3. Comparação da cidade com outras comunidades.

[Para melhor entender a comparação da cidade com outras comunidades, Aristóteles antepõe uma posição de alguns que ele considera falsa].

Devemos considerar primeiramente que é manifesto para todos haver dois tipos de comunidade, a cidade e a casa.

A cidade pode ser governada por dois tipos de regime, o político e o real. O regime é dito real quando aquele que preside a cidade possui um poder pleno. O regime é dito político quando aquele que a governa tem o seu poder limitado segundo algumas leis da cidade.

Do mesmo modo, há dois tipos de regime para uma casa. Chamam-se déspotas todos aqueles que possuem servos; chamam-se ecônomos aqueles que são procuradores ou dispensadores de alguma família. De onde que o regime despótico é aquele pelo qual algum senhor preside aos servos, e o regime econômico é aquele no qual alguém dispensa sobre as coisas que pertencem a toda a família, na qual se incluem não apenas servos, mas também [homens] livres.

[Feitas estas premissas, pode-se dizer que] alguns colocaram, e não corretamente, que estes regimes não diferem, mas são inteiramente o mesmo. Suas razões foram as seguintes. Tudo o que difere apenas pela multidão ou pelo tamanho não difere pela espécie, porque a diferença que é segundo o mais e o menos não diversifica a espécie. Mas os regimes mencionados diferem apenas pela multidão e pelo tamanho, o que, [segundo os que sustentam esta posição, poderia] ser manifestado do seguinte modo.

Se a comunidade governada é de poucos, como ocorre em alguma pequena casa, aquele que governa é chamado pai de família, a quem pertence o principado despótico. [Se a comunidade governada contém] alguns poucos a mais, de tal modo que não contenha apenas servos, mas também uma multidão de livres, aquele que preside é chamado de ecônomo. Se, porém, [a comunidade governada contém muitos mais, isto é], não somente [homens] que são de uma só casa, mas de toda uma cidade, este regime é dito político ou real.

Esta opinião, porém, não é verdadeira. Assim como em outras coisas, nas quais para conhecer o todo é necessário dividir o composto até chegar aos indivisíveis que são as menores partes do todo, assim também, se considerarmos as coisas de que é composta a cidade, mais poderemos ver no que diz respeito aos regimes mencionados o que é cada um em si mesmo e no que diferem entre si. De fato, observa-se em todas as coisas que se alguém examina cada coisa na medida em que se origina de seu princípio, poderá otimamente contemplar a sua verdade. Depois, entretanto, será ainda necessário usar a via da composição, de tal modo que a partir das coisas indivisíveis já conhecidas possamos julgar sobre as coisas que são causadas de seus princípios.

[Consideremos, portanto, em primeiro lugar], uma comunidade de pessoa a pessoa. Há duas comunicações pessoais, das quais a primeira é a do homem com a mulher. Já que é necessário que a cidade seja dividida até às suas partes mínimas, é necessário dizer que a primeira combinação é de pessoas que não podem existir uma sem a outra mutuamente, que é a combinação do homem e da mulher. Esta combinação existe por causa da geração, pela qual se produzem os homens e as mulheres.É evidente, por este motivo, [que o homem e a mulher] não podem existir mutuamente um sem o outro. Nesta combinação deve-se considerar que no homem encontra-se algo que é comum a ele e a outros, que é o gerar. Isto não lhes compete por uma eleição [ou escolha], isto é, na medida em que possuem uma razão que elege, mas compete-lhes segundo a razão comum a si e aos [demais] animais e também às plantas. Em todos estes inere um apetite natural para que deixem após si um outro tal qual ele mesmo é, de tal modo que pela geração se conserve pela espécie aquilo que não pode ser conservado pelo número.

A segunda comunicação entre pessoas é a que se dá entre o que governa e o súdito, e esta também é uma comunicação que procede da natureza, por causa da preservação. A natureza, de fato, não pretende apenas a geração, mas também que o que é gerado se preserve. Isto ocorre nos homens por causa da comunicação entre o que governa e o súdito, o que pode ser evidenciado [considerando] que aquele que governa e domina por natureza é aquele que pela sua inteligência pode prever o que é conveniente à preservação, [sabendo] causar o útil e repelir o nocivo. Aquele, porém, que por causa de sua força corporal é capaz de executar pela obra aquilo que o sábio prevê pela mente é naturalmente um súdito [ou um] servo. Disto é manifesto que ambas estas coisas são úteis para ambos para a preservação, isto é, que aquele governe e que este obedeça. Aquele que por sua sabedoria pode prever pela mente às vezes não pode preservar-se pela falta de forças corporais, a não ser que tenha um servo que execute, enquanto que aquele que é pleno de forças corporais não pode preservar-se se não for governado pela prudência de algum outro.

Conclui-se, [deste raciocínio], que a mulher e o servo possuem uma distinção natural evidente. A mulher possui uma disposição natural à geração se unir-se a outro, enquanto que a [disposição natural do servo] é a da força corporal. Ambas as comunicações anteriores, portanto, são manifestamente diversas.

