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Depois quer o Filósofo mostrou que na república
reta a disciplina do governante e do súdito deve ser a mesma
sob um certo modo e diversa sob outro modo, passa agora a
declarar como e por quais meios os cidadãos se tornam bem
disciplinados e estudiosos.
Pretendemos considerar, diz o Filósofo, como e por
quais meios o cidadão se torna disciplinado e estudioso. Ora,
já que a mesma é a disciplina ou a virtude do cidadão ótimo
na ótima república pela qual se ordena à felicidade
perfeitíssima, que o fim, e daquele que a governa, assim como
também a do homem ótimo, ainda que seja necessário que ele
antes seja súdito quando é jovem e imperfeito e seja depois
governante quando já perfeito, mais deveremos considerar
governante ou o legislador da cidade, como e por quais meios
se tornam homens ótimos e bem disciplinados. E porque a razão
destas coisas é tomada do fim último da vida humana, deve-se
considerar qual é este fim. Este sendo manifestado, tornar-
se-á evidente como e por quais meios os cidadãos se tornam
bem disciplinados e estudiosos.
O Filósofo declara o que é a felicidade
primeiramente pela divisão das partes da alma. O fim último
da vida humana não consiste principalmente em alguma das
coisas que pertencem per se ao corpo. O corpo, de fato, e as
suas perfeições são por causa da alma. O fim último da vida
humana está mais naquelas coisas que pertencem à alma, que é
a parte mais excelente do homem. Na alma, porém, deve-se
considerar a parte racional, qualquer que seja o seu modo, e
a parte inteiramente irracional.
O fim último do homem não pode consistir no ato da
parte inteiramente irracional da alma, porque é necessário
que este fim consista em algo que é próprio do homem, pelo
qual se distingue dos demais, já que o fim último do homem
deve ser próprio do mesmo. Ora, a parte totalmente irracional
da alma é comum ao homem e aos demais [animais], de onde que
a felicidade não poderia consistir em alguma perfeição
pertencente a esta parte, mas mais em algo pertencente à
parte de algum modo racional da alma.
As partes da alma que possuem razão são duas,
distintas entre si. A primeira é a que é racional por
essência, a outra é a que segundo se não é racional, mas é
racional segundo uma certa participação, porque é capaz de
obedecer à razão, ordenar-se ou proceder da mesma.
Em qualquer destas partes da alma racional há
algumas virtudes morais, por exemplo, a temperança e a
justiça na parte irracional [por essência mas que é racional
por participação]. Na parte racional por essência há as
razões, como a prudência e a sabedoria. E é manifesto pelo
que foi dito que no ato de alguma destas, [isto é, no ato
tanto da parte racional por participação como no da parte
racional por essência] consiste o fim último do homem. Em
qual, [precisamente], ficará manifesto pelo que se segue,
pois em cada gênero aquilo que é pior ou menos bom é por
causa do melhor, o que é evidente per se tanto nas coisas que
se fazem pela natureza como nas coisas que se fazem pela
arte.
Na natureza a matéria é por causa da forma, e os
primeiros elementos simples são por causa dos [corpos]
mesclados, nos quais as coisas imperfeitas são por causa das
perfeitas, como no gênero dos animais.
Algo semelhante ocorre também nas coisas que são
segundo a arte. A madeira e as pedras são dispostas [de algum
modo] por causa da forma da casa; a casa, porém, é disposta
de um determinado modo por causa da habitação.
A razão do que acaba de ser exposto consiste em
que aquilo que é pior em cada gênero possui razão de
imperfeito e de ente em potência, enquanto que o melhor no
mesmo gênero possui razão de perfeito e de ente em ato. Ora,
o imperfeito e o ente em potência estão para o perfeito e o
ente em ato assim como a potência está para o ato no mesmo
gênero. Ora, no mesmo gênero a potência é por causa do ato,
de onde que o ente em potência e o ente imperfeito são por
causa do ente em ato e do ente perfeito e, ulteriormente, no
mesmo gênero o pior é por causa do melhor.
