12. Como a música contribui para a virtude moral e a operação reta.

Devemos investigar em seguida se se deve participar da música não apenas por causa do prazer, mas se por sua natureza a mesma pode ordenar-se a algo mais digno de honra. É necessário, de fato, participar da música não apenas pela comum deleitação que é segundo a mesma e à qual todos são universalmente sensíveis, mas também examinar se a música contribui em algo para a virtude moral e à operação reta que é segundo a alma.

É manifesto que pelo uso da música somos bem dispostos ao costume, [como é patente] pelas melodias usadas no Monte Olimpo, cujos sacerdotes as usavam nos seus cultos sagrados para exercitar os seus discípulos na abstração. Pelo uso destas melodias a alma dos homens era raptada como que alienada dos sentidos externos e como que tornada imóvel por causa da intensidade com que a alma de dirigia a algo interior.

Para entender o que o Filósofo entende por rapto, deve-se saber que o rapto, propria e principalmente dito, é um certo movimento violento produzido por algo além de si próprio ou em direção a outro, conforme explicado no sétimo livro da Física. É violento aquilo cujo princípio é externo. O rapto é, portanto, o movimento de algo, além de sua inclinação natural ou voluntária, produzido por um princípio extrínseco.

Esta violência pode ser considerada ou quanto ao término e ao modo do movimento simultaneamente, como quando o fogo é raptado para baixo por algo externo, ou quanto ao modo do movimento apenas, como quando o fogo é compelido para cima mais velozmente do que seria capaz de fazê-lo. Daqui, por semelhança, este nome foi usado para designar o movimento do homem segundo a alma para algo ao qual, segundo se, não possuiria inclinação, ou por um modo pelo qual não a teria, [não, porém, a qualquer movimento, como poderia ser um movimento bestial da alma, mas a um movimento conforme será descrito a seguir]. Como é natural ao homem inteligir pelos fantasmas sensíveis exteriores existentes segundo o ato, o nome rapto foi transladado para significar a operação intelectual pela qual o homem é conduzido a algo intelectual, seja a si conatural, seja acima de sua natureza, pela ruptura dos sentidos com as coisas interiores e pela sua imobilidade.

Disto fica claro o que é o rapto que o Filósofo aqui menciona. Trata-se de uma operação segundo a parte intelectual da alma segundo a qual, por algo extrínseco, é conduzido a algo que não lhe é natural, ou que lhe é natural mas por uma ruptura e imobilização dos sentidos. O rapto não pode ser uma operação da parte apetitiva da alma sensorial ou intelectual porque a operação da parte apetitiva da alma é segundo a sua inclinação e segundo um princípio intrínseco não violento. A causa natural e per se do rapto é a intenção veemente da alma acerca de alguma coisa que se dá seja pelo veemente desejo de alcançar algo ou de fugir de algo, seja pela veemente adesão a algo pelo amor ou deleitação ou mesmo pela deleitação máxima acerca de algo. Pelo fato de que alguém quer veementemente algo que é interior, sucede que a alma como que chame o espírito das coisas exteriores ao primeiro objeto das inteligência, acerca do qual passa a trabalhar mais intensamente. Entre as propriedades da natureza, de fato, temos a de enviar o espírito ao lugar onde é mais necessário e, por conseqüência, os sentidos exteriores e as partes do corpo se imobilizam, tornando o homem como que imóvel e sem uso dos sentidos externos em ato; a alma então, já não trabalhando no sentido e no movimento exterior do corpo, como que livre, pode especular mais sobre as coisas que estão acima da comum possibilidade dos homens, ou mesmo sobre as coisas que lhe são conaturais, não porém através do sentido exterior, o que lhe seria natural.

Os que possuem espírito pouco e débil e bastante móvel são raptados nas coisas interiores com pouca intensidade. Os de espírito pouco e débil não são capazes de um forte movimento interior e exterior, como ocorre em algumas mulheres. Já os que possuem um espírito abundante são raptados com uma intensidade muito veemente. O desejo, o amor ou a deleitação veementes, que produzem uma intensidade veemente da alma, são causados por uma consideração veemente da inteligência, a qual é produzida imediatamente por alguma causa superior que move diretamente a própria vontade ou, de um modo mais interior, por uma causa superior que move a vontade mediante a inteligência.

[O comentador, tendo explicado o que o Filósofo entende por rapto, repassa a palavra a Aristóteles que explicava ser manifesto que pelo uso da música o homem é bem disposto ao costume, dizendo que o Filósofo] declara o mesmo pela razão.

