4. Qual é a disciplina pela qual os jovens devem ser educados.

É necessário que para o governador da cidade não se esconda qual é a disciplina comum das crianças, e como e até onde é necessário educar as crianças na mesma.

A razão é que muitos duvidam disto, como é evidente pelas obras e pelas diversas opiniões que há sobre este assunto. Não todos opinam que as crianças devam ser ensinadas nas mesmas disciplinas, nem que devam ser ordenadas à virtude, nem que devam ordenar-se a um mesmo [fim] ótimo. Alguns opinam que devam ser ordenadas a uma mesma coisa, como a arte dos julgamentos ou a retórica, outros que devam ser ordenados a outra, como à arte da medicina, a arte exercitativa ou outras semelhantes. Tampouco é manifesto para todos se é mais necessário ensinar as crianças [e] acostumá- las nas coisas que pertencem ao intelecto, isto é, nas virtudes intelectuais, ou se nas coisas que pertencem ao costume da alma, isto é, nas virtudes morais que estão na parte apetitiva da mesma. Ademais, a consideração da disciplina que se ordena à vida ativa é plena de turbação, [isto é, não há concórdia entre os homens sobre qual seria o fim especificamente considerado da vida ativa, a saber], qual seria [a vida ativa] ótima, aquela que mais deveria ser buscada. Homens diversos sustentam coisas diversas neste assunto, segundo os diversos fins que cada um constitui para si nas coisas agíveis.

Ademais, não é manifesto se é mais necessário dedicar-se às operações da vida ativa, ou às coisas que tendem à virtude que é o princípio das mesmas, ou acerca das coisas supérfluas, por exemplo, as deleitações sensíveis não necessárias. Diversos homens sobre estes assuntos opinam diversamente, e qualquer um deles tem os seus próprios juízes. Ninguém também se expressa concordemente sobre qual seria a principal das virtudes; nem todos honram a mesma [virtude] como a principal, mas alguns a esta e outros a aquela. Já que, portanto, destas coisas diversas homens diversos opinam diversamente, é razoável que consideremos qual é a disciplina que deve ser estudada e o que é o ótimo para as crianças. O Filósofo passará a declará-la primeiro em universal, para depois fazê-lo mais determinadamente. [Esta segunda parte, porém, foi deixada inacabada por Aristóteles, cujo tratado de Política deveria estender-se mais do que presentemente chegou até nós].

O Filósofo declara que, universalmente falando, as crianças devem ser exercitadas nas disciplinas úteis e liberais.

[Para entender a sentença do Filósofo], deve-se considerar que o homem livre é aquele que é causa de si mesmo, tanto pela razão de causa movente como pela razão de fim, conforme já foi anteriormente exposto.

O homem é causa de si mesmo na razão da causa movente quando é movido prejulgando e ordenando o modo e a razão de agir por meio daquilo pelo qual é homem e que é principal nele, [isto é], o intelecto.

O homem é causa de si mesmo na razão de fim quando é movido ao bem e ao fim de si mesmo segundo esta mesma coisa que é principal nele segundo o intelecto.

O homem é tanto mais livre segundo a natureza quanto mais é capaz de ser movido por aquilo que é principalíssimo nele e ao seu fim e bem que é segundo este mesmo principalíssimo.

O homem é dito servo quando não é capaz de ser movido, por indisposição da matéria, pelo intelecto próprio pelo qual é determinado, mas pelo intelecto e pela razão de outro e quando nem também opera por causa de si mesmo, mas por causa de outro [como a um fim]. E quanto menos for capaz de mover-se por si e mais por outro e para o fim do outro, tanto mais será servo.

Segundo isto a ciência livre ou liberal foi assim chamada pelos antigos como sendo aquela pela qual o homem se dispõe per se segundo o intelecto ao seu fim próprio. A ciência pela qual o homem é disposto para ordenar-se ao bem do corpo per se e aos bens exteriores é dita ciência servil, porque se ordena ao bem daquilo segundo o qual deveria servir no homem, como as artes mecânicas, as quais maculam de um certo modo o intelecto do homem acerca das coisas que não são próprias a si mesmo enquanto tais.

Entre as ciências liberais aquela que é maximamente livre é a que imediatamente dispõe o intelecto para o seu fim ótimo, aquela em cuja operação a felicidade consiste. As que dispõem o intelecto mediatamente as mesmo são menos liberais, como as ciências posteriores cujos conhecimentos se ordenam a conhecimentos superiores, embora ocorra que seu conhecimento já possa ser buscado por causa de si mesmo, [e não apenas instrumentalmente]. E aquela que entre as ciências especulativas é minimamente liberal será aquela na qual minimamente se busca o saber por causa de si mesmo e que por muitos meios se ordena ao bem último do homem.

