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“Abatido, um dia, por causa da excessiva afluência de alguns
seculares - aos quais, em suas dificuldades, somos muitas vezes
obrigados a pagar até o que sem dúvida não devemos -, procurei um
lugar retirado, amigo de minhas mágoas, onde pudesse ver com clareza
tudo que me desagradava em minhas ocupações e ter livremente sob os
olhos tudo quanto me costumava afligir. Enquanto ali me achava,
amargurado e em silêncio por muito tempo, esteve comigo meu amado
filho, o diácono Pedro, que desde a mais tenra idade me é
familiarmente ligado por grande amizade, e também companheiro no
estudo da Palavra Sagrada. Vendo-me o coração devorado de
mágoa, disse-me:
“Terá acontecido algo de novo, pois estás mais triste que de
costume?”
“Pedro, respondi-lhe, a tristeza que sofro cada dia, é para mim
sempre velha, porque contínua, e, simultaneamente, sempre nova,
porque sempre aumenta. Meu pobre espírito, atacado do mal das suas
ocupações, recorda o que foi outrora no mosteiro, como as coisas
instáveis lhe estavam por baixo, e quanto ele transcendia tudo que
passa, acostumado que era a não pensar senão nas coisas celestes;
recorda que, embora retido no corpo, já ultrapassava pela
contemplação os limites da carne; e a morte, que para quase todos é
punição, ele já a desejava como a entrada na vida e o prêmio dos
seus trabalhos. Agora, porém, sofre com as dificuldades dos
seculares, por ocasião da cura pastoral. Depois de tanta formosura
do tempo da sua paz, está hoje enfeiado do pó da atividade terrena.
E como, por condescendência com muitos, ele se dissipa pelas coisas
de fora, mesmo quando retoma o curso da vida interior, é, sem
dúvida, debilitado que a ela volta. Estou, pois, avaliando o que
sofro, avaliando o que perdi; e, enquanto considero o que perdi,
pesa-me ainda mais o que suporto.
Eis, com efeito, sou agora batido pelas vagas de alto mar, e os
ventos de forte tempestade despedaçam a nau de minha mente; quando me
lembro da vida anterior, suspiro como se estivesse vendo atrás de mim
o litoral. E, o que é ainda mais triste, enquanto sou levado no
tumulto de imensas ondas, mal posso ver o porto que deixei; pois esta
é a lei das quedas do espírito: primeiro, ele perde o bem que
possui, mas ao menos se lembra de o ter perdido; depois, quando
avança mais longe, acaba esquecendo o próprio bem que perdeu, e,
finalmente, não vê mais, nem de memória, o que antes possuía por
experiência. Daí se segue o que antes eu disse: se navegarmos mais
adiante, já nem o porto de tranqüilidade que deixamos, podemos ver.
Às vezes, também, para aumento de minha dor, volta-me à
lembrança a vida de alguns homens que de toda a mente deixaram este
século. Vendo as alturas a que chegaram, fico sabendo quanto me
encontro por baixo. A maioria deles agradou ao Criador numa vida
retirada; para que o seu espírito novo não envelhecesse por
ocupações humanas, Deus onipotente não quis que se ocupassem com
trabalho deste mundo.”
Mas poderei relatar melhor o diálogo (travado entre mim e Pedro),
se distinguir perguntas e respostas pela indicação dos nomes dos
interlocutores.
Pedro: “Não sabia que na Itália alguns homens brilharam
notavelmente pelas virtudes de sua vida. Ignoro, pois, quem são
estes cuja comparação te inflama. Não duvido, é verdade de que
houve neste país homens bons, mas penso que ou não operaram
absolutamente sinais e milagres, ou, se os operaram, foram até hoje
de tal modo pas- sados em silêncio que não sabemos que os
praticaram.”
Gregório: “Pedro, se eu referir o que desses homens perfeitos e
aprovados eu só, pobre homenzinho, vim a saber do testemunho de gente
boa e fidedigna, ou aprendi por mim mesmo, penso que o dia acabará
antes da narrativa.”
Pedro: “Gostaria de que em resposta a perguntas minhas contasses
alguma coisa desses homens. Não deve parecer condenável interromper
com isto a exposição da Escritura, porque não menos edificação
provém da lembrança dos milagres. Na exposição da Escritura
conhece-se o modo de encontrar e conservar a virtude; na narração
dos milagres, conhecemos como se manifesta a virtude encontrada e
conservada. E há muita gente que mais pelo exemplo do que pela
palavra se inflama de amor pela pátria celeste. Muitas vezes mesmo os
exemplos dos Pais trazem à alma do ouvinte uma dupla ajuda, pois,
se, de um lado, ele se afervora no amor da vida futura pela
comparação com os que o precederam, de outro lado, também se
humilha, se julga ser alguma coisa, ao conhecer que outros foram
melhores.”
Gregório: “O que fiquei sabendo pela narração ouvida de homens
veneráveis, também eu o narrarei sem hesitação, seguindo um
exemplo de santa autoridade; pois me é mais claro do que a luz que
Marcos e Lucas aprenderam, não por ver, mas por ouvir, o
Evangelho que escreveram. Todavia, para tirar aos leitores qualquer
ocasião de dúvida, referirei em cada caso que descrever, os autores
por quem fui informado. Quero, porém, chamar a tua atenção para o
seguinte: em alguns casos guardarei apenas o sentido, enquanto, em
outros, tanto o sentido como as palavras dos relatores. A razão é
que, se de todas as pessoas eu quisesse conservar textualmente as
palavras, a linguagem de escritor não poderia reproduzir dignamente as
que foram proferidas em linguagem rústica.
Foi de anciãos muito veneráveis que ouvi o que passo a contar.”
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