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Há um outro modo de salvar a tirania diverso dos
anteriormente mencionados. Os modos já expostos salvam a
tirania intensificando-a, estes salvam a tirania por remissão
ou abrandamento. Este modo deve ser tomado por semelhança à
corrupção dos reinos, porque assim como de um modo o reino se
corrompe na medida em que se aproxima da tirania, declinando
da retidão da razão, assim também salva-se a tirania na
medida em que se aproxima do reino e ao que é segundo a
razão. O reino é salvável por si mesmo; por esse motivo para
salvar a tirania é suficiente abrandá-la e aproximá-la do
reino.
[Segundo o modo de abrandamento], para salvar a
república tirânica é necessário que o tirano se comporte de
tal modo que pareça ter cuidados com o bem comum, e que não
gaste as coisas que tiver tomado dos súditos sem finalidade e
superfluamente, principalmente em coisas que descontentam os
súditos, como quando os tiranos tomam dos súditos que
trabalham assiduamente e depois são vistos entre meretrizes e
estranhos aos quais demonstram freqüentemente familiaridade,
artífices e histriões. Quando o tirano faz estas coisas,
passam a ser odiados pelos súditos, os quais facilmente se
insurgem contra ele. Por isso o tirano deve precaver-se de
gastar os bens que tiver recebido dos súditos em coisas que
os molestam.
Para que o tirano possa salvar a tirania e parecer
que tenha cuidado com o bem comum importa que ele dê contas
do dinheiro recebido e das despesas feitas. Alguns tiranos o
fizeram e, com isso, tornaram mais duradouro o seu
principado. A razão é que aquele que dispensa e governa deste
modo a república parece ser um certo ecônomo, isto é, um
dispensador, e parece trabalhar pelo bem comum, não parecendo
um tirano.
Alguém poderia objetar que se o tirano prestar
contas de seus gastos, faltar-lhe-ão recursos. Mas o Filósofo
responde que o tirano não deve temer que lhe faltem o
dinheiro e as riquezas. De fato, todas as coisas que há na
cidade, para o uso e a utilidade comum, são [na verdade]
dele, porque ele é o senhor da cidade. A razão disto é que os
bens exteriores são por causa do bem da alma e do corpo, e os
bens do corpo são por causa do bem da alma, e estes todos são
[por sua vez] por causa do bem comum da cidade e, por isso,
os bens dos súditos são, de certa forma, daquele a quem
pertence ordenar tudo para o fim da cidade. Por isso o tirano
não deve temer que lhe faltem os recursos, porque poderá
recebê-los dos súditos, na medida em que lhe compete ordenar
tudo para o fim da cidade. O que ele mais deve temer é
apoderar-se das casas dos súditos além da razão. Isto é o que
dá origem ao ódio por parte dos súditos e, ao fazer isto,
deve o tirano temer [com fundamento] que se insurjam contra
ele. Portanto, convém mais aos tiranos deixar as riquezas nas
próprias casas dos súditos e usar delas na medida em que for
necessário ao bem comum quando tal for necessário do que
perdê-las todas reunindo-as em sua casa própria, o que
acontecerá quando os súditos se insurgirem contra ele.
O tirano deve cuidadosamente reunir os impostos e
as ofertas que lhe foram gratuitamente feitas para poder
dispensá-las com cuidado e, se algumas vezes for oportuno,
gastá-las em jogos públicos, [de tal maneira que através
desta e outras ações] possa exibir-se como um guardião e
patrocinador da cidade e do bem comum, e não como do bem
próprio. Deste modo será menos odiado e os súditos ficarão
mais contentes.
Importa também para que o tirano possa salvar o
seu regime tirânico que ele não pareça desumano e cruel aos
seus súditos. A razão disto é que, se parecer cruel aos
súditos, tornar-se-á odioso para eles, e com isto facilmente
se insurgirão. Ao contrário, o tirano deve parecer digno de
reverência por causa da excelência de algum bem excelente. A
reverência, de fato, é devida ao bem excelente e, se o tirano
não possuir este bem excelente, deve pelo menos simular
possuí-lo.
Disto segue-se também que o tirano deve se
comportar de tal modo que se os súditos tiverem que recorrer
a ele, que o façam sem temor servil, tendo, em vez disso,
reverência para com ele. Não devem temê-lo, porque se o
temerem também terão ódio por ele; antes, que o reverenciem.
