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Devemos investigar em seguida se se deve
participar da música não apenas por causa do prazer, mas se
por sua natureza a mesma pode ordenar-se a algo mais digno de
honra. É necessário, de fato, participar da música não apenas
pela comum deleitação que é segundo a mesma e à qual todos
são universalmente sensíveis, mas também examinar se a música
contribui em algo para a virtude moral e à operação reta que
é segundo a alma.
É manifesto que pelo uso da música somos bem
dispostos ao costume, [como é patente] pelas melodias usadas
no Monte Olimpo, cujos sacerdotes as usavam nos seus cultos
sagrados para exercitar os seus discípulos na abstração. Pelo
uso destas melodias a alma dos homens era raptada como que
alienada dos sentidos externos e como que tornada imóvel por
causa da intensidade com que a alma de dirigia a algo
interior.
Para entender o que o Filósofo entende por rapto,
deve-se saber que o rapto, propria e principalmente dito, é
um certo movimento violento produzido por algo além de si
próprio ou em direção a outro, conforme explicado no sétimo
livro da Física. É violento aquilo cujo princípio é externo.
O rapto é, portanto, o movimento de algo, além de sua
inclinação natural ou voluntária, produzido por um princípio
extrínseco.
Esta violência pode ser considerada ou quanto ao
término e ao modo do movimento simultaneamente, como quando o
fogo é raptado para baixo por algo externo, ou quanto ao modo
do movimento apenas, como quando o fogo é compelido para cima
mais velozmente do que seria capaz de fazê-lo. Daqui, por
semelhança, este nome foi usado para designar o movimento do
homem segundo a alma para algo ao qual, segundo se, não
possuiria inclinação, ou por um modo pelo qual não a teria,
[não, porém, a qualquer movimento, como poderia ser um
movimento bestial da alma, mas a um movimento conforme será
descrito a seguir]. Como é natural ao homem inteligir pelos
fantasmas sensíveis exteriores existentes segundo o ato, o
nome rapto foi transladado para significar a operação
intelectual pela qual o homem é conduzido a algo intelectual,
seja a si conatural, seja acima de sua natureza, pela ruptura
dos sentidos com as coisas interiores e pela sua imobilidade.
Disto fica claro o que é o rapto que o Filósofo
aqui menciona. Trata-se de uma operação segundo a parte
intelectual da alma segundo a qual, por algo extrínseco, é
conduzido a algo que não lhe é natural, ou que lhe é natural
mas por uma ruptura e imobilização dos sentidos. O rapto não
pode ser uma operação da parte apetitiva da alma sensorial ou
intelectual porque a operação da parte apetitiva da alma é
segundo a sua inclinação e segundo um princípio intrínseco
não violento. A causa natural e per se do rapto é a intenção
veemente da alma acerca de alguma coisa que se dá seja pelo
veemente desejo de alcançar algo ou de fugir de algo, seja
pela veemente adesão a algo pelo amor ou deleitação ou mesmo
pela deleitação máxima acerca de algo. Pelo fato de que
alguém quer veementemente algo que é interior, sucede que a
alma como que chame o espírito das coisas exteriores ao
primeiro objeto das inteligência, acerca do qual passa a
trabalhar mais intensamente. Entre as propriedades da
natureza, de fato, temos a de enviar o espírito ao lugar onde
é mais necessário e, por conseqüência, os sentidos exteriores
e as partes do corpo se imobilizam, tornando o homem como que
imóvel e sem uso dos sentidos externos em ato; a alma então,
já não trabalhando no sentido e no movimento exterior do
corpo, como que livre, pode especular mais sobre as coisas
que estão acima da comum possibilidade dos homens, ou mesmo
sobre as coisas que lhe são conaturais, não porém através do
sentido exterior, o que lhe seria natural.
Os que possuem espírito pouco e débil e bastante
móvel são raptados nas coisas interiores com pouca
intensidade. Os de espírito pouco e débil não são capazes de
um forte movimento interior e exterior, como ocorre em
algumas mulheres. Já os que possuem um espírito abundante são
raptados com uma intensidade muito veemente. O desejo, o amor
ou a deleitação veementes, que produzem uma intensidade
veemente da alma, são causados por uma consideração veemente
da inteligência, a qual é produzida imediatamente por alguma
causa superior que move diretamente a própria vontade ou, de
um modo mais interior, por uma causa superior que move a
vontade mediante a inteligência.
[O comentador, tendo explicado o que o Filósofo
entende por rapto, repassa a palavra a Aristóteles que
explicava ser manifesto que pelo uso da música o homem é bem
disposto ao costume, dizendo que o Filósofo] declara o mesmo
pela razão.
Acostumar-se a julgar retamente sobre as ações
morais e alegrar-se e deleitar-se retamente nelas é algo
muito eficaz para a retidão dos costumes e das ações morais.
