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Depois que o Filósofo mostrou que são naturalmente
servos aqueles aos quais convém servir e isto lhes é justo,
mostra que também a opinião contrária é verdadeira em alguma
parte.
Não é difícil ver que aqueles que dizem que
nenhuma servidão é natural e justa segundo algum modo dizem o
que é correto. De fato, o servo e o servir são ditos de duas
maneiras. A primeira maneira é segundo a aptidão natural,
conforme foi dito acima. A segunda maneira é aquela segundo a
qual alguém é servo ou exerce a servidão segundo alguma lei
colocada entre os homens. De fato, os homens promulgam leis
de modo que aqueles que são vencidos na guerra são ditos
servos daqueles que contra eles prevaleceram. Este é o
direito que é usado por quase todos os povos, de tal modo que
este é dito o direito das gentes. Isto fêz com que a alguns
parecesse que tal coisa fosse injusta, enquanto que a outros
pareceu de outro modo e esta diversidade existe não apenas
entre os populares, mas também entre os sábios.
A causa destas dúvidas, pelas quais variam as
palavras dos sábios, reside no fato de que a virtude que é
por algum modo, isto é, seja pela sabedoria, seja pela
constância, seja pela força corporal ou por qualquer outro
modo, se alcança o sucesso, isto é, se nada de contrário lhe
ocorre pelo infortúnio, pode compatibilizar-se com o fato de
exercer alguma violência, de onde que é manifesto que aquele
que supera sempre está na posse do excesso de algum bem, a
não ser que ocorra diversamente por causa de um infortúnio,
de onde que a violência nunca ocorre sem alguma excelência
daquele que infere a violência. Isto é por si manifesto;
apenas fica a questão se será justo que por causa da
excelência de qualquer virtude alguém deve governar aqueles
que são vencidos, coisa sobre a qual há diversas opiniões.
Alguns dizem que a justiça da referida lei se deve
à benevolência, isto é, trata-se de algo introduzido em favor
dos vencedores, para que com isto os homens fossem
incentivados a lutar com mais fortaleza.
A outros pareceu que teria alguma razão de justiça
que aquele que parece melhor, pelo fato de vencer, governe.
Ambas estas opiniões são sustentadas pelos homens
porque dizem que se estas razões forem removidas e não for
sustentado que deve governar aquele que for melhor segundo as
qualidades que pertencem aos vitoriosos não haverá mais nada
que seja eficaz para mover a razão nem também que tenha
alguma probabilidade de fazê-lo, a não ser estas posições que
são o comumente aceito pelos homens.
Para determinar total e completamente a verdade
destas dúvidas deve-se dizer que alguns, dando atenção a
[algum modo do] justo, isto é, ao justo segundo algum
[aspecto], tal como pode existir nas coisas humanas, que é o
justo trazido pela lei, colocam que a servidão proveniente da
guerra é justa; [de fato], não dizem que é justa
inteiramente, isto é, de modo simples. O Filósofo diz que não
é justo de modo simples que todos os que foram vencidos pelos
inimigos se tornem servos, porque freqüentemente ocorre que
os sábios sejam superados pelos estultos e, portanto, [tal
servidão] seria apenas algo instituído para a comodidade da
vida humana. Diz-se justo de modo simples aquilo que é justo
segundo a sua natureza e justo segundo algo o que diz
respeito à comodidade humana, que é o que pretende a lei, já
que todas as leis foram feitas por causa da utilidade dos
homens.
De fato, a servidão [dos vencidos] é útil até para
os que foram vencidos porque por causa dela [os vencidos] são
preservados pelos vencedores para que possam, pelo menos,
viver para servir. É útil também, [sob certo aspecto], para
os vencedores, porque através [deste costume] os homens são
incentivados a lutarem com maior fortaleza e, para o convívio
humano, é útil que haja alguns fortes lutadores, para proibir
a multiplicação de muitos males.
Se a lei humana pudesse determinar eficazmente
quais são os melhores pela mente, sem dúvida, segundo a
natureza, te-los-ia ordenado senhores. Não podendo, porém,
fazer isto, a lei tomou algum outro sinal de preeminência, a
saber, a própria vitória que procede de alguma excelência na
virtude e por isso estabeleceu que os vencedores fossem
senhores daqueles que são vencidos. É este o motivo pelo qual
esse modo do justo é dito justo segundo algo, tanto quanto
foi possível que fosse determinado pela lei; não se trata,
porém, do justo de modo simples. Este modo do justo, porém, é
observado até mesmo pelos homens virtuosos segundo a mente
porque como o bem comum é melhor do que o bem próprio de um
só, não se deve infringir o que convém ao bem público embora
isto não convenha a uma pessoa em particular.
[Que isto seja assim e que este modo de justiça
não é o justo de modo simples pode ser provado inclusive por
outras considerações comumente aceitas]. [De fato], para
evitar os inconvenientes que acabamos de mencionar, os homens
não querem sustentar que os nobres, quando são capturados na
guerra, sejam feitos servos, mas que apenas os bárbaros, ao
serem vencidos, sejam tomados como servos. Deste mesmo modo
os homens falam sobre a liberdade. O livre é aquele que nem é
servo nem, se chegou a sê-lo, aquele que foi liberto. Dizem
os homens que os nobres são livres não apenas quando estão em
si mesmo, isto é, em sua própria casa e domínio, mas também
em qualquer lugar da terra, enquanto que os bárbaros são
naturalmente servos, por causa do defeito da razão, estando
às vezes livres apenas por falta e carência de senhores. O
Filósofo diz que aqueles que raciocinam deste modo nada mais
querem dizer senão que a liberdade e a servidão, a nobreza e
a ignobilidade são determinadas pela virtude da mente, de tal
modo que aqueles que são virtuosos pela mente são livres e
nobres, enquanto que aqueles que são possuídos pelos vícios
são servos e ignóbeis.
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