Uma casa é algo constituído a partir de muitas comunicações pessoais [como as que acabamos de mencionar]. Partindo das duas comunicações pessoais anteriores, a primeira das quais existe para a geração, a segunda das quais existe para a preservação, constituíu-se a primeira casa. De fato, é necessário para haver uma casa que haja um homem e uma mulher e um senhor e um servo. [O filósofo diz] "a primeira casa", porque há uma outra comunicação pessoal que pode ser encontrada em uma casa, que é a do pai para com o filho, a qual é causada pela anterior. As comunicações primordiais, são, portanto, [a do homem e da mulher, e a do senhor e do servo].

[Consideremos agora] ao que se ordena a comunidade da casa. Todo comunicação humana é segundo algum ato. Entre os atos humanos há alguns que são cotidianos, como comer, aquecer-se ao fogo e outros. Há outros atos que não são cotidianos, como comprar e vender, lutar e outros. É natural para os homens que em ambos estes tipos de obras eles se auxiliem comunicando-se entre si. É por isto que o Filósofo diz que a casa nada mais é do que uma certa comunidade constituída segundo a natureza para os atos que é necessário fazer cotidianamente.

Chama-se vila a primeira comunicação que existe entre várias casas, a qual é dita primeira para diferenciá-la da segunda, que é a cidade. A vila é uma comunidade constituída diversamente de uma casa; os que participam de uma vila não comunicam entre si nos atos cotidianos em que comunicam aqueles que são da mesma casa, mas comunicam em outros atos exteriores que não são cotidianos.

A comunidade que é chamada vila também pertence às coisas da natureza. De fato, as casas vizinhas, às quais chamamos vilas, são maximamente segundo a natureza. Onde há casas vizinhas a vizinhança destas casas proveio em primeiro lugar porque os filhos e os netos, ao se multiplicarem, instituíram várias casas uma próxima à outra. Portanto, se a multiplicação da prole é algo da natureza, segue-se também que a comunidade a que se chama vila também seja algo da natureza.

Foi pelo fato de que as vilas se constituíram pela multiplicação da prole que no princípio todas as cidades eram governadas por reis, porque toda casa é regida por algo muito antigo, assim como os filhos são regidos pelo pai de família. Daqui ocorria que também toda vila, que era constituída por consangüíneos, era regida pelo parentesco por alguém que era principal no parentesco, assim como uma cidade é regida pelo rei. É por isso que Homero diz que cada um institui leis para sua esposa e seus filhos assim como um rei em uma cidade. Por isto também este regime passou das casas e das vilas às cidades, porque diversas vilas são uma cidade dispersa em diversas partes, e é por isto [igualmente] que na antigüidade os homens habitavam dispersos em vilas, não ainda congregados em uma só cidade. Disto ainda se torna evidente que o governo de um rei sobre uma cidade ou um povo procede de um regime mais antigo em uma casa ou em uma vila.

Por isto também todos os povos diziam que seus deuses eram regidos por algum rei. Diziam, por exemplo, que Júpiter era o rei dos deuses. Hoje muitos homens são governados por reis; na antigüidade, porém, todos os homens eram regidos por reis. Este, de fato, foi o primeiro regime, como mais adiante se dirá. Ora, os homens, assim como assemelham a si as imagens dos deuses, isto é, suas formas, julgando que seus deuses possuem a figura de alguns homens, assim também lhes assemelham as suas vidas, isto é, o seu convívio, julgando [que os deuses] convivam assim como observam conviverem os homens. [S. Tomas de Aquino adverte, neste ponto, que, sob o nome de deuses], Aristóteles na realidade quer designar, segundo o costume dos filósofos platônicos, as substâncias separadas da matéria, todas elas criadas por apenas um único e sumo Deus, aos quais os gentios atribuíam erroneamente formas e costumes humanos.

Tendo investigado a natureza das comunidades que se ordenam à cidade, o Filósofo passa agora a investigar sobre a própria comunidade a que se chama cidade. [Diz ele que], assim como uma vila é constituída de várias casas, assim uma cidade é constituída de várias vilas.

O Filósofo diz que a cidade é a comunidade perfeita, o que pode demonstrar-se pelo fato de que toda comunicação entre todos os homens se ordena a algo necessário à vida. Portanto, a comunidade perfeita será aquela que se ordena a que o homem tenha suficientemente tudo o que é necessário à vida. Ora, esta comunidade é a cidade. De fato, pertence à razão da cidade que nela se encontre tudo o que é suficiente à vida humana. É por isto que a cidade se constitui de várias vilas, nas quais em uma se exerce a atividade fabril, em outra a atividade têxtil, e assim sucessivamente. De onde fica manifesto que a cidade é comunidade perfeita.

De tudo isto fica também evidente ao que se ordena a cidade. Ela existiu, em primeiro lugar, para que os homens encontrassem suficientemente aquilo pelo qual pudessem viver, mas disto proveio que os homens não apenas vivessem, mas que também vivessem bem, [isto é], na medida em que pelas leis da cidade a vida do homem seja ordenada às virtudes.