4. Levanta-se uma dúvida sobre a igualdade e a justiça no estado popular.

O Filósofo levanta a seguinte dúvida quanto ao estado popular. Em qualquer cidade ou república, inclusive no estado popular, há ricos e pobres; isto levanta a questão de como se deverá atribuir, tanto a estes, quanto a aqueles, o que é igual e justo. Isto é, se na cidade há mil pobres e quinhentos ricos se se deve dar ou distribuir aos mil pobres tanto quanto se dá ou distribui aos quinhentos ricos, de tal modo que os mil pobres tenham tanto poder nas decisões comuns quanto os quinhentos ricos; ou se, além de dividir do modo como foi dito, deve-se ademais tomar alguns poucos dentre os pobres e os ricos por eleição, mas de modo que o número dos que são escolhidos entre os pobres estejam para com o número dos que são escolhidos entre os ricos] na mesma proporção do número [total] de pobres para com os ricos; ou ainda, se nenhum destes modos é correto, mas se deve atribuir tudo à maior multidão, de tal modo que a multidão maior seja senhora de todas as coisas. A dúvida consiste em qual destas alternativas é o justo e igual na república popular, ou se nenhuma delas.

O Filósofo reponde a esta questão dizendo que esta mesma dúvida pode ser levantada de um modo diverso no estado de poucos. No estado popular os cidadãos dizem ser justo e igual de modo simples aquilo que assim parece a muitos pois, de fato, é a multidão que governa em tal república. Por este motivo, o justo no estado popular é tomado por comparação à multidão. Na potência de poucos, porém, os cidadãos dizem que o justo de modo simples é o que assim parece aos que possuem as maiores riquezas. Dizem, de fato, que tudo deve ser determinado segundo a relação para com as riquezas, que são o que há de principal nestas repúblicas.

O Filósofo, porém, reprova ambas estas colocações, [isto é, que o justo de modo simples é o que assim parece à multidão no estado popular ou que é o que assim parece à minoria dos ricos no estado de poucos]. Ambas estas posições possuem uma certa desigualdade na coisa e uma certa injustiça por comparação ao fim.

[Em relação à posição defendida pelos que sustentam o estado de poucos], se é justo fazer-se na cidade aquilo que assim parece aos poucos ricos existentes, seguir- se-á então que a república se converterá em uma tirania. A razão é que se for justo aquilo que assim parece aos mais ricos, e se todas as coisas devem ser determinadas segundo a quantidade das riquezas, então se houver algum homem que tenha maiores riquezas do que todos os demais [juntos], o justo será aquilo que assim o parecer apenas a este [homem] e será necessário determinar tudo segundo a sua vontade. Por conseguinte, será necessário que somente este homem governe segundo a sua vontade. Ora, isto é a tirania.

Por outro lado, [em relação à posição defendida pelos que sustentam o estado popular], se o justo é aquilo que assim parece à multidão, e importa seguir nisto o julgamento de muitos, como a multidão possui um poder maior e segue o ímpeto da vontade ao julgar, [teremos que nos converter] às obras da injustiça, rapinando tudo aquilo que pertence aos poucos ricos existentes, conforme já foi dito no livro quarto desta política.

O Filósofo responde a esta questão dizendo que convém em ambas estas coisas, [isto é, no estado popular e no estado de poucos], que o justo que domina e governa na república seja aquilo que assim parece às muitas partes da república. Isto, todavia, deve ser suposto não de modo simples, mas com certas determinações.

Duas, de fato, são as partes pelas quais a cidade é necessariamente composta, a saber, os ricos e os pobres. O que parecer justo a estes e àqueles simultaneamente em sua maioria, não digo de toda a multidão, mas da maioria dos ricos e da maioria dos pobres, seja este o justo pelo qual se governe e que se execute em toda a república.

Se, porém, acontecer que estes se contrariam entre si, de tal modo que não a todos os ricos parecer o mesmo e semelhantemente não a todos os pobres parecer o mesmo, então o justo não deverá ser determinado segundo o modo acima mencionado, mas segundo alguma outra excelência, ou da virtude, ou do desejo do bem comum. Neste caso, aquilo que parecer ser o justo à parte que possui tal excelência, [tendo sido bem apresentado e considerado], será o justo, Se ainda assim as diversas partes forem encontradas iguais em virtude, permanecerá a mesma dúvida sobre qual sentença deverá ser seguida. Neste caso a sentença [a ser seguida] deverá ser determinada pela sorte ou por algum outro artifício semelhante à sorte.

Alguém poderia objetar que a eleição do principado e a distribuição das honras comuns são as coisas máximas na cidade, e seria inconveniente confiar as coisas máximas à sorte, um caminho pelo qual pode-se ficar com o pior.

O Filósofo, porém, responde que, sendo dificílimo encontrar o justo e o igual nas coisas anteriores, e determinar segundo a razão reta, é todavia melhor dirimir as controvérsias pela sorte do que permitir que somente os ricos governem. Sempre, de fato, entre dois males deve-se escolher o mal menor. É mau confiar-se à sorte e é mau que somente os ricos governem, porém, é menos mau confiar-se à sorte do que permitir que os ricos governem. Os ricos, de fato, pela própria abundância de suas riquezas inclinam-se ao desprezo, ao orgulho e a outras coisas injuriosas e, por isso, não se importam com a justiça. Por este motivo é melhor decidir confiar-se à sorte do que permitir que apenas os ricos governem no estado popular.