Embora a ciência maximamente liberal não possa ser mal usada quanto ao uso per se dela própria, isto todavia pode ocorrer com as ciências posteriores menos liberais inclusive quanto ao uso delas por si mesmas. Assim como acerca do fim último do homem não é possível que de modo simples o homem possa mal haver-se, nas coisas que todavia se ordenam a este fim sucede que algumas vezes se faça mau uso. Isto ocorre quando pela consideração ou pelo seu exercício alguém é retraído do fim ou das coisas que são mais próximas do fim, como ocorre quando pela consideração de alguma ciência posterior de alguma coisa menos cognoscível alguém é retraído da consideração que há na primeira em relação ao maximamente cognoscível.

Consideradas todas estas coisas, Aristóteles supõe que convém ensinar às crianças nas disciplinas úteis em relação ao fim, mas não em todas as úteis, mas naquelas que são [simultaneamente úteis e liberais]. Não convém, de fato, ensinar as crianças em todas as coisas universalmente úteis, mas apenas nas úteis e liberais, o que fica manifesto pela distinção que há entre disciplinas liberais e iliberais. As disciplinas liberais dispõem per se o intelecto ao fim, enquanto que as liberais per se se ordenam ao nem do corpo.

Não convém que as crianças participem de qualquer uma das coisas úteis em relação ao fim que per se tornam o participante um mercenário. Deve-se entender por operação, arte e doutrina mercenária aquelas, quaisquer que sejam, que dispõem os corpos ou a alma dos homens livres, ou mesmo o intelecto, mal e inutilmente para o uso e as ações das virtudes morais e intelectuais, assim como ao uso da perfeitíssima virtude que é a felicidade, e todas as artes, quaisquer que sejam, que dispõem o corpo de um modo pior a estas artes e em cujas operações o intelecto é absorvido. Estas são as artes forenses, e as artes em que o corpo é maculado, pois pelo uso das mesmas a mente não pode aplicar- se às coisas que são o seu próprio bem per se e ela mesma é deprimida para as coisas nas quais a sua perfeição, segundo se, não pode ser encontrada.

O aprendizado e o uso da primeira e principal virtude deve ser buscado sem limitações. A participação nas demais ciências liberais, isto é, aquelas cujo uso se ordena a outro mais excelente, pode, entretanto, tornar-se não liberal. Exercitar-se de um modo contínuo e assíduo nas mesmas buscando nelas tanta quanto perfeição seja possível é muito nocivo, pelos motivos já mencionados, pois a ascensão e a consideração contínua nestas artes inibe de modo simples ou pelo menos em parte oi uso da virtude ótima. Ademais, é manifesto que estas ciências e seu uso ordenam-se a um fim ulterior. Embora o apetite do fim [deva] ser infinito, o apetite das coisas que se ordenam ao fim [não deve] ser infinito, mas determinado pelo fim. E por isso aprender e considerar as demais artes liberais até um certo ponto é liberal, na medida em que são úteis para o fim, mas não mais do que isto.

Há também muita diferença quanto ao fim pelo qual alguém aprende ou se exercita em alguma [arte liberal]. Quando isto é feito por causa do ato de umas virtude maior do que [o da própria arte], não se tratará de algo mau ou iliberal, o mesmo devendo-se dizer se isto é feito por causa do bem da virtude de algum amigo, pois o amigo é um outro si mesmo. Porém se alguém as aprende e exercita freqüentemente por causa dos outros, para que daí possa ganhar alguma comodidade ou utilidade segundo bens exteriores, como o fazem muitos juristas e médicos, isto se tornará uma obra mercenária e servil. Chamamos, de fato, uma disciplina de servil quando ela se ordena ao corpo e aos bens exteriores com a promoção da depressão da inteligência.

Note-se que o Filósofo se refere a alguém que "aprende e exercita freqüentemente [uma arte liberal] por causa das outras" porque às vezes é bom utilizar estas ciências para o bem dos outros, algumas vezes por causa do bem dos outros apenas sem nenhuma utilidade própria, como quando estes passam por necessidade e não podem ser ajudados de modo oportuno nem por si nem por outros, outras vezes também por uma utilidade própria para que nos tragam um lucro dentro dos limites da razão, na medida em que isto possa ser útil ao fim e ao bem segundo a inteligência, de um modo que não deprimam a própria inteligência em seu uso. Estas disciplinas e aprendizados, deste modo, podem ordenar-se a ambos os fins, porque elas podem ser bem e mal usadas em relação ao fim [último do homem], conforme foi mencionado.