IV. A INSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA ÓTIMA, QUANTO AOS CIDADÃOS


1. A felicidade do homem.

Depois que o Filósofo investigou as coisas que devem ser supostas para a instituição da república ótima por parte do fim e da matéria da própria cidade, passa agora a declarar a partir de que homens deve ser instituída a cidade ótima. Como, porém, o cidadão se define pela cidade e a cidade ótima é determinada pelo fim ótimo, deveremos considerar algumas suposições necessárias para a abordagem do assunto que nos interessa.

Deve-se supor, primeiro, que assim como no Universo encontra-se um duplo bem, isto é, o bem separado e o bem da ordem, e o bem separado é maior do que o bem da ordem, conforme foi determinado por Aristóteles no décimo segundo livro da Metafísica, e o bem perfeito é agregado destes [dois] bens, assim também no homem, que é dito um pequeno universo, encontra-se de um certo modo um duplo bem, que são o bem do fim e o bem da ordem, nos quais o bem da ordem das coisas que se ordenam a um determinado fim é determinado pelo próprio fim, e o bem perfeito do homem é agregado destes dois bens.

Supostas estas coisas, o Filósofo diz que já que há duas coisas pelas quais ocorre que os homens sejam bons, das quais uma é o fim reto da operação e a intenção dele do mesmo, e o outro é a descoberta das ações e dos instrumentos que se ordenam a tal fim, o ótimo [para cada homem] consiste no seu fim ótimo e na ordenação das demais coisas para o mesmo.

Ocorre algumas vezes que estas coisas se harmonizem ou destoem entre si. Destoam porque às vezes o homem coloca diante de si um fim bom e permanece na sua intenção reta para com o mesmo, pecando, porém, na ação das coisas que se ordenam àquele fim, ou na sua própria ordem. Outras vezes as coisas que se ordenam ao fim subsistem todas e retamente ordenadas, mas o fim colocado e pretendido é mau. [Ambas estas coisas] podem harmonizar-se entre si quando o homem peca em ambas, tanto no fim como nas coisas que se ordenam ao mesmo, ou quando toma ambas retamente, colocando- se um fim reto e pretendendo alcançá-lo, e também ordenando retamente as coisas que são para este fim.

Não todos os homens se encontram do mesmo modo em relação ao seu ótimo ou felicidade. É manifesto por si mesmo que todos os homens naturalmente apetecem viver bem. Todos, de fato, apetecem naturalmente a sua perfeição. Mas não há em todos os homens uma igual habilidade para alcançá-la. Alguns são tão depravados pelo costume, ou por algum outro motivo, que embora se inclinem por natureza à felicidade e ao bem viver, todavia não buscam estas coisas por um caminho ou um modo reto. Deste modo, que alguém não alcance a felicidade pode ocorrer ou porque não colocam retamente o que seja a felicidade, ou porque não buscam retamente as coisas que se ordenam a mesma, ou por ambos estes motivos.

Já que o propósito de nossa intenção é considerar qual é a república ótima, e a república ótima é aquela segundo a qual a cidade governa e vive otimamente, e que cidade governa e vive otimamente quando alcança a felicidade ótima, por isso importa que nós pré consideremos aquilo pelo qual esta se determina. Ora, a cidade ou república ótima é determinada pela felicidade, conforme acaba de ser exposto.

O Filósofo diz que já determinamos nos livros de Ética que a felicidade é

"a operação e o uso perfeito da virtude considerada de modo simples, e não por suposição".

A felicidade é uma operação, [e não um hábito], porque o hábito é [algo] em potência e [por isso] imperfeito, enquanto que a felicidade é dita ser o bem perfeito.

A felicidade [deve ser também uma operação] da virtude, porque a virtude é o que aperfeiçoa a quem a possui e torna a sua operação algo bom. Ora, se a felicidade é o perfeito fim do homem, deverá ser, portanto, segundo a sua virtude.

A felicidade é o uso perfeito [da virtude], porque uma só operação não faz o homem feliz, mas muitas e contínuas. Os atos contínuos de algo são o uso perfeito daquele ato, segundo o que o uso é o mesmo que o exercício.

No Primeiro Livro da Ética, o Filósofo não define a felicidade como a "operação e o uso perfeito da virtude", mas como "a operação do homem segundo a virtude perfeita na vida perfeita". Ambas estas definições são a mesma segundo a coisas, porque aquilo que na política é colocado como sendo o uso perfeito é o mesmo que na Ética é colocado como sendo a vida perfeita.

Para entender a partícula acrescentada à definição, isto é, "considerada de modo simples, não por suposição", deve-se entender que o fim, segundo se, possui razão de bem. Das coisas que se ordenam ao fim, há algumas que possuem alguma razão de bem por si mesmo, como um remédio doce, enquanto que há outras que não possuem esta razão de bem e de elegível, mas [possuem razão de bem] apenas por sua ordenação ao fim, como um remédio amargo. O remédio amargo, em si mesmo, não é elegível, mas o é apenas por causa da saúde. Os bens do primeiro tipo são ditos bens de modo simples, enquanto que os bens do segundo tipo são assim ditos apenas por causa da necessidade [do fim].