Mas, entre as partes da alma, o racional por
essência é melhor do que o racional por participação porque
aquilo que é tal por essência é melhor e mais perfeito do que
aquilo que é tal por outro. Portanto o racional por
participação será por causa do racional por essência, e por
conseqüência sua perfeição será por causa da perfeição deste.
Se, portanto, aquilo por causa do qual é outro possui razão
de fim em relação a este outro a parte racional por essência
da alma e alguma perfeição sua será fim da parte racional por
participação da alma e a sua perfeição.
O Filósofo, então, declara que o fim último da
vida humana consiste na operação da parte especulativa da
alma. A parte racional por essência da alma é dividida em
duas partes, conforme [ele] costuma dividí-la, das quais uma
é a prática, que raciocina sobre as coisas agíveis que podem
ocorrer de modos diversos, e a outra é a especulativa, que
trata principalmente sobre a natureza dos entes e das coisas
impossíveis de ocorrerem, enquanto tais, de modos diversos.
E porque as operações são consemelhantemente
divididas por princípios e estão uma para com a outra
proporcionalmente como estes, conseqüentemente será
necessário que as operações da melhor parte segundo a
natureza sejam melhores segundo se e mais elegíveis do que
aquelas que podem se originar [das piores]. A operação, de
fato, segue, per se, a natureza e por isso a [operação da
natureza] mais perfeita é mais perfeita e é mais elegível
para cada um aquilo pelo qual [cada um] pode alcançar o sumo
e o perfeitíssimo. Ora, esta é a operação do mais perfeito
segundo a natureza.
Do que foi dito pode-se concluir a seguinte
proposição, isto é, que é melhor a operação da melhor e mais
excelente parte da alma, a qual também é mais elegível de
modo simples, e por conseqüência possui mais razão de fim.
Mas a parte especulativa da alma é melhor e mais
perfeita por natureza do que a prática, o que é evidente pela
razão do objeto. A parte da alma intelectual mais perfeita e
melhor no gênero da inteligência é aquela cujo objeto mais
possui razão de inteligível, porque a natureza da potência é
considerada pela razão do objeto, e o que é mais inteligível
segundo a natureza é mais perfeito no gênero dos
inteligíveis.
Mas o objeto do intelecto especulativo possui mais
razão de inteligível do que o objeto do intelecto prático. O
objeto do intelecto prático é o bem agível e possível de
ocorrer de modos diversos, o qual possui menor razão de
inteligível por causa da razão do movimento e da
possibilidade de [eventos] adjuntos. O objeto do intelecto
especulativo, porém, é a natureza dos entes intransmutáveis,
ou pelo menos não enquanto transmutáveis, os quais possuem
mais razão de inteligíveis, como algo mais remoto do
movimento e da matéria. Portanto, a parte especulativa da
alma é mais excelente e mais nobre do que a prática.
Segue=se, portanto, que a sua operação será mais perfeita e
mais elegível, e mais possuirá razão de fim.
Já que os atos e os objetos são divididos
proporcionalmente pelas próprias potências, e se dividem
mutuamente assim como as próprias potências entre si, toda a
vida humana, isto é, a conversação segundo a razão, que é o
ato da alma que possui razão, é dividida proporcionalmente
segundo as partes mencionadas da alma no exercício das
virtudes morais, principalmente as que são para o outro, e no
exercício das virtudes contemplativas. Os agíveis pelo homem
são divididos em bens necessários e úteis para um determinado
fim e em bens segundo si mesmos, acerca dos quais é
necessário fazer eleição como acerca das partes da alma, isto
é, assim como a parte racional por participação da alma é por
causa da parte racional por essência da alma, deve se
procurar a guerra por causa da paz e o exercício das virtudes
práticas por causa da contemplação.
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