|
Depois que o Filósofo investigou as coisas que
devem ser supostas para a instituição da república ótima por
parte do fim e da matéria da própria cidade, passa agora a
declarar a partir de que homens deve ser instituída a cidade
ótima. Como, porém, o cidadão se define pela cidade e a
cidade ótima é determinada pelo fim ótimo, deveremos
considerar algumas suposições necessárias para a abordagem do
assunto que nos interessa.
Deve-se supor, primeiro, que assim como no
Universo encontra-se um duplo bem, isto é, o bem separado
e o bem da ordem, e o bem separado é maior do que o bem
da ordem, conforme foi determinado por Aristóteles no
décimo segundo livro da Metafísica, e o bem perfeito é
agregado destes [dois] bens, assim também no homem, que é
dito um pequeno universo, encontra-se de um certo modo um
duplo bem, que são o bem do fim e o bem da ordem, nos
quais o bem da ordem das coisas que se ordenam a um
determinado fim é determinado pelo próprio fim, e o bem
perfeito do homem é agregado destes dois bens.
Supostas estas coisas, o Filósofo diz que já que
há duas coisas pelas quais ocorre que os homens sejam bons,
das quais uma é o fim reto da operação e a intenção dele do
mesmo, e o outro é a descoberta das ações e dos instrumentos
que se ordenam a tal fim, o ótimo [para cada homem] consiste
no seu fim ótimo e na ordenação das demais coisas para o
mesmo.
Ocorre algumas vezes que estas coisas se
harmonizem ou destoem entre si. Destoam porque às vezes o
homem coloca diante de si um fim bom e permanece na sua
intenção reta para com o mesmo, pecando, porém, na ação das
coisas que se ordenam àquele fim, ou na sua própria ordem.
Outras vezes as coisas que se ordenam ao fim subsistem todas
e retamente ordenadas, mas o fim colocado e pretendido é mau.
[Ambas estas coisas] podem harmonizar-se entre si quando o
homem peca em ambas, tanto no fim como nas coisas que se
ordenam ao mesmo, ou quando toma ambas retamente, colocando-
se um fim reto e pretendendo alcançá-lo, e também ordenando
retamente as coisas que são para este fim.
Não todos os homens se encontram do mesmo modo em
relação ao seu ótimo ou felicidade. É manifesto por si mesmo
que todos os homens naturalmente apetecem viver bem. Todos,
de fato, apetecem naturalmente a sua perfeição. Mas não há em
todos os homens uma igual habilidade para alcançá-la. Alguns
são tão depravados pelo costume, ou por algum outro motivo,
que embora se inclinem por natureza à felicidade e ao bem
viver, todavia não buscam estas coisas por um caminho ou um
modo reto. Deste modo, que alguém não alcance a felicidade
pode ocorrer ou porque não colocam retamente o que seja a
felicidade, ou porque não buscam retamente as coisas que se
ordenam a mesma, ou por ambos estes motivos.
Já que o propósito de nossa intenção é considerar
qual é a república ótima, e a república ótima é aquela
segundo a qual a cidade governa e vive otimamente, e que
cidade governa e vive otimamente quando alcança a felicidade
ótima, por isso importa que nós pré consideremos aquilo pelo
qual esta se determina. Ora, a cidade ou república ótima é
determinada pela felicidade, conforme acaba de ser exposto.
O Filósofo diz que já determinamos nos livros de
Ética que a felicidade é
|
"a operação e o uso perfeito da
virtude considerada de modo
simples, e não por suposição".
|
|
A felicidade é uma operação, [e não um hábito], porque o
hábito é [algo] em potência e [por isso] imperfeito, enquanto
que a felicidade é dita ser o bem perfeito.
A felicidade [deve ser também uma operação] da
virtude, porque a virtude é o que aperfeiçoa a quem a possui
e torna a sua operação algo bom. Ora, se a felicidade é o
perfeito fim do homem, deverá ser, portanto, segundo a sua
virtude.
A felicidade é o uso perfeito [da virtude], porque
uma só operação não faz o homem feliz, mas muitas e
contínuas. Os atos contínuos de algo são o uso perfeito
daquele ato, segundo o que o uso é o mesmo que o exercício.
No Primeiro Livro da Ética, o Filósofo não define
a felicidade como a "operação e o uso perfeito da
virtude", mas como "a operação do homem segundo a virtude
perfeita na vida perfeita". Ambas estas definições são a
mesma segundo a coisas, porque aquilo que na política é
colocado como sendo o uso perfeito é o mesmo que na Ética é
colocado como sendo a vida perfeita.
Para entender a partícula acrescentada à
definição, isto é, "considerada de modo simples, não por
suposição", deve-se entender que o fim, segundo se, possui
razão de bem. Das coisas que se ordenam ao fim, há algumas
que possuem alguma razão de bem por si mesmo, como um remédio
doce, enquanto que há outras que não possuem esta razão de
bem e de elegível, mas [possuem razão de bem] apenas por sua
ordenação ao fim, como um remédio amargo. O remédio amargo,
em si mesmo, não é elegível, mas o é apenas por causa da
saúde. Os bens do primeiro tipo são ditos bens de modo
simples, enquanto que os bens do segundo tipo são assim ditos
apenas por causa da necessidade [do fim].
