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Era de uso, no colégio de Santa Bárbara, reunir os estudantes
de filosofia todos os domingos e dias santificados.
Faziam-nos argumentar, na presença de alguns professores,
juízes competentes dos seus progressos, e dessas reuniões
frequentes e cheias de interesse resultava uma viva emulação,
um zelo ardente pelo estudo e pelo trabalho. Inácio de Loiola
não comparecia a estas reuniões.
Começando a estudar filosofia, prometeu trabalhar de maneira
que pudesse conseguir rápidos progressos. Para isso teve de
recalcar no fundo do seu coração o zelo que o devorava pela
santificação das almas. Em Alcalá e Salamanca viu que a
ciência infusa é tida em pouca consideração pelos homens, e
que, sem a ciência adquirida, não poderia nunca exercer o
apostolado com a liberdade, autoridade e garantias exigidas
pelos teólogos encarregados de velar pela ortodoxia dos
ensinos cristãos. Inácio dissera a si mesmo: - "Saibamos
sacrificar tudo, até a glória de Deus, para maior glória de
Deus!"
E tinha sacrificado tudo para atingir este fim que foi o de
toda a sua vida depois da estada em Manresa.
Entretanto, quando encontrava ocasião, sem a procurar,
aproveitava-a para fazer amar esse Deus, cuja glória era a
mais ardente paixão da sua alma. Conseguia assim levar alguns
dos seus condiscípulos à reforma dos costumes, à prática das
virtudes cristãs e à frequência dos sacramentos.
O dr. João Penha, professor de filosofia, notou dai a pouco
nos seus alunos uma mudança que lhe desagradou.
Vigia, interroga, informa-se e descobre a causa. Chama Inácio
em particular e diz-lhe com ira, que não pode dissimular
- Tenho duas censuras a fazer-lhe: a primeira é que não
aparece às nossas reuniões de domingo; a segunda é que impede
alguns dos seus condiscípulos de comparecer nelas. A estas
censuras ajuntarei uma advertência: trate dos seus negócios e
não se intrometa nos dos outros, se não quiser ser vítima do
seu zelo ridículo e exagerado.
- Se não venho às reuniões, mestre Penha, é unicamente porque
me julgo obrigado a obedecer à Igreja, que me ordena que
santifique os dias mais especialmente consagrados a Deus;
penso que o mesmo motivo afasta aqueles dos meus
condiscípulos que se gloriam igualmente de ser cristãos.
- Eles não pensavam nisso antes que o senhor os viesse
afastar daquilo que deviam considerar um dever. Tenha, pois,
cautela !
O dr. Penha renovou sem resultado, por três vezes, esta
advertência. Inácio não deixou, porém, de aproveitar todas as
ocasiões que a Providência lhe proporcionava para ganhar para
Deus mais uma alma.
Um dia, o dr. Penha, abrasado em cólera, apresentou-se ao
reitor do colégio, dr. Diogo de Gouveia
- Mestre, - lhe disse - as nossas reuniões dos estudantes de
filosofia estão a tal ponto reduzidas em número que seremos
obrigados a suprimi-Ias se não tomar providências enérgicas.
E a culpa é desse Ínigo, desse mendigo desconhecido, que se
apresenta como inspirado e que parece pago para recrutar
jovens para os conventos!
- Foi esse miserável que perdeu Amatore e Peralto no ano
passado, - exclamou o reitor furioso. Eu empreguei todos os
esforços junto do Inquisidor para o prender; mas o hipócrita
teve artes de persuadi-lo de que era um Santo...
- Alguns dos meus alunos - disse João Penha - desapareceram
do mundo, há alguns meses para cá, e tomaram o hábito ! Ao
domingo, alguns outros deixam de vir argumentar para irem ao
sermão, e, de lá, entreter-se acerca de espiritualidades com
o seu Ínigo. Não será indigno, da parte desse homem, trazer
uma tal desordem ao colégio?
O reitor pareceu reflectir um momento, e depois disse ao
professor, com certa satisfação:
- Muito bem, mestre Penha; tem razão; é necessário acabar com
este ridículo personagem. Tome providências para que tudo
esteja pronto, a fim de o fazer passar pela sala amanhã de
manhã, quando chegue do colégio.
Durante o dia houve frequentes segredinhos entre o mestre
Penha e seus alunos privilegiados, assim como entre os
professores; era evidente que um grave negócio preocupava
todos os espíritos, e a curiosidade daqueles que não estavam
iniciados na conspiração achava-se muito excitada. Durante as
horas de estudo houve muitas distrações; os ouvidos estavam
mais atentos às palavras trocadas em voz baixa do que às
explicações do Aristóteles.
Ao sair do colégio, Inácio de Loiola foi abordado por um dos
jovens estudantes a quem tinha convertido e que ternamente o
amava
- Ínigo, - lhe disse - está-se tramando uma horrível
conspiração, acerca da qual ouvi algumas palavras, poucas mas
suficientes para me esclarecerem... Peço-lhe que não venha
amanhã a Santa Bárbara.
- Porquê, meu amigo?
- Porque querem fazê-lo passar pela sala. Oh! é uma infâmia !
- Que quer dizer isso?
- Que quer dizer? Quer dizer que aquele que sofre este
castigo fica desonrado para sempre l
- Explique-se meu amigo; em que consiste esse castigo?
