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A vergonha é dita ser o temor da confusão que se
opõe à glória. Ora, o temor é uma paixão. Portanto, a
vergonha está [contida] no gênero da paixão.
[Esta afirmação pode demonstrar-se pelos seguintes
argumentos]. As paixões são movimentos do apetite sensível
que se utilizam dos órgãos corporais. De onde que todas as
paixões se dão com alguma transmutação corporal. Ora, a
vergonha e o temor que é acerca do perigo de morte de modo
geral se acham semelhantemente quanto ao fato que ambas estas
paixões são julgadas pela transmutação da cor do corpo.
Diferem, porém, em especial, porque aquerles que se
envergonham se enrubescem, enquanto que aqueles que temem a
morte se empalidescem. A razão desta diferença está em que
por natureza o espírito e os humores se transferem ao lugar
em que o defeito é sentido. A sede da vida está no coração.
Por isso, quando o perigo de vida é temido, o
espírito e os humores concorrem ao coração, e assim [as
partes do corpo que são] exteriores, como que desertas,
empalidecem. Já a honra e a confusão estão no exterior. Por
isso, quando o homem teme pela vergonha da privação da honra,
concorrendo o espírito e os humores ao exterior, o homem
enrubesce. Assim, portanto, fica evidente que a vergonha e o
temor da morte são algo de corporal, na medida em que têm
anexas transmutações [corporais], o que mais parece pertencer
à paixão do que ao hábito. E assim fica claro que a vergonha
não é virtude.
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