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Como nem tudo o que acontece por ignorância pode
ser chamado de involuntário, [vamos mostrar os casos em que
se dá e não se dá o involuntário por ignorância].
[O primeiro caso é tomado da ignorância em si
mesmo]. A ignorância, [considerada em si mesma], pode ser de
duas maneiras. De uma primeira maneira, na medida em que
alguém ignora o que necessita fazer ou evitar em algo que
[lhe é de sua competência]. Este modo de ignorância não causa
a involuntariedade, porque ela não pode ocorrer no homem que
tem uso da razão a não ser por negligência. De uma segunda
maneira, a ignorância pode ser acerca de [certas] condições
singulares, e é somente este modo de ignorância que pode
causar o involuntário. O primeiro modo de ignorância pode
ocorrer em algo de particular, como quando alguém julga por
causa da concupiscência dever agora fornicar, ou em
universal, como quando alguém opina que toda fornicação é
ilícita. Como ambas estas ignorâncias são daquilo que compete
[ao homem], nenhuma delas causa uma involuntariedade. Ao
contrário, ao invés da involuntariedade, a primeira, que é em
relação ao particular, é mais causa de malícia e pecado, e
pela segunda, alguém mais merece ser vituperado, o que não
acontece com o que é verdadeiramente involuntário. O segundo
modo de ignorância diz respeito a condições singulares, por
exemplo, que esta mulher seja esposa, que este homem seja
pai, ou que este lugar seja sagrado. [Somente] a ignorância
de tais circunstâncias singulares causa o involuntário, [mas
não de modo suficiente]. De fato, para que segundo este
segundo modo de ignorância algo seja dito involuntário, se
requer ainda que, [se as circunstâncias forem posteriormente
conhecidas], causem tristeza e arrependimento, como mais
adiante se dirá.
[O segundo caso é tomado da ignorância ser causa
ou concomitante da operação]. Quando algo é feito na
ignorância, às vezes esta ignorância é causa daquilo que é
feito, enquanto que em outras a ignorância se encontra como
algo concomitante à operação, e não como sua causa. Este é o
caso do embriagado, ou do que está irado, [que operam na
ignorância], mas não por causa dela, e sim por causa do
embriagamento ou da ira. De fato, o embriagamento e a ira
causam a operação simultaneamente com a ignorância, de
maneira que aqui a ignorância é concomitante com a operação e
não sua causa. De onde fica patente que, quando alguém assim
opera por ignorância, mas não por causa dela, não é causada a
involuntariedade.
[O terceiro caso é tomado do fato daquilo que é
feito por causa da ignorância, ser contra ou simplesmente
alheio à vontade]. Tudo o que é feito por causa da
ignorância, de tal maneira que a ignorância seja a sua causa,
é universalmente não voluntário, pelo fato que o ato da
vontade não é trazido a isto que é feito. De fato, o ato da
vontade não pode ser trazido naquilo que é completamente
ignorado, já que o objeto da vontade é o bem conhecido. [Mas
o fato de não ser voluntário não significa que seja contrário
à vontade]. As coisas que são feitas por causa da ignorância,
apesar de não serem voluntárias, podem entretanto se
encontrar de modos diversos para com a vontade. Elas, assim,
poderão ser ou contrárias à vontade, quando então a ação é
dita propriamente involuntária, ou então poderão não ser
contrárias à vontade, mas somente alheias [praeter] à vontade
na medida em que são ignoradas. Estas últimas ações são ditas
não voluntárias, mas não poderão ser chamadas de
involuntárias. Serão contra a vontade quando depois de serem
conhecidas provocarem a tristeza e o arrependimento, e isto
porque, como está escrito no quinto livro da Metafísica, algo
é contristante na medida em que é contrário à vontade. Já no
caso daquele que opera algo por causa da ignorância, e não se
entristece com o que fez depois de o saber, é diferente
daquele que se arrepende. Este último é dito involuntário,
enquanto que o primeiro é dito apenas não voluntário.
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