3. Crítica às posições de Sócrates e Platão sobre a cidade perfeita.

A causa das leis que Sócrates atribui à cidade perfeita consistia em que este supunha, como um princípio, que seria perfeita a cidade que fosse tão una quanto possível e, por causa disso, queria ele que tudo fosse comum, até mesmo os filhos e as esposas, para que os cidadãos fossem maximamente unidos entre si.

Mas é manifesto que uma cidade pode alcançar uma unidade maior do que a que deveria, de tal maneira que não poderia mais subsistir. De fato, o Filósofo explicou acima que a cidade é naturalmente uma certa multidão; ora, a multidão opõe-se à unidade. De onde que se a cidade fosse mais una do que o que deveria, já não seria mais cidade, mas de cidade se transformaria em casa. E, do mesmo modo, se a casa se unisse mais do que deveria, da casa não restaria senão um só homem. Ninguém, de fato, duvida que uma casa é mais una do que uma cidade, e que um só homem é mais uno do que uma casa. De onde que, se alguém pudesse fazer que em uma cidade houvesse tanta unidade como há em uma casa, isto não deveria ser feito, porque com isso se destruiria a cidade.

Mas porque alguém poderia dizer que Sócrates não se referia à unidade que exclui a multidão de pessoas, mas à unidade que exclui a sua dessemelhança, por isso o Filósofo acrescenta que a cidade não apenas deve ser de muitos homens, mas também que deve ser de homens diferentes em espécie, isto é, de homens de diversas condições. Isto pode ser manifestado pelas seguintes razões.

Primeiro, porque uma coisa é a cidade e outra é uma multidão congregada pelo lutar junto. A multidão congregada pelo lutar junto é útil apenas pela quantidade numérica, assim como ocorre com aqueles que querem deslocar um determinado peso, em que uma maior multidão de homens desloca um peso maior; assim também, uma maior multidão de soldados semelhantes mais facilmente obtém a vitória. Mas quanto às coisas pelas quais deve-se produzir algo perfeito, [observa-se que nestas há] diferença de espécie. Nas coisas naturais, de fato, qualquer todo perfeito é constituído de partes diversas segundo a espécie, como o é o homem pela carne, pelos ossos e pelos nervos, enquanto que aqueles todos que são compostos de partes da mesma espécie são imperfeitos no seu gênero natural, como o ar, a água e os demais corpos inanimados. De onde que é manifesto que, sendo a cidade um certo todo perfeito, é necessário que consista de partes dessemelhantes segundo a espécie.

Deste modo é evidente que, pertencendo à natureza da cidade que ela seja construída de partes dessemelhantes, não é consentâneo à razão o que Sócrates afirma quando diz que a cidade deve ser maximamente una, já que, se for removida a dessemelhança dos cidadãos, já não mais teremos cidade. Ora, esta dessemelhança maximamente parece ser removida quando se tornam comuns as posses, as mulheres e os filhos.

[Ademais], pode-se mostrar que na cidade importa haver alguma diferença entre os cidadãos porque alguns entre eles devem governar e outros devem submeter-se. Não é possível que todos governem simultaneamente; se todos governam, será necessário que isto seja de modo alternado, de tal maneira que cada um governe em seu ano, ou em qualquer tempo determinado, como um mês, um dia, ou segundo qualquer outra ordem, [até mesmo] que os governantes sejam eleitos pela sorte e, segundo este modo, todos governarão cada qual a seu tempo. Será melhor que se a cidade possa dispor-se de tal modo que sejam sempre os mesmo que governam. Isto, porém, somente será possível quando em alguma cidade encontram-se alguns homens muito mais excelentes do que os demais pelos quais será ótimo que a cidade seja sempre governada. Quando isto não é possível porque todos os cidadãos são quase iguais segundo a sua natural indústria e virtude, então será justo que todos participem do governo, porque é justo que participem igualmente dos bens e cargos comuns aqueles que são iguais na cidade. Seria justo também, se isto fosse possível, que todos governassem simultaneamente mas, como tal coisa não é possível, como uma imitação desta justiça observa-se que aqueles que são iguais se submetem um ao outro por partes, embora por princípio sejam semelhantes, porque na medida em que alguns governam e outros se submetem, de algum modo se tornam dessemelhantes e diversos pelo grau de dignidade. Deste modo fica evidente que para a cidade se exige a diversidade dos governantes e dos súditos, ou de modo simples, ou segundo algum tempo. Fica manifesto, portanto, que a cidade não nasceu para ser una, conforme dizem alguns, de tal maneira que todos sejam semelhantes. E aquele que diz que o maior bem na cidade é a máxima unidade, este mesmo destrói a cidade, de onde que [este] não pode ser o bem da cidade, porque cada coisa é salva por aquilo que é o bem para si.

A mesma coisa pode ser mostrada pela finalidade da cidade, que é a suficiência da vida. Por este outro modo pode-se mostrar que não é melhor que o homem busque unir ao máximo a cidade, pois com isto lhe tiraria a suficiência da vida. É manifesto que uma casa ou uma família inteira é mais suficiente para a vida do que um só homem, e que a cidade é ainda mais suficiente do que uma casa. Se, portanto, aquilo que é menos uno é mais suficiente per se, como a casa o é em relação ao homem e a cidade o é em relação à casa, segue-se manifestamente que é melhor para a cidade que ela seja menos una quanto à distinção dos cidadãos, do que seja mais una. De fato, a cidade será mais suficiente para si quanto maior for a diversidade de homens nela encontrada.

Por tudo isto fica manifesto ser falso o dito de Sócrates segundo o qual a cidade perfeita é a que é maximamente una.