram até ao tribunal da Inquisição de Toledo. O Inquisidor assustado, enviou secretamente a Alcalá o cônego D. Alonzo de Mexia, e encarregou-o de entender-se com D. Miguel Carrasco, doutor e cônego de Santa justa, a fim de tirar informações e esclarecer o tribunal. D. Alonzo, depois do mais severo inquérito sobre os atos e a doutrina do nosso Santo, entregou a questão a D. João Rodrigues de Figueiroa, substituto do Inquisidor em Alcalá e vigário geral do Bispo, dizendo-lhe

- O inquérito é dos mais favoráveis, a doutrina daquele homem é perfeitamente ortodoxa, a sua vida é a dum Santo; não tenho necessidade de o ver para o julgar. Se a opinião se exaltar de novo contra ele, pode V. Ex.a protegê-lo com toda a segurança de consciência. Volto a Toledo a dar conta da minha missão ao tribunal.

O substituto não se importa com a opinião do doutor Mexia, quer mostrar o seu zelo e fazer-se valer depois junto do Inquisidor, e chama Inácio.

- A opinião pública está alarmada a seu respeito; - lhe disse ele - o senhor é ignorante e permite-se ensinar o catecismo às crianças; é leigo e arroga-se o direito de pregar. Este procedimento foi denunciado ao Inquisidor, fez-se um inquérito, que lhe é favorável, e o senhor não será inquietado. Mas há uma coisa que se estranha e envolve mistério: por que usam todos os cinco roupas da mesma forma e da mesma cor, se não são religiosos? Não pode tolerar-se esta singularidade; não podem continuar a viver como até agora, senão com a condição de abandonarem essas roupas e de não andarem descalços.

Inácio obedeceu; deu roupa castanha a Calisto e Cazeros, João conservou a cinzenta, o nosso Santo e Artiaga vestiram-se de preto e todos se calçaram.