|
É manifesto que o servo deve possuir alguma
virtude orgânica e servil, pela qual saiba e possa executar o
que lhe é preceituado pelo senhor e servir, assim como acima
dissemos que existem algumas ciências servis.
[A questão que se coloca é sobre a natureza desta
virtude, isto é], se esta virtude nada mais é do que a que
pertence de modo próprio ao serviço corporal ou se esta
virtude é algo mais nobre, como o são as virtudes morais tais
como a temperança, a fortaleza, a justiça e outras
semelhantes.
Há razões para duvidar de ambas as partes. De
fato, se competir aos servos a posse destas virtudes mais
nobres, assim como também compete aos livres, os servos
deixarão de diferir dos livres. Mais ainda, os mais
excelentes homens seriam precisamente aqueles que possuíssem
até à excelência simultaneamente as virtudes dos homens
livres e dos servos. [Ora, homens como estes já não mais
deveriam ser servos].
[Por outro lado, se se admite que tais virtudes
não competem aos servos], seguir-se-ia a inconveniência de
termos que admitir que, sendo os servos também homens que
comungam com os demais homens da razão, não possam ter as
virtudes pelas quais os homens vivem segundo a razão.
A mesma questão pode ser estendida aos demais
principados. As mesmas dúvidas que foram levantadas sobre os
servos podem também ser levantadas em relação ao filho e à
esposa, isto é, se convém ou não convém à esposa ser
temperante, forte e justa, e semelhantemente ao filho.
Por outro lado, se convém tanto ao que governa
como ao que se submete participar da bondade da virtude, não
haverá razão pela qual um deles deve ser sempre submisso e o
outro deva sempre governar, por toda a vida. O mesmo não
poderia ser dito se, ao contrário, ambos se submetessem e se
governassem um ao outro sucessivamente, como ocorre no
principado político. Não poderia alegar-se que talvez a
virtude do governante e do súdito diferissem segundo o mais e
o menos, porque o mais e o menos não mudam a espécie,
enquanto que governar e submeter-se diferem segundo a
espécie. De onde que não parece ser suficiente para a
diferença entre o governante e o súdito que um tenha [apenas]
uma virtude maior do que o outro.
Por outro lado, se se afirma que importa que um
possua a virtude e o outro não, segue-se igualmente outro
inconveniente que consiste em que, se o governante não for
sóbrio e justo, não poderá ser bom governante, mas também, se
o que se submete não possuir igualmente estas mesmas
virtudes, não poderá ser bem governado, já que, pela
intemperança ou pelo temor omitirá fazer o que importa e não
poderá ser bom súdito.
|
|