Acostumar-se a julgar retamente sobre as ações morais e alegrar-se e deleitar-se retamente nelas é algo muito eficaz para a retidão dos costumes e das ações morais. Mas, já que a música, isto é, as ações que são segundo a música, pertencem ao número das coisas deleitáveis segundo se, conforme foi dito anteriormente, e a virtude moral é acerca das deleitações e tristezas, do amor e do ódio. e outras paixões semelhantes, como acerca de sua própria matéria, sobre a qual busca aquilo que é segundo a razão e o termo médio, é manifesto que nada é tão importante aprender e acostumar-se para a geração dos hábitos morais retos e de suas ações quanto julgar retamente acerca dos movimentos das próprias paixões e das coisas que dizem respeito a estas, e deleitar-se nelas segundo a razão. A razão para tanto é que para a razão e a geração da virtude moral requer-se a reta razão, pela qual discerne-se aquilo que é reto e segundo a razão, às quais se segue uma deleitação proporcional, conforme é evidente no segundo livro da Ética.

Ora, acostumar-se a julgar retamente sobre as harmonias musicais e deleitar-se nelas segundo a razão é acostumar-se a julgar retamente acerca das ações morais e deleitar-se retamente nelas. Portanto, isto é eficacíssimo à retidão das ações morais.

Acostumar-se a julgar sobre aquilo que é semelhante às ações e deleitações morais é acostumar-se a julgar as próprias ações morais e deleitar-se nelas. As harmonias da música são semelhantes às paixões e aos hábitos e às ações morais. Portanto, acostumar-se a julgar e a deleitar-se retamente nas harmonias musicais é acostumar-se a julgar e deleitar-se retamente nos hábitos e nas ações morais.

[Que as harmonias da música assemelham-se às paixões humanas pode ser mostrado do seguinte modo]. As semelhanças das paixões, por exemplo, da ira e da mansidão, do temor e da audácia e outras como estas, e também dos hábitos, como o da fortaleza e da temperança, da liberalidade e da iliberalidade, e dos outros hábitos contrários a estes, e universalmente das demais [coisas] morais, como as eleições e as operações, encontram-se naturalmente nas melodias musicais e nos ritmos. As melodias musicais e os ritmos consistem em algumas determinadas proporções de números acerca dos sons e da temperança; semelhantemente, as paixões da alma consistem em uma determinada proporção do agente ao paciente, e são conseqüentes a alguma determinada proporção do quente e do frio, do úmido e do seco. A ira, de fato, é a subida do sangue ao coração, o temor é um certo resfriamento. Os hábitos morais consistem em uma certa determinada razão do apetite à razão do mover, e as virtudes consistem em uma certa razão média entre extremos, o mesmo ocorrendo semelhantemente em todas as demais coisas morais. Tudo isto é manifesto aos sentidos, porque os que ouvem algumas melodias ou ritmos são transformados segundo a alma, às vezes à ira, às vezes à mansidão, às vezes ao temor, o que não ocorre senão por causa de alguma semelhança destas para com aquelas.

Acostumar-se a alegrar-se e a entristecer-se nas coisas que são semelhantes às deleitações e às tristezas morais é algo próximo ao deleitar-se nestas [últimas coisas], porque aquilo que é semelhante a algo parece relacionar-se para com a verdade como que do mesmo modo que este algo. Por este motivo, acostumar-se às coisas que são semelhantes a algo é, de um certo modo, acostumar-se a este algo. Em outras palavras, se alguém admira ou considera a imagem da forma de alguém, como por exemplo, de Hércules, e de deleita nela na medida em que a imagem é forma [de Hércules], a visão da forma do próprio Hércules segundo si mesmo necessariamente lhe será deleitável, e mais ainda, porque aquilo pelo qual algo é tal, este algo o é mais, conforme está escrito no primeiro livro dos Analíticos Posteriores:

"propter quod unumquodque tale, et illud magis".

Nos sensíveis segundo os demais sentidos há algumas semelhanças dos costumes, embora poucas ou nulas, mas naqueles que são segundo o ouvido, estas são bastante manifestas. Nos sensíveis segundo cada sentido há algumas semelhanças das paixões, dos hábitos morais e das ações, já que todos os sentidos consistem em algumas proporções determinadas. Ademais, vemos também que por algumas elaborações produzidas pelos próprios sensíveis segundo cada sentido [o homem] é movido a algumas ações ou paixões morais boas ou más, o que não se dá senão por causa de alguma semelhança [dos mesmos nos sensíveis], já que em todos encontra-se alguma semelhança destas coisas. Todavia, [estas semelhanças] não são encontradas em todos os sensíveis de um modo igual pois, já que todas [as coisas morais] seguem alguma apreensão segundo a razão, parece ser razoável que os sensíveis segundo aqueles sentidos que mais nos fazem conhecer segundo a razão, maior semelhança tenham, enquanto tais, às [coisas] morais e estas, segundo Aristóteles no livro Sobre o Sentido, são a visão e o ouvido. E por isso, nos sensíveis que são segundo estes sentidos mais existem as semelhanças dos costumes.