Pelo fato de que alguém recorre a outro e este possui um bem
que ao primeiro lhe falta, o segundo é reverenciado porque
não tem aquele bem, ou pelo menos não do mesmo modo. Por isso
o tirano deve se apresentar de tal modo que pareça aos seus
súditos possuir a excelência de algum bem excelente do qual
os súditos carecem e pelo qual possa ser reverenciado pelos
mesmos. Mostrar-se tal, porém, não é fácil, sem que ao mesmo
tempo se siga o desprezo se não se tornar terrível.
Facilmente é desprezado aquele que não é temido e por isso,
se o tirano não quiser parecer terrível, e com isto não ser
desprezado, deve trabalhar para adquirir virtudes e nas
próprias obras que tornam o homem não desprezível por causa
de sua excelência. Se o tirano não puder possuir todas as
virtudes e os seus atos, trabalhe pelo menos para possuir as
virtudes civis que parecem principais e, se não as possuir
segundo a verdade, faça com que pelo menos os homens opinem
que ele as tenha. Embora isto em si mesmo não seja bom, pelo
menos será bom para que não se torne facilmente desprezível.
O tirano deve se comportar também de modo a que
não pareça inferir injúrias a ninguém, nem ao jovem, nem ao
moço e que não somente ele em sua própria pessoa, mas também
que ninguém que esteja próximo dele injurie aos outros.
O tirano deve fazer também com que sua esposa se
torne familiar às esposas dos súditos, porque por causa de
injúrias feitas às [mulheres] muitas tiranias foram
destruídas. O tirano deve procurar, por isso, que sua esposa
seja amiga e tenha familiaridade com as esposas dos súditos.
Quanto aos prazeres do corpo o tirano deve fazer o
contrário daquilo que atualmente fazem certos tiranos. Há, de
fato, certos tiranos que não somente querem se entregar a
estes prazeres até durante muitos dias, mas querem também ser
vistos deste modo pelos demais, como se quisessem ser tidos
por bem aventurados e felizes por este motivo e, assim sendo
reputados por todos, sejam por isto objeto de admiração para
os mesmos. Mas o tirano deve ao contrário proceder bem
diversamente; deve saber moderar-se acerca destes prazeres
ou, se assim não o fizer, deve pelo menos exibir-se de tal
modo que pareça fugir deles, pois aquele que é sóbrio na
busca do prazer não é facilmente invadido nem desprezado,
enquanto que aquele que é usualmente ébrio é facilmente
invadido e facilmente desprezado. Aquele que vigia acerca dos
atos das virtudes não é facilmente invadido, nem desprezado,
mas aquele que dorme, [diz o Filósofo], isto é, aquele que
não opera segundo a virtude, é facilmente invadido e
desprezado. Quem opera segundo a virtude é tido como alguém
grande por causa da virtude, à qual todos respeitam, tanto os
bons quanto os maus, embora aqueles mais e estes menos.
Aquele que é reputado grande não é facilmente invadido nem
desprezado. Ninguém despreza a quem considera; quem, porém,
opera desordenadamente, situa-se na condição oposta.
Aquele que quer salvar a tirania deve ademais
fazer o contrário das coisas que foram mencionadas
anteriormente, isto é, o tirano deve preparar e ornamentar a
cidade, construindo torres e muros, edifícios e habitações e
outras construções [que visem o bem] comum e ordenando os
cidadãos como se fosse o benfeitor da cidade e não o seu
tirano. Deste modo parecerá um homem benévolo, e não um
tirano.
Para salvar a tirania o tirano deve também
comportar-se estudado e reverente para com as coisas que
pertencem à religião e ao culto divino e isto tanto mais
diversamente dos demais quanto mais for excelente. A razão
disto é que os súditos estimam um governante religioso e
deícola, e não temerão padecer males de sua parte. Da
divindade, de fato, ninguém espera males per se, e os súditos
se inclinarão menos à promoção de insídias opinando que Deus
lhe será propício e que estará ao seu lado contra os que lhe
promovem maquinações.
Importa também que o tirano seja sábio, para que
saiba considerar o fim e a dignidade do homem. Convém que
honre os cidadãos bons e virtuosos quanto aos atos de algumas
virtudes de tal modo que estes considerem ser mais honrados
pelo tirano do que seus próprios concidadãos. Deste modo
parecerá maximamente benevolente para os súditos.
Para que pareça mais benevolente as honras maiores
devem ser distribuídas pelo próprio tirano, enquanto que os
suplícios devem ser infligidos pelos demais príncipes e
juízes.
