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Era necessário que Santo Inácio, na extensão e profundeza das
suas vistas, julgasse muito necessária a severidade de que
usava na admissão dos noviços à profissão; porque estava
longe de poder satisfazer os pedidos, que de toda a parte lhe
chegavam. Tinha chamado o Padre Laynez de Veneza, Afonso
Salmeron estava de volta da sua missão na Irlanda, e ambos
eram de muita utilidade ao nosso Santo. Mas, pouco depois, o
Papa Paulo III pede dois teólogos da Companhia para
assistirem, como legados seus, ao Concílio de Trento, e
Inácio designa dois dos seus primeiros e tão queridos
discípulos: os Padres Laynez e Salmeron, que os mais sábios
teólogos de Roma costumavam consultar como mestres, apesar de
serem ainda novos. O nosso Santo, temeroso pela humildade dos
seus queridos discípulos vendo-os honrados com o titulo de
teólogos do Papa, numa assembléia como a dum concilio
ecumênico, julgou dever dar-lhes por escrito os seguintes
conselhos, cujo desenvolvimento omitimos
"Assim como quando se trata com grande número de pessoas para
o bem espiritual e a salvação das almas avança muito a glória
de Deus; se Nosso Senhor nos é propicio, assim também, se não
vigiamos por nós, e se Deus nos não ajuda, perdemos muito e
podemos prejudicar aqueles com quem tratamos. Mas como, em
virtude do gênero de vida a que nos dedicamos, não é
permitido abster-nos destas relações, o fruto que dai
resultará será tanto mais pronto, tanto mais seguro quanto
melhor nos hajamos preparado e premunido antecipadamente, e
fizermos uma regra de vida mais claramente traçada. É por
isso que vos darei alguns conselhos, que podem ser úteis no
Senhor, quer conservando-os tais quais são, quer reduzindo-os
ou acrescentando-lhes outros semelhantes.
Desejo ardentemente, para falar em geral, que no exercício da
nova missão, não percais nunca de vista três pontos
principais:
1º. No Concílio a maior glória de Deus e o bem da Igreja
universal;
2º. Fora do Concílio, a vossa antiga regra e o vosso método
de ajudar as almas, fim que principalmente me propus atingir
com a vossa partida.
3º. O cuidado particular da vossa alma, a fim de que não vos
descuideis nem abandoneis a vós mesmos; mas, que ao
contrário, vos esforceis, por uma aplicação é atenção
assíduas, a tornardes-vos de dia para dia mais dignos da
missão que vos foi confiada...".
Abriu o Concílio de Trento. O nosso Santo agradecia a Deus e
orava ardentemente para que ele correspondesse às esperanças
da Igreja, quando rebentou uma ruptura de relações do rei de
Portugal com o Sumo Pontífice.
D. Miguel da Silva, muito tempo embaixador de Portugal em
Roma, foi chamado pelo seu soberano, nomeado secretário de
Estado e promovido ao bispado de Viseu. Pouco depois, o
Cardeal Alexandre Farnese, seu parente e amigo, fê-lo elevar
ao cardinalato. Não tendo sido consultado para isto o rei de
Portugal e não querendo permitir que os seus súbditos fossem
devedores a outrem, que não a ele, dos favores com que eram
honrados, recusou ao Bispo de Viseu autorização para aceitar
a púrpura romana. D. Miguel, atemorizado com este facto;
partiu secretamente de Portugal e dirigiu-se a Roma, onde foi
revestido publicamente das insígnias cardinalícias e recebeu
as maiores honras. O rei D. João III, irritado com a fuga de
D. Miguel e com o acolhimento que recebeu em Roma, seqüestrou
as rendas do bispado de Viseu e proibiu a todos os
portugueses que mantivessem relações com o Prelado. Ao mesmo
tempo morria o Cardeal Contarini na sua legação de Espanha, e
Paulo III enviara Miguel da Silva a substituí-lo junto de
Carlos V, na qualidade de legado apostólico. D. João III
queixou-se à corte de Roma. O Papa queixa-se a Santo Inácio e
pergunta-lhe se ele está convencido de que o rei de Portugal
é realmente o príncipe mais religioso da cristandade.