O Filósofo chama de operação boa por suposição aquela que é necessária para o fim, mas segundo si não possui razão de bem. O Filósofo chama de operação boa simplesmente considerada aquela que possui razão de bem segundo se e não apenas por causa do fim, como o são as ações da justiça. De fato, as sentenças dos condenados, seus suplícios e punições procedem da virtude da justiça, e são necessárias para a cidade, pois de outra maneira não se salvaria a cidade nem a comunicação que deve haver [nela entre os cidadãos]; possuem, portanto, razão de bem porque são necessárias, mas, segundo si, não são absolutamente elegíveis. De fato, seria mais elegível se fosse possível que os homens ou as cidades não necessitassem de tais operações. Mas as ações que são acerca da honra e acerca da abundância dos bens exteriores são elegíveis de modo simples segundo se. A honra, de fato, dispõe e realiza o bem segundo a alma, na medida em que alguém, por causa da honra, opera coisas grandes e dignas de honra. As riquezas naturais produzem principalmente o bem segundo o corpo.

Deve-se entender, porém, para a evidência do que foi dito e do que irá ser dito, que a felicidade per se não consiste nos bens exteriores, por exemplo, nas riquezas, nem no uso delas. A felicidade não pode consistir per se nelas porque ninguém busca a felicidade por causa de alguma outra coisa, enquanto que as riquezas são buscadas por causa de outras, ou por causa das necessidades da vida, ou por causa da operação da virtude. Portanto, a felicidade não pode existir per se nas riquezas. A felicidade não consiste no uso per se das riquezas, porque o uso ótimo das riquezas que está no seu consumo, parece ordenar-se per se imediatamente ao bem do corpo, por exemplo, à sustentação da natureza, ou pelo menos se ordena a alguma outra coisa, enquanto que a felicidade não dizemos que se ordena a nenhuma outra coisa.

A felicidade, ademais, é a operação da virtude perfeitíssima. Ora, o bom uso das riquezas não é a operação perfeitíssima da virtude, porque a liberalidade ou a magnificência, que são operações das riquezas, não são virtudes perfeitíssimas, a prudência e a sabedoria sendo maiores do que elas. Portanto, a felicidade per se não pode consistir no uso das riquezas; estes devem, todavia, preexistir à própria felicidade.

A felicidade consiste na ótima operação intelectual per se. Para qualquer operação intelectual, seja ela especulativa ou prática, é necessário pressupor a consistência do sujeito e sua boa disposição. A consistência, porém, e a boa disposição, não são sem a suposição das coisas que são necessárias à vida e à boa disposição, que são as riquezas e os bens exteriores. Portanto, as riquezas devem pre existir à felicidade, tanto especulativa quanto prática.

As coisas que se ordenam a um fim, ou se relacionam a algo como um instrumento para uma operação, convém que sejam comensuradas ou proporcionadas ao fim ou à ação, e que não excedam ou falhem do termo médio da razão. Portanto, as riquezas que devem preexistir à felicidade convém que sejam comensuradas à mesma, de tal modo que não sejam buscadas nem maiores nem menores do que o que são necessárias à mesma. Exigem-se maiores riquezas para [a felicidade] prática ou civil do que para a especulativa.

Para a [felicidade] especulativa são suficientes as riquezas na medida em que são úteis à sustentação da vida e à boa disposição do corpo. Para a [felicidade] prática ou civil são exigidas, ademais, para a realização das operações práticas ou civis e, quanto mais perfeitas estas forem, tanto maiores aquelas terão que ser. [No entanto, mesmo na felicidade prática], se as riquezas excederem a mencionada comensuração, ou removerão completamente a felicidade ou pelo menos a diminuirão. O mesmo pode ser dito se as riquezas falharem quanto à medida do que é necessário para a felicidade perfeita; se falharem segundo algo, diminuirão um pouco a felicidade, se falharem segundo muito, a removerão completamente. Assim, portanto, a felicidade per se não consiste nas riquezas, nem no seu uso.

Todavia, as riquezas e o seu uso, que não pode dar-se se as mesmas, são pré-necessárias à felicidade quanto a uma certa medida e proporção, da qual, se falharem segundo o menos e pouco, fará com que a felicidade seja menos perfeita. Do mesmo modo acontecerá se elas existirem mas excederem segundo o mais a mencionada felicidade.

Quanto à questão sobre se as riquezas são de pré existência necessária per se ou por outro, ou como próprias ou como comuns, isto não importa para o presente propósito, desde que preexistam enquanto comensuradas. O modo de preexistir e de pré-possuí-las mais elegível parece ser aquele pelo qual são tidas segundo o quanto sejam necessárias e comensuradas ao próprio fim e segundo o quanto menos os homens sejam impedidos da retidão da operação, seja pelo afeto, seja pela solicitude desordenada a seu respeito.