|
[Embora na natureza exista o acaso e a sorte, as
quais não podem ser reduzidas a alguma causa per se
naturalmente agente], ocorre às vezes que aquilo que ocorre
segundo si mesmo por acidente e casualmente possa ser
reduzido a alguma inteligência pré-ordenante, como no caso de
dois servos que se encontram em algum lugar, casualmente e
por acidente quanto a eles, um deles ignorando do outro; tal
encontro, porém, pode ser intencional por parte do senhor que
os tenha enviado a ambos para que se encontrassem em um certo
lugar.
Por causa disto [coloca-se] que todas as coisas
que se fazem neste mundo, mesmo as que parecem fortuitas e
casuais, possam ser reduzidas à ordem da Providência Divina,
da qual [dependeria] o destino.
Houve, porém, quem negasse a Divina Providência,
por julgarem o intelecto divino ao modo de nosso [próprio]
intelecto, o qual não conhece os singulares. Ora, [quanto ao
intelecto divino], isto é falso. O inteligir divino e sua
vontade são o seu próprio ser. De onde que, assim como o seu
ser, pela sua virtude, [abarca] tudo aquilo que de algum modo
é, na medida em que [tudo o que é o] é por [uma] participação
[do seu ser], assim também o seu inteligir e o seu
inteligível [abarca] todo apetite e todo apetecível que é
bom, de modo que pelo próprio fato de algo ser cognoscível
cairá sob o seu conhecimento, e pelo próprio fato de algo ser
bom cairá sob a sua vontade.
[Há, porém, ainda outras dificuldades que se
levantam sobre a Divina Providência]. Se, [de fato], a Divina
Providência é causa per se de todas as coisas que ocorrem
neste mundo, pelo menos dos bens, pareceria então que tudo o
que ocorre ocorre necessariamente. Em primeiro lugar, por
parte da ciência divina, porque não pode sua ciência enganar-
se e, deste modo, as coisas que ele próprio conhece, parece
que necessariamente tenham que ocorrer. Em segundo lugar, por
parte da vontade, pois a vontade de Deus não pode ser
ineficaz, de onde que todas as coisas que Deus quer,
necessariamente terão que ocorrer.
Todas estas objeções, entretanto, procedem do fato
de que [nelas] o conhecimento do intelecto divino e a
operação da vontade divina são consideradas segundo o modo
com que eles se dão em nós, enquanto que, [de fato, o
conhecimento e a vontade existem em nós] de um modo muito
dessemelhante.
Em primeiro lugar, por parte do conhecimento ou da
ciência deve-se considerar que para conhecer as coisas que
ocorrem segundo a ordem do tempo a força cognitiva que de
alguma maneira está contida debaixo da ordem do tempo
encontra-se de modo diverso do que a força cognitiva que está
totalmente fora do tempo. Como, portanto, nosso conhecimento
cai sob a ordem do tempo, segue-se que as coisas caem sob seu
conhecimento debaixo da razão do presente, do passado e do
futuro. Por este motivo nosso conhecimento conhece as coisas
presentes como existentes em ato e de algum modo perceptível
pelo sentido; conhece as coisas passadas como lembradas;
quanto às coisas futuras, não as conhece em si mesmas, porque
ainda não são, mas pode conhecê-las em suas causas. Pode
conhecer as coisas futuras com certeza se elas forem
totalmente determinadas em suas causas, como coisas que
ocorrem necessariamente a partir de outras; pode conhecer as
coisas futuras por conjectura se não forem determinadas de
tal modo que não possam ser impedidas, como as coisas que
ocorrem na maioria [das vezes]; não poderá conhecer as coisas
futuras de modo algum se estiverem em suas causas
inteiramente em potência de tal modo que não estejam mais
determinadas a um do que a outro [efeito], assim como as
coisas que se encontram [inclinadas] para ambos [opostos]. De
fato, algo não é cognoscível na medida em que está em
potência, mas somente na medida em que está em ato, como é
manifesto pelo que diz o Filósofo no IX da Metafísica.
Mas Deus está inteiramente fora da ordem do tempo,
constituído nos [arcanos] da eternidade, a qual é toda
simultânea, a quem está submetido todo o curso do tempo,
segundo sua única e simples intuição. Por isso Deus, com uma
só intuição, vê todas as coisas que são feitas segundo o
curso do tempo e a cada coisa [como algo presente e]
existente em si mesmo e não como algo que lhe é futuro apenas
[enquanto] intuível na ordem de suas causas, embora Deus
também veja a própria ordem destas causas.
[Deste modo, Deus] vê todas as coisas que estão em
qualquer tempo de um modo inteiramente eterno, assim como
quando o olho humano vê, [num momento presente], a Sócrates
que se senta, vendo-o em si mesmo, e não na sua causa. De
fato, quando o homem vê a Sócrates sentando-se, não se retira
a sua contingência quanto à ordem da causa ao efeito;
todavia, o olho humano vê certissima e infalivelmente
Sócrates sentar-se quando ele se senta, porque cada coisa, na
medida em que está em si mesmo, já a determina. Assim,
portanto, conclui-se também que Deus certissima e
infalivelmente conhece todas as coisas que se fazem no tempo
e, todavia, as coisas que se fazem no tempo não são ou se
tornam necessariamente, mas contingentemente.
Semelhantemente, [outra] diferença deve ser
considerada por parte da vontade divina.
A vontade divina deve ser entendida como existindo
fora da ordem dos entes, como uma certa causa que difunde
todo o ser e todas as suas diferenças. Ora, são diferenças
dos entes o [ser] possível e o [ser] necessário. Por isso, da
própria vontade se originam nas coisas a necessidade e a
contingência, assim como a distinção de ambas segundo a razão
das causas próximas. De fato, aos efeitos [que a vontade
divina] quis que fossem necessários, dispôs causas
necessárias; aos efeitos que quis que fossem contingentes,
ordenou causas atuando contingentemente, isto é, possíveis de
falha. E segundo a condição destas causas, os efeitos são
ditos necessários ou contingentes, embora todas dependam da
vontade divina, como de uma causa primeira, a qual transcende
a ordem da necessidade e da contingência.
|
|