- Consiste no seguinte: - Quando aquele que o deve sofrer se
apresenta na aula, fecham-se todas as portas, toca o sino e
todos os alunos se colocam em volta da sala; os regentes
chegam armados de varas, batem no culpado um após outro, e o
infeliz é declarado infame, depois do que os pais de família
não permitem aos seus filhos que lhe dirijam a palavra.
- E qual é o crime por que me condenam? - perguntou o nosso
Santo.
- Pelo bem que nos tem feito, Ínigo.
- É então pela glória de Deus! Reflectirei nisso, e
agradeço-lhe ter-me prevenido.
- Não volte mais, peço-lhe! Vá continuar os seus estudos no
colégio de Beauvais. Quem ensina lá é D. Francisco Xavier, e
o senhor nada perde, porque ele é um dos talentos mais
brilhantes.
- Vou consultar a Deus e Ele me inspirará o que devo fazer.
O mestre e o discípulo separaram-se, depois de se terem
apertado cordialmente a mão.
O primeiro movimento do nosso herói, quando soube da infame
conspiração tramada contra ele, foi o da indignação. Toda a
sua orgulhosa natureza se revoltou ao pensamento dum tal
castigo; mas o motivo por que lho queriam infligir bastava
para o acalmar. Foi mais longe: agradeceu a Deus ter-lhe
permitido sofrer esta amarga humilhação e pediu-lhe que o
esclarecesse num assunto em que a Sua glória estava tão
interessada. No dia seguinte, depois de ter aceitado o
sacrifício com a generosidade que lhe conhecemos,
encaminhou-se para o colégio de Santa Bárbara. No momento em
que entrava, perturba-se, empalidece, sente que ainda é
Inácio de Loiola! A sua natureza recusa-se ao ignóbil
suplício que o espera; mas olha para o alto... Todos os seus
sentimentos humanos são esmagados no mesmo instante e vai
transpor o limiar... Uma luz divina o esclarece de repente...
Deus está contente com a sua aceitação, e não lhe pede mais;
ao contrário, fá-lo parar, porque a salvação de algumas almas
está dependente da justificação do seu heróico apóstolo.
Inácio sabe o que deve fazer: a vontade divina é-lhe
conhecida.
Entra e todas as portas se fecham atrás dele; não se comove e
pede para falar ao reitor sobre um negócio importante. Vai ao
encontro do dr. Diogo de Gouveia e diz-lhe com nobre e
modesta firmeza
- Senhor reitor, um suplício infamante está preparado em
punição da bênção que Deus se dignou de espalhar sobre os
fracos esforços do seu indigno servo. V. Ex.a deve
compreender que, depois de ter sido posto a ferros na prisão
de Salamanca e confundido com os últimos malfeitores, por ter
cometido o mesmo crime que em Santa Bárbara e por ter ganho
algumas almas para Deus, eu sofreria da melhor vontade este
castigo, se Deus tivesse nisso alguma glória. Fui prevenido
do que me espera aqui esta manhã, e não procurei fugir; vim;
mas não sou o único interessado neste negócio; dele depende a
salvação de algumas almas; é por isso que apelo para o
julgamento de V. Ex.a e tomo a liberdade de perguntar se a
justiça cristã ordena que se puna como perturbador aquele que
não cometeu outro crime senão trabalhar para fazer conhecer e
amar o Mestre de todos nós, o Soberano Senhor Jesus Cristo!
Será permitido fazer-me sofrer um castigo ignominioso, com o
único fim de afastar de mim as almas que Jesus Cristo me
entregou pela sua graça?
O reitor derramava lágrimas. Não respondeu. Depois de alguns
instantes, tomou Inácio pela mão, e conduziu-o à, sala onde
os regentes, de varas na mão, o esperavam, bem como os
alunos. Ao dar o sinal, pôs-se de joelhos diante do apóstolo
do colégio e disse, banhado em lágrimas
- Peço-lhe me perdoe o ter acreditado tão levianamente todas
as calúnias que espalharam contra si. Perdoe-me a injúria que
lhe quis fazer, e que teria feito a Deus na sua pessoa. Com
profunda dor o reconheço!
E, deixando-se erguer por Inácio, a quem a comoção impedia de
falar, disse a todos os presentes:
- O estudante Ínigo deve ser doravante respeitado por todos
como se fora um Santo; tenho-o nessa conta. Ouso dizê-lo na
sua presença, apesar da sua humildade, porque a reparação
deve ser pública.
Esta cena produziu imenso efeito no colégio. O dr. João Penha
exprimiu também o seu pesar ao nosso herói, e desde então
teve para com ele a mais alta consideração e afeiçoou-se-lhe
sinceramente. Os professores Moseralo e Valho tornaram-se os
seus mais calorosos partidários. Na Universidade só se falava
da alta santidade do estudante Ínigo; e tendo o dr. Marcial
pedido para o ver e conversado com ele algumas vezes,
declarou-o mais sábio em teologia do que todos os doutores da
Sorbona:
- Na minha qualidade de doutor em teologia, -disse um dia ao
nosso Santo - ser-me-ia fácil fazer com que o senhor
recebesse este grau antes do fim dos seus estudos. Peço-lhe
que o aceite, porque é evidente que o senhor é mais
esclarecido que nenhum de nós e que o próprio Deus foi seu
mestre.
- Não, senhor doutor, -lhe respondeu a apóstolo todos os
obstáculos que tenho encontrado no meu caminho apostólico,
provam-me que aos olhos do maior número são indispensáveis os
conhecimentos humanos, e eu quero poder afirmar que trabalhei
para os adquirir. Com a graça de Deus espero que o
conseguirei.
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