Para a guarda comum de toda [tirania], importa
muito que nenhum homem faça algo muito grande tanto pelo
poder como pela riqueza. Os que vivem de modo grandioso pelo
poder ou pela riqueza facilmente se insurgem. Se, porém, algo
assim deve ser feito, que o seja feito por muitos.
Dificilmente estes serão unânimes e um poderá colocar-se
contra o outro. Se algo de grande deve ser feito segundo o
poder, [o tirano deverá precaver-se] que não o seja feito por
aquele que é audacioso segundo o costume e possui inclinação
para a audácia. Este homem, de fato, é o mais invasivo de
todos segundo todas as suas ações e por isso, inclinando-se
às coisas grandes e possuindo poder, facilmente se insurgirá
[depois contra o tirano].
Se for necessário que o tirano afaste alguém de um
potentado, deverá depô-lo gradualmente, de tal modo que não
lhe tire logo da primeira vez todo o poder, mas apenas alguma
parte, depois outra, até que o tenha perdido todo. Deste modo
[aquele que perde o poder] se contristará menos e, por
conseqüência, se insurgirá menos e poderá insurgir-se menos
se o poder lhe é tirado aos poucos porque, o que é pouco,
costuma ser reputado por nada. Se, porém, o tirano lhe tirar
todo o poder de uma só vez, se contristará muito e poderá
insurgir-se.
O tirano que quiser salvar a tirania deve proibir
todas as injúrias e não cometer nenhuma. Deve precaver-se de
modo principal para não cometer duas injúrias. A primeira é a
flagelação corporal e a outra é a injúria que é segundo a
idade, isto é, a desonra. O motivo é que a flagelação do
corpo é algo servil e os cidadãos querem ser livres; por esse
motivo, se são injuriados pela flagelação, podem insurgir-se.
A injúria que é segundo a idade não deve ser feita; ao
contrário, o tirano deve exibir a maior reverência para com
os velhos segundo a virtude e os amantes das honras, porque
os homens costumam amargar pesadamente as injúrias acerca
daquilo que muito amam. Por causa disso o tirano deve honrar
os virtuosos e os amantes da honra ou, se lhes inferir
suplícios e desonras, importa que pareça estar fazendo isto
por causa do bem da paz e não por causa do desprezo por
julgamento de inferioridade. Importa também que as correções
e reprimendas que costumam ser feitas a alguns sejam feitas
aos virtuosos e aos velhos segundo a idade não por exibição
de poder mas por amor, de tal maneira que pareça que o tirano
os ame. E se a alguém forem feitas tais desonras, importa que
depois lhes sejam exibidas maiores honras para a mitigação
das mesmas.
As injúrias que o tirano deve maximamente evitar
são aquelas dirigidas contra os que se inclinam a invadir a
pessoa do governante. Os mais terríveis, contra os quais
importa exibir o maior cuidado, são aqueles que não se
importam em perder a vida contanto que possam matar o
príncipe. Por isso o tirano deve se precaver maximamente que
nenhuma injúria lhes seja feita, e não apenas a eles, como
aos que vivem sob os seus cuidados.
Se a cidade estiver dividida, constituída de duas
partes, a saber, de pobres e ricos, importa que o tirano
salve ambas as partes por causa de seu principado, de tal
maneira que o tirano não faça injúria nem a estes nem a
aqueles. Deve precaver-se também que ambas as partes não se
injuriem uma a outra. Os melhores deverão ser chamados para
participar junto consigo de seu principado. Se o tirano
proceder deste modo não necessitará libertar os servos nem
desarmar os súditos. Se, de fato, a cidade estiver dividida e
uma das partes se insurgir contra o tirano, a outra parte,
juntamente com o príncipe será suficiente para repelir a
insurreição.
Discorrer sobre cada uma das coisas que contribuem
para a salvação da tirania será supérfluo, pois cada um
poderá fazê-lo pela sua própria razão. É manifesto que
importa que o principado não seja tirânico, mas [que o
governante] se comporte como um pai de família e que [o
principado] pareça aos súditos tratar-se de uma monarquia
real onde o príncipe não governa por causa de si próprio, mas
exibe-se como guardião do bem público, procurando em tudo o
termo médio e não [os excessos] e [as] excelências. Para a
salvação da tirania o tirano deve dispor-se a si próprio de
tal modo que governe bem segundo os costumes e segundo a
virtude ou, se não o for segundo a virtude, pelo menos
segundo a aparência [da virtude]. Quanto menos for mau por
seguir a virtude ou pelo menos a sua aparência, tanto menos
será odiado pelos seus súditos.
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