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“Pela mesma época certo clérigo da igreja de Aquino estava sendo
atormentado pelo demônio. Já Constâncio, bispo dessa igreja, o
fizera percorrer muitos sepulcros de mártires para alcançar a cura.
Alas os santos mártires de Deus não lhe quiseram conceder o dom da
saúde, para assim demonstrar quanta graça havia em Bento.
Foi, pois, o clérigo levado ao servo de Deus onipotente, Bento,
o qual, orando ao Senhor Jesus Cristo, logo expulsou do possesso o
antigo inimigo. Depois de curá-lo, o santo preceituou-lhe:
“Vai, e de agora em diante não comas carne, nem te atrevas a
receber uma ordem sacra; no dia em que ousares profanar uma ordem
sacra, recairás imediatamente sob o poder do demônio. Foi-se
embora o clérigo curado e, como o castigo recente costuma amedrontar,
guardou por algum tempo tudo que o homem de Deus mandara. Quando,
porém, depois de muitos anos, mortos todos os seus superiores, viu
que outros mais jovens lhe passavam à frente nas ordens sacras,
negligenciou, como que esquecido pelo longo tempo, as palavras do
homem de Deus, e apresentou-se à ordenação. No mesmo instante
apoderou-se dele o diabo, que já o deixara, e não cessou de o
atormentar até que lhe arrancou a alma.”
Pedro: “Esse homem de Deus, a meu ver, chegou a penetrar até nos
segredos da Divindade, pois viu claramente que o clérigo estava
entregue ao demônio para que não ousasse apresentar-se à
ordenação.” Gregório: “Porque não havia de conhecer os
segredos da Divindade aquele que da Divindade guardou os mandamentos?
Pois está escrito: “O que adere ao Senhor, é um só espírito”
(1 Cor 6,17).
Pedro: “Se aquele que adere ao Senhor, se torna um só espírito
com o Senhor, porque é que o mesmo grande pregador diz : “Quem
conheceu a mente do Senhor, ou quem foi seu conselheiro?” (Rom
11,34). Parece muito incongruente que alguém ignore o
pensamento daquele com o qual se tornou um só”.
Gregório: “Os santos varões, enquanto são com Deus uma só
coisa, não ignoram o pensamento do Senhor. É o mesmo Apóstolo
quem diz: “Que homem sabe aquilo que é do homem, senão o espírito
do homem que está nele? Assim também o que é de Deus, ninguém
conhece senão o Espírito de Deus” (1 Cor 2,11). Mas,
para mostrar que sabia as coisas de Deus, Paulo acrescentou: “Nós
não recebemos o espirito deste mundo, mas o espírito que é de
Deus” (ibd. 2,12). E de novo diz: “O que olho não viu,
nem ouvido escutou, nem subiu ao coração do homem, é o que Deus
preparou para os que o amam; a nos, porém, Ele o revelou pelo seu
Espírito” (ibd. 2,9-10).
Pedro: “Se, portanto, ao mesmo Apóstolo foram reveladas pelo
Espírito divino as coisas de Deus, como, então, nos preveniu com
as seguintes palavras sobre a questão que eu propus: “O abismo das
riquezas da sabedoria e da ciência de Deus! Como são
incompreensíveis os seus juízos e imperscrutáveis os seus
caminhos!” (Rom 11,33).
Eis, porém, que, ao dizer estas coisas, me aparece outra
questão. Com efeito, o profeta Davi, falando ao Senhor, diz:
“Nos meus lábios pronunciei todos os juízos da tua boca» (Salm
118,13). E, visto que conhecer é menos que pronunciar,
porque declara Paulo incompreensíveis os juízos de Deus, quando
Davi atesta que não só os conheceu todos, mas até os pronunciou em
seus lábios?”
Gregório: “Em poucas palavras respondi às duas perguntas, quando
há pouco disse que os santos varões, enquanto são com o Senhor uma
só coisa, não ignoram o pensamento do Senhor. Pois todos os que
seguem devotamente o Senhor, por essa devoção estão com Deus;
mas, como ainda se acham sob o peso da carne corruptível, ao mesmo
tempo não estão. Assim, enquanto juntos com Deus, conhecem-lhe
os ocultos juízos; enquanto separados, ignoram-nos. Como, de um
lado, ainda não penetram perfeitamente os mistérios de Deus,
declaram incompreensíveis os seus juízos; mas como, de outro lado,
estão unidos de espírito com o Senhor e nessa adesão percebem alguma
coisa na medida do que lhes é dado nas palavras sagradas da Escritura
ou em secretas revelações, conhecem isso e o proferem. Ignoram,
portanto, os juízos que Deus cala, e conhecem os que Ele
manifesta. Por isto, o profeta Davi, depois de dizer: “Em meus
lábios pronunciei todos os juízos”, logo acrescenta: “da tua
boca”, como se dissesse abertamente: “Pude conhecer e proferir
aqueles juízos dos quais soube que tu os proferiste. Aqueles,
porém, que tu mesmo não disseste, os escondes sem dúvida ao nosso
conhecimento”. Assim é que concordam entre si as duas sentenças, a
do Profeta e a do Apóstolo, segundo as quais são, de um lado,
incompreensíveis os juízos de Deus, e são, de outro lado,
proferidos por lábios humanos os juízos anteriormente pronunciados
pela boca do Senhor; pois os juízos de Deus podem ser conhecidos
pelos homens quando revelados por Deus, e não o podem quando não
revelados.”
Pedro: “Vejo que, por ocasião da minha pergunta, se esclareceu o
sentido da coisa. Mas, se ainda há mais sobre os milagres deste
homem, peço-te que o contes.”
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