Esta divisão causou sensação na Europa. Santo Inácio, vendo
com dor que ela podia comprometer os interesses da religião,
empreendeu a pacificação dos espíritos. O negócio era difícil
e delicado. Inácio devia grandes favores a D. João III, o
mais zeloso protetor da Companhia; mas devia-os ainda maiores
ao Sumo Pontífice. Para tratar este negócio segundo as vistas
de Deus, pediu orações, jejuns, mortificações e santos
sacrifícios aos seus discípulos; ele mesmo orou durante
alguns dias, como costumava orar; depois propõe ao Papa dar o
bispado de Viseu ao Cardeal Alexandre Farnese, com a condição
deste dar os rendimentos ao Cardeal Silva. O Papa aprova a
idéia e encarrega Inácio da negociação com o rei de Portugal.
O nosso Santo escreve então a Simão Rodrigues, provincial em
Portugal e muito estimado do soberano, e ordena-lhe que faça
conhecer a sua carta ao rei. Esta admirável carta, modelo de
sabedoria, de prudência, de delicadeza e de habilidade
produziu o efeito desejado.
D. João III venerava profundamente Santo Inácio,
considerava-o como inspirado do céu e tinha como um dever
obrar em conformidade com os seus conselhos. Tinha o costume
de dizer que a voz do Padre Inácio devia ser considerada como
a do próprio Deus. Viu que Inácio era de opinião que o Papa
não fizesse as primeiras negociações e esperasse as do rei;
soube ao mesmo tempo, sem dúvida pelo Padre Rodrigues, o
acordo proposto ao Papa pelo nosso Santo acerca das rendas do
bispado de Viseu, e não hesitou mais em submeter-se. Mandou
dizer ao Papa por Inácio de Loiola que consentia no que se
fizesse em favor de D. Miguel da Silva e levantava o
seqüestro às rendas do seu bispado. Em compensação, Paulo III
concedeu alguns privilégios ao rei de Portugal, e a paz foi
restabelecida, com grande consolação daquele que a tinha
negociado com tanta delicadeza e habilidade.
Entretanto Inácio recebia as mais consoladoras noticias do
Concilio. O Cardeal de Trento escolhera o Padre Cláudio Lejay
para o seu conselho e consultava-o nas questões mais
difíceis. O Padre Salmeron pronunciara, naquela imponente
assembléia, um discurso em latim que mereceu unânimes
aplausos não só pela ciência como pela eloqüência do jovem
teólogo. O Padre Laynez excitava geral admiração todas as
vezes que falava. Os legados do Papa haviam encarregado os
três jesuítas de fazerem, duma parte, a coleção de todas as
heresias antigas e modernas; de outra, a das passagens da
Escritura, dos Padres da Igreja, dos concílios e dos doutores
que podiam ser-lhes opostas.
O nosso Santo soube com muita alegria que os três Padres,
depois de terem brilhado na assembléia, não se envergonhavam
de pedir esmola nas ruas da cidade, não somente para eles,
mas ainda para pobres soldados alemães, católicos, a quem os
hereges tinham obrigado a abandonar o serviço e a pátria,
pelo único motivo de quererem continuar fiéis à sua fé.
Os legados, vendo os três jesuítas muito pobremente vestidos,
mandaram-lhes fazer sotainas novas; os religiosos vestiam-nas
por deferência quando se dirigiam às sessões; mas quando
saiam, despiam-nas e vestiam as outras. Davam conta ao seu
Padre Geral de tudo o que faziam e contavam fazer e,
pediam-lhe sempre os seus conselhos, que seguiam cegamente.
Tendo sido interrompida indefinidamente a sessão, Inácio de
Loiola reclamou o Padre Laynez, do qual tinha necessidade em
Roma, e a quem Florença, por outra parte, reclamava com
empenho. Mas o Cardeal de Santa Cruz aduziu tão poderosos
motivos para o deixar em Trento, que o nosso Santo teve que
ceder.
Ao mesmo tempo, o Bispo de Trieste passava a melhor vida, e
Fernando, rei dos Romanos, sob o poder do qual estava aquela
diocese, depois da recusa do Padre Bobadilha, então em
Ingolstadt, lançou as suas vistas para outro membro da
Companhia de Jesus e pediu o Padre Cláudio Lejay, já
conhecidos apreciado e venerado nos seus Estados. O Padre
Lejay estava em Trento; o rei Fernando escreveu-lhe e
exprimiu-lhe o desejo de que aceitasse a sé de Trieste, para
a qual. acabava de o nomear. O humilde religioso ao ler essa
carta. ficou como assombrado por um raio:
"As dignidades não podem convir aos membros da Companhia de
Jesus; - respondeu logo a Fernando - a outras ordens é que se
deve dirigir para encontrar Bispos; além de que um tal fardo
seria muito superior às minhas forças".