Porém estas se encontram ainda mais manifestamente nos audíveis do que nos visíveis. É razoável que [as semelhanças dos costumes] se encontrem mais manifestamente nos sensíveis segundo o sentido que mais conduzirem ao conhecimento segundo o que é preexigido por tudo o que é moral em ato. Segundo o acidente, o ouvido mais conduz a este conhecimento do que a visão. O discurso audível, de fato, é causa da disciplina não segundo se, mas segundo o acidente; ele é constituído de nomes, e cada nome é um símbolo, conforme é explicado no livro Sobre o Sentido. É, por isso, razoável que nas coisas audíveis se encontrem mais manifestamente as semelhanças das coisas morais em ato do que nas coisas visíveis.

Ademais, as coisas audíveis movem mais fortemente do que as coisas visíveis, e de muitos modos. As coisas visíveis somente por uma alteração tênue, e quase insensível. As coisas audíveis segundo uma certa alteração e segundo um certo movimento local do meio e do órgão.

Supostas estas coisas, diz Aristóteles que nos sensíveis que são segundo os demais sentidos não há nenhuma semelhança dos costumes, dizendo nenhuma porque [na realidade] é pouca e imanifesta e o que é pouco e imanifesto é tido por nada. Nas coisas visíveis encontra-se alguma semelhança, mas débil pois, de fato, as figuras que são maximamente apreendidas pela visão são maximamente tais; algumas são agudas e algumas são obtusas, assim como também o são as paixões, mas a semelhança é pequena e, por isso, tais semelhanças não movem muito [o homem]. Todos os homens, ademais, que possuem visão possuem o sentido destas figuras, e no entanto nem todos alcançam os costumes [morais], o que, todavia, deveria acontecer se tivessem propriamente a semelhança deles em si mesmo. Mais ainda, as figuras e as cores não são propriamente semelhanças dos costumes expressos como harmonias, mas são mais propriamente como que certos símbolos que coincidem com os próprios costumes.

É nas coisas audíveis que manifestamente se encontram as semelhanças dos costumes. Nas próprias melodias musicais manifestamente se encontram as imitações dos costumes, e isto é manifesto, pois a natureza destas harmonias diferem tanto entre si que os ouvintes imediatamente são dispostos de um modo ou de outro segundo as paixões e os movimentos, e os homens não se transformam do mesmo modo ao ouvir cada uma delas, mas ao ouvir algumas ficam chorosos e como que contraídos pela retração da espírito ao interior, o que ocorre pela melodia conhecida como lídia mista.

A melodia lídia mista ou cantilena de sétimo tom é uma melodia que, por causa da grande agudeza das vozes, fortemente percute o espírito e o retrai ao interior, por causa do que dispõe à compaixão.

Pela audição de outras, mais brandas, os homens são mais dispostos à moleza, um exemplo das quais é a que é chamada de lídia, que é uma melodia do quinto tom, e a que é conhecida como hipolídia, a qual, por causa da brandura das vozes e dos movimentos, principalmente pela semitonia que freqüentemente recebem, manifestamente observamos mover os ouvintes à moleza.

Outras melodias dispõem bem e constantemente à obra. Tal é a melodia dita somente dórica, que é uma cantilena do primeiro tom, a qual é maximamente moral.

Há ainda aquelas que produzem o rapto, como a melodia denominada de frígia, que é uma melodia do terceiro tom, que por causa da forte percussão nas vozes fortissimamente chama o espírito do que é exterior para o que é interior, o que dispõe ao rapto.

Assim, pois, é evidente que é nas melodias onde há maximamente as semelhanças dos costumes, e que os homens, pelas mesmas, se dispõem aos costumes.

A mesma coisa pode ser dita dos ritmos. Alguns ritmos possuem a virtude pela qual dispõe a um costume instável. Alguns ritmos possuem movimentos aos que é mais pesado e iliberal, outros ao que é mais deleitável e iliberal. O ritmo é um número determinado de sílabas na oração terminada por um final semelhante.

Pode-se concluir de tudo isto ser manifesto que a música pode tornar [os homens] bem dispostos aos costumes, pelo que é também manifesto que a mesma é útil para os costumes. Do que se conclui também que os jovens devem ser ensinados e acostumados à música, naquilo em que a mesma dispõe ao costume.