O Filósofo chama de operação boa por suposição
aquela que é necessária para o fim, mas segundo si não possui
razão de bem. O Filósofo chama de operação boa simplesmente
considerada aquela que possui razão de bem segundo se e não
apenas por causa do fim, como o são as ações da justiça. De
fato, as sentenças dos condenados, seus suplícios e punições
procedem da virtude da justiça, e são necessárias para a
cidade, pois de outra maneira não se salvaria a cidade nem a
comunicação que deve haver [nela entre os cidadãos]; possuem,
portanto, razão de bem porque são necessárias, mas, segundo
si, não são absolutamente elegíveis. De fato, seria mais
elegível se fosse possível que os homens ou as cidades não
necessitassem de tais operações. Mas as ações que são acerca
da honra e acerca da abundância dos bens exteriores são
elegíveis de modo simples segundo se. A honra, de fato,
dispõe e realiza o bem segundo a alma, na medida em que
alguém, por causa da honra, opera coisas grandes e dignas de
honra. As riquezas naturais produzem principalmente o bem
segundo o corpo.
Deve-se entender, porém, para a evidência do que
foi dito e do que irá ser dito, que a felicidade per se não
consiste nos bens exteriores, por exemplo, nas riquezas, nem
no uso delas. A felicidade não pode consistir per se nelas
porque ninguém busca a felicidade por causa de alguma outra
coisa, enquanto que as riquezas são buscadas por causa de
outras, ou por causa das necessidades da vida, ou por causa
da operação da virtude. Portanto, a felicidade não pode
existir per se nas riquezas. A felicidade não consiste no uso
per se das riquezas, porque o uso ótimo das riquezas que está
no seu consumo, parece ordenar-se per se imediatamente ao bem
do corpo, por exemplo, à sustentação da natureza, ou pelo
menos se ordena a alguma outra coisa, enquanto que a
felicidade não dizemos que se ordena a nenhuma outra coisa.
A felicidade, ademais, é a operação da virtude
perfeitíssima. Ora, o bom uso das riquezas não é a operação
perfeitíssima da virtude, porque a liberalidade ou a
magnificência, que são operações das riquezas, não são
virtudes perfeitíssimas, a prudência e a sabedoria sendo
maiores do que elas. Portanto, a felicidade per se não pode
consistir no uso das riquezas; estes devem, todavia,
preexistir à própria felicidade.
A felicidade consiste na ótima operação
intelectual per se. Para qualquer operação intelectual, seja
ela especulativa ou prática, é necessário pressupor a
consistência do sujeito e sua boa disposição. A consistência,
porém, e a boa disposição, não são sem a suposição das coisas
que são necessárias à vida e à boa disposição, que são as
riquezas e os bens exteriores. Portanto, as riquezas devem
pre existir à felicidade, tanto especulativa quanto prática.
As coisas que se ordenam a um fim, ou se
relacionam a algo como um instrumento para uma operação,
convém que sejam comensuradas ou proporcionadas ao fim ou à
ação, e que não excedam ou falhem do termo médio da razão.
Portanto, as riquezas que devem preexistir à felicidade
convém que sejam comensuradas à mesma, de tal modo que não
sejam buscadas nem maiores nem menores do que o que são
necessárias à mesma. Exigem-se maiores riquezas para [a
felicidade] prática ou civil do que para a especulativa.
Para a [felicidade] especulativa são suficientes
as riquezas na medida em que são úteis à sustentação da vida
e à boa disposição do corpo. Para a [felicidade] prática ou
civil são exigidas, ademais, para a realização das operações
práticas ou civis e, quanto mais perfeitas estas forem, tanto
maiores aquelas terão que ser. [No entanto, mesmo na
felicidade prática], se as riquezas excederem a mencionada
comensuração, ou removerão completamente a felicidade ou pelo
menos a diminuirão. O mesmo pode ser dito se as riquezas
falharem quanto à medida do que é necessário para a
felicidade perfeita; se falharem segundo algo, diminuirão um
pouco a felicidade, se falharem segundo muito, a removerão
completamente. Assim, portanto, a felicidade per se não
consiste nas riquezas, nem no seu uso.
Todavia, as riquezas e o seu uso, que não pode
dar-se se as mesmas, são pré-necessárias à felicidade quanto
a uma certa medida e proporção, da qual, se falharem segundo
o menos e pouco, fará com que a felicidade seja menos
perfeita. Do mesmo modo acontecerá se elas existirem mas
excederem segundo o mais a mencionada felicidade.
Quanto à questão sobre se as riquezas são de pré
existência necessária per se ou por outro, ou como próprias
ou como comuns, isto não importa para o presente propósito,
desde que preexistam enquanto comensuradas. O modo de
preexistir e de pré-possuí-las mais elegível parece ser
aquele pelo qual são tidas segundo o quanto sejam necessárias
e comensuradas ao próprio fim e segundo o quanto menos os
homens sejam impedidos da retidão da operação, seja pelo
afeto, seja pela solicitude desordenada a seu respeito.
|
|