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A causa das leis que Sócrates atribui à cidade
perfeita consistia em que este supunha, como um princípio,
que seria perfeita a cidade que fosse tão una quanto possível
e, por causa disso, queria ele que tudo fosse comum, até
mesmo os filhos e as esposas, para que os cidadãos fossem
maximamente unidos entre si.
Mas é manifesto que uma cidade pode alcançar uma
unidade maior do que a que deveria, de tal maneira que não
poderia mais subsistir. De fato, o Filósofo explicou acima
que a cidade é naturalmente uma certa multidão; ora, a
multidão opõe-se à unidade. De onde que se a cidade fosse
mais una do que o que deveria, já não seria mais cidade, mas
de cidade se transformaria em casa. E, do mesmo modo, se a
casa se unisse mais do que deveria, da casa não restaria
senão um só homem. Ninguém, de fato, duvida que uma casa é
mais una do que uma cidade, e que um só homem é mais uno do
que uma casa. De onde que, se alguém pudesse fazer que em uma
cidade houvesse tanta unidade como há em uma casa, isto não
deveria ser feito, porque com isso se destruiria a cidade.
Mas porque alguém poderia dizer que Sócrates não
se referia à unidade que exclui a multidão de pessoas, mas à
unidade que exclui a sua dessemelhança, por isso o Filósofo
acrescenta que a cidade não apenas deve ser de muitos homens,
mas também que deve ser de homens diferentes em espécie, isto
é, de homens de diversas condições. Isto pode ser manifestado
pelas seguintes razões.
Primeiro, porque uma coisa é a cidade e outra é
uma multidão congregada pelo lutar junto. A multidão
congregada pelo lutar junto é útil apenas pela quantidade
numérica, assim como ocorre com aqueles que querem deslocar
um determinado peso, em que uma maior multidão de homens
desloca um peso maior; assim também, uma maior multidão de
soldados semelhantes mais facilmente obtém a vitória. Mas
quanto às coisas pelas quais deve-se produzir algo perfeito,
[observa-se que nestas há] diferença de espécie. Nas coisas
naturais, de fato, qualquer todo perfeito é constituído de
partes diversas segundo a espécie, como o é o homem pela
carne, pelos ossos e pelos nervos, enquanto que aqueles todos
que são compostos de partes da mesma espécie são imperfeitos
no seu gênero natural, como o ar, a água e os demais corpos
inanimados. De onde que é manifesto que, sendo a cidade um
certo todo perfeito, é necessário que consista de partes
dessemelhantes segundo a espécie.
Deste modo é evidente que, pertencendo à natureza
da cidade que ela seja construída de partes dessemelhantes,
não é consentâneo à razão o que Sócrates afirma quando diz
que a cidade deve ser maximamente una, já que, se for
removida a dessemelhança dos cidadãos, já não mais teremos
cidade. Ora, esta dessemelhança maximamente parece ser
removida quando se tornam comuns as posses, as mulheres e os
filhos.
[Ademais], pode-se mostrar que na cidade importa
haver alguma diferença entre os cidadãos porque alguns entre
eles devem governar e outros devem submeter-se. Não é
possível que todos governem simultaneamente; se todos
governam, será necessário que isto seja de modo alternado, de
tal maneira que cada um governe em seu ano, ou em qualquer
tempo determinado, como um mês, um dia, ou segundo qualquer
outra ordem, [até mesmo] que os governantes sejam eleitos
pela sorte e, segundo este modo, todos governarão cada qual a
seu tempo. Será melhor que se a cidade possa dispor-se de tal
modo que sejam sempre os mesmo que governam. Isto, porém,
somente será possível quando em alguma cidade encontram-se
alguns homens muito mais excelentes do que os demais pelos
quais será ótimo que a cidade seja sempre governada. Quando
isto não é possível porque todos os cidadãos são quase iguais
segundo a sua natural indústria e virtude, então será justo
que todos participem do governo, porque é justo que
participem igualmente dos bens e cargos comuns aqueles que
são iguais na cidade. Seria justo também, se isto fosse
possível, que todos governassem simultaneamente mas, como tal
coisa não é possível, como uma imitação desta justiça
observa-se que aqueles que são iguais se submetem um ao outro
por partes, embora por princípio sejam semelhantes, porque na
medida em que alguns governam e outros se submetem, de algum
modo se tornam dessemelhantes e diversos pelo grau de
dignidade. Deste modo fica evidente que para a cidade se
exige a diversidade dos governantes e dos súditos, ou de modo
simples, ou segundo algum tempo. Fica manifesto, portanto,
que a cidade não nasceu para ser una, conforme dizem alguns,
de tal maneira que todos sejam semelhantes. E aquele que diz
que o maior bem na cidade é a máxima unidade, este mesmo
destrói a cidade, de onde que [este] não pode ser o bem da
cidade, porque cada coisa é salva por aquilo que é o bem para
si.
A mesma coisa pode ser mostrada pela finalidade da
cidade, que é a suficiência da vida. Por este outro modo
pode-se mostrar que não é melhor que o homem busque unir ao
máximo a cidade, pois com isto lhe tiraria a suficiência da
vida. É manifesto que uma casa ou uma família inteira é mais
suficiente para a vida do que um só homem, e que a cidade é
ainda mais suficiente do que uma casa. Se, portanto, aquilo
que é menos uno é mais suficiente per se, como a casa o é em
relação ao homem e a cidade o é em relação à casa, segue-se
manifestamente que é melhor para a cidade que ela seja menos
una quanto à distinção dos cidadãos, do que seja mais una. De
fato, a cidade será mais suficiente para si quanto maior for
a diversidade de homens nela encontrada.
Por tudo isto fica manifesto ser falso o dito de
Sócrates segundo o qual a cidade perfeita é a que é
maximamente una.
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