Mas, já que a música, isto é, as ações que são segundo a
música, pertencem ao número das coisas deleitáveis segundo
se, conforme foi dito anteriormente, e a virtude moral é
acerca das deleitações e tristezas, do amor e do ódio. e
outras paixões semelhantes, como acerca de sua própria
matéria, sobre a qual busca aquilo que é segundo a razão e o
termo médio, é manifesto que nada é tão importante aprender e
acostumar-se para a geração dos hábitos morais retos e de
suas ações quanto julgar retamente acerca dos movimentos das
próprias paixões e das coisas que dizem respeito a estas, e
deleitar-se nelas segundo a razão. A razão para tanto é que
para a razão e a geração da virtude moral requer-se a reta
razão, pela qual discerne-se aquilo que é reto e segundo a
razão, às quais se segue uma deleitação proporcional,
conforme é evidente no segundo livro da Ética.
Ora, acostumar-se a julgar retamente sobre as
harmonias musicais e deleitar-se nelas segundo a razão é
acostumar-se a julgar retamente acerca das ações morais e
deleitar-se retamente nelas. Portanto, isto é eficacíssimo à
retidão das ações morais.
Acostumar-se a julgar sobre aquilo que é
semelhante às ações e deleitações morais é acostumar-se a
julgar as próprias ações morais e deleitar-se nelas. As
harmonias da música são semelhantes às paixões e aos hábitos
e às ações morais. Portanto, acostumar-se a julgar e a
deleitar-se retamente nas harmonias musicais é acostumar-se a
julgar e deleitar-se retamente nos hábitos e nas ações
morais.
[Que as harmonias da música assemelham-se às
paixões humanas pode ser mostrado do seguinte modo]. As
semelhanças das paixões, por exemplo, da ira e da mansidão,
do temor e da audácia e outras como estas, e também dos
hábitos, como o da fortaleza e da temperança, da liberalidade
e da iliberalidade, e dos outros hábitos contrários a estes,
e universalmente das demais [coisas] morais, como as eleições
e as operações, encontram-se naturalmente nas melodias
musicais e nos ritmos. As melodias musicais e os ritmos
consistem em algumas determinadas proporções de números
acerca dos sons e da temperança; semelhantemente, as paixões
da alma consistem em uma determinada proporção do agente ao
paciente, e são conseqüentes a alguma determinada proporção
do quente e do frio, do úmido e do seco. A ira, de fato, é a
subida do sangue ao coração, o temor é um certo resfriamento.
Os hábitos morais consistem em uma certa determinada razão do
apetite à razão do mover, e as virtudes consistem em uma
certa razão média entre extremos, o mesmo ocorrendo
semelhantemente em todas as demais coisas morais. Tudo isto é
manifesto aos sentidos, porque os que ouvem algumas melodias
ou ritmos são transformados segundo a alma, às vezes à ira,
às vezes à mansidão, às vezes ao temor, o que não ocorre
senão por causa de alguma semelhança destas para com aquelas.
Acostumar-se a alegrar-se e a entristecer-se nas
coisas que são semelhantes às deleitações e às tristezas
morais é algo próximo ao deleitar-se nestas [últimas coisas],
porque aquilo que é semelhante a algo parece relacionar-se
para com a verdade como que do mesmo modo que este algo. Por
este motivo, acostumar-se às coisas que são semelhantes a
algo é, de um certo modo, acostumar-se a este algo. Em outras
palavras, se alguém admira ou considera a imagem da forma de
alguém, como por exemplo, de Hércules, e de deleita nela na
medida em que a imagem é forma [de Hércules], a visão da
forma do próprio Hércules segundo si mesmo necessariamente
lhe será deleitável, e mais ainda, porque aquilo pelo qual
algo é tal, este algo o é mais, conforme está escrito no
primeiro livro dos Analíticos Posteriores:
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"propter quod unumquodque tale,
et illud magis".
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Nos sensíveis segundo os demais sentidos há algumas
semelhanças dos costumes, embora poucas ou nulas, mas
naqueles que são segundo o ouvido, estas são bastante
manifestas. Nos sensíveis segundo cada sentido há algumas
semelhanças das paixões, dos hábitos morais e das ações, já
que todos os sentidos consistem em algumas proporções
determinadas. Ademais, vemos também que por algumas
elaborações produzidas pelos próprios sensíveis segundo cada
sentido [o homem] é movido a algumas ações ou paixões morais
boas ou más, o que não se dá senão por causa de alguma
semelhança [dos mesmos nos sensíveis], já que em todos
encontra-se alguma semelhança destas coisas. Todavia, [estas
semelhanças] não são encontradas em todos os sensíveis de um
modo igual pois, já que todas [as coisas morais] seguem
alguma apreensão segundo a razão, parece ser razoável que os
sensíveis segundo aqueles sentidos que mais nos fazem
conhecer segundo a razão, maior semelhança tenham, enquanto
tais, às [coisas] morais e estas, segundo Aristóteles no
livro Sobre o Sentido, são a visão e o ouvido. E por isso,
nos sensíveis que são segundo estes sentidos mais existem as
semelhanças dos costumes.