Escreveu em seguida ao seu muito amado Padre Inácio,
queixando-se-lhe com o terror e a simplicidade duma criança,
mas com a humildade e desprendimento dum Santo. Pedia-lhe que
procedesse energicamente junto do Papa, a fim de afastar este
golpe da Companhia, e acrescentava:
"Declaro-lhe, meu reverendo Padre, que se a obediência me não
detivesse em Trento, afastar-me-ia a toda a pressa e
ocultar-me-ia de modo que fosse impossível encontrarem-me".
Os legados apostólicos enviam o Padre Lejay a Veneza. O rei
Fernando, julgando-o tanto mais digno do episcopado quanto
mais ele procura afastar-se dele, manda a Veneza o seu
confessor, o Bispo de Laubach, e recomenda-lhe que empregue
todos os esforços para convencer o Padre Lejay a aceitar o
bispado de Trieste. O Bispo de Laubach fala a uma pedra:
Lejay é inflexível. D. Fernando pede ao Papa que ordene a
Lejay que aceite o bispado; o embaixador, Tiago Lasso, recebe
ordens para tratar esta questão com toda a atividade. O Papa
envia a Inácio a carta de D. Fernando; o nosso Santo corre a
toda a pressa a casa do embaixador, que lhe faz conhecer as
ordens do seu soberano, escritas por seu próprio punho, e lhe
diz que, depois duma vontade tão energicamente expressa por
um príncipe, não é possível responder com uma recusa. Inácio
persiste na sua oposição. Tiago Lasso declara-lhe que não se
encarrega de a comunicar ao rei. Inácio dirige-se ao Sumo
Pontífice e exprime-lhe a sua grande dor. É expor a Companhia
a perder a humildade, que deve fazer a sua força e a sua
glória, - afirma o Santo abrir-lhe a porta às dignidades e às
honras.
Mas Paulo III tinha decidido esta nomeação, havia prometido
interpor a sua autoridade; pensava também que o Padre Lejay
era tanto mais digno do episcopado, quanto mais o recusava
com energia. Respondeu, pois, ao nosso santo:
"O coração dos reis está nas mãos do Senhor". Pensamos que o
rei D. Fernando foi dirigido pelo Espírito de Deus neste
negócio. Todavia consultaremos a vontade divina e
convidamos-vos a fazer o mesmo".
Inácio retirou-se desconsolado com a disposição do Papa e
procurou em seguida os Cardeais, que sabia serem dedicados à
Companhia. O Cardeal Carpi escreveu a D. Fernando e nada
conseguiu; mas Inácio de Loiola não desanimou. Sempre
enérgico por natureza, sempre inflexível em tudo o que tocava
à glória de Deus ou ao espírito da Companhia, cujo único fim
era o aumento desta glória, o nosso Santo não podia dar-se
por vencido diante de todas estas dificuldades. Margarida de
Áustria tinha-se posto sob a sua direção, depois da morte do
Padre Codure; recorre à sua intervenção, diz-lhe que vai
escrever ao rei D. Fernando e pede-lhe que obtenha do Papa
que a nomeação do Padre Lejay fique suspensa até que D.
