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É necessário que para o governador da cidade não
se esconda qual é a disciplina comum das crianças, e como e
até onde é necessário educar as crianças na mesma.
A razão é que muitos duvidam disto, como é
evidente pelas obras e pelas diversas opiniões que há sobre
este assunto. Não todos opinam que as crianças devam ser
ensinadas nas mesmas disciplinas, nem que devam ser ordenadas
à virtude, nem que devam ordenar-se a um mesmo [fim] ótimo.
Alguns opinam que devam ser ordenadas a uma mesma coisa, como
a arte dos julgamentos ou a retórica, outros que devam ser
ordenados a outra, como à arte da medicina, a arte
exercitativa ou outras semelhantes. Tampouco é manifesto para
todos se é mais necessário ensinar as crianças [e] acostumá-
las nas coisas que pertencem ao intelecto, isto é, nas
virtudes intelectuais, ou se nas coisas que pertencem ao
costume da alma, isto é, nas virtudes morais que estão na
parte apetitiva da mesma. Ademais, a consideração da
disciplina que se ordena à vida ativa é plena de turbação,
[isto é, não há concórdia entre os homens sobre qual seria o
fim especificamente considerado da vida ativa, a saber], qual
seria [a vida ativa] ótima, aquela que mais deveria ser
buscada. Homens diversos sustentam coisas diversas neste
assunto, segundo os diversos fins que cada um constitui para
si nas coisas agíveis.
Ademais, não é manifesto se é mais necessário
dedicar-se às operações da vida ativa, ou às coisas que
tendem à virtude que é o princípio das mesmas, ou acerca das
coisas supérfluas, por exemplo, as deleitações sensíveis não
necessárias. Diversos homens sobre estes assuntos opinam
diversamente, e qualquer um deles tem os seus próprios
juízes. Ninguém também se expressa concordemente sobre qual
seria a principal das virtudes; nem todos honram a mesma
[virtude] como a principal, mas alguns a esta e outros a
aquela. Já que, portanto, destas coisas diversas homens
diversos opinam diversamente, é razoável que consideremos
qual é a disciplina que deve ser estudada e o que é o ótimo
para as crianças. O Filósofo passará a declará-la primeiro em
universal, para depois fazê-lo mais determinadamente. [Esta
segunda parte, porém, foi deixada inacabada por Aristóteles,
cujo tratado de Política deveria estender-se mais do que
presentemente chegou até nós].
O Filósofo declara que, universalmente falando, as
crianças devem ser exercitadas nas disciplinas úteis e
liberais.
[Para entender a sentença do Filósofo], deve-se
considerar que o homem livre é aquele que é causa de si
mesmo, tanto pela razão de causa movente como pela razão de
fim, conforme já foi anteriormente exposto.
O homem é causa de si mesmo na razão da causa
movente quando é movido prejulgando e ordenando o modo e a
razão de agir por meio daquilo pelo qual é homem e que é
principal nele, [isto é], o intelecto.
O homem é causa de si mesmo na razão de fim quando
é movido ao bem e ao fim de si mesmo segundo esta mesma coisa
que é principal nele segundo o intelecto.
O homem é tanto mais livre segundo a natureza
quanto mais é capaz de ser movido por aquilo que é
principalíssimo nele e ao seu fim e bem que é segundo este
mesmo principalíssimo.
O homem é dito servo quando não é capaz de ser
movido, por indisposição da matéria, pelo intelecto próprio
pelo qual é determinado, mas pelo intelecto e pela razão de
outro e quando nem também opera por causa de si mesmo, mas
por causa de outro [como a um fim]. E quanto menos for capaz
de mover-se por si e mais por outro e para o fim do outro,
tanto mais será servo.
Segundo isto a ciência livre ou liberal foi assim
chamada pelos antigos como sendo aquela pela qual o homem se
dispõe per se segundo o intelecto ao seu fim próprio. A
ciência pela qual o homem é disposto para ordenar-se ao bem
do corpo per se e aos bens exteriores é dita ciência servil,
porque se ordena ao bem daquilo segundo o qual deveria servir
no homem, como as artes mecânicas, as quais maculam de um
certo modo o intelecto do homem acerca das coisas que não são
próprias a si mesmo enquanto tais.
Entre as ciências liberais aquela que é
maximamente livre é a que imediatamente dispõe o intelecto
para o seu fim ótimo, aquela em cuja operação a felicidade
consiste. As que dispõem o intelecto mediatamente as mesmo
são menos liberais, como as ciências posteriores cujos
conhecimentos se ordenam a conhecimentos superiores, embora
ocorra que seu conhecimento já possa ser buscado por causa de
si mesmo, [e não apenas instrumentalmente]. E aquela que
entre as ciências especulativas é minimamente liberal será
aquela na qual minimamente se busca o saber por causa de si
mesmo e que por muitos meios se ordena ao bem último do
homem.
