12. Os princípios que salvam a tirania remissamente.

Há um outro modo de salvar a tirania diverso dos anteriormente mencionados. Os modos já expostos salvam a tirania intensificando-a, estes salvam a tirania por remissão ou abrandamento. Este modo deve ser tomado por semelhança à corrupção dos reinos, porque assim como de um modo o reino se corrompe na medida em que se aproxima da tirania, declinando da retidão da razão, assim também salva-se a tirania na medida em que se aproxima do reino e ao que é segundo a razão. O reino é salvável por si mesmo; por esse motivo para salvar a tirania é suficiente abrandá-la e aproximá-la do reino.

[Segundo o modo de abrandamento], para salvar a república tirânica é necessário que o tirano se comporte de tal modo que pareça ter cuidados com o bem comum, e que não gaste as coisas que tiver tomado dos súditos sem finalidade e superfluamente, principalmente em coisas que descontentam os súditos, como quando os tiranos tomam dos súditos que trabalham assiduamente e depois são vistos entre meretrizes e estranhos aos quais demonstram freqüentemente familiaridade, artífices e histriões. Quando o tirano faz estas coisas, passam a ser odiados pelos súditos, os quais facilmente se insurgem contra ele. Por isso o tirano deve precaver-se de gastar os bens que tiver recebido dos súditos em coisas que os molestam.

Para que o tirano possa salvar a tirania e parecer que tenha cuidado com o bem comum importa que ele dê contas do dinheiro recebido e das despesas feitas. Alguns tiranos o fizeram e, com isso, tornaram mais duradouro o seu principado. A razão é que aquele que dispensa e governa deste modo a república parece ser um certo ecônomo, isto é, um dispensador, e parece trabalhar pelo bem comum, não parecendo um tirano.

Alguém poderia objetar que se o tirano prestar contas de seus gastos, faltar-lhe-ão recursos. Mas o Filósofo responde que o tirano não deve temer que lhe faltem o dinheiro e as riquezas. De fato, todas as coisas que há na cidade, para o uso e a utilidade comum, são [na verdade] dele, porque ele é o senhor da cidade. A razão disto é que os bens exteriores são por causa do bem da alma e do corpo, e os bens do corpo são por causa do bem da alma, e estes todos são [por sua vez] por causa do bem comum da cidade e, por isso, os bens dos súditos são, de certa forma, daquele a quem pertence ordenar tudo para o fim da cidade. Por isso o tirano não deve temer que lhe faltem os recursos, porque poderá recebê-los dos súditos, na medida em que lhe compete ordenar tudo para o fim da cidade. O que ele mais deve temer é apoderar-se das casas dos súditos além da razão. Isto é o que dá origem ao ódio por parte dos súditos e, ao fazer isto, deve o tirano temer [com fundamento] que se insurjam contra ele. Portanto, convém mais aos tiranos deixar as riquezas nas próprias casas dos súditos e usar delas na medida em que for necessário ao bem comum quando tal for necessário do que perdê-las todas reunindo-as em sua casa própria, o que acontecerá quando os súditos se insurgirem contra ele.

O tirano deve cuidadosamente reunir os impostos e as ofertas que lhe foram gratuitamente feitas para poder dispensá-las com cuidado e, se algumas vezes for oportuno, gastá-las em jogos públicos, [de tal maneira que através desta e outras ações] possa exibir-se como um guardião e patrocinador da cidade e do bem comum, e não como do bem próprio. Deste modo será menos odiado e os súditos ficarão mais contentes.

Importa também para que o tirano possa salvar o seu regime tirânico que ele não pareça desumano e cruel aos seus súditos. A razão disto é que, se parecer cruel aos súditos, tornar-se-á odioso para eles, e com isto facilmente se insurgirão. Ao contrário, o tirano deve parecer digno de reverência por causa da excelência de algum bem excelente. A reverência, de fato, é devida ao bem excelente e, se o tirano não possuir este bem excelente, deve pelo menos simular possuí-lo.