Fernando lhe responda. 0 -Papa concede a demora pedida pelo
príncipe, e Inácio escreve ao rei:
"Conhecemos, grande Príncipe, o afeto de Vossa Alteza à nossa
Companhia, e o zelo que anima Vossa Alteza pela salvação dos
povos confiados à sua guarda. Damos graças a Deus por isso e
suplicamos à Bondade divina que inspire a Vossa Alteza os
meios de realizar com êxito tudo o que a piedade de Vossa
Alteza lhe faça empreender. Mas, ousamos dizê-lo, o maior
benefício, o maior favor com que a bondade de Vossa Alteza
nos pode honrar, é ajudar-nos a caminhar com fidelidade e
sinceridade nas vias da nossa vocação. Estamos persuadidos de
que as honras e dignidades lhe são opostas; afirmamos até, e
é nossa profunda convicção, que nada há mais eficaz para
alterar e destruir o espírito do nosso Instituto do que
forçar-nos a aceitar bispados. Aqueles que formaram esta
Companhia tiveram por fim ir a todos os cantos do mundo ao
primeiro sinal do Sumo Pontífice. O espírito da nossa
Companhia é ir, com toda a humildade e simplicidade, duma
cidade a outra, duma província a outra trabalhando na
santificação das almas para maior glória de Deus, mas não
limitando os seus trabalhos a um só país. A Sé apostólica
confirmou este ponto das nossas regras; Deus tem provado que
lhe era agradável com o aumento de piedade resultante dos
trabalhos de alguns dos nossos, trabalhos que aprouve à
bondade e à clemência infinitas abençoar e fecundar. Ora as
sociedades religiosas não podem viver senão pela manutenção
do seu primitivo espírito, que é a sua alma. Se o nosso for
conservado, a Companhia viverá; se o perdermos, breve será
destruída. Fácil é imaginar o flagelo que pesaria sobre nós,
se se nos impusesse a aceitação de bispados. Somos apenas
nove professos e já foram propostas sés episcopais, a quatro
ou cinco as quais todos tem energicamente recusado: se um só
aceitasse os outros julgariam ser-lhes lícito imitá-lo, e
esta Companhia não somente degeneraria do seu primitivo
espirito mas não tardaria a dissolver-se por causa da
dispersão dos seus membros. Esta Ordem, a menor de todas, tem
já feito bem pelo exemplo da santa humildade e da pobreza. Se
os povos nos vissem entrar nas honras e nas riquezas, a alta
opinião, que têm de nós, mudar-se-ia em opinião contrária, e,
com grande escândalo de muitos, o caminho da santificação das
almas fechar-se-ia para nós.
É inútil acumular razões. Imploramos a clemência e a
sabedoria de Vossa Alteza; pomo-nos com confiança sob a sua
proteção, e, como estamos certíssimos de que Vossa Alteza não
quer a ruína da nossa Sociedade, pedimos, exoramos a Vossa
Alteza, pelo sangue de Jesus Cristo, que siga a inspiração da
sua consciência e o impulso da sua bondade, preservando-nos
de tal perigo, e considerando como seu este pequeno rebanho
que acaba de nascer, suplicando-lhe que o conserve para
glória da eterna Majestade.
Faço votos porque Vossa piedosa Alteza seja para sempre
adornado e cumulado de todos os dons e de todas as graças
celestes."
D. Fernando não pôde resistir ao pedido do santo fundador; o
seu embaixador recebeu ordem de desistir; o Papa, não tendo
motivo para constranger Inácio, não insistiu mais, e o nosso
Santo, satisfeitíssimo com este resultado fez cantar um Te
Deum e pediu missas de acção de graças a toda a Companhia.
Era muito favorável a ocasião para a deixar perder. Inácio de
Loiola não deixava escapar nenhuma, e aproveitou esta para
tratar com o Sumo Pontífice uma questão que, para ele era a
vida ou a morte da sua querida Companhia. Procurou Paulo III,
e, depois de lhe agradecer o ter suspendido a sua decisão
suprema até à resposta de D. Fernando, acrescentou:
- A nossa pequena Sociedade é apenas composta de duzentos
membros aproximadamente e de nove professos. Se lhe tiram os
seus homens de méritos, em que se tornará ela? A elevação dum
só prejudica a todos: introduziria o espirito de ambição, que
é o mais oposto ao ela Companhia. Estou longe de censurar as
Ordens religiosas que aceitam as dignidades e desempenham os
cargos para edificação das almas e glória de Deus; mas a
nossa pequena Companhia difere dessas Ordens, que pela sua
antiguidade, adquiriram a força necessária para poderem arcar
com tão pesados fardos. A nossa acaba de nascer e está muito
fraca... Santíssimo Padre, considero as antigas Ordens
religiosas, na Igreja militante, como esquadrões de soldados
destinados a permanecer no posto que lhes foi destinado,
conservando a sua posição, fazendo face ao inimigo, sempre em
ordem de batalha, não tendo outra maneira de combater, porque
é assim o corpo de que fazem parte e todo o exército deve ter
corpos deste gênero. Mas nós somos um corpo de cavalaria
ligeira, sempre prontos ao tempo de alarme, vigiando as
surpresas atacando, ou defendendo segundo as circunstâncias,
e, como esquadrões volantes, fazemos fogo de todos os lados e
escaramuçamos sempre.
O Papa compreendeu as razões do santo fundador e aprovou-as
em todos os pontos.
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