Embora a ciência maximamente liberal não possa ser
mal usada quanto ao uso per se dela própria, isto todavia
pode ocorrer com as ciências posteriores menos liberais
inclusive quanto ao uso delas por si mesmas. Assim como
acerca do fim último do homem não é possível que de modo
simples o homem possa mal haver-se, nas coisas que todavia se
ordenam a este fim sucede que algumas vezes se faça mau uso.
Isto ocorre quando pela consideração ou pelo seu exercício
alguém é retraído do fim ou das coisas que são mais próximas
do fim, como ocorre quando pela consideração de alguma
ciência posterior de alguma coisa menos cognoscível alguém é
retraído da consideração que há na primeira em relação ao
maximamente cognoscível.
Consideradas todas estas coisas, Aristóteles supõe
que convém ensinar às crianças nas disciplinas úteis em
relação ao fim, mas não em todas as úteis, mas naquelas que
são [simultaneamente úteis e liberais]. Não convém, de fato,
ensinar as crianças em todas as coisas universalmente úteis,
mas apenas nas úteis e liberais, o que fica manifesto pela
distinção que há entre disciplinas liberais e iliberais. As
disciplinas liberais dispõem per se o intelecto ao fim,
enquanto que as liberais per se se ordenam ao nem do corpo.
Não convém que as crianças participem de qualquer
uma das coisas úteis em relação ao fim que per se tornam o
participante um mercenário. Deve-se entender por operação,
arte e doutrina mercenária aquelas, quaisquer que sejam, que
dispõem os corpos ou a alma dos homens livres, ou mesmo o
intelecto, mal e inutilmente para o uso e as ações das
virtudes morais e intelectuais, assim como ao uso da
perfeitíssima virtude que é a felicidade, e todas as artes,
quaisquer que sejam, que dispõem o corpo de um modo pior a
estas artes e em cujas operações o intelecto é absorvido.
Estas são as artes forenses, e as artes em que o corpo é
maculado, pois pelo uso das mesmas a mente não pode aplicar-
se às coisas que são o seu próprio bem per se e ela mesma é
deprimida para as coisas nas quais a sua perfeição, segundo
se, não pode ser encontrada.
O aprendizado e o uso da primeira e principal
virtude deve ser buscado sem limitações. A participação nas
demais ciências liberais, isto é, aquelas cujo uso se ordena
a outro mais excelente, pode, entretanto, tornar-se não
liberal. Exercitar-se de um modo contínuo e assíduo nas
mesmas buscando nelas tanta quanto perfeição seja possível é
muito nocivo, pelos motivos já mencionados, pois a ascensão e
a consideração contínua nestas artes inibe de modo simples ou
pelo menos em parte oi uso da virtude ótima. Ademais, é
manifesto que estas ciências e seu uso ordenam-se a um fim
ulterior. Embora o apetite do fim [deva] ser infinito, o
apetite das coisas que se ordenam ao fim [não deve] ser
infinito, mas determinado pelo fim. E por isso aprender e
considerar as demais artes liberais até um certo ponto é
liberal, na medida em que são úteis para o fim, mas não mais
do que isto.
Há também muita diferença quanto ao fim pelo qual
alguém aprende ou se exercita em alguma [arte liberal].
Quando isto é feito por causa do ato de umas virtude maior do
que [o da própria arte], não se tratará de algo mau ou
iliberal, o mesmo devendo-se dizer se isto é feito por causa
do bem da virtude de algum amigo, pois o amigo é um outro si
mesmo. Porém se alguém as aprende e exercita freqüentemente
por causa dos outros, para que daí possa ganhar alguma
comodidade ou utilidade segundo bens exteriores, como o fazem
muitos juristas e médicos, isto se tornará uma obra
mercenária e servil. Chamamos, de fato, uma disciplina de
servil quando ela se ordena ao corpo e aos bens exteriores
com a promoção da depressão da inteligência.
Note-se que o Filósofo se refere a alguém que
"aprende e exercita freqüentemente [uma arte liberal]
por causa das outras" porque às vezes é bom utilizar estas
ciências para o bem dos outros, algumas vezes por causa do
bem dos outros apenas sem nenhuma utilidade própria, como
quando estes passam por necessidade e não podem ser ajudados
de modo oportuno nem por si nem por outros, outras vezes
também por uma utilidade própria para que nos tragam um lucro
dentro dos limites da razão, na medida em que isto possa ser
útil ao fim e ao bem segundo a inteligência, de um modo que
não deprimam a própria inteligência em seu uso. Estas
disciplinas e aprendizados, deste modo, podem ordenar-se a
ambos os fins, porque elas podem ser bem e mal usadas em
relação ao fim [último do homem], conforme foi mencionado.
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