Disto segue-se também que o tirano deve se comportar de tal modo que se os súditos tiverem que recorrer a ele, que o façam sem temor servil, tendo, em vez disso, reverência para com ele. Não devem temê-lo, porque se o temerem também terão ódio por ele; antes, que o reverenciem. Pelo fato de que alguém recorre a outro e este possui um bem que ao primeiro lhe falta, o segundo é reverenciado porque não tem aquele bem, ou pelo menos não do mesmo modo. Por isso o tirano deve se apresentar de tal modo que pareça aos seus súditos possuir a excelência de algum bem excelente do qual os súditos carecem e pelo qual possa ser reverenciado pelos mesmos. Mostrar-se tal, porém, não é fácil, sem que ao mesmo tempo se siga o desprezo se não se tornar terrível. Facilmente é desprezado aquele que não é temido e por isso, se o tirano não quiser parecer terrível, e com isto não ser desprezado, deve trabalhar para adquirir virtudes e nas próprias obras que tornam o homem não desprezível por causa de sua excelência. Se o tirano não puder possuir todas as virtudes e os seus atos, trabalhe pelo menos para possuir as virtudes civis que parecem principais e, se não as possuir segundo a verdade, faça com que pelo menos os homens opinem que ele as tenha. Embora isto em si mesmo não seja bom, pelo menos será bom para que não se torne facilmente desprezível.

O tirano deve se comportar também de modo a que não pareça inferir injúrias a ninguém, nem ao jovem, nem ao moço e que não somente ele em sua própria pessoa, mas também que ninguém que esteja próximo dele injurie aos outros.

O tirano deve fazer também com que sua esposa se torne familiar às esposas dos súditos, porque por causa de injúrias feitas às [mulheres] muitas tiranias foram destruídas. O tirano deve procurar, por isso, que sua esposa seja amiga e tenha familiaridade com as esposas dos súditos.

Quanto aos prazeres do corpo o tirano deve fazer o contrário daquilo que atualmente fazem certos tiranos. Há, de fato, certos tiranos que não somente querem se entregar a estes prazeres até durante muitos dias, mas querem também ser vistos deste modo pelos demais, como se quisessem ser tidos por bem aventurados e felizes por este motivo e, assim sendo reputados por todos, sejam por isto objeto de admiração para os mesmos. Mas o tirano deve ao contrário proceder bem diversamente; deve saber moderar-se acerca destes prazeres ou, se assim não o fizer, deve pelo menos exibir-se de tal modo que pareça fugir deles, pois aquele que é sóbrio na busca do prazer não é facilmente invadido nem desprezado, enquanto que aquele que é usualmente ébrio é facilmente invadido e facilmente desprezado. Aquele que vigia acerca dos atos das virtudes não é facilmente invadido, nem desprezado, mas aquele que dorme, [diz o Filósofo], isto é, aquele que não opera segundo a virtude, é facilmente invadido e desprezado. Quem opera segundo a virtude é tido como alguém grande por causa da virtude, à qual todos respeitam, tanto os bons quanto os maus, embora aqueles mais e estes menos. Aquele que é reputado grande não é facilmente invadido nem desprezado. Ninguém despreza a quem considera; quem, porém, opera desordenadamente, situa-se na condição oposta.

Aquele que quer salvar a tirania deve ademais fazer o contrário das coisas que foram mencionadas anteriormente, isto é, o tirano deve preparar e ornamentar a cidade, construindo torres e muros, edifícios e habitações e outras construções [que visem o bem] comum e ordenando os cidadãos como se fosse o benfeitor da cidade e não o seu tirano. Deste modo parecerá um homem benévolo, e não um tirano.

Para salvar a tirania o tirano deve também comportar-se estudado e reverente para com as coisas que pertencem à religião e ao culto divino e isto tanto mais diversamente dos demais quanto mais for excelente. A razão disto é que os súditos estimam um governante religioso e deícola, e não temerão padecer males de sua parte. Da divindade, de fato, ninguém espera males per se, e os súditos se inclinarão menos à promoção de insídias opinando que Deus lhe será propício e que estará ao seu lado contra os que lhe promovem maquinações.

Importa também que o tirano seja sábio, para que saiba considerar o fim e a dignidade do homem. Convém que honre os cidadãos bons e virtuosos quanto aos atos de algumas virtudes de tal modo que estes considerem ser mais honrados pelo tirano do que seus próprios concidadãos. Deste modo parecerá maximamente benevolente para os súditos.

Para que pareça mais benevolente as honras maiores devem ser distribuídas pelo próprio tirano, enquanto que os suplícios devem ser infligidos pelos demais príncipes e juízes.

