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Na cidade, havendo os que governam e os que se
submetem, queremos investigar se na cidade ótima a disciplina
dos que governam e dos que se submetem deva ser a mesma. A
solução desta questão depende de outra, isto é, se na cidade
ótima os governantes e os súditos devem ser diversos [por
toda] a vida, ou se devem ser os mesmos segundo o suposto mas
diversos segundo alguma disposição, pois é evidente que a
disciplina destes homens, sobre a qual queremos investigar,
será conseqüência desta divisão. Se, de fato, os governantes
e os súditos forem totalmente diversos, será necessário que a
disciplina seja diversa; se forem os mesmos, a disciplina
deverá ser proporcionalmente a mesma. A razão para isto é que
aquilo pelo qual se determinam os governantes e os súditos,
[isto é, aquilo pelo qual alguém se constitui em governante
ou súdito], é a reta disciplina no que se ordena à operação,
a diversidade ou a unidade dos determinantes fazendo a
diversidade dos governantes ou dos súditos. Se, portanto, os
governantes e os súditos forem inteiramente diversos, suas
disciplinas terão que ser diversas; se forem os mesmos, terão
que ser proporcionalmente as mesmas.
Deve-se saber que o governante está para com o
súdito assim como o agente está para o paciente e o movente
está para o movido. Cabe ao governante mover e dirigir o
súdito, e ao súdito ser movido e dirigido segundo tal. O
movente e o agente enquanto tal é mais excelente do que o
paciente e o movido enquanto tal porque aquele está em ato e
este está em potência e, por isso, o governante, naquilo em
que ele é governante, é mais excelente. A excelência do
movente em relação ao movido é tomada pela ordenação à
operação principalmente quanto à forma, em segundo quanto às
disposições da matéria que subjazem à própria forma e,
finalmente, em terceiro, quanto às coisas exteriores que lhe
são coadjuvantes [auxiliando-o em sua ordenação àquele fim].
A forma segundo a qual o governante opera na
república ótima é a disciplina reta segundo a razão reta, por
exemplo, a prudência e a virtude civil. As disposições da
matéria são asa boas disposições que há nela mesma para com
estas coisas, como a inclinação natural e a boa disposição do
corpo. As disposições coadjuvantes externas são o poder e as
riquezas.
Por isso convém que o governante na república
ótima, se lhe é possível, exceda os súditos quanto à
prudência e à virtude, que são bens da alma, quanto aos bens
do corpo e quanto às coisas exteriores. De onde que diz o
Filósofo no Oitavo Livro da Ética: "Não há rei que não seja
per se suficiente e superexcelente em todas as coisas".
Por este motivo, se for encontrada uma pessoa na
cidade ou no reino que superexceda aos demais por todas estas
coisas, é justo que ele governe sozinho enquanto for tal. Se
forem encontrados muitos que excedam desta maneira o restante
da multidão, convém que eles governem durante toda a vida. O
Filósofo acrescenta que se houver na cidade alguns homens que
diferem tanto dos demais quanto cremos que os deuses, isto é,
os homens divinos, e os heróis, isto é, os homens que
alcançam a virtude heróica, que é a perfeitíssima virtude
intelectual e moral, diferem dos demais homens comuns, de tal
maneira que a excelência daqueles em relação a estes seja
manifesta sem nenhuma possibilidade de dúvida, é manifesto
que será melhor que sempre os mesmos durante toda a vida
sejam governantes, isto é, estes homens mais excelentes,
enquanto que os demais sejam súditos, os quais carecem destas
virtudes. O que é mais excelente e mais perfeito, enquanto
tal, governa por natureza ao que carece segundo a natureza em
relação àquele.
Deve-se saber, porém, que a existência de homens
que excedem toda a multidão [em tão grande proporção]
conforme foi mencionado é algo muito raro por causa da suma
perfeição que se requereria destes. Uma perfeição como esta é
rara e difícil. Já que não é fácil agora nas cidades, diz o
Filósofo, encontrar homens que excedem tanto o restante da
multidão, nem se encontram reis que tanto difiram dos súditos
como os heróis diferem dos homens ou como o foi Scylax entre
os Indos, é manifesto ser melhor e mais necessário que estes
às vezes governem e às vezes se submetam, segundo a parte,
por muitas razões. De fato, aqueles que são semelhantes
segundo a natureza e a virtude, possuindo o mesmo justo e
igual, devem também receber igualmente do que é comum. Ora,
governar é uma honra comum e por isso por isso aqueles que
são semelhantes segundo este modo devem governar igualmente.
Mas não poderão fazê-lo todos segundo o mesmo tempo, pelo que
deverão fazê-lo uns segundo um tempo e outros segundo outro
tempo.
Ademais, a república fundamentada sobre a
injustiça aos súditos não é duradoura, porque os súditos,
oprimidos pela injustiça, serão todos maus e insolentes na
região e, querendo, facilmente poderão corromper a república.
Ora, a república na qual sempre os mesmos governam a outros
que são semelhantes fundamenta-se sobre a injustiça e a
desigualdade, de onde que não é duradoura.
Alguém poderá dizer que o poder dos súditos e dos
insolentes pode ser reprimido pela potência dos governantes.
O Filósofo responde que [nestes casos] os súditos insolentes
serão muitos na região, e possuirão um poder muito grande.
Encontrar um tão grande número de governantes nesta república
que, segundo a sua multidão, sejam mais poderosos do que
todos os súditos é algo que pertence ao número das coisas
impossíveis e, portanto, o poder destes súditos não poderá
ser reprimido por meio destes.
[Já que determinamos que dificilmente se
encontrará alguém tão excelentemente virtuoso que deva
governar sobre os demais para sempre, o Filósofo passa a
considerar a disciplina dos governantes e súditos no caso
mais frequente em que os governantes devem dominar em parte e
submeter-se em parte]. É manifesto, diz o Filósofo, para o
que considera segundo a razão, que sem dúvida alguma é
necessário que os governantes e os súditos tenham que ter
alguma diversidade, porque o governante está para o súdito
assim como o movente e o ente em ato está para o movido e o
ente em potência. Ora, estas coisas, enquanto tais, possuem
alguma diferença. Por isso é necessário que o legislador e o
cidadão considerem como deverão ser uns e outros e como,
assim estando um para o outro, deverão participar do
principado e da sujeição.
A natureza, fazendo no mesmo gênero de homens a um
mais jovem e a outro mais idoso, procedendo do imperfeito ao
perfeito, deu a nós o modo pelo qual podemos escolher quando
o mesmo mais deverá governar do que submeter-se.
É manifesto que, para o mesmo, na medida em, que é
mais jovem, mais importa submeter-se. O jovem, enquanto tal,
é mais imperfeito e, enquanto tal, é mais robusto para
trabalhar em obras de serviço, o que pertence aos súditos. O
mais idoso é mais perfeito, porque é posterior segundo a
geração, segundo a virtude e segundo o intelecto. Por estas
coisas, porém, determina-se o governante.
Portanto, se na cidade bem ordenada importa que os
mesmos sejam governantes e súditos uns segundo um modo,
outros segundo outro, porque o governante e o súdito na
cidade ótima são determinados pela disciplina, por exemplo,
pela prudência e pela virtude, pelos quais este retamente
obedece e aquele retamente preceitua, importa que aquele que
deve governar tenha sido primeiro súdito e, enquanto súdito,
tenha aprendido as coisas que importa que o governante faça.
De fato, não governa bem aquele que em outros tempos não foi
submisso a algum príncipe, conforme está explicado no
terceiro Livro desta Política.
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