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Prosseguindo, o Filósofo passa a investigar qual é
a vida ou o fim ótimo do homem, para entender o que é
necessário considerar que o bem do homem é o ser perfeito do
próprio homem, porque a bondade é uma certa perfeição.
Ora, o homem é composto de corpo, como de sua
matéria, e de alma, como de sua forma e, por isso, ele possui
um certo ser perfeito quando ao corpo, e um certo ser
perfeito segundo a alma. Ademais, porque para a perfeição da
alma e do corpo necessita de alguns [bens] exteriores, como
de instrumentos, a saber, alimentos e outras coisas, há ainda
um outro ser perfeito do homem quanto a estes bens
exteriores. Por isso há um tríplice bem do homem, a saber, o
bem segundo a alma, o bem segundo o corpo e os bens
exteriores. A felicidade, sendo o bem perfeitíssimo do
próprio homem, deve reunir a todos estes.
E é isto que o Filósofo quer dizer quando afirma
que considera ter dito suficientemente muitas coisas sobre o
fim último do homem nas coisas que foram expostas nos Livros
da Ética, que agora são utilizadas para o propósito deste
livro de Política. E, para que tudo seja reduzido a uma só
divisão, nenhuma dúvida deve haver que os bens do homem se
distinguem em três partes, a saber, as coisas exteriores,
como as riquezas e os amigos, os bens do corpo, como a saúde
e a vivacidade dos sentidos e outros semelhantes, e os bens
da alma, e que todas estas coisas importa que existam nos
homens felizes.
A felicidade, de fato, é o bem perfeitíssimo do
homem. Se, portanto, todos estes soo bens do homem, é
necessário que todos estes existam no homem feliz. De fato,
se o homem carecesse de algum deles, quanto a este ocorreria
uma imperfeição.
Isto é manifesto no que diz respeito aos bens da
alma, porque ninguém que tenha uma boa disposição diria ser
feliz de modo simples aquele que não alcançasse alguma parte
da virtude, como a fortaleza, a temperança, a justiça ou a
prudência, que são as quatro virtudes principais.
Ninguém poderia dizer ser feliz aquele que tivesse
medo de moscas, que tremesse de medo ao som de uma folha ou
diante da aparição de uma sombra; nem também aquele que no
uso da comida ou do prazer venéreo não conseguisse se abster
de nenhum extremo, mas apreciasse comer ou beber qualquer
coisa e de qualquer maneira e usasse do que é venéreo de
qualquer modo e em qualquer quantidade. Semelhantemente nem
aquele que não tivesse nenhuma equidade de justiça, mas que
para obter de qualquer modo um quadrante, que é a quarta
parte de um denário, quisesse matar amigos muito amados. O
mesmo poderia ser dito nas coisas que dizem respeito à
prudência. Ninguém poderia chamar tal homem de [feliz ou] bem
aventurado, um homem imprudente, sem discrição e mentiroso,
como uma criança destituída de senso e uso de razão. Isto não
poderia ser assim se à felicidade não pertencessem as
operações da virtude.
Estas coisas supostas, porém, devemos investigar
em qual delas consiste a felicidade de modo principal.
Todos, de fato, concedem que à felicidade
pertencem todos os bens mencionados. Sustentam, porém, de
modo diverso o modo pelo qual cada um destes bens pertence à
felicidade do homem segundo a quantidade. Alguns, de fato,
dizem ser suficiente para a felicidade perfeita qualquer
quantidade de virtude, ainda que pequena; quanto às riquezas,
porém, e ao dinheiro, que é uma espécie de riqueza acidental,
e quanto ao poder, à glória e à fama e todas as demais coisas
semelhantes a estas, dizem pertencer à felicidade humana o
seu excesso até o infinito. [Os que pensam assim] sustentam
que a felicidade do homem consiste principalmente nos bens
exteriores, e apenas secundariamente na virtude.
O Filósofo, porém, reprova esta opinião, mostrando
ser verdade o contrário, isto é, que a felicidade consiste
principalmente na virtude. Ele diz, em primeiro lugar, que
nós, reprovando as sentenças dos que assim se expressam,
diremos que é fácil concluir a partir das próprias ações que
nos são mais manifestas que a felicidade está mais e
principalmente nos costumes, isto é, nas operações habituais
ordenadas segundo a razão e na excelência da perfeita
operação intelectual, acompanhadas de uma pequena posse de
bens exteriores, do que na abundância além do conveniente de
tais bens exteriores juntamente com a deficiência da virtude
e da operação da inteligência.