Para a guarda comum de toda [tirania], importa muito que nenhum homem faça algo muito grande tanto pelo poder como pela riqueza. Os que vivem de modo grandioso pelo poder ou pela riqueza facilmente se insurgem. Se, porém, algo assim deve ser feito, que o seja feito por muitos. Dificilmente estes serão unânimes e um poderá colocar-se contra o outro. Se algo de grande deve ser feito segundo o poder, [o tirano deverá precaver-se] que não o seja feito por aquele que é audacioso segundo o costume e possui inclinação para a audácia. Este homem, de fato, é o mais invasivo de todos segundo todas as suas ações e por isso, inclinando-se às coisas grandes e possuindo poder, facilmente se insurgirá [depois contra o tirano].

Se for necessário que o tirano afaste alguém de um potentado, deverá depô-lo gradualmente, de tal modo que não lhe tire logo da primeira vez todo o poder, mas apenas alguma parte, depois outra, até que o tenha perdido todo. Deste modo [aquele que perde o poder] se contristará menos e, por conseqüência, se insurgirá menos e poderá insurgir-se menos se o poder lhe é tirado aos poucos porque, o que é pouco, costuma ser reputado por nada. Se, porém, o tirano lhe tirar todo o poder de uma só vez, se contristará muito e poderá insurgir-se.

O tirano que quiser salvar a tirania deve proibir todas as injúrias e não cometer nenhuma. Deve precaver-se de modo principal para não cometer duas injúrias. A primeira é a flagelação corporal e a outra é a injúria que é segundo a idade, isto é, a desonra. O motivo é que a flagelação do corpo é algo servil e os cidadãos querem ser livres; por esse motivo, se são injuriados pela flagelação, podem insurgir-se. A injúria que é segundo a idade não deve ser feita; ao contrário, o tirano deve exibir a maior reverência para com os velhos segundo a virtude e os amantes das honras, porque os homens costumam amargar pesadamente as injúrias acerca daquilo que muito amam. Por causa disso o tirano deve honrar os virtuosos e os amantes da honra ou, se lhes inferir suplícios e desonras, importa que pareça estar fazendo isto por causa do bem da paz e não por causa do desprezo por julgamento de inferioridade. Importa também que as correções e reprimendas que costumam ser feitas a alguns sejam feitas aos virtuosos e aos velhos segundo a idade não por exibição de poder mas por amor, de tal maneira que pareça que o tirano os ame. E se a alguém forem feitas tais desonras, importa que depois lhes sejam exibidas maiores honras para a mitigação das mesmas.

As injúrias que o tirano deve maximamente evitar são aquelas dirigidas contra os que se inclinam a invadir a pessoa do governante. Os mais terríveis, contra os quais importa exibir o maior cuidado, são aqueles que não se importam em perder a vida contanto que possam matar o príncipe. Por isso o tirano deve se precaver maximamente que nenhuma injúria lhes seja feita, e não apenas a eles, como aos que vivem sob os seus cuidados.

Se a cidade estiver dividida, constituída de duas partes, a saber, de pobres e ricos, importa que o tirano salve ambas as partes por causa de seu principado, de tal maneira que o tirano não faça injúria nem a estes nem a aqueles. Deve precaver-se também que ambas as partes não se injuriem uma a outra. Os melhores deverão ser chamados para participar junto consigo de seu principado. Se o tirano proceder deste modo não necessitará libertar os servos nem desarmar os súditos. Se, de fato, a cidade estiver dividida e uma das partes se insurgir contra o tirano, a outra parte, juntamente com o príncipe será suficiente para repelir a insurreição.

Discorrer sobre cada uma das coisas que contribuem para a salvação da tirania será supérfluo, pois cada um poderá fazê-lo pela sua própria razão. É manifesto que importa que o principado não seja tirânico, mas [que o governante] se comporte como um pai de família e que [o principado] pareça aos súditos tratar-se de uma monarquia real onde o príncipe não governa por causa de si próprio, mas exibe-se como guardião do bem público, procurando em tudo o termo médio e não [os excessos] e [as] excelências. Para a salvação da tirania o tirano deve dispor-se a si próprio de tal modo que governe bem segundo os costumes e segundo a virtude ou, se não o for segundo a virtude, pelo menos segundo a aparência [da virtude]. Quanto menos for mau por seguir a virtude ou pelo menos a sua aparência, tanto menos será odiado pelos seus súditos.