6. O que é a felicidade.

Depois quer o Filósofo mostrou que na república reta a disciplina do governante e do súdito deve ser a mesma sob um certo modo e diversa sob outro modo, passa agora a declarar como e por quais meios os cidadãos se tornam bem disciplinados e estudiosos.

Pretendemos considerar, diz o Filósofo, como e por quais meios o cidadão se torna disciplinado e estudioso. Ora, já que a mesma é a disciplina ou a virtude do cidadão ótimo na ótima república pela qual se ordena à felicidade perfeitíssima, que o fim, e daquele que a governa, assim como também a do homem ótimo, ainda que seja necessário que ele antes seja súdito quando é jovem e imperfeito e seja depois governante quando já perfeito, mais deveremos considerar governante ou o legislador da cidade, como e por quais meios se tornam homens ótimos e bem disciplinados. E porque a razão destas coisas é tomada do fim último da vida humana, deve-se considerar qual é este fim. Este sendo manifestado, tornar- se-á evidente como e por quais meios os cidadãos se tornam bem disciplinados e estudiosos.

O Filósofo declara o que é a felicidade primeiramente pela divisão das partes da alma. O fim último da vida humana não consiste principalmente em alguma das coisas que pertencem per se ao corpo. O corpo, de fato, e as suas perfeições são por causa da alma. O fim último da vida humana está mais naquelas coisas que pertencem à alma, que é a parte mais excelente do homem. Na alma, porém, deve-se considerar a parte racional, qualquer que seja o seu modo, e a parte inteiramente irracional.

O fim último do homem não pode consistir no ato da parte inteiramente irracional da alma, porque é necessário que este fim consista em algo que é próprio do homem, pelo qual se distingue dos demais, já que o fim último do homem deve ser próprio do mesmo. Ora, a parte totalmente irracional da alma é comum ao homem e aos demais [animais], de onde que a felicidade não poderia consistir em alguma perfeição pertencente a esta parte, mas mais em algo pertencente à parte de algum modo racional da alma.

As partes da alma que possuem razão são duas, distintas entre si. A primeira é a que é racional por essência, a outra é a que segundo se não é racional, mas é racional segundo uma certa participação, porque é capaz de obedecer à razão, ordenar-se ou proceder da mesma.

Em qualquer destas partes da alma racional há algumas virtudes morais, por exemplo, a temperança e a justiça na parte irracional [por essência mas que é racional por participação]. Na parte racional por essência há as razões, como a prudência e a sabedoria. E é manifesto pelo que foi dito que no ato de alguma destas, [isto é, no ato tanto da parte racional por participação como no da parte racional por essência] consiste o fim último do homem. Em qual, [precisamente], ficará manifesto pelo que se segue, pois em cada gênero aquilo que é pior ou menos bom é por causa do melhor, o que é evidente per se tanto nas coisas que se fazem pela natureza como nas coisas que se fazem pela arte.

Na natureza a matéria é por causa da forma, e os primeiros elementos simples são por causa dos [corpos] mesclados, nos quais as coisas imperfeitas são por causa das perfeitas, como no gênero dos animais.

Algo semelhante ocorre também nas coisas que são segundo a arte. A madeira e as pedras são dispostas [de algum modo] por causa da forma da casa; a casa, porém, é disposta de um determinado modo por causa da habitação.

A razão do que acaba de ser exposto consiste em que aquilo que é pior em cada gênero possui razão de imperfeito e de ente em potência, enquanto que o melhor no mesmo gênero possui razão de perfeito e de ente em ato. Ora, o imperfeito e o ente em potência estão para o perfeito e o ente em ato assim como a potência está para o ato no mesmo gênero. Ora, no mesmo gênero a potência é por causa do ato, de onde que o ente em potência e o ente imperfeito são por causa do ente em ato e do ente perfeito e, ulteriormente, no mesmo gênero o pior é por causa do melhor.

Mas, entre as partes da alma, o racional por essência é melhor do que o racional por participação porque aquilo que é tal por essência é melhor e mais perfeito do que aquilo que é tal por outro. Portanto o racional por participação será por causa do racional por essência, e por conseqüência sua perfeição será por causa da perfeição deste. Se, portanto, aquilo por causa do qual é outro possui razão de fim em relação a este outro a parte racional por essência da alma e alguma perfeição sua será fim da parte racional por participação da alma e a sua perfeição.

O Filósofo, então, declara que o fim último da vida humana consiste na operação da parte especulativa da alma. A parte racional por essência da alma é dividida em duas partes, conforme [ele] costuma dividí-la, das quais uma é a prática, que raciocina sobre as coisas agíveis que podem ocorrer de modos diversos, e a outra é a especulativa, que trata principalmente sobre a natureza dos entes e das coisas impossíveis de ocorrerem, enquanto tais, de modos diversos.

E porque as operações são consemelhantemente divididas por princípios e estão uma para com a outra proporcionalmente como estes, conseqüentemente será necessário que as operações da melhor parte segundo a natureza sejam melhores segundo se e mais elegíveis do que aquelas que podem se originar [das piores]. A operação, de fato, segue, per se, a natureza e por isso a [operação da natureza] mais perfeita é mais perfeita e é mais elegível para cada um aquilo pelo qual [cada um] pode alcançar o sumo e o perfeitíssimo. Ora, esta é a operação do mais perfeito segundo a natureza.

Do que foi dito pode-se concluir a seguinte proposição, isto é, que é melhor a operação da melhor e mais excelente parte da alma, a qual também é mais elegível de modo simples, e por conseqüência possui mais razão de fim.

Mas a parte especulativa da alma é melhor e mais perfeita por natureza do que a prática, o que é evidente pela razão do objeto. A parte da alma intelectual mais perfeita e melhor no gênero da inteligência é aquela cujo objeto mais possui razão de inteligível, porque a natureza da potência é considerada pela razão do objeto, e o que é mais inteligível segundo a natureza é mais perfeito no gênero dos inteligíveis.

Mas o objeto do intelecto especulativo possui mais razão de inteligível do que o objeto do intelecto prático. O objeto do intelecto prático é o bem agível e possível de ocorrer de modos diversos, o qual possui menor razão de inteligível por causa da razão do movimento e da possibilidade de [eventos] adjuntos. O objeto do intelecto especulativo, porém, é a natureza dos entes intransmutáveis, ou pelo menos não enquanto transmutáveis, os quais possuem mais razão de inteligíveis, como algo mais remoto do movimento e da matéria. Portanto, a parte especulativa da alma é mais excelente e mais nobre do que a prática. Segue=se, portanto, que a sua operação será mais perfeita e mais elegível, e mais possuirá razão de fim.

Já que os atos e os objetos são divididos proporcionalmente pelas próprias potências, e se dividem mutuamente assim como as próprias potências entre si, toda a vida humana, isto é, a conversação segundo a razão, que é o ato da alma que possui razão, é dividida proporcionalmente segundo as partes mencionadas da alma no exercício das virtudes morais, principalmente as que são para o outro, e no exercício das virtudes contemplativas. Os agíveis pelo homem são divididos em bens necessários e úteis para um determinado fim e em bens segundo si mesmos, acerca dos quais é necessário fazer eleição como acerca das partes da alma, isto é, assim como a parte racional por participação da alma é por causa da parte racional por essência da alma, deve se procurar a guerra por causa da paz e o exercício das virtudes práticas por causa da contemplação.