Porém estas se encontram ainda mais manifestamente
nos audíveis do que nos visíveis. É razoável que [as
semelhanças dos costumes] se encontrem mais manifestamente
nos sensíveis segundo o sentido que mais conduzirem ao
conhecimento segundo o que é preexigido por tudo o que é
moral em ato. Segundo o acidente, o ouvido mais conduz a este
conhecimento do que a visão. O discurso audível, de fato, é
causa da disciplina não segundo se, mas segundo o acidente;
ele é constituído de nomes, e cada nome é um símbolo,
conforme é explicado no livro Sobre o Sentido. É, por isso,
razoável que nas coisas audíveis se encontrem mais
manifestamente as semelhanças das coisas morais em ato do que
nas coisas visíveis.
Ademais, as coisas audíveis movem mais fortemente
do que as coisas visíveis, e de muitos modos. As coisas
visíveis somente por uma alteração tênue, e quase insensível.
As coisas audíveis segundo uma certa alteração e segundo um
certo movimento local do meio e do órgão.
Supostas estas coisas, diz Aristóteles que nos
sensíveis que são segundo os demais sentidos não há nenhuma
semelhança dos costumes, dizendo nenhuma porque [na
realidade] é pouca e imanifesta e o que é pouco e imanifesto
é tido por nada. Nas coisas visíveis encontra-se alguma
semelhança, mas débil pois, de fato, as figuras que são
maximamente apreendidas pela visão são maximamente tais;
algumas são agudas e algumas são obtusas, assim como também o
são as paixões, mas a semelhança é pequena e, por isso, tais
semelhanças não movem muito [o homem]. Todos os homens,
ademais, que possuem visão possuem o sentido destas figuras,
e no entanto nem todos alcançam os costumes [morais], o que,
todavia, deveria acontecer se tivessem propriamente a
semelhança deles em si mesmo. Mais ainda, as figuras e as
cores não são propriamente semelhanças dos costumes expressos
como harmonias, mas são mais propriamente como que certos
símbolos que coincidem com os próprios costumes.
É nas coisas audíveis que manifestamente se
encontram as semelhanças dos costumes. Nas próprias melodias
musicais manifestamente se encontram as imitações dos
costumes, e isto é manifesto, pois a natureza destas
harmonias diferem tanto entre si que os ouvintes
imediatamente são dispostos de um modo ou de outro segundo as
paixões e os movimentos, e os homens não se transformam do
mesmo modo ao ouvir cada uma delas, mas ao ouvir algumas
ficam chorosos e como que contraídos pela retração da
espírito ao interior, o que ocorre pela melodia conhecida
como lídia mista.
A melodia lídia mista ou cantilena de sétimo tom é
uma melodia que, por causa da grande agudeza das vozes,
fortemente percute o espírito e o retrai ao interior, por
causa do que dispõe à compaixão.
Pela audição de outras, mais brandas, os homens
são mais dispostos à moleza, um exemplo das quais é a que é
chamada de lídia, que é uma melodia do quinto tom, e a que é
conhecida como hipolídia, a qual, por causa da brandura das
vozes e dos movimentos, principalmente pela semitonia que
freqüentemente recebem, manifestamente observamos mover os
ouvintes à moleza.
Outras melodias dispõem bem e constantemente à
obra. Tal é a melodia dita somente dórica, que é uma
cantilena do primeiro tom, a qual é maximamente moral.
Há ainda aquelas que produzem o rapto, como a
melodia denominada de frígia, que é uma melodia do terceiro
tom, que por causa da forte percussão nas vozes
fortissimamente chama o espírito do que é exterior para o que
é interior, o que dispõe ao rapto.
Assim, pois, é evidente que é nas melodias onde há
maximamente as semelhanças dos costumes, e que os homens,
pelas mesmas, se dispõem aos costumes.
A mesma coisa pode ser dita dos ritmos. Alguns
ritmos possuem a virtude pela qual dispõe a um costume
instável. Alguns ritmos possuem movimentos aos que é mais
pesado e iliberal, outros ao que é mais deleitável e
iliberal. O ritmo é um número determinado de sílabas na
oração terminada por um final semelhante.
Pode-se concluir de tudo isto ser manifesto que a
música pode tornar [os homens] bem dispostos aos costumes,
pelo que é também manifesto que a mesma é útil para os
costumes. Do que se conclui também que os jovens devem ser
ensinados e acostumados à música, naquilo em que a mesma
dispõe ao costume.
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