A felicidade consiste principalmente naquele bem
pelo qual se adquirem, conservam e bem ordenam todas as
demais coisas do que naquelas que são adquiridas, conservadas
e dirigidas por outros. Aquilo pelo qual algo é dirigido e
medido parece ser mais principal. Ora, o que se observa é que
os bens exteriores e alguns bens corporais são adquiridos,
conservados e dispensados segundo a razão reta pela operação
da virtude e da inteligência, e não o contrário. De onde que
se diz, no Quarto Livro da Ética, que sem a virtude não é
fácil bem conservar boas fortunas. Por outro lado, a
abundância das riquezas em si mesmo inclina ao que está além
da razão. A felicidade, portanto, consiste principalmente na
excelência da virtude e na operação da inteligência do que
nos bens exteriores.
Ademais, facilmente poderá ser visto pelos que
quiserem considerar segundo a razão que a felicidade consiste
per se e principalmente em alguma ação segundo a virtude. A
felicidade consiste per se e mais principalmente naquele bem
cujo apetite não tem nenhum limite, do que naquilo que tem um
apetite determinado. Assim como foi dito no primeiro livro
desta Política, o fim da arte médica é curar ao infinito, e o
fim de qualquer arte não possui limite, consistindo no quão
maximamente o artífice o queira levar. Ora, o apetite das
coisas que necessariamente têm um limite não pode ser
infinito. É o caso do apetite dos bens exteriores, que
possuem um limite, mas não o é para o apetite dos bens que
dizem respeito à alma, [os quais não têm limite]. O apetite
dos bens exteriores possui um limite porque estes são
buscados como um certo instrumento necessário para uma
determinada operação. Ora, tudo o que possui razão de
instrumento ou de [bem] útil, se exceder aquilo de que ele
[deve] ser segundo a razão, necessariamente se tornará nocivo
e para nada mais aproveitará. Portanto, necessariamente
possuirá um certo limite até o qual são buscados, e não mais.
Já quanto aos bens da alma, quanto maiores forem, tanto mais
úteis serão, se é que se possa chamar estes não apenas de
bens, mas também de [bens] úteis.
Esta última observação é acrescentada pelo
Filósofo porque segundo a verdade nos bens segundo a alma há
algo que possui razão de bem e não de útil, como o fim último
que não [é bem] por causa de outro. Chamamos, entretanto, de
útil aquele que se ordena a algum outro fim. Isto não
aconteceria a não ser que o apetite dos bens segundo a alma
fosse infinito, e fosse buscado sem limite. É evidente,
portanto, que os bens exteriores possuem um certo limite,
enquanto que os bens que são segundo a alma não possuem
nenhum limite no que diz respeito ao apetite.
A conclusão à qual o Filósofo principalmente
tenciona chegar é que, por causa das razões expostas, cada um
deve aproximar-se da felicidade prática tanto quanto nos for
concedido de virtudes morais, de prudência, de virtudes
intelectuais e de ações que forem segundo estas virtudes, o
que é manifesto pelo testemunho do próprio Deus que é bem
aventurado simplesmente considerado. Deus, de fato, alcança o
que é ótimo para si sem necessidade de nada que lhe seja
extrínseco, mas [apenas] por causa de si mesmo pois, se se
tornasse feliz por causa de algo que lhe fosse extrínseco,
como a felicidade é um fim, Deus teria algum fim distinto de
si mesmo, e portanto haveria algo que seria melhor do que Ele
mesmo. Por este motivo Deus é feliz por sua própria natureza,
de tal modo que a sua felicidade é a sua própria natureza,
diferindo dele mesmo apenas pela razão. Se a felicidade não
fosse a sua própria natureza, mas algo que lhe fosse
acrescentado, seguir-se-ia que em Deus haveria composição e
haveria algo anterior a Ele que seria princípio de
composição, e algo melhor do que Ele, conforme foi explicado.
Tudo isto seria imensamente absurdo, de onde que deve-se
concluir que Deus é feliz, e é feliz pela sua própria
natureza e não por causa de algo que lhe seja extrínseco.
E por causa disso, a saber, que a felicidade não
consiste nas coisas exteriores, mas nos [bens] que são
segundo a alma, dizemos que a boa sorte é algo diverso da
felicidade. A sorte e o acaso são causas dos bens exteriores,
motivo pelo qual são chamados de bens da sorte. Nenhum homem
virtuoso, porém, como o homem justo ou temperante, surge da
boa sorte ou pela boa sorte, mas por causa do costume e da
reta razão. E por isso estes bens da alma são distintos dos
bens da sorte.
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